Textos mutantes

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Descripción

Textos mutantes
Formei-me em jornalismo no final da década de 80. Desde então muito mudou. Vários colegas meus fizeram carreira, outros embarcaram em outras, muitos sumiram. Eu continuei no jornalismo, sem tanto sucesso, entrando porém em outras searas, como o teatro.
Lembro-me de que nos anos 80 os computadores ainda eram configurados manualmente. A internet era algo tão incipiente que parecia coisa de especialistas. Quando a onda informatizante estourou, caí de boca. Tenho (ainda) uns 5 micros desmontados em casa (não sei por quê). Aprendi bastante, mas nem tanto, sobre muitos campos correlatos.
De forma geral, os textos passaram por modificações profundas desde então. Houve a época em que quase todos diziam que textos longos não teriam futuro na internet. Passaram-se vários anos e muitos passaram a defender o contrário. Houve quem defendesse as animações (no antigo Flash). Houve quem privilegiasse os mecanismos de busca e o SEO (Search Engine Optimization). Muitos continuaram escrevendo.
Hoje os portais de notícias funcionam de forma sinérgica com os jornais impressos, com meios eletrônicos os mais diversos, com formas síncronas e assíncronas de disseminar informações. Os equipamentos evoluíram tanto que hoje qualquer um pode divulgar notícias de alto nível conteudístico (texto e/ou imagem) sem grande esforço tecnológico (mas grande investimento pessoal, sempre).
Mas, e os textos?
Vemos os portais de notícias e eles geralmente reproduzem textos que saem nos jornais e/ou revistas. Muitas vezes os textos na web apenas servem como tentativa de viabilizar – economicamente também – iniciativas que se sustentam em meios tradicionais (artigos, colunas, etc.). Os textos costumam ser praticamente idênticos aos do passado. Há exceções, como os links para textos de blogs. Mas mesmo estes mantêm parâmetros bem determinados – salvo raras exceções. Dificilmente somos capturados por textos que nos desafiam – que saem do paradigma do jornalismo norte-americano de praxe.
Os textos da Obvious tentam, embora de leve, sair um pouco desse estigma. Há de tudo neste site. Só não parece haver – ainda não achei – espaço para poesia ou academicismo puro. Talvez porque não cole, não "venda" ou simplesmente não seja permitido. Não importa.
Escrevo há mais de um mês. Fiz aqui desde textos temáticos conectando fontes diversas (retiradas do cinema, das artes plásticas e da literatura) até resenhas sobre espetáculos (fazendo a mesma coisa, ou seja, conexões com outras artes) e "viagens" por meio de livres associações a partir de poesias e poemas em prosa. Fiz até – o texto sobre Feridas – uma viagem sinestésica pessoal que depois completei com um contraponto de ordem jornalística.
Fui questionado quanto ao rigor usado nas minhas "viagens" por meio de livres associações. Não há problema nisso. Quem as lê pode achar que realmente não faço uso de rigor ao explanar determinados assuntos. Pode até ter razão. Chega-se até a questionar se textos como esses mereceriam estar na Obvious.
Recentemente, publiquei – também na Obvious – um texto sobre o anacronismo – a meu ver –de se separar de forma definitiva os mundos acadêmico e não-acadêmico a partir dos textos de cada um desses mundos. Sugiro nesse texto que aproximando ambos mundos pode-se ganhar mais, em qualquer aspecto, do que simplesmente deixando que eles se ignorem mutuamente. Não tive qualquer resposta significativa a respeito – embora o texto esteja sendo razoavelmente lido.
Sou formado em jornalismo e filosofia, ambos cursos com ranço no passado. Embora tenha conhecimentos de marketing e informática, meu perfil é bem claro: sou das áreas humanas. Isso como que me coloca necessariamente do lado dos saudosistas, daqueles que não estão tão antenados com as novas tecnologias. Daqueles que acreditam naquilo que se provou parece não fazer mais qualquer diferença no mundo prático. Afinal, quem assiste palestras de filósofos? Pretendentes a. E de jornalistas? O mesmo. E de economistas? Quem se preocupa com o mundo real. E de informática? Quem busca tendências para ganhar dinheiro. Pareço ser fadado a ser considerado um anacrônico.
Mas é justamente esse ar de anacronismo que me dá engulhos. Porque sei que o que acontece pode ser interpretado de forma diferenciada e que qualquer nova interpretação pode dar margem a mudanças em outras áreas de conhecimento. A noção de paradigma surgiu na filosofia da ciência (Thomas Kuhn). Hoje atinge todo mundo. A noção de vontade geral surgiu na filosofia política (Rousseau). E mundo o mundo. A afirmação "a existência precede a essência" (Sartre) surgiu da filosofia. Hoje ela caracteriza o mundo contemporâneo. Por que isso não poderia ocorrer novamente? Sou como qualquer um, e pareço ter habilidade suficiente para questionar o que aparece como inquestionável. Assim como qualquer um.
Daí que pergunto: por que abordar tudo da mesma forma de outrora, em textos formatados da mesma forma de antigamente, com as mesmas limitações epistemológicas, de estilo e mesmo de intenção? Não haveria outras formas de chegar mais próximo a verdades que, neste mundo em constante e acelerada mutação, incomodam-nos e desafiam-nos cada vez mais? Foi isso, afinal, o que fiz com o texto Feridas. Peguei um assunto – o self-harm – e "viajei" numa constatação que eu já sentia para tentar abordar o assunto de forma, inicialmente, não simplesmente jornalística ou informativa. Foi uma porrada no estômago de alguns, imagino. Como se eu estivesse incentivando a prática. Não, nunca foi nada disso.
Seria fácil classificar o que cada um de nós faz hoje e tentar enquadrar iniciativas libertárias como essas para estabelecer verdades questionáveis. Não acho que hoje isso tenha qualquer razão de ser. A tentativa classificatória da civilização ocidental – que começou com o primeiro livro escrito com essa intenção, a História Natural, de Plínio, O Velho – parece haver parado nos dias de hoje. Para que classificar, hoje? Serve de alguma coisa? Ou ao menos serve de consolo? Como se estivéssemos pedindo para o trem parar? Acaso o trem vai parar? Acaso queremos mesmo isso?

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