A CRISE DOS REFUGIADOS DO ORIENTE MÉDIO: ENTRE A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E A (IN)EFETIVIDADE CONVENCIONAL

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A CRISE DOS REFUGIADOS DO ORIENTE MÉDIO: ENTRE A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E
A (IN)EFETIVIDADE CONVENCIONAL[1]

THE CRISIS OF MIDDLE EASTERN REFUGEES: BETWEEN THE SOCIOLOGY OF ABSENCES
AND CONVENTIONAL (IN)EFFECTIVENESS

Ana Carolina Roza Bonetti[2]
Andrey Lucas Macedo Corrêa[3]

Palavras-chave: refugiados; sociologia das ausências; convenções
internacionais; direitos humanos; multiculturalismo

Resumo: O presente trabalho intenciona, tanto através de perspectivas
jurídicas quanto sociológicas, analisar e propor possibilidades de reversão
emancipatória ao quadro de desolação dos milhares de refugiados que
atualmente almejam (sobre)viver em continente europeu e, sobretudo nos
países do Oriente-médio. O caos social gerado pelo grande fluxo de pessoas
que tem se deslocado dentro e para além do oriente-médio, em sua maioria
sírios, afegãos e iraquianos, fugindo da guerra, de Estados ditatoriais e
de facções terroristas, traz à tona a impreterível necessidade de se pensar
e repensar as possibilidades e limitações para Estado, Sociedade, Política
e Economia na efetivação de direitos (individuais, coletivos e difusos)
dessas pessoas. Emergem assim, questionamentos acerca dos efeitos da
modernidade global de matriz excludente a fim de, por conseguinte, haver
reação em prol de se garantir a dignidade da pessoa humana, a
multiculturalidade e a inclusão social através de uma globalização
alternativa de solidariedade. Neste viés, o presente trabalho dissecará o
pensamento de Boaventura de Souza Santos, relacionando este à crise dos
refugiados sob um processo de tradução do caso em questão em busca de
possibilidades de se transformar ausências em presenças no contexto da
sociedade hodierna. Além disso, serão analisados documentos internacionais
imprescindíveis à querela, os quais se problematiza se esses podem tornar-
se instrumentos de materialização da racionalidade cosmopolita explanada no
artigo. Assim, a inexistência produzida pela lógica de não reconhecimento
deste conglomerado, seria combatida pela ascendência dessa razão contra-
hegemônica capaz de estender o presente e planejar o futuro em uma
transição que valoriza a experiência social. A metodologia utilizada é a
análise doutrinária bem como o estudo detalhado dos mecanismos
internacionais de proteção dos refugiados. Como resultado, percebe-se que
as Convenções internacionais sobre os refugiados não são capazes de
fornecer, com sua redação atual, uma possibilidade de emancipação econômica
e social conforme proposto pelo pensamento de Santos.



Keywords: refugees; sociology of absences; international conventions; human
rights; multiculturalism.

Abstract: This paper intends, through legal and sociological perspectives,
analyze and propose possibilities of emancipatory reversion to desolation
framework of thousands of refugees currently crave living in Europe and,
especially in the Middle-East countries. The social chaos generated by the
large influx of people who have been displaced within and beyond the Middle
East, mostly Syrians, Afghans and Iraqis, fleeing from war, dictatorial
regimes and terrorist factions, brings out the imperative need for to think
and rethink the possibilities and limitations of State, Society, Politics
and Economy in enforcing the rights of these people. Emerge as well,
questions about the effects of global modernity reaction in favor of
guaranteeing human dignity, multiculturalism and social inclusion through
an alternative solidarity-globalization. This study will dissect the
thought of Boaventura de Souza Santos, relating this to the refugee crisis
in a case of the "translation" process in question in search of chances of
becoming absences in attendance in the context of contemporary society.
Beyond that, the analysis of international documents is fundamental, which
it discusses whether these can become instruments of materialization of
cosmopolitan rationality as explained in the article. Thus, the absences
produced by the logic of non-recognition of this conglomerate, would be
opposed by the descent of that reason counter-hegemonic able to extend the
present and plan the future in a transition that values the social
experience. The methodology used is the doctrinal analysis and the detailed
study of international mechanisms for the protection of refugees. As a
result, it can be seen that the international conventions on refugees are
not able to provide, with its current wording, the possibility of economic
and social emancipation as proposed by the thought of Santos



1. INTRODUÇÃO

A contínua tragédia que vem se sucedendo devido ao inegável quadro de
desolação dos milhares de seres humanos em condição de refugiados que
almejam atualmente (sobre)viver após a fuga de catástrofes humanitárias (em
especial a guerra), desperta a necessidade de intenso raciocínio quanto às
possibilidades e limitações para o Estado na efetivação de direitos
(individuais, coletivos e difusos) no âmbito das convenções internacionais
sobre Direitos Humanos. A priori, serão analisadas neste artigo informações
capazes de contextualizar uma perspectiva sócio-jurídica crítica sobre o
tema, em especial (in)efetividade dos tratados internacionais bem como a
(in)efetividade social na abordagem da temática. O trabalho busca analisar
as limitações que os contextos estaduais enfrentam na efetivação básica de
direitos aos cidadãos na condição de refugiados, para tal, utiliza-se como
marco teórico Boaventura de Sousa Santos, quando este apresenta que apenas
o reconhecimento da existência de sociologias das ausências possibilita a
insurgência de uma sociologia das emergências, e não só uma emergência nos
moldes do sistema econômico atual, mas sim uma perspectiva de emergência
emancipadora. Para confirmar que as pessoas em situação de refugiados
verdadeiramente estão inseridas em um contexto de sociologia das ausências
a primeira parte do artigo buscará refletir de forma ampla e crítica a
realidade de instabilidades estruturais e materiais profundas vivenciadas
por essas pessoas, fatos que verdadeiramente motivam o êxodo de suas
regiões de habitação tradicional. É interessante observar que, partindo da
perspectiva econômica, há aqui uma realidade de transposição de uma
"presença" para uma "ausência", ao passo que antes da instauração dos
conflitos armados nos países, em especial na Síria, as pessoas em condição
de refugiados que migraram para a Europa ocupavam estratos sociais
elevados, justamente por esse fato que lhes é possibilitado realizar a
dispendiosa e dramática viagem ao continente europeu.

O trabalho apresenta uma delimitação geopolítica específica, qual
seja os atuais conflitos no Oriente Médio, em especial o caso com maior
destaque nos dias de hoje, o da Síria. No entanto, pela transversalidade da
questão, é impossível realizar o presente trabalho sem analisar en passant
a estrutura conflituosa e às tensões na região em torno.

Após, a fim de esboçar os prolegómenos imprescindíveis à formação de
um pensamento coeso quanto à temática, serão, antes de tudo, tratadas neste
artigo as concepções sociológicas discorridas pela visão de Boaventura de
Souza Santos sobre a sociologia das ausências, a sociologia das emergências
e o trabalho de tradução[4]. Dessarte, através do cotejo entre tais
concepções e a realidade dos refugiados no panorama europeu, analisar-se-á
por ordem cronológica alguns documentos internacionais atinentes à garantia
de condições de vida digna às pessoas em condição de refugiados
concomitante ao respeito cultural e a perspectivas emancipatórias. Todo
esse trajeto intenciona revelar a cada momento a crítica acerca do modelo
de racionalidade ocidental, a fim de se propor a estruturação de uma
racionalidade cosmopolita e uma perspectiva de organização emancipatória, a
qual será explicada e defendida ao longo da argumentação.

O trabalho está dividido nas seguintes partes: apresentação narrativa
da situação sociológica que é o objeto de estudo do presente trabalho;
contextualização da temática ante informações jornalísticas, apresentação
dos conceitos sociológicos utilizados, em especial as dimensões de
sociologia das ausências e sociologia das emergências e; análise quanto às
convenções internacionais que buscam tutelar a situação das pessoas em
condição de refugiados e seus limites à efetivação.

Embora seja irrelutável a compreensão da necessidade holística do
ensino, aprendizado e exercício jurídico, por tratar-se de uma ciência
intrinsecamente relacionada às mais diversas áreas de relação e
conhecimento do ser humano, importante ressaltar que o artigo procura,
através da sociologia, fundamentar, analisar sob ótica crítica e otimizar
alguns instrumentos jurídicos disponíveis e possivelmente úteis ao conflito
em questão (SANTOS, 2003). Afinal, o estudo dos processos que interligam os
indivíduos em sociedade não apenas questiona como também qualifica os meios
como são ratificados, no caso em questão, pelos ordenamentos instaurados e
suas próprias conexões. A priori, fez-se necessário também à compreensão do
artigo, um conluio de informações atualizadas sobre a crise dos refugiados
e quando as pessoas podem ser consideradas como tais.




2. CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE A CRISE ATUAL DE REFUGIADOS DO ORIENTE MÉDIO NA
EUROPA


Preliminarmente, é importante diferenciar minimamente a condição de
refugiado, de migrante e de requerente de asilo, apesar de todas refletirem
dimensões extremas de exclusão social. Um migrante é uma pessoa que deixa o
seu país para viver noutro território por várias razões, de forma
temporária ou permanente. Alguns migrantes deslocam-se de livre vontade,
outros são forçados a fazê-lo. Um requerente de asilo é uma pessoa que
deixou o seu país em busca de proteção internacional, mas a quem ainda não
foi concedido o estatuto de refugiado. Não pode ser repatriada à força
enquanto o processo de avaliação do seu pedido de asilo se encontra em
curso. Além disso, uma pessoa não pode ser repatriada à força se a sua vida
ou liberdade no seu país estiver ameaçada (princípio de non-refoulement).
Já um refugiado[5] é uma pessoa que fugiu do seu país porque receava, com
razão, vir a ser perseguida caso regressasse, devido à sua identidade
(etnia, nacionalidade[6], pertença a um determinado grupo social),
convicções religiosas ou opiniões políticas, e o seu Estado não pode ou não
quer assegurar a sua proteção. É ainda considerado refugiado quem for
obrigado a deixar o seu país devido a conflitos armados, violência
generalizada e violação em grande escala dos direitos humanos. Ao contrário
de um requerente de asilo, o estatuto de refugiado foi-lhe reconhecido.

Muitos teóricos abordaram a questão da formulação de políticas
públicas aos refugiados por vários ângulos. Kunz foi um dos primeiros a
lidar com esta questão com a "teoria do refugiado" (KUNZ, 1973), onde ele
diferenciou entre refugiados e imigrantes. Kunz argumentou que refugiados
passam por experiências diferentes do que as enfrentadas pelos imigrantes.
Ele identificou o facto de que os refugiados são obrigados a abandonar os
seus países; considerando que os imigrantes o fazem por opção. Em outros
termos, Kunz identificou o conceito de migrantes argumentando que a única
diferença entre eles e os refugiados encontra-se em suas motivações
(PEDRAZA-BAILEY, 1985, p. 8). O que é previsível, neste contexto, é a
classificação do movimento de refugiados, o qual Kunz dividiu em três
categorias. A primeira considera os movimentos antecipatórios, os quais
ocorrem quando os refugiados deixam o seu país na suposição/expectativa de
que a situação política/econômica/social vai desmoronar, e, portanto, tomam
medidas preventivas para fugir do país. A segunda movimentos agudos de
refugiados, quando se deixa o país após a situação deteriorar-se. Eles
costumam migrar (à força) para um Estado vizinho, devido à sua proximidade
com seu país de origem, similitudes culturais e menor custo econômico. Por
fim, tratou-se do tipo intermediário de movimento, o qual assimila os dois
primeiros. Por outras palavras, ocorre quando os refugiados fogem do seu
país depois que a situação começa a deteriorar-se e antes de atingir o
nível de desespero (HIRUY, 2009 , p. 19).

Em sua teoria do "biopoder", Agamben foi além da definição e das
razões por detrás da migração forçada, analisando a noção de soberania, de
Estado de direito e da proteção dos refugiados (AGAMBEN, 1998). Ele
comparou os campos de refugiados com os campos de concentração na base de
que a maioria dos refugiados não são reassentados nos países de
acolhimento, mas "perifericamente" levados a campos de refugiados e não são
considerados, nem tratados, como cidadãos ou mesmo seres humanos. Foca
principalmente na questão dos refugiados da Palestina que foram expulsos de
sua terra natal (BETTS e LOESCHER, 2011, p. 135). Outros teóricos
argumentam que quando os refugiados chegam ao seu destino ou para um país
seguro, sofrem enormes impactos nos países de acolhimento. Whitaker
analisou os movimentos de refugiados e o papel da refugiados em aliviar o
conflito. Ela argumenta que isso poderia acontecer, quer através do
deslocamento do equilíbrio de poder no Estado de acolhimento, ou através de
um "process of escalation", o qual traz novas perspectivas sobre a situação
dos países de origem (WHITAKER, 2003, p. 212-213).

Ainda em sede preliminar, é fundamental delimitar uma questão que
muda todo o entendimento sobre a realidade das pessoas em situação de
refugiados do Oriente Médio (em especial, atualmente, sírios), trata-se da
análise sobre a origem e destino dessas pessoas. Para tal, é necessário
apresentar que o processo de saída de um país em guerra (como é o caso da
Síria) é extremamente dispendioso e nivelado, dessa forma, serve de
parâmetro para analisarmos a origem socioeconômica dessas pessoas. É
extremamente cara uma viagem à Europa (mesmo que nas condições presenciadas
e noticiadas), isso justifica o fato de que, segundo as fontes da Amnistia
Internacional, 4 milhões de refugiados sírios encontram-se nos países
vizinhos (e 7,6 milhões são deslocados internos). O Líbano acolhe quase 1,2
milhão de refugiados oriundos da Síria, o que representa cerca de uma em
cada cinco pessoas no país. Por sua vez, a União Europeia (UE) propõe
reinstalar 160.000 refugiados em dois anos. É um percentual ínfimo em
comparação ao volume verificado. Diante dessa realidade, a primeira
constatação é de que as pessoas que foram à Europa representam uma minoria
de todo o fluxo migratório da Síria e, ao mesmo tempo, representa um
estrato social com forte poder financeiro[7].

Avançando, é fundamental apresentar e discutir a realidade das
pessoas em condição de refugiados. Para tal tarefa utilizamos a ferramenta
da narrativa histórica e com linguagem marcada por relatos, a fim de
inserir o leitor de forma mais profunda na realidade que propomos revelar e
desvelar[8].

O caos social ocasionado pela situação dos refugiados, pessoas
impelidas a deixar seu país de origem em busca de paz e segurança, deve ser
não apenas fonte de inconformismo, como também alvo de reflexão. Afinal,
trata-se do maior fluxo de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, o
qual encontra-se em situação de exclusão social, entregue à sorte das
intempéries de uma jornada em busca de estabilidade em outros territórios.
A fim de melhor contextualizar o leitor à temática, faz-se pertinente
esclarecer que foram inúmeras as tragédias ocorridas (entre tantas não
reportadas), como as mortes devido à batida de navegações que transportavam
refugiados na ilha de Lesbos; o naufrágio de dois barcos com cerca de 500
imigrantes após deixar Zuwara, na Líbia; os 71 corpos, provavelmente de
imigrantes sírios, descobertos em um caminhão abandonado na Áustria; as 800
pessoas que morreram devido ao naufrágio nos arredores da ilha de Lampedusa
na Itália (PETER, 2015); entre outros acontecimentos deploráveis ocorridos
em 2015, infelizmente ainda reiterados no presente. Outrossim, por volta de
2,5 mil imigrantes se afogaram no mar Mediterrâneo neste ano de 2015,
devido aos barcos superlotados que realizavam a tentativa de alcançar as
costas italiana e grega. Mais de 300 mil já arriscaram suas vidas nas
mesmas águas este ano. Só em julho, 34 mil foram detectados tentando
atravessar a fronteira entre a Sérvia e a Hungria (PETER, 2015). Ademais,
números recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) reportam milhares
buscando chegar à Alemanha e a outros países da União Europeia (EU) através
de uma rota perigosa nos Bálcãs e espera-se que cerca de 3 mil pessoas
atravessem a Macedônia todos os dias. Ademais, não se fez irrisória a
quantidade de sobreviventes que relataram violência, roubos, extorção e
abusos cometidos por traficantes de pessoas. Nota-se, pois, não se tratar
de eventualidades, nem de episódios isolados, mas de uma contínua realidade
miserável.

Mas, então, qual a razão dessas pessoas junto a suas famílias
sujeitarem-se a condições tão previsivelmente inóspitas e arriscadas? Ora,
não se trata meramente de uma perigosa busca por oportunidades de ascensão
na qualidade de vida, mas de uma verdadeira fuga, seja ela da guerra civil
em curso no país de origem, como o caso dos sírios, os quais compõem o
maior grupo de imigrantes; ou da própria pobreza concomitante à constante
violação de direitos humanos, situação dos afegãos e eritreus, como dos
pobres e marginalizados originários da Nigéria e do Kosovo. Há fugitivos
inclusive de armas químicas do autoproclamado estado islâmico (CHIVERS,
2015). Constata-se, por conseguinte, que a saída dos habitantes de sua
nação, por mais árdua que se prenuncie, consiste na opção mais plausível a
esse conglomerado. Como exemplificação, segue o relato de que cerca de 2,5
milhões de pessoas na Líbia, cerca de 40 por cento da população, precisam
de ajuda humanitária, segundo dados da ONU (ACNUR, 2015).

Trata-se, pois, de um problema generalizado que teve como reflexo a
crise atual dos refugiados, em especial na Síria. Não obstante, a questão
não se limita a determinados países, nem aos que falharam na garantia de
condições dignas à sua população nem àqueles que fecharam suas fronteiras
e/ou deixaram até de conceder auxílio mínimo. O infortúnio em análise
emergiu/emerge paulatinamente como árdua consequência de toda uma lógica
moderna lapidada pela globalização neoliberal (SILVA e AMARAL, 2013, p.
245; BERNER e GENOVEZ, 2013, p. 298), sustentada pelo capitalismo global e
fundamentada por uma racionalidade indolente que será dissecada no próximo
capítulo.






3. A CONCEPÇÃO DA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS ESTENDIDA AOS REFUGIADOS


Todo o trabalho está inserido em um contexto de reinvenção normativa
(em especial a nível internacional) e pelos caminhos para uma perspectiva
de emancipação social e interconexão entre essas duas dimensões. A fim de
evitar rupturas ao desenvolvimento da temática e delinear o raciocínio que
perfaz o cerne do capítulo, será discorrido sobre a racionalidade
indolente, fonte legitimadora de ausências, conforme será explanado
(SANTOS, 2002, p. 238-239; SANTOS, 2000). A razão indolente foi formada por
quatro formas, a razão impotente (determinismo/realismo), a razão arrogante
(livre arbítrio, construtivismo), a razão metonímica (a parte tomada pelo
todo) e a razão proléptica (o domínio do futuro sob a forma do planejamento
da história e do domínio da natureza) - as quais não serão
pormenorizadamente dissecadas nesta análise, não havendo prejuízo ao
entendimento do enfoque pretendido (SANTOS, 2002, p. 240-241). A razão
indolente, em uma breve apreciação, revela-se na redução da multiplicidade
dos tempos ao tempo linear e na concepção truncada de totalidade ocidental
que busca afirmar-se como totalidade, igualmente, impondo homogeneidade às
partes que a compõem. Ademais, manifesta-se, sobretudo, na resistência à
mudança das rotinas, e na transformação de interesses hegemônicos em
conhecimentos verdadeiros e imutáveis. Assim, emergiria uma inadequada
compreensão do mundo responsável por legitimar violência, destruição,
alienação e silenciamento de populações não convenientes aos anseios do
capital, as quais não seria absurdo classificar aqui como residuais
(SANTOS, 2002, p. 244; FORACCHI, 1982). Inadequação está refletida neste
artigo no percurso (previsível?) dos refugiados onde há abdicação do país
onde viveram, na busca de acolhimento por outra nação nem sempre receptiva
e na inserção em outro território, por ainda se imporem dificuldades
relacionadas à identificação cultural, ao amparo social e à possibilidade
de subsistência (LEAL, 2004).

Ademais, a razão indolente por manifestar-se na consideração de um
tempo linear, através da lógica de que a história tem sentido único e
conhecido - sendo sucessivamente determinados o progresso, a revolução, a
modernização, o desenvolvimento, o crescimento e a globalização – a crise
atual dos refugiados não se encontra em nenhum desses tempos implantados e
dominados pelos países destacados no sistema mundial (SANTOS, 2000). Com
estes ficam a rotulação dos conhecimentos, o poder das instituições e das
formas de sociabilidade que a eles se fazem convenientes. Lógica que se
torna fonte da não existência, porquanto rotula como atrasado tudo o que
não segue a linha temporal pré-determinada e foge do que é considerado
avançado em seu restrito rol de experiências consideradas; estipulando
estes acontecimentos como obsoletos e residuais, ignorando seus efeitos,
suas possibilidades e alternativas. Assim, nota-se que a crise dos
refugiados, por mais constante que tenha se dado na atualidade não faz-se
capaz de ser considerada como acontecimento nesta lógica temporal linear de
direção imutável, mas sim como periférica às demandas convenientes de se
considerar, analisar e despender tanto reflexões quanto recursos.

Porém, não é só, a questão também se perpassa pela lógica da
classificação social, na qual assenta a monocultura da naturalização das
diferenças, atribuindo às populações categorias que naturalizam
hierarquias. Assim, são tecidas artimanhas legitimadores de dominação,
encobertas por uma dita missão de auxílio, civilizatória, atrelada à
consideração de inferioridade e ignorância ao que foge às características
ocidentais e aos seus interesses. Em sequência, pertinente complementar
sobre universalismo, globalização e a razão excludente:

O universalismo é a escala das entidades ou realidades
que vigoram independentemente de contextos específicos.
Têm, por isso, precedência sobre todas as outras
realidades que dependem de contextos e que por essa razão
são consideradas particulares ou vernáculas. A
globalização é a escala que nos últimos vinte anos
adquiriu uma importância sem precedentes nos mais
diversos campos sociais. (..) No âmbito desta lógica, a
não-existência é produzida sob a forma do particular e do
local. As entidades ou realidades definidas como
particulares ou locais estão aprisionadas em escalas que
as incapacitam de serem alternativas credíveis ao que
existe de modo universal ou global. (SANTOS, 2002, p.
258)

A cultura tem sido uma das características consideradas como
particulares e locais, além de se exprimir na língua que já consiste
barreira ao entendimento de diferentes nações, também se expressa na
religião; a qual por vezes fora estigmatizada como óbice à convivência e
por isso empecilho a mais à crise dos refugiados. De maioria sírios,
afegãos e iraquianos, o preconceito para com esses pesa na equivocada
comparação de devotos muçulmanos a fundamentalistas religiosos. Importante
ressaltar, inclusive, que grande parte dos imigrantes deixaram seus países
justamente por tratarem-se de estados ditatoriais, por vezes dominados por
facções terroristas. Sendo assim, considerados quase que ameaça aos países
europeus, nota-se não apenas uma exclusão territorial, como também
cultural. Como exemplo nato, tem-se o fato do primeiro-ministro húngaro,
Victor Orban, contrário ao recebimento de estrangeiros, ter justificado a
medida alegando proteger a integridade e os valores cristãos do país.

Outra lógica intrínseca à racionalidade indolente capaz de gerar a
não-existência atrelada à temática é a lógica produtivista, assentada na
monocultura dos critérios de produtividade capitalista. Para esta, o
crescimento econômico tornou-se máxima inquestionável à atuação dos países,
sendo o objetivo maior a obtenção de lucros. Neste viés, a entrada dos
refugiados nos países tem sido interpretada como ameaça à obtenção de
emprego por aqueles que já se encontram no território. E os gastos
atribuídos a auxílios como mero desperdício. Compondo, os refugiados, por
conseguinte, um conglomerado desqualificado das totalidades homogêneas e
hegemônicas que, por conseguinte, determinam a este a não existência,
típica de ser tratada pela Sociologia das Ausências. Esta busca legitimar
as experiências sociais no tempo, ampliando dessa forma as experiências e
dilatando o tempo presente, permitindo que de modo simultâneo todas as
experiências e práticas sejam consideradas contemporâneas sem excluir as
práticas e ocorrências consideradas descartáveis pela racionalidade
indolente. Em um segundo plano, tal sociologia visa identificar os
possíveis modos de confronto e superação desta racionalidade. Assim, o
inconformismo com esse descrédito e a luta pela credibilidade tornam
possível que a sociologia das ausências não permaneça uma sociologia
ausente.

No caso dos refugiados a temática ganha um relevo diferente do que é
abordado geralmente pela teoria de Santos. Esse novo relevo ocorre pela
seguinte realidade: as pessoas em condição de refugiados que realizaram o
trajeto até o continente europeu compunham parte da classe média síria,
conforme já foi explanado acima. Essa constatação encontra subsídio, entre
outros factos, na perspectiva de que o valor pago aos traficantes para
realização da travessia gira em torno de 3.000,00 a 5.000,00 euros per
capita. Partindo disso, observa-se que os refugiados sírios saem de uma
perspectiva de não exclusão social - ausência - (analisando apenas sob a
ótica econômica) para uma realidade de exclusão social na Europa (sob
várias formas: culturais, econômicas, políticas etc), dessa forma rompe-se
o paradigma tradicional da teoria pois ocorre, de forma ruptural, a
transição de presença/ausência.

Dessa forma, constituir uma perspectiva sócio-jurídica para
transformar essas ausências em presenças não pode se limitar na reafirmação
de uma presença pela perspectiva econômica, reproduzindo a lógica do
capital, é preciso propor juridicamente e sociologicamente uma alternativa
para transformar essas ausências em presenças emancipatórias no contexto
europeu. Diante da complexidade da proposta, buscar-se-á, no próximo
capítulo, delimitar algumas alternativas de mudança, para tal, analisaremos
perspectivas emancipatórias de organização econômica e as ferramentas que
os tratados e convenções internacionais podem tutelar para catalisar esse
processo.




4. A TRANSFORMAÇÃO DE AUSÊNCIAS EM PRESENÇAS EMANCIPATÓRIAS

Segundo Boaventura, para então haver mudanças profundas na
estruturação dos conhecimentos, é necessário mudar a razão que preside
tanto aos conhecimentos quanto à estruturação deles, desafiando, pois, a
razão indolente, na qual há pobreza de experiência não por falta de
acontecimentos, mas de consideração daqueles que se encontram fora desta
razão. Assim, pode-se notar:

A produção social destas ausências resulta na subtração do
mundo e na contração do presente e, portanto, no
desperdício da experiência. A sociologia das ausências
visa identificar o âmbito dessa subtração e dessa
contração de modo a que as experiências produzidas como
ausentes sejam libertadas dessa relação de produção e, por
essa via, se tornem presentes. Tornar-se presentes
significa serem consideradas alternativas às experiências
hegemônicas, a sua credibilidade poder ser discutida e
argumentada e as suas relações com as experiências
hegemônicas poderem ser objeto de disputa política.
(SANTOS, 2002, p. 249)

Para tal, é preciso sobrepujar a monocultura do saber pela
identificação de outros saberes, de diferentes práticas sociais e
culturais. Sob a lógica de que não há ignorância em geral, nem saber em
geral, porquanto cada ignorância não se generaliza em toda e todo saber é a
superação apenas de uma ignorância em particular (SANTOS, 2002, p. 250).
Dessa forma, ratifica-se um pressuposto a mais para possibilitar-se a
convivência entre culturas tão distintas, aceitando com alteridade a
diferença do outro através da consciência das próprias peculiaridades.
Quanto ao confronto à lógica da monocultura do tempo linear, deve-se
reconhecer que o domínio do tempo linear se dá pelo fato da modernidade
ocidental tê-lo adaptado como seu, descartando muita experiência social que
o tempo linear não é capaz de reconhecer. A sociologia das ausências
procura substituir essa lógica pela ecologia das temporalidades, libertando
as práticas sociais da sua condição de descarte, restituindo-lhe sua
temporalidade específica e permitindo-lhe seu desenvolvimento autônomo.
Ainda assim, não seria coeso permitir a conivência quanto à classificação
social, havendo confronto através da ecologia dos reconhecimentos, pela
qual há a identificação de diferenças não para dominar uma civilização á
outra, mas para haver reconhecimento recíproco de diferenças iguais, ou
seja, sem hierarquia, mas, em um âmbito jurídico, sob os mesmos direitos.
Outrossim, a sociologia das ausências intenciona combater o impacto
específico da globalização hegemônica no local, a fim de explorar a
possibilidade de existência das diferenças contra-hegemônicas.

Quanto à lógica produtivista, é proposta a ecologia de produtividade,
na qual se valoriza os sistemas alternativos de produção, de economia
solidária, de organizações econômicas populares, etc; os quais a ortodoxia
capitalista procura ocultar e atribuir descrédito. Raciocínio este que faz
objeção ao objetivo do capitalismo global em sua busca incessante por
desenvolvimento e crescimento econômico infinito junto à acumulação de
bens. É plausível, pois, a reflexão de que como os refugiados se encontram
em condição de total ausência social, em situação de inegável
marginalização do capitalismo global - não por terem gerado alternativas de
subsistência diversa á hegemônica, mas por terem sido impelidos a deixar a
situação em que se encontravam – faz-se imprescindível a solidariedade a
fim de acolhê-los independente deste caminho não gerar lucros e, quiçá, uma
das formas de conseguirem obter seu sustento e permanência de sua cultura
em outro país poderia também decorrer de práticas cooperativas auto geridas
para possibilitar a manutenção de uma vida digna.

Esta possibilidade abarca o segundo aspecto da racionalidade
cosmopolita, a sociologia das emergências. Enquanto a sociologia das
ausências obtém a dilação do presente através da consideração dos fatores
não homogêneos já discorridos, a sociologia das emergências visa a
contração do futuro tornando-o objeto de cuidado pela implementação de um
amanhã de possibilidades plurais e concretas, irrestritas a uma lógica
linear e voltada à implementação de mudanças. Segundo Bloch, há três
categorias modais de existência, sendo estas a realidade, a necessidade e a
possibilidade (BLOCH, 1995). No entanto a razão indolente tratou de
evidenciar apenas as duas primeiras, negligenciando a terceira; ao
contrário do que é propagado pelas sociologias das ausências e das
emergências, a qual substitui a ideia axiológica do progresso pela ideia
axiológica do cuidado. Ou seja, "enquanto na sociologia das ausências a
axiologia do cuidado é exercida em relação às alternativas disponíveis, na
sociologia das emergências é exercida em relação às alternativas possíveis"
(SANTOS, 2002, p. 256-257). Sendo assim, a sociologia das ausências atua no
âmbito das experiências sociais, no artigo em questão fora, pois, explanado
que deve ser expandida à tragédia da crise dos refugiados, já, a sociologia
das emergências seria por sua vez necessária na avaliação e melhor
formulação de possibilidades no porvir dos acontecimentos, por essa atuar
no campo das expectativas sociais. Assim, poderá ser evitada uma ausência
futura, no caso, de marginalização dos refugiados mesmo após adentrarem em
algum país, através de uma investigação prospectiva. Primeiro, visando
melhor conhecer as realidades investigadas, segundo, fortalecendo as
possibilidades identificadas em saberes e/ou práticas emergentes.

Destarte, nota-se que ambas as sociologias estão estritamente
associadas, e devem ser atribuídas ao reconhecimento da existência do
conglomerado de refugiados e, após ampla análise, buscam encontrar
pistas/sinais revelados neste presente para se formular possibilidades
futuras possíveis e concretas. Para esta segunda determinação,
característica da sociologia das emergências, ocorrerão conflitos e
diálogos entre diferentes formas do conhecimento, na situação de enfoque,
avalia-se a debilidade dos refugiados em todas as áreas sociais, e por
possuir o ser humano necessidades diversas e estes ficarem momentaneamente
fora de uma sociedade, para serem de fato incluídos deverão ser trabalhas
inúmeras áreas do conhecimento, dialogando a educação, a justiça, a
comunicação, a informação, a tecnologia, o trabalho, a medicina, etc.
Lembrando que esta inclusão não compreende a fagocitose de uma cultura à
outra, apesar de ser provável haver trocas nesta jornada, mas o convívio
harmônico em sociedade. Sendo assim, por consequência, também deverá haver
diálogo entre costumes deste novo país aos intrínsecos à cultura do
refugiado, seja entre formas e modos de produção peculiares como de
redistribuição social assentes na cidadania e não na produtividade. Devendo
ser estendido a esses, direitos, oportunidade de participação cidadã e
deliberação comunitária.

Como já mencionado, para se sobrepujar à razão indolente, aqui
comprovado não ser essa conveniente à garantia dos direitos humanos e da
dignidade da pessoa humana, foi proposta a sua substituição por uma novo
conceito epistemológico, o da racionalidade cosmopolita. Para conectar os
conceitos esboçados neste capítulo e demonstrar esta nova racionalidade,
requer-se, por fim, evidenciar a teoria da tradução. Observa-se que no
âmbito da tradução perfaz as respostas a como compreender e agir
alternativamente conforme induz as sociologias aqui desvendadas. Ademais,
se, por não se enquadrarem na lógica linear, não se sabe a direção da
transformação social a fim de ser alcançado um mundo melhor que quiçá sabe-
se ser possível, o que legitima e motiva as ações conforme esta nova
racionalidade cosmopolita? A resposta provavelmente viria a compreender o
sentido das lutas por emancipação social. Conforme a proposta do artigo, é
credível tratar-se da alternativa mais provável atualmente de se conseguir
a predominância do respeito às diferenças, a priori a permissão da
existência, a seguir a garantia dos direitos humanos, individuais e
sociais. Boaventura, responde com qualificação:

Em minha opinião, a alternativa à teoria geral é o
trabalho da tradução. A tradução é o procedimento que
permite criar inteligibilidade recíproca entre as
experiências do mundo, tanto as disponíveis como as
possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a
sociologia das emergências. (SANTOS, 2002, p. 262)

O processo de tradução engloba tanto os saberes, interpretando
diferentes culturas e suas respectivas preocupações - através de uma
hermenêutica diatópica - como as práticas sociais e seus agentes. Assim, a
tradução, complementar às sociologias das ausências e das emergências,
torna-se um trabalho tanto intelectual quanto político, conferindo relações
de inteligibilidade recíproca, coerência e articulação em um mundo rico
pela multiplicidade e diversidade. Ademais, perfaz também um trabalho
emocional, já que pressupõe o inconformismo perante a insuficiência de uma
dada prática. Outrossim "o objetivo da tradução entre práticas e seus
agentes é criar as condições para uma justiça social global a partir da
imaginação democrática" (SANTOS, 2002, p. 251). Destarte, a tradução deve a
todo momento estar presente na análise da crise dos refugiados, tanto
quando estes se encontram desamparados à procura de acolhimento, quanto
quando um povo entra contato direto com outro em um confronto multicultural
que requer o auxílio da racionalidade cosmopolita.

Com relação à tutela por convenções internacionais à situação dos
refugiados e sua respectiva efetividade propomos uma análise dos mecanismos
específicos de tutela de Direitos Humanos para uma abordagem mais
direcionada e contemplativa, que é justamente o objetivo de mecanismos
jurídicos internacionais específicos.

Os refugiados contam com a Convenção dos Refugiados (Convention
Relating to the Status of Refugees), assinada em Genebra em 1951, sendo
seguida pelo Protocolo de 1967 (ACNUR, 2015). De acordo com a referida
convenção, os refugiados contam 10 direitos bem definidos (ACNUR, 2015): o
direito à liberdade de religião (Art. 4º), o direito de recorrer para os
órgãos jurisdicionais (Art. 16), o direito ao trabalho (Arts. 17, 18, 19,
há aqui também a definição dos tipos de trabalhos que os refugiados podem
ocupar), o direito de habitação adequada (Art. 21), e que deve ser
concedido a eles pelo país anfitrião, deslocando-os a ambientes adequados,
o direito de ter acesso ao sistema de ensino dos países de acolhimento
(Art. 22), o direito de igualdade de tratamento em termos de assistência
social, o que inclui o direito de acessar o sistema de saúde (Art. 23). o
direito de circular livremente no país de acolhimento e usar o transporte
público (Art. 26), o direito de concessão de documentos legais tais como
passaportes, bilhetes de identidade ou qualquer outro documento que
legalize a sua estadia no país de refúgio (Arts. 21 e 28), o direito de não
ser preso ou punido de alguma forma, em caso de entrada ilegal para
qualquer um dos países signatários (Art. 31). Os refugiados também tem o
direito de não repulsão (Art. 32), que lhes concede a opção de estadia no
país de acolhimento ou voltar a seu próprio risco ao seu país de origem
(LAUTERPACHT e BETHLEHEM, 2003, p. 90). Além disso esse princípio é uma
parte importante da Convenção dos Refugiados, em termos de evacuar as
pessoas de zonas de tensão, tais como zonas de guerra e áreas de desastre,
sem a necessidade de constituir prova de medo bem fundamentado de
perseguição. Na verdade, isso impede os países de acolhimento a extraditar
essas pessoas de volta para as zonas de perigo. No entanto, os indivíduos
que se reestabelecerem no seu país de origem por conta própria perdem o
status de refugiado.

Na dimensão europeia, entre algumas convenções assinadas, uma merece
maior destaque no presente trabalho, trata-se da Convenção de Dublin de
1990, que entrou em vigor em 1997. Essa Convenção delimita a nível
procedimental o processo de pedido de asilo por parte dos refugiados. De
acordo com a referida convenção, o Estado irá decidir se aceita o
requerente de asilo a residir como refugiado em seu território ou para mudá-
lo para um país terceiro (primeiro é o país de origem, segundo é o país
onde o asilo está a ser examinado e terceiro é o destino final do
requerente de asilo). Admitindo que um Estado decida reposicionar um
requerente de asilo em um outro país, o reposicionamento só poderá ser
baseado em causas humanitárias, como a reunificação de famílias. Os pedidos
de asilo serão cuidadosamente examinados por apenas um Estado, e esse país
tem o direito a rejeitar ou aceitar a solicitação. Assim, e de forma a
impedir a possibilidade de "asylum shopping", exceções à regra não são
incomuns, especialmente se as pessoas deslocadas se sentire inseguras ou
ameaçadas por grupos anti-imigrantes, ou o Estado que recebe não conseguiu
desempenhar as suas funções, e, portanto, a deslocalização vai se tornar
uma obrigação (MIERSWA, 2013, p. 14). Além disso, qualquer Estado-Membro da
União Europeia pode manter o direito de repudiar qualquer apelo de asilo no
caso de a pessoa que o havia solicitado esteja em um país considerado
seguro, onde ele poderia ter apresentado o seu pedido de asilo antes de
seguir para o destino final. E, finalmente, depois de examinar o pedido, o
Estado irá determinar se existe uma ameaça sobre a segurança individual.
Vale ressaltar que as disposições do Tratado não eram legalmente
vinculativas, mas alguns países como a Alemanha alteraram suas
Constituições nacionais buscando a adequação com a Convenção. Portanto, a
principal prioridade da Convenção de Dublin foi em relação aos critérios
sobre como os pedidos de asilo devem ser examinados (HATTON, 2005, p. 5;
HATTON, 2012, p. 58)

Dessa forma, os mecanismos internacionais buscam a garantia de
dimensões estritas de direitos individuais (acesso aos órgãos
jurisdicionais, acesso a documentos legais etc) com algumas dimensões de
garantias de direitos sociais (educação, saúde etc) e direitos culturais
(liberdade de religião, sobretudo)[9]. No entanto, a inefetividade desses
instrumentos não reside nas afirmações do texto normativo (que devem de
todo modo serem protegidas), mas sim nas dimensões que o texto não aborda.

Essas omissões, onde, segundo a perspectiva adotada, representam o
epicentro da ineficiência dessas normas, podem ser divididas em duas
categorias: inefetividades integrativas e inefetividades multiculturais.
São dimensões que se relacionam com a ausência de mecanismos internacionais
para promover uma integração dos cidadãos em situação de refugiados em seus
países de destino, essas dimensões vão desde projetos de integração
linguística, cultural e econômica até dimensões no sentido oposto,
mecanismos que possibilitem aos refugiados difundir seus pensamentos,
culturas e existências nos países acolhedores, dessa forma, ambas as
perspectivas abordam integração multi-nível e incentivos para transformar
suas ausências em emergências no padrão de reprodução da lógica econômica
do mercado e da sociedade[10] .

A justificativa para essa inefetividade omissiva está no facto de que
as possibilidades do direito internacional para resguardar e afirmar
socialmente e juridicamente os refugiados estão atadas pela lógica de
mercado e, por esse motivo, revelam-se insuficientes para a construção de
uma realidade emancipatória das pessoas em situação de refugiados.




5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Do ponto de vista da razão cosmopolita que aqui propomos, o objetivo
crucial não é apenas o de identificar novas totalidades, ou de adotar
outros sentidos à transformação social, como de propor novas formas de
pensar essas totalidades e de conceber esses sentidos (SANTOS, 2002, p.
261). Através deste propósito, constata-se que os documentos e ações
internacionais que regem a defesa e promoção da dignidade das pessoas em
situação de refugiados devem pautar-se nos conceitos aqui delineados de uma
razão cosmopolita através do processo de tradução feito com base na
sociologia das ausências e na sociologia das emergências. Só assim, neste
trabalho de imaginação epistemológica e de inserção democrática, com o
objetivo de construir novas e plurais concepções de emancipação social
sobre as ruínas da emancipação social automática do projeto moderno
possibilitar-se-á sobrepujar a lógica do capitalismo global intrínseco à
racionalidade indolente. Manifesta-se aqui, pois, através de todo o estudo
discorrido a constatação de que a crise atual das pessoas em situação de
refugiados não requer tão só mandados de otimização e de determinação
propostos por tratados e convenções diplomáticas, mas na elaboração,
concretização, regulamentação e efetivação diária desses sob o viés da
racionalidade cosmopolita, em prol de transformar ausências em presenças.
Mesmo que não havendo nenhuma garantia de que um mundo melhor seja possível
e muito menos de que todos os que desistiram de lutar por ele o concebam do
mesmo modo, mas faz-se legítimo e dever dos estados combater e evitar o
desastre que impõe-se evidente. (SANTOS, 2002, p. 273). Afinal, trata-se
de um problema moderno para o qual não temos uma solução moderna, mas que
carece de solução cada vez mais urgente.

Assim, intenciona o artigo que sejam reconhecidas as constelações de
saberes e práticas suficientemente fortes para fornecer alternativas
credíveis ao que hoje se designa por globalização neoliberal e que não é
mais que um novo passo do capitalismo global, no sentido de sujeitar a
totalidade inesgotável do mundo à lógica mercantil:

"Muito sucintamente, essa argumentação consiste em que
a sociologia das ausências e a sociologia das
emergências, juntamente com o trabalho de tradução,
permitem-nos desenvolver uma alternativa à razão
indolente, na forma daquilo a que chamo razão
cosmopolita. (SANTOS, 2002, p. 273)

Dessa forma, conclui-se que existe um abismo entre as concepções
sociologicamente e economicamente emancipadoras propostas por Santos e a
atual conjuntura defendida nos tratados e convenções internacionais em
relação às pessoas em situação de refugiados. O máximo que os documentos
internacionais garantem (e mesmo assim não é vislumbrado na prática
sociológica) é um conceito de re-emergência que se revela falso, pois não é
verdadeiramente emancipatório.

Analisando sob a ótica econômica, a realidade demonstra que ao
refugiado quanto homo economicus[11] são garantidos (em maioria)
perspectivas jurídicas que permitem (em tese) uma emancipação falsa, dessa
forma, conclui-se que o discurso jurídico na perspectiva internacional, da
forma como está estruturada, pouco incisiva na perspectiva econômica e com
baixa efetividade, não abre possibilidades para a emancipação das pessoas
em condição de refugiados. O discurso jurídico mostra-se limitado e
ideologicamente direcionado, como foi provado através da análise
sociológica.










REFERÊNCIAS UTILIZADAS



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[1] A pesquisa conta com fomento do Laboratório Americano de Estudos
Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU.
[2] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-Brasil
com período de mobilidade nacional no Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora de iniciação
científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
e bolsista de mobilidade nacional pelo programa Santander/Andifes;
Participante do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias - NEPE/UFSC.
Telefone: (+55) 48 8439-8407; E-mail: [email protected];
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4856804101638730
[3] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-Brasil
com período de mobilidade internacional na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra-Portugal. Bolsista de iniciação científica do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e bolsista de
mobilidade internacional pela Universidade Federal de Uberlândia. Colunista
do site Empório do Direito. Pesquisador no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Pesquisador do Laboratório Americano de Estudos
Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU. Telefone: (+351) 913 157 463;
E-mail: [email protected]. Currículo Lattes:
http://http://lattes.cnpq.br/1367144773413373
[4] No sentido próprio que o autor empresta ao termo e que será aprofundado
no decorrer do artigo.
[5] O termo refugiado surge pela primeira vez na convenção de Genebra, em
1951, que também foi denominada como Convenção dos Refugiados ou Convention
Relating to the Status of Refugees (CRSR).
[6] Para um conceito aprofundado vide Bonavides (2002).
[7] Esse fato tem repercussões políticas e sociais muito importantes mas
que não serão analisadas no presente trabalho.
[8] Essa forma de retratação foge da perspectiva que geralmente é utilizada
nos textos científicos, no entanto, para melhor abordagem do caso em tela
mostra-se fundamental buscar ferramentas narrativas que possibilitem maior
imersão do leitor na realidade social para poder, minimamente, pensar a
partir dela. O próprio discurso das ciências naturais já apresenta forte
viés narrativista para imersão do autor no tema, vide (DAWKINS, 2010), essa
reflexão revela justamente o momento de transição atual no que tange o
discurso epistemológico e o discurso das ciências (SANTOS, 2006)
[9] Infértil seria discorrer que, assim como a ordem legal estatal, os
tratados e convenções internacionais contam com uma dimensão intrínseca de
efetividade, qual seja a relacionada com a ideologia política nos governos
estatais. Apenas a título de informação sobre esse tipo de inefetividade
vale a pena conferir o pronunciamento da Premier Alemã Ângela Merkel e de
seu partido o CDU afirmando que o multiculturalismo é uma falácia e que os
refugiados devem ser obrigados a falar alemão tanto nos ambientes públicos
quanto em ambientes privados vide em:
http://www.independent.co.uk/news/world/europe/angela-merkel-german-
chancellor-says-multiculturalism-is-a-sham-a6773111.html
[10] Segundo o entendimento adotado, vivemos um fenômeno de retrocesso até
mesmo frente à perspectiva liberal do séc. XIX, pois, naquele momento, de
grande insurgência do capitalismo da forma como ele é desenhado hoje,
entendia-se que uma economia de mercado era extremamente necessária e
frutífera, mas uma sociedade de mercado (culturalização da economia) seria
abominável, no entanto, a perspectiva atual demonstra justamente que
vivemos em uma sociedade de mercado, em que as "regras" de mercado estão
intrincadas na sociedade e consequentemente no Direito, por esse facto,
demonstra-se que as dimensões de direitos garantidos são apenas aquelas que
prejudiquem o mínimo possível a lógica de mercado.
[11] O termo em si aqui utilizado retrata a realidade que a sociedade
hodierna considera como emancipatória e carrega consigo incongruências
profundas sobre o próprio significado de emancipar. O termo pode ser
entendido como uma descrição deum ser humano racional, é um ser
caracterizado como um indivíduo capaz de realizar decisões racionais, em
especial em termos públicos, vide Rawls (1993), alguns modelos econômicos
tradicionalmente apresentam a suposição que esses humanos racionais tem a
capacidade de maximizar suas utilidades públicas e, em especial, mas não
só, na perspectiva de ganhos monetários.
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