O conceito de diplomacia presidencial

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O CONCEITO DE DIPLOMACIA PRESIDENCIAL. Fernando Horta

A história republicana brasileira já conta com 123 anos, entretanto a prática democrática no Brasil é recente. O período da história brasileira após o governo militar (19641985) é chamada de Nova República e recebeu inúmeras vezes caracterização como o período da “re-democratização”. Desde a retomada por civis do controle do Estado no Brasil até hoje apenas cinco presidentes estiveram sentados no Palácio do Planalto. Apenas quatro deles eleitos de forma direta e apenas dois deles completaram pelo menos um mandato completo 1. Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1998-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (20022006 e 2006-2010) foram os únicos políticos eleitos diretamente que completaram seus mandatos, foram também os únicos após Getúlio Vargas a exercerem o poder máximo do Executivo por mais de cinco anos consecutivos. Foram, ainda, os primeiros a serem reeleitos democraticamente para mandatos consecutivos. É visível a estranheza desses mandatos para a história do Brasil. Contando-se desde a independência com as idiossincrasias históricas do Brasil a constância e funcionamento das instituições democráticas não podem ser entendidas como marca de nossa trajetória no tempo, esse fato foi plenamente alardeado quando do ano de 2002 e a transição exemplar de poder entre Cardoso e Lula. Não de maneira aleatória esses dois presidentes são tidos pela literatura como os primeiros a se utilizarem da chamada “diplomacia presidencial” 2, embora a conceituação, abrangência de ação, interesse e avaliação posterior a respeito da “diplomacia presidencial” em ambos os presidentes varie muito. Este artigo tratará de explicitar a ontologia normativa que está por detrás da cunhagem do termo bem como a fragilidade metodológica do conceito (ou dos conceitos visto que existem diferentes entendimentos) além de analisar a pertinência histórica de tal construção. Acaba, assim, por localizar um intenso corporativismo dentro das construções 1

José Ribamar Sarney foi eleito vice-presidente de forma indireta, ainda pelo parlamento durante o estertor do período militar. Fernando Collor de Mello não completou seu mandato e Itamar Franco não iniciou seu mandato como presidente sendo alçado a essa condição após o impeachment de Collor em 1992. 2 PRETO, 2006 p. 32 e DANESE, 1999 p. 29, CASON & POWERS, 2006 p. 4, BARNABÉ, 2009 p. 11

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teóricas vigentes na literatura de RI sobre o tema que, como deixaremos claro no final do artigo, beira o preconceito formal 3. De início é importante dizer que, além da polissemia do termo “diplomacia presidencial” (e das dificuldades de trabalho do conceito a partir disso) os termos “diplomacia de cúpula” e “presidencialização” têm sido usados como intercambiáveis ao primeiro, tornando o entendimento preciso do sentido conceitual bastante mais difícil. 4

O conceito Existem, pelo menos, cinco conceituações distintas do termo diplomacia presidencial. Adriana Preto afirma que diplomacia presidencial é o nome que assume a “diplomacia de cúpula” em regimes presidencialistas e que diplomacia de cúpula é a “condução pessoal (do chefe de estado) de assuntos de política externa” (PRETO, 2006 p. 31). A autora se baseia em trabalho de Sérgio Danese intitulado “Diplomacia presidencial: História e crítica” lançado em 1999, onde o diplomata afirma que diplomacia presidencial é definida como “a condução pessoal de assuntos de política externa, fora da mera rotina ou das atribuições ex-officio, pelo presidente, ou, no caso de um regime parlamentarista, pelo chefe de estado e/ou pelo chefe de governo.” (DANESE, 1999 p. 51). Mesmo que pareça que a conceituação de Danese seja mais acurada que a de Preto, é importante notar que ele traz elementos como “rotina” e “atribuições ex-officio” que se somam imprecisamente ao sentido já impreciso do termo “condução”. Percebe-se na leitura dos textos dos autores que pelo termo condução não está se querendo dizer meramente a postura em prática de certos procedimentos institucionais, mas principalmente Danese deixa claro que o termo “condução”, usado por ele, refere-se ao envolvimento no sentido da tomada de decisão e à responsabilização sobre os custos decorrentes (Idem p. 63-64). Ou seja, para o autor – que formaliza quatro níveis diferentes de diplomacia presidencial – o quantum de envolvimento no processo de tomada de decisão que o presidente (ou primeiro ministro) tem em determinada ação de política externa é determinante para diferenciação do que ele chama de “diplomacia presidencial”. É importante notar que tanto Preto quanto Danese usam de forma intercambiáveis os termos diplomacia e política externa. Nessa conceituação (Danese) fica implícita outra variável quando o autor se vale de termos como “protocolo”, “rotina” e quando coloca a diplomacia presidencial como oposta ao que ele chama de “diplomacia tradicional”.

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Cervo também afirma algo nesse sentido em CERVO, 2008b p. 26. DANESE, 1999 e CASON & POWERS, 2006

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Melhor dizendo, o autor define o que é diplomacia presidencial pelo que for diferente de diplomacia tradicional sendo que esta é feita pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) 5 (dito pelo autor como opostas (PRETO, 2006 p. 34)). Indo mais além, o autor entra em contradição quando afirma que a novidade da “diplomacia presidencial” é a intensidade, generalização e o uso deste tipo de diplomacia para promoção interna do mandatário (DANESE, 1999 p. 70 e p. 87). Recompilando as variáveis de definição de Danese teríamos que diplomacia presidencial é quando o presidente se envolve diretamente no processo decisório de determinada ação em política externa (1), o faz além dos limites do que é protocolar e rotineiro (2), lança mão deste dispositivo de forma intensa e geral (3) e ainda promovendo-se internamente (4). Guilhon Albuquerque define o tema de forma diferente, embora com termos semelhantes. Para Albuquerque diplomacia presidencial é “a participação pessoal do chefe de governo nas relações internacionais, seja por meio de pronunciamentos, seja de participação em foros internacionais, seja atuando diretamente em negociações” (ALBUQUERQUE, 1996). Veja-se que em Albuquerque não é necessária a participação no processo decisório além de que o termo usado agora é “relações internacionais” e não mais política externa ou diplomacia. De forma paradoxal, o conceito de Guilhon apesar de mais frouxo 6 se presta a melhor verificabilidade conquanto que se tenha em mente que é de fácil verificação o número de pronunciamentos e participações em foros internacionais do presidente da República. Contudo, o próprio autor não entende tal conceito como suficientemente explicativo e em 1996 já apontava para a necessária verificação da ação do presidente no processo decisório. Um terceiro conceito é proposto pelo argentino Andrés Malamud em 2005 (para a Latin American Research Review) e em artigo idêntico em 2010 (para a revista Relaciones Internacionales). Segundo Malamud, diplomacia presidencial é um: “mecanismo (que) és entendido como el recurso tradicional para negociaciones directas entre presidentes nacionales cada vez que se ha de tomar una decisión crucial o que conflictos críticos han de ser resueltos. A pesar del adjetivo “presidencial”, este tipo de prácticas hacen referencia a la política, la diplomacia de cumbre —en oposición a la diplomacia burocrática y profesional” (MALAMUD, 2010 p. 115)

Como se vê, em Malamud temos a varíavel “negociação direta” agindo e não somente a “condução” da política externa (Danese) ou a “participação e pronunciamentos”

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Ver também BARNABÉ, 2009 p. 4 O conceito de Guilhon exposto em 1996 – analisando o primeiro ano de mandato de Cardoso – ainda não podia refletir sobre o processo como um todo de 1994 até 2010 e, portanto, carecia de bases empíricas. Ademais, conforme mostra Cerqueira (CERQUEIRA, 2005) o conceito era muito em função da forma como a mídia vinha noticiando os caminhos do presidente. 6

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(Guilhon). Aqui é necessária a interlocução com outros agentes de Política Internacional sendo feita pelo próprio presidente, além do que o autor novamente levanta a oposição diplomacia presidencial contra diplomacia “burocrática e profissional”. O quarto conceito advém de Rodrigo Cerqueira (CERQUEIRA, 2005) onde o MRE utilizou-se do presidente como ferramenta de promoção no interesse da reaproximação do órgão (propriamente dito) e também do campo de estudo em relação a população em geral, no que ele chama de “diplomacia pública” (CERQUEIRA, 2005 p. 60). Após a crise de insulamento e distanciamento do MRE da sociedade (BARROS, 1986 p. 30-31 apud PRETO op.cit p. 25), era necessária uma reaproximação consoante com o processo da redemocratização e Cardoso por seu histórico de intelectualidade foi usado: “O governo Cardoso é especialmente promissor para análises de fontes domésticas de política externa, pois nele coincidem um momento de falência de paradigmas da inserção internacional do Brasil e a utilização, pelo Itamaraty, da diplomacia pública como estratégia de ação, tendo a diplomacia presidencial como sua face mais notória no plano externo e a retórica do diálogo amplo com a sociedade como sua face interna mais reforçada.” (CERQUEIRA, 2005 p .47)

Aqui a diferença não é meramente de campo, mas sim existe nesse conceito uma completa inversão de sentido. Para Cerqueira o animus da ação de “diplomacia presidencial” não reside na figura do presidente, mas seria uma estratégia usada pelo MRE (diplomacia pública) em duas frentes distintas (1) externamente com a figura do intelectual que era Cardoso dando legitimidade às posições brasileiras e (2) internamente tornando mais públicas as discussões de política externa. Não é como para os autores anteriores o uso presidencial de prerrogativas (tomadas dessa forma) do MRE, mas sim o uso pelo MRE da figura do presidente. Uma última forma de conceituação advém de Cason e Powers (CASON&POWERS, 2006) com uma grande dose de ajuda do diplomata Paulo Roberto Almeida. Segundo Cason e Powers com Cardoso e Lula houve o “advento” (sic) da diplomacia presidencial 7. Para os autores, diplomacia presidencial seria o direto engajamento do presidente nos assuntos internacionais. Para dar forma a essa variável os autores propõe uma comparação do número de viagens feitas pelos presidentes, na medida em que os autores consideram que nos períodos anteriores a Cardoso e Lula “presidentes travelled little, and to the extent that they were involved in diplomacy at all it was in the context of carefully stage-managed summits and

7 Foreign policy making in the Cardoso-Lula era has been marked by two principal trends, the pluralization of actors and the advent of presidentially-led diplomacy. The former trend is more secular and was already under way well prior to the Cardoso administration, whereas the latter trend is unambiguously a novelty and is linked specifically to these two influential presidents. (CASON&POWERS, 2006, p. 4 grifo nosso)

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state visits where outcomes were generally prenegotiated” (Idem p. 8). Na mesma esteira o diplomata Paulo Roberto Almeida (ALMEIDA, 2004) também segue fazendo recoleção das viagens dos presidentes (especialmente Lula) e usando isso não como integralidade explicativa para seu argumento, mas como parte substantiva dele. Almeida ora qualifica a política de Lula como diplomacia presidencial ora como “diplomacia do PT” (ALMEIDA, 2003). Nosso

entendimento

é

de

que

todos

os

conceitos

apresentados

estão

irremediavelmente errados à luz da epistemologia científica e alguns deles, como deixam transparecer seus autores, passam da condição normativa já não aceita pelo status científico que tem as RI para cair na condição preconceituosa não aceita socialmente.

A ontologia De pronto devemos atentar para o motivador do pesquisador científico. O mundo é uma miríade de informações e a ciência somente se debruça sobre algumas delas, essa escolha (apriorística) do tema de estudo faz parte do nosso entendimento ontológico do mundo e revela-se como parte explicativa importante do trabalho científico, muitas vezes silenciosa e não notada. 8 A antropologia tem uma conceituação-chave para esse momento, onde o mundo ontologicamente desconforta o pesquisador e nisso surge a vontade de compreender que move, inicialmente, a pesquisa 9: estranhamento. Seria o comportamento de Cardoso e Lula realmente tão diferentes na história? Os cernes explicativos de cada um dos cinco conceitos apresentados tem a propriedade de delimitarem e definirem essa diferença de comportamento, assumindo que ela exista? Os pesquisadores proponentes muniram suas explicações de dados suficientes para a comprovação de suas conceituações? Em primeiro lugar, o termo diplomacia presidencial é usado em diversos momentos como oposto à diplomacia tradicional 10. Esta por sua vez é definida como a diplomacia burocrática institucional, no Brasil representada pelo MRE. Fica evidente que todos os autores partem ontologicamente de uma diferença entre atores (MRE e Presidente) e essa diferença é 8

“Ontological issues in the philosophy of science may be specific to a particular special science, such as questions about the ontological status of biological species, or they may be more general, such as whether or not there are objective natural kinds. In the history of science ontological issues have often been of supreme importance; for example, whether or not atoms exist was a question that occupied many scientists in the nineteenth century.” (LADYMAN in KUIPERS, 2007 p. 332) 9 Não é objeto do artigo, mas melhores informações podem ser colhidas em DAMATTA, Roberto (1987) Relativizando; Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro, Rocco 10 PRETO, 2006; MALAMUD, 2010 p. 138, ALBUQUERQUE, 1996; Danese vai ao extremo dizer que um “traço forte” do conceito de diplomacia presidencial é a proliferação de encontros de cúpula e adiciona o comentário “preocupante” a esse incremento (DANESE, 1999 p. 399)

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colocada, por exemplo, em termos de dicotomia “técnico x político” 11. Entretanto, em nosso ordenamento político-jurídico tanto o Presidente quanto o MRE fazem parte do poder Executivo sendo que os ministérios tem a função burocrática complementar e acessória a do Presidente, sempre subordinado a ele. Sob o ponto de vista jurídico o MRE é mero reprodutor dos desígnios de política externa que a Constituição incumbe diretamente e unicamente ao presidente conforme nosso artigo 84. A própria gênese dos conceitos apresentados (com exceção do conceito de Cerqueira) parte da premissa de que, no mínimo, não existe consenso entre o MRE e o Presidente da República e que o MRE insiste em manter sua posição mesmo em eventual condição de insubordinação. Em inversão do argumento, a diplomacia é, em última instância, a tradução dos desígnios do Presidente para a relação com outros Estados e esse presidente sendo eleito de forma democrática encerra em si a representação popular. Logo, diplomacia não pode ser outra que não emanada do Presidente por seus emissários constituídos (diplomatas), daí que o termo diplomacia presidencial se revela tautológico em termos jurídico formais. 12 Outro argumento, que é usado como relevante para a consolidação do “problema” diplomacia

presidencial

visto

como

um

fato

histórico

novo

que,

conforme

CASON&POWERS, “cria” toda uma nova diplomacia, é a primazia histórica do MRE nas decisões de Relações Exteriores do Brasil 13. Sobre esse argumento temos duas objeções. A primeira é de cunho metodológico conquanto os autores aqui citados não parecem diferir claramente os sentidos de “condução” da política externa e “criação” dessa política (além de fazerem certa confusão entre diplomacia, política externa, política internacional e relações internacionais). Assim se pensarmos em condução da política externa o MRE tem atribuição de primazia por óbvia gênese institucional, mas se pensarmos em criação de política externa14

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BARROS, 1986 p.31 apud PRETO, 2006 p. 25 e DANESE, 1999 p. 90, ROJAS&MILLET, 1999 p.

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Sobre isso os votos dos ministros do STF no caso Césare Battisti são elucidantes e podem ser obtidos em http://www.conjur.com.br/2010-abr-16/acordao-julgamento-extradicao-cesare-battisti-publicado 13 SEITENFUSS, 1994 p. 32. Em realidade, Leticia Pinheiro, que estudou o processo decisório da política externa brasileira, tem outra visão do assunto. Para a autora essa autonomia foi uma tentativa institucional buscada a partir somente da década de 50 do século XX “In addition, until the mid-50's when Itamaraty demanded an active role in Brazilian foreign affairs, leaving behind its traditional role of passivity (...)” (PINHEIRO, 1994 p. 83), sendo que na história da república brasileira esse “espírito de corpo” não atingiu o cargo de ministro das relações internacionais: “Less than 2% of the Ministers during the Republican years were diplomats.” (Idem p. 84 – nota 76) 14 “Na análise de política externa, emerge duas questões de fundamental importância: em primeiro lugar, quem a formula e, em segundo, de que forma ela se articula à política interna. Quanto ao primeiro aspecto, qualquer estudo empírico mais aprofundado demonstra que os rumos e as decisões da política externa, não são definidos pelo conjunto do bloco social de poder que dá suporte a um governo, mas por alguns setores hegemônicos desse bloco” (VIZENTINI, 1998 p. 15)

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no sentido de “intenção original” os dados oferecidos por nenhum dos autores consubstanciam suas conclusões. Que dados nos seriam necessários para afirmar que a “autonomia pela integração” de Cardoso foi criada por ele mesmo e não por Celso Lafer ou Luiz Felipe Lampréia? E se essa criação é de Cardoso o é enquanto Presidente ou Ministro das Relações Exteriores de Franco (admitindo a percepção ontológica mencionada acima)? Se formos aos artigos, Cardoso não se arroga a paternidade original intelectual de sua política externa 15 e Lampréia a nomeia como política de Cardoso apenas o indicando como presidente e em nenhum momento faz diferenciação entre o presidente e o pensador 16. Seria o silêncio suficiente para presumir uma paternidade intelectual de Cardoso? É a autonomia do MRE uma afirmação axiomática? Se na mesma senda buscarmos outras paternidades intelectuais de políticas externas vamos, por exemplo, a Juscelino Kubistchek quem Cervo afirma ser o mentor da OPA (Operação Pan-Americana): “a OPA teve início pela troca de cartas pessoais entre JK e o presidente Eisenhower em 28 de maio e 5 de junho de 1958” (CERVO&BUENO, 2008a p. 290), enquanto Maria Regina Lima coloca o contrário: “no governo JK, papel semelhante foi desempenhado por Augusto Frederico Schmidt, idealizador e principal negociador da Operação Pan-Americana (OPA), iniciada em 1958.” (LIMA, 2010 p. 18-19). Esse neopositivismo histórico de tentar nominar pessoalmente as responsabilidades, o ônus e o bônus de ações de Estado resta infrutífero para a acomodação argumentativa do conceito de diplomacia presidencial bem como para uma análise histórica densa e convincente. Em outras palavras, apenas uma análise minuciosa e detalhada do processo decisório de cada caso poderia nos indicar – ainda que com elevada imprecisão – onde e quando ocorre a ingerência pessoal do Presidente da República no processo de tomada de decisão. Nenhum dos trabalhos mencionados oferece esses dados.

A história A segunda objeção ao argumento da primazia do MRE nas tomadas de decisão de política externa (sobre a autoridade do presidente) é histórica. Não cremos que seja correto

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CARDOSO, 2001 “Pode-se dizer, porém, que a política externa do Presidente Fernando Henrique Cardoso busca a autonomia pela integração, ou seja, ao invés de uma autonomia isolacionista, uma autonomia articulada com o meio internacional” (LAMPREIA, 1998 p. 11) 16

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historicamente afirmar que o MRE tem uma autonomia histórica (em relação ao chefe do executivo) nas decisões e conduções de política externa 17. O discurso sobre a excelência técnica do corpo diplomático brasileiro em oposição à fluidez da política interna, seu insulamento enquanto instituição com elevada exigência intelectual e cultural e autonomia, repetido à exaustão 18 remete suas origens ao Barão do Rio Branco 19 que foi ministro das Relações Exteriores do Brasil de 1902 até 1912, ano de sua morte. Segundo Barros existe também aí um sintoma de corporativismo: “Segundo Barros (1986: 30-1), os diplomatas cultivam um senso de isolamento em relação aos outros órgãos governamentais, tanto devido à sua grande mobilidade geográfica, que é própria do cargo, como devido ao forte sprit de corps entre os diplomatas, que vêem a si próprios como diferentes dos outros burocratas.” (PRETO, 2006 p. 25)

A própria figura do Barão do Rio Branco é mitificada 20, pois em realidade sabe-se historicamente que a República Velha não cria uma ideia de nação, uma vez que a segmentação das unidades federativas e suas independências jurídicas nunca permitiram que estados marginais tivessem efetivo acesso ao poder 21. Cervo afirma que os primeiros ministros das Relações Exteriores na República Velha (1889-1930) não eram afeitos ao internacional e não gostavam do estrangeiro (CERVO&BUENO, 2008a p. 159 e 163). Nesse sentido, Rio Branco parece ter sido um diferencial uma vez que ficou como ministro durante o mandato de quatro presidentes (Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca). Assim, as qualidades de fundador das relações externas brasileiras 22, da capacidade de se manter indiferente aos interesses políticos (e, portanto, independente) e sua ênfase na busca do interesse nacional (pela questão de fronteiras) são reificadas. Pode-se, entretanto, fazer interpretação diferente. Rio Branco, nascido no Rio de Janeiro, partícipe e entusiasta do partido conservador 23 servia claramente aos interesses da República Café-com-Leite. Rio Branco ateve-se ao importante papel de delimitar fronteiras, mas, por outro lado, manteve acordos comerciais que impunham pesadas tributações ao

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OLIVEIRA&PFEIFER in ALTEMANI&LESSA, 2006b p. 390 PRETO, 2006 p. 25-29, CASTRO NEVES in ALTEMANI&LESSA, 2006b p. 366, BARNABÉ,

2009 p. 5 19

Não por acaso a instituição responsável pela guarda e replicação do conhecimento da diplomacia brasileira chama-se Instituto Rio Branco. Ver também BARNABÉ, 2009 p. 12 20 CERVO & BUENO, 2008a p. 178 21 FRAGOSO in LINARES, 1996 p. 212-215; FAUSTO, 2001 p. 146-154 ver também CARVALHO, 1987 22 HIRST in ALTEMANI&LESSA, 2006a p. 94 23 HAICKEL, 2007 p. 7

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Brasil 24 desde que se mantivesse o tratamento internacional especial que se dava ao café paulista e não a outros produtos que passaram a sofrer os efeitos da Tarifa Dingley já em 1897 (Idem p. 204). O Barão manteve-se à frente da chancelaria brasileira enquanto durou o primeiro ciclo da política dos governadores (de Rodrigues Alves a Hermes da Fonseca) onde o reforço aos interesses tarifários sobre o café paulista era o centro do interesse político do governo oligárquico. Nesse ponto o Barão não tentou mudanças para favorecer outros produtos e até, pelo contrário, aceitou pesadas taxações ao açúcar, tabaco etc. Quando do governo de Hermes da Fonseca e a política de intervenção nos estados centrais que haviam perdido a eleição (São Paulo apoiara Rui Barbosa) o barão pediu demissão que não foi aceita pelo presidente, numa demonstração de que a questão internacional não era prioritária, haja vista a violência, em outros cargos, da chamada política Salvacionista. Ou seja, nem era o Barão um bastião da neutralidade política (pois era conservador e alinhado com os interesses da política dos governadores) nem era um defensor do interesse nacional (já que inexiste ainda a ideia de nação) 25. Em realidade, o MRE mais trabalhou aqui na questão de migrações (especialmente de italianos) sendo que o Decreto Prinetti (1902) e a Lei Adolfo Gordo (1907) podem ser exemplos claros de que política do MRE era apenas reativa em assuntos que não fossem a defesa dos interesses da oligarquia cafeeira. Se aceitarmos o argumento de que Rio Branco é o ponto alto de independência na política externa do MRE na República Velha, após sua morte não se pode afirmar que tal situação perdure. Até o entre-guerras, poucos interesses moviam o Brasil no plano internacional de tal sorte que Cervo aplica a figura de linguagem “nação satisfeita consigo mesma” (sic) 26. A manutenção das relações especiais com o maior comprador de café do Brasil, os EUA e o fato de o Brasil não discutir a divisão do trabalho 27, sequer engajando-se em discussões internacionais sobre o trabalho, não podem servir de comprovação à tese da autonomia do MRE. A neutralidade brasileira na primeira Guerra e a entrada tardia quase contingencial também não nos dão pistas desta autonomia. Tampouco Vargas nos ajuda nesse caminho explicativo. O caráter personalista com que empreendeu todo o seu governo e sua postura equidistante do Eixo e dos Aliados na

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CERVO&BUENO, 2008a p. 172 LINARES, 1996 p. 256-264 26 É necessário que se ressalte o reconhecimento do Brasil, durante o Governo de Wenceslau Brás ao Governo Provisório na Rússia de abril de 1917 (CERVO&BUENO, 2008 p. 271) Os autores, entretanto, não informam se por ação do presidente ou de seu ministro das relações exteriores Lauro Muller. É importante também notar que a Revolução de abril de 1917 não é a bolchevique, sendo a de abril qualificada como “burguesa” e não socialista. (HOBSBAWM, 1995 p. 63-66) 27 CERVO&BUENO, 2008a p. 200 25

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segunda Guerra 28 nos mostra que Oswaldo Aranha não tinha qualquer autonomia e só pode superar Góis Monteiro quando se tornou insustentável a situação de neutralidade diante dos ataques alemães 29. Até aqui, pode-se dizer que a chancelaria brasileira cuidava de assuntos burocráticos, mas sempre se submeteu aos interesses do chefe do executivo, seja penalizando o resto do Brasil em favor dos interesses do café, seja retardando qualquer posicionamento durante a guerra para permitir a Vargas o “flerte” com o Eixo ou com os Aliados. O governo Dutra também não nos parece exemplo de independência. Cervo reforça o que em linhas gerais é o consenso da literatura histórica ao classificar a política externa brasileira como um alinhamento aos EUA e sua posição de criação/recriação da Guerra Fria (ibidem p. 269-271). O mesmo posicionamento é colocado por Hirst no que toca a política exterior brasileira pós-Estado Novo 30, note-se que nenhum dos autores menciona o termo autonomia para o MRE neste período 31. Em realidade, o que mais se aproxima dessa visão de independência e autonomia do MRE é a Política Externa Independente (PEI) dos governos Quadros e Goulart. 32 Ainda assim, Cervo afirma que a PEI foi um processo e não um projeto onde sua continuidade não necessariamente apresenta uniformidade (CERVO&BUENO, 2008b p. 309) e é inspirada no ordenamento ideológico do período (populismo). Sobre a independência adquirida pelo MRE durante a PEI, Hirst não aponta claramente para esse fato, já Cervo afirma: “a corrente de caráter realista e prático tomou, nos anos 1960, o rumo do pensamento independentista. Embora dispusessem das contribuições da Cepal, os independentes, liderados por San Tiago Dantas, formularam novas reflexões sobre as relações internacionais do país” (CERVO, 2008b p.17). Franchini Neto em artigo de 2005, na Revista Brasileira de Política Internacional, apresenta uma visão diferente onde embora se fale na delimitação clara do projeto de política externa, A participação brasileira na VIII RMRE deve ser entendida como a intersecção entre um projeto de política externa claramente delimitado no governo Jânio Quadros, que definiu uma linha política para o caso cubano em 1961, e que foi mantido por Goulart no

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Idem, 254-255 Ibidem p. 249-251 30 HIRST in ALTEMANI&LESSA, 2006a p. 95 31 Ao contrário inclusive Cervo cita textualmente que durante o Governo último de Vargas a relação entre o chefe do Executivo e o MRE era de subordinação: “Quando da preparação da IV Reunião de Consulta, uma comissão ad hoc – da qual fizeram parte Valentim Bouças, Luis Dodsworth Martins, San Tiago Dantas, Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos – preparou um memorandum, aprovado pelo presidente eleito Getúlio Vargas, e enviado ao Departamento de Estado, fixando a nova política exterior brasileira, sobretudo no que se referia à cooperação econômica.” (CERVO&BUENO, 2008a p. 274). Grifo nosso. Outros exemplos dessa submissão pode-se ver na mesma obra páginas 276, 278, 279, 281, 282. 32 Descontadas ações pontuais como o acordo Brasil-URSS em torno do café e do petróleo que Cervo aponta ser Horácio Lafer (Idem p. 299) 29

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início de 1962, mais exigências do quadro político doméstico após a crise da renúncia, caracterizado pela radicalização política. (FRANCHINI NETO, 2005, p. 15)

estabelece não uma independência do MRE na geração desta mesma política, e sim uma formulação conjunta entre MRE e o Presidente 33: Formulada pelo presidente Jânio Quadros e seu chanceler, Afonso Arinos, a PEI adquiriu essa designação posteriormente, já na gestão de San Tiago Dantas. Mesmo assim, convencionou-se denominar todo o período com a expressão “Quadros-Goulart”, devido à continuidade que se pôde observar. Os princípios fundamentais da PEI foram publicados em artigo de Quadros para a Foreign Affairs de agosto de 1961. (Idem, p. 15)

Em realidade, mais adiante o autor ainda mostra o quanto o MRE e a presidência foram sensíveis às questões internas: As pressões internas são observadas claramente nas instruções do Conselho de Ministros à delegação brasileira. O documento afirma que o Brasil não votaria sanções contra Cuba, pois essas medidas apenas serviriam “para agitar a opinião pública e radicalizar ainda mais a política interna do Brasil”. Tanto os relatos de Arinos e Gibson Barbosa, quanto reportagens da época (por exemplo, artigo do Correio Paulistano de 20 de janeiro), demonstram a clara influência dos eventos internos na posição brasileira em Punta del Este. (Ibidem, p. 20)

Já Thomas Skidmore aponta para a gênese da PEI diretamente vinda de Jânio Quadros que “impressionara-se com a tentativa de várias nações em desenvolvimento, como o Egito, de encontrar um caminho intermediário entre o Ocidente e o Comunismo, para atingir o desenvolvimento.” (SKIDMORE, 2000 p. 141) E a celeuma não tem fim, evidenciando que antes do período militar, mesmo na versão mais independente de teorização de política externa, com chanceleres como San Tiago Dantas e Afonso Arinos, não há consenso sobre a gênese da formulação e nem pistas sobre a tal “independência histórica” do MRE. Durante o período militar Vizentini, embora reconhecendo os limites metodológicos de seu livro, aponta para a primazia do Ministério da Fazenda (sob a tutela de Octavio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos) no trato das questões de política externa (VIZENTINI, 1998 p. 25) 34. Afirma ainda o autor que o MRE foi totalmente modificado para atender aos interesses do regime (Idem, p. 28-31) apesar do discurso do general-Presidente Castelo Branco 35. As teses de alinhamento aos EUA por este ser um “líder do ocidente” e a busca da independência através de uma “certa dose de interdependência” em campos como o 33

Ver também em coadunação VIZENTINI, 1998 p. 22 Cervo explicita isso como um planejamento de forma que ao setor externo foi dada “função supletiva ao projeto de desenvolvimento nacional” (CERVO, 2008a p. 397). 35 “(…) Hoje nossa política externa é absolutamente independente quanto ao seu objetivo, que não é outro senão o de assegurar ao Brasil o acesso a todos os meios necessários ao desenvolvimento, segurança e bem estar nacionais (...)” (VIZENTINI, 1998 p. 29) 34

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econômico e o militar tomaram foco no MRE a partir do momento que refletiam o interesse do regime. Novamente não podemos achar as pistas da autonomia do MRE 36, o que mais parece é a submissão do órgão ao executivo-militar inclusive aceitando a tese do sacrifício da “soberania nacional” em função da segurança coletiva (Ibidem, p. 33). Com boa vontade, o espaço de independência do MRE durante o governo militar pode ser interpretado como a tentativa de se estabelecer como potência vigilante na América Latina dentro da ideia do “sub-imperialismo” (Ididem, p. 36, p. 50 e p 77). Mesmo as divergências com relação à política externa norte-americana, notadamente a questão do fortalecimento institucional da OEA e a questão nuclear 37, eram pautadas pelos interesses do regime militar. As diversas ações do MRE eram sempre encaminhadas pelos ordenamentos do eixo central do interesse militar: o binômio “segurança e desenvolvimento”, ora com ênfase em um, ora noutro. Essa concatenação institucional parece óbvia, mas depõe contra o argumento da independência do MRE, na medida em que salienta que o elemento instilador das ações internacionais encontrase no bojo do executivo diretamente, sendo o MRE um especializado implementador. 38 Durante o governo Médici, Vizentini afirma: “No âmbito interno, sob o governo Médici, desenvolveu-se uma diversidade de órgãos técnicos, militares e administrativos, detentores de consideráveis parcelas de poder decisório, neutralizando uma excessiva centralização nas mãos da presidência, que adotava muitas vezes o papel de mediadora” (Ibidem p. 136)

fazendo importante afirmação (ainda que por contraste) de que nos períodos anteriores os poderes decisórios estavam concentrados na presidência. O MRE, entretanto, tem sorte diversa: “Quanto à política externa propriamente dita, durante os anos imediatamente anteriores ao governo Geisel, o próprio modelo econômico e de organização burocráticomilitar, paralelamente a certa indefinição do Itamaraty (MRE) no que tange a suas atribuições específicas, produziu um relativo esvaziamento das funções diplomáticas em favor da participação de outros órgãos burocráticos, essencialmente técnicos ou ligados à segurança” (Ibidem p. 136)

36 Pinheiro – diplomaticamente – concede à tese do diplomata Alexandre Barros (autonomia do MRE) alguma correção embora concorde claramente com Vizentini: “As a result, notwithstanding Castello Branco's strong presence in foreign matters, Itamaraty maintained its potential role as a decision maker Immediately after the takeover, Itamaraty had to exchange its own ideas for its integrity, which, however, allowed it to work towards restoring its central position in the foreign decision arena in the following years” (PINHEIRO, 1994 p. 84) grifo nosso. 37 VIZENTINI, 1998 p. 116 38 “O chanceler, segundo acerto feito com o presidente Castelo Branco, procedeu à mobilização do MRE para uma grande ofensiva destinada a dar um novo impulso às exportações brasileiras que representavam apenas 1% do comércio mundial.” (Idem, p. 71). Ver também discurso de Costa e Silva apud in VIZENTINI, 1998 p. 87.

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Note que além de o autor afirmar o esvaziamento das funções do MRE em Médici ela ainda faz uma dicotomia com “outros órgãos burocráticos essencialmente técnicos” levando ao entendimento (novamente por contraste) de que o MRE, à época, não era considerado técnico. De qualquer forma, a ideia de autonomia histórica do MRE sofre novo revés. Vizentini, ao mesmo tempo que afirma que a ampliação do Mar Territorial com decreto unilateral brasileiro em 1970 foi “concebida por um restrito grupo de policy makers, implementado a partir de cima (...)” (VIZENTINI, 1998 p. 148) (sem, contudo explicitar quem é esse grupo de policy makers) parecendo conceder terreno ao argumento da autonomia do MRE, afirma, logo em seguida, que Médici visita os EUA em 1971 para atenuar os efeitos deletérios da balança de comércio brasileira com os EUA em desfavor dos norte-americanos. Em Geisel, menos ainda se observa autonomia do MRE. Enquanto Vizentini, afirma que o Pragmatismo Responsável e Ecumênico foi “do chanceler Antônio Azeredo da Silveira” (Idem p. 202), ao mesmo tempo afirma que o presidente “precisou mediar constantemente os conflitos entre o Conselho de Segurança Nacional, que opunha-se à (sic) muitos aspectos desta diplomacia, e o Itamaraty que a defendia” (Ibidem p. 203). Em nenhum momento o autor faz alusão a qualquer forma de preponderância decisória do MRE sobre o Executivo, mostrando inclusive uma intensa integração institucional (Ibidem p. 204-205). Essa mesma posição é defendida por Letícia Pinheiro ainda que essa procure não desaver completamente as teses corporativas sobre a autonomia do MRE: “In this context it is clear that Itamaraty gained a high level of autonomy giving its personnel their own identity, and developing a pattern of action of its own. Nevertheless, in the absence of a decision making analysis it is not possible to conclude that Itamaraty turned into a central decision maker in the foreign policy arena; and, as a consequence, guaranteed the implementation of Itamaraty's proposals on foreign policy during the military years in general, and Geisel's government in particular.” (PINHEIRO, 1994 p. 86) grifo nosso

Se no corpo de seu trabalho Pinheiro procura ser mais condescendente com a tese da autonomia do MRE, em sua conclusão após estudo do processo decisório durante o governo Geisel ela afirma: “I then depicted the decision making arena under the Geisel government, where the President's strong hand, the autonomy of Itamaraty and the diminishing importance of the National Security Council as a locus for decision making were shown. Moreover, the solid partnership established by Geisel and his Foreign Minister, Azeredo da Silveira, since the very beginning of the government, is underlined. (Idem p. 318) grifo nosso

Ou seja, estudando o processo decisório somente durante o governo Geisel, Pinheiro afirma claramente a participação do Presidente e sua “parceria” com o Ministro das Relações

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Exteriores 39. Durante todo o texto a autora concede que a autonomia institucional do Itamaraty esteja se formando (notadamente a partir da década de 50) e seja de alguma importância, mas enfatiza claramente a óbvia relação entre os dois atores do poder Executivo (Presidente e Ministro das Relações Exteriores) 40. Pode-se argumentar que Geisel é exceção nesse processo, justamente pela sua personalidade afeita (interessada) aos assuntos externos 41. Esse argumento não prosperou até agora (especialmente durante a República) e também não prosperará nos presidentes subsequentes, como se mostrará a seguir. É mais lógico imaginarmos que Itamar Franco (1992-1994) e sua relação delegativa com Cardoso (enquanto Ministro das Relações Exteriores) e Amorim foi a exceção e não o contrário. A tese da autonomia decisória do MRE também não parece encontrar fulcro no governo de Figueiredo. Segundo Vizentini, o último general-presidente procurou ampliar o leque de debatedores sobre política externa trazendo para a arena de discussão o Congresso Nacional. Esta atitude não só é condizente com a política interna de “reabertura lenta, segura e gradual”, como mostra também que outros atores passam a se envolver nesse processo. 42 Além disso, o autor retoma, com mais ênfase, uma característica que foi apontada para o início do período militar e, como aparece também no final, nos parece ser central em todo o período: “Não se pode esquecer, contudo, que desde o início das década (sic) de 1970 a separação entre setor econômico e diplomático ia tornando-se mais tênue, com economistas e diplomatas trocando informações e penetrando uns as áreas de decisão dos outros.” (VIZENTINI, 1998 p. 277)

39 Inclusive existe uma contradição de termos entre “President’s strong hand” e a “autonomy of Itamaraty”, pois o termo autonomia presume capacidade decisória e essa é negada pelo termo “strong hand”. Ainda que não se admita que esses atores tenham capacidades decisórias excludentes (ou um ou outro) o termo autonomia é, no mínimo, um excesso. 40 Mais adiante, inclusive, Pinheiro delimita claramente com quais atores decisórios ela está realmente trabalhando e dentre estes não se inclui o MRE: “In other words, when working with "official decision makers" as Geisel, Silveira and the military in the inner-circle, I was simultaneously working with Geisel as the President, the military, and the hardworking German descendent; Silveira as the Foreign Minister, the holder of a more independent view of foreign policy, and the career diplomat; and the military as government, and as institution.” (PINHEIRO, 1994 p. 323); Para que não se confunda o ator Antônio Azeredo da Silveira com o MRE é importante o esclarecimento de Spektor: “As escolhas de Silveira cindiram a opinião de seus contemporâneos. Na Esplanada dos Ministérios, a linha dura não hesitou em denunciar o independentismo da política externa do Ministro no intuito de radicalizar posições contra o projeto de liberalização política de Geisel. No Itamaraty, as vozes contrárias às concepções do chanceler argumentavam que, ao turvar a amizade com Buenos Aires e Washington, Silveira estava condenando as relações internacionais do país a um sem fim de irreparáveis danos.” (SPEKTOR, 2001 p. 186) 41 SPEKTOR, 2001 p. 187 42 Modernamente esse aspecto da política externa (múltiplos atores) é sobejamente apontado. Ver OLIVEIRA&PFEIFER in ALTEMANI&LESSA, 2006b p. 395-396 e SARAIVA in ALTEMANI&LESSA, 2006b p. 430

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Outra pesquisadora, citada por Vizentini, Sonia de Camargo afirma que “um dos traços da gestão diplomática do governo Figueiredo foi a ampliação, dentro do executivo, da presença institucional do Itamaraty (...)” (DE CAMARGO apud VIZENTINI, 1998 p. 277). O final do governo Figueiredo e também o governo de Sarney tiveram que enfrentar um problema interno gravíssimo, herança do período militar, que foi a questão da dívida externa. Aqui novamente o MRE acaba sendo colocado de lado nas negociações mais importantes, pois “a decisão da área econômica em conduzir por si as negociações da dívida externa, de acordo com a imposição dos credores, de forma permanente, contabilista, empírica e

despolitizada,

sem

articulação

com

o

Congresso

e

a

Chancelaria

(MRE)”

(CERVO&BUENO, 2008 p. 427 e novamente p. 435). Talvez inconforme com o papel que lhe fora dado nesses governos, o MRE passa a radicalizar suas posições internacionais (Idem p. 429). Não fica claro, no texto, porém, de onde parte essa decisão. De qualquer forma, em outro assunto de política exterior – a criação do MERCOSUL – a literatura parece consensual a respeito da participação essencial dos presidentes José Sarney e Raul Alfonsin. 43 Fizemos um apanhado na literatura sobre a relação entre o MRE e a Presidência da República, tomados segundo as premissas básicas do conceito de diplomacia presidencial (como agentes decisórios diferentes e conflitantes) para verificar se historicamente se pode observar uma autonomia decisória do MRE em relação à chefia do executivo. Nossa conclusão é que a literatura não embasa tal premissa seja porque afirma claramente que ela é errônea, seja porque reconhece que não dispõe de dados suficientes sobre o processo decisório para fazer tal generalização. Ou seja, de 1889 até 1990, a literatura não reconhece descolamento decisório dentro do Executivo em se tratando de política externa brasileira quando mais reconhecer alguma forma de autonomia histórica do MRE. A ideia, portanto de que exista uma diplomacia presidencial diferente de uma diplomacia tradicional, esta levada a cabo por profissionais, não parece ter respaldo numa análise histórica.

Teoria e Metodologia Como demonstramos acima, se a premissa da diferença entre diplomacia presidencial e diplomacia tradicional não é verificada à luz da literatura histórica, uma vez que a ideia da autonomia do MRE como agente decisório frente à chefia do executivo tampouco prospera, é necessário analisar outras duas características do conceito de diplomacia presidencial conforme apresentado na primeira seção.

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Embora Malamud discorde frontalmente. Ver MALAMUD, 2010

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Cason & Powers apresentam diligentemente uma cronologia comparativa das faltas presidenciais para evidenciar seu conceito de presidencialização afirmando que “Prior to 1994, Brazilian presidents were highly dependent on the MRE and accorded the ministry an impressive degree of autonomy in policy making”. O argumento, infelizmente, não procede sob qualquer ótica. Em primeiro lugar os autores esquecem que antes da década de 90 o mundo ainda vivia a ideologia da Guerra Fria. Desta forma, salvo raríssimas exceções, cada hemisfério encerrava-se em si mesmo em termos de diplomacia. As conversas eram feitas em foros internacionais cujo número e expressão – antes de 1990 – eram infinitamente menores. Esse argumento é tão evidente que o embaixador Lingren Alves afirma: “O passar dos anos, longe de convencer-me do contrário, tem me reconfirmado o entendimento de que o conjunto de conferências da década de 1990, com a agenda social por elas estabelecida, ainda representa o único esforço diplomático – ou, pelo menos, com certeza, o mais abrangente, embora não-exaustivo –, até agora realizado para se compensarem, no longo prazo, os avatares negativos de uma fase histórica iniciada com o otimismo propiciado pelo fim da Guerra Fria e do “equilíbrio do terror nuclear”, hoje transpassada de angústia e perplexidade na maior parte do mundo. É esse entendimento – ou ilusão – que me persuade a insistir nestas crônicas” (LINGREN ALVES, 2001 p. 29)

Desconsiderar que os presidentes a partir da década de 90 foram requeridos internacionalmente de forma cada vez mais direta 44 é um erro tão grave quanto desconsiderar que as viagens internacionais estão cada vez mais fáceis e seguras hoje em dia. Nessa mesma esteira Almeida (ALMEIDA, 2004) contabiliza as viagens de Lula para demonstrar, num caminho semelhante ao de Cason e Powers as diferenças entre os presidentes praticantes da chamada “diplomacia presidencial”. Em primeiro lugar não há nenhum nexo causal entre o número de viagens de um presidente sua conjecturada influência internacional, sua efetiva influência internacional ou o exercício da chamada “diplomacia presidencial”. Apenas a titulo elucidativo, Nelson Mandela ficou preso por 27 anos e ainda assim era o líder negro mais influente da África, John Kennedy viajou por apenas 34 dias enquanto presidente americano. 45 O último monarca brasileiro passou três anos e sete meses viajando dos seus 48 anos de governo. Se colocarmos isso em expressão matemática, dos 17500 dias (aproximadamente) de governo o monarca brasileiro passou 1305 dias (aproximadamente) em viagem, isso nos dá

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“The domestic and international changes taking place with the end of the Cold War meant it would be difficult for Brazil to keep the same orientation as in the past. The country began to seek new approaches to dialogue with the world, which involved strategies formulated in the ministries of finance and foreign affairs. The 1990s enhanced the visibility of the Ministry of Foreign Affairs thanks to the emphasis given to regional integration processes, the opening up of the market and multilateral negotiations” (VIGEVANI, 2007 p. 1311) 45 Dados disponíveis em http://history.state.gov/departmenthistory/travels/president/kennedy-john-f

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um percentual de 7,45% do tempo 46. Cason & Powers afirmam que Cardoso ficou 92 dias fora em seus oito anos de governo, ou seja 3,15% e que Lula ficou fora 60 dias em 4 anos, um percentual de 4,1% 47. Esses cálculos não fazem sentido algum com a argumentação do autor, assim como não podemos afirmar que D. Pedro II praticava uma diplomacia monárquica. Metodologicamente, a relação de nexo causal que os autores tentaram dar não se sustenta, na medida em que não existe relação implícita ou explicitada pelos autores entre os dados e as conclusões. Como já afirmado anteriormente, as demais conceituações sobre diplomacia presidencial (exceção a de Cerqueira) não dispõem de dados suficientes para comprovação, uma vez que não analisaram exaustivamente o processo decisório do período a que se referem (como fez Pinheiro para o período Geisel). Não há como se supor uma separação de ente decisório (dentro do poder executivo) de tal substância a ponto de sustentar uma clivagem radical entre diplomacia tradicional e diplomacia presidencial baseando-se apenas na nominação de variáveis como “discursos e pronunciamentos”, “viagens internacionais”, “protocolo”, “rotina”, etc. Da mesma forma como não se pode presumir que determinada política externa seja de autoria de A ou de B 48 e a essas reduções atribuir todo um leque de afirmações e restrições cujo objetivo nos parece teleológico. O cientista político Robert Putnam afirma: “A política doméstica e as relações internacionais estão sempre entrelaçadas de alguma forma e nossas teorias ainda não desvendaram esse quebra- cabeça. É infrutífero debater se a política doméstica realmente determina as relações internacionais ou se é o inverso” (PUTNAM, 2010 p. 147)

A afirmação em si, pouco carrega de novo, ao menos para que não se diga que esse entrelaçamento era desconhecido antes da publicação do artigo. Contudo, na conceituação de Danese (obra que trata exclusivamente do conceito em tela) o uso da política externa internamente é marca da dita diplomacia presidencial que por sua vez é oposta à diplomacia tradicional. Indo mais longe, Putnam, fazendo um estudo do “estado-da-arte”, afirma que: “Uma concepção mais adequada dos determinantes domésticos da política externa e das relações internacionais deve enfatizar a luta política: os partidos, as classes sociais, os grupos de interesse (tanto econômicos quanto não-econômicos), os legisladores e mesmo a opinião pública e as eleições – e não apenas os funcionários do poder Executivo e os arranjos institucionais” (PUTNAM, 2010, p. 150)

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Dados disponíveis em Revista Isto É edição 2137 de 22/out/2010 CASON&POWERS, 2006 p. 9-10, cálculos percentuais nossos. 48 O que Carlsnaes, citando Hill, chama de “responsible decisions-makers” (CARLSNAES in SMITH et al. 2008 p. 86) 47

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Dito isto, nos parece clara a insuficiência teórica do conceito de diplomacia presidencial, sendo que todas as conceituações aqui apresentadas carecem desse espectro mais amplo de entendimento e mesmo percepção do processo decisório de política externa. Essa perspectiva que procura delimitar espaços, autores e responsáveis por determinadas decisões acaba, em descortinando os atores decisórios sem o devido auxílio teórico e rigor metodológico, encobrindo diversos deles e suas motivações. Em nosso entendimento o próprio conceito de diplomacia presidencial é uma forma de “luta política” meta-teórica. Na avaliação do uso que se faz do conceito (e não mais sua conceituação apenas) grupos de interesses e interesses per se são claramente percebidos. Vigevani afirma em artigo para a Latin American Perspectives: “In diplomatic action the Cardoso administration, appropriating methods increasingly employed by other states, frequently made use of the figure of the president. The Collar administration had made an essay into presidential diplomacy, but this had proved fragile because of the challenges of consolidation it faced. To a certain extent, presidential diplomacy, on the coattails of the relative success of the Real Plan, contributed to the reconstruction of Brazil's image, solidifying and legitimating it in the eyes of multilateral institutions and numerous governments, even among wealthy countries.” (VIGEVANI, 2007 p. 65)

Percebe-se claramente que a diplomacia presidencial em Cardoso é entendida como um ganho à imagem brasileira no exterior, mas tudo isso “tied especially to the intelectual and political status of Fernando Henrique Cardoso and affirmed by statesmen such as Bill Clinton and Tony Blair” (VIGEVANI, 2007 p. 66). E ainda que o autor afirme logo em seguida que: “In many instances, the international community's respect for Cardoso and his success in making himself heard in diverse global forums, owing both to presidential diplomacy and to the strategy of autonomy through integration, did not translate into concrete advances for Brazil.” (Idem p. 66), ganhos efetivos foram sentidos “Cardoso's two terms in office strengthened the presence of Brazil in certain of the great international debates, especially through the practice of presidential diplomacy (…)” (Idem p. 78). Em continuidade, Barnabé afirma que “do ponto de vista do Itamaraty, nota-se uma acomodação tranqüila com relação à postura “individualizada” de FHC.” (BARNABÉ, 2009 p. 13) muito embora cite imediatamente que: Entretanto, conforme aponta Danese, “(...) a existência, junto ao mandatário, de outros órgãos que disputam de alguma forma o espaço da chancelaria na formulação e execução da política externa, relativizam o seu poder de decisão e criam certa tensão dinâmica no relacionamento com a presidência.” (Idem p. 13)

Em Lula, entretanto, o mesmo Barnabé afirma: “Para marcar uma mudança com o governo anterior, essencialmente no que diz respeito à política externa, o conceito de “Diplomacia Presidencial” não é usado por Lula,

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apesar de seu governo, na prática, representar não só a continuidade, mas também a intensificação do uso deste instrumento na busca dos interesses brasileiros em âmbito internacional.” (BARNABÉ, 2009 p. 15)

e o motivo de não ser usado o conceito de diplomacia presidencial é, segundo Almeida, uma inversão geral de foco: “De modo geral, a política externa conduzida no governo FHC tinha no Itamaraty seu foco principal, sendo que até mesmo os conselheiros presidenciais eram diplomatas. No governo Lula, o Itamaraty partilha a formulação e até mesmo a execução da política externa com assessores presidenciais.” (ALMEIDA, 2004 p. 18)

Se em Cardoso o intelectual é colocado a serviço da imagem do Brasil no sentido de fortalecê-la, em Lula a política externa é dotada de “ativismo”, “partidarismo” 49 e “populismo”: “O perfil popular ou populista do Presidente Lula e a clara influência partidária que a política externa de sua administração apresenta, tendo em vista a semelhança das diretrizes gerais do PT (Partido dos Trabalhadores) com a elaboração da agenda internacional do país (...)” (BARNABÉ, 2009 p. 16). É uma política externa partidária, como afirma também Almeida, em outro artigo que o governo Lula: “(...) está procurando igualmente impulsionar alguns dos temas caros à antiga agenda internacional do PT, feita de algumas opções preferenciais pelas chamadas forças progressistas e contestadoras de uma ordem mundial dominada pelos países capitalistas avançados, mas temperando-as com o pragmatismo que é de se esperar de um governo estabelecido.” (ALMEIDA, 2003 p. 88)

A crítica do autor liga os termos “antiga agenda”, com propostas que vem de “cunho socialista, mas em tom mais conciliador em relação às obrigações externas” (Idem p. 88), com “velhos bordões do passado (contra FMI e ALCA)” 50 (Ibidem, p. 92). No plano comercial, segundo ainda Almeida, a não rejeição dos pressupostos do livre comércio “constituiu notável evolução” de Lula (Ibidem p. 93). Quando o autor fala sobre a postura do Brasil frente a ALCA e a manifestação do Deputado Aloizio Mercadante sobre a desideologização desse posicionamento novamente emprega o termo “notável evolução” (Ibidem p. 93). Sobre novas alianças internacionais, Almeida menciona o termo “idealismo mudancista” referindo-se à ideia do governo de se aliar ao grupo que hoje se conhece por BRICS (Ibidem, p. 95) e termina por dizer que o então candidato Lula “realizou um notável percurso em direção a uma postura mais realista 51 no campo da política externa” (Ibidem p. 95). Para o autor, (escrevendo em 2003, ou seja, no primeiro ano de mandato de Lula) o distanciamento da 49

Essa crítica é apresentada também por VIGEVANI&CEPALUNI, 2007 p. 1319 Essa mesma crítica sobre o caráter ideológico da política externa aparece em VIGEVANI&CEPALUNI, 2007 p. 1319 51 Em nada aqui o autor se refere à postura teórica do Realismo e sim usa o termo “realistas” como sinônimo de “factíveis” em sua visão. 50

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realidade (por desconhecimento) das propostas de Lula para a política externa do Brasil, provocou um “certo desgaste diplomático” no caso da crise Venezuelana em 2002, por exemplo. (Ididem p. 97). Fica claro no discurso do autor uma oposição às ideias de mudanças e a apresentação da ingerência dentro da diplomacia tradicional (qualificada nominalmente pelo assessor da presidência para política externa, Marco Aurélio Garcia 52) como algo que desgostava a burocracia do Itamaraty. Além disso, os termos pejorativos refletindo ainda a bipolaridade do período da Guerra Fria e a “evolução” para posições de manutenção do status quo em política exterior são eloquentes da posição do autor. Como se vê, nem teórica nem metodologicamente o conceito se sustenta. Isso não quer dizer que não exista de fato a diplomacia presidencial, mas nenhum dos trabalhos teóricos que a propõe traz dados suficientes, metodologicamente corretos e teoricamente embasados para que se conclua pela veracidade e pertinência da conceituação em tela. Ao contrário o que vemos é um arranjo de posturas corporativas axiomáticas, ironias históricas e lacunas metodológicas.

Conclusão Finalmente, o conceito de “diplomacia presidencial” tem clara oposição ontológica a uma diplomacia tradicional. Como definir essa diplomacia presidencial não é, ainda, um consenso na literatura, mas a participação do presidente na formulação e condução da política externa é um ponto comum entre os autores. Contudo, os dados trazidos para demonstrar a diferença histórica entre os presidentes republicanos e as gestões Cardoso e Lula não se sustentam numa análise histórica mais minuciosa. A literatura histórica em RI não chancela a tese da autonomia do MRE em período nenhum da história brasileira, e se esse ponto não é diferencial como diferenciar diplomacia presidencial de diplomacia tradicional? A tentativa de ligar a participação do Presidente na política externa por meio da contabilização de seus discursos ou viagens é inefetiva, pois não se pode presumir causalidade entre os dados (Viagens) e efeitos (formulação, condução da Política Externa) se não por normatividade categórica. Tanto Cardoso quanto Lula são exceções dentro da história republicana brasileira, seja pelo tempo que governaram, seja pela solidez que emprestaram às instituições (especialmente à democracia) ou seja, ainda, pelo tempo histórico aos quais estão presos. O mundo dos anos 90 com a capacidade de transpor distâncias – tanto materialmente quanto informativamente –, sua velocidade e interligação de espaços, lugares e informações 52

Que Vigevani diz era responsável pelo caráter “ideológico” da política externa. (Idem p. 1316)

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colocou desafios completamente diferentes aos mandatários executivos. Tentar fazer comparações rasas é, no mínimo, um equívoco. Da mesma forma, separar agentes decisórios cujos espaços de atuação são tão próximos (como o Presidente da República, o Ministro das Relações Exteriores e o MRE) sem um estudo pormenorizado de cada caso é uma irresponsabilidade científica que só encontra razão se pensarmos que a clivagem é parte substantiva de um discurso corporativo. Generalizar essa separação e atribuir a ela um adjetivo “histórico” é um ato político, não científico. Não por acaso que as obras que mencionam e se debruçam sobre o tema são, quase todas, escritas por diplomatas de ofício. Estes, munidos do “esprit de corps”, lutam por delimitar espaços de poder e para isso lançam mão da dicotomia entre ‘técnica” e “política” atribuindo ao primeiro termo valoração positiva e ao segundo valoração negativa. Política externa é, antes de tudo, política. E política, nesse país, recentemente, se começou a fazer com democracia. Isto implica no fato de que o condutor do executivo representa não apenas a si mesmo, mas ao povo. Seu espaço de atuação não pode ser minorado (sequer em teoria) por prerrogativas de classe, principalmente quando essa tentativa é um ranço elitista cuja existência não pode mais encontrar guarida no pensamento de cientistas do século XXI.

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