Análise de \"O estalo\", de Luís Dill

September 24, 2017 | Autor: Gabriel Machado | Categoría: Manuel Rivas, Adolescentes, Resistência, Alfredo Bosi, Literatura Jovem, Luís Dill, O estalo, Luís Dill, O estalo
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

Análise de O estalo, de Luís Dill

Aluno: Gabriel Machado Rodrigues da Silva Disciplina: Literatura Infantojuvenil em Língua Portuguesa – Módulo II (2013) Professora: Nilma Lacerda

O presente trabalho visa analisar o livro O estalo, de Luís Dill, destacando os aspectos sociais e de identidade, a construção dos personagens e da trama e as temáticas da resistência e da insurgência. Os autores utilizados serão Antonio Candido, Alfredo Bosi, Manuel Rivas, Cecília Meireles e Monteiro Lobato. A obra se insere na Coleção Metamorfose, que aborda uma grande variedade de temas relacionados com o mundo dos adolescentes e dos jovens – cotidiano, convivência, descobertas, transformações, despertar para o amor –, buscando a identificação e a reflexão.1 Ou seja, seria um texto já escrito para esse público, e não algo que acabou virando foco de interesse dele. Desse jeito, sua linguagem, temática e projeto foram pensados nessa direção. As ilustrações de Rogério Coelho dão o tom caótico, fragmentário, remetendo ao desabamento que é o estopim da história e unindo diversos elementos díspares, entre objetos e falas dos personagens. A inovação fica também por conta do escritor, que cria uma trama apenas com diálogos, aspecto singular que será analisado mais à frente. Autor de cerca de trinta livros, a maioria para o público jovem, Luís Dill trouxe para suas obras o caráter atual, cotidiano, ágil da sua profissão de jornalista. Em uma entrevista, ele diz que gosta de explorar formas alternativas de contar uma história e que todos os personagens, “mesmo os vilões”, têm um pouco dele mesmo. Entre seus escritores preferidos estão W. Somerset Maugham e Erico Veríssimo, em especial As aventuras de Tibicuera.2 Foi finalista do Jabuti e quatro vezes selecionado para o Programa Nacional Biblioteca da Escola, além de ter ganhado o prêmio Açorianos de Literatura Juvenil, e de Literatura Adulta na categoria “Contos”. Contudo, Dill não gosta de classificações: Não vejo grandes diferenças entre literatura juvenil e literatura adulta. Sequer gosto dessas segmentações. Para mim é tudo literatura. O que tomo como regra para mim é evitar palavrões e cenas muito explícitas em termos de sexo e de violência quando escrevo livros destinados aos jovens. Penso que o gênero requer ritmo, boa estrutura narrativa, ação e, sobretudo, qualidade. 3

O autor, então, já pensa em alguns elementos para construir a história, tendo em vista o público-alvo. O estalo realmente segue as regras do que se é evitado, mas foge um pouco das exigências, já que não há ação; pelo contrário, os personagens se encontram parados, apenas conversando, e o rimo é lento, de espera, bem diferente de 1

Disponível em: www.editorapositivo.com.br/editora-positivo/literatura/metamorfose.html. Acesso: 21/09/2013. 2 Disponível em: http://palomaviricio.blogspot.com.br/2013/04/entrevista-com-o-escritor-Luís-dill.html. Acesso: 21/09/2013. 3 Disponível em: www.revistasamizdat.com/2009/09/entrevista-com-luis-dill.html. Acesso: 21/09/2013.

uma trama comum jovem. E, como já foi falado, não existe narrador, mas, é claro, os diálogos configuram uma estrutura narrativa, pois por meio deles se conta uma história fictícia: os personagens são a única fonte de informação para o leitor. Por isso, é importante aqui discorrer sobre eles e seu relacionamento. Os protagonistas chamam-se Rui e Júlia e pertencem a universos sociais diferentes. Ele está em um condomínio caro e restrito, que é apenas a casa de praia, e recebe tudo da família; ela vive em uma residência alugada de 2 quartos em uma vila e tem um emprego em uma loja para se sustentar. Ambos possuem relações familiares problemáticas, fragmentadas, com membros distantes emocional e fisicamente. Os pais de Rui se preocupam mais com o trabalho do que com ele, e Júlia mal vê o pai (que só chama pelo nome, Clemente) e não possui um bom relacionamento com os três meiosirmãos, cada um filho de um homem diferente. A menina destaca-se por características como futilidade (padrão de beleza a ser seguido) e desejos de fama e vingança, (auto)vitimizando os pobres. Sua principal influência é a cantora Fergie, da banda Black Eyed Peas, e seu nome foi colocado em homenagem a uma personagem da novela “Dancin‟ Days”, uma ex-presidiária que lutava para recuperar a filha e o seu lugar na sociedade. Ela vê em Rui a figura do garoto rico e inteligente, que sabe tudo, não à toa lhe faz perguntas o tempo todo e admira suas palavras “difíceis” e o inglês correto, que denotariam sua origem. Como Roland Barthes assinala, a linguagem, a língua, aparece como “o objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana” (p.7). Já Júlia adooora utilizar palavras alongadas para enfatizar o sentido, com um jeito bem adolescente, e canta em inglês sem saber o que significa. De qualquer forma, os dois usam a mesma linguagem jovem, coloquial, com gírias. Luís Dill procura fugir dos estereótipos ao juntar essas duas pessoas em um ambiente confinado. Porém, o que se vê ainda são “cúmulos de artifício”, que a sociedade transforma em “sentidos inatos; isto é, cúmulos de natureza” (Barthes, p.18): o pobre fútil, que não sabe muito, e o rico inteligente, que se aproveita de sua condição para ficar com as garotas. Nessa situação, “a fôrma social é uma fonte de equívoco e sofrimento” (Bosi, p.26): Júlia se coloca como a pessoa desprivilegiada que deve dar o troco no mundo, e Rui, apesar dos protestos, é “pintado” como uma espécie de vilão, que não se importa com os desvalidos e só pensa em proteger o próprio pai, que pode ter provocado a queda do prédio que os soterrou.

Os dois jovens tentam encontrar algo que conecte seus mundos para que consigam manter um diálogo que fortaleça sua luta na superação da situação-limite em que se encontram. Eles acabam achando uma identificação em seus medos, descobrindo que sua solidão é a solidão do outro. Contudo, ainda ocultam a verdade um do outro, temerosos de não serem aceitos ou para amenizar a situação. São preocupações referentes ao presente, de continuarem em contato ali embaixo dos escombros, de saber a hora e as dores de cada um, mas também ligadas ao futuro, de quando haverá o resgate, de como Rui apresentará Júlia aos pais, mesmo sem nem haver um namoro, ou melhor, como será o relacionamento dos dois após aquilo tudo. O tema musical “Amanhã”, da novela que deu o nome a Júlia, conecta-se bem a essas circunstâncias, porque desvenda a esperança num amanhã possível e cheio de mudanças positivas, “um lindo dia, da mais louca alegria”. Assim como os jovens que aguardam o amanhecer de um novo dia para serem resgatados e continuarem suas vidas. As angústias são muitas e precisam de soluções rápidas, em especial as de Júlia, que, como mulher, extravasa mais, revela seus sentimentos, ao contrário de Rui, que as guarda mais para si, pois, segundo a sociedade, seria mais próprio do homem reprimilas. De todo modo, em geral as relações são estimuladas a serem superficiais. Monteiro Lobato dizia a respeito do estudo de almas humanas que “a sociedade esconde o homem em carne viva, todo instintos crus. A burguesia não tem alma. Educação e riqueza são máscaras de desindividualização” (p.42). São críticas à homogeneização dos seres sociais, principalmente da elite; todos são condicionados à automatização. Rui e Júlia são personagens próximos do público, que podem provocar a adesão afetiva e intelectual, pelos mecanismos de identificação, projeção, transferência. Assim, o leitor pode aceitá-los com mais facilidade e participar do pacto ficcional, suspendendo qualquer tipo de descrença. Esse processo de conexão é o pilar da leitura e ajuda a formar a identidade de quem lê. Nesta análise dos personagens e da narrativa, será utilizado como base o texto “A personagem do romance” (1972), de Antonio Candido, contido em A personagem de ficção.4 O autor levanta a questão do contraste entre a continuidade relativa da percepção física e a descontinuidade da percepção espiritual. Na relação entre Rui e Júlia, percebe-se essa distinção, especialmente se comparando o momento antes e depois do desabamento. No início, o que mais movia era a atração física, o domínio 4

As próximas referências de páginas (até quando se começa a falar de Bosi) estarão relacionadas a esse texto, exceto quando mencionado outro livro.

finito, superficial. À medida que se conhecem durante a conversa, que culminará em revelações, eles adentram o campo do infinito, da natureza oculta, que não pode ser apreendida “numa integridade que essencialmente não possui” (p.55-56). É um conhecimento fragmentário, em que cada um tenta estabelecer uma interpretação do outro. O escritor cria algo mais coeso, menos variável que a realidade, que constitui a lógica da personagem, mas isso não impede que ele a manipule de acordo com sua vontade, delimitando e encerrando, “numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro” (p.58). Assim, Luís Dill se vale da estrutura do diálogo (inclusive na biografia da orelha), da ausência da narração, para organizar sua trama. Segundo o romancista E. M. Forster, citado por Candido (1972), uma personagem nos parece real quando “o romancista sabe tudo a seu respeito” (p.66). E é assim que o leitor se sente com relação ao autor de O estalo, que vai revelando aos poucos os detalhes dos protagonistas e da própria história. Acompanha-se o livro aguardando falas esclarecedoras que revelem afinal o que aconteceu e quem são aquelas pessoas. O interessante nesta obra é que só se sabe o que os personagens falam – nem dos pensamentos temos conhecimento – e fica-se “refém” de suas verbalizações. Ao contrário do que diz Forster em Candido, este romance não dá ao leitor uma sensação de poder, proporcionando a experiência de “uma raça humana mais manejável, e a ilusão de perspicácia” (p.66). Apesar de só ele conseguir acompanhar tudo, já que ninguém sabe da presença de Rui e Júlia naquele lugar, tudo lhe é obscuro e o narrador que possui o controle. O quebra-cabeça vai se montando aos poucos. “O caos originário vai tomando forma, se ordenando, e o leitor também sente que o caos interior ganha ordem e a mensagem atua” (Candido, 2004, p.178). Rui e Júlia não são tão complexos, mas também não são facilmente delimitáveis nem compreendidos apenas por um observador superficial. Ainda existem neles “certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério” (p. 60). Estão mais próximos dos seres complicados, dos personagens de natureza e esféricos, que podem surpreender e convencer. Trazem em si a imprevisibilidade da vida (p.60-63). Da mesma forma, o livro oscila entre os aspectos sociais e psicológicos, enfocando a divisão de classes e o conflito de identidades, logo a natureza do personagem explorada fica nesse meio de caminho (p.74). Ao fim da história, ainda resta a incógnita do rumo que os adolescentes tomarão. A visão do leitor ainda é

fragmentada e não apreendemos todos os elementos que integram os personagens (p.64). Em toda essa situação-limite, veem-se problemáticas importantes na atualidade, como a corrupção, a divisão social, o nepotismo, os relacionamentos jovens, a falta de comunicação. Júlia conta do esquema de roubo de casas em que o marido da patroa e a polícia estão envolvidos. Rui não quer admitir processar o pai pelo desmoronamento (se bem que nem foi provado que a culpa é dele). Catástrofes como a retratada no livro costumam ser fruto da negligência, de subornos, da má-fé e há os casos do Palace II e dos prédios no centro do Rio de Janeiro e na zona leste de São Paulo, entre outros. Exemplos de resistência também existem muitos, como o do terremoto no Haiti e o do soterramento dos chilenos em uma mina. E a resistência é justamente um dos elementos principais de O estalo. Segundo Alfredo Bosi, “o seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito” (p.11). Em um primeiro momento, reconhece-se a resistência puramente física, já que Rui e Júlia precisam sobreviver por várias horas embaixo de escombros, sentindo dores, sem água, comida, luz. E sem que alguém saiba que estão ali. Porém, o movimento pode também ser realizado pela linguagem, pela própria literatura. A estética da obra leva à ética, à política, já que nenhum artista deixa de expor valores e antivalores por meio de seus personagens. É um processo interno ao foco narrativo, “uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico” (p.26). A resistência está em focar a narrativa em dois adolescentes, partindo apenas de suas vozes, provocando o leitor a pensar. Os personagens não são sujeitos dados, mas seres em formação, inconformados. Mesmo limitados e submissos a uma desgraça, questionam, buscam razões, conversam. Há uma tensão que lhes dá determinação. Além disso, a resistência é um processo inerente à escrita (p.13): a forma diferenciada só em diálogos opõe-se ao convencionalismo. É a libertação de uma prática de escrita, no plano das opções narrativas e estilísticas (p.20). Em O estalo, a escrita ficcional tem “a mesma substância cognitiva e ética da linguagem de comunicação, que é o nosso pão cotidiano” (p.19). É uma transcrição da linguagem oral, popular. Essa inovação é assinalada por Rivas: “Frente aos prejuízos que muitas vezes tem de aturar, sobretudo um suposto reducionismo da realidade, [...] a literatura para gente nova tem cada vez mais essa condição de inovadora, de voz insurgente, nas formas e nos âmbitos” (p.6).

Por último, a resistência opera no combate à incomunicabilidade nas relações, na defesa da verbalização. Rui e Júlia são forçados a se comunicar, e por meio da conversa conseguem se consolar e ter certeza de que um tem a companhia do outro: as reticências representam o silêncio angustiante. As palavras têm poder transformador. O que se vê é que, no mundo jovem, mesmo com toda a tecnologia, ainda existe o problema da comunicação, dentro da cultura massificada e atomizada do pós-modernismo (Idem): as novelas, os padrões de fama e beleza, o individualismo. Se estivessem em uma situação comum, eles não se abririam, não contariam tudo o que contaram. Como destaca Bosi, “o que é calado no curso da conversação banal, por medo, angústia ou pudor, soará no monólogo narrativo, no diálogo dramático. E aqui são os valores mais autênticos e mais sofridos que abrem caminho e conseguem aflorar à superfície do texto ficcional” (p.27). Há a necessidade de se botar para fora o que se sente, as verdades, de ouvir e ser ouvido. A ficção resiste à mentira; os personagens não podem se esconder, mas dão indícios, são coerentes. Eles são “menos livres e a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida” (Candido, 1972, p.76). O caos do desabamento é superado pela humanização, pela articulação de palavras, pela revelação do que estava escondido (Candido, 2004, p.177). Como diz a epígrafe do livro: “Falamos tudo e ainda/ há o que/ silenciar” (Carlos Vogt apud Dill, p.4). Porque há muito oculto na alma. Toda a catástrofe é uma alegoria do mundo que desmorona, da realidade que se avista como não se imaginava. É necessário que os jovens encarem os fatos, verbalizem. O estalo é acordar para o outro, para si mesmo. E Cecília Meireles percebe isso como se tivesse lido a obra: “precisamos pensar e exprimir o pensamento. Porque precisamos ser lúcidos e exatos. O mundo sofre por uma imperfeita comunicabilidade dos homens” (p.154). Para sobreviver, não se poderia ceder à pura subjetividade, que levaria ao desespero e à loucura, ou à mera acomodação ao mundo externo, à discriminação, indiferença, injustiça, que seria uma forma de morte. Soterrados, eles devem ficar na fronteira indômita. Uma difícil e intensa fronteira de transição, onde se pode ser livre mesmo estando preso: não limitado pelas demandas próprias nem pelas condições do mundo externo (Montes, p.51-52). Rui e Júlia desejam escapar da “estúpida conjura para separar os seres humanos desde a infância” (Rivas, p.12). Eles querem pensar mais além, querem sonhar. Diz Manuel Rivas que “todos os direitos humanos são importantes mas se nos amputassem o direito a sonhar perderíamos todo o resto” (p.1). Assim como Candido defende o direito à literatura, que

dá forma aos sentimentos e à visão do mundo, desmascara a privação social e espiritual (2004, p.186). É nos jovens que aparece a energia insurgente, que não pode estar subordinada nem receber ordens e dominar: almejam um futuro melhor na família, na vida. Também surge nos escritores, que são corpos abertos, expressando muitas vozes. Aqui, os personagens são as vozes do autor. Uma forma de insurreição, de não se conformar com um sistema fechado (Rivas, p.2). São as manifestações múltiplas dentro de cada um: os personagens (e as pessoas na vida real) manifestam comportamentos diversos, suas várias máscaras e identidades. O estalo é uma literatura dirigida aos que “estão vivos antes de morrer”, aos que têm necessidade de questionar, de viver dignamente, não apenas passar pela vida mecanicamente. Rui e Júlia estão prostrados, mas querem se pôr de pé, se erguer, se elevar. Querem cores para o futuro, se pôr em marcha frente ao desconhecido, porque algo terrível pode ocorrer: o abandono, a impossibilidade do encontro, da harmonia. (p.3-4). O que define sua condição humana é essa capacidade para lutar contra a injustiça, o desafeto, a perda, a subtração. Segundo Rivas, o abandono é o maior medo humano (p.7,10). Vê-se na angústia de Rui e Julia por não receberem afeto dos familiares, na busca superficial dos relacionamentos – mas que ao mesmo tempo os quer duradouros –, na vontade de aparecer e ser lembrado. Como já se viu, a produção de Luís Dill tem esse caráter insurgente porque não está aprisionada ou restrita a conceitos fechados, mas tem algo de novo a dizer. É aquela que comunica “um tipo de informação essencial sobre o mistério do ser humano que não nos chegará de outro jeito” (p.9). Ele não se contenta com afirmações impróprias como “não há nada novo debaixo do sol”, “tudo está escrito”, “tudo já foi inventado”, citadas por Rivas. Diante da abundância de títulos do mercado, a tentação é grande de se falar isso. Porém, diz Cecília Meireles, tantos livros não significam literatura de fato (p.152). E completa Lobato: “a „quantidade‟ sempre desprezou a „qualidade‟” (p.234). Não se pode ceder à competição, à pressão aterradora, de efeito corrosivo e intimidador (Rivas, p.6), sob pena de se perder a singularidade. E a escrita é sempre um comprometimento. Não se poder perder a própria identidade em prol de mais vendas, mais destaque midiático. A literatura infantojuvenil deve humanizar pelo exercício da reflexão, por penetrar nos problemas da vida. Deve tornar o leitor mais compreensivo e aberto para a sociedade, o semelhante (Candido, 2004, p.180). É grande a tendência de transmitir os pontos de vista que o adulto considera mais úteis à formação dos leitores, de acordo com a linguagem e o estilo que

acredita serem adequados, porém o mais acertado seria submeter os livros ao uso e opinião do público-alvo. E fazê-los entender que, ao contrário do que muitos supõem, a literatura não é um passatempo, mas uma nutrição (Meireles, p.29,30,32). Lobato já defendia a linguagem mais simples, longe das “camilices” – em referência ao estilo do escritor português Camilo Castelo Branco. Ele combatia as palavras antiquadas (que podiam encher de “arqueologia a atualidade da língua”) e a “língua desliteraturizada”, dizendo: “a desgraça da maior parte dos livros é sempre o excesso de „literatura‟” (p.46,233). Naturalmente, “literatura” é a forma irônica de o autor chamar ao rebuscamento e aos floreios. Algo bem distante da “leveza e graça de língua” de O estalo, que busca se aproximar do leitor, do cotidiano. É o milho que se dá ao galo, em vez de pérola (p.234). Além disso, esse ritmo coloquial, em diálogo, pode até lembrar as histórias primordiais, tradicionais, da humanidade, um caminho de comunicação humana pelo qual “o mundo parece tornar-se fácil, permeável a uma sociabilidade que tanto se discute” (Meireles, p.77). A harmonia e fraternidade que tanto se procura. Uma narrativa rica em conteúdo humano, em sensibilidade à arte literária, que não menospreza o gosto dos jovens (p.122). Agora, findos o livro e a análise, pode ser válido refletir sobre uma afirmação da escritora infantil Luísa Ducla Soares: “Talvez mais importante que ler um livro [...] seja compartilhar o encanto da língua e de uma narrativa com alguém.”5 Verbalizar nunca é demais.

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Entrevista “As crianças têm o direito de brincar. E as pessoas crescidas também...” (p.93). Disponível em: http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/documentos/vo_dossier_luisa_ducla_soares_e.pdf. Acesso: 22/09/2013. Originalmente publicada no site da Associação de Professores de Português (www.app.pt), no projeto Escritores #na_tua_escola (outubro de 2002).

Bibliografia BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada dia 07 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix, 2007. BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: ______. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 4.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004. ______. A personagem do romance. In: ROSENFELD, Anatol et alii. A personagem de ficção. 3.ed. São: Paulo: Perspectiva, 1972. DILL, Luís. O estalo. Curitiba: Positivo, 2010. LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 11.ed. 2o tomo. São Paulo: Brasiliense, 1964. MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. MONTES, Graciela. La frontera indómita. In: ______. La frontera indómita. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1999. RIVAS, Manuel. A literatura infantil e xuvenil como poesia insurxente. In: 32 o Congresso Internacional de IBBY. Santiago de Compostela, 8-12 set. 2010.

Sites www.editorapositivo.com.br/editora-positivo/literatura/metamorfose.html http://palomaviricio.blogspot.com.br/2013/04/entrevista-com-o-escritor-Luís-dill.html www.revistasamizdat.com/2009/09/entrevista-com-luis-dill.html http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/documentos/vo_dossier_luisa_ducla_so ares_e.pdf

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