D(en)ominar. (Des)cobrir. Esquecer.
Descripción
D(en)ominar. (Des)cobrir. Esquecer.1 Santiago Cao2 (Traduzido para o português por Alex Simões)
Descobrir a Costa do Descobrimento ou (Des)cobrir-nos na Costa do Descobrimento? «Descobrir», segundo a Real Academia Espanhola, é “destampar o que está tampado ou coberto”, ou seja, tirar algo que cobre alguma coisa ou algum assunto. Assim denominada esta ação, podemos nos perguntar sobre o que é aquilo que, estando sobre, impede que vejamos o oculto. Serão as denominações - aquelas palavras tão úteis - as que colocamos por cima das coisas para não vê-las? E o que são as denominações? Como se denominam as coisas? «Denominar» é uma palavra-verbo, mas «d(en)ominar» é uma ação. E se d(en)ominar é dominar em, qual é o espaço en-tre a Palavra e a Ação? Quando denomino uma coisa, por exemplo, uma cadeira, eu a domino em sua forma pre-conhecida de “cadeira”, mas ao d(en)ominá-la também me d(en)omino. Se essa cadeira está ali para que me sente, quem eu sou? Sou quem se senta na cadeira. Eu a domino e me domino num jogo de papéis bem definidos. Não poderá ser - entre outras 1
Texto escrito para o catálogo da II edição do Festival MOLA (Mostra Osso LatinoAmericana) de Performances Urbanas, acontecido de 10 à 20 de maço de 2013 em Arraial D`Ajuda e Trancoso- Porto Seguro- Brasil. 2
Santiago Cao (Buenos Aires, Argentina, 1974). Atualmente é Mestrando em Arquitetura e Urbanismo na linha de Pesquisa “Processos Urbanos Contemporâneos”, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil. Possui Graduação em Artes Visuais pelo Instituto Universitário Nacional da Arte (IUNA) de Buenos Aires, Argentina. Cursou também o bacharelado em Psicologia e possui experiência em poesia, teatro de rua e clown. Suas pesquisas se baseiam em torno dos Corpos nos Espaços Públicos, dos micropoderes que neles se ativam, e alguns possíveis modos de gerar (trans)Versões da Realidade através da Performance, as Intervenções Urbanas e de estudos filosóficos. Mais informações, textos escritos e registros de ações: www.facebook.com/cao.santiago http://issuu.com/santiago_cao http://es.scribd.com/santiago_cao
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possibilidades - alimento e, por isso, não serei eu quem vai comê-la. Ao menos não dentro dos modos e licenças consensualizados socialmente pelo conjunto de normas e códigos da sociedade na qual me movimento. Mas basta que se realize um movimento qualitativo para modificar sua potência e expandi-la para outros modos de (en-tre)vê-la. Se, por exemplo, tomo essa cadeira e a sustento no alto de uma parede, mais alto do que posso chegar com meu traseiro, se já não posso sentar-me nela, se esta “cadeira” já não cumpre sua função anterior de servir de assento, que coisa é essa cadeira? E quem Sou eu frente a essa nova coisa? Basta um movimento mínimo para liberá-la, e por isso, liberar-me dessa função delimitada. Contudo, todo transbordamento é rápido e novamente reordenado, redefinido. A função nominativa re(em)marca sob novas d(en)ominações reordenando e delimitando os papéis e funções. Que coisa é aquilo no alto da parede que se assemelha a uma cadeira? O contexto, ou seja, o texto-com, me dará uma resposta. E se estivermos em um contexto artístico, digamos assim, essa coisa será objeto de minha contemplação. E quem serei eu? Serei quem a contempla. E se o contexto ultrapassar o artístico? Nesta segunda edição do MOLA, fui convidado a pensar, junto com Rose Boaretto e Bia Medeiros, quais artistas poderíamos convidar para integrar esse Festival de Performance, que teria como contexto o Espaço Público e um perfil marcadamente voltado à Arte Relacional. Sendo assim, não podia deixar de levar em conta que cada pessoa que cruzasse com alguma dessas Performances em seu caminho teria de d(en)ominar aquilo que, por novo - desconhecido em seu cotidiano - o deslocaria, propondo-lhe uma oportunidade para (re)pensar e (re)pensar-se em uma dinâmica que a maioria das vezes não passa dos saberes prévios e suas respostas quase automáticas. D(en)ominações que tranquilizam. «Está louco!», costuma-se escutar quando não há quem responda ante aquilo que lhes gera perguntas. O que des-loca está louco. Ri-se. Busca-se o riso nos outros. Busca-se no consenso dos Outros para assegurar-se que “esse” ou “essa” que está fazendo coisas “estranhas” seja o louco ou a louca, e não quem “observa”. Por isso, na hora de performar em espaços públicos, terei de saber que vou me deparar com Ántropos com que tentarão d(en)ominar-me ao mesmo tempo que os des-loco e me des-loco. E Ántropos é uma palavra que me interessa trazer aqui, nesse (con)texto; palavra que, do grego ἄνθρωπος, significa Homem ou Humano. E dessa palavra deriva a Antropologia ou ciência que estuda a realidade do homem de um ponto de vista holístico. 2
Um ponto de vista holístico e humano, claro. E é precisamente o que há nessa palavra o motivo de meu interesse: (An)tropo. O Tropo é uma figura retórica que provém do grego τρέπω (trepō), que significa mudar, alterar. E se o homem é o ser vivo que por excelência tem a capacidade de nomear para então poder dominar, e ao mesmo tempo que nomeia, muda, altera aquilo que era uma outra coisa antes que a palavra o domine, será o (An)tropo o ser que tem em si a função de mudar e alterar para produzir Realidade? E serão os Performers com suas intervenções aqueles que podem se tornar alvos das nominações para des-locar e potencializar desse modo a liberdade de transformar(-nos) que tem todos os sujeitos em tantos (An)tropos que somos? Uma leitura acompanhou (pelo menos no meu caso e no de Bia Medeiros, já que foi ela quem me propôs esta leitura) antes de e durante o MOLA. Trata-se da conferência ministrada por Jacques Derrida em 15 e 16 de julho de 1997 e que depois de sua morte foi compilada com o título “O animal que logo sou (a seguir)3”. E é a partir desse texto que penso, ou melhor dizendo, (en-tre)penso e (en-tre)vejo os dias e as Performances acontecidas naquele lugar. Especialmente por um acontecimento que não passou despercebido para a grande maioria dos que compartilharam as experiências neste festival, e que se deu no período de tempo que nos encontrávamos em Trancoso (um dos dois povoados pelos quais o MOLA transitou), a grande maioria das Performances foram realizadas nos e com os espaços naturais como o mar e o manguezal. Espaços que pareciam possuir um grande poder de atração para os que performaram, deslocando o foco de interesse no espaço urbano da vila. Essa situação nos gerou múltiplos questionamentos em torno do conceito de Arte Relacional e contexto a intervir. O que acontece quando aquele outro em que intervenho é um contexto natural? Quando a natureza com sua potência me atravessa e minha Performance tem lugar lá, onde não há praticamente mais (An)tropos que meus companheiros de festival observando e acompanhando o processo. Posso falar de situação relacional quando me relaciono com uma árvore ou com o mar, isto é, com um contexto natural? Aquilo pode relacionar-se comigo ou só eu me relaciono com
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O título em português pega carona na versão brasileira do texto de Derrida: “O Animal que logo sou (a seguir). Trad. de Fábio Landa. São Paulo: UNESP, 2002.” Em todas as demais passagens desse texto, optamos por traduzir diretamente as citações da versão em espanhol trazidas pelo autor deste artigo e manter, na medida do possível, os jogos de palavra típicos da linguagem derridiana, ainda que assumindo riscos de perder as nuances semânticas, como no caso de “des-loco” e “loco”, que em espanhol remetem a lugar e a louco, p. ex. (Nota do tradutor.)
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aquilo? E pensando no Animote4 proposto por Derrida como uma maneira de singularizar ante a pluralização, a generalização que anula as diferenças próprias de cada animal, posso dizer o manguezal, o mar, a praia, a montanha? Há uma essência do manguezal? Ou por acaso esse manguezal não está conformado por múltiplas árvores, pássaros, formigas, caranguejos etc.? E, sobretudo, caranguejos, formigas, pássaros, árvores. E, sobretudo, etc. E por sobre todo etc.! Ou seja, sobretudo, acima de tudo, como se vendo-o do alto, de onde não se veem as diferenças, de onde tudo é uma só massa de manguezal, mar, praia, montanha. E por, sobretudo, o Homem, o (An)tropo, que em sua distância com o outro só distingue de outros (An)tropos como um Outro possível de relacionamento. E, entretanto, há outras formas de (en-tre)ver esse relacionamento Na ontologia não há Um algo superior ao Ser: o Ser se diz de tudo o que é, se diz de todo ente em um mesmo e único sentido. Essa me parece a proposição ontológica chave. É o mundo da imanência. Esse mundo da imanência ontológica é um mundo essencialmente anti-hierárquico. (…) O Ser se diz em um único e mesmo sentido que o da pedra, do homem, do louco, do razoável. (DELEUZE, 2005, pp. 56-57) E se o (An)tropo é aquele que d(en)omina, que chega antes de chegar, poderíamos pensar que se relaciona unicamente com a denominação por sobre a Coisa, ou seja, com a Coisa d(en)ominada e não com a Coisa em Si. Portanto se sobrevoa o manguezal não vendo as individualidades que nele convivem e que o constituem… poderíamos pensar que também sobrevoa os Outros, nomeando-os, chegando neles antes 4
Animote, entendido como o “plural de animais no singular: não há o Animal em singular geral, separado do homem por um só limite indivisível. É preciso enfrentar o fato de que há alguns «seres vivos» cuja pluralidade não se deixa reunir apenas na figura da animalidade simplesmente oposta à da humanidade. Seria preciso, repito, levar-se em conta uma multiplicidade de limites e de estruturas heterogêneas: entre os não-humanos, e separados dos não-humanos, há uma multiplicidade imensa de outros seres vivos que não se deixam em nenhum caso homogeneizar, exceto por violência e desconhecimento interessado, na categoria do que se denomina o animal ou a animalidade em geral. (…) O sufixo mot(e) em «animot(e)» deveria nos fazer retrotragir à palavra, inclusive à palavra denominada nome. Abre-se à experiência referencial da coisa como tal, como o que essa é em seu ser e, por conseguinte, a essa aposta por onde sempre se quis fazer passar o limite, o único e indivisível limite que separaria o homem do animal, a saber, a palavra, a linguagem nominal da palavra, a voz que nomeia e que nomeia a coisa enquanto tal, tal e como aparece em seu ser (momento heideggeriano da demonstração que nos espera). O animal estaria em última instância privado da palavra, dessa palavra que se denomina nome.” (DERRIDA, 2008, p.65)
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de chegar. Então, se não me relaciono com o Outro, mas com o Outro nomeado «Outro», pode aquilo relacionar-se comigo ou só eu me relaciono com aquilo? O que está aqui em jogo é o conceito mesmo de Relação e, por acréscimo, o conceito de Arte Relacional. E, nesse jogo, en-tro mais com perguntas que com respostas. Perguntas que só me levam a re-perguntar esperando comprender(-me) em algum ponto das tantas maneiras possíveis de (en-tre)ver. Talvez não seja nem no início nem no final desse questionamento, mas no en-tre onde se instale a Performance – enquanto arte relacional – a gerar perguntas que permitam des-cobrir-nos para depois, rapidamente, esquecer e nos esquecer no descoberto, evitando desse modo d(en)ominar-nos em uma ou outra verdade.
Referências DELEUZE, Gilles. En medio de Spinoza (Clase IV del 21 de diciembre de 1980, Ontología pura y filosofías de lo Uno”). Buenos Aires: Ed. Cactus, 2005, pp. 56-57. DERRIDA, Jacques. El animal que luego estoy si(gui)endo. Ed. Trotta, Madrid, 2008, p.65.
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