Public Debt Trasnparency/Transparência da dívida pública

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Publicado como/Published as: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012 Sugestão de citação: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012

TRANSPARÊNCIA DA DIVIDA PÚBLICA: O CAMINHO PARA A QUALIFICAÇÃO DO PROCESSO DE GESTÃO DA DÍVIDA E PARA A RESPONSABILIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO PARTE I

Rita Calçada Pires1

Resumo: O momento económico e financeiro apresenta uma crescente intranquilidade nas contas públicas. A análise tem-se, muitas vezes, centrado na questão do défice público. Contudo, os valores da dívida preocupam por ocuparem uma percentagem crescente e por, cada vez mais, as condições a que os Estados obtêm crédito dependerem dos movimentos especulativos. Aquilo que se propõe no presente artigo é analisar um dos aspectos que pode auxiliar a renovar a imagem das contas públicas, em especial, a imagem da dívida pública. A transparência da dívida pública é um mecanismo objecto de crescentes necessidade e atenção, pois, através dela, pode-se potenciar a qualificação do processo de gestão da dívida, permitindo igualmente a necessária responsabilização do poder público pelas más opções e pela má gestão na governação que impliquem colocar em causa a estabilidade presente e futura. Este estudo reparte-se por duas partes. Na parte I, agora publicada, analisa-se a temática genérica da transparência da dívida pública, quanto ao seu conceito, requisitos, objectivos, interessados, finalidades e a temática das limitações legais. Na parte II, a ser publicada em próximo número, procede-se a uma identificação das soluções existentes em sede de transparência, no âmbito do direito estrangeiro, internacional e daquilo que existe no espaço nacional. Esquema do estudo Parte I: 1. Porquê falar na transparência? Aproximação à realidade da transparência. 2. O que é a transparência da dívida pública? O conceito. 3. O que se exige para existir transparência? Os requisitos. 4. Para que serve a transparência? Os objectivos de qualificação do processo de gestão da dívida pública e de responsabilização do Poder Público 5. Quais os interessados na transparência?. 6. Qual o valor da transparência? A sua importância e as suas consequências. 7. A questão da imposição de limites normativos ao endividamento público Palavras-chave: participativa

dívida

pública;

transparência;

responsabilidade;

democracia

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Doutora em Direito pela Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito. Professora da Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Direito

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Publicado como/Published as: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012 Sugestão de citação: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012

1. Porquê falar na transparência? Aproximação à realidade da transparência O papel do Estado na economia transformou-se nas últimas décadas, passando a estar enraizada na Europa a ideia do Estado Regulador, um Estado que intervém para dar espaço aos privados para rentabilizarem as suas capacidades para agir em economia de mercado, economia essa internacionalizada e profundamente interdependente. A criatividade, o empreendedorismo e a permanente resiliência são dados promovidos e protegidos. Contudo, em face de todos os compromissos sociais assumidos no passado e que se cristalizaram nas expectativas do nosso quotidiano, o Estado continua a ter um peso significativo no funcionamento da economia e da economia social. Porque as exigências do passado se acumulam com as exigências do presente e porque o Estado Fiscal não suporta já as demandas financeiras públicas, a dívida pública manifestou a sua entrada numa espiral inequívoca de sucção. As preocupações maioritariamente proclamadas pelas instituições prendem-se com o excessivo défice público. Contudo, apesar de o debate estar extremamente concentrado nessa dimensão, é sobre um outro aspecto da espiral de sucção que vou reflectir: o domínio da dívida pública. Não procurarei tecer um tratamento exaustivo do tema. Antes procurarei indagar sobre um aspecto assaz relevante que me parece algo arredado da discussão actual sobre o estado da nossa economia, a questão da transparência da dívida pública. E mesmo neste domínio há que proceder a algumas precisões. Como resulta do seu título, não constitui intuito deste artigo a exposição e a análise de todos os aspectos relativos à transparência financeira nem tudo o que se poderia escrever sobre a dívida pública, incluindo, os correspondentes objectivos, nomeadamente a minimização do custo, a limitação do risco, a tentativa de evitar a excessiva concentração de vencimentos e a coerência com a política monetária, tal como os aspectos de mercados. Aquilo que proponho é fixar-nos na transparência e na informação que esta pressupõe.2 E porquê? Porque desta transparência e da informação com ela conexionada poderá existir um melhor controlo da acção pública e uma melhor avaliação por parte do cidadão. Não se olvide que um dos problemas das sociedades democráticas contemporâneas é a crise de legitimidade dos representantes políticos. Parte dessa crise poderá ser minimizada através de um processo de aproximação do cidadão à esfera pública, sendo-lhe possível compreender o destino dos seus impostos, a percepção da aplicação das outras receitas públicas e, igualmente, apreender os riscos e a gestão desses riscos efectuadas pelos representantes políticos na sua acção de governação de uma nação.

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Isto embora possa aludir, aqui e ali, a aspectos orçamentais mais amplos, em virtude de serem igualmente importantes para o tratamento do tema, por constituírem o contexto da dívida pública e da sua transparência.

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2. O que é a transparência da dívida pública? O conceito O universo económico-financeiro contemporâneo verbaliza insistentemente a sua crescente preocupação com a transparência das contas públicas. E associa a esta questão a responsabilidade/responsabilização (accountability), responsabilização esta considerada com um dos pilares do regime democrático.3 Consultando o Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia da Ciência de Lisboa, pode ler-se, no que ora interessa, que transparência é «1. Qualidade ou estado do que é transparente» «4. Carácter do que deixa transparecer toda a realidade das coisas, do que exprime a verdade de um facto, acontecimento […], sem o alterar» e “transparente” é apresentado como «3. O que se percebe facilmente sem ser necessário um grande esforço de interpretação = CLARO, EVIDENTE ≠ OBSCURO» «4. Que deixa ver claramente a realidade psicológica, a verdade das coisas […]». A ideia primeira que se retira é a de clareza e verdade. No entanto, e apesar de toda a evidência, pode e deve ir-se mais longe no quadro deste artigo. O Fundo Monetário Internacional, para efeitos do Código das Boas Práticas com Transparência nas Políticas Monetárias e Financeiras, refere-se à transparência como a «um ambiente no qual os objectivos da política, o seu quadro jurídico, institucional e económico, decisões políticas e as suas razões, dados e informação relativos às políticas monetárias e financeiras e os termos da responsabilização das agências são fornecidos ao público com uma base compreensível, acessível e atempada»4. Desta definição, de que podemos retirar as características gerais, resulta que a transparência tem aspectos material e 3

Sobre os vários sentidos de responsabilidade, sobretudo quando encarada como algo que afecta a produção de confiança dos cidadãos na administração e no governo, cfr. Juan Mozzicafredd, A responsabilidade e a cidadania na administração pública, IN Sociologia, problemas e práticas, n.º 40, 2002, pp. 9-22. O autor afirma: “A questão da responsabilidade será tratada em torno de três dimensões analíticas. Um primeiro nível, organizacional, abordando-se as virtualidades e as limitações da accountability; um segundo nível, em torno da dimensão institucional, entendida como responsabilidade política e administrativa face aos direitos dos cidadãos; e, num terceiro nível, abordar-se-á a dimensão contratual da responsabilidade política, equacionada como categoria constitutiva da democracia e da governação numa fase de sociedade de risco.” Um autor também a ter em consideração neste domínio é Mark Bouvens, Analysing and assessing public accountability. A conceptual Framework. European Governance Papers (EUROGOV) nº C-06-01, 2006, designadamente, quanto ao conceito de responsabilidade, afirma dever ter-se em consideração um conceito restrito, algo que resulte de uma relação directa entre o actor e um fórum, no qual o actor tem a obrigação de explicar e de justificar a sua conduta, podendo o fórum interpelar e julgar, existindo consequências efectivas, se devidas. 4 Code of Good Practices on Transparency in Monetary and Financial Policies – Introduction, n.º 3, disponível em http://www.imf.org/external/np/mae/mft/code/index.htm#goodtrans , sendo a tradução pessoal, como aliás, como todas as subsequentes traduções de todos os textos em língua estrangeira.

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temporal. Material, porque impõe a existência de elementos suficientes para a formulação dos juízos necessários ao bom funcionamento das finanças públicas, não só quanto aos objectivos, mas igualmente quanto às vias da prossecução e consecução desses objectivos, sendo ainda necessário, em geral, que esses elementos sejam diversos, importantes, fiáveis, acessíveis e expostos sistematicamente, permitindo ainda comparações internacionais. Em segundo lugar, os elementos devem ser disponíveis periodicamente e atempadamente, isto é, em tempo útil. O mesmo sentido, ainda que apresentado de forma menos desenvolvida e intensa, é encontrado na definição oferecida pela OCDE. Esta organização internacional considera a transparência como a «abertura acerca das intenções, formulação e implementação de política». Contudo, além de apresentar um conceito genérico de transparência na actividade pública, a mesma organização internacional especifica o conceito de transparência orçamental entendendo-a «como a apresentação de toda a informação financeira relevante de um modo atempado e sistemático». 5-6 Do exposto resulta que o conceito de transparência aqui utilizado é assaz abrangente, compreendendo todo o domínio financeiro, não se aplicando, pois, apenas aos impostos (aspecto fiscal). Se tal acontecesse, importaria também tratar da transparência por parte do contribuinte. Mas não é o meu propósito restringir a análise ao âmbito fiscal, antes ligar ao ambiente mais vasto das finanças públicas em geral, daí julgar-se não ser correcta a tradução, no contexto, do adjectivo “fiscal” por “fiscal”, mas antes por “financeiro” (de finanças públicas). E esta opção tem clara e inequivocamente uma razão de ser. Algo que se enraíza crescentemente na minha convicção é a imprescindível ligação que tem de ser feita entre o domínio da receita e da despesa. Dito apenas desta forma poderá parecer uma verdade “lapalissiana”. Contudo, a prática das nossas finanças públicas não tem demonstrado estar realmente consciente desta ligação fundamental no momento das escolhas para a acção pública. Dizem as regras fundamentais da economia familiar que um agregado apenas deverá gastar em consonância com a quantidade de receita que tiver em seu poder. Com o valor arrecadado procedem-se às escolhas entre as despesas correntes, a poupança, o investimento e o abatimento de dívidas. Dizem-nos ser o endividamento o último recurso e um recurso a evitar. Assim também deveria acontecer com a máquina pública. 5

OCDE Best Pratices for Budget Transparency, disponível em http://www.internationalbudget.org/pdf/OECD_Best_Practices_on_Budget_Transparency.pdf 6 Numa outra perspectiva, podem ser distinguidos dois planos a transparência financeira interna – compreendendo os deveres aplicáveis a todo o sector público administrativo – e a externa, esta relevando «a relação entre o Sector Público Administrativo e o resto da economia». Cfr., Guilherme D’Oliveira Martins et al., Lei de Enquadramento Orçamental, Anotada e Comentada, Coimbra: Almedina, 2007, pág. 360

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Em face das receitas obtidas deveria ponderar-se a distribuição dessa receita. Ora, o que a realidade nos tem demonstrado nos últimos tempos – em todos os Estados ditos desenvolvidos – é que houve uma inversão desta lógica de gestão das receitas. Primeiro idealizaram-se as acções públicas, encetaram-se as opções políticas e depois procurouse a receita, compreendendo que a receita fiscal e todas as outras receitas menos significativas não eram suficientes para suportar as opções tomadas. Assim, a necessidade de recorrer ao crédito tornou-se uma fonte de receita comum, permanente e imprescindível para as finanças públicas.7 E onde está o problema? O problema desta opção encontra-se nos reflexos, nas situações financeira e económica do país e, o que não é o menos importante, no desrespeito pela solidariedade geracional. Num universo económico, social e político onde a sustentabilidade se assume como uma preocupação nuclear, o nível de endividamento assume patamares indesejáveis colocando em causa as opções das gerações vindouras que quase estarão sufocadas apenas com o pagamento da dívida contraída anteriormente – a juros cada vez mais elevados e manipulados pelo mercado de especulação - e muito pouca margem de escolha quanto às opções necessárias ao seu momento e contexto económico, social e político. Por isso é tão importante proceder a uma verdadeira mudança de paradigma na análise e na escolha da acção pública. Por isso a transparência assume-se como uma imperiosidade imprescindível. Porque ter acesso a uma base compreensível, acessível e atempada permitirá antecipar e permitirá aceitar ou rejeitar as opções agora formuladas e que colocam as opções futuras num limbo de incerteza e descontrolo. 3. O que se exige para existir transparência? Os requisitos Aquilo que construirá a transparência passará por exigir que, quanto ao conteúdo, quanto à forma e quanto ao procedimento de informação dos dados indicadores da dívida pública, os cidadãos a eles possam aceder, analisar e retirar as suas conclusões, com liberdade de expressão. No domínio do conteúdo, deve valorizar-se o acesso e utilização com precisão, clareza e suficiência a dados relativos a políticas macroeconómicas e de gestão da dívida no presente, no passado e no futuro, à distinção entre as dívidas interna e externa, identificar os tipos de devedores (residentes e não residentes), bem como revelar os instrumentos, os montantes, os encargos, os regimes das taxas de juros, a maturidade, as 7

Em 2009, o valor do passivo financeiro, em Portugal, ascendia a 87.936,6 milhões de euros, assumindo a dívida directa do Estado, no mesmo ano, o valor de 79% do PIB (stock da dívida directa em % do PIB). Fonte: Pordata, com base em informações, respectivamente, IGCP INE–BP - Contas Nacionais Anuais (Base 2006) e DGO/MFAP - Relatório/publicação "Conta Geral do Estado"

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amortizações, a moeda utilizada, as formas de colocação da dívida e demais condições que sejam imperiosas para garantir a maior correspondência com o cenário real. Para uma visão completa, não se pode deixar de referir dever a transparência abranger os acordos geradores de dívida dos diversos níveis de governo. E nestes não se pode esquecer os entes autónomos e as empresas de propriedade do Estado, sob pena de omitir importantes dados necessários à construção da imagem real da dívida pública nacional. E, obviamente, que aqui se devem incluir igualmente as taxas de rating. Também relativamente à dívida, é de interesse conhecer os benefícios fiscais do que ela goza, a razão do estabelecimento desses benefícios, assim como a despesa que envolvem. Interessa saber, pois, a envolvente das operações a efectuar, isto é, quais os supostos económicos relevantes que podem influir no fenómeno da dívida, para além de um âmbito mais amplo e orçamental, e não só estes aspectos quanto a matéria mas também aspectos temporais: não bastando atender ao ano em causa, interessando saber, como já se disse, o relevante quanto ao futuro e ao passado (valorização da análise comparativa). E reforce-se, a transparência da gestão da dívida, que corporiza a estratégia no domínio do endividamento, depende de informação, informação que deve ter por objecto a fixação e publicidade não só dos respectivos objectivos e dos instrumentos para os atingir mas também dos resultados: preparação, execução, resultados e conta, sendo aplicadas sanções, se for caso disso, consequências resultantes do mau exercício ou do não exercício dos poderes-deveres. Tal permitirá uma responsabilização que não se reconduz apenas aos momentos eleitorais. E não só aspectos estáticos devem ser considerados, também os aspectos dinâmicos devem ser objecto de transparência: veja-se o processo de formulação das políticas de dívida na sua origem, no respectivo estabelecimento mas também na sua aplicação, nos seus diversos âmbitos, e ainda os elementos resultantes dessa aplicação (o stock da dívida bruta e liquida, a sua composição, bem como os relativos termos contratados quanto ao já assinalado: tipos, taxa, maturidade, moeda, etc.). No âmbito dos aspectos formais, se a transparência se opõe à opacidade (v.g., impossibilidade de conhecer ou compreender), se se pretende contrariar o carácter translúcido (restrições ou deformações de conhecer ou compreender) da dívida pública, ao se procurar elencar quais são os seus requisitos, clara e inequivocamente, é necessário, como acima se deixou evidenciado, ainda que parcialmente, garantir a apropriada extensão da informação e a sua sistematização. Contudo, tem de se ter o cuidado de serem evitados pormenores que podem dificultar a finalidade da transparência, as suas fiabilidade, compreensibilidade, periodicidade adequada,

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pontualidade e acessibilidade.8 Um aspecto sempre a ter em consideração é a necessidade permanente de se evitar a politização da informação, sob pena de destruir por completo a credibilidade do sistema. Ainda no que respeita a tornar possível o alcance e a apreensão do sentido do que é informado, o conteúdo transmitido deve permitir comparações no tempo e no espaço, tendo-se em atenção a intensificação da internacionalização, a globalização e os fenómenos de integração regional. Para isso, importa evitar a modificação de classificações e dos elementos de referência, pois tais alterações tornam impossíveis ou difíceis essas comparações. Qual o valor da possibilidade comparativa? Conceder disponibilidade de elementos que permitam a comparação é garantir a revitalização das questões inter-geracionais resultantes, designadamente, de contratos que projectam obrigações para o futuro, como ocorre nas concessões e parcerias público-privadas (PPP). E não esquecendo que à transparência deve estar associada a simplicidade, esta constitui mais um instrumento da boa governança, não devendo utilizar-se fórmulas vagas ou indeterminadas, como limitar a dívida a um nível razoável ou prudente, difícil depois de precisar e dificultando, pois, o real escrutínio. Sendo a transparência fundamental para a responsabilização e estando aquela ligada à informação acessível, esta deve ser rica mas tendo o cuidado da não proliferação de dados inúteis ou mal apresentados – aqui não se verifica a justeza do brocardo quod abundat non nocet - de modo a permitir o necessário controlo. E quanto à publicidade desta informação também algo deve ser dito. No referente à forma de transmissão da informação apresentada, numa era marcada pelas novas tecnologias e pelo E-Government, faz todo o sentido utilizar as ferramentas tecnológicas, possibilitando até uma informação numa base de tempo real. No domínio dos procedimentos, toda esta informação deve ser apresentada periódica e atempadamente, segundo padrões aceites internacionalmente. A transparência, implica também um quadro legal claro do processo orçamental (criação, execução e acompanhamento) bem como pressupõe a existência de um relatório das auditorias sobre as contas.9 A informação dos elementos financeiros públicos encontrase reforçada no caso de existirem disposições legais relativas à informação em geral. Isto é, ela deve existir não só em virtude de disposições especiais – no âmbito financeiro – mas também de disposições gerais sobre o direito à informação. Aliás, neste domínio podem ainda ser citados documentos internacionais consagrando o direito à informação: 8

Neste domínio, a par da informação publicamente disponibilizada e para o contacto dos investidores, deveria existir um mesmo elemento da entidade competente como interlocutor. 9 Na matéria de dados, revestem-se de importância o General Data Dissemination System – GDDS, estabelecido pelo FMI em 1997 e o Special Data Dissemination Standard - SDDS, estabelecido pela mesma instituição em 1996. Este último é importante no que toca aos países que têm ou procuram o acesso aos mercados de capitais internacionais. Para maiores desenvolvimentos, cfr. http://dsbb.imf.org/

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Declaração dos Direitos do Homem (Nações Unidas – 1948), Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1959), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), Convenção Americana dos Direitos do Homem (1969), Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1981) e Direito da União Europeia sobre o Processamento dos Dados Pessoais (1993). No domínio interno, pode assinalar-se, no Reino Unido, o Freedom of Information Act 2000 FOIA, segundo a qual «qualquer pessoa fazendo um pedido de informação a uma autoridade pública tem direito (a) a ser informado por escrito pela autoridade pública se tem a informação da descrição especificada no pedido; e (b) se é o caso, ser-lhe comunicada a informação». E reforça-se. Na elaboração e tratamento desta informação, e como a actuação dos financiadores internacionais não é despicienda, bem pelo contrário, não devem ser esquecidos os padrões internacionais necessários para o seu devido conhecimento. A interdependência assim o exige. A transparência implica a necessidade de tornar conhecido, sem dependência de pedido, isto é, de modo automático, o que é relevante para a formulação de juízos correctos sobre a divida pública. Daí deverem ser facultados os aspectos relativos às emissões dessa dívida, deverem ser prestadas informação sobre os mercados primários e secundários da dívida, as estatísticas, os objectivos para o risco, enfim todos os elementos que relevam para uma rigorosa determinação da condição financeira pública. Mas não se deve ficar por aqui. Deve considerar-se abrangida a disponibilização de informação que permita a atempada actuação dos interessados, o calendário anual dos leilões e até os encontros ou as possibilidades de encontro com os participantes no mercado financeiro. Todas estas informações são dados chave para a compreensão da real situação financeira do país. Como concretização destas exigências, deverão ser elaborados relatórios periódicos, contendo a informação necessária, de modo a verificar-se, não só a posição da dívida, mas igualmente se o previsto foi atingido. Por seu turno, sendo o acesso aos dados assaz relevante, deve, com obediência no princípio constitucional da igualdade ser exercido, quanto aos interessados, de modo igual, não se admitindo quaisquer discriminações, sejam positivas sejam negativas. Para o efeito, deve ser publicado antecipadamente um calendário das disponibilidades, do modo e as condições do acesso – sem conhecimento prévio e sem esta divulgação não há possibilidade real de aceder -, sendo fundamental, para tal, a acessibilidade. A existência de um sítio electrónico oficial que ofereça de forma simples e intuitiva as informações deve ser uma opção dos governos (market-friendlly format).10

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Conceito invocado pelo Institute of International Finance, Inc. Exemplo do afirmado por essa entidade a propósito dos avanços positivos efectuados pela República Dominicana neste domínio. Cfr. http://www.iif.com/emp/ir/article+116.php

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O que acima se escreveu está de acordo com o defendido em Guidelines for Public Debt Management.11 Neste documento do FMI, afirma-se, de forma até mais ampla, sobre a transparência e a responsabilização, existir a necessidade de se marcar a «claridade de funções, responsabilidades e objectivos das agências financeiras responsáveis pela gestão da dívida». Por isso, a importância de ser publicamente revelada a distribuição de responsabilidade entre o ministro das finanças, o banco central, ou uma agência separada de gestão da dívida, para o aconselhamento da política de gestão da dívida, cabendo a quem designado encarregar-se de emissões da dívida primária, acordos de mercado secundário, capacidade para aceitar depósitos e acordos de compensação e liquidação no comércio de títulos do governo e que «deveriam ser claramente definidos e publicamente revelados» os objectivos para a gestão da dívida. Reforça-se com a defesa de que «deveriam ser explicadas as medidas de custo e risco adoptadas». Aponta-se que também deveria existir um «processo aberto de formular e reportar as políticas de gestão da dívida», sendo necessário disponibilizar publicamente «os aspectos materialmente importantes das operações de gestão da dívida», sendo indispensável existir a «disponibilidade pública de informação sobre as políticas de gestão da dívida», abrangendo essa informação a «actividade orçamental passada, corrente e projectada, incluindo o seu financiamento e a posição financeira consolidada do governo». Assim, constrói-se um dever de «o Governo publicar regularmente a informação sobre o stock e a composição da sua dívida e bens financeiros, incluindo a sua moeda, maturidade e estrutura da taxa de juro». Por último, e no que ora releva, diznos o citado documento que deveria existir «a responsabilização e segurança de integridade por agências responsáveis pela gestão da dívida pública», abrangendo a auditoria anual externa das actividades de gestão de dívida. Obviamente a transparência será assaz dificultada com a “desorçamentação” e com a pluralidade de entidades envolvidas, agravada com a repartição não clara das respectivas competências. Na questão da dívida, aliás, como noutras, é relevante o conhecimento do que ocorre, por exemplo, com as entidades subestaduais e outras pessoas colectivas públicas que não o Estado. A ideia de omnicompreensão – já aludida anteriormente - está bem patente na Declaração de 1996 com o título Partnership for Sustainable Global Growth do Comité Provisório (Interim Committee) do FMI: «É essencial melhorar a transparência da política financeira perseverando, com esforços, reduzir as transacções extra-orçamento e os défices quase-financeiros».12 É que a “desorçamentação” causará a opacidade do que se pretende ser transparente. E no 11

Guidelines for Public Debt Management, Prepared by the Staffs of the International Monetary Fund and the World Bank (Amended on December 9, 2003), disponível em linha em http://www.imf.org/external/np/mfd/pdebt/2003/eng/am/120903.pdf 12 Disponível em linha http://www.imf.org/external/np/exr/dec.pdf

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mesmo sentido se deve rejeitar a inclusão da informação derivada da denominada “contabilidade criativa” ou “cosmética contabilística”. Estes dados em nada valorizam a avaliação de acordo com contas fiáveis, podendo induzir em erro quem utiliza os dados. Configura-se uma oportunidade para se abandonar em definitivo os malabarismos contabilísticos tão comummente utilizados pelas contas públicas.13 4. Para que serve a transparência? Os objectivos de qualificação do processo de gestão da dívida pública e de responsabilização do Poder Público O objectivo da transparência no quadro da dívida pública assenta na construção de uma gestão adequada e de uma boa governança, permitindo-se, com o respectivo controlo, a limitação de endividamento ou de endividamento com condições onerosas ou assaz onerosas, no presente e no futuro. No entanto, a transparência não é um fim em si mesma, não é o remédio para a dívida excessiva ou assaz onerosa, mas instrumento da revelação do que está bem ou mal, sendo, depois do revelado necessário, encontrar as soluções adequadas. Através da clareza das relativas operações e da inerente responsabilização face a desvios, a legitimidade da decisão pública renasce fortalecida. Assim, o objectivo da transparência, no sentido com que estou a tratar, não é, como noutros domínios, preservar a concorrência, antes é a protecção e a promoção do Interesse Público, ou seja, a transparência passa por propor uma fiscalização sadia por parte de todos da actividade do Estado, com o intuito de alcançar qualidade nas opções financeiras necessárias ao desempenho adequado da função pública. Nas palavras de MARK BOUVEN, reflectindo os ensinamentos de AUCOIN e HEINTZMAN, a “responsabilização pública é importante para poder conceder meios democráticos de monitorização e controlo da conduta governamental, para prevenir o desenvolvimento de concentrações de poder e para melhorar a capacidade de aprendizagem e efectividade da administração pública.”14

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Sobre o impacto negativo da contabilidade criativa, e consequente falta de transparência, no aumento do risco para a obtenção de crédito, cfr. Kerstin Bernoth, Guntram B. Wolff, Fool the markets? Creative accounting, fiscal transparency and sovereign risk premia. CESIFO Working Paper Nº 1732, Maio de 2006, onde se afirma peremptóriamente:”The empirical results confirm the hypotheses. Creative accounting increases the spread. The increase of the risk premium is stronger if financial markets are unsure about the true extent of creative accounting. Fiscal transparency reduces risk premia.” 14 Mark Bouvens, Analysing and assessing public accountability. A conceptual Framework. European Governance Papers (EUROGOV) nº C-06-01, 2006, pág. 25. Desta afirmação de três grandes razões para justificar a importância da responsabilização pública, o autor defende que cada uma das razões produz uma abordagem independente, respectivamente: a perspectiva democrática, a questão da soberania popular, a perspectiva constitucional, a prevenção da corrupção e do abuso de poder; a perspectiva cibernética, o aumento da capacidade de aprendizagem (pág. 25- 27).

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Ao exigir-se transparência abrem-se as portas à reanálise das opções efectuadas e ao modo com estas são concretizadas, promovendo uma análise de risco suplementar efectuada pelo próprio poder público. Apela-se aqui ao conceito de boa “gestão da dívida”. Como se escreve nas Guidelines for Public Debt Management, já citado15: «A gestão da dívida soberana é o processo de estabelecer e executar a estratégia para gerir a dívida governamental com vista a levantar o quantitativo exigido de financiamento, conseguir os seus objectivos de risco e custo e quaisquer outros objectivos da gestão da dívida soberana que o governo possa ter colocado, tais como desenvolver e manter um mercado eficiente para títulos governamentais». E frise-se, para o efeito, é necessária também a vontade política coerente actuando com os instrumentos apropriados. Mas, simultaneamente, através do processo de gestão da dívida pública que se pretende que seja sólido, ao se disponibilizar a informação completa, vai-se poder apreciar as razões dos financiamentos e a sua gestão, dando espaço de intervenção ao cidadão e permitindo que este entre em diálogo com o poder. No decurso desse diálogo, fruto da avaliação das informações disponibilizadas, pode revelar-se o indevido por parte do poder público, algo não incomum na actualidade em face da fragmentação do poder estatal e da concorrência de novos actores económicos e sociais nas esferas de decisão (e.g., lobbies económicos). Ao contrário de um espaço marcado pela opacidade onde o desconhecimento pouco o nada oferece de poder de reacção que não a linguagem pelo voto, perante o cenário da transparência agora descrito, assume-se a possibilidade de responsabilização do Estado, ou dos seus agentes, face aos seus cidadãos e/ou contribuintes e que, ao fim e ao resto, são os que terão de pagar a dívida assumida. A responsabilização, como tem vindo a ser escrito, tem a transparência por condição sine qua non e daí a já mencionada necessidade de a informação apropriada ser acessível antes e depois da gestão da dívida e em tempo apropriado. Só assim é que se pode verificar se os resultados previstos foram alcançados e, no caso negativo, desencadear a responsabilização correspondente que não deve limitar-se à política, antes deve estender-se à responsabilidade penal, financeira e disciplinar. A responsabilidade deve ser imputada, conforme o caso, aos executores, nomeadamente das acções não conducentes à consecução dos objectivos para a gestão da dívida, à não consideração dos elementos adoptados aquando da fixação daqueles objectivos. E o controlo – de legalidade e financeiro - deve ser necessariamente operado por uma entidade externa independente, sendo aconselhável igualmente o controlo interno com adopção de apropriado procedimento, sendo publicitados os resultados conducentes ao apuramento desta responsabilização. Com efeito, é indispensável a existência de um órgão 15

Guidelines for Public Debt Management, Prepared by the Staffs of the International Monetary Fund and the World Bank (Amended on December 9, 2003)

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independente que examine a informação, que a pondere e que emita as conclusões desses exame e ponderação. E esse ente independente tem de conter especialistas na temática orçamental, sob pena de se frustrar o real controlo desejado. Esta temática da responsabilidade financeira não é nova. De facto, a necessidade de transparência financeira, bem como da responsabilização, conduziu a que a Austrália (Charter of Budget Honesty – 1998) e a Nova Zelândia (The Fiscal Responsability Act de 1994 que foi consolidada com a Public Finance Act de 1989, na Public Finance Bill de 2004), publicassem leis sobre a matéria. A par destes países, podem ainda ser apontados como tendo leis de Responsabilidade Financeira, e dentre os membros da OCDE, o México (Lei da Responsabilidade Orçamental e Financeira Federal – 2006), a Hungria (Lei de Responsabilidade Financeira – 2007) e o Reino Unido (Fiscal Responsability Act – 2010). Também o Japão (Lei de Ajustamento Estrutural Financeiro – 1997) e os Estados Unidos (Budget Enforcement Act – 1990) estabeleceram normas sobre a responsabilidade.16 Julgo não haver dúvida que a maior e melhor responsabilização tem de estar ancorada na maior e melhor transparência. Aliás, olhando a história, verifica-se que o ambiente do controlo e a informação que o permite têm vindo a desenvolver-se, nomeadamente a partir do século XVII na Inglaterra.17 A responsabilização resulta do incumprimento, porém esse incumprimento pode ser desdobrado em três planos. Por um lado, o incumprimento derivado do não fornecimento de informações, por outro, o incumprimento derivado do não fornecimento da informação devida e, finalmente, o incumprimento gerado pela não execução do que foi estabelecido ou pela execução deficiente nos termos apropriados, incluindo o factor tempo. Para qualquer um dos tipos de incumprimento não há justificação. Este incumprimento poderá dar origem quer a uma responsabilidade vertical – aquela que deriva da consideração da hierarquia institucional e das suas funções e deveres - quer a uma responsabilidade horizontal colocada face a outros órgãos do Estado encarregados da gestão da dívida pública e ao público em geral. Igualmente detecta-se a possibilidade de uma responsabilização já chamada diagonal ou híbrida – eu chamaria oblíqua – aquela que é procurada pela sociedade, por exemplo, através da participação dos cidadãos no procedimento orçamental. 16

Cfr. Ian Lienert, Should Advanced Countries Adopt a Fiscal Responsibility Law?. IMF Woking Paper, WP/10/254, págs. 11 e 12. 17 Clara e inequivocamente, quando se está perante uma multiplicidade de níveis de poder, a questão da transparência e da responsabilização agudizam-se, quer quanto à sua necessidade quer quanto à sua dificuldade. Sobre a questão da responsabilização em sistemas de governo com múltiplos níveis de decisão, em especial sobre o caso europeu, cfr. e.g. Carol Harlow e Richard Rawlings, Promoting accountability in multi-level governance: a network approach. European Governance Papers (EUROGOV), nº C-06-02, 2006

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5. Quais os interessados na transparência? São diversos os grupos interessados na construção de um regime de transparência da dívida pública. De facto, os grupos têm vindo a ampliar-se, apresentando e conjugando interesses diversos. Por um lado, encontram-se aqueles que se ocupam da elaboração da política, aqueles que lidam quotidianamente com o Estado devedor, por outro, um lugar de destaque é concedido, nos interessados, aos investidores, quer sejam potenciais quer sejam reais credores. Num mercado financeiro necessariamente marcado pela confiança, aqueles que procuram investir apenas o farão se o grau de confiança for elevado, oferecendo segurança no retorno da aplicação. Aqui o papel das agências de notação financeira tornou-se primordial. A sua influência no índice de confiança do investidor é plena e assumida. Mas não só. Como resulta do anteriormente exposto, os cidadãos, e especialmente os contribuintes que suportarão a carga da dívida, bem como os estudiosos das finanças públicas e da fiscalidade, nomeadamente os investigadores e docentes, ocupam igualmente o núcleo dos interessados na transparência, revelando um interesse claro e inequívoco no acesso à realidade das contas públicas, designadamente ao domínio da dívida pública. Aliás, como defendi, apenas da transparência pode resultar a responsabilização do poder público perante as suas acções e esta é uma consequência inevitável, como revelado, da democracia participativa. E, claro, ao se promover esta democracia participativa e subsequente responsabilização, automaticamente estamos a introduzir o Governo como uma entidade interessada também na transparência, porque, através desta e de um bom processo de gestão da dívida pública, o poder político encontrará maior legitimidade. Contudo, neste momento deve ser feita uma paragem para melhor reflectir sobre a questão do interesse do cidadão. Apesar de o até agora expressado sobre a transparência revelar um dever para o poder público, não menos importante é a necessidade de existir real e efectivamente uma vontade de os cidadãos quererem conhecer a disciplina orçamental pública. Sem essa vontade e consequente controlo por parte do cidadão de pouco valerá uma política de transparência pública. Precisamente por isto deve proceder-se a todos os esforços para se criar e/ou reforçar a consciência de uma cidadania do conhecimento orçamental para que o interessado tenha consciência dos seus direitos, pois, só através deste exercício de cidadania se poderá alcançar o verdadeiro objectivo da transparência, a responsabilização do poder público, uma

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responsabilização que deve ser marcada pela existência de sanções quando sejam desrespeitados os princípios e os deveres mencionados.18-19 6. Qual o valor da transparência? A sua importância e as suas consequências Como antes afirmado, a informação, pressupondo a bondade do que é revelado, possibilita a transparência e esta possibilita a responsabilização, não só em virtude do exame das contas, mas também, se for caso disso, da sua certificação. A transparência e a responsabilização são instrumentos fundamentais para uma sã gestão orçamental e, consequentemente, da dívida. Ao construir-se um quadro de sã gestão orçamental, o normal será evitar, no que ora interessa, o excessivo endividamento ou o endividamento em condições assaz onerosas, sendo indiscutível tal solução contribuir para a requalificação do sistema democrático. A transparência e a responsabilização contribuem, de forma directa e inequívoca, para a boa governança.20 Assim, afirma-se que o interesse pela transparência orçamental apenas se compreende nos regimes democráticos, em especial nos regimes democráticos que buscam a permanente melhoria de qualidade no seu desempenho e no desenvolvimento da sua essência. Esta ideia vem demonstrada numa série de documentos internacionais de instituições com reconhecida importância. Na Interim Committee Declaration do FMI, já anteriormente citada, escreve-se que a transparência «atribui particular importância» a «alcançar equilíbrio orçamental e 18

O conceito de cidadania do conhecimento orçamental surge como um reflexo de um dos pilares fundamentais da construção europeia, a democracia participativa. Embora não se tenha encontrada esta relação directa no espaço da União Europeia, o facto é que a lógica assim o impõe. De facto, a democracia participativa surge como uma realidade que procura promover mecanismos de interacção entre os cidadãos e as instituições, possibilitando o controlo da sociedade civil sobre a Administração Pública e o conhecimento do estado das finanças públicas, nomeadamente da dívida soberana, constitui, inequivocamente um exemplo nítido dessa participação. É uma questão de legitimidade que também aqui se coloca, de legitimidade das decisões públicas. O que se espera é que essa legitimidade seja adquirida no domínio da dívida através do processo de controlo e discussão inerente. 19 Afirmando um papel de destaque a múltiplas instituições participantes na sociedade, como os media e as organizações não governamentais, na busca por uma responsabilização crescente por parte do poder público, cfr. Allan Rosenbaum, Good Governance, Accountability and the Public Servant 20 “There is no issue more central to good governance than accountability generally and the accountability of those in government to their citizenry in particular. Consequently, there is no issue more central to any discussion of the challenges facing government and civil servants, either now or in the 21st Century, than the matter of commitment to a high degree of accountability. Indeed, issues of accountability to the citizenry are quite simply the most important elements of contemporary governance and, as a consequence, need to be at the very center of any discussion about good governance, education for the public service and the future millennium.” Allan Rosenbaum, Good Governance, Accountability and the Public Servant

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reforçar disciplina financeira num quadro plurianual. Desequilíbrios financeiros continuados e endividamento público excessivo, bem como as pressões por eles colocadas nas taxas de juro reais globais, são ameaças à estabilidade financeira e crescimento durável. É essencial aumentar a transparência da política financeira perseverando com esforços para reduzir transacções extra-orçamento e défices quasefinanceiros».21 A transparência é de tal modo importante que o Code for Fiscal Stability do Reino Unido (1998) 22 considerava-a como o primeiro dos cinco princípios da gestão da política financeira - os outros eram a estabilidade, a responsabilidade, a equidade e a eficiência. Neste quadro, apresentava-se a transparência como exigência no estabelecimento dos objectivos da política financeira, implementação da política e na apresentação das contas públicas, sendo exigido o fornecimento da informação económica e financeira para o acompanhamento da execução e avaliação do resultado.23 Reforçando o apresentado, nas já citadas Guidelines for Public Debt Management, escreveu-se: «Como sublinhado no Code of Good Practices on Transparency in Monetary and Financial Policies: Declaration of Principles (MFP Transparency Code), o caso da transparência em operações de gestão de dívida é baseado em duas premissas: primeiro, a efectividade pode ser reforçada se os objectivos e instrumentos de política são conhecidos do público (mercados financeiros) e se as autoridades podem fazer vinculações credíveis para as cumprir; segundo, a transparência pode aumentar a boa governança através de maior responsabilização dos bancos centrais, ministérios das finanças e outras instituições públicas envolvidas na gestão da dívida».24 Já em 1998, autores como GEORGE KOPITS e JON CRAIG, ao analisarem a transparência nas operações governamentais e qual o papel do FMI na promoção desse objectivo, tornaram clara a importância da transparência ao afirmarem que «a transparência fiscal – definida como abertura pública nas instituições públicas, intenções de política financeira, contas de 21

Parcialmente transcrito da pág. 9 de FMI Interim Committee Declaration, Partnership for Sustainable Global Growth 22 Embora não constitua lei, porque apenas foi aprovado por resolução da Câmara dos Comuns, continua a ter interesse, como resulta da sua invocação feita pelo 5(2) do Fiscal Responsability Act 2010. Cfr.ainda Ian Lienert, Should Advanced Countries Adopt a Fiscal Responsibility Law?. IMF Woking Paper, WP/10/254, pág.13 23 Cfr. o documento do Tesouro inglês, A Code for Fiscal Transparency. Falou-se na altura na construção de uma regra de ouro para o investimento efectuado pelo sector público (golden rule of public sector investment) que constituiria na proposição de que, ciclicamente, o endividamento público não poderia exceder a formação líquida de capital fixo do sector público administrativo. Cfr. e.g. Willem H Buiter, Notes on 'A Code for Fiscal Stability.', Oxford Economic Papers, Vol 53 (2001), Issue 1,pág. 1 a 19 e, a propósito da actualização sobre a questão, Carl Emmerson, Christine Frayne e Sarah Love, Updating the UK’s Code for Fiscal Stability, The Institute for Fiscal Studies, WP04/29 24 Guidelines for Public Debt Management, Prepared by the Staffs of the International Monetary Fund and the World Bank (Amended on December 9, 2003), cfr. Capítulo IV, ponto B

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sector público, indicadores e previsões – é fundamental para a sã política económica». E acrescentam: «a transparência permite o mercado avaliar e impõe disciplina à política do governo, aumentando o risco político de políticas não sustentáveis. O papel potencial da transparência em promover boa governança tem sido amplamente reconhecido».25 Um dos pontos de referência generalizada passa por reafirmar que através da transparência, além de tornar possível a responsabilização e, num momento anterior, o conhecimento do estado financeiro público, criam-se ainda importantes condições de previsibilidade para os mercados. E a este propósito há que fazer um reforço de posição. Dada a credibilidade que a transparência gera, para além do planeamento que permite, tem de se mencionar o impacto que essa provoca nos mercados. Não se esqueça que os mercados são, como visto, interessados na sua existência. Os credores (potenciais e efectivos) desejam saber o que existe, qual a verdadeira situação económica e financeira, para decidirem. As decisões de investimento, e de forma crescente e gradual, assentam na maximização da informação conseguida, pois é através da obtenção de informação que a análise do risco pode ser efectuada. Assim, se forem adoptadas as práticas que à transparência conduzem, existirão maiores possibilidades de endividamento e em condições menos onerosas, eliminando-se ou reduzindo-se também o risco de corrupção. A transparência, tornando conhecidos os aspectos relativos à dívida, gera um clima de maior confiança por parte dos investidores e dos cidadãos em geral. Estes são factores imprescindíveis à contemporaneidade onde a força dos especuladores assumiu uma posição nevrálgica no funcionamento dos mercados e onde todas as armas para controlar estes movimentos são imprescindíveis e devem ser exponenciais. Assim, pode afirmar-se que a falta de transparência, nomeadamente dos objectivos da gestão da dívida, influirá na volatilidade dos mercados financeiros.26 A falta de transparência, para além de impedir ou dificultar a responsabilização, fará surgir ou crescer as dificuldades nos mercados financeiros e a desconfiança da população, com consequências políticas. As consequências dessa falta serão mais graves, aliás como sucede em qualquer outro caso – pelo argumento da perda de confiança que daí resulta – se as falhas relativas à transparência forem deliberadas, com propósitos vários, nomeadamente evitar ou diminuir a responsabilidade ou a preocupação de captar votos.27 Deste modo, a necessidade de restrição da informação – em virtude da segurança nacional, ordem pública ou até do segredo das negociações – deveria ser 25

George Kopits e Jon Craig, Transparency in Government Operations, International Monetary Fund, Washington DC, January 1998, pág. 13 26 No mesmo sentido Kerstin Bernoth, Guntram B. Wolff, Fool the markets? Creative accounting, fiscal transparency and sovereign risk premia. CESIFO Working Paper Nº 1732, Maio de 2006 27 Tal afirmação não significa que tais consequências não possam ocorrer quando a falta de transparência resulta de deficiências dos instrumentos utilizados ou, em geral, de actuação não dolosa.

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estritamente limitada para evitar manipulações ou subterfúgios por parte do poder público financeiro. O equilíbrio entre a transparência e a confidencialidade não pode ser o fundamento para limitar, sem mais, a informação. Aquilo que apontei até ao momento fundamenta-se numa elegia à transparência. Obviamente, vozes virão relembrar as desvantagens que a transparência pode despertar. Por um lado, pode ser invocado o custo dos instrumentos que devem ser utilizados para que ela ocorra. De facto, quando existe um conjunto complexo e denso de requisitos quanto ao conteúdo, quanto à forma e quanto ao procedimento, certamente essas exigências têm custos inerentes. Por outro lado, pode apontar-se ser a transparência um instrumento que implica a falta de confiança nos governantes legitimamente eleitos para o desempenho dos cargos públicos. Quanto a estas duas oposições, parece-me que não têm impacto de maior ou, pelo menos, não o devem ter. Fazendo uma análise custo/benefício, julgo ser menor o custo da transparência quando comparado com os múltiplos benefícios que esta produz. De facto, os custos associados à construção da informação é também uma boa maneira de os governantes terem acesso a dados simples e completos que lhes permitam verificar o funcionamento dos seus serviços e o estado da sua governação, não de forma tão sectorial, mas antes de forma consolidada. E, por outro lado, num regime democrático espera-se que os governantes tenham a consciência de que têm de ser sempre objecto de escrutínio. Não encarado como uma espada de Dâmocles, mas antes como uma condicionante integrada no exercício da função pública e um incentivo a procurar sempre a melhor qualidade no desempenho do cargo público. Até porque, mesmo que se obscureça e dificulte a avaliação realista por parte do cidadão comum, os mercados financeiros demonstrarão a sua dúvida e a sua desconfiança no momento da obtenção dos financiamentos, recusando a obtenção desses ou não a proporcionando nas melhores condições possíveis. E este dado só pode contrair as aptidões e os ensejos para a promoção de maiores crescimento e desenvolvimento. 7. A questão da imposição de limites normativos ao endividamento público Ainda que não fazendo parte da questão da transparência da dívida pública, mas intimamente ligada com esta, encontramos a temática da quantitative approach. Esta é uma questão que se reveste de grande interesse, saber se se deve ou não proceder a inclusão de um limite para o endividamento. Sendo que a inclusão poderá ocorrer em texto constitucional ou na lei do Orçamento ou noutro tipo diverso de acto normativo, não sendo indiferente a escolha. O limite do endividamento está estabelecido mercê de compromissos internacionais. Assim, conforme o Protocolo sobre o procedimento relativo aos défices excessivos, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado sobre o Funcionamento 17

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da União Europeia, apresenta-se um limite de 60% para a relação entre a dívida e o PIB a preços de mercado, com referência ao artigo 126.º do último Tratado mencionado. Neste âmbito, tem-se o cuidado de definir dívida, entendida como «a dívida global bruta, em valor nominal, existente no final do exercício, e consolidada pelos diferentes sectores do governo em geral …» e, igualmente, definindo-se governo como «o governo central, o governo regional ou local e os fundos de segurança social, com exclusão das operações comerciais tal como definida no Sistema Europeu de Contas Económicas Integradas». Na União Europeia debate-se a inclusão, nas Constituições dos Estados Membros, do «mecanismo de alerta de dívida». Este mecanismo foi proposto no Relatório Final do Grupo de Missão no final de 201028, decorrente da necessidade de estabelecer um «quadro credível de resolução de crises para a área do euro capaz de dar solução a situações de dificuldade financeira e evitar o contágio» entre as economias. Afirma-se que, em face das falhas do actual quadro de governação económica, releva melhorar esta governação tendo em conta a forte interdependência das economias no interior da União Europeia e, em especial, na área do euro. Assim, «o Grupo de Missão recomenda que seja instituído um novo mecanismo de supervisão macroeconómica, assente num quadro jurídico igualmente novo, a par do PEC, que se centra nos aspectos orçamentais.» E isto porque se aponta para o excessiva concentração no deficit das economias e a secundarização do nível da divida nacional. «Para o futuro, o Grupo de Missão recomenda que dê maior destaque à divida pública e à sustentabilidade orçamental no quadro de supervisão orçamental. Um forte endividamento representa um entrave as perspectivas de crescimento a médio e a longo prazo, agrava o risco de instabilidade financeira e reduz a capacidade para aplicar, quando necessário, politicas orçamentais contracíclicas. A redução dos níveis da dívida assume também especial importância à luz do envelhecimento das populações e do impacto dos recentes pacotes de medidas de salvamento dos bancos.» Afirma-se, por isso, que «na vertente preventiva do PEC, deverá exigir-se aos Estados-Membros confrontados com um nível de divida superior a 60% do PIB e com riscos acentuados em termos de sustentabilidade geral da divida uma trajectória de ajustamento mais rápida aos objectivos de médio prazo (OMP). Na vertente correctiva do PEC, o Grupo de Missão recomenda que se avalie, no quadro do procedimento relativo aos défices excessivos (PDE), se o défice orçamental é compatível com uma diminuição contínua, substancial e sustentável do rácio divida/PIB. Deste modo, a mera redução do défice para menos de 3% do PIB não devera bastar para a revogação do PDE, caso não tenha sido possível imprimir à dívida uma trajectória descendente tida como satisfatória. Do mesmo modo, os Estados 28

Relatório solicitado pelo Conselho Europeu de 25-26 de Marco e de 17 de Junho de 2010. Relatório publicado 15302/10 (consolidated version), Bruxelas, 21 de Outubro de 2010, disponível em linha http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/ec/117443.pdf

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Membros com rácios da divida superiores a 60% do PIB e défices inferiores a 3% seriam objecto de PDE a menos que o decréscimo da divida durante um determinado período anterior fosse considerado satisfatório.» O primeiro aspecto apontado para a construção do novo mecanismo de supervisão macroeconómica passa por uma «avaliação anual do risco de desequilíbrios e vulnerabilidades macroeconómicas, no contexto da avaliação dos Programas Nacionais de Reforma e dos PEC dos Estados-Membros, com um mecanismo de alerta29 baseado num painel com um número reduzido de indicadores e em análises económicas.»30 Com base nesse mecanismo de alerta de dívida, sempre que este assinale efectivos ou potenciais desequilíbrios excessivos, a Comissão analisará exaustivamente os dados e o contexto.31 Se forem detectados «casos particularmente graves, o Conselho devera lançar um"procedimento por desequilíbrio excessivo", a que estará associado um prazo para a tomada de medidas destinadas a resolver o problema. Aos Estados-Membros da área do euro podem, em última instancia, ser aplicadas sanções, em caso de repetida não observância. […]. Sempre que as políticas económicas de determinado Estado-Membro não forem compatíveis com as orientações gerais das políticas económicas ou forem susceptíveis de comprometer o bom funcionamento da União Económica e Monetária, a Comissão pode dirigir uma advertência precoce directamente ao Estado-Membro em causa.» No espaço das escolhas nacionais já se encontram múltiplos ordenamentos jurídicos a integrarem no seu sistema normativo uma limitação do valor da dívida. Assumindo o compromisso constitucional de limitar o valor da dívida pública, encontrase a Polónia. No artigo 216º, nº 5 do texto fundamental, apresenta-se o limite de 3/5 do PNB. Mas também a República Federal da Alemanha criou um limite constitucional. Neste último Estado, a matéria é regulada no artigo 109º (3) da Lei Fundamental (Grundgesetz). Aí não há a apresentação de um limite formal para a dívida pública. Contudo, quer à Federação quer aos Estados (Länder), não são permitidas quaisquer novas dívidas e exige-se a diminuição da dívida existente. Estabelece-se, para tal, um período transitório: desde 2016 é permitido contrair nova dívida até 0,35% do PNB, porém, não é admitida criação de nova dívida a partir de 2020. Apesar de aparentemente rígida, a lei permite algumas excepções. A par dos dois países já referidos, e sem intuito exaustivo, pode ainda invocar-se o Brasil. No artigo 167.º da respectiva Constituição veda-se, no seu inciso III, «a realização de operações de créditos que excedam o 29

Sublinhado pessoal Recomende-se que seja a Comissão a elaborar uma lista de indicadores, indicadores esses que deverão ser aprovados pelo Conselho, mas que devem estar em permanente alerta, sendo actualizados sempre que necessário. 31 «Para a realização da referida análise, poderá prever-se o destacamento de missões de supervisão da Comissão para o país, em ligação com o BCE no caso de países da área do euro e do MTC II.» 30

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Publicado como/Published as: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012 Sugestão de citação: PIRES, Rita Calçada. Transparência da dívida pública: o caminho para a qualificação do processo de gestão da dívida e para a responsabilização do poder público – Parte I. Revista de Finanças e Direito Fiscal, n.º 3, Ano IV, Janeiro 2012

montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta».32 Como exemplo paradigmático de limitação não constitucional deve ser mencionado o Reino Unido, onde a regra do investimento sustentável impunha dever a divida líquida do sector público fixar-se, ciclicamente, num nível sustentável e prudente (refere-se, normalmente, o valor de 40%). Hoje, o Fiscal Responsability Act 2010 estabelece limites para o endividamento, visando a respectiva redução. Assim, como deveres iniciais e medido em função do PNB, o endividamento líquido do sector público, no período de 2010/2011 a 2015/16, deve, em cada ano, ser menor do que no ano anterior. Mas mais se afirma. O endividamento líquido, expresso em percentagem do PNB, em 2013/2014, não deve exceder metade do nível de 2009/2010 e, ainda, em 2015/16 deve ser menor do que em 2014/15, medido em percentagem do PNB. No mesmo normativo são ainda estabelecidos deveres para assegurar sãs finanças públicas após as datas indicadas. Prevê-se deverem ser presentes ao Parlamento relatórios da estratégia económica e financeira ou pré-orçamento sobre o progresso do cumprimento do acima estabelecido, dando explicação se os objectivos não forem atingidos. No quadro legal britânico, apela-se ainda a relatórios de progressos e relatórios sobre cumprimento, dando espaço para que o Code for Fiscal Stability possa estabelecer disposições sobre o conteúdo e a forma dos citados relatórios. Também a Nova Zelândia, ainda que com outros valores e tipos de limites, aceitou um normativo limitador.33 Mas, para além dos preceitos legais de diverso grau hierárquico, também a limitação da dívida tem sido objecto de acordos de coligações partidárias. Assim, refira-se o acordo de 2007 na Dinamarca – estabilidade de um ratio da dívida líquida em relação ao PNB no longo prazo – e o caso da Holanda, também no mesmo ano, – onde se acordou que a dívida desceria desde cerca de 50% na ocasião para 40% quatro anos seguintes.34 Vários foram os valores referidos, o que coloca a questão de saber, tendo em mente a sustentabilidade, qual o nível aceitável de endividamento? Bastará um valor constante ou um cada vez menor? Poderia ser fixado um limite sem atender às circunstâncias? Estas perguntas requerem respostas complexas e difíceis. Aquilo que parece claro e passível de ser assumido por todos é que o estabelecimento de um limite ao endividamento, restringindo-se a discricionariedade e, por maioria da razão, o arbítrio, é algo que oferece maior credibilidade à realização dos objectivos pretendidos. 32

No caso brasileiro, reveste-se ainda de interesse o disposto na Lei Complementar, de 4 de Maio de 2000 (Lei da Responsabilidade Fiscal), por exemplo, artigos 4º, 9º, 30º e 31º. 33 Referindo o nível prudente como o elemento em análise na limitação. 34 Cfr. Ian Lienert, Should Advanced Countries Adopt a Fiscal Responsibility Law?. IMF Woking Paper, WP/10/254, pág. 25

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E, por outro lado, a identificação de um limite é premissa para conseguir/preservar o equilíbrio intergeracional. E mais, qualquer que seja a solução, algo de comum é necessário: a existência de sanções adequadas como forma de responsabilizar quem contribui para o desfasamento da capacidade financeira do Estado e a actuação pública presente e futura. Rita Calçada Pires Lisboa, Abril de 2011

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