Polícias de Ciclo Completo

July 5, 2017 | Autor: Andre Zanetic | Categoría: Policing, Public Safety
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Descripción

Polícias de Ciclo Completo1 André Zanetic2 Junho de 2015

No Brasil, o sistema de segurança pública, e especificamente o sistema policial, tem sido historicamente deixado à margem dos processos de reforma institucional que se tem discutido em diferentes áreas do setor público, em especial no período que se seguiu ao processo de redemocratização do país. Nesse contexto, o processo de construção das forças policiais acabou por formar um modelo que não encontra respaldo nos diferentes contextos internacionais, sendo marcado por disfunções que têm sido apontadas por especialistas e também por membros das polícias como diretamente responsáveis pela ineficiência e ineficácia nas funções desempenhadas por essas forças. Tendo em vista esse enquadramento, o objetivo deste texto é apresentar alguns aspectos relevantes sobre o ciclo completo de policiamento, que será contextualizado a seguir, deixando claro que nesta ênfase ao tema não se está minimizando ou desconsiderando as diversas outras pautas fundamentais para a discussão sobre a reforma das polícias – como, por exemplo, a questão da desmilitarização, a organização das carreiras policiais e a própria construção da legitimidade da atuação dos agentes policiais.

Entre os principais aspectos que caracterizam o modelo policial deficiente está o sistema bipartido das polícias brasileiras, constitucionalmente organizadas em nível estadual: as polícias militares e as polícias civis3. Na prática, este sistema divide o trabalho policial – que em realidade compõe-se de apenas uma grande dimensão, ou seja, o enfrentamento das dinâmicas criminais existentes na sociedade, e da sensação de insegurança por elas gerado –

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Texto publicado em um caderno temático produzido pela Câmara dos Deputados, em apoio à realização de um Seminário internacional de Segurança Pública organizado em conjunto com a Fundação Leonel Brizola (Câmera do Deputados - Auditório Nereu Ramos /Brasília-DF). 2

Doutor em Ciência Política e Pesquisador do NEV/USP.

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Esta subdivisão das polícias brasileiras se trata de um arraigamento que data, a menos em caráter formal, de quase 200 anos de existência: em 1841, na reformulação do nosso primeiro Código de Processo Penal (de 1832), foram pela primeira vez legalmente separadas as áreas da polícia judiciária e da polícia administrativa, e desde então esta separação tem perpetuado, em diferentes formatos, até transformar-se em nosso binômio polícia investigativa e polícia preventiva, em um arranjo institucional que praticamente não encontra respaldo em outras partes do mundo.

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em duas corporações que não se comunicam e, corriqueiramente, competem entre si em busca de poder e algumas regalias.

Quais são os serviços policiais centrais e o que é o ciclo completo de policiamento? Em qualquer contexto, o trabalho policial constitui-se de uma série de atividades que tem como aspecto central os serviços de patrulhamento e prevenção e os serviços relacionados à investigação. O trabalho ostensivo (patrulhamento e prevenção) via de regra é realizado de forma uniformizada, ao contrário do trabalho investigativo, em que o trabalho é em geral realizado de forma não-uniformizada. Quando há ciclo completo de policiamento, situação de quase todos os países do mundo, os policiais que realizam esses diferentes serviços pertencem todos a um mesmo departamento policial, que é responsável pela efetivação do conjunto das atividades policiais. É comum que policiais que atuem em um modelo institucional de ciclo completo de policiamento, em diferentes momentos da carreira, realizem tanto serviços investigativos quanto ostensivos, o que irá inclusive incrementar sua formação e experiência, levando-o a compreender melhor o sentido e os objetivos de suas ações.

A organização da polícia em ciclo completo incentiva, desta forma, o trabalho conjunto, em parceria, e o compartilhamento de informações entre as diferentes agências responsáveis pelo trabalho policial, uma vez que as motivações para as competições entre elas são aqui consideravelmente reduzidas. Características essenciais básicas do trabalho policial, como os padrões mínimos de investigação devem ser necessariamente conhecidos por todos, independentemente de que unidade sejam, o que facilitará, por exemplo, a compreensão e atuação frente as diferentes ocorrências, desde o atendimento inicial da cena do crime até a compreensão dos processos mais complexos de desvelamento das práticas criminais.

A bipartição do modelo policial brasileiro traz, por outro lado, uma série de desconexões entre o trabalho investigativo realizado pela polícia civil e as práticas de trabalho preventivo realizado pelas polícias militares, entre as quais vale destacar:

- Desarticulação para a compreensão dos fenômenos criminais e para o planejamento de ações adequadas para cada um deles, pautada também pela proliferação de rixas, desconfianças e competições entre policiais civis e militares;

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- Problemas de integração das bases de dados que permitiriam racionalização e afinidade estratégica e operacional;

- Sobreposição de competências, como em casos da realização de patrulhamento preventivo por policiais civis ou de procedimentos de investigação por parte de policiais militares;

- Barreira conceitual (e corporativa) à compreensão das interconexões entre as atividades de prevenção e investigação;

- Falha (ou ausência) da realização de procedimentos básicos como a preservação do local do crime e a realização de investigações iniciais – constata-se, sobretudo, ser frequente entre as polícias a inexistência de treinamentos adequados para que as polícias preventivas possam realizar esta atividade de forma satisfatória;

- Ausência de comunicação efetiva entre as policias civil e militar (para além de uma relação mais “formalizada” que ocorre, em algumas localidades, nos conselhos comunitários de segurança, não há uma rotina sistemática de troca de informações; sendo esse tipo de relação algo sempre “extra institucional”, uma vez que não há nenhuma regulação formal dessa relação)4.

- Custo excessivo relativo à manutenção de duas estruturas corporativas distintas voltadas à execução do trabalho policial.

Frente a esse quadro, restam poucas dúvidas quanto à necessidade de seguir o perfil dos modelos internacionais e reconstruir nossas forças policiais como uma polícia que opere em ciclo completo de policiamento. Isso exigirá também fazer algumas escolhas voltadas à construção de um formato institucional que melhor se enquadre ao caso brasileiro, com suas características culturais, regionais, institucionais e históricas, que se refletem inclusive em cenários consideravelmente variados com relação às dinâmicas criminais existentes. 4

Por outro lado, no plano informal há bastante diálogo entre policiais civis e militares sobre crimes ocorridos. Entrevistas com policiais mostram que informalmente PMs muitas vezes acabam auxiliando os investigadores com informações específicas sobre crimes, situações e indivíduos específicos. O que por sua vez possui o potencial de gerar devolutivas importantes para o desenvolvimento do próprio trabalho preventivo.

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Sem querer definir neste momento o enquadramento institucional mais apropriado, pois acreditamos que esta definição deve ser o resultado de um amplo processo de discussão que respeite as diferenças existentes no cenário nacional, cabe apontar que soluções menos restritivas, como a possibilidade de existência de diferentes competências de policiamento, seja por tipos de crime, seja por delimitações territoriais, podem ser apropriadas devido tanto à diversidade de questões que emergem no campo das dinâmicas criminais, quanto à amplitude das dimensões do território nacional, com suas diferentes instâncias de governo.

Estas características de reforma institucional das polícias seriam possibilitadas pela retirada da esfera federal da definição do modelo policial a ser seguido por todos os entes federativos. O modelo policial poderia ter a ganhar com a possibilidade de definição autônoma de cada estado, e mesmo de cada município, acerca da constituição de polícias de ciclo completo por instâncias de governo; de polícias de ciclo completo por tipos criminais, como ocorre em diversos países5; pela constituição de uma polícia estadual única de ciclo completo; e mesmo pela manutenção do modelo hoje existente de subdivisão das polícias, para os estados que assim optarem.

A abertura, experimentação e avaliação será a única forma de atingirmos acertos na escolha de modelo(s) efetivo(s) para o setor.

Tendo feitas estas colocações, temos que destacar também que o gap entre nosso modelo institucional de policiamento e os encontrados no cenário internacional é ainda consideravelmente mais profundo do que aparenta, pois não se trata apenas de uma questão organizacional e/ou legislativa, mas também de uma constelação cultural profundamente arraigada no universo das duas corporações, sendo que parcelas consideráveis dessas corporações sistematicamente protegem e defendem com os recursos materiais e simbólicos existentes essa distinção existente entre as duas polícias.

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Neste caso pode-se, por exemplo, utilizar simultaneamente o critério territorial e o de tipificação criminal, em que caberia à polícia federal os crimes definidos como concernentes a esta instância (como por exemplo crimes interestaduais), aos estados os crimes de maior potencial ofensivo que não couberem à esfera federal e aos municípios os crimes de menor potencial ofensivo.

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Nesse sentido é fundamental destacar, também, que a mudança normativa poderá significar um primeiro passo rumo a resolução desse descompasso histórico, passo que terá de se estender às futuras novas “sub-categorias” das polícias, assim como a questão específica da integração e consequentemente da eficácia da ação policial. As mudanças institucionais são essenciais, inclusive para que se ultrapasse os limites que acabam se impondo frente a qualquer tentativa duradoura de transformação do trabalho policial. Não faltam exemplos recentes - como já temos acompanhado em diferentes tentativas de integração entre as polícias que se tem tentado colocar em prática – de que a partir de um determinado ponto esse tipo de perspectiva de integração esbarra nas limitações do enquadramento institucional e começa a recuar novamente6.

Desde já, é importante destacar que ao primeiro passo ligam-se os velhos e os novos desafios. Essa percepção do imbricamento entre as diferentes fases do trabalho policial como algo indissociável – que é problemática mesmo nos países com ciclo completo de policiamento, é, portanto, um dos maiores desafios para a construção de novos modelos de atuação das polícias, tendo em vista sobretudo que estas que estão aí não serão, ao menos de imediato, substituídas por novas. Serão elas, inclusive, com suas possibilidades, barreiras, falhas de formação, motivação e vícios, que constituirão as polícias do futuro que esperamos que tragam resultados mais satisfatórios do que os que temos até aqui observado no setor.

Referências Bibliográficas:

Association of the Chief of Police Officers (United Kingdom). Investigation burglary: a guide to investigative options and good practice. Produced on behalf of the Association of Chief Police Officers by the National Policing Improvement Agency, 2011. BRASIL. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N.o 589, DE 2006. Junior, Aldo Antonio dos Santos, Formehl, Kelly Cristina e Piccoli, Daniela Lain. O ciclo completo de polícia no Brasil. Revista de Antropología Experimental, 11. Texto 1. 2011 Muniz, Jaqueline e Musumeci, Leonarda. As instituições de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Em: LESSA, Carlos (org). Reforma do Estado e proteção social: Os setores de saúde e segurança públicas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2000.

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Veja-se, por exemplo, a experiência recente ocorrida no estado de Minas Gerais.

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Teixeira, Nilo. A política de integração de Minas Gerais: A ‘dependência de trajetória’ na consolidação da política brasileira de segurança pública. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 6 - no 3 - JUL/AGO/SET - pp. 369-410.

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