“ A Crónica do Mouro Rasis: repositório do programa almóada de reconquista”, in Actas do Colóquio Internacional: Del Nilo al Ebro I. Estudios sobre las fuentes de la conquista islámica, Universidade de Alcalá de Henares, pp. 96-121

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Del Nilo al Ebro I. Estudios sobre las fuentes de la conquista islámica, pp 96-121

A CRÓNICA DO MOURO RASIS: REPOSITÓRIO DO PROGRAMA ALMÓADA DE RECONQUISTA

ANTONIO REI investigador integrado iem – unl (Lisboa) [email protected]

RESUMO O apartado geográfico que passou para as Crónicas cristãs medievais peninsulares teve a sua origem num texto árabe do século XII onde a Península Ibérica foi descrita como era no fim do Califado Omíada, e assim dando corpo ao programa almóada de legitimação califal e de reconquista. Palabras clave: Almóadas, Ibn Ghâlib, Al-Râzî, Omíadas, Califado, Legitimidade, Reconquista

ABSTRACT The geographical part that went throw the Hispanic Mediaeval Christian Chronicles had it origin in Arabic text from the XIIth century where the Iberia was described as it was in the end of Umayyad Caliphate, and giving substance to the Almohade programe of legitimation of their own caliphate and reconquest of lost territories. Keywords: Almohades, Ibn Ghâlib, Al-Râzî, Umayyads, Caliphate, Legitimity, Reconquest

A Crónica do Mouro Rassis: repositório do programa almóada de reconquista

1. ORIGEM TEXTUAL DO LIVRO DE RASIS O Livro de Rasis foi o produto da tradução do árabe para o português de um texto de tipo cronístico, cujas origens textuais remontavam ao século X, à Córdova califal e aos dois al-Razi, pai e filho, respectivamente Ahmad e ‘Îsâ, ambos cronistas dos Califas ‘Abd al-Rahmân III, al-Hakam II e Hishâm II 1. Apesar das suas origens textuais remontarem às Chancelarias da Córdova califal, o texto que chegou às mãos dos tradutores dos finais do século XIII e inícios do XIV era já uma versão refundida em meados do século XII, onde, para além daqueles textos razianos, tinha sido utilizada também a obra do geógrafo hispano-árabe al-Bakrî, letrado do século XI 2. O texto árabe compunha-se de uma parte historiográfica e outra geográfica, e assim da mesma forma a sua tradução do mesmo para romance continuou com aquela estrutura. Foi, no entanto, a parte geográfica, porque menos passível de ser aproveitada ideologicamente, aquela que acabou mantendo maior integridade textual, atendendo ao conjunto dos conteúdos e ao paralelismo com as fontes árabes que trataram o espaço do al-Andalus. O Livro de Rasis foi, mais tarde, uma fonte utilizada pelo Conde de Barcelos, D. Pedro Afonso, na composição da sua Crónica Geral de Espanha de 1344 (C1344), a qual, no Apartado Geográfico copiou, de forma que se pode considerar integral, a mesma descrição que constava naquele Livro 3. 1

Ver “A Cronística Califal” in Antonio REI, O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Medieval Peninsular. Das suas origens discursivas ao Apartado Geográfico da Crónica de 1344, Tese de Doutoramento (Ph.D.Thesis), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2007, policop., especialmente pp. 119-127. 2 Antonio REI, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, Lisboa, Ed. Colibri, 2008, em especial pp. 129-135. 3 Não podemos dizer que se trata de uma cópia “completa”, porque os testemunhos que subsistiram até hoje das duas Crónicas não nos permitem afirmar tal. Pode-se dizer, no entanto, que no Apartado Geográfico os diferentes testemunhos da Crónica Geral de Espanha de 1344 que subsistiram até hoje, bem como os da Crónica do Mouro Rasis, todos eles apontam para uma matriz textual comum, tanto mais que confrontada com textos geográficos árabes sobre al-Andalus. Essa confrontação textual parcial e total foi, respectivamente, levada acabo nas nossas Teses de Mestrado (M. A.): Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos; e de Doutoramento (Ph. D.), v. supra n.1.

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2. O TEXTO ÁRABE E SUA CONTEXTUALIZAÇÃO O texto árabe depois traduzido terá sido encontrado no Algarve português, recém-conquistado, possivelmente na cidade de Silves, última capital do extremo ocidente de al-Andalus. A obra árabe terá sido encontrada durante o período em que D. João Peres de Aboim e seu filho Pero Eanes de Portel exerceram a função de “tenentes do Algarve”, e a qual fez deles, por um curto mas significativo lapso de quatro anos, de 1263 a 1267, os primeiros senhores cristãos do Algarve, precisamente durante o conflito que opôs Afonso III de Portugal a Afonso X de Leão e Castela, pela posse definitiva do mesmo Algarve. O Conde de Barcelos, atrás referido, teve uma grande proximidade com os Senhores de Aboim-Portel pelo facto de ter sido genro de Pero Eanes de Portel, pois casara com Branca de Sousa4, filha deste magnata. Vários indícios textuais da Crónica, no seu apartado geográfico, e mais especificamente nas descrições das regiões onde os Aboim-Portel detinham maiores bens fundiários e outros, nos apontam para esse labor de fixação da memória daqueles Senhores no próprio texto então a ser traduzido5, ao mesmo tempo que delineiam os limites do Algarve, então centro da questão, e referem os espaços contíguos ao mesmo Algarve. 2.1 Os Aboim / Portel e o sul português no Livro de Rasis Nas notícias de Beja, Lisboa e Ossónoba encontrámos algumas passagens interpoladas (sem qualquer paralelos nos textos árabes); ou mexidas (por terem paralelos, mas os mesmos não serem completos), e se podem 4

Sobre este casamento, v. M. SIMÕES, “Pedro de Portugal, Conde de Barcelos”, in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, pp. 521-523; ou L.F. Lindley CINTRA, Crónica Geral de Espanha de 1344 (C1344), III vols., Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1951 ss., vol. I, pp. CXLII - CXLIV. 5 Sobre questões relacionadas com o processo de tradução bem como com a procura de uma vinculação da memória daqueles Senhores quer à obra quer ao Algarve, v. António REI, Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Razi a D. Pedro de Barcelos, Lisboa, Colibri, 2008; e, especialmente, IDEM, “O Livro de Rasis e a memória senhorial da Casa dos Aboim-Portel”, Rev. Callipole 13 (2005), Câmara Municipal de Vila Viçosa, pp. 17-29.

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relacionar com os Aboim / Portel. Especialmente com a memória do período em que aqueles senhores detiveram o primeiro governo cristão do espaço algarvio. Aquelas passagens ou terão surgido durante o período em questão, entre 1263 e 1267; ou, se posteriormente àquelas datas, em evocação do mesmo período. Vamos analisá-las seguidamente. 2.1.1. O limite do espaço de Beja Na notícia de Beja existe a seguinte passagem: ‘E o thermo de Beja parte per o mar e per cima de todo o Algarve’6 Coloca o limite entre o espaço de Beja e o Algarve numa localização que não seria muito diferente da actual. Acontece, no entanto, que a notícia de Ocsónoba se inicia da seguinte forma: ‘[…] parte o termho de Lisboa con o termho d’Exubam[…]’7, passagem coincidentemente corroborada não apenas por Ibn Ghâlib e Yâqût8, mas também através de documentação cristã, concretamente, do texto do Tratado de Sahagún, realizado entre Sancho III de Castela e Fernando II de Leão9, onde são descritos pormenorizadamente os espaços do Gharb al-Andalus10. A partir daquelas fontes ficamos a saber que durante a administração islâmica, o espaço (kûra) de Beja era um espaço interior, não se estendendo até ao mar, pois os espaços de Lisboa e Ocsónoba, respectivamente, desciam e subiam ao longo da actual costa alentejana, isolando Beja no interior. Não é isso que encontramos na passagem referida inicialmente: o espaço 6

C1344, ed. Cintra, vol. II, p.65. Idem, p.67. 8 Cf. António REI, Memória de Espaços …, Parte II, Cap. 1., ‘Ocsónoba’ Reconstituição e Anotação Crítica. 9 Alexandre HERCULANO, História de Portugal, ed. José Mattoso, 4 vols., Lisboa, Bertrand, 1980, vol. 3, p. 532. 10 O texto do tratado, celebrado em 1158 por aqueles monarcas, após a morte de Afonso VII de Leão e Castela, que ocorrera no ano anterior (cf. Jean Delorme, Chronologie des Civilisations, p. 194) diz que Mértola, Cacela e Silves, com os territórios que correm ao longo da costa na direcção de Lisboa constituíam um reino [= kûra de Ocsónoba] (cf. História de Portugal – Alexandre Herculano, vol. 3, p. 532). O texto da matriz árabe da CMR e o texto do tratado são contemporâneos (v. A. Rei, Memória de Espaços…, Parte I, 3.1.6. IG) e confirmam-se entre si. 7

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de Beja já vai até ao mar, o espaço da antiga kûra de Ocsónoba retraíra-se com a conquista cristã, e naquele momento o limite entre Beja e o espaço algarvio seria a cordilheira montanhosa algarvia, como aliás hoje em dia. Esta passagem, identifica, e mais ou menos delimita, um espaço ainda não integrado no Reino de Portugal, e designado como ‘Algarve’, expressão romance que ainda hoje designa aquele mesmo espaço. Aquele ‘Algarve’ foi, coincidentemente, o palco onde estiveram, e a que pretenderam ficar para sempre ligados, os primeiros senhores cristãos, internacionalmente reconhecidos, daquelas paragens, os Aboim-Portel. A essa memória senhorial acresceria o facto de ter sido nesse mesmo espaço ‘algarvio’, talvez em Silves, possível capital da ‘tenência’, que teria sido encontrado o manuscrito árabe, cuja tradução para português nos rememora ainda hoje os Aboim / Portel. Assim, concluímos que se trata de uma interpolação romance, conotada com a memória senhorial daqueles magnates. Queremos ainda recordar que o espaço bejense, em que também estava incluída Évora, integrava também a zona onde se veio a constituir o extenso couto de Portel, que constituiu o núcleo principal dos bens do mesmo João Peres de Aboim. 2.1.2. As costas ‘alentejanas’ de Lisboa Na notícia de Lisboa há uma passagem que nos fala da existência de âmbar nas costas do espaço administrativo de Lisboa. Embora haja informações que nos falam de âmbar tanto nas costas a norte como a sul de Lisboa11, a passagem em causa apenas nos fala da costa sul. Comparemos a passagem em questão com a paralela de Ibn Ghâlib 12:

11

Sobre o âmbar nas costas atlânticas de al-Andalus, v. A. SIDARUS e A. REI, “Lisboa e seu Termo segundo os Geógrafos Árabes”, Arqueologia Medieval 7 (2001), p.69-70. 12 Também Yâqût tem passagem paralela, cf. Memória de Espaços…, Parte II, Cap.1, ‘Lisboa’ e ‘Ocsónoba’.

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C1344p ‘E, como vay a ribeira ataa cima do Algarve, podem achar muy bõo allambar, melhor que todollos outros, e nõ semelha o de Indya ante he doutra guysa feyto’

Ibn Ghâlib ‘Recolhe-se na costa de Lisboa muito âmbar raro e de superior qualidade. Sobrepõe-se a todos os outros âmbares, não se assemelhando senão ao âmbar da Índia’

No texto árabe não há qualquer referência ao ‘Algarve’. A expressão ‘Algarve’ poderá aqui designar: ou o espaço que foi disputado entre Portugal e Castela, e temporariamente governado pelos Aboim / Portel; ou o espaço de Ocsónoba, o qual extremava com o de Lisboa, junto ao litoral oeste. Optamos pela primeira hipótese, pelo facto de voltarmos a encontrar a expressão ‘Algarve’, que já surgira na notícia de Beja. Tratar-se-á portanto de mais uma interpolação, também esta relacionada com um espaço preciso, o do ‘Algarve’. Também o espaço de Lisboa (grosso modo a Estremadura) e Vale do Tejo estão relacionados com os Aboim / Portel, que aí tiveram o seu segundo núcleo mais importante de bens fundiários13. 2.1.3. A passagem truncada e ‘algarvia’ de Silves Na notícia de Ocsónoba não encontramos uma interpolação, mas sim o contrário: uma passagem do texto árabe foi truncada, e assim se obteve um outro significado. Vejamos a comparação das duas passagens, na C1344p (ed. Cintra) e em Ibn Ghâlib C1344p ‘Silve, que he a melhor villa do Algarve’

Ibn Ghâlib ‘Silves a qual é a metrópole do ocidente, não tendo os muçulmanos, a ocidente de Sevilha, outra que se lhe compare’

O texto árabe não é muito claro na utilização do termo ‘ocidente’ (al-gharb). Tanto pode relacionar-se com o ‘ocidente de al-Andalus’ (Gharb 13

Cf. A. REI, O Louvor da Hispânia…, Parte I, Cap. 4.

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al-Andalus); como com uma posição relativa, naquele caso relacionada com Sevilha, ‘no ocidente além de Sevilha’ (fî-l-gharb ba‘d Ishbîlya). A truncagem da notícia terá obedecido a vários factores: a) um primeiro, histórico: depois de 1257, data da conquista cristã de Niebla14, a ocidente de Sevilha, os muçulmanos já não detinham qualquer cidade. Assim, não iria o redactor veicular uma informação do período islâmico, sem qualquer interesse naquela nova conjuntura; b) um segundo, linguístico: a truncagem obstaria a que, se tivesse havido a tradução completa da passagem árabe, a mesma viesse a gerar incompreensões. Portanto, toda a parte relativa à situação geográfica de Silves, a ocidente de Sevilha, foi omitida, para que a expressão ‘o ocidente’ (al-gharb), passasse a significar ‘Algarve’, ou seja exactamente o espaço que então estava, ou recentemente estivera, em disputa entre Portugal e Castela, e do qual tinham sido detentores os senhores neo-godos de Aboim/Portel. A referência a Silves, pode ainda indicar-nos também que ali se estabeleceria o “tenens Algarbium”15 Pero Eanes, durante as suas estadias, a sul, entre 1263 e 67. A truncagem desta passagem, existente na fonte árabe de Ibn Ghâlib, ligamo-la, novamente, aos Aboim / Portel. Pode parecer tendenciosa esta análise das passagens, e a suposta ligação àqueles Senhores de Portel, apenas porque todas elas apresentam a expressão ‘Algarve’. Se num caso se trata da própria região, pelo que seria natural a utilização daquela expressão; nos outros dois, tratam-se de espaços com delimitações, naquele momento ou anteriormente, com o espaço ‘algarvio’, pelo que também se aceita a mesma utilização, sem serem necessários outros considerandos. Mas se a redacção da tradução fosse integral, e portanto imparcial, - por um lado não se encontrariam interpolações, como nos dois casos anteriores; nem omissões, como no presente caso; nem contradições, como no caso inicial em que a passagem interpolada contradiz o que surge no início da notícia de Ocsónoba; nem sequer encontraríamos a expressão ‘Algarve’, exclusivamente naquelas notícias em toda a Crónica (!) e 14

Afonso X conquista Niebla a Ibn Mahfûz naquela data (cf. História de Portugal – Alexandre Herculano, vol. 3, p.71 e 543-5). 15 Com aquele título Pero Eanes de Portel confirma em 1266 forais doados por Afonso III a várias povoações ‘algarvias’ – Silves (Fr. A. BRANDÃO, Monarquia Lusitana, Lisboa, INCM, 1974-1988, fl.224v), Faro Loulé e Tavira (Idem, fl.225v).

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significando concretamente aquele espaço; - e por outro, se a expressão ‘Algarve’ se constatasse em todos os espaços limítrofes da kûra de Ocsónoba, então como explicar que a mesma não apareça na notícia de Niebla, espaço situado a leste de Ocsónoba, e com o qual também confinava?16. Porque a lógica espacial que presidiu à tradução parece apontar realmente para a época do conflito, e Niebla e a sua região, não eram espaços em litígio. Desde a sua conquista que era um espaço claramente castelhano, nem tendo feito parte da ‘tenência do Algarve’ detida pelos de Portel, por isso não encontramos na sua notícia a expressão ‘Algarve’. Tratam-se portanto de alterações textuais, contemporâneas ou não da ‘tenência’ algarvia dos Aboim/Portel, mas que visavam, de forma claramente prestigiante, a vinculação das memórias senhoriais daqueles magnates àquele espaço, objectivo último e quase mítico da construção do reino de Portugal.

3. A TRADUÇÃO DO LIVRO DE RASIS No processo de composição da tradução portuguesa da matriz árabe do Livro de Rasis, propomos a consideração de uma elaboração feita ao longo de quatro períodos. Um primeiro, de 1263 a 1267, terá consistido, aos inícios de uma tradução integral, na obtenção do registo em linguagem de algumas informações do texto árabe relativas, provavelmente, à geografia do actual sul de Portugal, ou seja, o espaço privilegiado da actuação senhorial, política e diplomática de João de Aboim e de Frei Afonso Peres Farinha17. Como 16

Cf. Memória de Espaços…, Parte II, Cap.1, ‘Niebla’. Será talvez significativo que, de entre as urbes de todo o espaço português, nos textos historiográficos da CMR original, apenas Beja surja referida, e precisamente como uma cidade onde os godos não apenas resistiram à invasão islâmica, mas também de onde se iniciaram acções de reconquista (C1344p, ed. CINTRA, p. 3414). Ora localizando-se Portel entre os termos de Évora e Beja, os senhores de Aboim, poderiam então reivindicar a condição de fidalgos detentores de senhorios numa região associada à memória da resistência dos ‘velhos’ godos contra o Islão. Aliás, é a João Peres de Aboim e a Frei Afonso Peres Farinha, o Prior do Hospital, que uma lápide epigrafada por iniciativa deste último, atribui a suposta recuperação cristã de todo este território aos muçulmanos (José A. de FIGUEIREDO, Nova História da Militar Ordem de Malta e dos Senhores Grão Priores d’ella em Portugal, II, Lisboa, 1800, pp. 239-40; “Vera Cruz de Marmelar”, GEPB, 34, pp. 614-22, especialmente a 17

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sinais desse primeiro período de tradução restariam apenas as alterações romances detectadas, através de comparação com textos árabes de tradição raziana, nas já referidas notícias sobre Beja, Lisboa e Ocsónoba. Numa segunda fase, entre 1279 e 1281, ou seja da morte de Afonso III18 à de Frei Afonso Peres, é provável que tenha sido decidida a tradução integral do texto árabe, sendo a possível supervisão do círculo letrado do Prior do Hospital19. Coincidiria então com o período em que os dois fidalgos adquiriram uma grande preponderância na corte régia portuguesa, nela tendo desempenhado importantes funções de conselheiros e diplomatas da máxima confiança da coroa, tal como ocorreu quando após a morte do Bolonhês, em 1279, detiveram a poderosa posição de testamenteiros do falecido soberano20. p.618; Mário BARROCA, Epigrafia medieval portuguesa (862-1422)..., Lisboa, FCT/FCG, III vols., 1999, pp. 939 - 950), atribuindo-lhes feitos que, se em parte e para o segundo, podem ter alguma validade em relação a certas terras da margem esquerda do Guadiana, não se aplicam ao primeiro. 18 É provável que entre 1267 e 1279 se tenha suspendido a tradução. Afonso Peres Farinha esteve ausente do reino, entre 1268 e 1274, viajando pela Itália e pela Palestina, em tarefas politico-diplomáticas a que ainda se encontrava associado, e nos finais de 1277, visto então se documentar como representante de Afonso III junto de um legado do Vaticano em visita a Portugal (J.MATTOSO, “1096-1325...”, in História de Portugal – Mattoso (dir. J. Mattoso), vol.2, p.146). Por outro lado, se as absorventes ocupações do Prior decerto o afastariam de um hipotético contributo para a empresa da tradução da CMR, tanto ele como João de Aboim, ao serem fiéis e obrigados vassalos de Afonso III, dificilmente se empenhariam num projecto intelectual de engrandecimento das suas casas que ignorasse ou mesmo esbatesse as acções militares outrora protagonizadas pelo seu régio suserano na fase final da ‘reconquista’ portuguesa, o que já não sucederia se o fizessem após a respectiva morte, ou seja, a partir de 1279. 19 As canções trovadorescas atribuídas a João Peres de Aboim, nos cancioneiros medievais galaico-portugueses também permitem inseri-lo num círculo letrado dedicado à prática poética (António Resende de OLIVEIRA, Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e a recolha dos séculos XIII e XIV, Tese de Doutoramento, Fac. Letras, Univ. Clássica de Lisboa, 1992, policop., pp. 358-60; Idem, “A Cultura das Cortes –A Canção Trovadoresca”, in Nova História de Portugal (NHP)– Serrão & Marques, vol. III, pp. 675-81. Contudo, faltar-lhe-iam os contactos mantidos pelo Prior do Hospital com vários senhores e cortes muçulmanas, durante os largos anos que passou nas fronteiras entre a Cristandade e o Islão, para o igualar em competências letradas e até linguísticas no tocante ao árabe. 20 Frei António BRANDÃO, ML, P.IV, fls. 256v-257; António Caetano de SOUSA,

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Destes dois primeiros períodos apenas teriam subsistido alguns cadernos com traduções parciais, que depois poderiam haver sido incluídas, total ou parcialmente, no texto final, como terá sido o caso das já referidas omissões e interpolações presentes nas notícias sobre as cidades e os termos do sul de Portugal. Ainda em vida de João de Aboim, entre 1281 e 128721, teria prosseguido, talvez com alguns contratempos, a empresa da tradução integral da matriz árabe da CMR portuguesa. Sem que, na verdade, se possa saber ao certo se terá ou não sido completada a tradução neste terceiro período, o facto é que a versão definitiva do texto apenas terá surgido entre 1287 e cerca de 1315, uma vez que está associada textualmente ao patrocínio do segundo senhor de Portel, Pero Eanes, ao qual, como hipótese se poderá ter ficado a dever a organização da equipa de letrados que vêm mencionados no início da CMR, isto é o mestre Muhammad, na qualidade de leitor e o tabelião Giraldo Peres, como redactor 22. A explícita referência textual a uma tal equipa aproxima a elaboração da versão portuguesa da matriz árabe da CMR, ao modelo utilizado pelos círculos letrados patrocinados por Afonso X 23. Na parte final do reinado do ‘Rei Sábio’, a chamada fase sevilhana, o modelo já se encontrava consolidado, sendo as equipas de tradutores compostas por grupos de especialistas, os da língua a traduzir; e os daquela em que se ia registar a tradução24. Ora, é exactamente esse o modelo que encontramos na equipa que História Genealógica da Casa Real Portuguesa (HGCRP), Liv.I, p. 105 e Provas para a História Genealógica da Casa Real Portuguesa, T.I, Livs. I-II, pp. 69-73; L. VENTURA, A Nobreza de Corte de D. Afonso III, Tese de Doutoramento, Fac. Letras, Univ. de Coimbra, 1992, policop., p.571. António Resende de OLIVEIRA afirma, sem remeter para qualquer fonte ou estudo, que ambos os magnates teriam participado “na regência do reino após a morte de D. Afonso III” ( “A Cultura das Cortes”, in NHP, vol. III, p. 683, n.117). 21 João de Aboim terá morrido antes de Junho de 1287, data em que os filhos partilharam os seus bens (cf. L. VENTURA, A Nobreza de Corte..., vol. II, p.571). 22 Sobre muito recentes informações sobre o Redactor do Livro de Rasis, v. António REI, “O Redactor do Livro de Rasis ou Crónica do Mouro Rasis - subsídios para sua identificação”, in Actas da VII Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, SPEM, Alcobaça – Batalha - Porto de Mós,vol. II, pp. 269-276. 23 Sobre as ‘escolas afonsinas’, suas equipas de tradutores, e respectivas evoluções técnicas e metodologias de trabalho letrado, consulte-se o clássico estudo de Gonzalo MENÉNDEZ PIDAL, “Cómo Trabajaron las Escuelas Alfonsíes”, Nueva Revista de Filología Hispanica, V (1951), pp. 363-80. 24 Podendo a composição de cada um dos grupos, ou de ambos, ser reduzida a um

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traduziu a matriz árabe da CMR, por um lado, Muhammad Alarife ‘e os outros’ que liam o texto e o vertiam para o romance galaico-português, por outro, Giraldo Peres, o redactor dessa tradução. Porém, se a equipa responsável pela CMR apresenta claros paralelos com o modo ‘afonsino’ de traduzir obras árabes para romance, não se posiciona face ao texto obtido da mesma forma, já que na corte castelhana se seguia, ao trabalho de tradução, a comparação com obras paralelas, em ordem à sua compilação, total ou parcial, num mais geral empreendimento cronístico25. Na verdade, no caso português, essa segunda fase apenas teve lugar quando o genro de Pero Eanes de Portel, o conde Pedro Afonso de Barcelos utilizou o LR ou CMR numa narrativa mais vasta e abrangente, a sua C1344. Até lá, o texto traduzido sob o patrocínio dos de Aboim-Portel apenas sobreviveu por si próprio, fornecendo uma memória parcelar sobre o passado hispânico que, no entanto, cumpria a sua função, a de prestigiar e justificar os bens, poderes e valores estratégica e ideologicamente defendidos pelos senhores que a suscitaram. Em primeiro lugar, porque podia recordar, tanto para os de Aboim/Portel como para os Hospitalários, o valor histórico do espaço em que se situavam os seus mais prósperos senhorios. Na sua componente geográfica, a memória que a CMR transmitia acerca da riqueza e do poder das cidades e dos territórios existentes no passado islâmico, exaltava os senhores cristãos que supostamente haviam libertado, amparado e sacralizado todo esse espaço, o mesmo que tinha no senhorio de Portel, no Algarve onde os de Aboim exerceram tenência em nome dos reis de Portugal e Castela e no mosteiro de Marmelar, o santuário em que se exibia o Santo Lenho, os seus mais decisivos e simbólicos lugares. Em segundo lugar, porque a CMR era, em si mesma, um tesouro. Outrora supostamente elaborada por um dos mais célebres letrados das cortes do Islão hispânico, fora então apropriada, através da respectiva tradução, pelos único elemento: Idem, p. 366. 25 Sobre as metodologias compilatórias utilizadas nas ‘escolas afonsinas’, bem como a acção paralela e instrumental da fixação da história e do léxico para “salvar el recuerdo de las cosas en la memoria huidiza de los hombres”, v., respectivamente, Diego CATALÁN “El Taller Historiográfico Alfonsí. Métodos y Problemas en el Trabajo Compilatório”, in Idem, La Estoria de España de Alfonso X - creación y evolución, pp. 45-60; e Maria Nieves VILA RUBIO, “Léxico y Conciencia Histórica en Alfonso X”, Cahiers de Linguistique Hispanique Médiévale (CLHM) 23 (2000), pp.13-24.

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novos senhores. De facto, por ela, os de Aboim-Portel podiam, também, reivindicar-se legítimos herdeiros de um saber e de uma ciência, que tinha sido detida até então, pelos muçulmanos da Hispânia26.

4. A REFUNDIÇÃO LEGITIMADORA ALMÓADA Como dissemos atrás, o texto traduzido tratava-se de uma refundição, que ocorreu nos primórdios do poder almóada na Hispânia, no início da segunda metade do século XII; e foi seu artífice o letrado hispano-árabe, Muhammad ibn Ghâlib 27. Ibn Ghâlib foi um alto funcionário do aparelho estatal almóada, entre 1160 e 1175, sob as ordens directas de Abû Sa‘îd ‘Uthmân, um dos filhos de ‘Abd al-Mu’min, o primeiro monarca almóada. Abû Sa ‘îd ‘Uthmân foi também o mecenas da família, além de ser um dos irmãos mais próximos ao futuro monarca Abû Ya ‘qûb Yûsuf. Ibn Ghâlib terá começado por ser secretário de chancelaria (kâtib), antes de chegar a vizir (wazîr). Foi, portanto, um letrado claramente comprometido com o regime, e tal facto reflectiu-se também na sua vertente de historiador e de geógrafo. Terá sido encarregado pelo próprio poder, de organizar uma obra, aquela refundição obtida a partir das obras dos dois al-Razi e de al-Bakri, pelo menos, e que foi intitulada de Farhat al-anfus (A alegria das almas), e a qual deveria cumprir uma quádrupla função: - em primeiro lugar: procurar agilizar a administração do espaço peninsular ainda sob o domínio islâmico, através de uma sucinta e eficiente relação de factores importantes e estratégicos: a descrição de cada alfoz e da sua cidade capital; os seus principais povoados e fortalezas; os mais 26

Cf. Luís KRUS, “Historiografia”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, (dir. C. Moreira de AZEVEDO), Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 517-9. Sobre a componente cultural da ideologia da ‘Reconquista’, veja-se também Armando de Sousa PEREIRA, Representações da guerra na cultura letrada dos séculos XI-XIII, Tese de Mestrado Lisboa, FCSH-UNL, 2000. 27 IDEM, ibidem. Sobre Muhammad ibn Ghâlib, o letrado e o alto funcionário, no que até agora foi possível reunir sobre a sua vida e a sua obra, v. A. REI, “Ibn Ghâlib, vida e obra. Notas identificativas”, Arqueologia Medieval 10 (2008), Mértola/Porto, CAM/Afrontamento, pp. 41-49.

Antonio Rei

importantes itinerários e respectivas distâncias; as riquezas agrícolas, artesanais, comerciais e mineiras; - em segundo lugar: descrever os limites espaciais máximos que o poder emiral e califal Omíada tinham conseguido alcançar no espaço peninsular, funcionando aquela descrição como uma proposta programática de reconquista islâmica, para o novo poder almóada; - em terceiro lugar: ao reunir os aspectos anteriores, o de boa e justa governação à luz do Alcorão, com o da condução da guerra, fundiria os principais factores que, em conjunto, conduzem e desaguam na condição califal; - e em último: faria a legitimação do Califado almóada, que tivera um início não-ortodoxo à luz dos princípios islâmicos. O Califa é o sucessor do Profeta; mas no movimento almóada ‘Abd al-Mu’min tinha sido o sucessor do mahdî Ibn Tumart e não do Profeta. Assim, urgia dar uma imagem ortodoxa do próprio movimento. E a solução que se lhes deparou foi a de se apresentarem como os sucessores e continuadores dos Califas Omíadas de Córdova. Se reparamos nos laqab/s adoptados pelos califas Almóadas, perceberemos que o seu imaginário politico-ideologico teve a Córdova califal como referência. E desde o fim daquele califado, mais nenhum monarca em al-Andalus assumira tal título e condição. Este novo poder deveria estender-se, através da força armada, pelo menos, até aos confins do espaço que os mesmos Omíadas tinham dominado, até ao fatídico ano de 400; pois foi em relação a essa data que Ibn Ghâlib organizou a sua descrição espacial, apresentando a imagem de al-Andalus na apoteose ‘âmirî, quando o poder califal atingiu o seu auge, e no momento antes do cair do pano sobre esse período dourado, com a morte do último dos Banû ‘Âmir, a dinastia de hujjâb (primeiros-ministros) iniciada pelo famoso al-Mansûr. Na obra de Ibn Ghâlib a menção da riqueza das terras peninsulares, muitas das quais já então em mãos cristãs, servia não apenas para descrever um espaço passível de ser futuramente administrado, mas também, e talvez principalmente, como um incentivo à guerra pelas expectativas de futuras recompensas aos participantes na empresa guerreira. A imagem ‘daquele al-Andalus’, que claramente não era o do seu tempo, o qual era já então bastante mais reduzido espacialmente, confirma-nos o lado ideológico da descrição de Ibn Ghâlib: a imagem do espaço a reconquistar, importante argumento ‘andalusî’ e legitimador do novo califa.

A Crónica do Mouro Rassis: repositório do programa almóada de reconquista

De não menos importância, é o facto do paralelismo temporal entre a redacção da obra de Ibn Ghâlib e o processo de legitimação califal de Abû Ya‘qûb Yûsuf, que culminou no assumir oficial do título de Amîr alMu’minîn (Príncipe dos Crentes), ambos os factos acontecidos no ano de 563 / 1168. A simultaneidade dos dois processos não terá sido, portanto, apenas uma mera coincidência. Torna-se, portanto, fácil aquilatar a importância da obra de Ibn Ghâlib em todo aquele empreendimento de legitimação califal. A obra dividia-se, como já vimos atrás, em duas partes: uma parte introdutória de tipo geográfico, seguida de uma segunda parte, de carácter historiográfico. Enquanto a primeira descreveria o espaço sacralizado e sacralizador de al-Andalus, onde o espaço surge descrito, como em al-Razi, promovendo uma ‘sacralização islâmica’ do espaço hispânico: a descrição espacial começa por Córdova, o ‘centro do mundo’, a residência do Sucessor do Profeta, e continua em direcção a sudeste, ou seja segue pela direcção de Meca, pela qibla, e vai contornando a ‘Cidade do Califa’ no mesmo sentido em que o peregrino circunda a Ka‘ba. O périplo em causa termina regressando ao ponto de partida, ou seja à mesma cidade de Córdova, fechando o círculo sagrado28; a segunda deveria reter as memórias significativas da História peninsular, desde a Criação do ser humano até à época do próprio Ibn Ghâlib, ou seja até ao momento em que um novo califa, voltava a emergir nas terras do al-Andalus, para lhes devolver o esplendor das glórias antes alcançadas e que tinham atingido o seu auge no já referido ano 400 h. / 1009 d. C. Yûsuf procurava assim legitimar-se assim como califa “andalusî”, ao propor, como um projecto do seu governo, a ‘reconquista’ islâmica de al-Andalus, projecto esse, que a ser concretizado, o tornaria muito mais famoso do que Muhammad ibn Abî ‘Âmir, mais conhecido como al-Mansûr, já atrás referido, o último grande chefe militar do período omíada, que deixara uma memória aureolada de mito. Esta imagem de uma Hispânia sacralizada e sacralizadora acabou por ser também apropriada por alguma cronística cristã, tanto portuguesa como castelhana. Toda aquela em que a descrição espacial, remontando a Ibn Ghâlib, 28

Ainda sobre estas temáticas relativas à importância da “direcção sagrada” de Meca e da Ka’ba, a Mesquita-Centro do Mundo do Islão, v. o artigo de Alicia I. COSTA, Orar hacia la Ka'ba. Una mirada a la geografía "sagrada" del Islam, http://www.transoxiana.org/0103/kaaba, 11 pp.

Antonio Rei

entrou na cronística romance por via dos Senhores de Aboim - Portel e do conde D. Pedro de Barcelos.

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