Cuando el cuerpo es el lugar: tránsitos políticos en la obra de Cecilia Vicuña.
Descripción
QUANDO O CORPO É O LUGAR: TRÂNSITOS POLÍTICOS NA OBRA DE CECILIA VICUÑA1 José de Nordenflycht “Uma É a água E sua própria sede” Cecilia Vicuña2
A primeira constatação que nos apresenta a obra de Cecilia Vicuña (Santiago do Chile,
1948) no debate da arte chilena contemporânea é que: o corpo é o lugar do artista.
O particular aqui é que não se tenta determinar o corpo como suporte de obra, origem
das classificações ao redor das artes performativas. Menos ainda a tematização ilustrativa de sua presença ou ausência, tal como o vem apresentando um grupo de artistas em relação à sua sobre-‐exposição mediatizada ou à sua desaparição forçada.
Para ela o corpo é um lugar, que se ativa quando se extende a consciência, exercendo
uma articulação relacional do sujeito com o outro.
Acreditamos que isto é parte essencial sobre o que ela tem insistido sistematicamente
desde seus primeiros trabalhos até o momento atual. Daí a importância em ressarcir sua exclusão do poder legitimador da crítica de avançada e sua monumentalização pós-‐ditadura3, indo mais além à da primeira reivindicação como anomalia frente ao cânon historiográfico4,
1
Este texto foi originado na conferência homônima apresentada no Seminário Internacional Políticas del Arte en los Noventa, realizado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, de 3 a 5 de julho 2007. Reiteramos nosso agradecimento à professora da Universidade de Sao Paulo Dária Jaremtchuck, por sua hospitalidade e dedicação ao sucesso desse encontro. 2 VICUÑA, Cecilia La Wik’uña, Francisco Zegers Editor, Santiago, 1990. 3 Referimo-nos ao cânon elaborado por Nelly Richard sobre um grupo de estágio de arte crítica emergido na confrontação oblíqua e marginal à ditadura, fundamentalmente durante seu primeiro decênio, 1973-1983. Este cânon conseguiu acrescentar seu prestígio e legitimar sua produção durante o período pós-ditadura, a partir da inscrição, legitimação e institucionalização de seus agentes. 4 Aqui nos referimos à inclusão de sua obra “La pieza del hilo azul” na sala ‘Historias de Anticipación’ da exposição “Chile 100 Años Artes Visuales. Tercera Etapa 1973-2000: Transferencia y Densidad”, ‘Museo Nacional de Bellas Artes’, Santiago de Chile, outubro a dezembro de 2000.
convertendo a posta em crise deste, em um dos valores políticos suplementares que nos habilitaria o considerá-‐la no contexto de um projeto mais amplo5.
Como já comentamos nesse contexto, hoje podemos observar que a recorrência de
muitos artistas contemporâneos aos temas de valorização ambientais e patrimoniais converteu-‐se em uma nova maneira de interpelar o recorrido tópico da relação entre arte e política, entendida esta última, sobretudo em sua dimensão de prática cidadã vigilante do poder.
Daí a necessidade de rastrear a origem desta linha de desenvolvimento no sistema de
arte chileno atual através do resgate e da valorização das obras de uma artista que, por todo o resto, tem um importante reconhecimento no cenário artístico internacional, sobretudo no que se refere ao trabalho complexo de cruzamentos e interpelações entre as artes visuais e a poesia. É aí onde seu programa de trabalho inclui formatos e meios, oportunamente emergentes no debate internacional de arte contemporânea, remetendo-‐os historicamente a uma parte pouco investigada e menos valorizada das primeiras ações de arte realizadas no Chile, com uma circulação de obras em espaços não institucionais, como são as realizadas no limite litorâneo da região de Valparaíso, que, por sua vez, interpelam historicamente a transferência espontânea de modelos metodológicos que o espaço cultural anglo-‐saxão denominará land art, public art ou inclusive site-‐specific. Desde que Lucy Lippard6 converteu-‐se em cúmplice da visibilidade do trabalho de Cecilia Vicuña no contexto de um virtual ativismo político, o reconhecimento de seu trabalho dirigiu-‐se às suas origens, o que podemos remontar até meados da década de sessenta no Chile7, fato que logo se torna muito importante com a chegada do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende (1970-‐1973)8, e que logo se converterá na defesa da memória da democracia a partir de Londres, através da criação de “Artists for Democracy”9, o 5
Aqui nos referimos à nossa participação como pesquisador no projeto em curso “Arte y Política-Argentina, Brasil, Chile y España”, Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Bellas Artes, Plan Nacional de I+D, dirigido pelo Dr. Josu Larrañaga. 6 LIPPARD, Lucy Get the Message? A Decade of Art for Social Change, E.P. Dutton, New York, 1984. 7 Até o momento a mais completa revisão de seu trabalho pode ser encontrada no livro editado pela historiadora de arte Catherine de Zegher; VICUÑA, Cecilia QUIPOem/The Precarious, The Art and Poetry of Cecilia Vicuña, Wesleyan University Press, Hanover NH, 1997. 8 Momento no qual realiza suas primeiras duas exposições individuais no ‘Museo Nacional de Bellas Artes’, a primeira das quais foi recentemente revisada em uma curadoria de Alberto Madrid. Ver NORDENFLYCHT, José de “La caída del otoño” em catálogo Otoño. Cecilia Vicuña. Reconstrucción Documental Junio 1971/Agosto 2007, Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago do Chile, 2007. 9 “Artists for Democracy” foi formado em Londres em 1974 por instância de Cecilia Vicuña, junto com o crítico britânico Guy Brett,o artista de origem filipina David Medalla e oartista
que continuou em momentos sucessivos por Bogotá, e sua radicação definitiva em Nova York a partir de 1980, momento a partir do qual a crítica anglo-‐saxã tentou situá-‐la a partir dos referentes − sempre marginalizados − do feminismo10 e da poesia étnica. Será precisamente a partir de seu último projeto exposto no Chile denominado “Un Quipu menstrual” 11, onde poderemos rastrear seguramente esta arqueologia que nos remete a uma de suas primeiras obras: “El quipu que no recuerda nada”12 de 1965, o que pela primeira vez dá conta do trabalho de Vicuña com o significante fio13. O que é digno de atenção já que será o mesmo significante que será trabalhado muitos anos depois por várias artistas chilenas que tecerão sua re-‐significação de gênero em torno a ele. 14 Em “Un Quipu menstrual”, os fios são longos e grossos tufos de lã vermelha sem cardar pendurados no centro da sala, e que em seu conjunto aludem às transformações do sangue próprias ao gênero feminino. A distância de sua obra de 1965, aqui sim retoma uma lembrança, a de todas as mulheres e a de uma em particular que não conseguiu sê-‐lo, como é a “Momia del Cerro El Plomo”15. Nossa artista tem a lembrança de infância do impacto que lhe causou ver esta “relíquia” no ‘Museo de Historia Natural’, notando desde esta ocasião que a menina em questão tinha agarrado em seu pequeno punho semi-‐cerrado um pequeno pedaço de fio vermelho. britânico John Dugger. Inexplicavelmente − por enquanto, de não mediar uma pesquisa historiográfica − de novo o cânon excluí a artista chilena dessa história, ver BRETT, Guy Carnival of Perception: Selected Writings on Art by Guy Brett, Institute of International Visual Arts, London, 2004. 10 POLLOCK, Griselda (ed.) Generations and Geographies in the Visual Arts, Feminist Readings, Routledge, London & New York, 1996. 11 “Un Quipu Menstrual”, exibida no contexto da mostra coletiva “Del Otro Lado. Arte Contemporáneo de Mujeres en Chile”, ‘Centro Cultural Palacio de la Moneda’, Santiago do Chile, novembro a dezembro de 2006. 12 ZEMBORAIN, Lila “Cecilia Vicuña: el cordón”, em revista Tsé-Tsé, n°12, Buenos Aires, 2003. pág. 135 y ss. 13 Recordemos que um quipu é um dispositivo de contabilidade e transmissão de informação utilizado pelos antigos incas, que era composto por um fio central ao qual se atavam vários outros fios de forma perpendicular a esse, onde cada nó representava um signo bastante preciso. Daí que um quipu que não lembra nada mais que um paradoxo, é a sublimação desfuncionalizadora, onde o significante atua por pura presença, abrindo o signo em direção ao símbolo. 14 Várias das quais comparecerão a esta equívoca manifestação da “arte mujeril” –Richard dixit- convocada pela curadoria de Guillermo Machuca na famosa exposição “Del otro Lado. Arte Contemporáneo de Mujeres en Chile”, na qual Cecilia Vicuña participa contrariando várias polêmicas com o curador e algumas de suas colegas convocadas. Uma informação mais completa sobre as circunstâncias desta mostra pode ser vista na web da artista; www.ceciliavicuna.org. 15 Esta é uma pequena jovem que pertenceu a uma das tribos indígenas originárias do Chile que foi encontrada em meados do século XX em estado de mumificação natural por congelamento a vários milhares de metros de altura no pico do Cerro El Plomo na Cordilheira dos Andes do Chile Central. As hipóteses dos arqueólogos convergem a uma explicação de tipo ritual, o que permitiu a conservação deste corpo em tais condições extraordinárias.
Voltar ao lugar da múmia, isto é subir o morro, será desde este momento uma obsessão e prática habitual de nossa artista. De fato será nesta mesma Cordilheira dos Andes, à Vista do Cerro el Plomo, onde a artista depositará seu voto simbolicamente, como uma oferenda, no dia das eleições presidenciais que deram a vitória à primeira presidenta mulher da história do Chile: Michelle Bachelet. Essas ações assíncronicas – retorno da lembrança de infância − e sincrônicas – conjuntura política − estarão na origem da obra citada, e por certo serão documentadas através de um registro em vídeo exibido por um monitor colocado no chão da sala e aos pés do quipu.
A partir desta obra decola a segunda constatação que introduz a obra de Cecilia Vicuña
no debate da arte chilena contemporânea: o lugar é o corpo da terra.
Novamente poderíamos recorrer às classificações no curso do cânon historiográfico e
pela via da analogia dependente sair a buscar aqui nomes convenientemente legitimadores, reiteramos land art, public art, ao que se poderia somar earth work. Estas classificações, entretanto, não seriam exatas, isto porque Cecilia Vicuña as conhecerá somente depois de haver começado a trabalhar a partir do profundo convencimento, e não simples intuição, de que os vínculos com o meio ambiente não se estruturam mais que no reconhecimento do sujeito com outro sujeito, e esse outro sujeito é o corpo da terra manifestado em um lugar concreto.
Pelo contrário, se entenderão aqui como lugares no sentido que lhe dá De Certau, isto
é “histórias fragmentárias e retiradas, passados roubados à legibilidade pelo próximo, tempos amontoados que podem retirar-‐se, mas que estão ali mais como relatos à espera”16 Esse outro que a alteridade submete à experiência do exílio será convertido por Cecilia Vicuña em um nós, onde o lugar se converta no corpo da terra. Pelo anterior, a analítica dos trânsitos políticos em sua obra deslizam a partir de uma interpretação bio-‐política, se concordarmos que esta pode definir-‐se sumariamente como o controle que exerce o poder sobre o corpo individual em um conjunto social, sua posta em crise estaria marcada como a possibilidade de converter esse fragmento em um corpo social, onde o coletivo atuaria por compensação do nível de consciência que se tenha daqueles fatores que ameaçam seu potencial de resiliência. A urgência de “Un Quipu menstrual” está marcada pela iminente depredação em nível social, a partir de uma lavagem de sangue onde lhe é negada a água, pelo que o caso de
16
DE CERTEAU, Michel La Invención de lo cotidiano. Artes de Hacer, Universidad Iberoamericana, México D.F., 2000. Pág. 121.
‘Pascua Lama’17 transcende a denúncia tematizadora e se converte em um compromisso com o lugar. O lugar do sangue transmutado em água, finalmente condutora do corpo da obra. Enquanto isso seguem ressoando as palavras da artista no encontro de sua interlocução com outra mulher, aparecendo o mito de origem onde o saber interroga o poder: “Querida Michelle: No dia da eleição subi na cordilheira e fiz um grande ‘Quipu Menstrual’ a 2000 metros de altura, em um morro em frente ao Plomo. Um quipu dedicado a você, a seu triunfo, para que você e as mulheres recordássemos a conexão entre o sangue e a água. Sonhei que você seria a consciência dessa relação. (…) Agora estou lendo a história de Pascua-‐Lama e os acordos que o Chile assinou antes de você, autorizando a destruição dos glaciais e compreendo com o sangue que ao colocar meu voto na cordilheira e não nas urnas eu estava sonhando em reverter a ordem do mundo. Sonhando que seu novo governo e sua comissão do meio ambiente defenderiam a água e o bem-‐estar das pessoas e não as companhias mineradoras. Quem pode acreditar que uma companhia mineradora estrangeira cuidará de nossa água? (…) A vida é a água, e a água é a memória. Pela água viveram e morreram nossos ancestrais. Pela água viverão os que vêm. Mas se o cianureto se infiltrar nos vales, no ar e na água, essa será a memória que perdurará. Durante séculos cada mulher que se atreveu a escutar e a falar a partir do amor foi perseguida. Durante séculos temos nos calado frente ao abuso para sobreviver, e, 17
Pascua Lama é um projeto de desenvolvimento minerador que consiste na exploração a céu aberto de uma jazida de minerais de ouro, prata e cobre, e seu processamento para obter como produtos metal doré (ouro, prata) e concentrado de cobre. Localizado na Cordilheira dos Andes, sobre o limite internacional chileno-argentino, a uns 150 km ao sudeste da cidade de Vallenar, Comuna de Alto del Carmen, Provincia de Huasco, III Región, Chile. No local de processos o mineral será submetido a operações de trituração secundária, moagem e lavagem. O mineral denominado refratário será processado mediante flutuação convencional para obter concentrados de cobre. O denominado não-refratário, assim como os detritos da flutuação, serão processados mediante lixiviação com cianureto de sódio, precipitação com zinco e refinação para obter metal doré. Para maior informação indicamos aos grupos em conflito, a empresa mineradora Barrick (www.barrick.cl/proyectos/pascua-lama_informacion.php) e a sociedade civil organizada (www.noapascualama.org).
entretanto você está aí! Quem escutará, senão a dor dos que perderam a terra e a água? (…) Você tem a possibilidade de voltar a conectar o sangue e a água. Uma oportunidade única na história do Chile: libertar-‐nos para sempre da vergonha colonial! Cecilia Vicuña Nova York, 20 de Maio 2006” BIBLIOGRAFIA BRETT, Guy Carnival of Perception: Selected Writings on Art by Guy Brett, Institute of International Visual Arts, London, 2004. DE CERTEAU, Michel La Invención de lo cotidiano. Artes de Hacer, Universidad Iberoamericana, México D.F., 2000 LIPPARD, Lucy Get the Message? A Decade of Art for Social Change, E.P. Dutton, New York, 1984. NORDENFLYCHT, José de “La caída del otoño” em catálogo Otoño. Cecilia Vicuña. Reconstrucción Documental Junio 1971/Agosto 2007, Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, 2007. POLLOCK, Griselda (ed.) Generations and Geographies in the Visual Arts, Feminist Readings, Routledge, London & New York, 1996. RANCIERE, Jacques El viraje ético y estético de la política, Editorial Palinodia, Santiago de Chile, 2005. VICUÑA, Cecilia La Wik’uña, Francisco Zegers Editor, Santiago, 1990.
VICUÑA, Cecilia QUIPOem/The Precarious, The Art and Poetry of Cecilia Vicuña, Wesleyan University Press, Hanover NH, 1997. ZEMBORAIN, Lila “Cecilia Vicuña: el cordón”, em revista Tsé-‐Tsé, n°12, Buenos Aires, 2003.
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