A bacteriologia e a seleção de imigrantes entre Europa e Brasil no final do século XIX e início do XX

August 19, 2017 | Autor: F. Rebelo-Pinto | Categoría: History of Medicine, History of Science, History of Public Health, Imigration
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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT 1

A bacteriologia e a seleção de imigrantes entre Europa e Brasil no final do século XIX e início do XX Fernanda Rebelo*

Resumo Este trabalho tem o objetivo de discutir o problema da classificação de doenças e da categorização de populações pela biomedicina, tendo como mote o processo imigratório de trabalhadores europeus para as Américas, junto à emergência e institucionalização da bacteriologia no Brasil no final do século XIX e primeiras décadas do XX.

Palavras-Chave: Imigração, bacteriologia, serviço sanitário marítimo

Introdução No mês de setembro de 1910, atracou no porto do Rio de Janeiro, o vapor Araguaya. Um transatlântico de luxo da companhia de navegação inglesa Royal Mail Steam, onde viajavam passageiros ilustres na primeira classe e 1028 imigrantes no porão da terceira. O Araguaya fazia a rota entre Europa-América do Sul, passando por portos brasileiros e tendo como destino o porto de Buenos Aires. Durante a travessia, ocorreu uma epidemia de cólera a bordo. O diagnóstico bacteriológico indicou a presença do vibrião colérico somente entre os passageiros da terceira classe. Os outros passageiros, que viajavam na primeira e segunda classe, receberam o diagnóstico de cholerina, uma espécie de “cólera leve, benigna, diarreia leve” (CHERNOVIZ, 1904:1436). Assim, temos os mesmos sintomas, vômito e diarreia, para doenças distintas: para a primeira classe, cholerina; para a terceira, cólera. Durante a ida do vapor para purgar quarentena e desinfecção no Lazareto da Ilha Grande, houve uma tentativa de rebelião entre os imigrantes, passageiros da terceira classe, que não se conformaram com o fato de ter que permanecer em quarentena enquanto que os passageiros de primeira e segunda classe puderam seguir *Professora

e pesquisadora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos e do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências na Universidade Federal da Bahia (IHAC/PPGEFHC/UFBA), Pós-doutora em História das Ciências. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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viagem. A pergunta feita pelos imigrantes às autoridades sanitárias brasileiras foi a seguinte, “por que ficamos em quarentena e a primeira classe não, já que viemos todos no mesmo navio?” (Correio da Manhã, 22 de outubro de 1910: 1). Este artigo pretende analisar a resposta, baseada nos achados dos exames bacteriológicos, dada pelas autoridades sanitárias aos imigrantes, que apontava a existência do vibrião colérico entre os passageiros da terceira classe e a ausência deste nos da primeira. Para isso, precisamos fazer algumas considerações a respeito do estado da arte das práticas sanitárias e dos pressupostos científicos, com relação à etiologia da cólera na época. A cólera, já em 1910, era caracterizada como uma infecção aguda que afeta o intestino delgado, cujos sintomas são: diarreia volumosa, vômitos, cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. O agente causal é o vibrião colérico, identificado por Robert Koch em 1882. É transmitida por ingestão de água e alimentos contaminados. Para o seu controle, é essencial o isolamento dos doentes e a desinfecção dos abastecimentos de água (LEWINSOHN, 2003: 109-110). A divisão entre primeira, segunda e terceira classes estava presente durante toda a viagem de imigração. Esta divisão existia não só dentro dos navios, mas também nos lazaretos, local para onde as embarcações infectadas, ou seja, com a presença de um o mais enfermos de doenças “pestilências exóticas”, deveriam atracar para passar pelas desinfecções e quarentenas. Os navios infectados, com destino ao Porto do Rio de Janeiro, deveriam atracar no Lazareto da Ilha Grande (SANTOS, 2009: 74 -75). Para a Inspetoria Geral de Saúde dos Portos (IGSP), órgão responsável pela fiscalização dos navios no porto do Rio de Janeiro, a categoria “moléstias pestilenciais exóticas” referia-se à febre amarela, cólera e peste bubônica. Para estas enfermidades, existia regulamentação a respeito da forma de prevenção e controle sanitário nos portos. O foco das quarentenas e desinfecções, ou seja, do sistema de defesa sanitária no porto, eram os passageiros de 3ª classe, imigrantes em sua maioria. “Primeiro os passageiros pisavam em capachos embebidos em sublimado. Depois, se encaminhavam para o lavatório com sabonete, escova de unha e balde para águas servidas. Vestes e sapatos eram esfregados com germicidas. Passageiros de 3ª classe, ou de 2ª considerados suspeitos pela falta de asseio, eram levados para outro local, despidos e submetidos à desinfecção mais rigorosa. A assepsia terminava Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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após a pulverização dos passageiros com ácido fênico, quando recebiam um cartão onde se lia desinfectado” (BENCHIMOL, 1999:261). Terceira classe também era uma categoria utilizada pelo governo brasileiro para dirigir os auxílios que eram oferecidos aos imigrantes que quisessem se fixar em solo nacional, núcleo colonial, como proprietário de pequena propriedade rural (BRASIL, 1908: 62). Os imigrantes com passagens pagas pelo governo viajavam sempre aglomerados na terceira classe, no porão dos navios.

A seleção de imigrantes: os indesejáveis do ponto de vista sanitário O grande mote da política imigratória brasileira era de fato o pagamento das passagens e os auxílios às famílias. Nas Bases Regulamentares do Serviço de Povoamento do Solo Nacional, agência subordinada à Inspetoria de Terras e Colonização, que por sua vez pertencia ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, como se chamava o então Ministério da Agricultura, encontramos a quem eram dirigidos os auxílios. Estes eram dados àqueles que quisessem fixar-se em solo nacional, núcleo colonial, como proprietário de terra. De acordo com o art. 2°, poderiam ser acolhidos como imigrantes os estrangeiros menores de 60 anos, que não sofressem de doenças contagiosas, não exercessem profissão ilícita e nem fossem reconhecidos como criminosos, desordeiros, mendigos, vagabundos, dementes, inválidos; os que chegassem aos portos nacionais com passagens de terceira classe à custa da União, dos estados ou de terceiros; e os que em igualdade de condições, tendo pagado a sua passagem, quisessem gozar dos favores que eram concedidos aos recém-chegados pelo governo brasileiro. Ainda de acordo com o art. 2° das bases do Serviço de Povoamento, os maiores de 60 anos e os “inaptos” só poderiam entrar no país acompanhados de seus familiares, contanto que houvesse na mesma família pelo menos um indivíduo válido para outro inválido (BRASIL, 1908:62-79). Dessa forma, compreendemos que o processo de seleção de imigrantes desde sempre tabalhou com categorias como imigrante ideal, imigrante desejável, indesejável ou inapto. Estas categorias, encontradas nos relatórios e regulamentos, variam no decorrer dos anos. O Brasil, como um dos grandes países imigrantistas, possuía duas instituições de recepção e inspeção de trabalhadores estrangeiros: a Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, localizada no bairro do Neves, em São Gonçalo, município do estado do Rio de janeiro, e o Lazareto da Ilha Grande, na baía de Angra dos Reis, município Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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ao sul do estdo do Rio de Janeiro. Quando não havia epidemia nos portos de embarque e nem naqueles que o navio tocava para fazer operações de carga e descarga durante a viagem, os imigrantes eram encaminhados para a hospedaria, onde permaneciam por cerca de uma semana, até serem conduzidos para uma fazenda ou colônia no interior do país. Caso o navio tivesse partido ou ancorado em “porto infeccionado”, ou apresentasse moléstia a bordo no momento da chegada, deveria ser encaminhado para o lazareto para cumprir quarentena de acordo com o período de incubação da doença. Para a cólera, o período de incubação na época era de dez dias; oito dias para a febre amarela e vinte para a peste bubônica (SANTOS, 2009: 11731196). O tratamento disponível para combater a cólera nos navios era a desinfecção da embarcação, das roupas e dos objetos pessoais dos passageiros. Os mortos eram jogados ao mar, os doentes recebiam uma hidratação, o restante dos passageiros tinham seus pertences “fumigados” pelas estufas de desinfecção e permaneciam em quarentena. As estufas de desinfecção eram geralmente da marca alemã GenesterHerscher. Elas funcionavam através do vapor d’água sob pressão, possuíam duas portas, uma para o lado impuro, onde recebia as roupas infectadas, e outra para o lado puro, onde pegava-se as roupas após o processo de desinfecção (SILVADO, 1903). A novidade em 1910, quando da chegada do Araguaia do porto do Rio de Janeiro, era a possiblidade do diagnóstico bacteriológico. O controle da corrente imigratória era realizado por oficiais e médicos da Inspetoria Geral de Saúde dos Portos – IGSP, no momento em que o navio atracava. Eles realizavam a primeira inspeção. Dessa forma, os médicos tinham papel protagonista na seleção de imigrantes. Ao se recolherem à hospedaria, cada imigrante passava por inspeção médica, a fim de excluir aqueles que fossem considerados indesejáveis sob o ponto de vista da saúde pública. Nenhum destino era dado aos imigrantes antes de passarem por esta inspeção médica. Eram considerados indesejáveis os atacados por lepra, tuberculose, tracoma, elefantíase e câncer. E ainda os que sofriam de qualquer doença mental, os cegos e surdos, os mutilados e os incapacitados para o trabalho, ou os que possuíssem qualquer lesão orgânica que os invalidassem para o exercício de suas funções, predominantemente na lavoura (Brasil, 1923). Os imigrantes com sífilis, outras doenças venéreas ou transmissíveis, sem caráter epidêmico, eram devidamente tratados na enfermaria da hospedaria antes de Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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serem encaminhados a seus pontos de destino. Se ocorresse entre os desembarcados casos de doenças epidêmicas, como varíola, peste, tifo exantemático, poliomielite, meningite, difteria, cólera, gripe, febre amarela, sarampo, escarlatina ou febre tifóide, o doente era isolado e os demais submetidos à observação. Só poderiam se dirigir aos seus destinos depois de cessada a doença (Brasil, 1923). As ocorrências de doenças eram comunicadas às autoridades sanitárias dos estados para onde seguiam esses imigrantes como medida de defesa sanitária. À Inspetoria de Imigração, órgão ligado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio - MAIC, especificamente à Diretoria do Serviço de Povoamento do Solo Nacional, era fornecida uma relação dos imigrantes indesejáveis para que estes fossem repatriados. As companhias de navegação, que conduzissem imigrantes considerados indesejáveis, tinham o dever de repatriá-los, cabendo à fiscalização dessa medida à autoridade sanitária encarregada da inspeção (Brasil, 1923). Eram fornecidas, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, aos cônsules brasileiros no exterior, instruções para que estes impedissem o embarque de imigrantes na condição de indesejáveis sob o ponto de vista da saúde. A autoridade sanitária tinha o direito de pedir ao comandante do navio, que chegasse com indesejáveis a bordo, a justificação do fato, podendo ser cobrada uma multa de cem (100$) a quinhentos réis (500$) (Brasil, 1923). Essas práticas, oficializadas no Regulamento Sanitário de 1923, já ocorriam anteriormente, elas podem ser encontradas também nos regulamentos sanitários de 1889, 1893, 1904, 1914 com algumas diferença. Estas diferenças dizem respeito às mudanças nos pressupostos científicos relacionados à compreensão da transmissão e contágio de doenças a partir do ideário dos miasmas, passando pela emergência do ideários da bacteriologia e da compreensão do papel de insetos vetores no processo.

Os exames bacteriológicos nos portos A recepção e inspeção de passageiros imigrantes eram realizadas no final do século XIX com uma mistura de entendimentos sobre germes e miasmas, percepções que poderiam ir das relações das moléstias com a sujeira dos navios, com o asseio pessoal, à questões ligadas à moralidade e ao comportamento do indivíduo (FAIRCHILD, 2003: 42-43). Com a difusão da teoria pasteuriana no Brasil, a microbiologia - a teoria do cientista francês Louis Pasteur (1873), segundo a qual seres “infinitamente Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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pequenos”, convencionalmente chamados de micróbios, transmitiam doenças - a forma de combate às epidemias não se sustentava mais pelo ideário dos miasmas - as matérias em putrefação, de origem vegetal e animal, que constituíam a causa mais direta das epidemias. No entanto, permanecia a noção do meio ambiente, que contribuía para a disseminação dos micróbios, como fator determinante para a propagação de doenças (BENCHIMOL, 1999: 191-200). As práticas sanitárias no final do século XIX e início do XX sugerem múltiplas articulações entre explicações “infeccionistas”, que relacionavam as doenças ao meio ambiente (miasmas), e “contagionistas”, que acreditavam no contágio direto entre indivíduos. O higienismo se mesclava à teoria pasteuriana, gerando a permanência da prática da desinfecção e do controle da insalubridade nos centros urbanos (CAPONI, 2002: 592-594) O diagnóstico bacteriológico permitiu um novo tipo de enquadramento das doenças, ao impor uma maior ordem taxonômica (ROSENBERG, 1977). Assim, mesmo que indivíduos apresentassem semelhantes quadros clínicos, o colérico era aquele que apresentava o vibrião em seu organismo. Foi a bacteriologia que proporcionou um caráter mais preciso e racional à seleção médica de imigrantes nos portos. No modelo de triagem anterior, o serviço médico podia identificar sintomas de doenças somente com a observação dos corpos. Assim, individuos podiam ser excluídos por apresentarem sintomas e lesões visíveis, como no caso do tracoma, infecção e vermelhidão nos olhos. Com a emergência do diagnóstico bacteriológico, todo o grupo portador do germe, no caso vibrião colérico, poderia ser excluído, de acordo com a ideia do portador saudável, aquele que embora não aparentasse a doença, carregava dentro de si o germe transmissor da moléstia. Dessa forma, identificamos, além da passagem de um tipo de diagnóstico individual para um coletivo, um novo tipo de relacionamento entre o estado brasileiro - representado no âmbito dos portos pelos médicos e inspetores de saúde do Serviço Sanitário Marítimo - e uma população estrangeira a ser organizada, direcionada e governada em território nacional. Este fato científico, a emergência do diagnóstico bacteriológico nos serviços médicos dos portos, também influenciou a forma como o estado brasileiro, receptor de população imigrante, passou a se relacionar com os estados que enviavam mão-de-obra, em especial a Itália. A precisão do modelo de triagem com diagnóstico bacteriológico fornecia mais legitimidade e autonomia aos Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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países receptores de mão-de-obra, como o Brasil, durante o processo de seleção de trabalhadores europeus para a entrada no mercado de trabalho brasileiro, ou seja, a construção da identidade coletiva do europeu como imigrante e trabalhador ideal. Elizabeth Yew (1980), ao analisar a inspeção médica em Ellis Island, o local da recepção e seleção de imigrantes em Nova York (EUA), mostrou que a história da recepção dos imigrantes também é história dos profissionais que trabalhavam na linha de inspeção nos portos. Para a autora, a instituição do exame médico de passageiros surgiu do desenvolvimento da ciência, que junto com a cultura, formou uma sociedade que passou a considerar a inspeção como aceitável e necessária. Esta prática constitui também uma parte da história da qualificação de indivíduos nas sociedades ocidentais modernas, a sociedade de risco e controle social. Amy Fairchild (2003: 24-31) enquadra a inspeção médica de imigrantes como ferramenta de construção da nação. A saúde pública e a medicina sempre estiveram entrelaçadas com a política nacional. Para a autora, a demanda industrial, no caso norte-americano, forneceu um desenho racional para a absorção de uma massa de trabalhadores imigrantes. Médicos do Public Health Service – PHS - tinham a função de realizar o exame médico para a identificação de corpos para o trabalho industrial, mais do que um processo negativo de exclusão, o que existia era um processo de inclusão de trabalhadores estrangeiros no mercado de trabalho nacional. Assim, o PHS representava tanto o Estado quanto a ciência norte-americana. Para Fairchild (2004: 528-530), a história social tem entendido a inspeção médica como um mecanismo de exclusão de imigrantes indesejáveis. Para a autora, a despeito da exclusão, a história do exame médico é a da inclusão. O objetivo do PHS não estava em mandar os trabalhadores estrangeiros de volta para a Europa, mas em introduzí-lo nos valores da sociedade industrializada norte-americana. De forma que era necessário não restringir, mas controlar e prevenir a entrada daqueles que não poderiam trabalhar e se sustentar, o que os levaria a ficar dependentes do Estado, “Likely do become a public charge”. Em 1890 as estações de imigração começaram a requerer microscópios e outros equipamentos de laboratório. Entre 1880 e 1890 a bacteriologia já estava incorporada nas escolas médicas americanas. No entanto, em 1891, o cirurgião-geral, Walter Wyman, mandou avisar aos médicos da ‘linha’ que não tinha a menor intenção de estabelecer laboratório de bacteriologia na estação de imigração. De acordo com Fairchild (2006: 342-343), a razão mais aparente para tal declaração parecia ser Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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financeira, os custos da montagem de um laboratório eram muito altos para serem instalados em todas as estações de inspeção. A Estação de Ellis possuía um microscópio, mas em outras, principalmente no leste, isto demorou para se tornar uma realidade. Afinal de contas, os médicos do PHS tinham a capacidade de identificar sinais de doenças sem o teste laboratorial, cujos resultados poderiam demorar em até uma semana para ficarem prontos, em questão de minutos. Ao mesmo tempo, na costa oeste dos EUA, o microscópio passou a ser indicado para a identificação de infecções por parasitos, principalmente para a ancilostomose, em imigrantes mexicanos e asiáticos (Ibidem: 345). Nos portos brasileiros, também foram poucas as deportações por motivos de saúde, durante a década de 1890. A partir de 1920, o Departamento Nacional de Saúde Pública passa a fazer a recepção de imigrantes junto com o Serviço de Povoamento do Solo Nacional (BRASIL, 1923). Assim, identificamos a proibição de entrada de imigrantes, isto é, imigrantes indesejáveis, sob o ponto de vista da saúde pública.

O imigrante indesejável e a ordem pública Em 1920, a fiscalização da imigração passou a ficar a cargo do Serviço de Povoamento do Solo Nacional com o concurso do Departamento Nacional de Saúde Pública - DNSP, criado no mesmo ano (RAMOS, 2006). O decreto de 1924 e as instruções de 30 de junho de 1925 instituíram que a entrada de imigrantes no Brasil ficaria restrita a nove portos, Belém, Recife, Bahia, Vitória, Rio de Janeiro, Santos, Paranaguá, São Francisco e Rio Grande, com a finalidade de tornar mais eficiente e rigorosa a seleção da corrente imigratória, afastando os maus elementos do ponto de vista da saúde pública e/ou da ordem social (BRASIL, 1927: 301). Neste período, haviam se intensificado os movimentos anarquista e comunista, principalmente entre os trabalhadores imigrantes nos núcleos urbanos e o tráfico de mulheres brancas se constituía um grande problema relacionado à imigração, tendo os caftens como “criminosos internacionais, paridos pela modernidade” (MENEZES, 1996: 18, 23). Em 1907 foi aprovada a Lei de Expulsão de Estrangeiros, do deputado paulista Adolpho Gordo, logo após a grande greve pela jornada de oito horas de trabalho, que mobilizou a classe operária do Rio de Janeiro e São Paulo. A lei de 1907 foi um mecanismo de extradição de operários estrangeiros envolvidos com o Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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movimento anarquista, uma forma de barrar a difusão deste ideário pelo cerne da classe operária brasileira. Dessa forma, vadios, mendigos, anarquistas, comunistas, jogadores, prostitutas e caftens tornaram-se imigrantes indesejáveis, sujeitos à expulsão, medida que se configurava como fundamental para a segurança pública. Assim como deficientes físicos ou mentais, tracomatosos e idosos eram impedidos de entrar como medida de saúde pública. O decreto n.4247, de 6 de janeiro de 1921, regulou a entrada de estrangeiros em território nacional, proibindo a entrada de mutilados, aleijados, cegos, loucos, mendigos, portadores de moléstias incuráveis ou de moléstias contagiosas graves. O imigrante considerado como indesejável, dependendo de cada caso, poderia ser reembarcado, ou obter habeas-corpus, normalmente no caso de caftens e prostitutas. Quando eram portadores de deficiências físicas ou mentais, eram entregues à saúde pública (BRASIL, 1928: 341).

Considerações Finais Este trabalho teve como objetivo analisar as mudanças implementadas pelo diagnóstico bacteriológico na seleção de imigrantes nos portos, tendo como mote o caso do vapor Araguaya que chegou ao porto do Rio de Janeiro, em 1910, com doentes de cólera entre os passageiros imigrantes, que viajavam na terceira classe. Durante o ocorrido, os passageiros de primeira e segunda classe puderam continuar viagem, enquanto que os imigrantes ficaram em quarentena no Lazareto da Ilha Grande. Uma das questão que emerge das fontes é a resistência e revolta dos imigrantes doentes e/ou suspeitos de estarem enfermos e a pergunta que estes fizeram às autoridades sanitárias, “por que ficamos em quarentena e a primeira classe não, já que viemos todos no mesmo navio?”. A resposta das autoridades de saúde foi precisa, porque os imigrantes apresentavam o vibrião colérico enquanto que os outros passageiros não. Discutimos como os achados bacteriológicos proporcionaram racionalidade e legitimaram as práticas de seleção de imigrantes europeus pelo estado brasileiro no final do século XIX e início do XX. E ainda, como a seleção de imigrantes, ao invés de excluir, tinha por princípio incluir trabalhadores dentro de valores que formavam o mercado de trabalho das nações de recepção de população estrangeira. A inspeção médica de imigrantes se constitui como uma das ferramenta de construção da nação, por meio da saúde pública e da medicina, entrelaçadas à política nacional, que Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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informavam que tipo de trabalhador imigrante era desejável na constituição do mercado de trabalho como também da identidade nacional. A demanda por trabalhadores estrangeiros, em detrimento do nacional, forneceu um desenho racional para a absorção de uma massa de trabalhadores imigrantes, de acordo com o ideário de identidade nacional, civilização e progresso pensados pela elite nacional. Mostramos ainda como apareciam as categorias nos regulamentos que informavam a inspeção do ponto de vista da saúde pública e da ordem nacional, Como mecanismos de segurança e controle social. As doenças não são só fatos biológicos, o seu diagnóstico também nunca se apresenta de forma estática. O diagnóstico implica consequencias no futuro e releituras do passado, pois é um elemento estruturante na narrativa de uma trajetória individual e coletiva. Com um diagnóstico, nos tornamos também atores de uma narrativa (ROSENBERG, 1977: XX). Assim, o diagnóstico de cólera, durante a viagem do vapor Araguaya transformou coletivamente a vida e a identidade daqueles passageiros, trabalhadores imigrantes em travessia da Europa para o Brasil.

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