Suíte Sugestiva de Villa-Lobos: paródia, ruído e acaso (2015)

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VI SIM_UFRJ 2015 & COLÓQUIO INTERNACIONAL IAI / UdK 2015 Suíte Sugestiva de Villa-Lobos: paródia, ruído e acaso. Joel Albuquerque ECA/USP [email protected] Paulo de Tarso Salles ECA/USP [email protected] Resumo Analisaremos neste artigo alguns trechos da Suíte Sugestiva (1929) de Heitor Villa-Lobos, obra pouco conhecida entre especialistas e interpretes, mas muito relevante por suas características estéticas singulares. Avaliaremos o emprego da paródia, do ruído e do acaso nesta obra, procedimentos composicionais incomuns no repertório de Villa-Lobos, mas que comprovam um artista sensível às futuras mudanças que desembocariam no experimentalismo americano da década de 1950. Palavras-chave Villa-Lobos – Suíte sugestiva – Experimentalismo.

Suíte Sugestiva of Villa-Lobos: parody, noise and chance. Abstract We will analyze in this article some parts of the Suíte Sugestiva (1929) by Heitor Villa-Lobos, work unknown among experts and interpreters, but very relevant for its unique aesthetic characteristics. We will evaluate the use of parody, noise and chance in this work, unusual compositional procedures in VillaLobos's repertoire, but proving a sensitive artist to future changes that culminated in the American Experimentalism of the 1950s. Keywords Villa-Lobos – Suíte Sugestiva – Experimentalism.

A década de 1920 é um período de profundas mudanças na estética composicional do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Após um período de juventude voltado para um estilo musical calcado em procedimentos tradicionais pós-românticos de inclinação francesa (principalmente em torno de gestos de Cesar Franck e Vicent D’Indy), o compositor inicia um processo de alinhamento com a vanguarda europeia da época, em específico com a estética impressionista de Debussy e o “primitivisto” de Igor Stravinsky (SALLES, 2009). A partir dessas novas disposições, surge uma sequência de obras que avançariam significativamente no campo da música pós-tonal, das quais sublinhamos os Choros, Prole do Bebê, Rudepoema e o Nonetto. Consideramos que a aplicação destes recursos pós-tonais em Villa-Lobos alcançou um destaque significativo em Suíte Sugestiva (1929), onde o compositor se

empenha na investigação de novas possibilidades composicionais, pressagiando características do futuro “experimentalismo” pós-modernista, movimento este que se desenharia anos mais tarde em torno da figura de John Cage. Mas, ao mesmo tempo em que esta obra lança um olhar sobre o futuro, também representa um ponto derradeiro nesta intenção, já que Villa-Lobos se enveredaria por outros caminhos artísticos desde então1. Na Suíte o compositor extrapola a ortodoxa organização das alturas por simetria intervalar recorrente em outras de suas obras da mesma época (como é o caso de alguns dos Choros e da Prole do Bebê) , explorando novos âmbitos sonoros e estéticos (principalmente nos campos da variedade de timbres e do emprego de referências externas, com citações de fragmentos de músicas consagradas da prática comum inseridas em um ambiente póstonal e o uso de combinações inusitadas entre gestos emblemáticos de conhecidos gêneros musicais), avançando em direção a alguns procedimentos composicionais incomuns na obra de Villa-Lobos, como a aplicação da ironia em música2 (paródia), a introdução em primeiro plano do ruído não convencionado a partir da proposta de execução de instrumentos sinfônicos em técnica expandida e o uso do acaso em algumas intervenções dos intérpretes (ainda que controlado), recursos inéditos na época e que só seriam apreciados plenamente na década de 50 pela escola americana. Villa-Lobos aparece até certo ponto isolado nestas inquietações, se colocando paralelamente a outros dois compositores da época que também trabalharam de forma independente neste campo: Charles Ives e Luigi Russolo. Embora não podemos supor se houve na época um intercâmbio estético entre os trabalhos de Villa-Lobos e Ives, acreditamos que seja possível que Villa-Lobos tenha conhecido os ideais dos futuristas italianos, principalmente pela proximidade que o compositor teve com Varèse3 e pela passagem do brasileiro pela Europa na década de 19204. Mauceri (1997) comenta sobre essa herança futurista que influenciou Varèse (reverberando supostamente nos trabalhos de Villa1

Um bom exemplo é a Série Bachianas que surge na década de 1930, muito voltada ao resgate de métodos composicionais consagrados da prática comum. 2 Veremos a seguir que na paródia a citação dialoga com o referenciado de maneira ativa (temos a apropriação e “profanização” do objeto reiterado, o que dá margem ao humor e a ironia), diferente da citação passiva, onde o enunciado aparece preservado e reverenciado em seu novo contexto nostálgico. 3 Vale lembrar a foto consagrada de 1929 em que os dois compositores aparecem juntos no balcão do apartamento do brasileiro em Paris (PEPPERCORN, 1996: 137; TONI, 1987: 31) e um programa de concerto de 1930 (PEPPERCORN, 1996: 137) que mostra obras dos dois autores no mesmo repertório. 4 É possível que Villa-Lobos conhecesse os ideais futuristas ainda no Brasil na década de 1910, principalmente a partir tradução do Manifesto Futurista para o português por Almáquio Dinis, na Bahia e, principalmente, em torno de Oswald de Andrade em 1912, quando este volta da Europa reverberando os diálogos que teve com Marinetti (COPETTI, 2007: 86n).

Lobos como veremos na análise a seguir da Suíte Sugestiva), servindo posteriormente de base na edificação do experimentalismo americano.

O que se passou em silêncio é o fato de que o gesto avant-garde de rejeitar a tradição é europeu. Mais explícito e estridente foi o chamado dos futuristas italianos para esquecer a história cultural e destruir as instituições culturais. Originalidade como critério de autenticidade é emprestado de arte européia de vanguarda. Isto não é sem dúvida o caso de Ives e Ruggles, mas Varèse foi influenciado pelos futuristas. John Cage reconhece a influência de ambos Futurismo (Russolo) e Dadaismo (Satie, Duchamp) na música experimental. E, certamente, os compositores "experimentais" que se seguiram Cage estavam cientes da importância da vanguarda artística da Europa (MAUCERI, 1997: 191).

Mário de Andrade também comenta sobre a aproximação entre Villa-Lobos e Varèse, e sobre essas investigações do brasileiro no campo do experimentalismo que o escritor chamaria curiosamente de “quasi-música”. Não é à toa que ele fala constantemente em ‘blocos sonoros’ e ainda impressionado com as tentativas do franco-americano Edgard Varère. Na verdade não são os ‘blocos sonoros’ de Edgard Varèse que o impressionaram tanto assim, mas é que descobriu nessa expressão o verdadeiro sentido de muita coisa que ele mesmo inventa, nessa quasimúsica que tanto o apaixona agoramente (ANDRADE apud KATER, 2001: 32).

A Suíte Sugestiva é uma obra para soprano, barítono e orquestra de câmara (que inclui três metrônomos, fato um tanto inusitado àquela época). A música faz alusão ao cinema da época e se baseia em textos de Manuel Bandeira, Rene Chalupt e Oswaldo de Andrade. A peça é dividida em sete movimentos em que destacamos o segundo “Prelude, choral et funebre (cine journal)”, onde aparecem os três metrônomos, e “La marche finale”, último movimento, que cita gestos de uma banda marcial, numa construção que muito se assemelha ao segundo movimento de “Three Places in New England”, Putnam's Camp, Redding, Connecticut, de Charles Ives, obra concluída também em 1929. A Suíte foi estreada no mesmo ano de sua composição em versão reduzida para dois cantores e dois pianos, conforme aparece em programas de concerto da época – no Rio de Janeiro em 26 de agosto de 1929 (PEPPERCORN, 1996: 137) e em São Paulo em 11 de setembro de 1929 (TONI, 1987: 31). O catálogo do Museu Villa-Lobos confirma esta primeira versão de estreia (Museu Villa-Lobos, 2009: 202) e outra versão ampliada para dois cantores e pequena orquestra (também de 1929, a qual iremos analisar) que foi

estreada somente em 1981, no Rio de Janeiro (Museu Villa-Lobos, 2009: 118). O fato de esta segunda versão ter sido estreada mais de cinquentas anos depois de sua criação nos causou estranheza, sendo que Villa-Lobos frequentemente apresentava suas peças logo após a conclusão da composição. Outro fato é a versão orquestral publicada e apresentada do primeiro movimento da Suíte (“Ouverture de l'homme tel”) em 1952, em Portugal e no Brasil (Museu Villa-Lobos, 2009: 29), o que mostra que a obra ampliada realmente existia bem antes de sua estreia oficial em 1981. O que é possível supor é que a peça foi ampliada no início da década de 1950 já absorvendo os recursos composicionais propostos pelo experimentalismo americano em ascensão; prova disso é a inclusão dos metrônomos e dos efeitos próprios para as cordas que não seriam possíveis numa versão apenas para canto e piano. Devido à impossibilidade de localizar a versão primeira para canto e piano (supostamente perdida segundo o catálogo do Museu Villa-Lobos), não podemos comparar as duas partituras e verificar quais foram as mudanças empregadas entre elas e comprovar se realmente a obra orquestral foi ampliada posteriormente a partir da versão reduzida, segundo influências do experimentalismo vigorante, ou se as propostas estilísticas de inclinação futurista foram apresentadas já no concerto de 1929, demonstrando uma percepção prévia do compositor ao movimento latente promovida por Russolo e Varèse que serviria de base para a fundação do movimento experimentalista americano nas décadas seguintes. Independente do ano de conclusão e de estreia da obra orquestral, a peça de VillaLobos se destaca dentro do repertório do autor por diversas razões. Primeiro pela sua total ausência nos programas de concerto contendo obras do brasileiro; segundo pelas técnicas composicionais empregadas que fogem em muito ao estilo corrente vinculado ao artista, o que provavelmente justifica esta rejeição da Suíte. Além da pouca execução, verificamos também a existência de apenas uma gravação completa, realizada em 1994 por solistas da Philharmonia Hungarica para o selo Discant (e nenhuma por intérpretes brasileiros). Esse prestígio “menor” da Suíte também fica evidente entre os musicólogos e biógrafos do compositor. Entre todas as análises de obras de Villa-Lobos feitas por Tarasti em seu livro Heitor Villa-Lobos: The Life and Woks (1995), a Suite Sugestiva é apenas citada em título uma única vez, ao contrário do detalhamento analítico feito pelo autor de cada um dos Choros e das Bachianas. Apenas Carlos Kater se detém com mais atenção à

Suíte no artigo “Aspectos da modernidade de Villa-Lobos” (1990) e em seu livro Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade (2001), mas apenas comentando brevemente sobre alguns aspectos superficiais da obra. Em a Suíte Sugestiva, de 1929, para canto e conjunto de câmara, VillaLobos solicita aos intérpretes dos instrumentos de sopro, que improvisem melodicamente – deixando em aberto as notas da partitura –, tendo por base apenas a determinação da estrutura rítmica (KATER, 2001: 35).

Destacamos a seguir alguns traços relevantes que mostram essa aproximação do brasileiro com a estética futurista de Satie, Russolo e Varèse. O alinhamento com Satie fica aparente pelo uso da ironia e da paródia, muito evidente no primeiro movimento “Ouverture de l’homme tel”, em que Villa-Lobos faz uma releitura da abertura Guilherme Tell de Rossini. E longe do caráter nostálgico de reverência à ópera italiana (tradição), Villa-Lobos a banaliza e a desconstrói. Este recria a abertura de Rossini sobre um ponto de vista moderno, utilizando amplamente ferramentas pós-tonais, e inserindo citações melódicas claramente reconhecíveis como elementos de superfície, mantendo também alguns pilares estruturais importantes como a forma em quatro seções da peça original. O material coletado da obra de Rossini, ao ser incluído no primeiro movimento da Suíte, entra em choque com o novo ambiente. Este novo “local” não se submete ao “visitante”, nem o valoriza, mas o rejeita ao não incluir elementos oriundos do contexto original de onde provem o citado, gerando um conflito semântico para o ouvinte, que reconhece o recorte deslocado de sua situação primeira (que o exaltava) e o confronto do citado com esse novo contexto adverso e desfavorável (que o nega). O contraste entre a esfera ordinária do enunciado e de seu destino que o subverte gera uma situação muita similar ao duplo sentido da paródia bahktiniana. Sobre isso Barbosa esclarece: Na paródia, conforme demonstra Bakhtin, o autor fala a linguagem do outro, mas reveste-a de uma orientação semântica oposta à que o outro lhe dera, diferentemente do que se verifica na estilização. Na paródia, a segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, obriga-o a servir a fins contrários ao seu significado original, com o qual estabelece uma relação de hostilidades (BARBOSA, 2001: 60-61).

Temos na parodia um processo de “desvalorização” do referenciado, este em geral um ser consagrado historicamente, ao transportá-lo como fragmento para um contexto inóspito, envolvendo-o por novos elementos de um cotidiano em geral a frente de seu

tempo que questionam sua supremacia, o que abre precedente para o humor e para a crítica ao objeto parodiado (que de certa forma torna o citado mais acessível ao espectador, longe de sua áurea de sublimação, havendo assim uma apropriação maior por parte do ouvinte, por conta principalmente dos elementos recentes que, embora sejam hostis ao parodiado, são em geral familiares a quem assiste). A paródia e o parodiado são mantidos estratificados numa mesma esfera e em diálogo bilateral (os dois se reconhecem e se “estranham”), não se inter-relacionando para a formação de um terceiro estado intermediário composto de elementos invariantes entre ambos, como acontece na hibridação5, nem de preservação do contexto original transportado para um novo ambiente que valorize os aspectos ordinários do enunciado como acontece na estilização6 nostálgica (BARBOSA, 2001: 60-61). A dualidade da paródia bahktiniana é característica também essencial da ironia baudelairiana, um dos traços típicos resgatados pela modernidade na “variante que passa por Duchamp e Breton” (COMPAGNON, 2010: 10) e por consequência irá fomentar as bases do experimentalismo musical de Cage. Compagnon comenta que a ironia é uma das faces de Baudelaire na inauguração da modernidade, mas foi ignorada pela “narrativa ortodoxa da tradição moderna” e pela vanguarda (COMPAGNON, 2010: 10). Villa-Lobos deixa explícita a referência a Rossini já nos primeiros compassos da “Ouverture de l’homme tel”, ao trabalhar com os dois argumentos melódicos iniciais da abertura de Guilherme Tell também no começo da Suíte, mantendo ainda o compasso ternário original e o andamento similar. Esse material citado é inserido em seu novo contexto preservando muitas de suas características rítmico-melódicos fundamentais. Vale perceber que até mesmo os dois títulos se assemelham7. Os sujeitos de Rossini são apresentados originalmente por um quinteto de violoncelos8, um solista apresentando o primeiro motivo (a) sem acompanhamento e os 5

Isso é perceptível musicalmente em obras intermediárias entre o erudito e o popular pelo caráter ambíguo que as compõem. Sobre hibridação ver também o trabalho Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade de Nestor Canclini (1990). 6 Musicalmente isso acontece em arranjos e adaptações orquestrais. 7 Lembrando que a estrutura da paródia pede que o enunciado parodiado deva estar claramente reconhecível para o ouvinte tanto em seu contexto original (Rossini) como no seu novo contexto (Villa-Lobos), justamente para que haja o conflito entre as duas situações. 8 Aqui vale destacar o apreço que Villa-Lobos tinha pelo violoncelo, por ser seu instrumento de domínio interpretativo, utilizado na juventude quando era instrumentista em orquestras tradicionais, tendo provavelmente tocado este solo da abertura da ópera de Rossini por diversas vezes. Outro exemplo dessa admiração pelo instrumento está aparente na composição da célebre Bachianas nº5, onde há a orquestração para apenas oito violoncelos e uma soprano.

demais respondendo com o segundo motivo (b) em movimento homofônico (coral). Na sequência temos a reiteração do motivo a solo, ligeiramente mais alto, seguido de nova intervenção do motivo b homofônico.

Fig. 1: Início da Abertura Guilherme Tell de Rossini

Villa-Lobos transfere o motivo a para a flauta e o oboé na primeira entrada e acrescenta a viola e o violoncelo em seguida. Esse tema aparece invertido melodicamente (não mais do grave para o agudo, como acontece no original, mas do agudo para o grave) e com valores rítmicos dobrados (semínimas transformadas em mínimas, semicolcheias em colcheias e assim por diante).

Fig. 2: Motivo a

O motivo b surge no compasso 6 com valores levemente alterados, mas não o suficiente para descaracterizar esse sujeito. Já de imediato percebemos uma “agressão” à estrutura harmônica original, mostrando a intenção “profana” de Villa-Lobos no trato com conteúdo referido. A segunda entrada deste tema não acontece; o compositor abandona a formatação original a partir de então, trabalhando com variações dos motivos a e b de Rossini sobre a ótica moderna pós-tonal empregada pelo brasileiro.

Fig. 3: Motivo b

Como plano de fundo para a citação desses argumentos da abertura de Guilherme Tell no início da Suíte, Villa-Lobos apresenta um discreto “envelope sonoro” em contínuo que concorre pelo protagonismo dos motivos principais a e b. Esse complexo de alturas coadjuvante, anárquico evidentemente por sua orientação não tonal, “rejeita” o material desenhado na superfície. O vínculo do enunciado à herança gloriosa já distante, de um código musical convencionado e institucionalizado como fora a ópera italiana, perde agora sua áurea de estatura e supremacia na extensa linha do tempo da tradição histórica musical ocidental, sendo banalizado neste choque agressivo contra um novo ambiente tão “inóspito”. O trecho célebre da seção final da abertura de Rossini também aparece neste primeiro movimento da Suíte de Villa-Lobos, preservando grande parte de suas características rítmico-melódicas ordinárias.

Fig. 4: Tema do final da Abertura de Rossini

Fig. 5: Citação do tema de Rossini na Suíte

Mais adiante, no quinto movimento da Suíte (“Charlot Aviateur (comique)”), Villa-Lobos faz referência a um fragmento da obra de outro compositor, desta vez um músico brasileiro reconhecido no meio artístico popular: Apanhei-te cavaquinho (1914) de Ernesto Nazareth9. O material selecionado mantém suas propriedades rítmicomelódicas originais, mas aparece disposto na região aguda da tessitura de um contrabaixo (ao contrário dos gestos superficiais ligeiros da flauta e do clarinete recorrentes no choro, os quais responsáveis pela condução temática neste gênero) e realocado em um ambiente distante do universo boêmio carioca de onde é oriunda, onde se tornou um hino entre os chorões na década de 1910 e 20. A inserção do tema de Nazareth neste trecho da Suíte gera um nítido contraste, que acontece pela heterogeneidade entre os materiais selecionados para compor as três camadas estratificadas sobrepostas (canto, flauta e contrabaixo), o que denota uma aplicação evidente de processos de recorte e colagem musical. Novamente temos o trabalho com a técnica de paródia no trato dos enunciados.

Fig. 6: Citação de Apanhei-te Cavaquinho no contrabaixo

No último movimento da Suíte (“La Marche Finale”), Villa-Lobos recorre agora a um tema de John Philip Sousa, o início da marcha The Star and Stripes Forever (1896), obra para banda marcial, consagrada como um dos grandes hinos patrióticos dos norteamericanos. Talvez aqui exista uma suposta ironia e sarcasmo no uso desse material, isto porque a Suíte de Villa-Lobos foi composta em 1929, mesmo ano da grande crise econômica que afetou os Estados Unidos, fato este que teve consequências sérias e diretas na vida do brasileiro, comprometendo sua permanência na Europa e antecipando sua volta

Milhauld também fez referência a este tema em sua obra Le Bœuf sur le toit, op. 58 (1919) alguns anos antes (NORONHA, 2009). Vale lembrar que o francês esteve no Brasil na década de 1910 e se interessou muito pela música popular urbana carioca. Sobre essa proximidade entre Villa-Lobos e Ernesto Nazareth e aspectos da obra Apanhei-te cavaquinho, ver MACHADO, 2007: 175-81. 9

ao Brasil. O que chamou nossa atenção foram os compassos que se seguem ao tema citado.

Logo após uma introdução triunfante deste enunciado, irrompe uma total

cacofonia e desmantelamento harmônico que constrangem a força marcial original do referenciado, seguida de um diminuendo gradativo até o silêncio pleno que encerra a obra. Construímos ao nosso entender a imagem suposta de uma banda marcial que inicia bem sua performance, encontra desajustes conjunturais entre seus interpretes no decorrer da execução que levam ao colapso generalizado da apresentação e que os músicos, sem saberem exatamente o que fazer para que seja reestabelecida a “ordem” prévia, deixam de tocar um a um, ficando a obra não concluída10. A ideia alegórica aqui suposta é a de representar a força econômica de uma grande nação (Estados Unidos), que entra subitamente em colapso, perdendo sua dinâmica até a total derrocada. Outra hipótese é a representação alegórica da crise tonal que abalou as bases estético-estruturalistas da prática comum no início do século XX (tradição), universo invadido por incontáveis novos timbres (protagonismo do ruído), possibilidades criativas a partir da indeterminação composicional (acaso) e recorrência à citação crítica (ironia e paródia).

Fig. 7: Início da marcha The Star and Stripes Forever de John Philip Sousa

Fig. 8: Citação de Sousa na Suíte

Percebemos então, que além do conceito de paródia, Villa-Lobos também desenvolve aqui o uso da alegoria e da metáfora, umas das características fundamentais da obra de arte de vanguarda segundo Burger (1993: 117-122). Uma tarefa central da teoria da vanguarda é o desenvolvimento das obras de arte inorgânicas. Semelhante tarefa pode iniciar-se a partir do conceito de alegoria de Benjamin, o qual, como já vimos, e uma categoria articulada particularmente rica, própria para englobar quer o 10

Ou ainda uma banda que se distancia do ouvinte até sumir ao longe.

aspecto da produção, quer o do efeito estético das obras de vanguarda (BURGER, 1993: 117).

Burger (1993: 117-122) percebe a tendência de fragmentação da obra de arte de vanguarda (que ele chama de inorgânica ou alegórica) e de sua aproximação com a realidade e com o cotidiano, em oposição ao sentido totalitário e representativo da obra de arte tradicional (orgânica ou simbólica). A obra de arte inorgânica deixa de lado a representação da realidade para se tornar a própria realidade fragmentada com a inserção de elementos do cotidiano como componente artístico. Neste sentido, as partes da obra orgânica se inter-relacionam para a construção de um significado semântico único e totalitário que cerca toda a obra. Já os fragmentos estratificados apresentados em uma obra de vanguarda guardam em si significados individuais; encerram-se em si mesmos quanto ao sentido semântico e não necessariamente precisam do todo para expressar um significado exclusivo. No entanto, de modo nenhum deve ser descartado o intuito de uma significação global da obra vanguardista, necessitando-se considerar uma hermenêutica crítica que investigue o ambiente de conflito interno entre os elementos díspares que compõe o todo (em oposição à harmonização entre essas partes, como acontece na obra simbólica). Temos aqui a aproximação da obra com o “ambiente urbano que compõe a vida moderna” (BURGER, 1993: 117-22). É esta realidade cotidiana que encontramos na Suíte de Villa-Lobos; uma obra fragmentada, com recortes diversos que aparecem estratificados em camadas sobrepostas e justapostas, num ambiente denso repleto de conflitos e contradições11. Outro elemento de aproximação com essa “ambiente urbano que compõe a vida moderna” é o uso do acaso, outro traço característico da obra de arte alegórica (ainda segundo Burger) instituída a principio pelos surrealistas e futuristas, correntes que provavelmente VillaLobos conheceu e mostrou-se inclinado. Para alcançar o efeito de cacofonia entre os compassos 5 e 9, Villa-Lobos utilizou um recurso muito interessante e inusitado para a época em que a obra foi composta, a improvisação livre de alturas pelos interpretes: uma leitura do acaso (ainda que delimitado). Na continuação dos primeiros compassos (c.1-4) da citação da marcha de

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Uma representação deste contexto seria o conjunto de camadas tectônicas que cobrem o globo terrestre. São fragmentos que juntos formam um mesmo todo (o planeta), mas que não deixam de ter suas individualidades, constatadas pela ocorrência dos terremotos decorrentes do choque entre esses imensos blocos.

Sousa, o compositor coloca na partitura de grande parte da orquestra a palavra “improvisses”, acompanhada de figuras rítmicas sem alturas específicas. Essas células variam para cada instrumento (colcheias, semicolcheias, quiálteras), mas acontecem quase que simultaneamente durante cinco compassos.

Fig. 9: Uso de improvisação livre de alturas na Suíte

Temos aqui o emprego da indeterminação em música, um recurso bastante precoce para o momento em que a Suíte foi supostamente composta (1929), técnica que neste caso extrai parte do controle criativo totalitarista do compositor sobre a obra e protagoniza o intérprete na participação do processo de criação musical. Villa-Lobos utiliza o acaso composicional apenas durante cinco compassos e de maneira bem delimitada; somente para as alturas cromáticas, mantendo as figurações rítmicas, pulsação e dinâmicas pré-estabelecidas. Mas o fato de termos as alturas livres para que o interprete as escolha é algo realmente relevante considerando a época. Esse fato preconiza um interesse latente entre os artistas da década de 1920 e 30 para os novos recursos que ganhariam relevo nos anos seguintes, culminando com os processos experimentalistas da escola americana da década de 1950. O emprego do acaso, junto com o uso da forma alegórica, foram, segundo Burger, alguns dos fatores que corroboraram para a crise do conceito de obra de arte simbólica (tradição tonal em música) que ocorreu durante o início do século XX. O interesse da corrente vanguardista se inclinou para uma valorização do processo de criação musical, pela formulação poética e pela obra aberta (sempre uma nova versão para cada nova apresentação da obra), em declínio do interesse pela obra somente calcada em conceitos estético-estruturalistas e na concepção de uma obra finalizada (eternizada em versão única). Outro parâmetro levantado por Villa-Lobos nesta obra que se destaca é a solicitação do interprete para a exploração de recursos timbrísticos não comuns a cada instrumento sinfônico. O mais emblemático foi o uso da voz entre o canto e a fala que

inevitavelmente faz lembrar-nos do Sprachegesang (canto-falado) em Pierrô Lunar Op. 21 (1912) de Arnold Schoenberg. O interessante é que o brasileiro novamente não especifica as alturas (como também acontece para a orquestra no final da obra, como vimos acima), colocando apenas o gestual melódico acompanhado de figuras rítmicas tradicionais; no início do trecho temos a inscrição “Parlé (sans emphase)”, que deixa claro que o compositor busca o efeito de canto próximo do “falado”.

Fig. 10: Canto-falado e uso da indeterminação de alturas no canto

A procura de Villa-Lobos por novos recursos timbrísticos atravessou todos os naipes de instrumentos tradicionais, como o das cordas que recorrem a sons surgidos ao “roçar a crina do arco nas costas do instrumento” no terceiro movimento “Croche – Pied aux Flic (comedia)”. Investigações desse caráter já faziam parte do repertório do compositor em obras anteriores à Suíte Sugestiva. Kater comenta sobre isso: Ele [Villa-Lobos] abarca a exploração de recursos sonoros de instrumentos tradicionais e também da própria sonoridade musical. O timbre em si passa a adquirir dessa maneira uma exuberância tal que, em várias, se eleva ao primeiro plano da composição. Merecem ser citadas, a título de ilustração que seja, algumas utilizações pioneiras, e geralmente pouco consideradas, como: a do violoncelo, evocando um mugido, no Il Bove (1915); a clarineta, sem palheta, assoprada com uma trompa ou cantada na boquilha com numa flauta de bambu, no Nonetto (1923); e do piano, com folhas de papel inseridas entre suas cordas12, no Choros 8 (1928), entre outras. Nestas obras em especial, começou a integra-se, de forma lenta e progressiva, ao patrimônio musical contemporâneo internacional (KATER, 2001: 34).

Além da exploração de técnicas expandidas para instrumentos convencionais, Villa-Lobos também expande sua paleta de timbres com aparelhos não convencionais utilizados como instrumentos musicais. Exemplo disso foi a inclusão de três metrônomos, seguindo figurações rítmicas tradicionais, no terceiro movimento “Croche – Pied aux Flic (Comedia)”. Algo similar somente aconteceria décadas depois com obras como Poème

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Que inevitavelmente remetem ao conceito de piano preparado de John Cage.

Symphonique para 100 metrónomos (1962) de György Ligeti e o Choro para Metrônomo (1964) de Baden Powell.

Fig. 11: Uso de metrônomos como instrumentos convencionais

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