“Lo sguardo di Michelangelo” e o toque irresistível. In: VIII Congreso Internacional de Teoría e Historia de las Artes XVI Jornadas del CAIA (Centro Argentino de Investigadores de Arte) ‘Imagen/Deseo. Placer, devoción y consumo en las artes’. 2015.

June 7, 2017 | Autor: Renato Menezes | Categoría: Sculpture, Metamorphoses, Cinema, Michelangelo Antonioni, Michelangelo Buonarroti, Erotismo
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Descripción

VIII Congreso Internacional de Teoría e Historia de las Artes XVI Jornadas del CAIA (Centro Argentino de Investigadores de Arte) ‘Imagen/Deseo. Placer, devoción y consumo en las artes’. 2015.

“Lo sguardo di Michelangelo” e o toque irresistível

Resumo: A relação estabelecida entre o toque e o olhar evocada por Michelangelo Antonioni em seu último curta-metragem – Lo sguardo di Michelangelo, 2004 – é o aspecto sobre o qual o cineasta se apoia para desenvolver um sensível depoimento estético a respeito de seu homônimo, Michelangelo Buonarroti. Neste texto serão analisadas as articulações operadas no filme que dialogam intensamente não apenas com os aspectos inerentes às obras do mestre italiano, como também com os mitos que circundam sua vida.

Visione del silenzio Angolo vuoto Pagina senza parole Una lettera scritta Sopra un viso Di pietra e vapore Amore Inutile finestra Caetano Veloso, Michelangelo Antonioni

“Lo sguardo di Michelangelo” é o título do curta-metragem rodado em 2004 por Michelangelo Antonioni, a quem peço licença para me apropriar de sua síntese eficaz. A câmera que ele outrora conduzia, desta vez acompanhava o seu silêncio profundo e a sua vagareza senil a tocar o monumental Moisés, obra central do Sepulcro do Papa Júlio II, na Basílica de San Pietro in Vincoli, em Roma. Assim ele excluía de seu filme qualquer possibilidade de historicização da narrativa para ceder lugar a mais pura experiência estética dos sentidos, unindo de uma só vez, a totalidade do tato, a ineficiência da visão e a inatingível audição de um filme sem som. Mais do que isso, ele promovia um glorioso encontro entre a transitoriedade de sua vida, um presente quase passado de sua morte não muito distante (ele morreria cerca de dois anos depois), com a eternidade: do mármore, de Michelangelo e, antes de tudo, de Roma.

Superando toda possibilidade de compreensão do filme como testamento revelador de alguma ordem inteligível como valor de tributo de herdeiro do seu homônimo, o último documentário de Michelangelo Antonioni, se trata, como já mencionado, de uma poética apologia dos sentidos. Em 1985, um acidente vascular cerebral afeta gravemente os movimentos do cineasta e compromete irrecuperavelmente sua fala. Tal limitação, contudo, antes mesmo de se apresentar como problema imposto à sua existência, tornava-se artifício para o uso de uma linguagem cinematográfica na qual a experiência é, por si só, origem e fim, forma e conteúdo, meio e objetivo. Antonioni não escolhera, no entanto, a Capela Sistina, cujo espaço é montado a partir do diálogo ininterrupto de dois Michelangelo‟s absolutamente distintos que, em alguma medida, formam um par complementar para o entendimento de um único Michelangelo, ideal. Ele tampouco se decidira pela Cúpula de San Pietro, obra-prima da arquitetura empreendida pelo já velho Michelangelo, dedicado quase exclusivamente à arquitetura. Sua opção foi, curiosamente, pela obra que Condivi, em sua biografia do mestre florentino redigida em 1553, nomearia “la tragedia della sepoltura”1, que condensaria toda a insatisfação do artista diante de uma obra que nunca pode se realizar. Non-finito por excelência, como produto jamais finalizado de uma ideia utópica2, o Sepulcro de Júlio II concentra a angustia do desejo não conquistado, da vontade inalcançada e da concepção não materializada, não porque ela ainda aguarda o momento crucial de sua completude, mas, inversamente, porque sua completude é elaborada ininterruptamente, infinitamente. Deste modo é possível sugerir a hipótese segundo a qual Antonioni via no monumento michelangiano a própria metáfora da montagem cinematográfica, que esculpe o tempo (segundo a fórmula de Tarkovsky3) e resulta invariavelmente em um eterno devir, pois nunca se completa por si só. Tanto quanto um problema formal, o non-finito impõe-se como problema de ordem histórica, porque o futuro está condenado a não mais ser passado e o presente insiste inutilmente em se esparramar para o futuro. Ele funda uma nova categoria na qual o

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CONDIVI, Ascanio. Vida de Miguel-Ángel Buonarroti. Madrid: 2007. Pp. 74; 87. É importante esclarecer que Vasari denomina non-finito as obras efetivamente não acabadas de Michelangelo. Logo, o Sepulcro de Julio II, segundo o biógrafo aretino, jamais seria considerado um nonfinito, senão considerando-o como conceito operativo, como agora feito. 3 “Qual a essência do trabalho de um diretor? Poderíamos defini-la como „esculpir o tempo‟. Assim como um escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela - do mesmo modo o cineasta, a partir de um "bloco de tempo" constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo de que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme (...)”. In.: TARKOVSKY, Andrei. Esculpir o Tempo. Editora Martins Fontes: São Paulo, 1990. Pp. 72. 2

tempo precisa ser suspenso para oferecer à imagem a liberdade necessária para exercer a sua própria existência no mundo. Disso deriva o que se convencionou chamar de “teoria artística michelangiana”, sinalizada ao menos desde Benedetto Varchi em suas “Due lezzione...”, na primeira das quais ele realizaria uma atenta exegese dos versos que o mestre florentino dedicaria a sua companheira Vittoria Colonna, a quem manifestou também o seu profundo amor em diversos desenhos. “Non ha l‟ottimo artista alcun concetto/c‟un marmo solo in sé non circonscriva” não somente garante o nome de Michelangelo entre os maiores poetas de seu tempo, como também sumariza a concepção reafirmada na diferença por ele estabelecida entre o ato de esculpir e o de pintar, segundo a qual o primeiro se funda “per via di levare”, conforme seria declarado na missiva datada de junho de 1547, que o artista endereçaria a Varchi a seu próprio pedido4. Absoluta consciência tinha Sartre quando filiou Giacometti à genealogia de escultores sobre a qual Michelangelo desempenha certo caráter de paternidade, perseguidos por “pensamentos de pedra”, e cuja paixão era fazer-se todo extensão para que, do fundo dessa extensão, uma estátua de homem pudesse brotar5. Assim, ele condescendia à utopia michelangiana, que acreditava habitar solitário um universo de pedra na companhia de colossos que lhe aguardavam ansiosos para talhá-los e revelá-los à luz do mundo6. A razão de Sartre era confirmada, no entanto, já por Vasari, na segunda edição da biografia do mestre insuperável, da qual emergiria de seu profundo sentido artístico moralizante, a retomada do princípio de Michelangelo para quem o juízo da mão deve obedecer tão somente o intelecto: “E foi ainda na mesma época que esboçou uma estátua de mármore de São Mateus em S. Maria del Fiore, que, assim esboçada, mostra a sua perfeição e ensina aos escultores de que modo se retiram figuras dos mármores sem estropiá-los. Pois é preciso desbastá-los sempre com o juízo, conservando-os de maneira a se poder, em caso de necessidade, subtrair matéria e mudar algo”7.

O São Mateus, única obra iniciada de uma série sequer esboçada, rebela-se contra a pedra que o expulsa e o engole no mesmo instante, entregando-se convulsivo ao limite entrópico da matéria. O movimento giratório e agitado do tronco, que revela o impacto 4

BUONARROTI, Michelangelo. Cartas escolhidas. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. Pp. 127. SARTRE, Jean Paul. La recherche de l‟absolu. In.: Situations, III. Lendemains de guerre. Paris: Gallimard, 1976. Pp. 291. 6 Vasari menciona a quimera pairada sobre Michelangelo nas pedreiras de Carrara quando, acomoanhado de dois ajudantes para a extração de blocos de mármore para a realização do Sepulcro de Julio II. – Cf. VASARI, Giorgio. Vida de Michelangelo Buonarroti. Campinas: Editora Unicamp, 2011. Pp. 92. 7 Cf. Idem. VASARI, 2011. Pp. 89. 5

sofrido por Michelangelo diante da potência muscular de Laocoonte, o sacerdote troiano que deseja livrar-se a si mesmo e a seus filhos das serpentes marinhas amaldiçoadas, é resultado do imenso desconforto no qual se encontra o apóstolo encarcerado, de pernas descompassadas que já desconhecem a herança grega do contrapposto. É nesta difficultà formal do corpo em tensão transformadora que se elabora um complexo estado metamórfico onde a pedra tende a se tornar carne, substituindo o contato angustiado do cinzel sobre a pedra pelo toque do dedo na superfície da matéria, potencialmente ativador da transformação mágica do inanimado em real absoluto, ou, em uma palavra, em vivacità. O extraordinário sentido volumétrico de Michelangelo, expresso nas partes salientes da estátua inacabada de São Mateus que terminaram por fazê-la mais parecer um relevo, seria problema solucionado rapidamente por Rudolf Wittkower que, inconsolado, afirmara que o mestre florentino, preenchido de impossibilidades, jamais poderia dar vida às suas concepções8. Mas Michelangelo nunca desistiu e deu-nos provas de seu esforço exibindo aos olhos do contemplador um efeito pigmaleônico onde a imagem torna-se realmente carne, confessando também que o artista deseja a carne na qual a imagem se tornou, e não uma miragem carnal na qual a imagem se projeta. Em longa duração, a poética de Pigmaleão9, à que Michelangelo involuntariamente parece ter se inclinado, ecoaria, e mesmo culminaria, na célebre novela de Honoré de Balzac, Chef-d‟Oeuvre-Inconnu, publicada pela primeira vez em 1831. Na lição dada a Poussin e Porbus pela primeira vez em seu atelier, o velho Frenhofer, para quem Mabuse, seu mestre, havia sido o único mestre na arte de dar vida às imagens, entrega-lhes o segredo: “A minha pintura não é uma pintura, é um sentimento, uma paixão!”10. Neste mesmo encontro, o ancião misteriosamente revela preparar uma obra à qual nenhuma outra superará sua carnalidade, umidade dos olhos, movimento e respiração. Finalmente quando da revelação da obra, tomados por uma imensa curiosidade e expectativa, os mancebos foram invadidos, na verdade, por um sentimento de dúvida e confusão diante de uma imensa desordem no meio da qual apenas a imagem de um pé resplandecia marmóreo e desejável, despertando-lhes uma desconcertante atração. Quase um século depois, o fragmento impressionante que ativa no contemplador um desejo incontrolável seria atualizado na conhecida cena de “L‟Âge 8

WITTKOWER, Rudolf. Qu‟est-ce que la sculpture? Principes et précedures (1977). Paris : Macula, 1995. Pp 121. 9 Cf. STOICHITA, Victor I. L‟effet Pygmallion. Genève : Librairie Droz S. A., 2008. 10 BALZAC, Honoré de. Obra-prima Ignorada (1831). Porto Alegre: L&PM, 2012. Pp. 28.

d‟Or”, filme de 1930, de Luiz Buñuel, quando uma mulher beija ardentemente o gélido pé de mármore da estátua do jardim, comprazendo-se com este ato em grande satisfação. Não se trata exatamente do mesmo gênero de atração que aquele pé inserido por Mantegna ao lado dos pés do sensualíssimo São Sebastião desperta, malgrado se estabeleça com isso uma nova modalidade de paragone, desta vez entre a carne e a pedra, entregando toda a inteligência mineral do pintor. Esse pé mantegnesco, ao contrário, nos sinaliza que tudo não passa de um fragmento, sobre o qual se projeta uma crença inabalável de carnosità. Frenhofer, vendo arruinar-se no cume de sua certeza de que a pintura de uma mulher havia realmente se tornado mulher11, dá às chamas em seu ateliê, expirando junto de seus segredos mágicos. Tal operação assemelhava-se ao que havia feito Michelangelo, conforme nos conta Vasari ao fim da segunda edição da biografia do mestre florentino, fosse para negar às gerações futuras a magia de sua arte, fosse ainda para esconder os fracassos e as suas dificuldades que o seu expressionismo congênito também o faria torturar o mármore para forçá-lo a falar12. “Michelangelo crê profundamente que a vida, para se mover, precisa primeiro existir”13, afirmaria Longhi, que não completaria que existir, para o mestre florentino, significa ter substância e plasticidade, mesmo em se tratando da matéria inerte do torso nu. Diria também Longhi que Michelangelo concebe “il mondo come „torso‟”14, compreendendo que nesta forma mutilada o artista via não um fragmento de mundo, mas, contrariamente, o mundo em sua completude. Longhi, e tantos outros que recorrentemente não hesitariam em identificar no torso a elaboração complexa do universo michelangiano, daria continuidade a Winckelmann, que veria no Torso de Belvedere a origem e o fim de sua arte, dignamente por ele chamado Torso de Michelangelo15. A infundada imagem de Michelangelo velho e cego sendo acompanhado por seus pupilos a tocar o Torso de Belvedere alcançaria grande popularidade, especialmente na extensão das primeiras décadas do século XIX até a metade do século. A primeira aparição do tema em pintura seria, supostamente, pela obra de Bergeret (nº17) do Salon 11

Cf. DIDI-HUBERMANN, Georges. A Pintura encarnada, seguido de Obra-prima desconhecida, de Balzac. São Paulo: Escuta, 2012. Pp. 103-129. 12 SARTRE, Jean-Paul. O sequestrado de Veneza (1964). São Paulo: Cosac Naify, 2005. Pp. 48. 13 LONGHI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana (1980). São Paulo: Cosac Naify, 2005. Pp. 78 14 Apud. MARQUES, Luiz. Prefácio. In.: Op. Cit. VASARI, 2011. Pp. 15. 15 WINCKELMANN, J.-J. Bibliothèque des belles-lettres et des arts libéraux (1759). In. : De la description. Paris: Macula. 2006. Pp 140.

de 1817, sendo assim descrita: “Sr. Bergeret representou Michelangelo cego. Este grande homem se fez conduzir junto do Torso antigo. Ele explora pelo tocar estas belezas das quais sua vista não pode mais lhe testemunhar; ele vê com a mão o fragmento sublime; ele admira apalpando-o”16. A também suposta segunda aparição do tema de Michelangelo tocando o Torso de Belvedere dataria do Salon de 181917, por obra de Couder (nº 47), mas não evocaria, contudo, a cegueira do artista. Ambas as obras, não obstante, desapareceriam, e o mais antigo registro da curiosa iconografia seria dado por meio de uma bandeja de porcelana de Sèvres, decorada a partir de uma pintura perdida de Alexandre-Evariste de Fragonard, cujo original, datado de 1824, foi também perdido. Talvez a mais conhecida obra sob esta temática sairia dos jovens pinceis de Jean-Leon Gêrome que, em 1850, mais do que atualizar a antiga temática da alegoria dos sentidos, ele renova o paragone entre a grandeza antiga e a pequenez moderna, que admira e conduz o seu passado. Da exegese biográfica de Michelangelo, salvam-se alguns breves elementos que, embora não justifiquem, ao menos reconectam o artista ao fenômeno do olhar, dando alguma consistência ao mito e retirando dele qualquer possibilidade do seu surgimento ex-nihilo. Conta-nos Vasari, em passagem oriunda de Condivi, dos efeitos perniciosos que os trabalhos na abóbada da Capela Sistina ter-lhe-iam provocado na visão, de tamanho desconforto com o qual havia executado heroicamente os afrescos18. Sua visão teria sido, no entanto, afetada por alguns dias, sendo recobrada posteriormente. Décadas mais tarde, Michelangelo realizaria na Capela Paolina um suposto autorretrato na face de Saulo, fulgurado pela luz divina que o converteria em São Paulo, no momento em que Deus lhe retira a visão por três dias. Tal identificação, no entanto, deveria aguardar o ano de 197567, para que Leo Steinberg levantasse essa hipótese19. Quaisquer que fossem os argumentos utilizados, eles seriam insuficientes antes mesmo de serem questionados até seu esgotamento. O mesmo continuaria a ocorrer, por exemplo, com a medalha-retrato que Leoni Leone oferecera a Michelangelo por volta de 156120, na qual figura também um velho cego guiado por um cão, iconografia complexa e nunca inteiramente decifrada. A medalha, contudo, permaneceria aparentemente 16

MIEL, Edmé François Antoine Marie. Essai sur les Beaux-Arts [et. al.]. Paris, L‟imprimerie de Didot le Jeune, 1818. Pp. 303. Tradução nossa. 17 LANDON, Charles Paul. Annales du Musée et de l‟École moderne [et. al.]. Salon de 1819, t. II. Pp. 71. 18 Op. Cit. Vasari, 2011. Pp. 101-102, a partir de Op. Cit. CONDIVI, 2007. Pp. 73. 19 STEINBERG, Leo. Michelangelo‟s last paintings: The Conversion de St. Paul ad the Crucification of St. Peter in the Capella Paolina, Vatican Palace. London: Phaidon Press Limited, 1975. Pp. 39. 20 Leoni Leoni faz chegar estas medalhas de forma idênticas, mas duas de prata e duas de bronze, em 14 de março

desconhecida do álbum mnemônico dos intelectuais que gravitariam na órbita francesa do século XIX, malgrado a afirmativa de Vasari, que diz ter visto muitas cópias desta medalha-retrato, na Itália e fora dela21. Nenhum desses elementos reuniria a apresentação invariável de Michelangelo trôpego e corcunda, que segue em passos lentos a encontrar consigo mesmo em forma de obra ancestral e o seu eterno presente, nunca autorizado a tornar-se futuro. Eis ali o homem todo inteiro, diante da obra para onde se canalizaria toda a formulação de seu cosmos, e junto do qual derrocou em um desejo jamais realizável. Diante dele se apresenta, agora, uma coisa de pedra, que era também a sensível colaboração com a construção de um mundo que lutou contra ele próprio e o derrotou finalmente, quando o seu espírito já não mais atendia ao chamado violento do trabalho e sucumbia à imposição da matéria maciça. O encontro do velho homem com a eterna coisa – formula que Antonioni posteriormente repetiria – carregava em si a marca de um ato poético. No mais profundo silêncio contemplativo, a câmera que nos dirige os olhos para a mão de Antonioni tocando a límpida e brilhante superfície do mármore recémrestaurado, alterna o plano para nos dirigir, agora, à face de Júlio II22, estampada pelos olhos fechados do sono eterno, olhos que doravante serão incapazes de cumprir a função de seu destino. Não obstante, o silêncio é obrigatório e a pedra observa. No filme se revela uma vontade muda de dizer o indizível, porque o silêncio tornou-se personagem e deu aos demais sentidos a insuficiência de suas funções. Justamente por isso o toque da mão do velho sobre o mármore é, na verdade, afago, porque agora é preciso ver com as mãos, tal como Michelangelo. O silêncio expressivo é elemento comum no cinema de Antonioni, mas lhe foi também artifício para comentar a dificuldade do mestre florentino de se comunicar com os homens. Assim, incomunicável e intransigente, atravessado por uma fúria inflamada, ele dispensou qualquer ajuda para, solitário, submeter Deus aos seus pincéis de escultor e criar a ontológica imagem do demiurgo que abre mão de seu silêncio universal para dar vida a mais perfeita escultura de barro que se faz carne. Naquele toque metamórfico, ao homem é dada a difícil responsabilidade de habitar o mundo vazio. Sua dificuldade seria análoga a do Escravo dito Atlas (ou Atlante), que, como Sísifo, fez da tortura da 21

Op. Cit. VASARI, 2011. Pp. 159. Como é sabido, todas as esculturas, salvo, evidentemente, o Moisés, mas também a Vida Ativa e a Vida Contemplativa, sairiam das mãos se artistas do círculo de Michelangelo, segundo suas orientações e a partir de seus desenhos. 22

pedra a tortura eterna de seu próprio corpo agoniado, transformando toda a dificuldade na tensão daquele mesmo “torso que a ausência de rosto não nos impede de amar”23. Por isso mesmo, não faltaria na história da recepção de Michelangelo os especialistas empenhados em detectar onde o mestre florentino decalcou aquela forma faltante em sua completude, talvez por não superarem a consciência de que o torso, em Michelangelo, é ideia tácita, mais do que mera morfologia. Mas é preciso lembrar que o artista recusara-se a restaurar o Torso, na contramão de toda a sua geração, que suportou mal a abstração de um corpo em lacunas. Quis o século XIX entender que Michelangelo preferia tê-lo preenchendo as mãos, como meio compensatório da completude de tamanha beleza/desejo que lhe despertava o corpo masculino. O desejo de Antonioni parece ser de outra ordem. Primeiro porque, ao contrário, não toca um torso, e sim o monumental líder dos hebreus que, em concentração absoluta, ameaça levantar-se para, em um só golpe de força, dispensar sua fúria no mundo. Segundo porque seu desejo parece se alicerçar na forte crença de que sua mão toca Michelangelo mesmo, de olhos vibrantes e barba bifurcada24. Terceiro porque o cineasta nos interroga, antes de tudo, a respeito do próprio “sentido”25, recorrendo à ambiguidade semântica da palavra. Não por acaso, Antonioni em seu filme executa uma explícita operação de esvaziamento de qualquer significado para reafirmar o binômio olhar-toque, desta vez como construção dialética à medida que a mão substitui o contato imediato que o olho estabelece com o mundo. Disto não fugiu Ribera, quando executou as versões para “El tacto” também conhecida como “El sentido de la visión”, onde um escultor cego acaricia uma cabeça marmórea antiga, na tentativa de desvendar os mistérios que a forma lhe impõe, unindo eficientemente as duas acepções do termo “sentido”. O vocábulo “sentido” diz respeito, doravante, à qualidade daquele que sentiu, isto é, daquele que experienciou a ação, deslocando o protagonismo da mão do artista para a inércia da própria obra, não mais pacífica do toque, mas ativa em toda a sua consciência de onividência. Desta maneira o verbo sguardare, ultrapassa sensivelmente a sua noção

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YOURCENAR, Marguerite. O tempo esse grande escultor (1954/1982). In.: O tempo esse grande escultor. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985. 24 Basta que lembremos o retrato simbólico realizado por Federico Zuccari, por volta de 1580, hoje localizado no Musei Civici Palazzo Buonaccorsi, no qual a imagem do artista incorpora o célebre gesto de quase atividade esboçado por Moisés, em uma eficiência tal que as imagens significam-se reciprocamente. 25 Quais sejam: qualidade daquilo que se sentiu; possibilidade do corpo de obter sensações; racionalização de uma ideia.

mais imediata de “ver; observar” para se tornar “cuidar; proteger”26, incidindo sobre o efeito destrutivo que a matéria pode incorporar seja enquanto forma, enquanto potência ou mesmo enquanto fenômeno. Pois em consequência última, Antonioni comentava em alguma medida, ações iconoclastas como aquele ataque perpetrado contra a Pietà vaticana em 21 de maio de 1972, quando o geólogo húngaro-australiano Lazlo Toth dispensaria golpes contra a obra, deformando a face da virgem e mutilando um dos braços27. Devaneado, ele proferia gritos de anúncio do retorno de Cristo vivificado em si mesmo, que tinha naquele momento trinta e três anos, emblemática idade com que Cristo teria morrido, forçando o encontro entre o fim dos tempos e o fim da obra de arte. Curiosamente, “Lo sguardo di Michelangelo” seria o último documentário de Michelangelo Antonioni, que repetia intuitivamente o efeito fulminante que Michelangelo Buonarroti havia provocado sobre Joshua Reynolds. Depois de pronunciar seu décimo quinto e último Discours On Art à frente da Royal Academy em 1791, já surdo e com a visão parcialmente perdida, o pintor expiraria em apenas dois meses. Ele nos antecipava a morte do francês Xavier Sigalon, em 1837, quando, depois de estudar sistematicamente durante três anos o Juízo Final, em Roma, e finalmente executar a cópia até hoje encontrada na École des Beaux-Arts, tem seu sonho de prosseguir nos estudos para recriar a Capela Sistina em Paris interrompido por uma cólera que o rouba a vida em poucos dias. Antecipar-nos-ia também a morte de JeanBaptiste Carpeaux que, depois de passar a vida acreditando ser o mais fiel herdeiro do mestre florentino, morreria em 1875 sofrendo as dores arrasadoras de um câncer na bexiga. Desse modo, “Lo sguardo di Michelangelo” não deixa de ser uma reafirmação eloquente da própria teleologia artística vasariana, que anuncia com Michelangelo o fim irreversível da arte. Dessa vez, contudo, Michelangelo Antonioni anuncia o seu próprio fim.

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Segundo http://www.treccani.it/enciclopedia/sguardare_%28Enciclopedia-Dantesca%29/ - Consultado em 24.03.2015, às 18h40. 27 Para isso, cf. GAMBONI, Dario. The Destruction of Art: Iconoclasm and Vandalism Since the French Revolution. London: Reaktion Books Ltd, 1997. Pp. 202-203.

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