De gênero a Dispositivo: o retrato como encenação e produção de sujeitos em Cindy Sherman e Julia Cameron

October 1, 2017 | Autor: Fernando Gonçalves | Categoría: Fotografía, Arte Contemporânea E Historia E Teoria Da Fotografia
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Dossiê: Fotografia e Audiovisual: aproximações possíveis? ___________________________________________________

ícone P r o g r a m a d e P ó s - G r a d u a ç ã o e m C o m u n i c a ç ã o U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e P e r n a m b u c o I S S N 1 5 1 6 - 6 0 8 2 De gênero a Dispositivo: o retrato como encenação e produção de sujeitos em Cindy Sherman e Julia Cameron Fernando Gonçalves1 Débora Gauziski2 Grécia Falcão3 Resumo: Este artigo discute o retrato como dispositivo de construção e de problematização das representações do sujeito na fotografia do século XIX e na arte contemporânea. A partir da noção de anacronismo em Didi-Huberman e Michel Poivert, o texto analisará o retrato como campo de forças onde se legitimam e ao mesmo tempo se refutam as lógicas de representação do sujeito na fotografia, através de referências à literatura, à história da arte e ao audiovisual. Para tanto, discutiremos a “performance de si como outro” nos autorretratos da artista americana Cindy Sherman, relacionando-os às “encenações do sujeito como tipo” nos retratos do século XIX da inglesa Julia Cameron, uma das precursoras do movimento pictorialista. Com isso, buscaremos mostrar como a questão do tipo fotográfico funcionava já desde o século XIX tanto como mecanismo de construção e de reconhecimento quanto como forma de problematizar tais mecanismos em distintas épocas e tradições da prática fotográfica. Palavras-Chave: Fotografia; Arte contemporânea; Retrato; Anacronismo; Sujeito. Abstract: This paper discusses the portrait as device of construction and questioning of representations of the subject in the photograph of the nineteenth century and contemporary art. From the notion of anachronism in Didi-Huberman and Michel Poivert, the text will look the portrait as forcefield which legitimize and at the same time refute the logical representation of the subject in the photograph, through references to literature, the history of and audiovisual art. To do so, we discuss the "performance of self as other" in self-portraits of American artist Cindy Sherman, relating them to the "staging of the subject as type" in the portraits of the nineteenth century the English photographer Julia Cameron, one of the precursors of the pictorialist movement. With this, we will seek to show how the question of the photographic kind ever since the nineteenth century functioned both as a building and as the recognition engine as a way to discuss these mechanisms in different eras and traditions of photographic practice. Keywords: Movies and Games. Comics. Character Tintin.

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Mestre e Doutor em Comunicação pela UFRJ (1996 e 2003). É professor associado da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e pesquisador do CNPq. Contato: [email protected] 2 Mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil(2014). Contato: [email protected] 3 Graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil(2009) Pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro , Brasil. Contato: [email protected]

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Introdução O presente artigo tem como objeto o retrato como dispositivo de construção e de problematização do sujeito através da análise de traços persistentes nas imagens de fotógrafos do século XIX e da atualidade. Tal persistência corresponde, como veremos, à noção de “anacronismo” em DidiHuberman (2008) e Michel Poivert (2010). A partir dela, o texto analisará o retrato não apenas como forma de construção identitária, mas também como campo de forças onde se legitimam e, ao mesmo tempo, se refutam as lógicas da representação do sujeito na fotografia. Procuraremos mostrar primeiramente que, se desde seus primórdios, a fotografia atendia aos imperativos da produção de marcas de reconhecimento com as quais legitimava certas formas de produção de sujeito, ela não o fazia sem deixar atrás de si os rastros da fatura necessária para tal construção. Ao mesmo tempo, nos interessa mostrar como desde o século XIX esses rastros de artifício já eram utilizados por alguns fotógrafos para, de certa forma, discutir os processos de produção subjetiva através das tipologizações fotográficas,

hoje

tão

característicos

de

certas

produções

artísticas

contemporâneas. De fato, na arte contemporânea, muitos artistas elegem o retrato e autorretrato como questão e forma expressiva. São em geral imagens de arquivo, dos meios de comunicação, do quotidiano. Rostos sem expressão ou fotos posadas que parecem mais falar de nossos modos de ver e dar a ver os indivíduos do que apenas produzir as construções dos sujeitos e de suas identidades. Contudo, a partir de uma abordagem anacrônica, procuramos demonstrar que algumas dessas questões já vem sendo trabalhadas na pintura e também na própria fotografia desde pelos menos a segunda metade do século XIX. Para

tanto,

“montagem”,

apoiados

proposta

por

também

na

perspectiva

Didi-Huberman

(2008),

da

imagem

analisaremos

como alguns

trabalhos emblemáticos da artista americana Cindy Sherman, autorretratos em que ela encarna figuras da história da arte e tipos femininos de filmes B 86

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hollywoodianos. Neles veremos como a artista, mais do que apenas dispersar sua identidade em múltiplas faces ou chamar nossa atenção para a difusão massiva de estereótipos do feminino, reflete sobre os modos de construção identitária e de produção de sujeito, legitimados através da imagem na cultura de massa, através de suas “performances de si como outro”. Num segundo momento, o texto procura mostrar que, curiosamente, o debate contemporâneo acerca da produção de sujeitos no retrato fotográfico não é novo e já aparece, desde pelo menos a segunda metade do século XIX, quando vemos práticas que posicionavam a fotografia para além dos usos que a legitimavam como simples técnica de reprodução e que, de certa forma, já evidenciam também sua natureza de “híbrido sociotécnico” (Simondon, 1999; Latour, 2012), ao mesmo tempo social, técnico, histórico e comunicativo. É o que veremos nas imagens da fotógrafa inglesa Julia Margaret Cameron. Precursora de um movimento que buscava para a fotografia um caráter não meramente documental, suas imagens chamam, porém, talvez mais atenção pelos deslocamentos que produzem no pensamento sobre a imagem como artefato. Finalmente, o trabalho procura ressaltar que, em ambos os casos, essas tipologias fotográficas podem funcionar tanto como padrões de construção e de reconhecimento quanto formas de problematizar tais lógicas de representação no retrato por constituírem, antes de tudo, não um gênero, mas um conjunto de mecanismos que participa, através dos tempos, da construção da noção de sujeito a partir da combinação de distintas linguagens e gêneros estabelecidos na arte. Do retrato como gênero ao retrato como dispositivo Um dos temas mais recorrentes na fotografia contemporânea é também um dos temas mais importantes na história da arte: o retrato. Assim como representar lugares, temas históricos e compor naturezas-mortas, retratar os indivíduos constitui, de longa data, um recurso discursivo de organização das ideias que fazemos do outro e de si.

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Porém, mesmo antes da fotografia, o retrato na pintura já funcionava como dispositivo4 de criação de identidade e de produção de sujeitos que, ao mesmo tempo, informavam sobre os critérios de apreciação e de legitimação desse tipo de imagens, consubstanciados nas intenções do pintor e nas lógicas de seus sistemas de representação (Arrasse, 2004). É assim que vemos historicamente já na pintura o uso do cenário, das vestimentas e objetos, juntamente com a teatralidade da pose e o retoque, forjarem, por meio de convenções próprias de cada época, uma legitimidade que construía tipos socialmente

reconhecíveis

sem

que

porém

tais

representações

fossem

necessariamente vistas como um artifício. Através da verossimilhança como convenção, a construção da imagem subsome tais elementos, juntamente com as escolhas dos enquadramentos e da composição, tornando-os “possíveis” na imagem sem que esta se torne ilegítima enquanto representação e fazendo com que os fragmentos usados na figuração sejam tomados como as coisas que representavam. A fotografia, portanto, não inaugura tais processos de invenção por meio da representação imagética. Antes, como bem demonstrou Benjamin (1993), participa desse movimento de invenção de sujeitos, através da busca da captação de uma “interioridade” e de uma “essência” dos indivíduos. Mas o que essa busca revelava, como se sabe, é a construção das noções modernas de “intimidade” e de “sujeito” consubstanciada pelas formas do “bom retrato”. Dos daguerreótipos e cartões de visita aos ateliês dos fotógrafos, cenário, pose e retoque são, portanto, elementos mobilizados para produzir imagens de pessoas, coisas e lugares, e elementos que precisam desaparecer como evidências de um artifício. Ao mobilizar tais elementos fazendo-os, em seguida, desaparecer na construção da imagem, através de sua legitimação enquanto representação, percebemos o quanto tal operação faz da imagem uma “operação de montagem” (DIDI-HUBERMAN, 2008). Isso ocorre na medida em que, tanto na pintura quanto na fotografia, o fantasioso e o ficcional não deixam de ser percebidos como tal mas serão legitimados por 4

Pensamos aqui o dispositivo na tradição do pensamento de Deleuze e Guattari, na qual este é visto como um conjunto complexo de relações e maquinações que remetem a seu conceito de “agenciamento maquínico”. Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

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regras de uma figuração apoiadas nos princípios racionais da representação mimética e da verossimilhança. Contemporânea da experiência da pintura acadêmica, sobretudo até a segunda metade do século XIX, a fotografia, por seu caráter técnico de reprodução, acentuou esse aspecto mimético da imagem e foi considerada como objeto científico antes de ser compreendida como “objeto sociotécnico”5, ou seja, como dispositivo híbrido de construção de realidade que servia a diferentes usos sociais através de meios técnicos de reprodução da imagem. Se os retratos dos séculos XIX e XX foram pródigos em exemplos desses processos que permitem pensar a “imagem como montagem”, talvez sejam úteis também para evidenciar que algumas das características dos processos criativos contemporâneos com fotografia na arte - o questionamento do valor de verdade do documento, da imagem como artifício e do sujeito/real como invenção - não são totalmente novos. Eis o cerne de nosso interesse pela noção de “anacronismo”, que implica a persistência de determinadas formas e traços pré-modernos e modernos na fotografia contemporânea. A noção de anacronismo vem se tornando central nos estudos da imagem na história da arte (sobretudo em autores como Didi-Huberman e Michel Poivert) e que podem também contribuir para os estudos da imagem no campo da comunicação. Ela implica a idéia de uma atualidade do passado e uma inatualidade do presente e que marca, no campo das imagens, aquilo que seria próprio da imagem: sua condição de objeto sociotécnico, ao mesmo tempo social, técnico, histórico e comunicativo. Em Didi-Huberman, por exemplo, o anacronismo é visto como método que permite cartografar isso que persiste na imagem: lampejo, resquício, espessura, montagem. Para este autor, a imagem “não é a imitação das coisas, mas o intervalo feito visível, a linha de fratura entre as coisas” (DIDI-

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O termo “sociotécnico” aqui é inspirado em Gilbert Simondon. A autor considera que uma tecnologia nunca é puramente “técnica”, mas também humana e social. Para Simondon, que influenciou o pensamento de Deleuze e Latour, longe de ser meramente instrumental, a técnica é fruto de um permanente processo de auto-afetação entre, de um lado, a aquisição de saberes técnicos e habilidades cognitivas, e de outro, os contextos e regras de usos, aplicações, subversão e inovação desses conhecimentos por meio das vivências sociais. Cf. SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris : Aubier, 1999.

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HUBERMAN: 2008, p. 114). O anacronismo seria para ele uma forma de pensar esse intervalo, essa fratura e essa montagem que a imagem é. Já Michel Poivert (2010) vê uma relação anacrônica em certas imagens contemporâneas, sobretudo as que têm como tema o retrato e autorretrato. Pensando no aspecto de construção e de ficcionalidade da pose, por exemplo, Poivert vai ver também esta prática ou tematização como algo recorrente na fotografia desde seus primórdios. Contudo, ele argumenta que a produção contemporânea se inscreve numa relação temporal que não se submete à ordem do progresso técnico ou de suas possibilidades, mas numa relação contemporânea com a teatralidade. É que veremos a seguir. Cindy Sherman – (re)encenação de si como outro Cindy Sherman é uma artista fotógrafa norte-americana, nascida em 1954. Estudou Artes na Buffalo University, devido a seu interesse desde a infância pelo desenho e pela performance. Mundialmente conhecida no mundo das artes, sua obra encontra-se distribuída hoje por diversas galerias e museus ao redor do mundo, como Tate Gallery (Londres), Corcoran Gallery (Washington) e MoMA (Nova York). Os trabalhos de Sherman consistem em autorretratos nos quais ela problematiza os estereótipos sociais da mulher, tomando como inspiração e referência imagens dos meios audiovisuais (cinema, televisão, publicidade) e da história da arte (pop art, Renascença). Para encarnar estes diferentes papeis, a artista se caracteriza utilizando maquiagem, próteses, perucas e diferentes indumentárias. Ela faz uma crítica caricatural da cultura de massa, já que “a cada mudança de vestuário, cenário, pose e enquadramento a artista articula a linguagem do gênero culturalmente construído” (PRADA e ÂNGELO: 2008, p. 242). A esse respeito, Annateresa Fabris (2003, p. 62) aponta que o retrato “pode afirmar tanto a unicidade da pessoa na multiplicidade dos sujeitos (personagem com traços de outros modelos) quanto a multiplicidade das pessoas na unicidade do sujeito (as diferentes máscaras que um retratado pode assumir)”. Julia Cameron, como veremos adiante, teria mais relação com 90

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o primeiro caso, pois a fotógrafa buscava justamente produzir sujeitos (ideais de um feminino sublime) através dos seus retratos encenados. Já as fotografias de Sherman se relacionariam com o segundo caso, por chamarem a atenção para os processos de disseminação e reprodução de tipologizações referenciadas pela cultura massiva e assumidas muitas vezes pelos sujeitos em suas vidas. Como vimos, a fotografia produzida nos ateliês fotográficos do século XIX evidenciava que a identidade dos sujeitos retratados residiria em sua aparência, afinal, a pose e o vestuário eram utilizados com esse propósito. Essa artificialidade – no caso, as roupas e temáticas do cenário – era considerada comum no processo fotográfico:, como observa Fabris: “Se a pose responde, em um primeiro momento, a imperativos técnicos, assume rapidamente o caráter intrínseco de apresentação de um simulacro” (FABRIS: 2003, p. 62). Em oposição a este modelo, a artificialidade em Sherman promove uma discussão da fotografia como artefato, com visíveis rastros de suas composições. Não mais tida como mera cópia do real, a imagem é apresentada como objeto de uma teatralidade. Para avançar no desenvolvimento desse argumento, selecionamos três imagens de diferentes fases da artista. A primeira, intitulada #58 (1980), integra a série Untitled Still Films, composta por 130 fotos realizadas entre 1978 e 1980. Neste trabalho, Sherman tem como referência ícones femininos do cinema e da televisão, como as atrizes Sophia Loren e Brigitte Bardot. Cabe ressaltar que foi com esta série que a fotógrafa alcançou rapidamente o reconhecimento internacional durante os anos 1980, através de suas exibições nos Estados Unidos e na Europa. Consequentemente, esta também é a fase da artista mais explorada em trabalhos acadêmicos, principalmente em estudos feministas. Para Fabris (2003, p. 63), em Stills há um jogo de aparências e superfícies, de onde “emerge uma visão da mulher não como indivíduo, mas como estereótipo cultural, como máscara social”.

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Fig. 1 – Cindy Sherman. #58 (1980).

No prefácio do livro-catálogo The Complete Untitled Film Stills (2003), Sherman relata que os filmes do diretor Alfred Hitchcock, assistidos ao longo de sua infância, são uma das inspirações para essa série. Segundo ela, as personagens de Hitchcock são enigmáticas e pouco expressivas, assim não sabemos muito sobre elas e, por isso, tentamos completar os espaços de suas vidas. Ela justifica a escolha de personagens femininas com o argumento de que já estamos muito familiarizados com o papeis masculinos no cinema. A ideia para este trabalho surgiu enquanto trabalhava como recepcionista na galeria Artists Space, em Nova York, momento em que teve contato com a cena artística alternativa da cidade. As primeiras fotos foram tiradas com um rolo de filme que Sherman perdeu e reencontrou aproximadamente 15 anos depois. Nesta primeira imagem, vemos o que parece ser justamente um frame retirado de uma sequência cinematográfica: o enquadramento e o plano médio nos remetem à estética fílmica. Cabe destacar que as seis primeiras fotos de Stills foram manipuladas durante o processo de revelação, utilizando químicos mais quentes para fazer o filme reticular, resultando num aspecto granulado como nos filmes antigos6. Tal como num filme, somos talvez instados a entender o que se passa nessa fotografia: Quem é esta mulher? Para o que está olhando com tanta atenção? Obviamente, nesse caso, tais respostas não são relevantes e, 6

Podemos fazer aqui uma adiantar uma aproximação com a fotógrafa Julia Cameron, que apesar de não manipular suas fotografias durante o processo de revelação, também as “forjava” através de recursos como desfoques com as lentes.

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certamente, não é por acaso que os stills da série são numerados por propósito de identificação. De certa forma, remetem a seu propósito de repertoriar tipos produzidos. Como explica Sherman (2003, p. 7), não há legendas justamente porque “isso estragaria a ambiguidade”. Ora, é através dessa ambiguidade que Sherman nos desloca, como artista, da simples curiosidade sobre os tipos em si, para a atenção aos seus modos de produção no contexto de uma cultura de massa e também para os efeitos estéticos dessa produção nos processos de subjetivação. Esse deslocamento, intencional por parte da artista, surge curiosamente de uma experiência vivida por ela própria, na qual se evidencia como ela mesma se sente afetada pelo conjunto de imagens que povoam nossas sociedades e que ela então, através de um gesto de associação, vai transformar em obra: Eu me lembro de olhar para a garota com o cachecol preto (#58) e pensar que eu estava repetindo a foto ‘garota urbana’ (#21): duas inocentes olhando ao redor da cidade que aparece ao fundo. Eu pensei que #58 era uma versão mais estereotipada. Aquela foto incluía o mesmo personagem na base do World Trade Center com uma maleta, se afastando da câmera (#59), e isso para mim era o contraponto da caroneira (#48). Eu senti que eu havia completado personagens suficientes (SHERMAN: 2003, p. 16, tradução nossa).

Foi a partir daí que Sherman percebeu a possibilidade de apropriação e referenciação de imagens que povoam a arte e os filmes B hollywoodianos na elaboração de seu trabalho. Com isso, reafirma a noção de que é impossível ter um olhar isento de uma relação com outras imagens, já que somos mediados por referências imagéticas todo o tempo. Como estamos cada vez mais mergulhados nesta trama, nossa percepção também está em constante construção e transformação. Já em Untitled #224 (1990), saímos do tema das tipologizações do feminino para a encenação de obras da história da arte. Nesse trabalho temos uma reencenação do quadro Pequeno Baco Doente (Bacchino Malato, datado entre 1593 e 1594) de autoria do pintor barroco Michelangelo Caravaggio. A imagem pertence à série History Portraits, produzida pela artista entre os anos de 1989 e 1990, inspirada em diversos ícones da pintura renascentista. Um dado pertinente é que a pintura original de Caravaggio também é um 93

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autorretrato (de acordo com o biógrafo oficial do pintor, Giovanni Baglione). Há uma questão pictórica na foto de Sherman: num primeiro vislumbre, não sabemos se se trata de uma pintura ou de uma fotografia. Caravaggio se pintou e Sherman se fotografou como Baco, tomando a imagem do pintor como referência. Temos aqui dois diferentes modelos de representação e materialidades da imagem, que, todavia, relacionam-se. A historiadora da arte Christa Döttinger (2012) aponta que há uma questão anacrônica entre os dois artistas, já que em ambas as imagens há uma artificialidade: “History Portraits confirma novamente que a arte nunca mentiu, que ela sempre chamou a atenção para a realidade do tempo” (DÖTTINGER, p. 29, tradução nossa).

Fig. 2- Cindy Sherman. Untitled #224 (1990).

Através desta imagem, chegamos à consideração de que não podemos falar da fotografia contemporânea por si mesma. As imagens são construídas e ressignificadas a partir de outras imagens, inclusive de outros tempos). Esta é a base do argumento de Didi-Huberman (2008, p. 32), que afirma que quando estamos diante de uma imagem, estamos diante do tempo. É que as imagens, enquanto artefatos, são a um só tempo suporte e dispositivo de construção de memória, nas quais o passado nunca cessa de se reconfigurar. A terceira foto selecionada integra a fase mais atual da fotógrafa, que atualiza seu debate sobre tipos sociais femininos a partir do mesmo princípio 94

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performático. Para se “travestir” na personagem em questão, Sherman usa maquiagem pesada, tatuagem tribal no braço e veste blusa de alcinhas, short curto e óculos de sol na cabeça.

Fig. 3 – Cindy Sherman. Untitled #355 (2000).

Mais uma vez podemos nos sentir tentados a saber quem é essa mulher, usando para isso os elementos que a artista usou na composição da imagem: os detalhes de seu figurino, sua pose e sua expressão. O mais importante, entretanto, não é desvendar a personagem que Sherman está “vestindo”, mas, sim, perceber como ainda hoje percebemos e reconhecemos o outro com base em um modelo histórico que constrói e legitima o sujeito através da imagem. De todo modo, como em outras de suas personificações temáticas, inclusive as do pornô e do grotesco, inspiradas em histórias infantis e no cinema de horror, é sempre da fabricação de um corpo e das possibilidades do feminino enquanto condição humana e social que se trata. Julia Cameron – entre literatura, pintura e fotografia na (re)encenação do feminino. No surgimento da fotografia, a capacidade da câmara de registrar a realidade de forma tão precisa, não só cumpriu e questionou a tarefa artística do Renascimento, quanto possibilitou a eficácia no processo de documentação 95

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e observação requerida pelo mundo científico em plena atmosfera do naturalismo. Neste clássico debate entre arte e ciência, trazido primeiramente pela perspectiva na pintura e depois pela invenção fotográfica no século XIX, surge o desejo de compreender o lugar da técnica na esfera artística, apropriando-se dos elementos da pintura, enquanto a própria representação pictórica era alvo de crescentes transformações. A capacidade da fotografia para traduzir rapidamente o mundo material numa imagem desafiou pintores a encontrarem versões alternativas ao realismo. Inspirados pela simplicidade direta da arte anterior ao Renascimento, os Pré-Rafaelistas7 buscaram a detalhada representação da realidade ao ampliar o uso de cores vivas e efeitos de luzes brilhantes. Combinando precisão científica e grandeza imaginativa em seus quadros, este grupo de artistas constitui o primeiro movimento de arte moderna da Grã-Bretanha. Uma vanguarda claramente influenciada pelo efeito real trazido pelo meio fotográfico, quanto também serviu inspiração para fotógrafos da época. Certos fotógrafos passaram a olhar para o assunto Pré-Rafaelista a fim de legitimar o status da fotografia como arte8. Julia Margaret Cameron, assim como Lewis Carroll, Roger Fenton, Henry Robinson, Oscar Rejlander tinham muito em comum com pintores como John Millais, William Hunt, Dante Rossetti, e John Inchbold. Assim, estabelecia-se um rico diálogo entre fotografia e pintura, que gerava uma nova forma de traduzir e representar o mundo natural, bem como a figura humana. Julia Cameron se inspirou não só no estilo pictórico do movimento, como em suas escolhas temáticas, que variavam entre temas da Bíblia e da literatura inglesa.

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A Irmandade Pré-Rafaelista foi um grupo de pintores, poetas e críticos ingleses fundado em 1848 por William Hunt, John Millais e Dante Rossetti. A intenção do grupo era reformar a arte, rejeitando o que é considerada a abordagem mecanicista adotada após Raphael e Michelangelo, propondo um retorno ao pormenor abundante, às cores intensas e composições complexas da arte italiana do Quattrocento. 8 A fotografia naturalista foi um movimento introduzido por Emerson, principalmente através de seu livro, Fotografia Naturalista para Estudantes de Arte (1889). Emerson insistiu que cada imagem exigia uma abordagem original baseada na observação direta da natureza. O autor defendeu o uso de dispositivos visuais, tais como foco diferencial, difusão periférica e tons suaves. Estes elementos formais foram destinados a relacionarem a imagem pintada ou fotografada com a visão 'natural' humana. Antecedentes formais do naturalismo podem ser vistos no trabalho de Hill, Adamson e Cameron, que, mais tarde, viriam a influenciar o movimento Pictorialista.

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Essencial para a arte Pré-Rafaelista era o rosto de uma mulher. Com olhos grandes, pele luminosa, cabelos compridos e corpos poderosos. Nesta pintura de Dande Gabriel Rosetti vemos como o ato corriqueiro de pentear os cabelos foi parado no tempo, encarnando um enigma do que constitui o feminino. Quem é ela? O que pensa neste momento? A pintura parece estabelecer um distanciamento entre a mulher comum e ao mesmo tempo sublime, nos tornando incapazes de responder tais questões.

Fig. 4 - Dante Rosetti. Lady Lilith (1868).

Na Irmandade Pré-Rafaelista, o romance e a atenção em torno destas mulheres tendiam a glorificá-las, posicionando-as acima do nível dos mortais em um reino mítico de heroínas trágicas. É a vida desta mulher que, ao passo que sofre, é ao mesmo tempo redentora. Assim, ao retratarem a vida vitoriana de mulheres comuns, como empregadas domésticas e prostitutas, suas personalidades e vidas reais eram deslocadas para um ideal feminino de plenitude, junto a uma paisagem de fantasia que nos transportava para o lugar do sonho. Desta forma, cria-se uma ponte representativa entre o banal e o extraordinário, o mundano e o sagrado. Uma pintura que estabelece a prerrogativa de que a construção ideal do feminino se dá diante das mulheres comuns como um elemento de constante tensão. Ou seja, é nos aproximando e nos afastando do comum que encontramos o mito feminino. É através de um olhar deslocado sobre a vida de uma prostituta que podemos encontrar sua pureza quase divina.

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Neste cenário, os pré-rafaelistas ratificaram a construção de um mito do feminino baseado na constante tensão entre o real e o surreal, o banal e o lúdico, o comum e o único, que se desdobra até hoje no ideário hollywoodiano. Como vimos, Sherman passa a questionar essas construções através do estranhamento das representações do feminino. Um reino que opera entre a mulher comum e a produção de marcas de reconhecimento do feminino na cultura contemporânea. Este paradoxo da representação do feminino resgatado pelos prérafaelistas foi muito bem retratado por Julia Cameron9 na fotografia intitulada Beatrice, um tema popular para escultores e pintores vitorianos. Aqui Cameron fotografou May Prinsep, filha adotiva de sua irmã, como a personagem Beatrice Cenci, uma jovem que viveu em Roma no século XVI, cujo pai possuía um grande desejo sexual por ela e passou anos abusando da jovem. Beatrice planejou com sua madrasta e seu irmão o assassinato do pai. Assassinos de aluguel fizeram o trabalho, mas, após capturados, confessaram o crime sob tortura e foram condenados à morte.

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A carreira fotográfica de Cameron foi curta, abrangendo 11 anos de sua vida (1864-1875). Ela começou a fotografar aos 48 quando sua filha a presenteou com uma câmera fotográfica. Apesar de seu estilo não ser apreciado em seu tempo, o trabalho de Cameron teve grande impacto sobre fotógrafos modernos, especialmente os retratistas. Cameron recorria a amigos, familiares e trabalhadores domésticos para fazer encarnações modernas de clássicos religiosos e de figuras literárias inglesas, sem qualquer interesse em estabelecer um estúdio comercial ou fazer retratos encomendados. Entre seus modelos estava sua empregada doméstica já transformada em Madonna, seu marido encarnando Merlin e o filho de um vizinho em Menino Jesus ou, com asas de cisne, em Cupido. (fonte: http://www.metmuseum.org/toah/hd/camr/hd_camr.htm)

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Fig. 5 - Julia Cameron. Beatrice

Na composição de tons, nas linhas criadas pelo cabelo e pelo turbante da jovem, pelo olhar resignado da modelo, a Beatrice de Cameron opera justamente

no

ideário

feminino

que

desloca-se

do

comum

para

o

extraordinário, do mundano para o sagrado. Esta dualidade do arquétipo feminino como incitado pela arte prérafaelista é ainda intensificado a partir da escolha das modelos de Cameron, que justamente capturava imagens da mulher comum – suas amigas, suas parentes e empregadas domésticas – para representar os grandes mitos da história inglesa e da Bíblia. Neste caso, ao contrário da tradição pictórica, onde já era corriqueiro utilizar pessoas comuns para encarnar personagens históricos, em Cameron é relevante destacar o caráter de verossimilhança da imagem fotográfica como ratificador desta tensão entre a vida comum da modelo e a representação que ela encena. A particularidade do meio fotográfico se dá justamente na capacidade de operar tais tensões entre opostos.

É

esta

a

presença

fotográfica

de

Cameron

que

enseja

desdobramentos na produção das estruturas narrativas que constituem, em parte, o sentido da imagem feminina hoje e de seus jogos na arte contemporânea. Curiosamente, Cameron parece estar não só consciente, mas sobretudo interessada em se apropriar e em reconstituir as poses e gestos das representações que viu em esculturas e pinturas, como abaixo, no caso de sua 99

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imagem de Nossa Senhora. Nela, mais uma vez, Cameron reencena o outro como um tipo pré-existente.

Fig. 6 - Julia Cameron. Madonna.

A questão da representação através da própria representação também está presente, mas de forma diferente de Sherman, sendo colocada por Cameron em outros termos: a particularidade desta imagem fotográfica parece residir no fato de que necessariamente a mulher retratada existiu, esteve ali, tinha um certo de tipo de relação com a fotógrafa e sua história, de certa forma, se conecta com a do tipo que encarna. Assim, embora invisível na imagem, sabemos que, como em Beatrice, ela tem uma narrativa pessoal (seu passado, seu presente, seu relacionamento com o fotógrafo, etc.) que empresta suas expressões de vida ao processo de representação do mito. A intensificação da sobreposição das narrativas10 da modelo comum ao arquétipo feminino representado. Em outro ponto, enquanto os fotógrafos da época criticavam a falta de “qualidade”11 da técnica de Cameron12, são justamente as 10

Ao invés de citar a personagem encenada, muitas vezes Cameron preferia incluir o nome dos modelos no titulo da fotografia. 11 Julia usa o desfoque como estilo fotográfico se afastando dos acabamentos e poses fixas dos retratos de estúdios comerciais. Suas aspirações eram, segundo ela, “enobrecer a fotografia e garantir para ela o caráter e uso da Alta Arte, combinando o real e o ideal, não sacrificando nada da verdade pela devoção possível à poesia e beleza” (DANIEL, 2000, tradução nossa).

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fotografias borradas e o desfoque que suscitam os desdobramentos sobre o significado instável, fugaz e fugitivo da imagem: Não é estranho que Lewis Carroll tivesse problemas com a inexatidão de Julia Margaret Cameron. Suas imagens eram obviamente incompatíveis com os padrões miméticos que quase todos identificavam como o conceito de fotografia. Estava claro que as imagens de Cameron não tinham uma intenção de realismo documental, motivo pelo qual não restava alternativa senão associá-las a uma intenção ‘artística’. (GONZÁLEZ: 2011, p. 140).

Neste caso, estes aspectos técnicos da fotografia de Cameron, junto às narrativas pessoais das modelos, se tornam tão importantes quanto o assunto representado pela imagem, aumentando o efeito de que esta fotografia não está representando somente um mito do feminino, mas a representação de um mito por dois modelos, que passam a compartilhar das mesmas histórias.

Considerações finais A análise de imagens fotográficas contemporâneas, particularmente na arte, como foi objeto deste artigo, ganha uma outra dimensão quando realizada a partir de uma perspectiva anacrônica. Tal perpectiva evidencia a possibilidade de rastrear a persistência de traços visuais e das questões do século XIX nas imagens da atualidade e de evidenciar sua impureza e inatualidade. Com a discussão das produções fotográficas de Sherman e Cameron, buscamos discutir anacronicamente o retrato como dispositivo que aponta para continuidades discursivas e não-discursivas no âmbito dos processos de subjetivação através da imagem. Ao mesmo tempo, buscamos demonstrar como, independentemente do tempo, tais enunciados de subjetivação apontam igualmente para possibilidades para sua própria problematização. Apesar de terem um modus operandi similar, já que ambas utilizam o recurso da teatralidade com o objetivo de “produzir sujeitos”, Sherman e Cameron apresentam questões bastante diferentes em suas práticas com a fotografia. Contudo, o que sobressai em ambos os casos é a ideia mesma de uma 101

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produção subjetiva performatizada que atravessa os trabalhos de ambas, mesmo sendo de distintas naturezas e épocas. Através da encenação, cada uma a seu modo, Sherman e Cameron evidenciam como o retrato, como toda imagem, constitui um artifício e uma operação de montagem, capaz de produzir não apenas imagens de sujeitos, reais ou ficcionados, mas é efetivamente capaz de produzir sujeitos, seja na arte ou nos meios de comunicação. Também demonstramos que o gesto de releitura do passado e de um pensamento crítico sobre os modelos de representação não é inaugurado nem é um privilégio da arte contemporânea: tanto na pintura quanto na fotografia contemporânea e do século XIX, é possível problematizar a ideia de representação mimética e pensar o retrato como um dispositivo que não só apresenta como questiona o caráter documental e de verdade da imagem. Vimos, através das fotografias de Sherman e de Cameron como as imagens, por sua natureza de artifício e de objeto sociotécnico, podem abrir mão de uma conexão definitiva e estável com seu referente, a fim de revelar outras possibilidades expressivas e que por isso mesmo se tornam capazes de evidenciar também o caráter de montagem das imagens. Por em diálogo Cindy Sherman, em sua relação com as imagens presentes no cinema e na história da arte, e Julia Cameron, e sua herança pictórica pré-rafaelista, significa pensar primeiramente que, para além das rupturas e distinções entre movimentos e vanguardas, ao cruzar tais referências é possível identificar a persistência da questão da representação do feminino, vislumbrando os vestígios de um certo padrão de reconhecimento artístico articulado entre distintas temporalidades. Em segundo lugar, implica corroborar o pensamento de Poivert, para quem a fotografia contemporânea não reproduziria em si o que já foi feito na primeira fotografia e na fotografia moderna, mas inventa com elas uma outra relação. Não mais uma revelação do mundo, mas “sua própria impureza de artifício, a crítica na crença na imagem natural do registro” (POIVERT: 2010, p. 225). Como aponta este autor, mais que uma nova categoria na arte, a fotografia contemporânea seria uma forma histórica que discute tanto o abalo 102

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na crença da verdade do índice e do documento, quanto nas noções de belo, de gênero e de narrativa. Ora, a fotografia contemporânea na arte o faz exatamente

articulando

distintos

elementos

simultaneamente.

Uma

perspectiva anacrônica das imagens evidencia isso. Tal visada não implica apenas observar a relação entre imagens (pintura e fotografia, fotografia e cinema)

e

entre

tempos,

mas

também

a

relação

entre

modelos

de

representação (mímese e teatralidade, simbologia e alegoria), que nos autoriza a pensar as imagens contemporâneas em termos de uma inatualidade ou de uma disjunção com o presente. O “retrato” funcionou, neste caso, como porta de entrada para um campo de relações que leva-nos a acolher e cruzar outras referências, inclusive de épocas anteriores, mas também os usos de tecnologias, o contexto histórico e socio-político de produção e modos de reconhecimento e visibilidade das imagens como elementos constitutivos da própria experiência do fotográfico. Ao cruzar algumas dessas referências, o que vemos se desenhar é uma complexa rede que articula ciência, tecnologia, arte e sociedade e que vai forjar, como demonstrou Benjamin (1993), nossos modos de perceber o mundo e os sujeitos e também de produzi-los e mostra-los. Um ultimo aspecto levantado pelo diálogo com imagens de outros tempos

e

de

campos

problematização

da

diferentes

própria

noção

(pintura, do

cinema,

“gênero”

na

literatura), fotografia.

é

a

Nesta

perspectiva, o retrato como gênero perde sua condição de categoria “pura” por estabelecer

relações

tensionando-as

e

com

outras

desorganizando-as.

categorias Do

ponto

e de

linguagens, vista

da

inclusive fotografia

contemporânea na arte, o retrato ajuda-nos a observar como o documental remete a jogos de referências diversas (técnicas, subjetivas, culturais, políticas e históricas), que o torna irredutível à representações dos sujeitos ou às funções sociais que lhes são atribuídas, e sim, correlato às tramas que envolvem o ver, o fazer e o mostrar em nossas sociedades.

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