Voltas pelo cancioneiro profano: questões sobre a poesia medieval

September 30, 2017 | Autor: M. Lopes Guimarães | Categoría: Historia Medieval, Literatura Portuguesa, Histoire Medievale
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GUIMARÃES, M. L. Voltas pelo cancioneiro profano: questões sobre a poesia medieval Questions about medieval poetry: Galician-Portuguese Canticles Marcella Lopes Guimarães Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professora adjunta da mesma instituição, membro do NEMED e Editora chefe da Revista Diálogos Mediterrânicos, Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

Resumo A intenção desse artigo é apreciar as maneiras pelas quais a poesia em galego-português evidenciou a circulação de temas literários e notícias no Medievo a partir da especificidade do gênero literário e dos modos de trovar dos poetas dos cancioneiros, entre o século XIII e a primeira metade do XIV.

Palavras-chave: Cantigas galego-portuguesas. Cancioneiros. Cantigas de seguir. Península Ibérica. Abstract The intention of this article is to assess the ways by which the poetry in Galician-Portuguese evidenced the circulation of literary themes and news in the Middle Ages from the specificity of the literary genre and of the modes of trovar of the poets of the songbooks, between the thirteenth century and the first half of the fourteenth. Keywords: Galician-Portuguese Canticles. Songbooks. Canticles of follow. Iberian Peninsula.

Prolegômenos Entre 1388-1389, o cronista de Valenciennes Jean Froissart (1337-1405) se dirigiu à corte do Conde de Foix, Gastão Febo, em Ortez, para se informar: “c’est le moment où le conflit franco-anglais s’est deplacé dans la péninsule ibérique et où la guerre se fait par Espagnols et Portugais interposés”1. Já era um cronista conhecido, servira à rainha da Inglaterra Filipa de Hainaut (esposa de Eduardo III) e portava uma carta de recomendação de seu senhor Guy de Blois para estar na corte do Prince Soleil a fim de recolher informações. O resultado está no Livro III, obra que marca uma viragem 1

ZINK, Michel. Froissart et le temps. Paris: PUF, 1998. p. 11.

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no sentido de uma maior participação do narrador na narrativa e dá sobejas informações sobre os conflitos dinásticos em Portugal e Castela2. As crônicas históricas, escritas no ocidente medieval entre os séculos XIII e XV, de um projeto universal à particularização, reportam eventos além do reino onde a escrita se realiza. Como a matéria principal desses textos tem relação com conflitos transterritoriais, a narrativa convoca uma série de elementos, sucessos, fracassos e decisões concernentes a um perímetro largo e culturalmente diverso. O exemplo de Froissart encontra eco nas crônicas do castelhano Pedro Lopez de Ayala (1332-1407) e do português Fernão Lopes (1385-1460). Mesmo a crônica biográfica senhorial, como o Victorial de Gutierre Díez de Games (séc. XV), haveria de reportar inúmeros acontecimentos além Pirineus, sobretudo em razão da própria atuação do protagonista, o cavaleiro castelhano Pero Niño (1378-1453). As fontes da cronística são diversas: missivas, testemunhos, outras crônicas, a experiência pessoal..., mediadas pelo narrador que deve trabalhar em equipe, ainda que esse procedimento não abale a unidade do texto. Todos os autores citados aqui, que escreveram entre os séculos XIV e XV farão opção pela prosa. Froissart renunciará à poesia em favor da prosa, quando resolver escrever História. Ele e Ayala são bons exemplos, pois ambos cultivaram o lírico e demarcaram a diferença do trabalho historiográfico com a mudança do gênero literário. Optaram deliberadamente pela prosa pela possibilidade que o gênero lhes abria, de construir uma mediação mais impessoal em relação à matéria narrada, em comparação com a poesia, que tem como elemento constitutivo um eu lírico. Fizeram essa opção em um contexto em que a poesia se enfraqueceu como expressão da vida cortesã. Mas antes de ela recuar em favor da prosa, é preciso lembrar que a expressão poética impulsionou a linguagem dos povos. Segundo T. S. Eliot,

O impulso concernente ao uso literário das linguagens dos povos começa com a poesia. E isso parece absolutamente natural quando percebemos que a poesia tem a ver fundamentalmente com a expressão do sentimento e da emoção; e esse sentimento e emoção são particulares (...) A emoção e o sentimento são, portanto, melhor expressos na língua comum do povo, isto é, na língua comum a todas as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o modo de falar de uma língua expressam a personalidade do povo que a utiliza 3

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GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais. Curitiba: Ed. UFPR, 2013. p. 132-140. 3 ELIOT, T. S. “A função social da poesia” in De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.30.

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Não por acaso as “certidões de nascimento” das línguas românicas são a sua poesia. E antes da prosa, a poesia exprimiu trânsitos culturais tão significativos quanto os reportados pelas crônicas medievais. A intenção desse artigo é apreciar as maneiras pelas quais a poesia evidenciou a circulação de temas e notícias a partir da especificidade do gênero literário e dos modos de trovar dos poetas do cancioneiro galego-português, entre o século XIII e a primeira metade do XIV.

A circulação do tema poético lírico Levantou-s'a velida, levantou-s'alva, e vai lavar camisas eno alto, vai-las lavar alva. Levantou-s'a louçana, levantou-s'alva, e vai lavar delgadas eno alto, vai-las lavar alva. [E] vai lavar camisas; levantou-s'alva, o vento lhas desvia eno alto, vai-las lavar alva. E vai lavar delgadas; levantou-s'alva, o vento lhas levava eno alto, vai-las lavar alva.

[Levou-s'a louçana], levou-s'a velida: vay lavar cabelos, na fontana fria. Leda dos amores, dos amores leda. [Levou-s'a a velida], levou-s'a louçana: vay lavar cabelos, na fria Fontana. Leda dos amores, dos amores leda. Vay lavar cabelos na fontana fria: passou seu amigo, que lhi ben queria. Leda dos amores, dos amores leda. Vay lavar cabelos, na fria fontana: passa seu amigo, que a muyt'amava. Leda dos amores, dos amores leda. Passa seu amigo, que lhi bem queria: o cervo do monte a áugua volvia. Leda dos amores, dos amores leda. Passa seu amigo que a muyt'amava: o cervo do monte volvia a áugua. Leda dos amores, dos amores leda.5 Pero Meogo

O vento lhas desvia; levantou-s'alva, meteu-s'[a] alva em ira eno alto, vai-las lavar alva. O vento lhas levava; levantou-s'alva, meteu-s'[a] alva em sanha eno alto, vai-las lavar alva.4

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Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 5 de maio de 2014] Disponível em: .

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D. Dinis

As duas cantigas galego-portuguesas são cantigas de amigo, subgênero alba, e foram escritas por trovadores que viveram no mesmo contexto histórico, o século XIII. Ambas foram compiladas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no da Vaticana. O rei de Portugal D. Dinis (1261-1325) investiu a expressão corrente da comunicação do reino em língua oficial, além de ter cultivado poeticamente essa língua. Sua obra manifesta um trânsito cultural consciente, pois além de revelar conhecimento, atualiza a recepção, caso das cantigas: “Proençaes soem mui bem trobar” e “Senhor fremosa e de mui loução”. Na primeira, diferencia a sua obra e o sofrimento que ela traduz, em comparação à obra e à sinceridade do trovar provençal. Na segunda, manifesta pleno conhecimento da literatura do norte da França6. Sobre Pero Meogo, trovador de quem sabemos pouco, Leodegário de Azevedo Filho acompanhando outros estudiosos afirmou que Meogo foi possivelmente um clérigo e teria vivido em Banga7. A base de dados desenvolvida no IEM/PT “Cantigas Medievais Galego-portuguesas”, Projeto Littera, refere conclusões de José António Souto Cabo sobre um clérigo de nome Petrus Moogus que teria vivido nos arredores de Compostela em um círculo que incluía outros trovadores8. Em Portugal ou na Galiza, o certo é que a leitura das duas cantigas aponta para um procedimento de glosa. Dadas as incertezas que cercam a biografia de Meogo, não é possível definir quem glosou quem, mas isso não importa para a evidente variação de um tema análogo. Do ponto de vista da expressão poética, a variação ilustra a circulação do tema entre Portugal e Galiza. Nos dois casos, a jovem se afasta da casa, para junto à fonte lavar ora as camisas, roupa da sua intimidade; ora seus cabelos, ícone da sua feminilidade. Ocupadas nesse ofício, encontram o elemento masculino, que em uma cantiga é o cervo e na outra é o vento. O certo é que em ambos os casos, trata-se do amigo e essa identificação é facilmente detectável a partir das imagens disponíveis nos 5

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. As Cantigas de Pero Meogo. Estabelecimento crítico dos textos, análise literária, glossário e reprodução facsimilar dos manuscritos. Rio de Janeiro: Edições Gernasa e Artes Gráficas Ltda. 1974. p. 59. 6 BOISSELLIER, Stéphane, DARBORD, Bernard et MENJOT, Denis. L’Atelier du médiéviste 12, Langues Médiévales ibériques. Domaines espagnol et portugais. Turnhout : Brepols, 2012. p.452. 7 AZEVEDO FILHO, Leodegário de. As cantigas de Pero Meogo. Estabelecimento crítico dos textos, análise literária, glossário e reprodução fac-similar dos manuscritos. Rio de Janeiro: Ed. Gernasa e Artes Gráficas Ltda. 1974. p. 18 e 19. 8 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 5 de maio de 2014] Disponível em: .

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cancioneiros medievais. Na cantiga de Pero Meogo, a diferença mais significativa é a expressão do estado de paixão, afinal a jovem vai “leda dos amores, dos amores leda”. Ressalte-se que, do ponto de vista fonético, as cantigas insistem nos mesmos fonemas /v/ e /l/, e essa aliteração também tem efeito evocativo, sobretudo levando-se em conta a performance. Também como glosa, podemos compreender as cantigas de João Zorro e Airas Nunes: Bailemos agora, por Deus, ai velidas, sô aquestas avelaneiras frolidas, e quem for velida, como nós velidas, se amigo amar, sô aquestas avelaneiras frolidas verrá bailar.

Bailemos nós já todas três, ai amigas, sô aquestas avelaneiras frolidas, e quem for velida, como nós, velidas, se amigo amar, sô aquestas avelaneiras frolidas verrá bailar.

Bailemos agora, por Deus, ai loadas, sô aquestas avelaneiras granadas, e quem for loada, como nós loadas, se amigo amar, sô aquestas avelaneiras granadas verrá bailar.9

Bailemos nós já todas três, ai irmanas, sô aqueste ramo destas avelanas, e quem for louçana, como nós, louçanas, se amigo amar, sô aqueste ramo destas avelanas verrá bailar.

João Zorro

Por Deus, ai amigas, mentr'al nom fazemos sô aqueste ramo frolido bailemos, e quem bem parecer, como nós parecemos, se amigo amar, sô aqueste ramo, sol que nós bailemos, verrá bailar.10 Airas Nunes

Sabe-se mais sobre Airas Nunes que sobre João Zorro. O primeiro ligado à corte de Castela e o segundo, talvez a Portugal, dadas às referências poéticas a Lisboa. É possível que também tenham vivido no mesmo contexto histórico. Como nas cantigas de D. Dinis e Pero Meogo, a glosa se faz no gênero da cantiga de amigo, mas desta vez no subgênero bailada e, embora os cancioneiros em que as suas cantigas foram compiladas (Biblioteca Nacional e Vaticana) não refiram explicitamente a categoria de cantiga de seguir para o caso de Nunes ou Zorro, é bastante plausível percebê-las dentro da categoria abordada no IX Capítulo da “Arte de Trovar”: Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou 9

Idem. Idem.

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em p[alav]ras ou em todo. E este seguir se pode fazer em três maneiras. A ũa, filha[m]-se o som doutra cantiga e fazem-lhe outras palavras tam iguaes come as outras, pera poder e[m] elas caber aquel som mesmo. E este seguir é de meos em sabedoria, porque [nom] toma nada das palavras da cantiga que segue. Outra maneira i há de seguir a que chamam palavra por palavra, e [é] porque convém, o que e[m] esta maneira quiser seguir, que faça a cantiga nas rimas da outra cantiga que segue, e sejam iguaes e de tantas silabas ũas come as outras, pera poderem caber em aquele som mesmo. E outra maneira i há de seguir em que nom segue[m todas] as palavras, [mais ũas] fazem-nas das outras rimas, iguaes daquelas, pera poderem caber em aquel som mesmo; mais outra[s] daquela cantiga que seguem as devem de tomar ou trameter, [e] fazerem-lhe dar aquel entendimento mesmo per outra maneira. E pera maior sabedoria pode[m]-lhe dar aquel [refram] mesmo, em outro entendimento, per aquelas palavras mesmas; assi é a melhor maneira de seguir, porque dá ao refram outro entendimento per aquelas palavras mesmas, e tragem as palavras da cobra a concordarem com el.11

Além de versos praticamente iguais, que seguem a sonoridade, com repetição dos mesmos fonemas /b/, /l/, /v/ e /m/, uma delas segue o refrão. Do ponto de vista semântico, em ambas sobressai a cena da reunião de jovens sobre a aveleira em flor, ou seja, da árvore antes da época dos frutos (quase um semestre depois). As imagens poéticas se nutrem da experiência e, portanto, há diferença entre convocar uma avelaneira em flor e uma já repleta de seus frutos. As jovens que dançam ao abrigo desse arbusto buscam a sua companhia em sintonia com o estado da natura, um estado de espera. Não por acaso é o fruto – a avelã – que ocupa um espaço em ritos matrimoniais12. Novamente, não interessa demarcar o primeiro “autor” da cena, mas o trânsito poético, que promove a circulação do tema, a partir da ideia de seguir.

As sequências e contestações no cancioneiro satírico En Arouca ũa casa faria; atant'ei gran sabor de a fazer que já mais custa non recearia nen ar daria ren por meu aver, ca ei pedreiros e pedra e cal; e desta casa non mi míngua al se nom madeira nova, que queria.

Don Afonso López de Baian quer fazer sa casa, se el pod' aver madeira nova; e, se mi creer, fará bon siso: tanto que ouver madeira, logo punh' ena cobrir, o fundamento ben alt'; e guarir pod'o lavor per i, se o fezer.

E quen mi a desse, sempr'o serviria, ca mi faria i mui gran prazer, de mi fazer madeira nova aver, en que lavrass'ũa peça do dia, e pois ir logo a casa madeirar

E, quand'el a madeira adusser, guarde-a ben e faça-a jazer en logar que non chôvia, ca torcers'-ia mui tost', e non ar á mester; e, se o lavor non quer escarnir,

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Idem. Chevalier, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (15ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. 12

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e telhá-la; e pois que a telhar, dormir en'ela de noit'e de dia.

abra-lh'o fundament'alt'; e ferir, e muito batê-lo, quanto poder.

E, meus amigos, par Santa Maria, se madeira nova podess' aver, logu' esta casa iria fazer e cobri-la e descobri-la-ia, e revolvê-la, se fosse mester; e se mi a mi a abadessa der madeira nova, esto lhi faria.13

E pois o fundamento aberto for alt'e ben batudo, pode lavrar en salvo sobr'el; e, pois s'acabar, estará da madeira sen pavor; e do que diz que a revolverá, ant'esto faça, senon matar-s'-á, ca est'é o começo do lavor.

Afonso Lopes de Baião

E Dom Afonso pois há tal sabor de fazer bõa casa, começar a dev[el] assi; e des i folgar e jazer quand'e quand’, u mester for descobri-la e cobri-la poderá e revolvê-la, ca todo sofrerá a madeira, e seerá-lhi en melhor. E Don Afonso tod'esto fará que lh'eu conselho; se non, perder-s'-á esta casa per mao lavrador.14 Paio Gomes Charinho

Afonso Lopes de Baião é um trovador que pratica a poesia em contexto anterior ao círculo poético de D. Dinis. Foi mesmo casado com a sobrinha de outro trovador15. Sua família foi referida no Nobiliário do Conde D. Pedro e essa preeminência colabora para o rastreamento de sua atuação no contexto histórico. Sobre o mosteiro de Arouca onde o eu lírico buscaria “madeira nova”, costuma-se aludir à sua má fama, mas também foi espaço de refúgio de algumas damas de alta linhagem, cujas famílias talvez estivessem implicadas nas disputas entre Sancho II de Portugal e seu irmão, o futuro Afonso III16. O certo é que, ignorada a má reputação da abadia e a resposta do trovador Paio Gomes Charinho, a cantiga de Baião seria de difícil classificação, pois a leitura literal restringiria o sentido para o desejo de um homem de montar casa, tendo quase todas as condições materiais para fazê-lo, excetuando a “madeira nova”. Entretanto, a poesia medieval vive de “palavras encuberbas” e jogos de contrários, como tanto a

CANTIGAS D’ESCÁRNIO E DE MAL DIZER dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Ed. crítica e vocabulário do Prof. Manuel Rodrigues Lapa. Porto: Edições ASA, 1998. p.57. 14 Idem, p. 199. 15 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 6 de maio de 2014] Disponível em: . 16 Idem. 13

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“Arte de Trovar” quanto a II Partida de Afonso X (1221-1284) comprovam17. Portanto, todas as associações, dados do contexto e pontos de vista devem ser levados em consideração para promover a compreensão da sátira. Assim, tendo todas as condições para construir uma casa, o eu poético dirige-se justamente à má afamada vila de Arouca para fixar-se e requisitar à abadessa o que lhe falta, “madeira nova”, ou seja, uma jovem mulher18. A glosa de Paio Gomes Charinho reforça os bons requisitos elencados na primeira cantiga, personificando o projeto de construção da casa na biografia do autor: “Don Afonso López de Baian quer/ fazer sa casa”. Mas a resposta do trovador ainda merece acrescentamento. Charinho e Baião teriam participado da conquista de Sevilha, em 1248, mas seguiram rumos diferentes. Baião em Portugal, e Charinho em Castela, onde seria mesmo nomeado Almirante. A experiência do mar alimenta a sua poesia lírica e satírica. Assim, trilhando rumos diferentes, a glosa da cantiga de Baião manifesta a continuidade da tertúlia como passatempo cortês19, sendo desnecessária a presença dos envolvidos no mesmo espaço de atuação. Ora a própria vocação extraterriorial20 da nobreza peninsular tornava a todos em alguma medida conhecidos de todos. O cancioneiro satírico é fecundo nessas glosas e réplicas. E a maneira reiterada como alguns personagens são detratados faz supor que essas sequências e seguires poderiam ser muito mais fecundos que a reunião quinhentista dos cancioneiros mais completos conseguiu levar a cabo. Assim, Álvaro Rodrigues teria levado a mal, teria rido confiante no jogo escarninho dos contrários ou ainda teria respondido às provocações de Estevão da Guarda, quando este escarnece do apreço do protagonista pelo seu jovem mouro21? Se as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda dão boa pista a

Sobre a análise do “jugar de palavras” no cancioneiro satírico: SODRÉ, Paulo Roberto. O Riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa. Vitória: EDUFES, 2010. 18 Conferir a obs. da pág. 76 de BARROS, José D’Assunção. “Os trovadores ibéricos e as tensões sociais: enfrentamentos internobiliárquicos (séculos XIII e XIV)” in Revista Signótica v. 23, n.1, 2011. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/view/16146 (acesso em 6 de maio de 2014). 19 SODRÉ, Paulo Roberto. “O nome de donas e soldadeiras nas cantigas satíricas de Afonso X” in Revista Convergência Lusíada 27, janeiro-junho 2012. p.84. Disponível em: http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1161.pdf (acesso em 6 de maio de 2014) 20 Sobre isso, conferir a argumentação de FERNANDES, Fátima Regina. “A nobreza, o rei e a fronteira peninsular” in En la España Medieval, 2005, 28, p.155-176. Disponível em: http://revistas.ucm.es/index.php/ELEM/article/viewFile/ELEM0505110155A/21845 (acesso em 6 de maio de 2014). 21 Alvar Rodríguiz dá preço d'esforço a est'infante mouro pastorinho e diz que, pero parece menin[h]o, que parar-se quer a tod'alvoroço; 17

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respeito da importância hierarquicamente superior da performance em relação aos conflitos e situações de cada cantiga no século XIII, as preferências de Álvaro Rodrigues cantadas aos quatro cantos pelos jograis até poderiam ter despertado um desejo de resposta que não sobreviveu... O que dizer da “questão da ama” de que participam vários trovadores a partir da célebre cantiga de amor de João Soares Coelho22? De João Garcia de Guilhade e as reprovações à felicidade conjugal do jogral Martim, ou seria este um jogo de contrários? Das tenções? Das alusões à covardia entre cavaleiros? Dos remoques aos reis? Enfim, há sobejos exemplos em que uma série de elementos da vida e da sociabilidade cortesã estão na berlinda23 ao sabor da extraterritorialidade também de trovadores e jograis. Segundo José D’Assunção Barros, Entre algumas singularidades do trovadorismo galego-português – destaca-se o fato de que os meios trovadorescos ibéricos do século XIII eram ambientes excepcionalmente abertos à crítica social, política e pessoal. Isso porque o discurso poético-satírico ou travestido através do humor permitia que muita coisa podia ser dita por meio das canções trovadorescas, o que incluía críticas sociais e políticas de todos os tipos. Nem mesmo o rei, que abria generosamente o seu Paço para os espetáculos e saraus trovadorescos, escapou de algumas críticas bem-humoradas que ficaram registradas nas páginas desta poesia. Também a Religião e a Igreja foram amplamente criticadas por alguns poetas satíricos, por intermédio de depreciações dos dignitários eclesiásticos, de críticas às vezes ácidas à Igreja, ou de eventuais questionamentos em relação à própria religiosidade tradicional em si mesma. Por fim, a arena social dos trovadores ibéricos dava-se de maneira tal que todas as classes e grupos sociais podiam se criticar reciprocamente com relativa liberdade.24

O caso das cantigas de seguir Na base de dados “Cantigas Medievais Galego-portuguesas” desenvolvido no IEM/PT, apenas 3 cantigas são classificadas como de seguir: duas do trovador português João de Gaia e uma do galego Lopo Dias. A obra do trovador Gaia floresce na última etapa do cultivo da poesia medieval em galego-português. A sua vida e maestr'Ali, que vejas prazer, d'Álvar Rodriguiz punha de saber se fode já este mouro tan moço. 1ª estrofe de um dos escárnios dirigidos a Álvaro Rodrigues. CANTIGAS D’ESCÁRNIO E DE MAL DIZER dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Ed. crítica e vocabulário do Prof. Manuel Rodrigues Lapa. Porto: Edições ASA, 1998. p.90. 22 Cantiga: “Atal vej'eu aqui ama chamada”. 23 Evoco o título de Paulo Sodré: Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes Torneol (São Paulo: Ibis, 1998). 24 BARROS, José D’Assunção. “Os trovadores ibéricos e as tensões sociais: enfrentamentos internobiliárquicos (séculos XIII e XIV)” Op. Cit., p. 66.

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transcorre entre o reinado do rei trovador e o do Bravo, colaborador do Salado (1340). Muitas coisas podem ser afirmadas sobre Afonso IV de Portugal, mas não que se dedicara à poesia. No caso de Lopo Dias, sobram dúvidas, mas há grande possibilidade de a sua poesia ser da fase inicial do trovadorismo português. O seguir da cantiga “Em este som de negrada” se remete, a partir da primeira palavra, ou seja, do primeiro verso, ao som25. O Cancioneiro da Biblioteca Nacional atribui a João de Gaia três cantigas satíricas. Assunção de Barros26 aborda as transformações sociais e econômicas que estariam na origem da sátira não pertencente à categoria de seguir a um cavaleiro (não nominado) que trocara de senhor 3 vezes em 6 meses. Pode-se acrescentar, porém, que a divisão do reino motivada pela disputa do infante contra o pai dificilmente colaborava para o fablar en gasaiado27, sobretudo se o herdeiro não cultivava a poesia. Nesse sentido, o conde de Barcelos Pedro Afonso, filho bastardo de Dinis e irmão do ciumento príncipe, é um letrado que sintetiza as mudanças culturais do contexto, ao ainda praticar a poesia28, mas já dirigir projetos que haveriam de plantar a crônica em Portugal, como a redação da Crónica de 1344. As cantigas de seguir de João de Gaia são amparadas por rubricas bem detalhadas. Ora, a singularidade desse exercício poético, aliado ao conhecimento das circunstâncias do seguir e ao caráter tardio da sua obra, em relação aos momentos mais fecundos do trovadorismo galego-português, fazem supor que suas sátiras conheceram prestígio no contexto. O primeiro seguir que examinamos é o que tem como alvo um Bispo de Viseu: Rubrica: Esta cantiga foi seguida per ũa bailada que diz: "Vós havede'los olhos verdes e matarm'-edes com eles." E foi feita a um bispo de Viseu, natural d'Aragom, que era tam cárdeo Na base de dados “Cantigas Medievais Galego-portuguesas”, comenta-se que “A forma desta cantiga foi interpretada por Manuel Pedro Ferreira como sendo similar à do zajal árabo-andaluz”. Essa interpretação é alusiva ao seguir mourisco a que o trovador se refere. Por palavra e cobra, refiro-me ao verso e à estrofe respectivamente, como se estabelece na “Arte de Trobar”. 26 Idem, p. 81. 27 “Momento de gozar alegremente o convívio cortesão” in SODRÉ, Paulo Roberto. O Riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa. Vitória: EDUFES, 2010. P.48. 28 Evoco a reflexão de Graça Videira Lopes sobre a sinceridade no cancioneiro galego-português e em particular na poesia do conte: LOPES, Graça V. E DIZEM ELES QUE É COM AMOR. Fingimento e sinceridade na poesia profana galego-portuguesa. Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/sinceridade.pdf (acesso em 12 de maio de 2014). 25

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com[o] cada ũa destas cousas que conta em esta cantiga ou mais e apoinham-lhe que se pagava do vinho.

Eu convidei um prelado a jantar, se bem me venha. Diz el em est': - E meus narizes de color de berengenha? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! - O jantar está guisado e, por Deus, amigo, trei-nos. Diz el em est': - E meus narizes color de figos sofeinos? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! - Comede mig'e dirám-nos cantares de Martim Moxa. Diz el em est': - E meus narizes color d'escarlata roxa? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! - Comede mig'e dar-vos-ei ũa gorda garça parda. Diz el em est': - E meus narizes color de rosa bastarda? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! - Comede mig'e dar-vos-ei temporão figo maduro. Diz el em est': - E meus narizes color de morec'escuro? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! - Treides mig'e comeredes muitas boas assaduras. Diz el em est': - E meus narizes color de moras maduras? Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles!29

Como esclarecido na rubrica, a cantiga segue um verso parodiado no refrão. Ao trocar “olhos” por “alhos”, o trovador talvez saia do ambiente lírico, de um possível elogio aos olhos verdes, que Camões continuaria a fazer 2 séculos depois, para inserir seu protagonista em uma cena de excessos em que os “alhos verdes” colaborariam para aguçar a vontade de beber do protagonista. A cantiga lança mão de uma série de imagens colhidas à natureza, à especificidade de gostos e hábitos alimentares radicados no reino português: “figos sofeinos”, “gorda garça parda”, “moresc’ escuro” e as “moras maduras”. A prova da sua pertinência e singularidade é consolidada pela necessidade da compreensão dos elementos isolados que, entretanto, associados de forma poéticosatírica, propiciam a burla. Ora, só ri da piada quem a entende. O trovador deve recorrer a um repertório comum para elaborar seus jogos verbais. A cantiga também encena uma tenção, afinal são dois os personagens que falam: o eu poético e o prelado convidado a jantar. Na cena, o clérigo tem direito a mais 29

Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 6 de maio de 2014] Disponível em: .

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expressão: a segunda palavra de cada cobra e o refrão. O eu promete um lauto banquete e o clérigo, talvez desconfiado da burla, interpõe dificuldades. O tamanho da cantiga, manifesto em suas voltas, reforça a réplica que ganha graça com as propostas e respostas de ambos os lados. O eu não dirige remoques, é só o autor do convite e da insistência; o trovador caçoa da aparência do prelado colocando na boca deste os detalhes físicos burlescos. A rubrica afirma que o prelado era “cardeo”, ou seja, tinha aparência arroxeada30, e apreciava bastante o vinho... Mas quem seria? Segundo a base de dados que vimos utilizando, elaborada por pesquisadores do IEM/PT, esse prelado poderia ser Miguel Vivas, confessor da rainha santa Isabel. Teria atuado de forma destacada no reinado do herdeiro Afonso IV, inclusive junto à Chancelaria. A se confirmar a vinculação do personagem à cantiga de Gaia é possível duvidar da leitura literal e investir todas as fichas no sentido promovido pelo jugar de palavras. Entretanto, sendo o alvo Miguel Vivas ou não, ou sendo o prelado em questão amante do vinho ou não, o certo é que a cantiga manifesta um trânsito de informação e investe na paródia como leitura e prolongamento do tema. Aliás, a cantiga aponta para pelo menos 3 desdobramentos da circulação da informação: a bailada que motivou o seguir, a realização de Gaia e a possibilidade de um novo seguir, tenção ou glosa do trovador Martim Moxa, referido explicitamente na 2ª cobra. A segunda cantiga de seguir de Gaia possui rubricas mais robustas que a própria composição: Rubrica: Rubrica anterior: Diz ũa cantiga de vilãao: "A pee d'ũa torre, baila corpo probo. Vedes o cós, ai cavaleiro!". E Joam de [...] Rubrica posterior: Esta cantiga seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos, que diz a refrom: "Vedes lo cós, ai, cavaleiro!" E feze-a a um vilãao que foi alfaiate do bispo Dom Domingos Jardo de Lixbõa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant'el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de Sam Nicolao e chamarom-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.

Vosso pai na rua 30

Idem.

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ant'a porta sua: vede'lo cós, ai cavaleiro! Ant'a sa pousada, em saia 'pertada: vede'lo cós, ai cavaleiro! Em meio da praça, em saia de baraça: vede'lo cós, ai cavaleiro!31

A rubrica faz referência a um gênero de cantigas previsto na “Arte de Trovar”, que, entretanto, só tem esse apontamento para provar sua existência, trata-se da cantiga de vilão. Segundo o capítulo VIII da arte poética, em si pouco legível: Outrossi outras cantigas fazem os trobadores, a que chamam de vilãas. Estas cantigas […] sem mao lengua[ge], nam som per al erradas (?), per que as nom escarniom i. Como outras cantigas, pode[m-n]as fazer de quantos talhos [quiserem].32

A única coisa que podemos afirmar com segurança é a possibilidade concreta de vilãos também trovarem, aliás, em defesa do seu trovar a uma ama, João Soares Coelho desafiou seus detratores: E o vilão que trobar souber que trob'e chame "senhor" sa molher, e haverá cada um o seu dereito.33

Ou seja, para trovar, era preciso apenas saber fazê-lo. As cantigas de vilão não foram compiladas nos cancioneiros da poesia medieval em galego-português que conhecemos. Porém, a rubrica atesta sua existência e mais: o trânsito de motivos poéticos entre a rua e o paço. João de Gaia segue a cantiga de vilão aproveitando-se de parte do que parece ser o seu refrão. A segunda rubrica esclarece o sucedido: um alfaiate feito cavaleiro em resposta a um pedido do bispo de Lisboa. Com isso, até muda de nome. O acontecimento e o remoque revelam a possibilidade de mobilidade social e a reação jocosa do segmento social “inchado”, o dos cavaleiros. É bastante irônico pensar que Gaia também se beneficiara da mediação do mesmo rei D. Dinis para a sua legitimação34. Essa ironia não seria inapreensível em seu contexto...

31

Idem. Idem. 33 Idem. 34 Idem. 32

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Excluindo-se o refrão, porém, a cantiga só reporta as circunstâncias de exercício de um ofício: o de alfaiate. Ele confecciona e conserta roupas em frente à sua casa, diante ou no meio da praça. É o refrão (seguido da cantiga de vilão) que promove a sátira na medida em que aproxima mundos que, pelo menos nos textos que tentavam compreendê-los, apareciam separados. Nascida na rua, as cantiga migra para o paço para reportar de forma jocosa uma alteração social promovida pelo rei! Mas não ri do rei, ri de quem, mesmo mudado, não pode esconder a própria origem. O caráter lúdico da poesia colabora para a possibilidade de uma crítica que toca a sensibilidade do público. Remoques, devoção, o amor e o sofrimento, de cantigas satíricas, religiosas, de amor e de amigo, na Idade Média eram indissociáveis da arte que, dentre as sete artes liberais, era a mais perfeita, a música. Ora nenhuma circunstância promovia mais a circulação de temas poéticos e notícias que a performance que incluía essa “suprême expression de la joie divine et humaine”35.

Considerações finais As cortes medievais colmataram uma sociabilidade repleta de nuances. A poesia era um elemento constitutivo dessa vida cortesã e foi incluída entre as preocupações legislativas de Afonso X, que sugeriu regras para o fablar en gasaiado. A preocupação do rei é realçada, quando evocamos a sua prática poética plural. A leitura dos cancioneiros descortina uma série de relações entre os trovadores – desde os temas poéticos, como nas cantigas do rei Dinis, de Meogo, Zorro e Airas Nunes, até as tenções, remoques, glosas e seguires de Baião e Charinho, Álvaro Rodrigues, João Soares Coelho e tantos outros, cujas referências conhecemos ou se perderam. Mas um aspecto foi realçado em particular neste artigo: a circulação da informação nos cantares de seguir. Como sugeri, é possível que a categoria cubra mais cantigas que os apontamentos quinhentistas tenham definido, ou seja, que sejam mais numerosos que os casos de Lopo Dias e João de Gaia, vide a correspondência da regra aos casos de João Zorro e Airas Nunes. O exame dos seguires de Gaia, beneficiados pelas rubricas dos cancioneiros, revelou um curioso caminho que incluía a incorporação poética do tema da rua pelo trovador cortesão. Sugere ainda que a cantiga de vilão foi praticada, apenas não

35

LE GOFF, Jacques. Un Moyen Âge en images. Paris : Hazan, 2007. p. 283.

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prestigiada o suficiente para figurar nos cancioneiros quinhentistas. O trovador teve mais “pejo” de cantar a turbação social resultante de um filho de alfaiate que vira cavaleiro que fazer uso de um segmento da cantiga de vilão em seu cantar. No caso da cantiga que tem como alvo o prelado, o seguir é reenquadrado na paródia e pode se beneficiar do jugar de palavras. Ora, mesmo transformado, o verso “primeiro” não é perdido, o que supõe que as versões conviveram a ponto de ser possível evocá-las na composição dos cancioneiros. A poesia oferece um alargamento do entendimento da relação entre as fontes de informação no medievo. As crônicas compilam documentos sem pudor, pois esse modo de proceder confere autoridade ao texto, mesmo quando se trata de confrontar as fontes36. A poesia é mais sinuosa no trato documental e essa qualidade ilumina vias de comunicação – como as da rua para o paço – mais plurais e inusitadas, a partir de repertórios comuns. Aliada à música e realizada de forma performativa, seu potencial comunicativo era maior que o da prosa e se escudava na arte divina e humana, como postulou Le Goff, para afirmar nas barbas do rei paixões por damas conhecidas e mais subversivamente “E o vilão que trobar souber que trob'e”!

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36

Conferir a discussão da relação de Fernão Lopes com o texto de Pero Lopez de Ayala em GUIMARÃES, Marcella Lopes. “O subtexto do Chanceler Pero Lopez de Ayala na Crônica de D. João I de Fernão Lopes referente ao biênio de 1383-1384: autoridade e desafio.” In Scripta Mediaevalia, v.2, p.107 - 126, 2009.

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Data de recebimento e aprovação Recebido: 21/07/2014 Received: 21/07/2014 Aprovado: 16/10/2014 Approved: 16/10/2014

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