« Pintores de Beddawi », in L. Schioccheti (dir.), Entre o Velho e o Novo Mundo. A Diáspora Palestina desde o Oriente Médio à América Latina, Chiado Editora, São Paulo, 2015, p. 217-233.

Share Embed


Descripción

COLEÇÃO COMPENDIUM

Chiado Editora www.chiadoeditora.com

Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida. www.chiadoeditora.com Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde Conjunto Nacional, cj. 903, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil Avenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar 1250-166 Lisboa, Portugal

Chiado Editorial

Espanha Calle Serrano, 93, 3.ª planta 28006 Madrid Passeig de Gràcia, 12, 1.ª planta 08007 Barcelona

Chiado Éditeur

França | Bélgica | Luxemburgo Porte de Paris 50 Avenue du President Wilson Bâtiment 112 La Plaine St Denis 93214 Paris

Chiado Publishing

Chiado Verlag

U.K | U.S.A | Irlanda Kemp House 152 City Road London EC1CV 2NX

Alemanha Kurfürstendamm 21 10719 Berlin

© 2015, Leonardo Schiocchet e Chiado Editora E-mail: [email protected] Título: Entre o Velho e o Novo Mundo: a Diáspora Palestina Desde o Oriente Médio à América Latina Editor: Vitória Scritori Composição gráfica: Ricardo Heleno – Departamento gráfico Capa: Francisco Rivas Foto da capa: Leonardo Schiocchet Revisão: Marina Legroski Impressão e acabamento: Chiado Print 1.ª edição: Julho, 2015 ISBN: 978-989-51-4241-5 Depósito Legal n.º 391671/15

Leonardo Schiocchet

Entre o Velho e o Novo Mundo A Diáspora Palestina Desde o Oriente Médio à América Latina

Chiado Editora Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

Índice Introdução: Por uma Antropologia Assimétrica da Palestinidade  Leonardo Schiocchet..................................................................................7 v PARTE I – ORIENTE MÉDIO v 1 – Fazendo Palestinos Desaparecer: Um Projeto Colonialista  Rosemary Sayigh......................................................................................53 2 – Refutando Invisibilidade: Documentação e Memorialização em Demandas de Refugiados Palestinos  Ilana Feldman..........................................................................................87 3 – Os Refugiados Palestinos na Cisjordânia Doris Musalem e Augustin Porras.........................................................123 4 – O Movimento Pelo Direito de Retorno na Síria: Construindo a Cultura de Retorno, Mobilizando Memórias para o Retorno  Anaheed Al-Hardan...............................................................................139 5 – Populações Imaginadas – Estatística e Não-Estado em Chatila, Líbano Gustavo Barbosa....................................................................................177 6 – Pintores de Beddawi: Entre Criação Artística e Engajamento Político Amanda Dias..........................................................................................217

5

Leonardo Schiocchet

v PARTE II – AMÉRICA DO SUL v 1 – Os Palestinos do Peru: uma Forte Identificação com a Palestina  Denys Cuche...........................................................................................253 2 – O “Refúgio” e o “Retorno” entre os Palestinos do Chile: Narrativa Identitária e Discurso Militante Cecília Baeza..........................................................................................297 3 – A “Diáspora Palestina” na Argentina: Militância para Além da Etnicidade  Sílvia Montenegro e Damián Setton.....................................................323 4 – A Pista e a Pena da Diáspora Palestina: Mapeando a América do Sul no Conflito Israelo-Árabe, 1967-1972  John T. Karam........................................................................................361 5 – A Diáspora Palestina: As Organizações Sanaud e a Experiência Geracional Acerca da Identidade Palestina no Sul do Brasil  Denise Jardim.........................................................................................411 6 – Árabes Estabelecidos e Refugiados Palestinos Recém-Chegados ao Brasil: tensões referentes ao “direito de retorno” e a uma “pedagogia de ascensão social” Sônia Hamid...........................................................................................449 7 – Espaços Habitados, Lugares Estendidos: A Experiência Dos Refugiados Palestinos no Brasil a partir de Redes Locais e Transnacionais  Daniele Abilas Prates............................................................................487 Anexo: Bibliografia sobre palestinos na América Latina Compilada pela RIMAAL......................................................................525

6

Entre o Velho e o Novo Mundo

PINTORES DE BEDDAWI: ENTRE CRIAÇÃO ARTÍSTICA E ENGAJAMENTO POLÍTICO1,2 Amanda Dias.3

Os pintores do campo de refugiados palestino de Beddawi, situado no norte do Líbano à proximidade de Trípoli, se encontram divididos entre o desejo de apoiar a causa palestina e a vontade de se definirem enquanto artistas. No contexto difícil de Beddawi, é possível produzir uma arte que não seja engajada? Quais limites a causa palestina impõe às motivações e às formas de expressão pessoal? Como se pode interpretar o sentimento de responsabilidade que os artistas alimentam em relação à causa nacional? Se a arte manifesta a liberdade de criação individual, ela também está intimamente ligada ao seu meio sociocultural. Assim, a onipresença da causa nacional no campo de refugiados favorece o nascimento de uma arte limitada pelas questões nacionais. Embora as criações artísticas dos pintores de Beddawi não emanem de uma vontade explícita de fazer propaganda, ela se revela extremamente militante. Expressão cultural dos artistas do campo de Beddawi, suas pinturas representam seus pensamentos e sentimentos. Nos seus quadros, é também a sociedade do campo que se revela: seus valores, suas necessidades e insatisfações, a impossibilidade de combater, a incerteza em relação ao futuro, as dificuldades de um projeto pessoal ou profissional, a espera... Em Beddawi, os refugiados man-

217

Leonardo Schiocchet

tém sua dignidade e sua esperança através da criação de uma ideologia da resistência.4 Os pintores de Beddawi tornam visíveis, ao mesmo tempo em que criam e reforçam, as histórias e crenças de um campo de refugiados que existe há mais de cinquenta anos. Essas pinturas não constituem apenas o resultado, elas também participam na criação de um imaginário coletivo, em um processo onde seria simplista buscar o começo e o fim, o antes e o depois, a causa e a consequência. Algumas pinturas de Beddawi Comecemos pelos símbolos que figuram nos quadros dos artistas de Beddawi: pássaros, oliveiras, cactos, cavalos, mesquitas... todas representações que os vinculam à uma simbologia comum às artes plásticas palestinas.5 O cavalo é um símbolo de força e poder extremamente presente na obra dos artistas de Beddawi. Ele se tornou recorrente na sua iconografia com o o evento que eles nomeiam “a revolução palestina”, em 1965. Hossan fez um trabalho em madeira onde um cavalo galopando rompe, com seu corpo, uma barreira de arames farpados (ver imagem ao lado). Atrás do cavalo, se vê a mesquita al-Aqsa. Como disse o pai de Hossan, “o cavalo é a revolução dos palestinos”. Os artistas de Beddawi utilizam, com frequência, símbolos religiosos, notadamente as mesquitas al-Aqsa e Qobat al-Sakhra, situadas em Jerusalém. Símbolos indiscutíveis do Islã, as mesquitas são também elementos constitutivos da identidade palestina, ultrapassando assim sua significação estritamente espiritual.6 Essas mesquitas nunca aparecem como objeto principal das obras dos artistas do campo. Situadas no plano de fundo da imagem, elas figuram mais como composição da cena do que como

218

Entre o Velho e o Novo Mundo

tema principal. al-Aqsa e Qobat al-Sakhra são sempre representadas em relação à questão palestina. Elas figuram, por exemplo, ao lado de um mártir ou de um cavalo, o que nos indica que o tema dessas pinturas não se trata do Islã em si.

219

Leonardo Schiocchet

Os símbolos mais essenciais manifestam aspectos próprios à identidade palestina, tais como o reconhecimento de um sofrimento que os une. Nesse espírito, os pássaros, notadamente os sonoonon (tipo de pássaro migratório), representam o carregador dos sonhos palestinos. Eles os unem ao voar de um lugar ao outro da diáspora palestina. Os pássaros se relacionam com as árvores, em particular as oliveiras, que representam a terra natal. A imagem acima é uma pintura de Samir. Ela representa uma velha árvore na Palestina. Segundo o artista, essa árvore antiga é como uma mãe, pronta a acolher as crianças de 48 e seus filhos e filhas, dispersas pelo mundo. A pintura ilustra claramente como a oliveira condensa simbolicamente a memória da terra, que por sua vez representa um grupo humano. No plano de fundo, vemos diferentes gerações de palestinos que retornam à sua terra natal. Enfim, o buraco na árvore é, como Samir nos diz, “uma abertura, uma esperança”. A Palestina perdura através das diferentes gerações.

220

Entre o Velho e o Novo Mundo

A imagem ao lado é uma pintura de Borhan. Ela representa um vilarejo da Palestina antes da criação do Estado de Israel. De fato, esses vilarejos foram os primeiros marcadores indentitários dos Palestinos antes que se tornasse claro para eles que a forma do Estado-nação era doravante necessária para que sua causa se tornasse legítima junto ao sistema internacional. Em Beddawi, a criação artística local resume de maneira simples o desenvolvimento do imaginário palestino ao longo das últimas décadas. Único artista tendo vivido no seu vilarejo na Palestina, Borhan se posiciona como guardião legítimo da memória de antes de 1948. As imagens dos vilarejos sonhados e das paisagens de sua região de origem são muito presentes nas suas pinturas. Os outros artistas fazem parte da geração nascida no exílio. Seu pertencimento à uma comunidade política lhes permite se projetar para o futuro. Ele se expressa no seu desejo de ganhar um Estado-nação palestino, do qual os artistas representam com frequência os contornos geográficos e a bandeira. Enfim temos Samir, que se situa entre os dois padrões evocados. Nascido no campo, Samir pinta os símbolos de um Estado-nação palestino imaginário e de uma Palestina mistificada. Isso se explica pelo fato de que o artista é originário de um vilarejo que ainda mantém laços de clã e familiares no campo. Essa forma de organização garante a continuidade das estruturas sociais de base e da memória de grupo dos vilarejos. Os vilarejos da Palestina de antes da Nakba7 são testemunhas de um sonho que torna para o passado – um passado mítico de paz e de tranquilidade; enquanto os mapas e as bandeiras palestinos expressam uma projeção para o futuro onde os refugiados de hoje gozarão do status de cidadãos nacionais em seu próprio país.

221

Leonardo Schiocchet

Quando os palestinos deixaram seus vilarejos, eles deixaram para trás suas moradas. Nessas casas, involuntariamente abandonadas, nasceram cactos. Esses cactos, chamados em árabe subbair, tornaram-se símbolos de “al-sumud”, uma luta diária que expressa a paciência e a capacidade de resistência. Contrastando com os vilarejos da Palestina sonhada, temos assim as imagens do cotidiano nos campos, desenhado sob a forma de pequenos dramas. São cenas no interior dos campos de refugiados, imagens da pobreza, das pequenas injustiças às quais os palestinos são regularmente submetidos e que os quadros têm por função ressaltar. Assim Borhan representa, como ele explica, “uma menininha de um campo na Palestina (...) ela quer encher sua garrafa de água mas não tem mais água” (ver imagem acima). Ao lado dessas imagens cotidianas, observamos pinturas que falam de uma realidade mais trágica, a da destruição. Embora vítimas palestinas sejam representadas com mais frequência, o conflito também está presente nos escombros das casas.8 Essas imagens são a expressão de um nacionalismo palestino que ultrapassa as fronteiras para ganhar a diáspora instalada nos campos do Líbano.

222

Entre o Velho e o Novo Mundo

Jovens lançadores de pedras com o olhar orgulhoso são os heróis dos quadros de Borhan. Ícones da primeira Intifada, eles nos lembram a resistência palestina. Os artistas da próxima geração fazem referência sobretudo ao mártir auto-sacrificial9, fenômeno por excelência da segunda insurreição. O mártir, ou shahid, ocupa um lugar central no imaginário palestino10 e está presente em várias criações dos artistas do campo. Trata-se não apenas de representar o mártir auto-sacrificial, mas também os “mártires inocentes”: Mohamed al-Dura, Iman Hijou, Noor11... Fazemos uma distinção entre essas duas categorias de shahid. A primeira nos remete aos combatentes e aos kamikazes. A segunda, relativa aos “mártires inocentes”, representa pessoas mortas em consequência da repressão, tornando-se heróis da causa palestina. Os mártires-inocentes evidenciam a assimetria da luta armada entre israelenses e palestinos, em um esforço para atrair a compaixão da opinião internacional. Entretanto, a inércia da comunidade internacional e dos governos árabes em favor dos palestinos gera um sentimento de abandono. Esse sentimento é claramente expresso na obra dos artistas do campo, que ressentem que os palestinos, vítimas de uma grande injustiça, foram abandonados por seus “próprios irmãos”. Sua desesperança em relação à mediação da comunidade internacional, e em particular dos governos árabes, quanto à resolução do conflito israelo-palestino, é uma temática presente no discurso dos artistas palestinos de Beddawi. A noção de “povo palestino” é desenvolvida pelos artistas ao longo de suas representações e discursos. Essa noção remete à uma construção identitária nacional e explicita como os refugiados do Líbano se sentem solidários à dor dos outros palestinos da diáspora. Se eles não

223

Leonardo Schiocchet

possuem um Estado-nação propriamente dito, com plena soberania e delimitações territoriais, o sofrimento, a resistência e o desejo de retornar à sua terra de origem cria uma noção unificada nas suas subjetividades.12

A imagem acima é uma pintura de Yosof Chams. Trata-se de um quadro complexo, que reúne diversos símbolos importantes para a compreensão do imaginário político palestino. O desenho de Yosof tem como tema as cores da bandeira palestina: “o vermelho é para a luta e a intifada, o negro é para os massacres e nossas vítimas”. No verme-

224

Entre o Velho e o Novo Mundo

lho, o artista também ilustrou o mapa da Palestina, feito de sangue. Entre os símbolos visíveis nessa imagem temos: o Islã e a terra de origem – representados pela mesquita al-Aqsa, por detrás das nuvens; o mártir inocente – evocado através da imagem do pequeno Mohammed al-Dura, que se esconde atrás do seu pai; o mártir auto-sacrificial – carregado, segundo o artista, por um futuro mártir; e a esperança – simbolizada pelos pássaros brancos. Tais símbolos articulam diferentes aspectos do imaginário nacional e político palestino contemporâneo; o shahid – fundamento religioso e também “nacional” –, a resistência, a esperança, a continuidade da luta através das gerações são elementos indispensáveis à compreensão do imaginário do povo palestino. O campo de Beddawi

Um grupo de jovens amigos palestinos vestidos com sua “kuffiyya” passeia nas ruas de Beddawi, diante de orgulhosos lançadores de pedra pintados nos muros. Um

225

Leonardo Schiocchet

avô descreve seu vilarejo na Palestina, chacoalha a chave de sua antiga casa e conta o dia em que foi obrigado a deixar sua terra natal. Adolescentes armados garantem com orgulho a segurança dessa pequena comunidade, ao lado de um monumento erigido em memória à bomba israelense que caiu no campo em 1975. Em um desfile da escola, crianças carregam a foto de um bebê assassinado por soldados israelenses. Nizar, artista de Beddawi, fala do campo como da sua “Pequena Palestina”: O campo de Beddawi ou qualquer outro campo palestino, para mim, é o lugar onde eu me encontro. As pessoas, a vida em geral, os telhados de zinco, tudo me lembra que sou palestino, e então que devo retornar. Eu acho que os habitantes de Beddawi concordam comigo. Nós amamos o campo, porque aqui é o lugar que nos lembra nosso vilarejo e a Palestina.

Nizar se refere à maneira com que, em Beddawi, a nacionalidade palestina é evocada e saudada cotidianamente. O artista realizou uma pintura representando uma família do campo que expressa a doçura que reina entre as famílias, apesar das más condições de vida dos refugiados no campo (ver imagem acima). A situação dos refugiados palestinos no Líbano é reconhecida como uma das mais difíceis e precárias em comparação às outras comunidades da diáspora palestina. No Líbano, o sistema político baseado na repartição confessional do poder constitui um problema fundamental na gestão dos negócios dos refugiados. De fato, a integração dos palestinos à população libanesa sempre representou uma ameaça ao frágil equilíbrio confessional. O fato que o Líbano seja o país que apresenta nos dias de hoje a população mais elevada de palestinos que ainda vivem nos campos não deixa dúvidas quanto à sua não integração

226

Entre o Velho e o Novo Mundo

junto à sociedade libanesa. Os 12 campos de refugiados oficiais apresentam sérios problemas: pobreza, desemprego, superpovoamento, ausência de infraestrutura apropriada, etc. Estabelecido pela UNRWA em 1955, o campo de Beddawi acolhe uma população condenada à uma gestão do provisório há mais de cinquenta anos. Como Nahr el-Bared, trata-se de um dos campos de refugiados palestinos reconhecidos pela Agência no norte do Líbano. Beddawi conta mais de 16.500 refugiados palestinos registrados junto à UNRWA. O número de pessoas de origem palestina vivendo no campo, mas que não são registradas, é estimado acima de 400. Devemos mencionar também os mais de 15.000 refugiados originários de Nahr al-Bared que Beddawi acolheu apos os conflitos entre o exercito libanês e o grupo islamista Fatah al-Islam.13 Enfim, o campo conta também com entre 1.400 e 1.500 pessoas de outras nacionalidades (libaneses, sírios, curdos...) de origem social modesta.14 Os não-palestinos são atraídos pelos preços baixos dos aluguéis das habitações no campo. Apesar dessa “presença estrangeira”, Beddawi é um campo investido pela memória palestina. Em comparação com outros campos de refugiados, onde o número de moradores de outras nacionalidades é ainda mais elevado (como, por exemplo, Chatila, situado na periferia de Beirute), Beddawi conserva referências identitárias palestinas importantes. As bandeiras da Palestina, as pinturas murais, as lojas de souvenires palestinos de Beddawi nos lembram a todo momento que se trata de um “território palestino”. Beddawi se orgulha de possuir o maior número de intelectuais e artistas, segundo Borhan, pintor e antigo professor da UNRWA.

227

Leonardo Schiocchet

De fato, Beddawi reúne uma pequena comunidade de artistas plásticos, que se conhecem entre eles e possuem relações amicais e profissionais. Como a quase totalidade dos palestinos do Líbano, esses artistas são oriundos da geração dos refugiados de 1948, originários da Galileia e dos vilarejos litorâneos do norte da Palestina. Dentre eles, apenas um, Borhan, pertence à primeira geração que chegou ao Líbano. Os outros, cuja idade varia entre 30 e 40 anos, pertencem à geração dos palestinos nascidos nos próprios campos de refugiados. Enfim, Imam, de quem falaremos um pouco mais a frente, é libanesa e casada com um palestino que pertence à minoria originária de Gaza que emigrou para o Líbano na ocasião da invasão israelense de 1967. Beddawi funciona como um espaço de identificação, um lugar de lembrança em meio à uma situação almejada como provisória. É no campo que os refugiados elaboram seu pertencimento à Palestina. Se a diasporização dos palestinos se deu, o mais frequentemente, na dor, devido às dificuldades de integração nos países de acolhimento, essa diasporização também é a fonte de recomposições da “identidade-memória” palestina.15 Se o laço de memória implica um distanciamento do objeto, no caso palestino o exílio forneceu uma experiência extrema dessa distância. Em outras palavras, é na separação e na ruptura que os refugiados forjaram sua identidade-memória, construída através da memória de um lugar ausente. À identificação aos vilarejos se sobrepôs uma identificação ao campo. Essa nova identificação, que se relaciona com o lugar onde os palestinos se encontram no presente, também lhes fornece uma possibilidade de projeção para o futuro. Para os refugiados do campo, não se trata de negar a precarie-

228

Entre o Velho e o Novo Mundo

dade na qual eles vivem, mas de assumi-la em um registro de dignidade. As motivações de uma pintura engajada Antigo professor da UNRWA, aos 63 anos Borhan é um pintor autodidata que, desde sua aposentadoria, tem a possibilidade de se dedicar exclusivamente a seu trabalho artístico. Para ele, a arte se define em termos de funcionalidade: A pintura, mesmo o desenho, é uma arte que explica os problemas aos povos; senão não é arte. Devemos buscar as maneiras de solucionar esse problema. As dificuldades de se viver, a posição econômica, a pobreza… como podemos explicar? Por exemplo, o autor escreve: é uma arte, a arte da escrita; o poeta faz um poema: é uma arte; as pessoas do teatro, os artistas de teatro, fazem peças para solucionar um certo problema. Então os pintores, eles devem se interrogar quanto aos problemas que encontram. Para mim, qual é o problema mais importante? É o problema da Palestina. Eu falo do problema palestino. Mas com a ajuda de pessoas. E você vê que todos meus quadros falam, ou buscam resolver, ou trazer uma compreensão, do problema palestino.

Talvez influenciado pela sua antiga profissão, Borhan concebe seus quadros como instrumentos didáticos. Em um estilo clássico e bastante realista, o artista conta os eventos da luta palestina que lhe parecem pertinentes. Na maior parte do tempo, Borhan reproduz fotos das cenas que encontra em jornais, livros, ou ainda na internet, acrescentando cores ou detalhes da sua escolha. Um livro de fotos da Segunda Intifada, por exemplo, é amplamente utilizado pelo artista. São imagens cujo horror é flagrante: pessoas ensanguentadas, crianças desfiguradas, casas des-

229

Leonardo Schiocchet

truídas. Através da representação dessas cenas, Borhan defende a causa palestina e traz sua contribuição. Para Borhan, é impossível esquecer a Palestina: “Como pedir que esqueça o problema principal da minha vida? (...) Como me pedir para deixar e esquecer meu país?”. Da mesma maneira, vários artistas narraram sua incapacidade de pintar outra coisa que não a causa nacional. Nascido em Beddawi, Samir Abu Shaair, 30 anos, explica de maneira extremamente simples: “Eu só posso falar da Palestina nas minhas pinturas. Eu só posso falar da nossa situação.” Yosof Chams, 36 anos, desenvolve o problema das motivações pessoais de uma pintura engajada: Quando eu considero meu trabalho como uma profissão, não tem problema, eu posso pintar e falar de outra coisa. Mas quando quero pintar minha experiência, minhas ideias, meus sentimentos, eu só posso falar da causa palestina. Porque eu nasci palestino. Às vezes, quando quero ganhar um pouco de dinheiro, faço paisagens, etc. Mas quando quero falar de algo em que acredito, por exemplo uma ideia, minha opinião, coisas que tenho na cabeça...

Yosof realiza pinturas encomendadas por terceiros, tais como paisagens ou propagandas para pequenos comércios do campo, o que lhe garante uma fonte de renda. Quando sua arte não possui vocação a ser comercializada, o artista se coloca a serviço da causa palestina. Em geral, o trabalho dos artistas de Beddawi não corresponde a fins comerciais. A condição de refugiado no Líbano não é favorável ao trabalho dos palestinos, e para os artistas a situação não é diferente. Dos três artistas de Beddawi que consideram a arte sua ocupação principal, apenas um consegue dedicar-se exclusivamente à pintura graças à sua

230

Entre o Velho e o Novo Mundo

aposentadoria, os outros dois devem buscar ocupações esporádicas e mal remuneradas para manterem a atividade de pintores. Na maior parte do tempo, os artistas não vendem suas pinturas, mas as oferecem aos seus próximos. Às vezes eles pintam por cima de suas antigas pinturas, pois não possuem recursos para comprar novas telas. Se os artistas encontrados em Beddawi se dedicam quase exclusivamente à causa palestina nos seus trabalhos, Nizar busca o universalismo na sua arte. Ele parte de um certo pré-conhecimento da causa palestina para dirigir-se a um público internacional. Como o pintor nos explica: Eu sempre tento tornar o meu trabalho mais humano. Eu não gosto de pintar a especificidade da causa palestina (…) porque assim eu posso comunicar com os ingleses, com os holandeses, com os japoneses, com gente de qualquer lugar. Eu posso comunicar com essas pessoas quando eu faço meu trabalho na condição de indivíduo. Eu acho que é a melhor maneira de estabelecer minha linguagem e explicar minha causa, a causa palestina.

O discurso do artista revela uma ambiguidade: se, por um lado, ele quer criar uma arte que não seja identificável enquanto palestina, ele sempre retorna à questão nacional. Sua maneira de criar uma arte universal é, na verdade, uma maneira de importar na sua pintura os valores universais que a causa palestina reflete. A situação palestina está sempre presente, mas nós a descobrimos apenas quando o artista explica seu trabalho. A primeira vista, seus quadros expressam sofrimentos e situações que são humanas antes de serem nacionais. Minhas pinturas, cada coisa que pinto é, em geral, política, mas eu não falo dos eventos políticos direta-

231

Leonardo Schiocchet

mente. Eu sempre tento tornar minhas pinturas mais individuais, às vezes pessoais. Elas tem todas por origem uma experiência pessoal (...) Eu desenho minha experiência como palestino, mas tento dar uma linguagem humana, que possa ser lida pelos outros, por mais e mais pessoas (...) Eu não penso para saber se vou fazer um trabalho sobre a causa palestina ou não antes de começar a pintar. Simplesmente eu não tenho tempo de pensar em outra coisa. Eu acho que o artista sempre pinta sobre algo que ele viveu ou sentiu, você entende?... Eu não posso falar de uma coisa que eu não sei como pensar. Como vou pintar uma causa sobre a qual não sei nada? Eu tenho que viver a experiência em si para poder explicá-la, para me expressar sobre ela.

Ao mesmo tempo em que Nizar busca produzir uma arte que possa atingir um público universal, ele se encontra na necessidade de colocar suas capacidades em benefício da causa palestina. O artista resolveu essa dualidade desenvolvendo sua arte em duas direções: pinturas e caricaturas. Por um lado, suas pinturas respondem às suas necessidades artísticas e pessoais – mesmo que o pano de fundo continue palestino. Por outro, na sua busca nacional, o artista cria caricaturas. Seus desenhos, sempre políticos, são sua forma de contribuir com uma causa que vai muito além dele, ao mesmo tempo em que modela sua existência.16 Entre os artistas de Beddawi, Iman representa uma dupla exceção: ela é, ao mesmo tempo, a única mulher e a única libanesa do grupo. Casada com um palestino, Iman vive em Beddawi há oito anos. O casal tem dois filhos, de seis e dois anos. Iman também é a única artista do campo a não pintar a causa palestina. Certamente devido à sua nacionalidade, a artista não sente a obrigação, a neces-

232

Entre o Velho e o Novo Mundo

sidade e nem mesmo a vontade de fazê-lo. Entretanto, a situação dos refugiados a preocupa cada vez mais, uma vez que, segundo a lei libanesa, seus filhos adquirem a nacionalidade do pai e não a dela. Em consequência, eles são privados dos direitos cívicos libaneses. A obra de Iman demonstra sutilmente como a questão palestina infiltra as casas do campo e inquieta os espíritos menos engajados. O trabalho da única artista de nacionalidade libanesa de Beddawi se caracteriza por imagens abstratas, representações de mulheres ou ainda de animais. Segundo ela, se o tema de seus quadros não mudou, as formas foram transformadas: Quando me casei com um palestino, eu vim morar aqui no campo. Ao longo do tempo, me dei conta que as mulheres que pinto não são as mesmas: é uma nova mulher porque, indiretamente, estou sempre pensando nas mulheres palestinas e em outros aspectos do povo palestino. Como agora eu penso sempre no caso palestino, sem me dar conta, meus cavalos tornaram-se cavalos de guerra, minhas mulheres, mulheres na guerra… o cavalo se tornou o cavalo da revolução. Antes, meus cavalos eram estáveis, agora eles estão sempre em movimento, pulando, correndo…

233

Leonardo Schiocchet

Figura 1

Figura 2

A transformação dos cavalos da artista pode ser percebida nos dois quadros reproduzidos acima. Na figura 1, pintura realizada em 1995, percebemos a estabilidade dos cavalos, de que Iman nos fala, antes de vir morar em Beddawi. Na segunda reprodução, de 1997, dois anos depois da sua instalação no campo, os cavalos ganharam um perfil mais inquieto, absorvendo o movimento da causa palestina. Segundo a artista, as mudanças nas suas pinturas se deram tanto no nível dos detalhes como nas cores: “Elas se tornaram mais fortes e sombrias, não há mais cores frescas”. Se, à diferença dos outros artistas de Beddawi, a artista não pensa diretamente no caso palestino, de maneira não intencional seus quadros refletem como a causa palestina está impregnada nos habitantes de Beddawi.

234

Entre o Velho e o Novo Mundo

O fato de que Iman e Nizar sejam os únicos artistas que almejam uma arte que seja antes de tudo universal não é inocente: eles também são os únicos a terem seguido uma educação artística fora do campo e do meio militante palestino.17 A pintura é uma prática solitária: os artistas de Beddawi trabalham individualmente, a maior parte do tempo nas suas casas. Contrariamente aos músicos, por exemplo, a pintura não é da ocasião de encontros.18 É difícil para esses artistas exporem seus trabalhos no Líbano. Na medida em que a criação dos artistas de Beddawi expressa sua experiência pessoal, e que essa coincide amplamente com a vivência da causa nacional, eles se encontram na impossibilidade de pintar imagens que não estejam ligadas ao conflito Israel-palestino ou à Palestina.19 Artistas ou militantes? Os palestinos dos campos de refugiados do Líbano vivem a angústia de não poderem avançar em suas vidas pessoal e profissional. Eles estão à espera e à mercê de uma resolução do conflito que afeta duramente seu cotidiano. A angústia de se sentir paralisado, a impressão de ver o tempo passar sem levá-los em consideração está presente no campo como nas obras dos artistas de Beddawi. A imagem abaixo é um dos quadros de Nizar. Ela representa, segundo o pintor, sua impotência: “Eu quero fazer alguma coisa, mas eu sei claramente que até agora eu não pude fazer nada. Mas eu quero fazer cada vez mais coisas”.

235

Leonardo Schiocchet

Esta imagem é um autorretrato do artista. A figura na pintura o representa, e o azul seria o tempo que está apagando seu rosto: O tempo. Porque esse homem também vê que ele não pode fazer nada. Nesse caso o tempo é um grande assassino. Mas uma parte dele ainda está viva. (…) Eu fiz essa pintura em um período em que estava sempre esperando, e você sabe que eu detesto esperar. Eu esperei aqui durante meses, era o período da segunda intifada e eu queria fazer alguma coisa pelo meu povo, alguma coisa por nós aqui, mas o que é que eu posso fazer? O que posso fazer?

A arte é concebida como instrumento da luta palestina nos diversos momentos de resistência. “Após a ocupação de 1967, ficou claro que a luta e a confrontação a ela necessitariam da mobilização de todas as forças e potencialidades” (Abdulaziz 1994: 55). Convencidos que a arte possui um papel fundamental na sua causa, os artistas plásticos originários da Palestina organizaram, duran-

236

Entre o Velho e o Novo Mundo

te os anos 70 e 80, e apesar das dificuldades envolvidas, diversas exposições coletivas e individuais dentro e fora da Palestina. Entretanto, Nizar tem o sentimento de que, hoje, os artistas palestinos estão, como ele diz, “paintless”, no sentido de que não conseguem mais pintar. Segundo Nizar, O momento presente é um momento de fracasso, ehhbatt, como em 1948. A propósito de que posso pintar? É um período ruim. Os eventos são mais numerosos do que o que eu posso pintar. Tem um massacre a cada dia na Palestina, e agora no Iraque, como vou falar disso?

Num momento do conflito onde a violência predomina enquanto estratégia de luta, as artes plásticas não encontram mais o mesmo lugar que antes na resistência palestina. Tendo escolhido, no entanto, a pintura para lutar pela causa nacional, o artista ressente sua impotência quando se compara aos pintores dos anos 70 e aos mártires dos dias de hoje. O ativismo, militar ou não, é uma maneira de ultrapassar a humilhação, de reagir ao deslocamento social e à dependência política. Mais ainda, é um “modo privilegiado de um acesso à historicidade que implica ao mesmo tempo religar o laço memorial com um passado de combate” (Picaudou 2001 :344). Por sua parte, as artes plásticas encontram, desde o começo da segunda Intifada, mais dificuldades de se inscreverem em “um destino longo de luta comum” (Picaudou, loc cit.) dividido com o conjunto dos palestinos. Nizar escolheu dois muros, um ao lado do outro, onde, desde 2001, ele pinta caricaturas que renova regularmente, a cada dois ou três meses. Se esse não é seu ideal, ao

237

Leonardo Schiocchet

menos esses afrescos lhe dão a possibilidade de se comunicar com os demais moradores de Beddawi: Sempre quando estou desenhando alguém passa e pergunta: ‘Então, o que você está desenhando?’ Normalmente as pessoas sabem do que eu falo, mas é bom para eles se eu expresso isso com as caricaturas (…) Quando você faz uma caricatura, você desenha uma situação política e instantaneamente ela se torna clara.

238

Entre o Velho e o Novo Mundo

No entanto, é difícil para Nizar manter esse tipo de atividade de maneira autônoma, tendo em vista que ele raramente possui o dinheiro necessário para comprar o material de que precisa. Outra forma de colocar sua arte à serviço do campo é pintar afrescos murais encomendados pelas organizações palestinas ou pelos qashafs20 presentes em Beddawi. Normalmente, esses organismos propõem aos pintores locais realizar um afresco em um dos muros de Beddawi, argumentando que é “para o bem do campo”. Eles fornecem o material necessário aos artistas, que realizam as pinturas benevolamente (as organizações e os qashafs negociam junto aos comerciantes de Beddawi, que lhes oferecem as pinturas e o material). Os artistas não se sentem incomodados que o tema da causa nacional lhes seja solicitado. Seu esforço é então de negociarem um espaço de criação. A pintura mural acima foi realizada por Nizar, a pedido de um qashaf que lhe havia solicitado o retrato dos principais líderes da causa nacional. Nizar aceitou o tema da luta palestina, mas negociou o conteúdo da pintura. Por fim, ele realizou um jovem lançador de pedras que se coloca em frente a mesquita Qobat al-Sakhrah com o objetivo de protegê-la, ao lado das representações da bandeira e o mapa do Estado sonhado. Fazer alguma coisa “para o bem do campo” significa fazer alguma coisa para a Palestina. Quando os fornecedores, as organizações e os artistas reúnem seus esforços para realizar um afresco mural em Beddawi, eles são motivados por um sentimento de pertencimento. Os campos de refugiados devem ser concebidos menos como espaços físicos que como os lugares por excelência da resistência e da memória palestina. Na condição de guardiões dessa memória, os campos constituem o suporte da continuida-

239

Leonardo Schiocchet

de do grupo que o habita. Isso explica por que, lado a lado da preocupação de fazer algo pela causa nacional palestina, os artistas buscam também agir dentro do campo. Embora alguns dos afrescos murais de Beddawi tenham sido produzidos pelos artistas locais (quatro no momento desta pesquisa de campo), na verdade a maioria deles foi realizada por pintores iranianos a serviço do Hezbollah.21 A seguinte história ilustra a relação entre os artistas locais, as organizações palestinas e o Hezbollah. Segundo Nizar, após a segunda Intifada, no final de 2001, uma das organizações palestinas presentes em Beddawi lhe pediu que realizasse um afresco em um muro situado na entrada do campo de refugiados. Nizar criou uma imagem que evoca a intifada e que, de acordo com ele, quer dizer “Deus crê em nós e nos apoia, Ele é nossa revolução” (Fig. 1). Pouco depois que Nizar acabou sua pintura, os artistas iranianos chegaram e reivindicaram o muro onde estava seu afresco. Trata-se de um grande muro situado na entrada do campo, a primeira coisa que uma pessoa observa quando chega em Beddawi. Seu valor estratégico é evidente. Os pintores do Hezbollah argumentaram que já haviam escolhido esse muro para seu principal afresco e a organização palestina consentiu que ela fosse realizada por cima da pintura de Nizar. Foi dessa maneira que uma criação de um dos artistas de Beddawi, com sua concepção pessoal da Intifada e da luta palestina, foi substituída por um afresco mural com uma inscrição do líder da revolução iraniana, o Aiatolá Khomeini (Fig. 2). Nizar não apreciou ver sua obra substituída, mas tampouco se opôs ao trabalho do Hezbollah. De acordo com ele: Eles poderiam tem esperado um ano para fazer um outro afresco mural, isso teria sido bom, mas eles fi-

240

Entre o Velho e o Novo Mundo

zeram a pintura poucos dias depois que terminei a minha. (…) O Hezbollah pagou esses artistas para que eles viessem e pintassem, é uma boa coisa. Nós gostamos do Hezbollah, porque eles são contra nosso inimigo. Se você assiste o canal de televisão deles, você acha que é um canal palestino, eles estão sempre falando da Palestina, da Palestina e da Palestina, você vê, e isso é bom. Eles acharam que era uma boa coisa fazer pinturas para os palestinos nos campos de refugiados (…) Não é o Hezbollah, são as organizações palestinas. Nossas organizações deveriam pensar nisso e pagar nossos artistas para fazerem pinturas, o Hezbollah não deveria precisar enviar e pagar artistas iranianos (...) é culpa das organizações palestinas.

Fig. 1: Nizar em frente a seu afresco mural na entrada de Beddawi.

Fig. 2: O afresco mural que os artistas à serviço do Hezbollah fizeram sobre a imagem de Nizar.

241

Leonardo Schiocchet

A história do afresco de Nizar revela a precariedade da condição dos artistas de Beddawi. Não somente o Hezbollah realizou com prioridade os afrescos sobre os muros mais bem situados do campo, como a situação econômica dos artistas locais é extremamente difícil, o que limita suas possibilidades de iniciativas individuais. Dos quatro afrescos murais produzidos por artistas locais (notamente Nizar e Yosof), três foram feitos graças à demanda das organizações presentes no campo. Ao lado de suas criações, os pintores de Beddawi desenvolvem atividades educativas ligadas à sua prática artística. No seu ateliê, Borhan ensina o desenho aos adolescentes de Beddawi: “Quando terminei meu serviço na UNRWA, me dei conta que tem muitos jovens que gostam de desenhar, mas que não sabem como fazer para se tornarem artistas. Eu perguntei se eles queriam vir no meu ateliê, para aprender a desenhar”. Trata-se de um trabalho que ele realiza por iniciativa própria com os alunos do campo que ainda estão cursando o ensino médio. A maior parte das vezes, Borhan é quem compra o material para os alunos, que não possuem os recursos financeiros para fazê-lo. Nascido em Beddawi, Samir também contribui para o campo na área da educação. Ele é voluntário em uma associação palestina presente em diversos campos de refugiados do Líbano, “The Handicap Social Association”. Nessa associação, ele oferece cursos às crianças deficientes. Em troca, a associação o ajuda a comprar o material para seu trabalho artístico individual (o artista faz pintura e pirogravura sobre madeira). Notemos que o próprio Samir é deficiente físico, por causa de uma bomba que caiu em Beddawi quando ele tinha apenas 10 meses.

242

Entre o Velho e o Novo Mundo

Se os artistas do campo querem defender a causa palestina, eles também se preocupam em serem reconhecidos como artistas. Assim, eles buscam fazer com que suas criações artísticas sejam compreendidas enquanto tal, e não como propaganda política. Por isso eles se esforçam para não vincular sua arte à um organismo ou partido político.22 Yosof contribuía com a causa nacional através do seu engajamento junto à organização palestina Fatah. Nascido em um campo no Líbano, o artista faz parte dos palestinos que tiveram que se deslocar diversas vezes em função dos conflitos libanês e israelo-palestino. Em 1987, ele integrou o Fatah, compondo e cantando canções políticas para a organização que, por sua vez, o ajudava a manter suas atividades artísticas. Em 1990, Yosof deixou o Fatah: “(...) porque eu queria me afirmar como artista, independente de qualquer organização política”. O artista conta que, mesmo quando estava afiliado à organização, ele já se preocupava em não limitar sua arte à ela. Em 1989, quando ele teve a ocasião de realizar sua primeira exposição pessoal, Yosof decidiu realizá-la sem o apoio do Fatah. No lugar, ele buscou ajuda financeira junto aos qashafs de Beddawi. Yosof afirma ter recusado convites da UNRWA e do então primeiro ministro Libanês, Rafiq Hariri, para participar de exposições no sul do país, de forma a evitar que sua obra fosse vinculada à qualquer organização ou partido político. No mesmo espírito, se Nizar é enfático quanto ao seu desejo de contribuir com a causa nacional, ele nunca quis integrar uma das diversas organizações políticas presentes no campo. O mesmo é válido para Borhan, que produz seus quadros de maneira autônoma.

243

Leonardo Schiocchet

Conclusão Os artistas de Beddawi se esforçam para criar um espaço intermediário entre sua condição de refugiados palestinos e de artistas. Através da criação de imagens da Palestina, da luta nacional e do sofrimento dos palestinos, eles preservam a memória da terra natal, se inscrevem em um registro de resistência e cultivam a ilusão do retorno. Artistas e refugiados, eles devem encarar um duplo desafio: dar sentido ao seu status de refugiados e se afirmarem como artistas. Finalmente, se percebe que a existência cotidiana dos artistas no campo lhes deixa na impossibilidade de criar imagens que não estejam, direta ou indiretamente, relacionadas à causa nacional palestina. As imagens criadas pelos artistas de Beddawi são ao mesmo tempo reveladoras e criadoras de narrativas, de crenças e de todo um sistema complexo de normas e de convenções que estruturam o cotidiano do campo de refugiados. As pinturas dos artistas do campo devem ser compreendidas como uma prática simbólica, um sistema de representações que participa ativamente na difusão e na elaboração do discurso palestino. Através da análise da produção artística de Beddawi, o que está em questão é a criação de um discurso da resistência palestina. A onipresença da questão nacional na obra dos artistas locais revela a predominância massacrante de um discurso sobre a condição coletiva dos palestinos e sobre uma situação nacional que se intromete a intimidade e no cotidiano do campo. A produção dos artistas de Beddawi não deve ser reduzida à propaganda; aqui, buscamos evitar uma leitura instrumentalista das obras dos pintores do campo. Frequentemente, os quadros desses artistas não são concebidos

244

Entre o Velho e o Novo Mundo

como uma maneira de fazer propaganda, mas como uma forma de expressão. Existe uma grande diferença entre a produção dos artistas de Beddawi e os afrescos murais feitos no campo a pedido do Hezbollah.23 Se é verdade que a obra pode ser considerada como uma representação interessada da causa nacional com suas finalidades próprias que justificam a posição política, ela não é concebida de maneira funcional: as pinturas estão aí menos para produzir efeito que como resultado de um sentimento de pertencimento. Essa abordagem atenua o caráter funcional que, com frequência, é atribuído às criações resultantes de situações conflituosas. Quando nos lembramos que essas imagens não constituem um braço ideológico das organizações palestinas, como uma leitura apressada poderia concluir, elas se tornam um meio privilegiado para compreendermos as ideias que circulam entre a comunidade de refugiados. Bibliografia ABDULAZIZ, A. La résistance culturelle du peuple palestinien dans les territoires occupés. Rôle des institutions culturelles, 1967-1987. In Palestine: mémoires et territoires. Cahiers d’Etudes Stratégiques n°14, Groupe de Sociologie de la défense, EHESS, julho, 1994. DIAS, A. Peintres de Beddawi, entre création artistique et engagement politique. In PUIG, N. ; MERMIER, F. (Orgs.) Itinéraires Esthétiques e Scènes Culturelles au Proche-Orient. Beyrouth: IFPO. p. 249-270, 2007. _____________. Shahid, a nova figura da luta nacional palestina. Religião e Sociedade, v. 26, n°2, 2006, p. 81102, 2006.

245

Leonardo Schiocchet

_____________. Peintres de Beddawi. Création artistique et imaginaire politique dans un camp de réfugiés palestiniens au Liban. Dissertação de mestrado em sociologia, École des hautes études en sciences sociales (EHESS), 2004. Disponível em: . Acesso em 30 de Outubro, 2014. FOLGARAIT, L. Mural Painting and Social Revolution in Mexico, 1920-1940. Art of the New Order. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. PICAUDOU, N. Identité-mémoire et construction nationale palestinienne. La Palestine en Transition, Les Annales de l’Islam, n°8, INALCO – ERISM, Paris, 2001. PUIG, N. Shi filastini, quelque chose de palestinien: Musiques et musiciens palestiniens au Liban: territoires, scénographies et identités. TUMULTES, numéro 27, pp. 109-138, 2006. SFEIR, J. L’exil palestinien au Liban. Le temps des origines (1947-1952). Paris/Beyrouth: Karthala/IFPO, 2008. Notas: 1 O presente artigo se baseia em uma pesquisa etnográfica realizada no Líbano durante os meses de abril e maio de 2004. Trata-se de um trabalho de campo realizado para um mestrado em sociologia da EHESS, Paris (Dias 2004). Tratarei aqui de um presente etnográfico que terminou com o fechamento formal desse trabalho de campo em maio de 2004. A pesquisa foi efetuada no campo de refugiados palestinos de Beddawi, situado à 5km de Tripoli, no norte do país. No momento da pesquisa de campo, o campo possuía oito artistas plásticos: Borhan Hossein Sulaiman; Hossan Ahmad Mohamad; Iman Ayyash; Mohammed Solaiman; Nizar Abu Ayed; Samir Abu Shaair; Yosof Shams e Anwar. A integração à comunidade de artistas de Beddawi se deu amplamente através da minha estadia com uma família do campo. Graças à intervenção de Nizar, um dos pintores de Beddawi que se tornou também meu guia no campo, pude realizar entrevistas aprofundadas com cada um dos artistas, à exceção de Anwar. O presente artigo foi originalmente publicado como (Dias 2007).

246

Entre o Velho e o Novo Mundo

2 Publicado originalmente em francês como: DIAS Amanda, 2007, Peintres de Beddawi, entre création artistique et engagement politique. in Itinéraires Esthétiques e Scènes Culturelles au Proche-Orient/ sous la dir. de N. Puig, F. Mermier, Beyrouth, IFPO, p. 249-270. 3 Doutora em sociologia/EHESS. 4 Adotaremos aqui o conceito de ideologia tal qual definido por L. Folgarait no seu estudo sobre os afrescos murais e a revolução social no México entre 1920-1940. Segundo ele, “uma ideologia é um corpo de valores que dá propósito ao pensamento e à ação humana, de fato uma cobertura racional que permite e restringe o comportamento nos seus limites legais e seus parâmetros do possível, dando sentido ao mesmo tempo ao que está dentro e fora desses limites”. (Folgarait 1998: 11) Nossa tradução. 5 A pintura palestina comporta símbolos reconhecidos pelos palestinos em geral e amplamente utilizados nas artes plásticas. As belas artes palestinas se desenvolveram significativamente em 1948, após o “desastre”. Assim, o que chamamos de “símbolos tradicionais” são, na verdade, símbolos que se referem ao paraíso perdido e a um mito pastoral fabricado. Eles apareceram ao mesmo tempo que a arte palestina em si e os artistas os utilizam em geram com a mesma significação. De fato, a partir da multiplicidade de imagens ligada à vivência do povo palestino, a memória fetichisa alguns elementos, promovidos à posição de símbolos, em um processo de sinédoque onde a parte vale pelo todo. Esses símbolos são elementos da natureza, como, por exemplo, as oliveiras, que condensam a memória da terra. 6 Os artistas de Beddawi falam dessas mesquitas como sendo as duas mesquitas mais importantes para os palestinos. Sua presença no campo não passa despercebida: as mesquitas são representadas em afrescos murais e pôsteres colados ao lado das imagens dos mártires da causa palestina. Nós as encontramos também em pingentes e no interior das casas. Ha uma pequena escultura da Qobat al-Sakhrah na rua principal do campo de Beddawi. 7 “A catástrofe”, terminologia utilizada pelos palestinos para se referir à expulsão do povo palestino em 1948. 8 Distante dos checkpoints e das humilhações às quais os palestinos dos Territórios Ocupados são cotidianamente submetidos, os artistas de Beddawi não se abstém de pintá-las. Da mesma forma que a presença do shahid na sua obra e discurso revela seu apoio luta dos palestinos em Israel, esses quadros – representando os soldados do Tsahal e as prisões israelenses – atestam sua solidariedade ao sofrimento de seus compatriotas que remanesceram na Palestina. 9 Ver (Dias 2006 :81-102). 10 A forte presença da imagem shahid na criação dos artistas de Beddawi atesta a amplitude do fenômeno. De fato, a produção artística reflete a importância do mártir no imaginário do campo. Esse fenômeno é visível ao observarmos as fotos dos mártires coladas nos muros ou usadas em pingentes pelos jovens palestinos.

247

Leonardo Schiocchet

11 Mohamed al-Dura é um ícone simbolizando o mártir palestino. A cena filmada do pequeno Mohamed e seu pai, aterrorizados, tentando escapar dos tiros israelenses, percorreu as televisões. A criança morta e o pai caído em estado de choque diante das câmeras é um episódio que tem tendência a integrar o imaginário da segunda Intifada. Iman Hijou é conhecida por ser a mais jovem mártir da segunda Intifada. A fotografia desse bebê de poucos meses assassinado por soldados israelenses tournou-se igualmente um dos principais pontos de referência do levante. Assim, no desfile de uma escola maternal em Beddawi, as crianças carregavam pôsteres a foto de Iman (ainda menor que eles) morta. Noor, enfim, é, segundo Borhan, “uma menininha que os israelenses bombardearam durante a guerra em 1982, quando Israel invadiu o sul do Líbano. Na sua família todos morreram, menos ela, mas agora ela está em uma cadeira de rodas”. Apesar de ser libanesa, a presença de Noor na obra de dois artistas de Beddawi atesta da sua participação no imaginário palestino – participação que se justifica menos pela sua nacionalidade que pelo fato de que ela também seja vítima dos israelenses. 12 A noção de “povo palestino” se manifesta com maior frequência em termos de sofrimento e de resistência. O povo palestino é representado pelos artistas do campo como um povo unido pela dor e na luta por um objetivo comum: o Estado-Nação. Efetivamente, as tragédias e os traumas sucessivos vividos pelos palestinos tiveram reforçaram a ideia da existência de um povo palestino. A produção artística de Beddawi reitera a ideia de um povo unido em torno do “desastre”, apesar da dispersão territorial. 13 Entre 20 de maio e 2 de setembro de 2007, conflitos violentos opuseram o exército libanês aos militantes do grupo salafista-jihadista Fatah al-Islam no campo de refugiados vizinho, Nahr al-Bared. Praticamente todos os refugiados de Nahr al-Bared fugiram do campo em ondas sucessivas para se instalar no campo de Beddawi e regiões adjacentes. Em meados de 2009, cerca de 10.000 refugiados deslocados permaneciam no campo de Beddawi. 14 A UNRWA apenas coleta estatísticas sobre os refugiados registrados junto à Agência. As estatísticas referentes aos refugiados não registrados, àqueles sem documentos e aos habitantes de outras nacionalidades foram obtidas junto à clínica de saúde do campo (“Beddawi Health Clinic”). 15 De acordo com Nadine Picaudou, a identidade palestina deve ser pensada como uma “identidade-memória”, no sentido em que ela permite opor “ao eterno presente um passado erigido em absoluto, ali onde a história conduz uma analise critica que desconstrói o passado vivido. A memória sacraliza o que a história deslegitima”. Picaudou. Identité-mémoire et construction nationale palestinienne (Picaudou 2001: 340). 16 No Líbano, o artista publicava seus trabalhos na Trablus Post Magazine, uma revista que circulava no norte do país. Como a rede de difusão dessa revista era bastante reduzida, era-lhe possível veicular

248

Entre o Velho e o Novo Mundo

suas caricaturas. Quando o Trablus Post cresceu, passando a circular em todo o país, Nizar nao pôde mais difundir seus trabalhos (segundo ele, a lei libanesa proíbe propósitos políticos nesse tipo de revista). Nizar publicava suas caricaturas na revista sobretudo para ter a possibilidade de circular suas ideias: mal remunerado, ele ganhava apenas US$17 por mês, “[…] não era o suficiente para dizer que tinha um salário, apenas o suficiente para comprar maços de cigarro”. Agora que lhe é proibido abordar os temas que lhe interessa, Nizar perdeu sua motivação para continuar esse trabalho. 17 Com a exceção de Nizar a Imam, os artistas tratados nesse artigo aprenderam a arte de modo intuitivo, mesmo se eles obtiveram noções de desenho na escola, ou cursando formações a posteriori, como é o caso de Yosof. 18 Ver (Puig 2006). 19 No texto de Caroline Coutau, uma certa distância em relação ao ambiente aparece como propácia à criação artística. Caroline Coutau, in La création comme acte de résistance. Les Cahiers de l’Orient, 67, 2002. 20 Palavra em árabe que designa os escoteiros. Há vários no campo. Na maior parte das vezes, eles organizam atividades culturais e educativas. 21 Segundo os artistas locais, o Hezbollah enviou, há cinco anos, dois ou três pintores iranianos para realizarem afrescos murais em todos os campos de refugiados palestinos do Líbano. Eles fizeram afrescos representando cenas da Intifada, exibindo frases de apoio à resistência palestina assim como símbolos importantes para muçulmanos e palestinos, tais como as mesquitas al-Aqsa e Qobat al-Sakhra em Jerusalém. 22 No momento da pesquisa de campo, nenhum dos artistas encontrados estava afiliado à uma organização palestina, à exceção de um deles, artista ainda em formação cuja arte não constitui a atividade principal. 23 É notável que esses afrescos tenham sido produzidos por artistas iranianos, dada a importância fundamental dos pôsteres iconográficos na revolução iraniana.

249

Impresso em Chiado Print, Lisboa, Portugal

Lihat lebih banyak...

Comentarios

Copyright © 2017 DATOSPDF Inc.