John Langshaw Austin & Sigmund Freud: aproximações críticas. In: MARIANI, B.; MEDEIROS, V.; DELA-SILVA, S.. (Org.). Discurso, Arquivo e.... Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2011, p. 93-107

June 29, 2017 | Autor: Daniel Silva | Categoría: Sigmund Freud, J. L. Austin, Psicanálise
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SILVA, Daniel Nascimento John Langshaw Austin & Sigmund Freud: aproximações críticas. In: MARIANI, B.; MEDEIROS, V.; DELA-SILVA, S.. (Org.). Discurso, Arquivo e.... Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2011, p. 93-107. John Langshaw Austin & Sigmund Freud: aproximações críticas

Daniel do Nascimento e Silva Escola de Letras, UNIRIO

“É claro, há debates antropológicos em que se busca afirmar e contestar a universalidade do tabu do incesto, e há uma disputa secundária em torno do que pode implicar, se tal for o caso, para o significado dos processos sociais, a afirmação da universalidade da lei. Afirmar que uma lei é universal não é o mesmo que afirmar que ela opera da mesma maneira em diferentes culturas, ou que determina a vida social de modo unilateral. De fato, atribuir universidade a uma lei pode implicar simplesmente que ela opera como uma estrutura dominante em cujo interior ocorrem as relações sociais. Afirmar a presença universal de uma lei na vida social não significa, de modo algum, afirmar que ela existe em todos os aspectos da forma social considerada; mais modestamente, isso significa que a lei existe e que opera em algum lugar em cada formação social.” (Judith Butler, Problemas de gênero)

Preâmbulo: sobre indivíduos e sociedades Em artigo intitulado “Aspectos sociais da pragmática”, Kanavillil Rajagopalan (2010) critica a crescente atração entre os linguistas por teorias que explicam o uso da linguagem a partir de princípios cognitivos. Um dos trabalhos fortemente influenciados pelo cognitivismo citados por Rajagopalan é o conhecido e influente tratado de Dan Sperber e Deirdre Wilson (1995), Relevance: Communication and Cognition. Neste livro, toda a pragmática da linguagem é reduzida a um princípio cognitivo, o da relevância. O papel do usuário da língua, neste modelo que toma a cognição como a raison d’être da comunicação, é, como apontam Mey & Talbot (1988:747), o de “um indivíduo espontâneo trabalhando conscientemente com problemas únicos, em vez de um agente social lidando com convenções pré-existentes disponíveis para ele ou ela, das quais eles/elas não têm consciência”.

Temos na citação de Mey & Talbot uma distinção entre os termos “indivíduo” e “agente social”. Para Rajagopalan, teorias sobre a linguagem [94 - início] que privilegiam um ou outro consistem não apenas em explicações radicalmente incompatíveis, mas também em decisões politicamente distintas. O linguista invoca as famosas palavras de Margaret Thatcher, “Não existe sociedade. Há homens e mulheres individuais, e existem famílias” (Thatcher, apud Rajagopalan, 2010:43), de forma a sublinhar o preço ético e político que a eleição do indivíduo em detrimento do agente social pode custar para as teorias linguísticas. “Cognitivismo e societalismo”, sublinha o autor, “não são simplesmente duas alternativas teóricas. (...) A escolha entre as duas é política” (ibid.). É diante deste pano de fundo ético que eu gostaria de fazer a primeira aproximação entre os autores que trago para discussão, o psicanalista Sigmund Freud e o filósofo da linguagem John Langshaw Austin. Se, por um lado, o trabalho de Freud guarda pouca semelhança com o que se chama de cognitivismo, por outro lado, pelo menos para um de seus leitores críticos, Frantz Fanon, são o indivíduo e a família, vistos como modelos universais, que ocupam a cena da formação subjetiva. Nos termos de Fanon, os fundadores da psicanálise, ao elaborarem seus conceitos, “não pensaram sobre o negro em suas investigações” (1967:151). Dentre outros exemplos no livro, o autor cita que, entre as famílias negras das Antilhas, afirmar que o complexo de Édipo seja a fonte de neuroses é insustentável; as neuroses do negro antilhano, segundo Fanon, são “o produto da sua situação cultural” (p.152)1. A mesma crítica pode ser direcionada a Austin. Apesar de a questão cognitiva não ocupar sua preocupação teórica, algumas interpretações do seu trabalho posicionam o “indivíduo” intencional e a-histórico como aquele que realiza sua ação na fala. Este é provavelmente o direcionamento dado à teoria dos atos de fala por John Searle, autor

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A crítica aos fundamentos da psicanálise ganha um tom ao mesmo tempo irônico e libertário na proposição do mito do ciborgue para a compreensão do gênero, tal como formula Donna Haraway (2009) em seu “Manifesto Ciborgue”. Segundo a autora, o ciborgue não tem compromisso algum com uma narrativa de origem: o ciborgue não nasce de uma “mãe fálica da qual todos os humanos devem se separar” (p.38). Ela cita a crítica de Hilary Klein, direcionada ao marxismo e à psicanálise, segundo a qual ambas as escolas “dependem da narrativa original, a partir da qual a diferença deve ser produzida e arregimentada, num drama de dominação crescente da mulher/natureza” (p.39). Comprometido com “a parcialidade, a ironia e a perversidade”, o ciborgue “pula o estágio da unidade original, da identificação com a natureza, no sentido ocidental”. Reside aí, segundo o feminismo radical de Haraway, a “promessa ilegítima” do ciborgue, “aquela que pode levar à subversão da teleologia que o concebe como guerra nas estrelas” (p.39).

que é tido como herdeiro [95 – início] intelectual de Austin e proponente da “leitura oficial” do texto austiniano (Rajagopalan, 2000). Se olharmos para os contextos históricos em que as teorias de Freud e de Austin foram formuladas –a virada do século XIX para o século XX e a metade do século XX, respectivamente –, deparamo-nos com o fato de que muitos dos direitos de minorias de gênero, de raça e de sexo estavam simplesmente ausentes da filosofia e da ciência. Como Julia Kristeva viria argumentar mostrar anos depois, o grupo histórico “mulheres” só surgiu como tal após a Segunda Guerra Mundial (apud Haraway, 2009:57). O mesmo pode ser dito do ator histórico “homossexual”, de história bem recente (Foucault, 1985). Resta que, na época em que os conceitos “inconsciente” e “performativo” foram inventados, imperava uma ciência masculina e branca, herdeira da “escola individualista de pensamento, segundo a qual as formas sociais procedem do que pessoas particulares precisam ou fazem” (Rosaldo, 1980: 393). Apesar de esse modelo individualista de pensamento não fazer parte diretamente do que Freud e Austin pensaram, leituras poucos críticas de suas formulações podem licenciar justamente essa crença num indivíduo no vácuo, produto de determinações imunes à história ou às contingência da cultura. Em outras palavras, essas leituras acabam por fazer opção política, mesmo que ingenuamente, pelo lado do “indivíduo” na equação de Rajagopalan. Creio que o grande valor em reler Freud e Austin num período da história em que mais e mais os direitos das mulheres, dos gays, das lésbicas, das pessoas negras e de outras minorias assumem a agenda científica e política está justamente em nos perguntarmos quais são as possibilidades de apropriações subversivas e contrahegemônicas desses autores. Por subversiva e contra-hegemônica eu me refiro a uma leitura que seja precisamente contrária à crença no modelo do indivíduo branco, heterossexual e masculino (ou de sua família nuclear) como a base da explicação. A crítica feminista de Judith Butler (1999) é certamente uma boa inspiração de uma leitura nesse sentido. O pensamento da autora sobre o gênero parte justamente de sua interpretação crítica e desconstrutora da obra de Freud e Austin, uma leitura que posiciona o gênero não só como tendo uma estrutura melancólica, mas também performativa. Judith Butler em nenhum momento se rende à forma [96 – início] como os autores pensaram, respectivamente, a melancolia e o performativo; ao contrário, sua leitura é muito mais uma incorporação crítica e subversiva desses conceitos do

que uma mera “exegese” ou “transposição conceitual”. É digno de nota que o título da obra, Gender trouble, é uma paródia do famoso filme da contracultura americana, Female trouble (John Waters, 1974). O filme, que em seu título traz uma referência aos “problemas mensais de mulher”, tem uma drag queen, Divine, como atriz que protagoniza a adolescente rebelde e futura criminosa. Aquela que interpreta uma mulher é, desde o início, uma paródia de mulher – isso ganha um sentido mais paródico e bem-humorado ainda por figurar como a inspiração de um livro reconhecidamente revolucionário para o feminismo. Diante disso, reivindico que é possível reler Austin e Freud sem um viés individualista. É exatamente a isto que me dedico nas seções seguintes. John Austin e a invenção do performativo John Langshaw Austin lecionou filosofia em Oxford entre 1952 e 1960. Ele morreu prematuramente no ano de 1960, com apenas 48 anos. Os encontros realizados nas manhãs de sábado com outros filósofos e estudantes de filosofia ficaram famosos na época. Esses encontros eram marcados por um jeito socrático de questionamento e sobretudo pelo bom-humor e pela ausência de pressa em chegar a conclusões. Rajagopalan (2000) chama atenção para o fato de que o estilo informal e descontraído dessas manhãs tinha, de fato, muito a ver com a “filosofia linguística” que estava sendo gestada em Oxford e em Cambridge, onde Wittgenstein, contemporâneo de Austin, erigia críticas igualmente não-apressadas à filosofia dominante. Bertrand Russel, que foi o orientador de Wittgenstein e em cuja hospitalidade Wittgenstein finalizou a redação do Tractatus Logico-Philosophicus, ficou, juntamente com o cânone filosófico da época, profundamente despontado com a filosofia que os jovens pensadores da filosofia linguística vinham desenvolvendo. Para ele, era difícil aceitar que o seu discípulo havia deixado de lado a linguagem como lógica e como espelho do mundo, tal como esboçada no Tractatus, para pensar [97 – início] na linguagem como prática cultural de suas Investigações Filosóficas. O prefácio que Russel escreveu à feroz crítica de Ernest Gellner ao movimento filosofia linguística é bastante sintomática do mal-estar que o movimento causou no

estabelecimento filosófico da época. Vejamos a seguinte cena metafórica que Russel constrói ao final de seu prefácio: Quando eu era garoto, tinha um relógio com um pêndulo removível. Descobri que relógio andava muito mais rápido sem o pêndulo. Se o objetivo principal de um relógio é funcionar, era melhor que ficasse sem o seu pêndulo. É fato, o relógio não podia mais contar o tempo, mas isso não importa se você ensinar a si mesmo a ser indiferente ao tempo. A filosofia linguística, que se preocupa somente com a linguagem, e não com o mundo, é como o garoto que preferiu o relógio sem o pêndulo porque, embora não marcando mais o tempo, ele funcionava mais facilmente do que antes e num ritmo mais animador. (Russell, 1959:XV). A partir da metáfora de um relógio de “ritmo mais animador” porém pouco funcional, Russel direciona sua crítica ao abandono do “mundo” na equação linguagem/mundo. Isto é, Russel trata como infantil a postura dos filósofos linguísticos, para quem a linguagem não é vista como representando o mundo. É a esse abandono da função de representar que o filósofo da linguagem John Langshaw Austin se dedica no conjunto de doze conferências que ele profere em 1955, na Universidade de Harvard. Essas conferências viriam a se tornar, postumamente, em 1962, a conhecida obra How to do things with words, traduzida para o português do Brasil por Danilo Marcondes como Quando dizer é fazer: palavras e ações. Nessas conferências, Austin – com o melhor do humor inglês e no que Rajagopalan (1990:232) chama de “uma movimentação interna insólita, em forma de espiral” e ainda na forma de um estilo sedutor (Felman, 2002) – se ergue de forma a desmantelar um saber que por muito tempo sustentou a filosofia da linguagem e a filosofia em si. Austin anuncia logo no início de seu trabalho que se opõe ao saber pressuposto pela “falácia descritiva” (Austin, 1962:3), que consiste na ideia de que a linguagem se associa exclusivamente à sua função de representar. Segundo a tradição clássica, diz Austin, “o papel de um enunciado seria somente ‘descrever’ um estado de coisas, ou ‘declarar um fato’, o que ele deveria fazer de modo falso ou verdadeiro” (Austin, 1962:1). A esse tipo de enunciado, Austin dá o nome de “descritivo” ou [98 – início] “constativo”. Assim, na visão clássica, quando faço declarações do tipo “O gato está no capacho” ou “Este touro é perigoso”, estou espelhando uma realidade

pré-existente a esses enunciados – um saber-espelhar que pode ser tanto verdadeiro quanto falso. Por meio de um estilo maroto e desconstrutor, Austin anuncia a existência de um outro tipo de enunciado, que não se conforma aos clássicos critérios de verdadeiro e falso. Esse tipo especial de enunciado é por ele batizado de performativo2. Ao contrário do enunciado constativo (como o ‘O gato está no capacho’) que, por assim dizer, ‘descreve’ um estado de coisas no mundo, o performativo não é a descrição de uma realidade preexistente. Segundo a lógica do performativo, o enunciado ‘Eu batizo este navio de Rainha Elizabeth’ não descreve algo que exista antes ou fora de sua enunciação – proferir este enunciado, nas circunstâncias apropriadas, equivale a realizar a ação de batizar. Se não sou a pessoa investida do poder de batizar um navio e, mesmo assim, proclamo a fórmula “Eu batizo este navio de Rainha Elizabeth”, não se pode dizer que o que falei é falso. Muito menos que o oficial encarregado da cerimônia de batismo de um navio proferiu uma fórmula verdadeira. Nos termos de Austin, esse enunciado performativo será feliz ou infeliz, mas não verdadeiro ou falso. Para o caso dos enunciados performativos, Austin abandona as clássicas “condições de verdade” e adota, em seu lugar, “condições de felicidade”. Trata-se, em outras palavras, do abandono de um saber cartesiano, representativista, em que o sujeito usa uma linguagem transparente para falar de um mundo que lhe é conhecido. Austin adota, em seu lugar, um saber que depende de práticas convencionais e ritualizadas – e um saber que, pelo próprio estilo de sua escrita e pela forma como os conceitos se desdobram, se ancora numa dimensão do prazer. [99 – início] O vocabulário utilizado por Austin é um bom índice da torção que o filósofo faz no saber cartesiano. Ao submeter os enunciados performativos a condições de felicidade, Austin não apenas conjuga a análise da linguagem de acordo com a lógica do ato, mas também reconhece a falha como constitutiva dos atos mesmos que ele investiga. Por exemplo, na Conferência 2, o filósofo anuncia que, para o performativo funcionar, a enunciação de certas palavras deve ser acompanhada                                                                                                                 2

Austin inventa tanto o termo ‘constativo’ [constative] quanto o seu oposto, ‘performativo’ [performative]. Na nota 3, à página 6 do seu How to do things with words, ele confessa que havia usado antes o termo ‘perfomatory’ (performatório). No melhor do seu bom-humor, o autor declara que prefere o termo “performative” por ser “mais curto, menos feio, mais tratável e mais tradicional em formação”. Quanto a ‘constative’, trata-se de uma palavra que sequer possui raiz na língua inglesa (Lane, 1970). Essas criações neológicas indicam não apenas o interesse de Austin pela filologia (Rajagopalan, 1994), mas também a necessidade de termos que não carregassem traços da tradição de que ele queria se afastar.

“de outras muitas coisas que devem, como regra geral, ser corretas e funcionar corretamente, se quisermos dizer que realizamos nossa ação de modo feliz” (p.14). Este domínio da ação feliz, que funciona corretamente, só pode se entendido, no entanto, a partir de sua suscetibilidade à falha. Austin rapidamente acrescenta: “Esperamos descobrir o que são [tais coisas] ao olhar e classificar tipos de caso em que algo dá errado e o ato – casar, - é portanto (...) uma falha: o enunciado resultante é, não propriamente falso, mas infeliz” (id.ibid). É o próprio Austin quem grifa a locução “dá errado” e o adjetivo “infeliz”. Esse reconhecimento de um exterior constitutivo, caracterizado pela falha, é um gesto ostensivamente contrário ao saber que os precedentes de Austin utilizaram como fundamento para compreensão da linguagem. Nesse sentido, talvez não seja uma mera figura de linguagem a confissão que Austin faz no início do mesmo parágrafo em questão: Até agora, o que temos feito é sentir o firme chão do preconceito escorregar abaixo de nossos pés. Mas agora, como filósofos, como devemos proceder? (Austin, 1962:13) Ao que parece, a saída de Austin é insistir no caráter performativo da linguagem. O “fundamento” da linguagem – que Austin vê escorregar sob seus pés – é da ordem da práxis, não do cogito. Ao prometer, apostar, seduzir, jurar, enfim, ao enunciar atos de fala, os sujeitos não estão descrevendo de forma falsa ou verdadeira um mundo que lhes seja exterior; estão, ao contrario, fazendo coisas com palavras, inscrevendo-se numa estrutura cultural e nela mexendo. E não há nada essencial, substantivo ou espiritual nos atos de fala com os quais inventamos o mundo. Diz Austin: “E o ato de casar, como (...) o ato de apostar, por exemplo, deve ser de preferência descrito (ainda que de modo inexato) como um ato de dizer certas [100 – início] palavras, e não como a realização de um ato distinto, interior e espiritual, de que tais palavras são meros sinais externos e audíveis” (1962:13) Se, ao enunciar um ato de fala, não estou usando “sinais externos e audíveis” de um “ato interior e espiritual”, o meu saber, ao proferir um ato de fala, não é da ordem da representação, mas da performance, da ação. E quem seria o ator dessa performance, o sujeito dessa ação? A discussão de Austin sobre o ato de prometer é particularmente instrutiva a esse respeito. Uma promessa, qualquer promessa, carrega

em si a possibilidade de ser cumprida – ou de ser descumprida. No entanto, mesmo que eu faça uma promessa com os dedos cruzados, obviamente sem a intenção de mantê-la, a promessa mesmo assim foi feita. Há algo da ordem do ato – do ato de fala – que se mantém, apesar da intenção e apesar das eventuais falhas a que o dizer inelutavelmente se submete. Austin diz que a expressão clássica desse desacerto entre prometer e querer cumprir está na tragédia grega Hipólito, de autoria de Eurípedes, em que Hipólito diz: “minha língua jurou, mas meu coração (ou mente ou um outro ator nos bastidores) não o fez” (Austin, 1962:9-10). Há claramente, na expressão de Hipólito, uma cisão entre língua e mente (ou coração), entre fala e espírito, entre o visível e o invisível. A saída de Austin é radicalmente pragmática. Não importa que a língua (como órgão) esteja emitindo sons que não vêm do coração – “dizer ‘prometo’, afirma Austin, “me compromete – registra meu vinculo a grilhões espirituais.” (1962:10). Austin tece assim uma outra ética do dizer – ou melhor, uma outra ética do saber de um ato de fala. Se a promessa que se fez sem querer cumprir não invalida o ato de prometer, isso quer dizer que o ato aí se torna superior ao ator. O enlace da fala é maior do que aqueles que se enlaçam por meio dela. Não à toa Austin afirma que “a exatidão e a moralidade estão, ambas, do lado da simples afirmativa de que nossa palavra é nosso penhor” (1962:10, ênfase do autor). Shoshana Felman (2002), que faz uma leitura psicanalítica do trabalho de Austin, aproxima os movimentos da escrita e da descoberta de Austin aos dos atos de fala do Don Juan de Molière. Austin, assim como Don Juan, estão desconstruindo o edifício da verdade com suas promessas não-cumpridas e com a dimensão sedutora de seus atos de fala. Charlotte, uma daquelas a quem Don Juan seduz, dirige-se a Don Juan com uma demanda constativa, isto é, uma demanda pela representação [101 – início] transparente e pela verdade. Diz ela: “Nós temos de saber a verdade”. Ao que Don Juan responde: “eu juro”. Nos termos de Shoshana Felman, o diálogo entre Don Juan e Charlotte é “um diálogo entre duas ordens que, na realidade, não se comunicam: a ordem do ato e a ordem do significado, o registro do prazer e o registro do conhecimento” (2002:17).

É interessante que Felman usa a palavra

‘conhecimento’ para o registro constativo de Charlotte. Don Juan responde a essa demanda pelo saber com o seu não-saber (e aqui começamos a adentrar no terreno que Freud se aventurou a escavar). O seu não-saber remete a um saber do corpo, do

corpo falante, cujo dizer excede a si mesmo. A sedução amorosa de Don Juan e a sedução teórica Austin se ancoram naquilo que Felman chama de ilusão referencial: A armadilha da sedução consiste justamente em produzir uma ilusão referencial por meio de um enunciado que é, pela sua própria natureza, autoreferencial: a ilusão de um ato real ou extralinguístico de compromisso criada por um enunciado que se refere apenas a si mesmo. (Felman, 2002:17). A meu ver, o saber produzido por um ato de fala – calcado numa estrutura auto-referencial e num corpo que não sabe muito de si – se aproxima imensamente do saber do inconsciente. A seguir, ofereço uma discussão sobre o que, em Freud, podemos depreender como uma crítica ao modelo de saber cartesiano e como aproximação entre a descoberta do inconsciente e a invenção do performativo.

Sigmund Freud e o aparelho de linguagem Gostaria de começar essa aproximação entre os trabalhos de Freud e Austin indagando sobre o próprio lugar de uma reflexão psicanalítica dentro da linguística. A questão é, no mínimo, controversa; anuncio de partida que não me dedicarei a ela detidamente. Para uma incursão mais aprofundada, remeto o leitor ao trabalho de Claudia de Lemos e Viviane Veras3. Junto com de Lemos, afirmo que a linguística, no que [102 – início] diz respeito ao sujeito falante, deixa de lado a eficácia simbólica da língua, para, assim, “definir os princípios que regem a língua e descrever as chamadas línguas naturais” (2009:207). Segundo a autora, a eficácia simbólica (que a linguística joga fora) diz respeito à própria relação sujeito-língua e é discernível “no que Lacan chamou de experiência analítica” (id.ibid.). Ao lado de Veras (1999), aponto para o fato de que a linguística não pode desconsiderar o fato de que o sujeito tem uma estrutura psíquica: o inconsciente, segundo a autora, “irrompe na fala do sujeito, ultrapassando-o” (p.77). No campo em que atuo, a Pragmática, Freud comparece como uma referência                                                                                                                 3

Na tese de Viviane Veras, Linguisterria: um chiste, encontra-se não apenas uma excelente análise de linguagem que articula psicanálise e linguística, como também uma reivindicação para a linguística: “Penso, como Cláudia de Lemos, que a Linguística deve ser tomada como lugar onde o que não se sabe sobre a linguagem é reconhecido e produz questões; e onde o que se sabe sirva, acima de tudo, para interrogar e se transformar em um saber interrogar.” (1999:5)

“pouco linguística” em alguns trabalhos. Stephen Levinson, em seu manual introdutório ao campo da pragmática, denega justamente a descoberta freudiana como pertencente ao que é próprio da pragmática: Pelo menos durante um certo período, linguistas e filósofos deram a impressão de trilhar um caminho comum, e essa comunidade de interesses cristalizou muitas das questões de que se ocupa este livro. Durante esse período, o âmbito da pragmática foi implicitamente restringido. A definição de Carnap, “investigações que fazem referência aos usuários da linguagem”, é simultaneamente estreita e muito ampla para os interesses linguísticos. É ampla demais porque admite estudos tão pouco linguísticos quanto as investigações de Freud sobre a “lapsus linguae” ou os estudos de Jung sobre as associações de palavras. (1983:5) Segundo Levinson, as investigações de Freud sobre a linguagem seriam de pouca relevância para a pragmática. Por outro lado, é digno de nota que, em resenha devastadora deste mesmo livro de Levinson, Jacob Mey (1987) critica as assunções feitas por Searle e endossadas por Levinson sobre os usuários da língua como “seres humanos normais e conscientes” (p.169). Adiante no texto, ao contestar a desconsideração de implicações ideológicas nas incursões que Levinson faz na pragmática da negação, Mey cita ninguém menos do que Freud para dar suporte a sua crítica. Nas palavras de Mey: “Freud (1920) na verdade tem um termo para tais fenômenos: apropriadamente, ele as chama de instâncias de Verneinung (lit. ‘negação’): o que é negado verbalmente, é afirmado pragmaticamente” (1987, nota 7). As reflexões linguísticas de Freud são vastas. Lacan observa que nas obras completas de Freud “uma de cada três páginas nos apresenta referências [103 – início] filológicas, uma em cada duas contém inferências lógicas e, em todo lugar, vemos uma apreensão dialética da experiência, a análise linguística se tornando mais evidente à medida que o inconsciente se torna mais diretamente envolvido” (Lacan, 1966:424). Para os propósitos deste capítulo, tendo em vista que a questão é aproximar Freud de Austin, centrarei minha análise no ensaio que Freud publicou em 1919 sobre o afeto do estranho (Das Unheimliche). Em O estranho, Freud esboça ideias que lhe serão úteis às suas formulações posteriores sobre a questão da angústia. No que diz respeito ao método, é impressionante a semelhança entre o modo como Freud analisa o sentimento do estranho e o método que Austin esboça para compreender o conceito da “desculpa” (em A plea for excuses, ensaio de 1957). No início do estudo, Freud aponta que o “uso

da língua” é uma fonte tão relevante para a compreensão do que venha a ser o estranho quanto a escuta analítica. Nas palavras do autor: Podemos encetar dois caminhos agora: explorar que significado a evolução da língua depositou na palavra unheimlich, ou reunir tudo aquilo que, nas pessoas e coisas, impressões dos sentidos, vivências e situações, desperta em nós o sentimento do estranho, inferindo o caráter velado do estranho a partir do que for comum a todos os casos (1919:331).4 Freud aponta que não importa a ordem em que se faça a investigação – isto é, se do uso da língua para a experiência analítica, ou o contrário –, o resultado é o mesmo: “o estranho é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (p.331) Note-se que, até agora, Freud fez não só uma observação metodológica, mas também semântica. Unheimlich (estranho) e heimlich (familiar) não formam uma dicotomia, não se opõem semanticamente; ao contrário, os dois carregam em si uma zona de significação comum. E é esta zona que Freud, já de início, define em seu ensaio. Logo adiante, Freud aponta que, apesar de a ordem da investigação não afetar o resultado, no caso da sua investigação, o estudo “principiou pela reunião de casos individuais, e somente depois achou confirmação no estudo da linguagem” (p.331). De qualquer modo, ele apresenta ao [104 – início] leitor, primeiramente, a análise semântica da palavra alemã unheimlich a partir de uma exaustiva busca pelo termo em diferentes dicionários (não só do alemão, mas também do latim, do grego, do inglês, do francês, do italiano e do português). Essa busca pelo conceito nos dicionários o autoriza a afirmar que “heimilich é uma palavra que desenvolve o seu significado na direção da ambiguidade, até afinal coincidir com seu oposto. Unheimilich é, de algum modo, uma espécie de heimlich” (p.340). Em seguida, Freud adentra no terreno da ficção, e mostra o desdobramento conceitual do afeto unheimlich no conto “O Homem de Areia”, do escritor alemão E. T. A. Hoffmann. O conto centra-se sobre Nathaniel, um garoto é acometido de um trauma na infância: o menino tem uma visão demoníaca do Homem da Areia                                                                                                                 4

Paulo César de Souza optou por traduzir Das Unheimlich por ‘inquietante’. Seguindo a tradução standard inglesa, prefiro o termo ‘estranho’ (uncanny). Minhas citações da tradução de Souza modificam, portanto, o termo ‘inquietante’ por ‘estranho’.

arrancando-lhe os olhos, em sua própria casa, precisamente no escritório do pai, onde este e Coppelius, um advogado amigo da família e a personificação do Homem da Areia para Nathaniel, estariam, na visão do garoto, fazendo um experimento satânico. Freud comenta que o Homem da Areia é o “centro da história”, “que ademais lhe empresta o título e que sempre retorna nas passagens decisivas” (p.341). Nessa incursão no literário, ao comentar sobre um tema que “sempre retorna”, Freud está, a meu ver, trazendo o tema do “eterno retorno” nietzschiano para a compreensão dessa zona de ambiguidade entre heimlich e unheimlich: o familiar que de algum modo não encontrou uma forma adequada na experiência infantil – e que plasticamente se atualiza, por exemplo, na forma de um trauma – retorna “eternamente” na experiência ulterior do sujeito adulto, de modo que, ao se deparar com certas espécies de estranho, o sujeito está encontrando ali algo familiar. De fato, mais à frente, Freud une os termos ‘unheimlich’ e ‘eterno retorno’, dando ao estudo semântico e literário um viés psicanalítico e filosófico: Como o efeito estranho do eterno retorno do mesmo pode remontar à vida psíquica infantil é algo que posso apenas mencionar aqui, indicando para isso uma exposição detalhada, já pronta, realizada em outro contexto [i.e., Além do princípio do prazer, 1920]. Pois no inconsciente psíquico nota-se a primazia de uma compulsão de repetição vinda dos impulsos instituais, provavelmente ligada à íntima natureza dos instintos mesmos, e forte o suficiente para sobrepor-se ao princípio do prazer, que confere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco, manifesta-se claramente ainda nas tendências do bebê e domina parte do transcurso da psicanálise [105 – início] do neurótico. As considerações anteriores nos levam a crer que será percebido como estranho aquilo que pode lembrar essa compulsão de repetição interior (p.356, itálico acrescido). A afinidade entre o ensaio sobre o estranho de Freud e o estudo sobre as desculpas de Austin é bastante evidente. Gostaria de apontar que tanto Freud quanto Austin têm uma veia nietzschiana (Felman, 2002; Rajagopalan, 1994). Talvez derive daí a descrença do filósofo inglês e do psicanalista austríaco em dicotomias. No trabalho de Freud, é evidente a relação não-dicotômica entre unheimlich e heimilich. O mesmo se dá na análise que Austin faz do que seja oposto a uma ação voluntária: ‘Voluntariamente’ e ‘involuntariamente’ (...) não se opõem do modo óbvio em que são tornados antônimos na filosofia ou na jurisprudência. O ‘oposto’, ou melhor ‘opostos’, de ‘voluntariamente’ podem ser ‘sob constrangimento’ de algum tipo, coação ou obrigação ou influência: o oposto de

‘involuntariamente’ pode ser ‘deliberadamente’ ou ‘de propósito’ ou algo do tipo. Essas divergências de opostos indicam que ‘voluntariamente’ e ‘involuntariamente’, apesar de sua aparente conexão, são de natureza diferente (Austin, 1970:191). Nesse sentido, Austin demonstra que ações voluntárias e involuntárias não se opõem dicotomicamente. Para o autor, aliás, crer em “opostos e dicotomias estimula, dentre outras coisas, uma cegueira às combinações e dissociações possíveis entre advérbios” (p.195). É contra este tipo de cegueira analítica que Austin oferece as palavras como ‘ferramentas’ para manusearmos (e entendermos) o ‘maquinário da ação’ (p.180). Esse tipo de mecânica conceitual, segundo Austin, só é possível se entendermos que “palavras são nossas ferramentas, e que devemos usar ferramentas limpas” (p.181). Todo esse uso metafórico sobre um maquinário da linguagem aproxima mais ainda Austin de Freud, especialmente do Freud neurologista que, no seu ensaio sobre as afasias, discute a plasticidade do cérebro e prenuncia seu estudo sobre o “aparelho linguagem” (Sprachapparat) (Freud, 1891), isto é, “o mecanismo psíquico”. Freud busca nos dicionários o modo como uso e história dos conceitos se definem e se entrelaçam. Austin, por seu turno, diz que é investigando o significado e o uso das palavras que podemos verificar as “distinções que os homens acharam importante traçar, e as conexões [106 – início]

que eles acharam relevantes

estabelecer, ao longo de muitas gerações” (p.182). Ir ao dicionário é, aliás, a sugestão que Austin faz ao filósofo da linguagem que esteja interessado a levar a sério o uso da língua na compreensão do que seja um conceito: “[p]rimeiro devemos usar o dicionário – um dicionário conciso pode servir, mas o uso deve ser meticuloso” (p.186, ênfase de Austin). Apesar de eu, no início desta seção, haver me protegido da controversa questão “qual a relação entre linguística e psicanálise?”, acabei, no melhor estilo austiniano, descumprindo minha promessa inicial. Aproximar Freud e Austin, assim como aproximar psicanálise e linguística, se feito eticamente, como apontei no preâmbulo deste texto, pode se desvelar como uma boa tentativa de resposta àquilo que Viviane Veras aponta como uma demanda para a linguística: considerar que o sujeito da linguagem possui uma estrutura psíquica. De seu lado, Lacan (1966) foi bem claro ao afirmar que “é toda a estrutura da linguagem que a experiência

psicanalítica descobre no inconsciente” (p.495). Resta aos linguistas levarem a sério esta descoberta. Referências bibliográficas Austin, John (1962) How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press. _______. (1970) A plea for excuses. In Philosophical papers. Oxford: Oxford University Press. Butler, Judith (1999) Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova York: Routledge. Fanon, Frantz (1967) Black skin, White masks. Trad. Charles Lam Markmann. Nova York: Grove Press. Felman, Shoshana (2002) The Scandal of the Speaking Body: Don Juan with J. L. Austin, or Seduction in Two Languages. Trad. Catherine Porter. Stanford: Stanford University Press. Foucault, Michel (1985) A história da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque & J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal. Freud, Sigmund (1891[2003]) A interpretação das afasias. Trad. Antonio Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2003. _______ (1919[2010]) O inquietante (Das Unheimliche). Trad. Paulo Cesar de Souza. In Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. 14. São Paulo: Cia. das Letras. Haraway, Donna (2009) Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismosocialista no final do século XX. In: Tadeu, Tomaz (Org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica. Lacan, Jacques (1966[2006]) The instance of the letter in the uncounscious, or reason since Freud. In: Écrits. Trad. Bruce Fink. Nova York: W. W. Norton & Co. Lane, Gilles (1970) Introduction. In: Austin, John L. Quand dire, c’est faire. Paris: Seuil. Lemos, Claudia (2009) Poética e significante. Letras & Letras 25(1):207-218. Levinson, Stephen (1983[2007]) Pragmática. Trad. Luis Carlos Borges & Aníbal Mari. São Paulo: Martins Fontes.

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