O irrepresentável existe? Comentário sobre a série fotográfica “Syrie: La barbarie au quotidien”(2013) de Emin Özmen

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O irrepresentável existe? Comentário sobre a série fotográfica “Syrie: La barbarie au quotidien”(2013) de Emin Özmen1 Douglas Romão2 Pretendemos neste artigo discutir a polêmica suscitada a partir da reportagem fotográfica “Syrie: La barbárie au quotidien”(2013) feita pelo turco Emin Özmen, ganhador do prêmio de público no Prix Bayeux-Calvados de 2014. Trata-se de uma série de nove fotografias, dentre elas decapitações públicas, promovidas pela facção armada ISIS (Estado Islâmico do Iraque e al-Sham) em quatro vilarejos da região de Aleppo, Ehtemlat, A’Azaz, Saran e Keferghan, em 31 de agosto de 2013. Estas fotografias suscitaram debates no seio do júri profissional que escolheram não premiar seu trabalho. Além disso, veículos de comunicação, inclusive o jornal Sabah, onde trabalha o fotojornalista, não aceitaram publicá-las, com exceção de Time e Paris Match. Aqueles que negaram o fizeram sob a argumentação de serem imagens sangrentas insustentáveis, e, quando muito, promotoras de propaganda e não entendida como trabalho jornalístico. Para efetuarmos essa discussão utilizamos os artigos produzidos por André Gunthert, professor de história visual da EHESS, “Photo de guerre: l’illusion de la transparence”; Vincent Magos, psicanalista responsável pela coordenação de ajuda às vítimas de abusos na Féderation Wallonie-Bruxelles, “Il fat refuser de regarder les images des mises à mort”; e Ammar Abd Rabbo, fotógrafo francês de origem síria membro do júri do Prix Bayeux-Calvados de correspondentes de guerra, “Pourquoi je ne suis pas d’accord avec le choix du public au prix Bayeux des correspondentes de guerre”. Sob a luz do questionamento da irrepresentabilidade de certos acontecimentos, efetuado por Jacques Rancière pretendemos apresentar como e em que condições essa discussão é possível.

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Proposta de comunicação apresentada no II seminário de estética e crítica de arte / arte e política: territórios em disputa, ocorrido na FFLCH-USP entre 14 e 19 de setembro de 2015. 2

Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), mestrando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

Emin Ösmen. Syrie: La barbarie au quotidien

Uma reportagem insustentável Para o fotógrafo do júri, Ammar Abd Rabbo, foi chocante e entristecedor descobrir que a escolha do prêmio do público do Prix Bayeux-Calvados se deu diante de parentes de James Foley, jornalista americano decapitado pelo ISIS. Em seu texto opinativo publicado no blog “A l’oeil – journalisme & photographie” e replicado no “Rue89 - Le Nouvel Observateur”, o fotógrafo comenta a distinção do júri profissional em premiar o trabalho “sóbrio e estético” de Mohammed Al Cheikh, da AFP, que ilustrava as manifestações e violências contra a maioria xiita no Bahrein. Sob sua argumentação coloca-se não apenas verdadeiras questões éticas da profissão, mas também da sociedade que vivemos. Diz que a produção de Özmen não é uma reportagem e nem um trabalho jornalístico. Para ele o jornalista é aquele que “questiona, que relativiza, que coloca em perspectiva, que verifica os fatos”, e na série fotográfica não se tem nada disso, pois o ISIS leva o fotógrafo, bem como suas vítimas e as executa diante dele. Segundo Rabbo, trata-se de uma operação de propaganda, ou de comunicação,

onde a organização “deseja mostrar que ela é a mais perversa, a mais intransigente, e estas fotos vem perfeitamente servir ao seu discurso. Nós não sabemos nada sobre as vítimas. Qual seus nomes? Onde foram julgadas? Por quem? Como elas foram capturadas?”, então o jornalista sem nenhum meio de verificar, nem fornecer informações sobre as execuções, transforma-se em retransmissor da comunicação do ISIS. Rabbo clama, assim como outros jornalistas e representantes de veículos de comunicação do Ocidente, dizer não ao ISIS, posicionar-se contra a difusão de imagens de execução, não apenas por solidarizar-se ao seu confrade James Fouley, mas àqueles sírios anônimos mortos pelos mesmos assassinos. Ainda que se defendesse apresentar a realidade síria como o pretende Emin Özmen: “Como um ser humano, eu desejaria nunca ter visto o que vi. Mas como jornalista eu tinha uma câmera e uma responsabilidade. Eu tinha a responsabilidade de compartilhar o que vi naquele dia. Por isso estou fazendo esta declaração e por isso tirei aquelas imagens.”. Como diz o jurista de Bayeux, a realidade síria está lá com dezenas e centenas de mortos ao dia, pelos bombardeios do regime de Assad, ao lado de decapitações e crucificações, mas não são vendáveis, ou muito menos que uma decapitação. Trata-se, continua, da realidade do trabalho jornalístico, desolador, mas necessário enfrentar. Conclui, então, que não se pode compreender nada. Pois apesar de tudo, as imagens apenas indignam, horrorizam, e nos deixam mais diante de um registro de voyeurismo, “de joelhos para o executor, enquanto afia sua lâmina”, que aquela da análise e compreensão, as vítimas são desumanizadas. Sua preocupação fica clara com o tratamento rigoroso das informações não verificadas em tempos de redes sociais, mesmo em se tratando de jornalistas profissionais, em um momento de crise econômica que atravessa o trabalho jornalístico que faz violar princípios e a moral. Para ele o público fica sujeito a não saber diferenciar uma reportagem de uma propaganda terrorista. Recusar observar imagens de execução Para o psicanalista Vincent Magos, trata-se não apenas de uma questão de dignidade das vítimas ou jogar o jogo dos jihadistas, mas que as imagens não

nos deixam psiquicamente a escolha que não seja entre a posição da vítima ou do algoz. Para Magos, uma foto de um jihadista preparando-se para matar é traumatizante, pois ela força a imaginar o horror que se segue. Mas pior ainda, leva a nos identificarmos com um dos protagonistas: a vítima ou seu algoz. A esta situação ele compara a foto de Edward Adams sobre um general vietnamita apontando seu revolver a um vietcongue. Segundo ele, essa fotografia nos coloca numa terceira posição, a da testemunha, e por isso nos revolta e tornase símbolo de uma “guerra suja” a acabar.

Edward Adams.

O psicanalista apresenta o argumento de que um filme, por mais realista e cru que seja, sabemos tratar-se de uma ficção e a todo momento podemos nos retirar da cena, nos interrogarmos sobre sua realização, as trucagens. Mas no caso de uma fotografia de execução, ela é cuidadosamente planejada pelo transgressor, pois registra a cena como quer, por seu dispositivo, e assim somos colocados num ato criminoso, como o quer o criminoso. Como diz, “Quer fazer a todos seus cúmplices: este é o mecanismo trabalhado pelo estupro de guerra (manter ou não a criança nascida da transgressão) ou na obrigação de mutilar ou matar um próximo”.

Conclui que com o avanço de câmeras compactas a posição de terceira pessoa é assimilada, e afim de recusar este lugar propõe desviar o olhar das execuções e de sua difusão pelas mídias, confiante que um mundo de cultura é capaz de lutar contra a barbárie. O fotojornalismo e os regimes de identificação da arte Dado seu potencial de formas de visibilidade, identificamos o fotojornalismo como uma prática que se aproxima das artes, como produtor de imagens, e da política, com o que se faz dessas imagens. Com o intuito de compreendermos

essas

relações

convém

sublinharmos

a

noção

de

modernidade estética conforme nos apresenta Jacques Rancière em “A partilha do sensível”. Segundo o filósofo, “A noção de modernidade estética recobre, sem lhe atribuir um conceito, a singularidade de um regime particular das artes, isto é, um tipo específico de ligação entre modos de produção das obras ou das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e modos de conceituação destas ou daquelas. ”(2009,p. 27)

Dessa maneira, ao se tratar de arte é possível distinguir, na tradição ocidental, três regimes de identificação: ético, poético ou representativo, e estético. No regime ético, a arte não é identificada enquanto tal, mas encontra-se subsumida na questão das imagens. A imagem é um tipo de ser ao que se colocam as questões de sua origem, portanto seu teor de verdade, isto é, “saberes fundados na imitação de um modelo com fins definidos”, e seu destino, assim seus usos e efeitos, aquilo que se dá “aos espectadores cidadãos certa educação e se inscrevem na partilha da ocupação da cidade”. Neste regime pertence também os questionamentos platônicos contra os “simulacros de arte que imitam apenas simples aparências”, e por não existir “arte” propriamente, há apenas maneiras de fazer, e segundo Rancière arte e política não estão

submetidos um ao outro. Portanto, é nesse regime que se inscreve o modo de ser das imagens concernente ao ethos. No regime poético ou representativo, o filósofo identifica o fato da arte no par poiesis/mimesis. De tal modo há um princípio mimético, não normativo e pragmático, onde certas artes executam coisas específicas, isto é, imitações. Assim, é possível definições cujas artes podem ser apreciadas como boas ou más, adequadas ou inadequadas. Segundo diz, é o feito do poema com a fabricação de uma intriga que orquestra ações representando homens agindo, importando mais que o ser da imagem. Por um lado poético, pois no interior de uma classificação de maneiras de fazer e de apreciar, por outro representativo, pois é a noção de representação (mímesis) que organiza as maneiras de fazer, ver e julgar. De tal modo, Rancière diz que não é um procedimento artístico, mas um regime de visibilidade das artes, onde se criam as condições de sua autonomização articulada com uma hierarquização das ocupações políticas e sociais. O regime estético é a contraposição ao representativo, pois nele a identificação da arte não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. Para Rancière, não se deve entender “estética” como uma teoria da sensibilidade, do gosto ou do prazer, mas ao modo específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. Neste regime as coisas da arte pertencem a um regime específico do sensível, habitado por uma potência heterogênea, uma potência, segundo diz, de um pensamento que se tornou estranho a si mesmo, onde o saber transformasse em não-saber, logo é idêntico a um pathos. Assim, o regime estético é aquele que identifica a arte no singular, desobrigando regras específicas e hierarquizações, criando o discrepante e dissemelhante. Identificamos que o fotojornalismo deve ser operado no regime estético, onde pode ocupar-se da tarefa do simples registro e da arte, conduzindo a novas perspectivas da realidade. Para isso, retomaremos um comentário sobre o fotojornalismo de Walker Evans e a escrita literária de James Agee no livro “Aisthesis. Escenas del regimem estético del arte”.

No capítulo “El resplandor cruel de lo que es”, Rancière comenta como a revista Fortune, especializada em reportagens fotográficas, decide reportar os meeiros do Alabama, enviando James Agee para fazê-lo. O jornalista já acostumado a produzir artigos perfeitamente neutros sobre temas documentais depara-se com um redator freelance, anônimo, que se permite o deslize com “malícia” de algumas referências bíblicas ou versos, como já ocorrido com fotografias de Margaret Bourke-White sobre a seca. Agee deve, então, preocupar-se com os fatos da crise econômica sobre um setor social que se sabe particularmente miserável, sem poder imaginar essa miséria, demasiado distante de Nova York e suas maneiras de viver no norte industrial. Para fazê-lo é acompanhado de Walker Evans que será o fotógrafo. O trabalho proposto entre os dois será de cooperação e independência, nenhuma legenda deverá acompanhar as fotos e nenhum texto do repórter explicará as circunstâncias em que o fotógrafo as produziu. Assim, argumenta Rancière, se fotografia e texto são independentes é porque uma e outra tem aspiração a dizer tudo e o que se deve compreender é esse “todo”. Uma doxa sustentada, diz o filósofo, pelos nostálgicos das belas artes, e logo recuperada pelos adeptos de “certo modernismo”, opõe a cuidadosa seleção dos elementos de arte aos toscos inventários da “reportagem universal”, porém, essa oposição é ilusória. A universalidade da reportagem é a dos fatos que verificam as ideias e as imagens que sabemos que mostram. A reportagem, tal como praticada pela Fortune é “a arte à antiga”, que deve suscitar com poucos signos a impressão de haver percorrido um mundo e que este é de uma só vez inimaginável e o que pode ser concebido, assemelhando-se em seus procedimentos o da novela realista. Os detalhes escassos bastam para comprovar a singularidade dessas existências que resumem a muitas outras. O mesmo princípio de contenção, sustenta o autor, pelo qual a descrição se limita a alguns traços que fazem as vezes de imagem veda à fotografia o clichê que fala por si mesmo. A fotografia não funciona sem a legenda que atesta que essas existências singulares refletem um destino comum. Assim para a arte da reportagem é essencial conter sem cessar o duplo excesso no qual poderia se perder: a situação inaudita que palavras e imagens não podem traduzir, e os signos tão triviais que não têm razão para eleger um no lugar do outro. Para Rancière a decisão de dizer o todo não é a

consumação da lógica jornalística. Ao contrário, faz explodir e com ela certa lógica da arte, que Agee o faz em nome de um radicalismo político. Diz-nos que sem dúvida também é preciso abandonar a ideia de que a fotografia possa suprir a falta de palavras. Deste modo as palavras do escritor correspondem a dizer de uma só vez a posição indigna do voyeuer. Seria preciso um movimento de palavras ligando cada momento sensível a uma série infinita de outros estados do mundo, imitando “a verdade que não fala a linguagem das palavras. A primeira vista, este uso das palavras que excede toda racionalidade documental parece responder a uma poética bem identificada”(RANCIÈRE, 2009, p. 290), devolvendo, assim a cada elemento do inventário a dignidade do que é. Assim, é necessário operar por montagem fotografia e texto, permitindo colocarmos a nós mesmo diante das coisas de uma nova maneira, desdobrandose, indo para além do regime representativo comumente configurado pelo jornalismo. Censura, o irrepresentável, o insustentável O insustentável é o irrepresentável? Rancière em “Travail de l’image” nos diz que aqueles que se opõem à representação do horror dos campos de concentração já têm sua resposta: representar é dar a ver, e não devemos oferecer ao prazer do olhar a uma obra de humilhação e desumanização, salvo tornando-se cúmplice; representar é construir uma história, e não devemos dar razão a uma história construída à base da exterminação, salvo tornando-a aceitável. Em “Se o irrepresentável existe” argumenta-se que “Não se pode coloca-las diante dos olhos nem encontrar para ela um representante que esteja à sua altura. ”(2012, p. 119) ou que “esse jogo do excesso e da falta funciona segundo um modo de endereçamento específico que entrega a coisa representada a afetos de prazer, de jogo ou de distância incompatíveis com a gravidade da experiência que ela contém.”(2012, p. 120) Não pretendemos tornar comparável eventos distintos como o holocausto e a guerra civil síria, mas encontrar elementos em ambos os discursos opostos à representação que levam à censura. De maneira similar

Ammar Abd Rabbo e Vincent Magos dizem que as vítimas são desumanizadas e aqueles que veem imagens como a de Özmen tornam-se cúmplices. Explica-nos Rancière, que sobre o irrepresentável há uma oposição da narrativa simples ao artifício mimético que preside a valorização da palavra da testemunha em suas duas figuras. A primeira valoriza a narrativa simples, que não constitui arte, mas apenas traduz a experiência de um indivíduo, pensamos, como ocorre no regime ético. A segunda, nos diz, enxerga na narrativa da testemunha, testemunhar um aconteceu que excede o pensamento, um novo modo de arte a partir do regime representativo, caracterizado por Lyotard como a arte sublime. Para tanto, argumenta Lyotard sobre a impossibilidade interna da representação e de sua indignidade, que entrelaçadas geram um efeito preciso, segundo Rancière: “transformar os problemas de regulagem da distância representativa em problemas de impossibilidade de representação. Assim, a proibição vem sobrepor-se a esse impossível, ao mesmo tempo denegando-se, apresentando-se

como

simples

consequência

das

propriedades

do

objeto.”(2012, p. 122). Esclarece-nos que um sistema que regula as relações entre o dizível e o visível, entre o desdobramento de esquemas de inteligibilidade e o das manifestações sensíveis, é aquele onde o irrepresentável está, e se existe seria no regime representativo. Então, sob este regime onde “os temas não se encontram mais submetidos à regulagem representativa do visível e da palavra, não mais submetidos à identificação do processo de significação à construção de uma história”(2012, p. 133), Lyotard fala de uma “falha na regulagem estável entre o sensível e o inteligível”. Decorrendo disso, segundo Rancière, que, na verdade, mostração e significação podem concordar ao infinito, coincidindo uma identidade entre sentido e sem sentido, presença e ausência. Como essa possibilidade não conhece objetos que, por suas singularidades, a contradigam, mostra-se adequada à representação de fenômenos irrepresentáveis. Sob a escrita paratáxica é possível reconhecer à sua maneira como foi dito de James Agee anteriormente. Assim apontamos para a experiência extrema do inumano que, como diz o filósofo, não conhece impossibilidade de representação nem língua própria

para o testemunho. Tratando-se de uma linguagem onde a ficção estética se opõe à ficção representativa. Portanto, neste ponto já haveria um regime estético onde a “falha na regulagem estável entre sensível e inteligível” pode ser perfeitamente entendida como ilimitação dos poderes da representação. No regime estético não há um conteúdo determinável, a não ser a pura noção de distanciamento em relação ao regime representativo. Por isso, expressa-se uma ausência da relação estável entre mostração e significação, onde se produz mais representação. De tal maneira nos questionamos sobre os limites da censura, mesmo que mostrem decapitações e outras formas diversas de violência. Como argumenta André Gunthert, “Mostrar ou não mostrar a violência? O debate ressurge com regularidade, pois parece contradizer a ideia cuja imprensa tem por missão transmitir a informação de maneira neutra e objetiva. A censura não é contrária ao jornalismo?”. Geralmente as imagens de grande violência são poupadas ao público, mas sob critérios morais. Colocar o espectador diante de uma imagem como de Eddie Adams seria uma leitura idealizada de neutralidade da mediação jornalística, mesmo porque na publicação de capa do New York Times, a fotografia de Adams se apresentava como a liquidação de um terrorista vietcongue, um inimigo americano. Para Gunthert é necessário levar em conta que o sentido varia em função das convicções do espectador, onde o inimigo é visto como merecedor de seu destino. O que ocorre como insustentável de representação se dá devido à sua circulação e exposição ao outro lado do campo, assim a censura seria a manifestação de uma inversão de leitura. Gunthert nos diz que a censura é menos uma questão de respeito às vítimas, como pretende Ammar Abd Rabbo, que o sinal de uma tomada de partido geopolítico. Defende o argumento questionando que raramente se vê imagens de vítimas ocidentais e que o comércio de fotorreportagem explora a dor de populações não ocidentais. As informações produzidas, sob textos ou fotorreportagens, são sempre dispostas sob uma perspectiva cuja doutrina jornalística ignora em função de

uma pretensa objetividade. Pensamos que essa construção se deve ao regime representativo que regula a mostração e significação dentro de expectativas predeterminadas. Contudo, as imagens não podem ser consideradas vetores de informação isolados, mas com suas legendas e comentários, como já comentado por Rancière anteriormente. Desse modo, André Gunthert aponta que borrar a visão de vítimas constitui uma forma de editar material propagandista permitindo ao jornalismo retomar seus direitos. Não sabendo sua função em um regime estético, a censura ou a recusa de publicação não seria uma exceção num universo de transparência e rigidez deontológica, mas a forma existente conveniente ao jornalismo, aquela que seleciona, hierarquiza e qualifica a informação, em outras palavras, escolhe o que pode ser publicado e em quais condições. Mantendo assim, um papel político junto a outras instituições, ou de ordem policial como diz Rancière em “Ética, estética e política”, “A ordem policial não é apenas um Grande Irmão, mas é uma espécie de distribuição daquilo que é dado à nossa experiência, daquilo que podemos fazer”(2010, p.82), e não apenas em canais conservadores ocorre a separação entre o que é possível e o que é impossível. Conclusão Pensamos, então, que a articulação de interdição do irrepresentável, insustentável, incompreensível, pelo jornalismo é a delimitação daquilo que é dado, o que é visível. Como afirma Gunthert, é o mito da transparência que alimenta uma visão errônea do papel da imagem na imprensa, “A antítese mostrar/não mostrar e a que ela se refere, isto é, ao controle de uma informação que não pode jamais ser transparente, não concerne apenas às imagens de guerra.”. Diz assim que a verdadeira resposta à questão da mostração é: “não há imagem transparente”. Por conseguinte, como no regime estético não há um conteúdo determinável a priori, pois os relatos e as mídias não são mensageiros neutros, e palavras e formas visuais aparecem desconectadas. Seria necessário fazer um exercício de trabalho em tensão do demasiado e do nada, onde uma cartografia

será necessária para estabelecer a construção de seu processo, sob a forma da vivência de parataxes.

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