Delícias esquecidas

June 30, 2017 | Autor: C. Magalhães | Categoría: Patrimonio Cultural, Paisagem, Jardins, Jardins Historiques
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Ciência

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17 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 20 de setembro de 2015 Fotos: Cristiane Maria Magalhães/Divulgação

Parque Municipal de Belo Horizonte

DELÍCIAS ESQUECIDAS Historiadora faz inventário dos jardins históricos brasileiros para alertar sobre a necessidade de preservar esses espaços, que, segundo ela, recebem menos atenção que os bens arquitetônicos

As pessoas cada vez menos têm jardins. Nos lugares onde havia casinhas com jardins, agora existem edifícios” Carlos Delphim, arquiteto do Programa Jardins Históricos, da Fundação Nacional Pró-memória

» PALOMA OLIVETO le foi o primeiro lar da humanidade. No Éden, o homem tinha morada, sustento e prazer estético. Expulso do paraíso, contudo, parece ter se esquecido das delícias de um jardim. No Brasil, onde a riqueza da paisagem é venerada mesmo por quem jamais visitou o país, o patrimônio paisagístico ainda é desconhecido da população. Abandono, falta de proteção e de divulgação estão entre os fatores que levam os brasileiros a não enxergar o acervo que compõe esses museus vivos. Percebendo as dificuldades e certa da importância histórica de jardins e outros elementos dos espaços naturais cultivados, a historiadora Cristiane Maria Magalhães elaborou um inventário inédito do patrimônio paisagístico brasileiro. O levantamento, fruto da tese de doutorado defendida na Universidade de Campinas (Unicamp), mapeou 492 bens, divididos em 22 categorias identificadas pela pesquisadora. Além de jardins, há parques, praças, morros e bosques, entre outros. Cristiane Maria Magalhães explica que privilegiou os bens protegidos por lei ou tombados, mas também incluiu aqueles com significado para a identidade e a memória do povo brasileiro. É o caso do Jardim Botânico de Brasília (leia mais abaixo) e dos jardins da casa de Carlos

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Drummond de Andrade em Itabira (MG). “Eles não têm qualquer proteção legal, no entanto constam do inventário por serem um bem simbólico, um deles representado em poesias do poeta itabirano e que deveria receber proteção como jardim histórico brasileiro”, defende a historiadora. “No meu entendimento, não é um instrumento jurídico que faz dele um jardim histórico, mas, sim, o que ele representa”, diz. No Brasil, os primeiros tombamentos aconteceram em 1937, quando um decreto-lei organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Naquela época, porém, e até por volta da década de 1980, o entendimento sobre bens paisagísticos era diferente. “Quando as fazendas, os chafarizes e outros bens afeitos ao paisagístico foram tombados, eram entendidos na chave histórica, e não na ideia de paisagem, natureza ou jardim. O Passeio Público do Rio de Janeiro, por exemplo, um jardim por natureza, foi escrito no livro histórico e no das belas artes do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ou seja, o que estava sendo tombado era o seu valor histórico por sem um bem do século 18, e pelo seu valor artístico, pelos monumentos existentes ali”, observa a pesquisadora. Nesse processo, importantes aspectos históricos da paisagem brasileira se perderam. “Normalmente, o que se preservou das

Jardim Burle Marx, São José do Campos (SP)

fazendas foi a edificação principal, o casarão, as capelas, as senzalas ou outras edificações”, conta Cristiane Maria Magalhães. Com isso, perdeu-se não só o bem paisagístico, mas o próprio fio da história. “Não se preocupou em proteger os pomares e os jardins dessas fazendas, que nos contariam dos hábitos alimentares e das espécies vegetais cultivadas em outros séculos.”

Desatenção A partir de 1981, o cenário melhorou. Naquele ano, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios e o Comitê Internacional de Jardins Históricos reuniramse em Florença para normatizar a definição e proteção desses bens. Depois disso, o Brasil começou a discutir os instrumentos de salvaguarda dos espaços e a se basear em parâmetros internacionais para protegê-los. Mesmo assim, a historiadora avalia que os bens paisagísticos recebem menos atenção que as edificações. “Ainda hoje, os critérios de preservação para os jardins tendem a ser menos efetivos que a preservação das igrejas barrocas, por exemplo”, diz. Ela cita o caso do jardim do Hospital São João de Deus, tombado pelo Iphan em Cachoeira (BA). “Ele se encontra abandonado, descaracterizado e depredado. Os moradores locais, inclusive, desconhecem o tombamento desse bem.”

Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro Criador do Programa Jardins Históricos, da Fundação Nacional Pró-memória, e autor do primeiro manual sobre o tema no Brasil, o arquiteto Carlos Delphim lamenta a pouca atenção que se dá aos bens paisagísticos no país. “Estou tão desgostoso com o rumo dos jardins históricos. Estão completamente descuidados”, diz. Para ele, a sofisticação cultural de uma sociedade pode ser medida pela valorização de seu patrimônio paisagístico. “Todos os povos que tiveram um grau de civilização altíssimo tiveram no jardim a expressão máxima, como os jardins de Versailles e os Jardins Suspensos da Babilônia”, observa. Delphim acredita que os brasileiros já não estão mais familiarizados com esses

espaços. “As pessoas cada vez menos têm jardins, que viraram um lugar aonde elas vão e permanecem pouco tempo. Nos lugares onde havia casinhas com jardins, agora existem edifícios.” Em nota, o Iphan esclarece que, na esfera federal, há 44 bens paisagísticos tombados. “A tabela de controle dos tombamentos pelo Iphan é dinâmica e pode passar porrevisõesperiódicas”,dizotexto. Além disso, o órgão de preservação do patrimônio destaca que os critérios classificatórios oficiais são diferentes dos utilizados por Cristiane Maria Magalhães. “Há bens considerados por ela como paisagísticos, mas que estão, em nossa classificação, como ‘bens móveis e integrados’; ou ‘conjuntos arquitetônicos’, e assim por diante.”

Iano Andrade/CB/D.A Press - 3/8/09

Brasília tem nove áreas tombadas a pesquisadora destaca que o espaço é um dos mais significativos e relevantes do país. De acordo com o Iphan, que protege o patrimônio da cidade desde a década de 1990, a Praça dos Cristais, o Parque Olhos d’Água e os jardins da SQS 308, da 714 Sul, do Palácio do Itamaraty e do Parque Sarah Kubitschek já foram estudados e inventariados. No âmbito do DF, nove áreas paisagísticas projetadas por Burle Marx foram tombadas em 2011: jardins da 308 Sul, do Itamaraty, da Praça dos Cristais, do Palácio

da Justiça, do Tribunal de Contas da União, do Palácio do Jaburu, do Teatro Nacional, do Parque da Cidade e do Banco do Brasil. O superintendente do Iphan em Brasília, Carlos Madson Reis, acredita que, na capital, a relação dos moradores com os bens paisagísticos é de intimidade e respeito. Algo que, nos últimos anos, tem se intensificado, com o movimento espontâneo de ocupação dos espaços públicos. “Sobretudo nos espaços urbanos, a preservação só acontece quando se tem vida. Eu defino espaço

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No inventário elaborado pela historiadora Cristiane Maria Magalhães, Brasília é representada pelo Lago Paranoá (tombado pelo Iphan e pela Unesco dentro do conjunto urbano da capital) e pelo Jardim Botânico, que não é protegido por nenhum instrumento de salvaguarda. “O Jardim Botânico já é significativo como jardim científico, que contém espécies nativas do cerrado brasileiro”, diz a historiadora. Como é o primeiro do mundo a manter coleções de plantas em seu próprio ambiente,

como paisagem mais vida. Em Brasília, a grande riqueza urbana é a área verde, mais até do que o desenho urbano em si. O que faz de Brasília uma cidade moderna é a área verde, bem mais do que o traçado. E a relação das pessoas com essa paisagem é muito bonita”, diz. No passado, Madson Reis recorda que o cerrado era visto como um estorvo. “Isso mudou e, hoje, a própria população quer preservar a vegetação nativa. Os ipês, por exemplo, são uma marca nossa. As pessoas se orgulham”, diz. (PO)

Jardim do Tribunal de Contas da União, Brasília

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