EXERCÍCIOS DE MEMÓRIA

June 12, 2017 | Autor: Maria Esther Maciel | Categoría: Memoria, Memorial Academico
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Descripción

1 Faculdade de Letras da UFMG Maria Ester Maciel de Oliveira Borges Defesa do Memorial – Exame para promoção ao cargo de Professor Titular 29/10/2015

EXERCÍCIOS DE MEMÓRIA

Antes de preparar este texto de apresentação, pensei em elaborar algo que pudesse entrar também na esfera da ficção. Para isso, evocaria minha personagem Zenóbia que – como sempre acontece quando nos encontramos – me contaria algumas histórias interessantes sobre a arte da memória e do esquecimento, oferecendo-me subsídios para uma espécie de “memória” do meu trabalho de escrita do memorial. Afinal, nos seus mais de 85 anos, Zenóbia sabe muito das coisas do mundo e dos livros, além de ser uma experiente colecionadora de “cacos”, para lembrar aqui um poema de Drummond, com uma intrigante habilidade de transformá-los em narrativa ou relato. As urgências da vida prática, entretanto, demoveram-me desse intento. Optei, assim, por fazer um brevíssimo recorte do texto de 192 páginas que escrevi a título de memorial. Um recorte, acrescento, que apenas sublinha alguns de seus tópicos temáticos e elementos estruturais, de modo a dar a vocês – que vieram, generosamente, assistir a este ritual de defesa – uma ideia (ainda que tênue) do que me propus a fazer. O meu recuo do intento inicial, entretanto, não me impede de começar esta fala com um relato que, mesmo inscrevendo-se na ordem da realidade, apresenta certos ingredientes quase ficcionais. Trata-se de uma experiência diretamente ligada à memória, que vivi em janeiro de 2012, e que teve grande relevância para minha decisão de escrever um memorial com vistas à minha promoção para o cargo de Professor Titular. Essa experiência foi a perda temporária de memória que enfrentei após a ruptura de um aneurisma cerebral, seguida de algumas complicações, o que me deixou algumas

2 semanas inconsciente na UTI de um hospital. Ao sair, quase por milagre, desse estado inerte e voltar para o mundo das coisas vivas, eu não sabia o que tinha acontecido. Não me lembrava de absolutamente nada, tal minha confusão mental. E, nessa desmemória, permaneci por vários dias. Aos poucos, porém, fui me dando conta de onde estava e, graças à memória das pessoas próximas que tinham me acompanhado ao longo desse tempo imóvel, consegui entender um pouco do que se passava comigo. Ainda assim, minha capacidade de lembrar não retornou completamente enquanto estive por lá. Houve quem, inclusive, achasse que minha memória estivesse definitivamente perdida. O fato é que minhas lembranças tinham sido substituídas, naqueles dias, por imagens fictícias do que nunca acontecera. Por exemplo: achei que estivesse em Portugal, num quarto de hotel, e que a ampla e arborizada av. Barbacena – onde fica o hospital – fosse a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Quando uma tia perguntou-me o que eu estava fazendo em terras portuguesas, respondi que tinha ido participar de um colóquio literário só de escritoras, organizado pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa. O mais interessante é que eu tinha lido, meses antes do acontecido, um romance de sua autoria, o As mulheres de meu pai, que fazia parte do corpus literário da tese de minha então orientanda Fabrícia Walace, prevista para ser defendida no início de 2013. Mas eu estava convicta de que estava em Lisboa para participar de um evento literário só de mulheres. E, até hoje, divirto-me com essa história. Uma vez em casa, e com o passar das semanas, minha memória foi voltando aos poucos. Em menos de dois meses, eu já conseguia me lembrar de quase tudo de que me lembrava antes. Só falhava-me a memória dos dias imediatamente antes do episódio que me havia me levado a tal estado. E, mesmo hoje, esses dias são uma lacuna em minha existência.

3 Dedicar-me à escrita do memorial – poucos anos depois do episódio – foi para mim, portanto, um exercício particularmente necessário e vital. Minha decisão de escrevê-lo, porém, não se deu de maneira imediata e espontânea. Precisei do estímulo e da ajuda de algumas pessoas para isso. Só me decidi, mesmo, em julho passado, pouco mais de um mês antes do prazo final para a inscrição. E, assim, me entreguei a esse trabalho com intensidade (e certa pressa), não sem antes pensar na forma como o realizaria. Ciente de que a escrita memorialística é sempre uma combinatória possível (e nunca definitiva) de imagens, restos, registros esparsos, documentos soltos, etc., que, articulados, podem compor uma narrativa plausível, resolvi encenar na própria construção do memorial essa configuração, que poderia remeter também à ideia de jogo, que sempre me instigou. Assim, com o propósito de me desviar do tempo linear e sucessivo – a meu ver, incompatível com o tecido fragmentado da memória – optei por uma estrutura em forma de inventário ou coleção, que pudesse funcionar também como uma combinatória. Afinal, eu já tinha me valido de estratégia semelhante em O livro dos nomes, de 2008, por vias ficcionais. Além disso, os próprios temas “inventário” e “coleção”, conjugados aos de “lista”, “enciclopédia” e “constelação” já vinham fazendo parte do meu repertório de interesses crítico-teóricos. Definida, portanto, a configuração física do trabalho, foi necessário estabelecer também os critérios de ordenação de suas partes. E como a ordem alfabética, que sempre me foi cara, pareceu-me a mais viável para o tipo de trabalho que eu tinha em mente, pus-me a selecionar os temas/termos de acordo com as letras do alfabeto, para, em seguida, tentar transformá-los em verbetes/capítulos e criar possíveis conexões entre eles. Se uso aqui a palavra “verbete” é porque para cada parte correspondente a uma

4 letra, criei também um texto com os significados do termo escolhido, à feição das entradas de dicionários. Para tanto, vali-me de definições legitimadas pelo Aurélio e o Houaiss, aliadas a algumas citações de teóricos e escritores, além de algumas conceituações por mim inventadas. A seleção dos vocábulos/conceitos para as partes não foi muito fácil, uma vez que os temas e termos que definem minha trajetória não se confinam, necessariamente, em 23 ou 26 partes regulares e simétricas. Alguns, inclusive, poderiam ocupar uma mesma parte ou letra. Outros, várias delas a um só tempo. Tive, dessa forma, que fazer um esforço lógico e imaginativo para cumprir meu intento de maneira satisfatória. Como as regras, nesse caso, permitem uma certa arbitrariedade, sustentei o plano de escolher apenas um tópico para cada letra, mas buscando combinar um com os outros, de forma a montar um conjunto coerente. Digo que a escolha dos termos foi demorada, com várias alterações ao longo do percurso. Além disso, algumas restrições foram necessárias, como a exclusão das letras k, y e w, mesmo que a nova reforma ortográfica de 2009 tenham-nas legitimado no alfabeto brasileiro. Ainda assim, algumas letras foram um desafio, a exemplo do x. Mas, por fim, consegui definir todas as partes, indo do “A de Artifício” até o “Z de Zoo”, passando por “C de Cinema”, “H de Hibridismo”, “L de Lucidez”, “P de poesia”, etc. Essa minha opção por uma ordem não sucessivo-linear não impediu-me, contudo, de considerar importante a inclusão de um roteiro cronológico das atividades comentadas no memorial. Para isso, criei o verbete/capítulo “Q de Quando”, no qual os leitores podem se inteirar das datas por uma via mais linear e sucessiva. Nos itens “D de Docência” e “F de Formação”, dados mais objetivos e contínuos sobre minha carreira também podem ser encontrados. E para maiores esclarecimentos sobre minha concepção de memória, basta ir ao “M de Memória”, onde discorro sobre o tema. Já

5 para quem deseja obter maiores informações sobre a composição do memorial, é só visitar o “X de Xadrez”. Alguns nomes próprios também ocupam as letras do alfabeto, todos eles de autores medulares que cumpriram (e ainda cumprem) um papel decisivo no meu percurso acadêmico, literário, intelectual e pessoal, como Borges, Greenaway, Paz e Coetzee. Em vários momentos do trabalho, vali-me também de reminiscências pessoais, afetivas e familiares, intrinsecamente vinculadas a algumas lembranças de ordem acadêmica. E não deixei de me reportar também a episódios banais e acontecimentos fortuitos, por estar ciente, como diria Roland Barthes, de que “na atividade de uma vida é preciso sempre reservar uma parte para o efêmero” (Barthes, 2005, p.13). Estou certa de que muitas coisas que vivi em minha trajetória acadêmica ficaram de fora do abecedário e poderiam compor outras possíveis versões. Mas creio que elas não deixam de estar presentes, mesmo que em estado de ausência, na categoria “Et Cetera” – esse não-lugar necessário a todas as classificações inventadas pela razão humana para conter o inumerável. Um não-lugar capaz de indicar o que sobrou, o que foi desprezado ou esquecido, o que foi calado ou resistiu aos critérios usados na organização das partes. Com essa categoria, pude concluir (ou inconcluir) o trabalho. Impossível fazer, aqui, um resumo do conjunto que resultou de todo essa empreitada. Mesmo porque uma sinopse dos verbetes e capítulos ficaria um tanto dispersa e fora de contexto. Diante disso, opto por apenas destacar alguns pontos de meu percurso acadêmico-literário. E quando digo “acadêmico-literário” é porque não consigo propriamente dissociar essas duas instâncias na minha trajetória.

6 Justifico, de certa forma, essa constatação no tópico “D de Docência”, quando relato uma história de infância para contar sobre minha iniciação quase simultânea no ofício de dar aulas e no gosto de contar histórias. Digo que, se entrei como professora da Faculdade de Letras da UFMG no final de abril de 1991, ou seja, há quase 25 anos, a minha estreia (informal, é claro) como professora deu-se por volta de 1969, quando eu tinha apenas 6 anos de idade. Isso, graças a uma coleção de vidros de remédios e ao meu fascínio pela descoberta das potencialidades que uma sala de aula oferece. Explico: tão logo ingressei na pré-escola, deparei-me com a profissão que queria seguir na vida e descobri os deleites do ato criar histórias. Sempre que acabava a aula da pré-escola no final da manhã, meu desejo era ter alguém em casa que se interessasse em aprender também o que eu aprendera no dia. Não sei por quê, mas achei que os botões das roupas poderiam cumprir esse papel de ouvintes, ou melhor, alunos. Comecei, então, a arrancá-los dos vestidos, blusas e calças que eu encontrava nos guarda-roupas da casa. Criada a coleção, montei um pequeno grupo de “alunos” a que eu poderia, finalmente, ensinar as coisas que aprendia com a professora. Isso, obviamente, desagradou minha mãe, que não queria ver suas roupas e as do meu pai sem botões. Diante da repreensão e da proibição recebidas, minha frustação foi inevitável. Até que meu pai, um homem sensível e criativo, deu-me uma ideia magnífica: recolher os vidros de remédio vazios que se acumulavam nas gavetas e nos armários da casa e transformá-los em meus “alunos”. Assim o fiz. E consegui, com êxito, compor a minha turma de vidrinhos. Verdes, marrons, transparentes, grandes e pequenos, largos e estreitos, eles faziam jus à variedade de tipos físicos de uma turma de verdade. Dei, para cada um, um nome. Havia os inteligentes, os rebeldes, os

7 indiferentes, os dedicados e os que não gostavam de aprender. Todos tinham seus boletins e suas notas. E, dessa forma, com minha coleção de vidros, iniciei-me no trabalho docente. Nas semanas seguintes, entusiasmada com a brincadeira, resolvi atribuir também a esses vidrinhos o papel de “ouvintes”. Como eu gostava de inventar histórias, passei a conta-las para eles, à noite, para fazê-los dormir. Dessa maneira, os vidros (e meu pai, é claro) tornaram-se os meus maiores cúmplices no surgimento desse amálgama entre o ofício de professora e o de escritora, duas experiências que, juntas, definem minha trajetória até hoje. Comecei a dar aulas formalmente e a escrever as coisas que inventava, quando ainda vivia em Patos de Minas, somando a isso o interesse em escrever textos sobre os livros que lia. Publiquei vários dessas “proto-resenhas” em jornais de minha cidade. Ao me mudar para Belo Horizonte no início de 1981 para realizar o curso de Letras, continuei com essas atividades, na forma de estágios, monitoria e publicações esparsas de poemas, contos e artigos – tudo isso vinculado ao meu curso de graduação. Envolvime igualmente com atividades em outros cursos da FAFICH e militei no movimento estudantil. Graduei-me em 1985 e logo parti para o mestrado, com um projeto de dissertação sobre a poesia inclassificável de Augusto dos Anjos, sob orientação da Profa. Maria Zilda Ferreira Cury. Em 1990, ao concluir o mestrado, fiz imediatamente o exame de seleção para o doutorado em Literatura Comparada, dando início aos meus estudos sobre a conjunção-poesia na obra do mexicano Octavio Paz, sob orientação da Profa. Ruth Silviano Brandão. Foi logo após entrar no doutorado, que surgiu o concurso para uma vaga de Professor Assistente de Literatura Portuguesa na UFMG, o qual – por incentivo de colegas e professores – resolvi prestar. Passei em primeiro lugar e, no dia 30 de abril do

8 mesmo ano, tomei posse, assumindo minhas primeiras turmas de Literatura Portuguesa I. Isso, menos de um mês antes de conhecer José Olympio Borges, meu segundo marido e grande parceiro intelectual, cuja cumplicidade seria fundamental ao longo de toda a minha trajetória acadêmica, até seu falecimento em julho de 2013. Com José Olympio, minha formação ganhou um novo impulso e um novo sentido, pelo vívido diálogo que sempre mantivemos em torno da literatura e das artes, pelas viagens que juntos fizemos pelo mundo, pelos livros raros que me apresentou, os autores que, graças a ele, conheci, e o trabalho de escrita a que me entreguei graças ao seu incentivo. Não à toa, dediqueilhe praticamente todos os meus livros publicados desde então. Assim, aos 28 anos de idade, comecei uma nova e longa etapa de minha vida pessoal e profissional. Acrescento que minha experiência como professora de literatura portuguesa foi fundamental para a minha formação intelectual e acadêmica, pois deu-me a oportunidade de incursionar de maneira mais concentrada em autores que, mais tarde, passariam a compor o meu repertório de interesses, como Fernando Pessoa e vários escritores portugueses (sobretudo poetas) do final do século 20. Depois de passar, na companhia de José Olympio, uma curta temporada de pesquisa no México, com finalidade de pesquisa, concluí a escrita da tese sobre Paz, intitulada As vertigens da lucidez: a conjunção poesia-crítica na obra de Octavio Paz. A defesa ocorreu no dia 10 de março de 1995, com uma banca formada pelos professores Lucia Helena, Amálio Pinheiro, Eneida Maria de Souza e Maria Zilda Ferreira Cury. No mesmo ano, o trabalho saiu publicado pela já extinta editora Experimento, de São Paulo. Assim, com o título de doutora em Literatura Comparada, entusiasmada com a literatura latino-americana e disposta a investir cada vez mais no comparativismo,

9 decidi, no ano seguinte, solicitar minha transferência para o Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura. Afinal, a essa altura eu já estava irremediavelmente “afetada” pelo comparativismo literário e pelo viés transdisciplinar, decorrentes de minhas incursões em autores de diferentes nacionalidades e em outras áreas do conhecimento (algo que detalho na parte “T de Trans”). Aceito o meu pedido, iniciei uma outra etapa rumo ao processo de afirmação e solidificação de minha vida acadêmica. Mas, como sempre, sem abrir mão dos erros, acasos e desvios. Afinal, errar não se circunscreve apenas ao sentido negativo de falha, desacerto, e pode ter também uma função dinâmica no processo de aprimoramento. O acaso, especialmente, permite-nos a experiência da surpresa, dada a sua potencialidade de nos desviar dos caminhos pré-definidos e nos lançar ao inesperado. É um elemento que reinventa nossas certezas e projetos. Dessa forma, com a transferência de departamento, passei a lecionar as disciplinas obrigatórias Teoria da Literatura I e II na graduação, além de poder oferecer optativas vinculadas às minhas pesquisas. Nessa época, iniciei também uma profícua interlocução com duas colegas da área de literaturas hispano-americanas, Graciela Ravetti e Sara Rojo, com elas criando o NELAM – Núcleo de Estudos LatinoAmericanos, do qual fui coordenadora até 1999.

No âmbito desse núcleo,

desenvolvemos um projeto coletivo com apoio da FUNDEP, que contou com 15 docentes recém-doutores, e que nos possibilitou o desenvolvimento de uma série de atividades, entre publicações, eventos, orientações, debates e parcerias com outras instituições, como o Memorial da América Latina. Ainda em 1996, ingressei, como professora, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), nas áreas de Teoria da Literatura e Literatura Comparada, passando a investir com afinco nas atividades de orientação e de pesquisa. Aliás, todas

10 os trabalhos de orientação que realizei, desde então, foram detalhados ao final de cada capítulo do memorial, seguindo o eixo temático de cada “verbete” e suas relações com as dissertações, teses e pesquisas de pós-doutorado orientadas/supervisionadas até hoje. As de graduação também tiveram seu espaço nesses anexos. Em todos, procurei tratar não apenas dos trabalhos realizados, mas também da minha convivência e aprendizagem com meus orientandos, a quem tributo muitas das minhas alegrias acadêmicas de minha trajetória. Um outro momento-chave do meu percurso foi o pós-doutorado que realizei na Inglaterra, no campo das relações entre Cinema e Literatura, com um projeto intitulado Estéticas do Artifício: Peter Greenaway à luz de Jorge Luis Borges. No memorial, distribuí minhas considerações sobre esse trabalho e as experiências que dele resultaram, em pelo menos três partes: “A de artifício”, “B de Borges”, “C de Cinema” e “G de Greenaway”. A pesquisa, que teve apoio da CAPES, foi vinculada a duas instituições: University of London (Queen Mary College), sob supervisão do Prof. Peter Evans, e Nottingham Trent University, sob supervisão do Prof. Mike Featherstone, diretor do Theory, Culture & Society Centre e editor de duas importantes revistas sobre Culturas Contemporâneas. Na ocasião, assumi o cargo de Pesquisadora Visitante no Queen Mary, onde concentrei a maior parte de meu trabalho, e fiz viagens periódicas a Nottingham. A temporada de um ano na Inglaterra possibilitou-me descobertas e experiências memoráveis. Acompanhada de meu marido José Olympio e de meu filho Ricardo, vivi um ano magnífico para o meu aprimoramento intelectual, pessoal e literário, tendo tido a oportunidade não apenas de participar de seminários, eventos e viagens acadêmicas a

11 outras cidades e países europeus, como também de construir sólidos laços afetivointelectuais com pessoas envolvidas com a pesquisa. Vale acrescentar, nesse contexto, que meu estágio no Theory, Culture & Society Centre foi o ponto de partida para algumas das atividades mais relevantes da minha vida acadêmica a partir de 2000, uma vez que o Prof. Featherstone, pouco tempo depois, convidou-me para participar de um instigante projeto internacional de pesquisa, o The New Encyclopedia Project, que integrou pesquisadores de vários países do Ocidente e do Oriente, com a finalidade de repensar os sistemas de classificação no contexto contemporâneo, considerando os impactos da globalização e da informatização. Graças a ele também, entrei em contato com Peter Greenaway assim que iniciei meus estudos em Londres, obtendo acesso aos arquivos do escritório do cineasta. O Prof. Featherstone foi ainda o responsável pela publicação de meu primeiro artigo (no caso, sobre Octavio Paz) numa revista internacional de prestígio, o Theory, Culture & Society Journal, revista transdisciplinar, voltada para o estudo das culturas contemporâneas. Outras duas publicações na mesma revista vieram posteriormente, no campo do projeto de pesquisa coordenado por ele. No que tange a Jorge Luis Borges, o principal acontecimento nesse período foi a visita que fiz à Universidade de Aarhus, na Dinamarca, em março de 2000, onde havia um importante centro de estudos borgianos, o J.L.Borges Center for Studies & Documentation, dirigido pelos professores argentinos Ivan Almeida e Cristina Parodi. Lá, tive acesso a um vasto material sobre a obra do escritor argentino, o qual pude examinar ao longo desse tempo, além de ter podido participar do Seminário Permanente do Centro, com a apresentação de uma palestra, logo depois publicada na revista da instituição, Variaciones Borges.

12 Depois dessa temporada no exterior, minha vida acadêmica ganhou um novo impulso. Publicações de vários livros e artigos; organização de coletâneas e revistas; participação, a convite, em vários eventos nacionais e internacionais; criação e coordenação de um novo grupo de estudos na FALE/UFMG (o TransVerso); parcerias nacionais e internacionais; oferta de cursos acadêmicos e de extensão em outras instituições; desenvolvimento de projetos de pesquisa com bolsa de Produtividade do CNPq; participação no comitê de avaliação da CAPES, por alguns anos; bancas de todo tipo, acadêmicas,

literárias

e

culturais;

representações

em

diversos

órgãos

administrativos da Faculdade de Letras, etc. O meu trabalho literário também ganhou um impulso maior a partir dos anos 2000, com a publicação de O livro de Zenóbia e O livro dos nomes. Para não mencionar as inúmeras viagens (tratadas no “V de viagem”) e o meu período de residência de um ano no IEAT (Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG) em 2010. No que tange às minhas pesquisas realizadas com bolsa do CNPq – às quais vinculei e venho vinculando grande parte de meu trabalho de docência, orientação e publicações dos últimos 11 anos – digo que todas elas também compuseram uma combinatória em minha vida acadêmico-literária. A primeira, de 2004, foi intitulada “Poéticas do Inventário”, centrada na investigação do uso crítico-criativo dos sistemas de classificação do mundo e do conhecimento, nos trabalhos de Jorge Luis Borges, Georges Perec, Peter Greenaway e Arthur Bispo do Rosário, com incursões também em outros nomes da literatura, das artes e do cinema, como Italo Calvino, Carlos Drummond de Andrade e Eduardo Coutinho. Ao analisar os textos, filmes e objetos de arte desses autores, constatei que, para eles, o exercício taxonômico não se circunscrevia ao mero gesto de inventariar, com fins eruditos, lúdicos, místicos ou estéticos, as coisas e os saberes do mundo. A presença

13 ostensiva dos catálogos, coleções, séries, listas e enumerações em suas obras vem também atestar – por vias paradoxais – a própria insuficiência e a arbitrariedade dos princípios legitimados de organização, já que, não obstante o ato de classificar atenda à necessidade humana de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo, os sistemas taxonômicos tendem, em seus limites, a revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado. Tais considerações, desenvolvidas nos ensaios que compuseram os meus livros A memória das coisas e As ironias da ordem , conduziram-me a uma reflexão mais detida sobre o exercício enciclopédico de tais autores, visto que eles, muitas vezes retomando modelos antigos de enciclopédia, sobretudo as dos séculos XVI e XVII, abriram-se a tradições, referências, linguagens e campos disciplinares diversos, além de incorporarem em muitos de seus trabalhos a própria disposição em verbetes que estrutura o gênero enciclopédia. Portanto, um estudo mais cuidadoso da noção de enciclopédia, de sua história ao longo dos séculos e de suas mais recentes configurações no espaço múltiplo e heterogêneo da contemporaneidade foi necessário para uma consistência maior da pesquisa. E foi dessa forma que fui parar nas antigas enciclopédias da natureza e nos bestiários medievais, chegando, assim, ao tema do projeto seguinte, Bestiários contemporâneos – animais na literatura, iniciado em 2007. Ler A história dos animais, de Aristóteles, as passagens zoológicas da História Natural de Plinio, o Velho, as Etimologias, de Santo Isidoro de Sevilha, e o Manual de zoologia fantástica, de Borges, foi minha via de acesso ao universo zoo, um antiga paixão, como explico na parte “Z de Zoo” do memorial. No novo projeto, detive-me nas coleções de bichos existentes e fantásticos de alguns autores do século 20 que reinventaram, sob um novo lume, os bestiários antigos, sem deixar de me deter nos catálogos descritivos e ilustrados da era medieval. Já num segundo momento desse

14 mesmo projeto, meu olhar passou a se concentrar em diferentes registros literários e estéticos desse universo, que não apenas o das coleções e catálogos. O que impulsionoume a uma reflexão mais ampla e transdisciplinar sobre

a questão do animal, da

animalidade e dos limites do humano. Com os desdobramentos da pesquisa em mais dois projetos, Zooliteratura brasileira: animais, animalidade e os confins do humano (2010), e Exercícios de animalidade na literatura contemporânea – este em curso, com ênfase nos devires, metamorfoses e trespassamentos de fronteiras entre humano e não humano – depareime com um fascinante repertório de textos literários e teóricos, ao qual tenho me dedicado com muito encantamento. Tem sido uma oportunidade de refletir também, por vias éticas e políticas, sobre a questão dos animais no pensamento e na cultura ocidentais. Duas outras pesquisas complementares, uma realizada com o apoio do IEAT e outra no âmbito de um novo pós-doutorado desenvolvido na USP, com estágios em Nova York e Paris, entre 2012 e 2013, aconteceram ao longo dessa ampla investigação sobre o tema. Pude, ainda, organizar eventos em parceria com outras instituições, escrever e organizar livros e revistas, entrevistar pessoas desse campo de estudos e trabalhar com colegas da UFMG na realização de algumas dessas empreitadas. Estou ciente de que essa pesquisa sobre os animais tem sido uma das mais gratificantes dentre as que fiz até hoje. E a que tem tido mais repercussão. Talvez por abordar, sob uma perspectiva mais contemporânea, um tema relativamente ainda pouco estudado no Brasil; ou talvez porque a questão dos animais tem mobilizado, cada vez mais, as pessoas, dentro e fora do âmbito acadêmico. E creio que isso se deve ao momento que a humanidade vive. Catástrofes ecológicas; incremento das fazendas industriais que transformam os animais em mera matéria-prima para a produção de

15 alimentos e artigos comerciais; a extinção de várias espécies nos últimos anos, comprometendo a vida do planeta; a nostalgia dos humanos em relação às suas ancestrais interações com os seres não humanos, e a descrença na supremacia de nossa espécie em relação às outras, tudo isso tem contribuído para essa mobilização e para as tentativas de resgate da animalidade que também nos é intrínseca. Mas não vou me delongar mais. Nem me estenderei num rol burocrático de atividades realizadas (ou das não-realizadas, como propus na parte “N de Não”). Mesmo sabendo que o memorial – gênero que se situa instavelmente entre a autobiografia, o currículo e o relatório de atividades – também demanda esse tipo de catálogo. Mas como sabemos, qualquer lista dessas seria insuficiente, arbitrária e subjetiva. Aliás, foi exatamente pensando sobre essa precariedade das listagens pretensamente completas, que já no prólogo do memorial decidi evocar um texto de Borges, em que ele diz que a vida de alguém poderia resultar em um número indefinido de biografias de acordo com a escolha que se faz dos fatos e acontecimentos que a compuseram. Ele lança a interessante hipótese de que, se pudéssemos reduzir uma vida a vinte mil fatos, seria perfeitamente possível descrevê-la com trinta e cinco, cem ou duzentas e vinte, selecionadas arbitrariamente. Uma das possíveis biografias poderia seguir só os números ímpares dos acontecimentos; outra, a dos múltiplos de sete; outra, a dos múltiplos de dez, e assim por adiante. Daí pergunto, em consonância com o meu mestre argentino: com quantos dados, acasos, desvios, acontecimentos, viagens, livros lidos e escritos, cursos e alunos, encontros e desencontros comporiam a vida de alguém que tenha dedicado décadas de sua vida (no caso da minha, 25 anos) ao ofício de docente e pesquisador de uma universidade?

16 Certamente, nenhuma memória daria conta de registrar tudo. Tampouco seria possível construir um relato completo das lembranças que permaneceram vivas e das que poderiam ser resgatadas do oblívio. O que tentei fazer no meu memorial foi apenas um exercício possível (e necessário) da memória, de forma a não apenas recompor, pela escrita, uma trajetória de vida, como também fazer das palavras um antídoto possível contra as perdas e o esquecimento.

*

Belo Horizonte, 29 de outubro de 2015

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