5º Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX)
19 a 22 de agosto de 2014 Massayó, Comarca das Alagoas
ANAIS ELETRÔNICOS Maceió, Edufal 2014
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
ISSN 2358-4912 Universidade Federal de Algoas Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes Curso de História Grupo de Estudos América Colonial
5º Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina, Séculos XVI ao XIX 19 a 22 de agosto de 2014
ANAIS ELETRÔNICOS
Maceió, Alagoas – Brasil 2014
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COMISSÃO ORGANIZADORA Alex Rolim Machado Antonio Filipe Pereira Caetano Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo Célia Nonata da Silva Dimas Bezerra Marques Gian Carlo de Melo Silva Lanuza Maria Carnaúba Pedrosa COMISSÃO CIENTÍFICA Acácio Jose Lopes Catarino – Universidade Federal da Paraíba Antonio Filipe Pereira Caetano – Universidade Federal de Alagoas Fátima Martins Lopes – Universidade Federal do Rio Grande do Norte George Félix Cabral de Souza – Universidade Federal de Pernambuco Gian Carlo de Melo Silva – Universidade Federal de Alagoas Kalina Vanderlei Silva – Universidade de Pernambuco Maria Emilia Monteiro Porto – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Márcia Eliane Alves de Sousa Mello – Universidade Federal do Amazonas Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz – Universidade Federal do Maranhão Ricardo Pinto de Medeiros – Universidade Federal de Pernambuco Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará Suely Creusa Cordeiro de Almeida – Universidade Federal Rural de Pernambuco SECRETARIA DO EVENTO Gian Carlo de Melo Silva – Universidade Federal de Alagoas ANAIS ELETRÔNICOS Antonio Filipe Pereira Caetano – Universidade Federal de Alagoas Créditos da imagem da capa: Praefecturae Paranambucae pars Meridionalis – Gaspar Barleus, c.1700. CATALOGAÇÃO NA FICHA Encontro Internacional de História Colonial: (5: 2014: Maceió, AL). Anais do V Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014 [recurso eletrônico], Universidade Federal de Alagoas, Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, Curso de História, Maceió: Ufal, 2014. ISSN: 2358-4912 1.. História; 2. Encontro; 4. Cultura; 5. Escravidão; 6. Poder
CDU: 981(063)
Observação: os assuntos, argumentos, correções e questões tratados nos textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. Além disso, os textos estão organizados em ordem alfabética dos autores.
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ÍNDICE Apresentação.............................................................................................................................................................................. .... 17 Progamação ..................................................................................................................................................................................... 18 AS DIVERSAS FACES DA RECLUSÃO FEMININA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENÇA DE ESCRAVAS E SERVAS NO CONVENTO DA SOLEDADE (SALVADOR, 1753-1805) Adínia Santana Ferreira ..................................................................................................................................................................... 19 A FORMAÇÃO DOS SECRETÁRIOS NA ARTE DE ESCREVER CARTAS: UM MANUAL PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII Adriana Angelita da Conceição .......................................................................................................................................................... 25 HOMENS DE ESPADA E DE PENA: COMANDANTES DE FRONTEIRA E CONTROLE DE CIRCUITOS DE COMUNICAÇÃO NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (1790-1812) Adriano Comissoli ............................................................................................................................................................................... 32 GUERRAS E MISSÕES NO EXTREMO NORDESTE DO BRASIL: A AÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE CONQUISTA Adriel Fontenele Batista ...................................................................................................................................................................... 38 A GUERRA DOS TAMOIOS EM ESCRITOS JESUÍTICOS: A TOMADA DO FORTE COLIGNY Agnes Alencar ..................................................................................................................................................................................... 44 ENTRE A LEI E A REALIDADE: A ADMINISTRAÇÃO DE LUÍS DA CUNHA MENEZES NA CAPITANIA DE GOIÁS (1778-1783) Alan Ricardo Duarte Pereira .............................................................................................................................................................. 51 CURADO E OS FERIDOS DE OLINDA: A CÂMARA ENTRE A CONIVÊNCIA E O CONFLITO Aledson Manoel Silva Dantas ............................................................................................................................................................. 59 ATIVIDADES CIENTÍFICAS NA CAPITANIA DE SÃO PAULO (1796-1823) Alex Gonçalves Varela ........................................................................................................................................................................ 66 O GOVERNO DE ANTÓNIO DE ALBUQUERQUE NO MARANHÃO: ELITES LOCAIS E TRÁFICO DE ESCRAVOS INDÍGENAS (1690-1701) Alexandre de Carvalho Pelegrino ........................................................................................................................................................ 71 PODER LOCAL, ELITE E FAMÍLIA COLONIAL NA VILA DE CIMBRES: NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS OCORRIDAS NOS SERTÕES DE ARAROBÁ DE PERNAMBUCO (1762-1822) Alexandre Bittencourt Leite Marques ................................................................................................................................................. 78 AS CAPITANIAS DE ITAPARICA E TAMARANDIVA E DO PARAGUAÇU: ADMINISTRAÇÃO E PODER NA AMÉRICA PORTUGUESA (1552-1592) Alexandre Gonçalves do Bonfim .......................................................................................................................................................... 86 O PROBLEMA DA FRONTEIRA EQUATORIAL NA ÉPOCA DA MONARQUIA HISPÂNICA (16001640) Alírio Cardoso..................................................................................................................................................................................... 92 O DEGREDO NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA (1680-1777) Aluísio Gomes Lessa ............................................................................................................................................................................ 96
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ISSN 2358-4912 OS PALIMPSESTOS DA LEI E AS POTENCIALIDADES DAS FORMAS E DO CAMPO DE UMA HISTÓRIA DA JUSTIÇA (MINAS GERAIS, SÉCULO XVIII) Álvaro de Araujo Antunes ................................................................................................................................................................. 103 VALE DE LÁGRIMAS: MULHERES RECOLHIDAS NO SERTÃO DE MINAS GERAIS (c.1750-c. 1716) Ana Cristina Pereira Lage ................................................................................................................................................................. 112 AS ESTRATÉGIAS DA FAMÍLIA DE ANTÔNIO FERNANDES D’ELVAS – HOMENS DE NEGÓCIOS, COROA ESPANHOLA E INQUISIÇÃO Ana Hutz ............................................................................................................................................................................................. 119 A CIDADE NA IMAGEM: O PERCURSO DA VILA DE SÃO FRANCISCO-AL NO ACERVO ICONOGRÁFICO DO GRUPO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro ...........................................................................................................................................127 CONFLITOS ENTRE TERRA E MAR: QUERELAS PELA POSSE DE LOCALIDADES PESQUEIRAS NOS SÉCULOS XVII E XVIII NA CAPITANIA DO RIO GRANDE Ana Lunara da Silva Morais ............................................................................................................................................................. 132 JOÃO LOURENÇO, O “PRÍNCIPE ENCOBERTO”, LIBERTADOR DOS CATIVOS. PROFETISMO, ESCRAVIDÃO E TRÂNSITOS CULTURAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (MINAS GERAIS, SÉC. XVIII) Ana Margarida Santos Pereira ......................................................................................................................................................... 140
A FAMÍLIA ESCRAVA EM PEQUENAS UNIDADES PRODUTIVAS: DIFERENTES SIGNIFICADOS E ESTRATÉGIAS PARA SENHORES E CATIVOS – BORDA DO CAMPO – MINAS GERAIS- SÉCULO XVIII E XIX Ana Paula Dutra Bôscaro .................................................................................................................................................................147 MOBILIZAÇÃO DE NEGROS EM SERVIÇOS MILITARES EM MINAS COLONIAL: NOTAS DE PESQUISA Ana Paula Pereira Costa ................................................................................................................................................................... 154 O GADO EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII Anderson Pereira ................................................................................................................................................................................ 161 O “SERVIÇO DAS ARMAS”: PATENTES E MILITARES NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB O A\REINADO JOSEFINO (1750-1777) André Fellipe dos Santos..................................................................................................................................................................... 167 A ATUAÇÃO DO OUVIDOR LUÍS FERREIRA DE ARAÚJO E AZEVEDO NOS SEQUESTROS DOS BENS DE INCONFIDENTES MINEIROS: O CASO DE HIPÓLITA JACINTA TEIXEIRA DE MELO André Figueiredo Rodrigues .............................................................................................................................................................. 174 INSERÇÃO PORTUGUESA NA VILA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE PARANAGUÁ (18001830): O CASO DOS AGRICULTORES André Luiz Cavazzani ........................................................................................................................................................................ 181 RAREFEITA TRAJETÓRIA DO MAMELUCO SIMÃO ROIZ: DAS “TEIAS DE FALSOS ENGANOS” À PRISÃO INQUISITORIAL (1587-1593) Andreza Silva Mattos......................................................................................................................................................................... 187 CONVERSÃO NOS CAMINHOS DE DENTRO: ENCONTROS DOS KIRIRI E JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1660-1699) Ane Luíse Silva Mecenas Santos ...................................................................................................................................................... 193 REFORMAS EDUCACIONAIS E AS ‘LUZES’ EM PORTUGAL Antonio Cesar de Almeida Santos...................................................................................................................................................... 201
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ISSN 2358-4912 CAPITÃES DO SERTÃO: INTERESSES, CONFLITOS E DOMINAÇÃO Antonio José de Oliveira ................................................................................................................................................................... 208 O BASTIÃO DA CONQUISTA: A FORTALEZA DOS REIS MAGOS NO PERÍODO SEISCENTISTA Arthur Gabriel Frazão Bezerra Alves ............................................................................................................................................... 214 REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA DA ILHA DE SANTA CATARINA (1777-1778) Augusto da Silva ................................................................................................................................................................................ 221 O OLHAR DE TRÊS LUSO-AFRICANOS NA “GUINÉ DE CABO VERDE”: SUAS VIDAS E EXPERIÊNCIA EM SEUS RELATOS DE VIAGEM (SÉC. XVI E XVII) Beatriz Carvalho dos Santos............................................................................................................................................................. 229 O USO DAS CARTAS PATENTES NO EXERCÍCIO DA GOVERNANÇA DAS CAPITANIAS DO BRASIL: O CASO DE JERÔNIMO JOSÉ DE MELO E CASTRO, CAPITANIA DA PARAÍBA (1764-1797) Bruno Cezar Santos da Silva ............................................................................................................................................................. 235 A RESTAURAÇÃO NA BAHIA: QUERELAS ENTRE UM BISPO E UM GOVERNADOR NA DÉCADA 1640 Camila Teixeira Amaral ................................................................................................................................................................... 242 ÁFRICA NOS OBJETOS NO MUNDO ATLÂNTICO: OLHARES CRUZADOS SOBRE OS PROCESSOS DE COLECIONISMO-1822-1960 Carlos Jorge Mendes ......................................................................................................................................................................... 248 SANTOS NEGROS NAS AMÉRICAS: RESISTÊNCIA E HIERARQUIAS Caroline dos Santos Guedes .............................................................................................................................................................. 254 A ARQUITETURA DO AÇÚCAR NA DINÂMICA COLONIAL: UM ESTUDO DE TRÊS ANTIGOS ENGENHOS DE ALAGOAS Catarina Agudo................................................................................................................................................................................. 259 AMAZÔNIA PORTUGUESA: AS DEFESAS NO PERÍODO POMBALINO Cristiane Figueiredo Pagano de Mello .............................................................................................................................................. 267 URBANIZAÇÃO EM VILA RICA: ESTUDOS COM TÉCNICAS DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO Christiane Montalvão ....................................................................................................................................................................... 272 PRESCRIÇÕES SOBRE A MORTE NOS ESCRITOS RELIGIOSOS DO BRASIL COLONIAL (SÉCULOS XVII E XVIII) Clara Braz dos Santos........................................................................................................................................................................ 277 FAMÍLIAS PORTUGUESAS, LARES MINEIROS: UMA ANÁLISE DA PRESENÇA DE PORTUGUESES EM COMUNIDADES RURAIS DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII Clara Garcia de Carvalho Silva ........................................................................................................................................................ 283 A NATUREZA DA AMAZÔNIA COLONIAL COMO SUAS “BOTICAS BEM PROVIDAS” EM MEIO AS EPIDEMIAS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Claudia Rocha de Sousa .................................................................................................................................................................... 288 O ANOTADOR DE LIVROS E A BIBLIOTECA APREENDIDA: OS LIVROS DO CONDE DE EGAEM, 1813 Cláudio DeNipoti .............................................................................................................................................................................. 295 A FIXAÇÃO DA IGREJA NO CEARÁ DURANTE O SÉCULO XVIII: ALGUMAS NOTAS Clovis Ramiro Jucá Neto.................................................................................................................................................................... 303
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ISSN 2358-4912 GÊNERO E PODER NA CAPITAL DO VICE-REINADO: MULHERES E VIÚVAS PROPRIETÁRIAS SEGUNDO A RELAÇÃO DO MARQUÊS DE LAVRADIO Cristiane Fernandes Lopes Veiga ....................................................................................................................................................... 311 CAPITANIA DE MATO GROSSO: ÍNDIOS E COLONIZADORES NO SÉCULO XVIII Cristiane Pereira Peres ..................................................................................................................................................................... 322 A PRESENÇA DE NATURALISTAS LUSO-BRASILEIROS NA OBRA PLUTO BRASILIENSES; MEMÓRIAS SOBRE AS RIQUEZAS DO BRASIL EM OURO, DIAMANTES E OUTROS MINERAIS VOLUMES 1 E 2. Daniela Casoni Moscato ...................................................................................................................................................................... 328 AS CHARQUEADAS NA VILA DE SÃO JOÃO DA PARNAÍBA (1759-1830) Dante Cardoso Soares Barbosa ........................................................................................................................................................ 335 ESPAÇOS DE PODERES LOCAIS: A FAMILIATURA DO SANTO OFÍCIO COMO MECANISMO DE PROMOÇÃO SOCIAL AO SENADO DA CÂMARA DO RECIFE COLONIAL Davi Celestino da Silva ...................................................................................................................................................................... 341 TRABALHAR E SER REMUNERADO PELO SANTO OFÍCIO Denise de Carvalho Zottolo ..............................................................................................................................................................348 A CABANAGEM E A LUTA PELA LIBERDADE NO GRÃO-PARÁ (1820-1840) Denise Simões Rodrigues ................................................................................................................................................................... 352 “QUEM TEM FAMÍLIA, AGRADEÇA NOITE E DIA”: REFLEXÕES PRELIMINARES A RESPEITO DA PLURALIDADE POPULACIONAL E DAS RELAÇÕES FAMILIARES DE PORTO ALEGRE (1772 – 1822) Denize Terezinha Leal Freitas .......................................................................................................................................................... 358 NORMAS DO BEM CUIDAR: O TRÁFICO NEGREIRO E O GOVERNO DOS ESCRAVOS NOS TEXTOS DE LETRADOS DA ACADEMIA REAL DE CIÊNCIAS DE LISBOA NO FINAL DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX Diego Andrade Bispo ................................................................................................................................................................... 365 A ARTE A SERVIÇO DA FÉ E DA COROA NA ARQUITETURA DA BELÉM COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COM A NATUREZA LOCAL Domingos Sávio de Castro Oliveira .................................................................................................................................................. 370 FRONTEIRAS COLONIAIS: CONFLITO, JUSTIÇA E ACOMODAÇÃO NA DEMARCAÇÃO DOS LIMITES ENTRE MINAS GERAIS E SÃO PAULO - 1790-1820 Edna Mara Ferreira da Silva ............................................................................................................................................................ 378 PALAVRAS DE ORDEM: ANÁLISE DO VOCABULÁRIO POLÍTICO DE UMA SEDIÇÃO Edna Maria Matos Antonio .............................................................................................................................................................. 385 DAS TERRAS DOADAS, OUVI DIZER...: O AUTO DE REPARTIÇÃO DAS TERRAS DO RIO GRANDE (1600-1614) Elenize Trindade Pereira ................................................................................................................................................................... 391 DINÂMICAS POPULACIONAIS NA FORMAÇÃO DE FAMÍLIAS NAS FREGUESIAS DE RUSSAS E ARACATI, CEARÁ – 1770⁄1830: CASAMENTOS CRISTÃOS E NATURALIDADES DOS NUBENTES Elisgardênia de Oliveira Chaves ....................................................................................................................................................... 398 FAZER-SE ELITE: NOTAS SOBRE OS DONOS DO CRÉDITO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1808 – 1821) Elizabeth Santos de Souza ................................................................................................................................................................ 405
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ISSN 2358-4912 EVERYTHING IS CONTRABAND. A READING OF THE DUTCH GAZETTES DURING THE WAR OF THE SPANISH SUCCESSION (1700-1715). TUDO É CONTRABANDO. UMA LEITURA DAS GAZETTAS HOLANDEZAS DURANTE A GUERRA DA SUCCESSÃO ESPANHOLA (1700-1715) Ernst Pijning ...................................................................................................................................................................................... 412 MEMÓRIAS ENTRE RELATOS: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM ÀS MARGENS DO RIO PARAGUAÇU Evelyne Enoque Cruz ........................................................................................................................................................................ 437 OS “FUNDOS VIVOS DA CONTRAVENÇÃO”: O CONTRABANDO DE ESCRAVOS NA COLÔNIA DE SACRAMENTOS (1740-1771) Fábio Kühn ....................................................................................................................................................................................... 443 HIERARQUIAS SOCIAIS E CONDIÇÕES DE TRABALHO: AS ARTES MECÂNICAS EM MARIANA E AS COBRANÇAS DE OFÍCIO (1745 – 1808) Fabrício Luiz Pereira ....................................................................................................................................................................... 450 CONSIDERANDO OUTROS AGENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AMAZÔNIA PORTUGUESA NO SÉCULO XVII Fernando Roque Fernandes .............................................................................................................................................................. 456 PODERES LOCAIS NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE E NO PARAGUAI: REFLEXÕES SOBRE UMA ABORDAGEM TRANSNACIONAL (SÉC. XVI-XVIII) Fernando V. Aguiar Ribeiro.............................................................................................................................................................. 463 A CAPITANIA DO MARANHÃO E PIAUÍ NA POLÍTICA ILUSTRADA DE D. RODRIGO DE SOUSA COUTINHO (1798-1801) Flávio Pereira Costa Júnior .............................................................................................................................................................. 467 RITOS FESTIVOS, CULTURA POPULAR E REVOLTA EM VILA RICA, MINAS DO OURO Francisco Eduardo de Andrade ......................................................................................................................................................... 473 DE TERRA DE SENHORES A TERRA DE MASCATES: A ELITE DE SANTA CRUZ DO ARACATI E O ACESSO A REFERENCIAIS DE NOBREZA (1748-1804) Gabriel Parente Nogueira ................................................................................................................................................................ 480 A ILEGITIMIDADE DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA: VASCO DE QUIROGA E A INFORMACIÓN EN DERECHO (1535) Geraldo Witeze Junior ....................................................................................................................................................................... 487 OS INDÍGENAS E A LITERATURA: IMAGENS E DISCURSOS DE VIAJANTES E CRONISTAS EM ALAGOAS (SÉCULOS XVI-XIX) Gilberto Geraldo Ferreira ................................................................................................................................................................. 491 AS TROPAS REGULARES DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO CONTEXTO DA GUERRA DOS SETE ANOS Giovane Albino Silva ........................................................................................................................................................................ 496 CÁLICE PROIBIDO: CONTATOS INTERÉTNICOS ENTRE MISSIONÁRIOS CARMELITAS E INDÍGENAS TARAIRIÚ NA CAPITANIA DA PARAÍBA Gláucia de Souza Freire .................................................................................................................................................................... 502 VIEIRA E O CORPO VIVO DA PREGAÇÃO Guilherme Amaral Luz ..................................................................................................................................................................... 509
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ISSN 2358-4912 CONCUBINATOS, VIOLÊNCIA E SOLICITAÇÃO NO COTIDIANO DO CLERO SECULAR DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1750 – 1800) Gustavo Augusto Mendonça dos Santos ............................................................................................................................................ 516 O CARGO DE JUIZ DE FORA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Gustavo Balbueno de Almeida .......................................................................................................................................................... 522 OS IMBRÓGLIOS EM TORNO DE UM PADRE PREGADOR E O REGALISMO DO OUVIDOR DO ESPÍRITO SANTO Gustavo Pereira ................................................................................................................................................................................ 529 A ALFÂNDEGA DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DA ECONOMIA E PODER NO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS (c.1600-c.1700) Helena de Cassia Trindade de Sá ....................................................................................................................................................... 536 DIÁLOGOS, DISPUTAS E CONJUNTURAS NAS ATAS DA CÂMARA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (1646-1654) Helidacy Maria Muniz Corrêa ......................................................................................................................................................... 543 O GOVERNO GERAL DO ESTADO DO BRASIL E A ORGANIZAÇÃO DA INSURREIÇÃO PERNAMBUCANA (1642-1645) Hugo André Flores Fernandes Araújo .............................................................................................................................................. 549 ENTRE CRÉDITOS, DÉBITOS, PEDIDOS E PROCURAÇÕES: LOURENÇO PEREIRA DA COSTA E A ELITE COMERCIAL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO ABASTECIMENTO DAS MINAS DO SÉCULO XVIII Hugo Demétrio Nunes Tavares Bonifácio......................................................................................................................................... 561 OS TESOUREIROS E SELADORES DA ALFÂNDEGA DE SALVADOR: A PRÁTICA SOCIAL DO DESCAMINHO, 1714-1722 Hyllo Nader de Araújo Salles ........................................................................................................................................................ 568 “REGULAMENTO PARA OS MISSIONÁRIOS” EM QUESTÃO: REFLEXÕES CENTRAIS SOBRE A PRÁXIS FRANCISCANA Idelbrando Alves de Lima .................................................................................................................................................................. 573 AS REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS DO MARANHÃO, A PARTIR DO ROTEIRO DE VIAGEM DE FRANCISCO DE PAULA RIBEIRO Ilma Maria de Oliveira Silva ............................................................................................................................................................ 580 A LINGUAGEM DA ARQUITETURA RELIGIOSA EXPRESSA NA ICONOGRAFIA AZULEJAR DOS CONVENTOS FRANCISCANOS NO NORDESTE DO BRASIL COLONIAL Ivan Cavalcanti Filho ........................................................................................................................................................................ 587 ADMINISTRAR CAYENA: ARTICULAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO GOVERNATIVA CONFORME AS PRIMEIRAS ORDENANÇAS Ivete Machado de Miranda Pereira .................................................................................................................................................. 595 A OPERÍSTICA COLONIAL DA SEMANA TEATRALIZADA EM MONTE SANTO - BAHIA Jadilson Pimentel dos Santos ............................................................................................................................................................. 601 PALAVRAS AMATÓRIAS E POESIAS LUXURIOSAS: CONFISSÃO E IMORALIDADE NO MUNDO LUSO-AMERICANO (1640-1750) Jaime Ricardo Gouveia ..................................................................................................................................................................... 608 OS LIVROS DE MANUEL DE CENÁCULO NA REAL BIBLIOTECA PÚBLICA DA CORTE Jamaira Jurich Pillati ........................................................................................................................................................................ 618
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ISSN 2358-4912 ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS E MOBILIDADE SOCIAL EM SANTIAGO DE IGUAPE – 1806-1837 Jamile Serra Coutinho ....................................................................................................................................................................... 622 A ESTERILIDADE DA VINHA E A DISPUTA ENTRE OS CEIFEIROS: OS LIMITES DA CATEQUIZAÇÃO NO RECÔNCAVO COLONIAL – BAHIA 1585-1592 Jamille Oliveira Santos Bastos Cardoso ........................................................................................................................................... 629 A MORTE E AS DOENÇAS NA FREGUESIA DE SANTO AMARO-SERGIPE (1802-1806) Jamilly Bispo Laureano ..................................................................................................................................................................... 637 A ARTE DA CANTARIA ENTRE PORTUGAL E SERGIPE: O CASO DA IGREJA JESUÍTA DO ENGENHO RETIRO (SÉCULO XVIII) Janaina Cardoso de Mello ................................................................................................................................................................. 644 BURLANDO AS REGRAS: A FORMAÇÃO DE UMA ELITE PARDA NO ESPAÇO COLONIAL PERNAMBUCANO (XVIII) Janaína Santos Bezerra ..................................................................................................................................................................... 650 VIDA ESCRAVA NAS MINAS DO ARRAIAL DE SANTA LUZIA DA CAPITANIA DE GOYAZ Jason Hugo de Paula .......................................................................................................................................................................... 656 CULTURA POLÍTICA INDÍGENA E LIDERANÇA TUPI NAS CAPITANIAS DO NORTE: ANTÔNIO PESSOA ARCOVERDE E O COMBATE AO QUILOMBO DE PALMARES (SÉCULO XVII) Jean Paul Gouveia Meira .................................................................................................................................................................. 659 OS ANTUNES SUZANO: UMA ELITE SENHORIAL NA PERIFERIA DA CAPITANIA FLUMINENSE (1797) Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz ..................................................................................................................................................... 665 NO LABIRINTO DAS ESTRATÉGIAS: BAHIA E PERNAMBUCO E A CONSTITUIÇÃO DAS REDES DE COMÉRCIO INTRACAPITANIAS - 1759 A 1787 Jéssica Rocha de Sousa ...................................................................................................................................................................... 672 LUTAS E NEGÓCIOS NO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ: JESUÍTAS, MORADORES E A LIBERDADE DOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA COLONIAL João Aluízio Piranha Dias ................................................................................................................................................................ 678 QUANDO OS NEGROS NÃO SÃO PASSIVOS: A RESISTÊNCIA NEGRA ATRAVÉS DA RELIGIOSIDADE João Antônio Damasceno Moreira ................................................................................................................................................... 684 CLÉRIGOS SERVIDORES DO SANTO OFÍCIO NA AMAZÔNIA SETECENTISTA: COMISSÁRIOS, PADRES E PROPRIETÁRIOS DE TERRA João Antonio Fonseca Lacerda Lima ................................................................................................................................................ 690 UMA RUA CHAMADA DIREITA João Henrique dos Santos .................................................................................................................................................................. 696 A LEGISLAÇÃO E A RELAÇÃO DA COROA PORTUGUESA COM AS REVOLTAS DO ESTADO DO BRASIL (1650-1730) João Henrique Ferreira de Castro ..................................................................................................................................................... 702 ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO E MOBILIDADE SOCIAL DOS NEGROS INSERIDOS NA ESTRUTURA MILITAR COLONIAL. COMARCA DO SERRO FRIO, SÉCULO XVIII Joelmir Cabral Moreira ..................................................................................................................................................................... 707
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ISSN 2358-4912 CARIDADE OU SOBREVIVÊNCIA? FORMAS CRIADORAS DE EXPOSTOS DA FREGUESIA MADRE DEUS DE PORTO ALEGRE (SÉCULO XVIII-XIX) Jonathan Fachini da Silva .................................................................................................................................................................. 714 AS CIDADES HISTÓRICAS E O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NO BRASIL COLONIAL: QUESTÕES E EMBATES José Antônio de Sousa ........................................................................................................................................................................ 721 “URBANIZAR É COMO CIVILIZAR”: ELITES COLONIAIS, GOVERNANÇA E POLÍTICA INDÍGENA NA AMÉRICA PORTUGUESA (PERNAMBUCO E PARAÍBA, SÉCULO XVIII) José Inaldo Chaves Jr. ......................................................................................................................................................................... 727 NEGRO: IMAGEM, MEMÓRIA E DISCURSO NA PROPAGANDA DE PROGRAMAS ASSISTENCIALISTAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA José Robson Gomes de Jesus ............................................................................................................................................................... 736 SACRILÉGIOS E PRÁTICAS HETERODOXAS NO ESPAÇO IBERO-AMERICANO: MISTICISMO RECÔNDITO NAS ÓPERAS DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU Josevânia Souza de Jesus Fonseca ..................................................................................................................................................... 742 A TRADUÇÃO DA NATUREZA FEIA PELO JESUÍTA ASCENSO DE EGO Juliana Barbosa Peres ....................................................................................................................................................................... 749 RELAÇÕES TRANSFRONTEIRIÇAS NO VALE DO RIO BRANCO (1790-1822) Lodewijk Hulsman ............................................................................................................................................................................ 755 O PORTO DO RECIFE E A ALFÂNDEGA DE PERNAMBUCO Luanna MariaVentura dos Santos Oliveira ...................................................................................................................................... 761 O RIO DAS AMAZONAS E O RIO DA PRATA NA CARTOGRAFIA QUINHENTISTA: ESPAÇOS DE FRONTEIRA DA AMÉRICA PORTUGUESA Lucas Montalvão Rabelo ................................................................................................................................................................... 767 CRER E DESCRER: RELAÇÕES ENTRE INCONSTÂNCIA E LIBERDADE INDÍGENA NOS DISCURSOS JESUÍTICOS Ludmila Gomides Freitas .................................................................................................................................................................. 775 A CAPITANIA DE SERGIPE DEL REI NO SÉCULO XVII E A DINASTIA DE BRAGANÇA Luís Siqueira ...................................................................................................................................................................................... 781 NEGOCIANTE JOÃO RODRIGUES DE MIRANDA: ALIANÇAS E EMBATES NO MARANHÃO VINTISTA Luisa Cutrim ..................................................................................................................................................................................... 786 A PRÁTICA DA MÚSICA E SUAS FRONTEIRAS: A ARTE LIBERAL ENTRE A ESCRAVIDÃO E O TRABALHO MECÂNICO NAS MARGENS DO ATLÂNTICO (SÉCULOS XVII – XIX) Luiz Domingos do Nascimento Neto ................................................................................................................................................. 793 A RECEPÇÃO DO CURSUS CONIMBRICENSIS NO BRASIL COLONIAL; A ÉTICA DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS E A LIBERDADE DOS ÍNDIOS Luiz Fernando Medeiros Rodrigues ................................................................................................................................................... 801 SAMBA DE RODA: TRAÇOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA TABUA GRANDE NO MUNICÍPIO DE GUANAMBI-BA Maiza Messias Gomes ....................................................................................................................................................................... 809 NOVO MUNDO: ESCRITOS E MEDIAÇÕES Manoela Freire Correia ..................................................................................................................................................................... 816
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ISSN 2358-4912 PODER E SOCIEDADE NA ÁSIA PORTUGUESA NA ÉPOCA MODERNA: OS CLÃS COSTA E HORNAY EM TIMOR Manuel Lobato .................................................................................................................................................................................. 823 ATRITOS E CONFLITOS: PROVIMENTOS DE OFÍCIOS E SESMARIAS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (1712-1715) Marcos Arthur Viana da Fonseca ...................................................................................................................................................... 831 AS METAMORFOSES DE UM IMPÉRIO: PORTUGAL-BRASIL DA DINASTIA DE BRAGANÇA AO IMPÉRIO HÍBRIDO COLONIAL Marcos Aurélio de Paula Pereira ...................................................................................................................................................... 838 RECONHECIMENTO E HERESIA: A ANTINOMIA FEMININA NAS PRÁTICAS MÁGICORELIGIOSAS A PARTIR DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À AMÉRICA PORTUGUESA (1591-1595) Marcus Vinicius Reis ........................................................................................................................................................................ 844 ESTRATÉGIAS DE TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO NA FREGUESIA DE JACAREPAGUÁ (SÉCULO XVIII) Mareana Barbosa Gonçalves Mathias da Silva ................................................................................................................................. 851 CAPELAS COM PLANTA CENTRALIZADA: UMA SINGULAR ARQUITETURA DOS SÉCULOS XVII E XVIII NO NORDESTE DO BRASIL Maria Berthilde Moura Filha ............................................................................................................................................................ 857 FRONTEIRAS POLÍTICAS NO INTERIOR DA FRONTEIRA OESTE BRASILEIRA: CUIABÁ E VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Maria do Socorro Castro Soares ...................................................................................................................................................... 864 O ROL DE CULPADOS E A PRÁTICA DA JUSTIÇA: DELITOS, DEVASSAS E QUERELAS NA VILA DO RIBEIRÃO DO CARMO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Maria Gabriela Souza de Oliveira .................................................................................................................................................... 870 ENTRE ARRAIAIS E ALDEAMENTOS: OS MILITARES NO SERTÃO DE PIRANHAS E PIANCÓ DA CAPITANIA DA PARAÍBA EM FINS DO SÉCULO XVII E INÍCIO DO SÉCULO XIII Maria Simone Morais Soares ............................................................................................................................................................ 877 O CAMINHO DAS CARTAS: REFORMAS POSTAIS E ESTRATÉGIAS DE ENVIO DE CORRESPONDÊNCIAS NO EPISTOLÁRIO DE LUIS JOAQUIM DOS SANTOS MARROCOS (1811-1821) Mayra Calandrini Guapindaia ......................................................................................................................................................... 884 OS MODOS DE ALIMENTAR NO BRASIL COLONIAL: UM ESTUDO DOS REGISTROS HOLANDESES SEISCENTISTAS Melissa Mota Alcides ........................................................................................................................................................................ 892 A POLÍTICA INDÍGENA DOS HABSBURGOS ESPANHÓIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1580-1611) Miguel Luciano Bispo dos Santos ...................................................................................................................................................... 899 CAPITANIA DE MATO GROSSO NO SÉCULO XVIII: O SERTÃO ENTRE AUTORIDADES, MEDOS, DOENÇAS E HOSPITAIS Miksileide Pereira ............................................................................................................................................................................. 905 EM MEIO AO SAGRADO, A FUGA DO PECADO: OS SENTIMENTOS ENVOLTOS NOS CASAMENTOS NO BRASIL COLONIAL Mona Mirelly Viana Bandim .............................................................................................................................................................. 911
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ISSN 2358-4912 DIREITO E PUNIÇÃO NO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE OS REGIMENTOS INQUISITORIAIS E AS ORDENAÇÕES FILIPINAS Monique Marques Nogueira Lima ..................................................................................................................................................... 917 HEREGES JUDAIZANTES: UMA FAMÍLIA DE CRISTÃOS-NOVOS FLUMINENSES NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO Monique Silva de Oliveira ................................................................................................................................................................. 924 DAS NEGOCIAÇÕES E CONFLITOS ENTRE PODER CENTRAL E LOCAIS: TRAMAS POLÍTICAS DE UM VIGÁRIO NAS CAPITANIAS DA PARAHYBA E PERNAMBUCO NOS SETECENTOS (1764-1785) Muriel Oliveira Diniz ....................................................................................................................................................................... 929 O ESTADO DO MARANHÃO E O UNIVERSALISMO VIEIRIANO NA CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO DOS BRAGANÇAS Nathalia Moreira Lima Pereira ....................................................................................................................................................... 936 ORGANIZAÇÃO MILITAR: INSTITUIÇÃO EDUCATIVA E CULTURAL NA CAPITANIA DO MATO GROSSO Nileide Souza Dourado ..................................................................................................................................................................... 942 EM BUSCA DA FÉ: VIVÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E DEVOÇÃO DOS TERCEIROS CARMELITAS EM MINAS GERAIS Nívea Maria Leite Mendonça ........................................................................................................................................................... 949 AS CATEGORIAS EMPÍRICAS DE DISTINÇÃO SOCIAL NO SERTÃO DA BAHIA DO SÉCULO XIX Ocerlan Ferreira Santos .................................................................................................................................................................... 955 RIBEIRA DO MOSSORÓ, UM ESPAÇO A SER CONQUISTADO: CONQUISTA E POVOAMENTO DO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO INICIO DO SÉCULO XVIII Patrícia de Oliveira Dias .................................................................................................................................................................. 963 INQUISIÇÃO E RELIGIOSIDADE NA BAHIA COLONIAL (SÉCULO XVIII): A PRÁTICA RELIGIOSA DO ESCRAVO MATHEUS PEREIRA MACHADO Priscila Natividade de Jesus .............................................................................................................................................................. 970 UM BRACARENSE NA VILA DE SÃO JOÃO DEL REI: A ATUAÇÃO DE FRANCISCO DE LIMA CERQUEIRA NA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS Patricia Urias ................................................................................................................................................................................... 976 OS COMPORTAMENTOS À MARGEM DA LEI: A ESFERA FAZENDÁRIA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO NO SÉCULO XVIII Paula Andrea Dombkowitsch Arpini ................................................................................................................................................ 981 O COTIDIANO NA FROTA ESPANHOLA COMANDADA POR D. NICOLÁS GERALDÍN (1737) Paulo César Possamai ...................................................................................................................................................................... 988 UM PESO E DUAS MEDIDAS: VISÕES SOBRE A MESA DA INSPEÇÃO DO TABACO E AÇÚCAR DE PERNAMBUCO Paulo Fillipy de Souza Conti ............................................................................................................................................................ 994 LIBERDADES PARA RECONSTRUIR: ISENÇÃO FISCAL E MORATÓRIA PARA A ECONOMIA AÇUCAREIRA PERNAMBUCANA PÓS-RESTAURAÇÃO (SÉCULOS XVII E XVIII) Pedro Botelho Rocha ....................................................................................................................................................................... 1000 REPENSANDO A FRONTEIRA NA CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO AGRÁRIO ARTIGUISTA Pedro Vicente Stefanello Medeiros .................................................................................................................................................. 1007
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ISSN 2358-4912 A OCUPAÇÃO DO SUL MARANHENSE Philipe Luiz Trindade de Azevedo .................................................................................................................................................... 1013 A ESTRADA PROIBIDA DA BAHIA: ENTRE O CAMINHO E OS DESCAMINHOS (1694 – 1716) Pollyanna Precioso Neves ................................................................................................................................................................ 1019 BLASFÊMIAS E PROPOSIÇÕES: A “LIBERTINAGEM” DE CONSCIÊNCIA NO SETECENTOS MINEIRO Rafael José de Sousa ........................................................................................................................................................................ 1025 REDES DE PODER E DISPUTAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS NA ATUAÇÃO DO DESEMBARGADOR CHRISTOVÃO SOARES REIMÃO: JUSTIÇA E ORDEM SOCIAL NA CAPITANIA DO SIARÁ GRANDE (1703-1717) Rafael Ricarte da Silva ..................................................................................................................................................................... 1031 HOMENS LIVRES DE COR NA EXPANSÃO DA FRONTEIRA LUSITANA NA RIBEIRA DO ACARAÚ (1682-1720) Raimundo Nonato Rodrigues de Souza ........................................................................................................................................... 1038 ENTRE O CATOLICISMO E O CALVINISMO: A APOSTASIA DE ECLESIÁSTICOS NO BRASIL HOLANDÊS Regina de Carvalho Ribeiro ............................................................................................................................................................ 1045 A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO: UM ESTUDO POPULACIONAL (1681-1714) Renata Assunção da Costa .............................................................................................................................................................. 1052 MÃOS À OBRA: CONSTRUTORES E ARTISTAS DURANTE A EXPANSÃO URBANA DA VILA DO RECIFE NO SETECENTOS Renata Bezerra de Freitas Barbosa ................................................................................................................................................. 1058 O DIREITO DE ALMOTAÇARIA NA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (VILA DE NOSSA SENHORA DO RIO PARDO – 1811/ C. 1830) Ricardo Schmachtenberg ................................................................................................................................................................. 1064 O MESTIÇO MORAL NOS ESCRITOS DE CAPISTRANO DE ABREU Ricardo Souza ................................................................................................................................................................................. 1070 DESEJOS E ESCOLHAS: SOLICITAÇÕES DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB A POLÍTICA DO DIRETÓRIO POMBALINO Ristephany Kelly da Silva Leite ....................................................................................................................................................... 1076 “MAS, E OS CARMELITAS?” LEVANTAMENTO ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DA ORDEM DO CARMO E DA SUA ARQUITETURA COLONIAL NO BRASIL Roberta Bacellar Orazem ................................................................................................................................................................ 1083 A SEGUNDA ESCOLÁSTICA NO MODO DE GOVERNAR DA MONARQUIA ESPANHOLA NAS ÍNDIAS: FRANCISCO DE VITORIA E AS LEYES NUEVAS EM MEADOS DO SÉCULO XVI Rodrigo Henrique Ferreira da Silva ................................................................................................................................................ 1089 A POLITIZAÇÃO DA SUBSISTÊNCIA EM FINS DO SÉCULO XVIII – FRANÇA E BAHIA Rodrigo Oliveira Fonseca ................................................................................................................................................................ 1095 OS ESTUDOS DE ARQUITETURA DE FRANCISCO DE HOLANDA Rogéria Olimpio dos Santos ............................................................................................................................................................. 1103
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ISSN 2358-4912 CORREIOS EXTRAVIADOS ENTRE LISBOA E AS MINAS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DOS ASSISTENTES DO CORREIO-MOR NO IMPÉRIO PORTUGUÊS (SÉCULOS XVI-XVIII) Romulo Valle Salvino......................................................................................................................................................................................................................................... 1109 TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS: FREGUESIA DO GENTIO (CAETITÉ) E A VILLA DE MONTE ALTO NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (1870 – 1888) Rosângela Figueiredo Miranda ......................................................................................................................................................... 1115 TEXTOS, IMAGENS E A CRIAÇÃO DE UM SIGNO CHAMADO VILA Roseline Vanessa Oliveira Machado ................................................................................................................................................ 1122 ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO: OMAGUA E JESUÍTAS E O DISCURSO ESPANHOL NO SÉCULO XVIII Rosemeire Oliveira Souza ................................................................................................................................................................ 1128 UMA SOCIEDADE PARA REFORMAR: A ATUAÇÃO DE D. FREI ALEIXO DE MENEZES, OESA, NA ÍNDIA (1595-1612) Rozely Menezes Vigas Oliveira ........................................................................................................................................................ 1135 PECULIARIDADES ECLESIÁSTICAS NO GRÃO-PARÁ: O MOMENTO DA TRANSIÇÃO DA DIOCESE DE FREI JOÃO DE SÃO JOSÉ QUEIRÓS PARA GERALDO JOSÉ DE ABRANCHES Sarah dos Santos Araújo .................................................................................................................................................................. 1142 LA “GUERRA DE LA OREJA DE JENKINS”: HISTORIAS ENTRELAZADAS EN CONTEXTOS AMERICANOS: 1739-1748 Sebastián Gomez .............................................................................................................................................................................. 1149 PODER, AMOR E ESCRAVIDÃO: A ESCRITA DAS RELAÇÕES SOCIAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA Sílvia Rachi ...................................................................................................................................................................................... 1164 A FRONTEIRA BRASIL-GUIANA FRANCESA DO TRATADO DE UTRECHT À NEUTRALIZAÇÃO DE 1841: SIGNIFICAÇÃO DE UMA FRONTEIRA COLONIAL NA AMAZÔNIA Stéphane Granger .............................................................................................................................................................................. 1171 EXERCÍCIO E IMPLEMENTAÇÃO DA JUSTIÇA NAS VILAS E POVOAÇÕES NA COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO NEGRO Stephanie Lopes do Vale .................................................................................................................................................................... 1177 COLONIZAÇÃO E REGIÃO: PERNAMBUCO, O NORTE DO ESTADO DO BRASIL E O COMÉRCIO ATLÂNTICO (c. 1711 a c. 1783) Thiago Alves Dias ............................................................................................................................................................................ 1185 A ESCRITA DA HISTÓRIA INDIANA POR MEIO DA CRÔNICA FRANCISCANA Thiago Bastos de Souza ..................................................................................................................................................................... 1191 A TRAJETÓRIA DO TENENTE JOAQUIM LINO RANGEL: UM EXPOSTO DA FREGUESIA DA CIDADE DO NATAL – CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE (FINAL DO SÉCULO XVIII E INICIO SÉCULO XIX) Thiago do Nascimento Torres de Paula ........................................................................................................................................... 1199 DUARTE DA SILVA, O BANQUEIRO DO REI Thiago Groh .................................................................................................................................................................................... 1206 APONTAMENTOS SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS SECRETÁRIOS DO GOVERNO Thiago Rodrigues da Silva ............................................................................................................................................................... 1210
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ISSN 2358-4912 “VIRTUOSOS E MUITO AMADOS DE TODO AQUELE POVO E DOS ÍNDIOS”: JESUÍTAS, ÍNDIOS, OFICIAIS E AUTORIDADES RÉGIAS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO (1624-1654) Uiá Freire Dias dos Santos .............................................................................................................................................................. 1218
EM BUSCA DE PRIVILÉGIOS: NOTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO PADRE MANOEL DE ALBUQUERQUE FRAGOSO NO TERMO DO CUIABÁ NO SÉCULO XVIII Vanda da Silva ................................................................................................................................................................................. 1227 DA ARTE DE GOVERNAR COM OS SANTOS NA MONARQUIA PORTUGUESA (C.1680- C.1760): O EXEMPLO DO RIO DE JANEIRO Vinicius Miranda Cardoso .............................................................................................................................................................. 1234 A ATUAÇÃO DOS DIRETORES DE POVOAÇÕES DURANTE A POLÍTICA DO DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS (1757-1798): A BUSCA POR UMA ANÁLISE DE CARÁTER HISTÓRICO DE SUAS INFRAÇÕES A LEI Vinícius Zúniga Melo ...................................................................................................................................................................... 1244 JESUÍTAS, NATUREZA E FARMÁCIA: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA PARA A COMPREENSÃO DA DINÂMICA COLONIAL (SÉCULOS XVI–XVIII) Viviane Machado Caminha São Bento ............................................................................................................................................. 1251 AS FORÇAS MILITARES DE UMA CAPITANIA SUBALTERNA NA AMÉRICA PORTUGUESA: O CASO DA CAPITANIA DE SERGIPE D’EL REI (1750-1800) Wanderlei de Oliveira Menezes ........................................................................................................................................................ 1257 DINÂMICAS DO PODER LOCAL: AS CÂMARAS DO RIO DE JANEIRO E SALVADOR EM UMA CONJUNTURA DE TRANSFERÊNCIA DE PODERES (1679-1766) William de Andrade Funchal .......................................................................................................................................................... 1264
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APRESENTAÇÃO Criado em 2006, na Capitania da Paraíba, o Encontro Nordestino de História Colonial tinha como pressuposto discutir as temáticas concernentes à experiência colonial em suas mais diversas localidades americanas e, por que não dizer, africanas e asiáticas na Época Moderna. Realizado a cada dois anos, em 2008, o mesmo já estava na Capitania do Rio Grande Norte, local onde se tornou Internacional por sua vasta abrangência de temáticas e, sobretudo, pela grande participação de pesquisadores e professores de outros países. Tal feito não só consolidou no território nacional a atividade de extensão, como tornou-se um ponto de parada obrigatória de toda nau estrangeira que visava atracar nos estudos coloniais da modernidade. De lá para cá, o EIHC já passou pelas capitanias de Pernambuco e pelo antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, mas especificamente na Capitania do Pará. Divulgando pesquisas, trocando experiências, promovendo debates científicos e, mais do que isso, consolidando os estudos sobre o mundo colonial, este evento, em 2014, retorna à Capitania de Pernambuco! No entanto, por conta de sua vastidão, a localidade escolhida para este momento era aquela denominada de “as parte do sul” ou, a partir de 1712, a Comarca das Alagoas. A criação desta nova jurisdição somente atestava a especificidade e a diferença que as localidades do “sul da Capitania de Pernambuco” tinham em relação às Vilas de Olinda e Recife. Assim, dentro da comarca três vilas se destacam: a Vila de São Francisco de Penedo, considerada pelos agentes coloniais a mais “selvagem”; a Vila de Porto Calvo, com características similares ao mundo açucareiro da sede da capitania; e a Vila de Santa Maria Magdalena Alagoas do Sul, considerada importante por sua centralidade e pelos portos do Francês e Jaraguá escoarem a produção local. Fora justamente nesta última vila que se sediou a “cabeça da Comarca”, hegemonizando o território e nomeando o que, em 1817, após a insurreição pernambucana, se convencionou chamar de Capitania/Província das Alagoas. Se foi traíra naquele momento à causa dos insubordinados pernambucanos, pouco importa! O que se destaca, naquele episódio, é a concretização da demarcação de um espaço diferenciado dentro da capitania, com vida própria, com atividades camaristas específicas, com uma economia consolidada e com súditos portugueses que não se afinavam mais com a sede da Capitania de Pernambuco! Enfim, é neste espaço reconhecidamente lembrado pelo banquete feito pelos índios caétes ao Bispo Fernandes Sardinha, pelo celebre personagem de Calabar no período flamengo e pelos habitantes Mocambos de Palmares que ocorrerá o V ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL. Por conta disso, a temática proposta não podia ser diferente: CULTURA, ESCRAVIDÃO E PODER NA EXPANSÃO ULTRAMARINA (SÉCULOS XVI AO XIX). Com 2 conferências, 9 mesas redondas, 14 simpósios temáticos e 10 minicursos, o encontro se vislumbra como o maior de sua história. Por tudo isso, as páginas destes Anais Eletrônicos que se seguem apontam o crescimento da produção na área colonial e a consolidação de um nicho de pesquisa que só tende a demonstrar a grandeza da pesquisa história no Brasil e demais áreas ultramarinas. Maceió, Agosto de 2014 Antonio Filipe Pereira Caetano Gian Carlo de Melo Silva
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PROGRAMAÇÃO 19 de agosto de 2014 09:00-12:00 – Credenciamento 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Conferência de Abertura: Maria Beatriz Nizza da Silva
20 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Jantar de adesão
21 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Lançamento de Livros
22 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos/Banners/Reunião Administrativa 19:00-21:00 – Conferência de Encerramento: Stuart B. Schwartz
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AS DIVERSAS FACES DA RECLUSÃO FEMININA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENÇA DE ESCRAVAS E SERVAS NO CONVENTO DA SOLEDADE (SALVADOR, 1753-1805) Adínia Santana Ferreira1 A presença de escravos e escravas nos conventos de Salvador foi um aspecto que causou muita preocupação aos arcebispos, particularmente a Manuel de Santa Ignez2. Este estava encarregado da difícil missão de reformar as casas de reclusão soterapolitanas segundo a visão do Concílio de Trento, que não via com bons olhos a presença de escravos e escravas nas instituições religiosas de reclusão, femininas e masculinas, já que estimulava o vício da ociosidade e inviabilizava o voto de pobreza.3 Nesse sentido, aquele arcebispo se empenhou em delimitar taxativamente a diminuição do número de escravos nessas casas, começando pelo de Santa Clara do Desterro, justamente porque era o que apresentava um grande número de escravas. Para determinar tão polêmica decisão, o prelado procurou inicialmente verificar se havia, por parte das reclusas e educandas, licença do papa, para que elas pudessem manter cativos e cativas, pois tal autorização era critério indispensável para tal luxo. Além disso, providenciou o levantamento dos custos com alimentação e vestuário de cada uma. Depois desse diagnóstico, o arrogado arcebispo expediu a referida determinação de que se mandasse sair do Desterro diversas escravas, sob o argumento legítimo do número excessivo de cativos e cativas ali abrigados. Não adotou a mesma medida para os conventos da Soledade, Lapa e Mercês, porque estas casas possuíam um número relativamente pequeno de escravos e servas, na quantidade suficiente para atender às necessidades das reclusas4. Como principal representante da Igreja em Salvador, o arcebispo tinha poderes para decisão que desagradava à comunidade do Desterro e às famílias das reclusas. Contudo, prudentemente, não exagerou na dose, mantendo o mesmo número escravos e servas nos outros três conventos. No Convento da Soledade havia a autorização para a presença de servas e escravas, com a exigência de que fossem donzelas, mulheres honestas. Elas deveriam dormir em celas separadas das religiosas e trajar hábitos de tecido simples, sem muitos enfeites5. A função que servas e escravas desempenhavam na instituição era praticamente a mesma, sendo que as primeiras tinham direito à instrução enquanto as segundas, não. Aquelas eram normalmente forras, mas prestavam serviço no convento por várias razões, como gratidão, devoção, abrigo ou alimentação. Além dessas forras, havia também servas livres, mestiças ou brancas, mulheres e jovens pobres que ofereciam seus serviços pelos motivos já citados6. As religiosas que desempenhavam as funções de mestras, ministravam aulas para as servas nos espaços vagos entre as aulas que davam às professas e educandas. Tal atividade deveria ser encarada pelas servas como uma obrigação, uma exigência para a permanência no convento, uma regra a ser cumprida. Assim, se não comparecessem no local indicado quando os sinos tocassem, estavam, tal como as educandas, sujeitas às punições previstas. A escolarização das servas era objeto de determinação expressa no estatuto e compreendia o ensino da (...) doutrina cristã e para tudo mais que para seu bem espiritual necessitem e ainda para a política civil, lhes nomeará a madre superiora por semanas ou meses como melhor lhes parecer. A mestra as convocará pelo toque de uma sineta na hora que for mais desocupada, não faltando com o castigo as 7 que sem justa causa faltarem (...) 1
Mestre em História Social pela Universidade de Brasília. Manoel de Santa Inez, que pertenceu à ordem dos carmelitas descalços, foi arcebispo de Salvador de 1770 até 1771. 3 NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: As enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Bahia: Conselho Estadual de Cultura, 1994, p.172. 4 Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 5 Idem, Ibidem. 6 NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião. Op. cit. p. 173. 7 Estatuto do Convento da Soledade, op. cit., parágrafo IV. 2
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ISSN 2358-4912 Como escravos e escravas eram, naquela sociedade, consideradas “peças” e não seres humanos, propriedades de alguém e, como tais, proibidos de freqüentar escolas pelas leis do Império Português, também no convento da Soledade o acesso ao ensino lhes estava proibido. Além dessa visível diferenciação, entre escravos/as, livres e forros/as, existiam ainda outras, mais sutis, mas não menos perversas. Assim, geralmente aos escravos estavam reservados os serviços mais pesados no convento e em suas propriedades agrícolas, já que eram cativos da comunidade. Entre servas e escravas existiam aquelas que prestavam serviço à comunidade e aquelas que atendiam às recolhidas. O estatuto do Convento permitia a presença de servas da comunidade, mas proibia a de servas particulares, isto é, dedicadas exclusivamente a uma recolhida, educanda ou religiosa. Conforme os termos daquele instrumento normativo, no que concernia às servas comuns, (...)vulgarmente chamadas da comunidade usando dos poderes que em carta nos concede o S. Padre Benedito XIV, consignamos a respeito da cada dez freiras quatro servas da comunidade e, sucedendo-se pelas educandas serem muitas que não bastem se lhe poderá permitir para cada dez 8 educandas duas servas mais (...)
Este mesmo estatuto determinava que para cada dez freiras deveria haver quatro escravas da comunidade e para cada dez educandas, duas escravas ou servas. Nos livros de registro do convento não encontramos nenhuma nota que informasse sobre a quantidade ou nomes das servas. Contudo, nas listas sobre a população dos conventos, pedidas pelos arcebispos, nós finalmente encontramos alguns registros que, por sua vez, são muito vagos. Em 1753, localizamos 13 servas da comunidade no convento e nenhuma serva particular, assim identificadas: Maria da Anunciação, Joana, Rosa, Verônica, Francisca, Maria, Dolores, Joana Maria, Maria José, Maria das Dores (doada por Inês Zuzarte), Dorotéia (doada por Maria Francisca), Catarina (doada por Lourença de Jesus ) e Maria de Jesus, forra9. No referido período, existiam 39 reclusas e 8 educandas10, quantitativo que daria à casa o direito de possuir cerca de 15/16 escravas para as reclusas e entre uma a duas escravas ou servas para as educandas. Nessa relação, sintonizada com o número de escravas/servas permitido pelo estatuto, reconhecemos que, pelo menos em 1753, aquele estava sendo cumprido. Todavia, em 1775, a situação do Convento da Soledade quanto ao número de escravas e servas apresentava-se diferente. Notamos que o estatuto não estava sendo mais cumprido, haja vista a insistência do arcebispo em determinar que se restringisse o número de escravos e de escravas no convento da Soledade, bem como nos outros três, todos eles com um quantitativo que excedia o previsto, como se pode depreender do quadro a seguir:
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idem, Ibidem. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 10 Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d 9
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Religiosas professas
Educandas seculares
Recolhidas seculares
Total de religiosas, educandas e recolhidas
Hospedes e agregadas
Total de religiosas, educandas, recolhidas, hospedes e agregadas
Escravos da comunidade
Escravas da comunidade
Escravas particulares
Total de servas forras, escravos e escravas
Total da população
Soledade
38
8
1
47
2
49
2 4
7
___
35
66
115
Mercês
48
9
___
57
1
58
15
2
3
71
91
149
Lapa
19
____
___
19
1
20
6
4
19
29
49
Desterro
81
7
17
105
____
105
8
___
338
Total Geral
186
24
18
228
4
232
4 0 8 5
21
22
___ _ 29 0 39 6
44 3 756
Servas forras
CONVENTO
População dos conventos femininos de Salvador: religiosas, educandas, hóspedes, servas e forras, escravos da comunidade e particulares (1775)
524
FONTE: Mapa Geral dos conventos da Bahia. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 47, Documento, 8814, 03/07/1775.
Verifica-se, pelo referido quadro, a existência de um total de 524 escravas e servas, sendo 85 servas forras, 396 escravas particulares e 43 escravos/as da comunidade, para uma população de 232 recolhidas, distribuídas entre 24 educandas, 186 reclusas professas, 18 recolhidas seculares e 4 hóspedes agregadas. Ou seja, havia mais de duas servas/ escravos para cada uma das integrantes das três comunidades como um todo. Nesse conjunto, destaca-se o Convento do Desterro que contava, considerando-se a sua população de 105 recolhidas (81 religiosas professas, 7 educandas seculares e 17 recolhidas seculares), com um número excessivo de servas/escravas e escravos: 338. Ou seja, existiam ali 3 a 4 serviçais para cada uma das recolhidas, sendo que o número de 290 escravas particulares afrontava a legislação episcopal que proibia sua existência, ressalvando-se os casos em que havia licença papal. Se era esse o caso, o convento continuava “transgredindo a lei”, pois desrespeitava o número previsto de 4 escravas da comunidade para cada 10 freiras e 2 escravas/servas para cada 10 educandas. Embora não existisse ali nenhuma escrava da comunidade , haviam 290 escravas particulares, mais 40 servas forras para atender a 81 religiosas professas, 17 recolhidas seculares e 7 educandas seculares. Também o Convento da Lapa destacava-se dos demais, mas pela reduzida população: 49 pessoas, entre religiosas professas (19), hóspede agregada (1), nenhuma educanda, 6 servas forras, 4 escravos da comunidade, 19 escravas da comunidade e nenhuma escrava particular. A relação entre reclusas professas e escravas da comunidade estava porém acima do permitido: 19 escravas para 19 religiosas; ou seja, uma escrava para cada religiosa. Isso sem contar com a presença de 6 servas forras que certamente atendiam ás religiosas, já que não havia no convento nenhuma educanda secular e nenhuma recolhida secular. Enfim, os dados apontam para formas próprias de administração de serviços e de recursos humanos que, em alguns aspectos, atendiam às prescrições estatutárias, já em outros derespeitavam-na, mesmo que sob o risco das admoestações e punições das autoridades.
23 ISSN 2358-4912 Num balanço geral, percebe-se que o número de religiosas, educandas, recolhidas e hospedes era bem menor que o de escravas, escravos, servas forras e escravas particulares das quatro instituições: 332 para 524 escravos/as e servas. No Convento da Soledade, com a população de 115 pessoas, o primeiro grupo representava 43% do total, enquanto o segundo 57%. Isso nos leva a concluir, em consonância com a avaliação de Riolando Azzi, que apesar das autoridades eclesiásticas envidarem esforços para evitar a presença de escravos nos conventos, “não conseguiam controlar os abusos, favorecidos pelos longos e freqüentes períodos de sede vacante nas dioceses da colônia”.11 Acrescentamos, ainda, que tais abusos permaneceram porque respaldados em prática que tinha tradição, prestígio e legitimidade social: possuir escravos, ser proprietário de alguém que executava o serviço para seu dono/a, era costume arraigado e naturalizado naquela sociedade em razão da instituição da escravidão. Significativamente, embora não existissem escravas da comunidade no Convento da Soledade, existiam, porém, 35 particulares e 7 escravos da comunidade para atender a 49 pessoas livres e recolhidas. Acrescente-se ainda 24 servas forras que atendiam a 8 educandas e 1 recolhida secular, além de responder pelos serviços domésticos gerais e comuns do cotidiano da casa. Os escravos da comunidade, embora em número reduzido (7), quando comparado ao das escravas particulares (35), desempenhavam as tarefas mais pesadas, que exigiam maior esforço físico, trabalhando no convento ou nas fazendas e propriedades pertencentes à instituição. Os gastos com alimentação, moradia e vestuário com estes escravos e forras eram custeados pelo próprio convento, mais apropriadamente pelo próprio trabalho daqueles. Não encontramos registro sobre a compra de escravos ou escravas, mas sobre doações que vinham que como parte do dote de algumas religiosas ou educandas12. As escravas particulares acompanhavam algumas meninas, jovens ou mulheres por ocasião do ingresso na instituição ou ali ingressavam quando aquelas já se encontravam recolhidas, sendo “peças” pertencentes às famílias ou compradas especialmente para servir à religiosa no claustro. As despesas com essas escravas particulares eram arcadas pelas suas proprietárias. Além dos inúmeros inconvenientes da existência de escravas/os particulares numa instituição religiosa que pregava e exigia a renúncia aos bens materiais, à ostentação, ao luxo e conforto, acrescente-se que tal presença gerava “diferenças entre os membros de uma mesma comunidade, transferindo para dentro do convento a estrutura da sociedade global composta por escravos, indivíduos livres sem escravos e senhores”13. A presença dessas escravas assegurava a continuidade, em alguns aspectos, do tipo de vida que a reclusa levava antes de ingressar no convento e que, em tese, deveria romper, uma vez que se recolheu em uma instituição religiosa centrada no isolamento, contemplação, mortificações e nos votos de pobreza, humildade e obediência. Engendrava-se, paradoxalmente, uma rotina no cotidiano da casa, marcada pela reafirmação desses votos, com as recolhidas dedicando-se às orações, meditação, preparação para o exame de confissão, penitências, isolamento e também pela sua negação, com suas escravas incumbindo-se de lavar e passar suas roupas, ajudá-las a se vestir, preparar seu banho, penteá-las preparar suas refeições, com um cardápio de suas preferências. Não é, pois, de se estranhar a atitude dos clérigos em relação à presença de escravos/as no convento, bastante rígida nos seus primórdios, e cada vez mais tolerante no decorrer do tempo. Precisamente na passagem do século XVIII para o XIX, observamos uma total condescendência por parte daqueles religiosos, forçados provavelmente pelas circunstâncias que falavam mais alto: a existência da escravidão no país e de uma cultura profundamente vincada por tal instituição, que respondeu pela naturalização da prática em que pessoas livres e proprietárias eram servidas por pessoas escravas. Com efeito, encontramos nos registros referentes ao período de 1803 a 1805, oito breves autorizando religiosas a adquirir uma segunda serva, como podemos visualizar no quadro a seguir: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 49. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 13 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia- Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio/ Brasília: Edunb, 1995, p. 175. 12
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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ISSN 2358-4912 Pedidos de aquisição de servas: Convento da Soledade (1803 a 1805) ANO
AUTORA DO PEDIDO
1803
Eustáquia Maria de Santa Ana
1803
Úrsula da Virgens Fontoura
1803
Maria Gertrudes de São José
1803
Joaquina Perpétua do Coração de Jesus
1804
Anastácia Joaquina de São José
1804
Ana Constância das Virgens Belas
1804
Maria do Carmo e Queiroz
1805
Emereciana Lucina Rosa
FONTE: Breves sobre o pedido de segunda serva para religiosas do Convento da Soledade.Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (ACMS). Tombo Anterior: 159-Br5-4, 5, 6, 7, 35, 36, 37 e 40. Tombo de Mudança: Estante 1, Caixa, 2, 1803-1805.
Os dados apontam para um movimento de reforço à presença de escravas particulares e servas no Convento da Soledade. Contrariamente ao pretendido pelas autoridades eclesiásticas, a presença daquelas serviçais foi se tornando uma prática comum, sendo a condição financeira da reclusa indicativo do número de escravas ou servas particulares de que poderia dispor na casa. Observa-se, assim, que escravos, escravas e servas representaram, neste período, uma significativa parcela da população da casa de reclusão, evidenciando como a escravidão era algo profundamente enraizado na mentalidade colonial. Como se tratava de uma instituição religiosa, parece que ali eram incentivadas práticas da tradição cristã, no caso de doença ou morte das escravas e servas. É o que determina um dos artigos do estatuto: Ordenamos à madre que pela alma de cada serva que falecer lhe mande dizer uma missa de corpo presente. E parecendo lhe que é limitado o sufrágio a vista do muito e bom serviço que fez a este convento lhe poderá dizer até outras três a cada uma das religiosas noviças educandas e mais servas 14 lhe rezarão pela alma dentro em três dias um terço do Rosário (...)
Nesse sentido, o convento talvez fosse um espaço onde a “política de domínio”15 a que se refere Slenes, tenha sido praticada com mais êxito e constância. Processa-se ali uma permanente relação de trocas entre mulheres livres proprietárias e mulheres escravas, propriedades, cada uma das partes defendendo o agenciando seus interesses. No que concernia às escravas e escravos, um bom desempenho nos serviços para negociar, em melhores termos, sua condição. Daí desempenhar bem suas tarefas, usufruir da confiança de sua proprietária para permanecer no convento e ali desfrutar de um conforto relativamente maior: alimentando-se e vestindo-se de forma razoável. Acrescente-se ainda o investimento feito por aqueles com vistas a poder contar com a possibilidade de uma atitude mais carinhosa, caridosa e humana de suas senhoras, além da garantia de uma “missa de corpo presente” quando falecesse. No que tange às suas proprietárias, as recolhidas, a garantia de serviços bem prestados, sem muito desgaste na função de comando e supervisão, além da fidelidade de suas escravas 14
Estatuto do Convento da Soledade, op. cit. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. (org.) História da vida privada no Brasil- Império: a corte e a modernidade-Volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 236.
15
25 ISSN 2358-4912 e amas, assegurada pelo interesse de permanecer no convento e pela possibilidade de uma alforria no futuro. O convento era, portanto, um espaço que abrigava a presença de escravos, sem acarretar grandes tensões, explícitas entre proprietárias e escravas/servas, provavelmente porque as relações entre estas pareciam estar mais suavizadas pela “política de domínio”, bem como pelo clima de religiosidade que, inegavelmente, presidia o cotidiano da população livre e escrava do convento.
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências Breves sobre o pedido de segunda serva para religiosas do Convento da Soledade. Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (ACMS). Tombo Anterior: 159-Br5-4, 5, 6, 7, 35, 36, 37 e 40. Tombo de Mudança: Estante 1, Caixa, 2, 1803-1805. Estatuto do Convento da Soledade, parágrafo IV. Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia- Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio/ Brasília: Edunb, 1995. AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: As enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Bahia: Conselho Estadual de Cultura, 1994. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. (org.) História da vida privada no Brasil- Império: a corte e a modernidade-Volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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ISSN 2358-4912
A FORMAÇÃO DOS SECRETÁRIOS NA ARTE DE ESCREVER CARTAS: UM MANUAL PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII Adriana Angelita da Conceição16 Os mais consideráveis acontecimentos do início da idade moderna envolvem o que podemos definir como múltiplas mobilidades, ao se considerar a relevância das navegações e suas implicações políticas, econômicas, sociais e culturais. O pesquisador Anthony John R. Russell-Wood fez destes deslocamentos o tema unificador de uma consistente pesquisa sobre um mundo em movimento, analisando a mobilidade dos portugueses entre a África, a Ásia e a América – e destes continentes entre si e com Portugal. A análise de Russell-Wood consistiu na problematização de múltiplas relações que envolveram explorações, descobertas, mercadorias, dispersão de doenças, difusão de plantas e animais, troca de ideias e culturas, migrações forçadas e muita circulação de pessoas.17 Sendo que estas relações foram estabelecidas, sobretudo, por redes de comunicação que mobilizaram a troca de informações e notícias – movimentadas por papeis manuscritos e impressos que circularam por terra e mar. Deste modo, estas redes foram os alicerces dos governos a distância e uma prática foi pertinente neste mundo em movimento: a escrita de cartas. Para um tratadista do século XVII a carta fazia “volar los pensamientos de una á otra parte del Mundo”18. Com as mobilidades proporcionadas pelas navegações, os governos passaram a funcionar a distância, assim, a carta de circulação pública representou a estruturação de práticas governativas, acompanhada de outros documentos. Segundo o historiador Antonio Castillo Gomez, estudioso da cultura escrita, “En la governación del reino las cartas se mostraban, pues, como piezas fundamentales de la maquinaria burocrática”.19Além disso, deve-se considerar que com a sedentarização das cortes sucedeu-se alterações nos governos monárquicos, ao dependerem, consideravelmente, da escrita e de funcionários ligados a este saber, o que viabilizou o aumento da importância de uma figura inteiramente ligada aos papeis, o secretário. Assim, o governo monárquico, na idade moderna, é incompreensível apartado do papel. O historiador Jonh Elliot afirmou que os indivíduos envolvidos com as monarquias, sobretudo nos contextos ultramarinos, viram-se ligados por cadeias de papel ao governo central da Espanha – o que também aconteceu em Portugal. Segundo Elliot, três instrumentos tornaram-se fundamentais para atender aos desafios da distância, diante da amplitude do império espanhol: a pena, a tinta e o papel20. A proposta deste texto será analisar a publicação, no século XVIII, de um compêndio destinado aos secretários portugueses, com indicações das melhores maneiras de compor uma carta e o que se esperava da postura e prática deste funcionário. Além disso, serão propostas algumas questões de pesquisa para se problematizar a relação entre o governo e a escrita. Mas, antes de analisar o manual e estas questões, far-se-á algumas considerações referentes às publicações deste tipo de obras no mundo ibérico, especialmente na Espanha, onde a produção foi abundante. A vinculação do governo ao papel requereu cuidados, importando não apenas a disposição gráfica da palavra, mas também os arranjos discursivos. Neste sentido, de acordo com o historiador Fernando Bouza “la figura del secretario resultará crucial en la cada vez mayor escriturización del despacho de gobierno”21 – o que manifesta a preocupação com a formação dos funcionários reais que atuariam neste novo contexto repleto de papeis. Deste modo, torna-se imprescindível considerar o reinado de Filipe II (1580-1598) como promotor desta burocratização da monarquia, sendo-lhe atribuído o epíteto de rei 16
Pós-Doc UNICAMP-FAPESP. RUSSELL-WOOD, Anthony Jonh R. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: Difel, 1998. p. 17. 18 CASTILLEJO, Juan Pérez de Valenzuela. Nuevo estilo y formulario de escribir cartas misivas y responder a ellas (…) [cópia Manuscrita], 1747. p. 2v. 19 GÓMEZ, Antonio Castillo. “Hablen cartas y callen barbas”. Escritura y sociedad en el siglo de oro. Historiar: Revista Cuadrimestral de Historia. Alcalá de Henares, n. 4, 2000. p. 121. 20 ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. América Latina Colonial. vol. I. São Paulo/Brasília: EDUSP/Fundação Alexandre Gusmão, 1998. p. 287. 21 BOUZA, Fernano. Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid, Marcial Pons, 2001. p. 265. 17
27 ISSN 2358-4912 papeleiro. Com Filipe II as consultas escritas tornaram-se prioritárias em detrimento das orais e foi-se promovendo a “publicación de una literatura didáctica orientada al adiestramiento de los oficiales de la Corona en el ejercicio de la escritura y en otras disciplinas”.22 A abertura da tratadística de secretários na Espanha, segundo Carmen Sánchez, é atribuída a obra de Gabriel Pérez del Barrio Angulo, Dirección de secretarios de señores y las materias, cuydados y obligaciones que les tocan (…)23, publicada em 1613. A segunda edição, em 1622, teve o título Secretario y consegero de señores y ministros (…)24 vindo acompanhada de centenas de exemplos de cartas. Pérez del Barrio tinha larga experiência no ofício de secretaria, pois foi secretário do marquês de los Vélez. Para Fernando Bouza, com a escrita do manual, Barrio buscou enfrentar um dos desafios do ofício: o “maneio de papeles”.25 Pois, ao secretário cabia o cuidado com os papeis de seu senhor, além da responsabilidade da escrita epistolar. Estas publicações e outras semelhantes foram inspiradas nos manuais de escrita de cartas do século XVI, como os de Juan de Icíar, Nuevo estilo de escrevir cartas mensageras sobre diversas matérias e o de Antonio de Torquemada, Manual de escribientes. Ademais, a definição de obras específicas de secretários indica uma consciência de ofício profissional, na qual, de acordo com Sánchez, os “secretários pudieran reclamar una posición privilegiada dentro la Corte, sus derechos, la consideración y estima de la que se habían hecho merecedores” – delineando a relação entre o governo e o papel. Em Portugal a publicação de Corte na Aldeia e Noites de Inverno, composta por Francisco Rodrigues Lobo em 1619, com tradução para o castelhano em 1623, representa uma das primeiras obras modernas em português na qual o tema da escrita foi pormenorizado, embora não fosse um compêndio e discutisse outras questões como a situação lusa de não possuir uma corte, já que o rei estava na Espanha. O texto é estruturado através de 16 diálogos estabelecidos com base na conversação de cinco personagens principais. O tema crucial dos diálogos concentra-se nos modos e limitações das conversações em ambiente cortesão, sendo que em determinados diálogos, a discussão desdobrou-se sobre o que estaria mais adequado ao cortesão: escrever ou falar, incluindo questionamentos direcionados à prática epistolar. Mesmo que Corte na Aldeia não seja um manual de escrita de cartas ou para secretários, o tema epistolar mereceu ponderações. Ainda no século XVII outra obra relacionada à escrita de cartas e dedicada aos secretários foi lançada na Espanha. Juan Fernandes de Abarca publicou o Discurso de las partes y calidades con que se forma un buen secretario em 1618.26 Fernandes de Abarca problematizou a prática epistolar de modo exaustivo e atento, além de indicar uma “vocación pedagógica que le impulsaba a aunar en su obra teoría y prática”27, como destacou Sánchez – apontando uma pertinência daquele momento, a imbricação entre a prática e a teoria epistolar, diferente do século anterior, no qual os manuais estavam mais preocupados teoricamente com a escrita de cartas do que com seu uso prático. O compêndio de Abarca, que embora português, publicou em castelhano, indica as relações da união ibérica no que diz respeito ao mundo dos livros. Pois, Fernandes de Abarca preferiu a língua espanhola e não a lusa para divulgar seus apontamentos. Diferente de Lobo que dedicou diálogos a defender a língua materna naquele contexto de dois reinos e um rei. O secretário no ambiente da governabilidade imperial possuía o que se pode definir como domínio do discurso escrito e, consequentemente, de todos os segredos, assim, era visto como o principal servente de um senhor. O secretário compartilhava do universo escrito do governo, exercido em nome do rei, no V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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SÁNCHEZ, Carmen S. Secretarios de papel: los manuales epistolares en la España moderna (s. XVI-XVII). In: GOMEZ, Antonio Castillo; BLAS, Verónica Sierra (dirs.) Cinco Siglos de Cartas: Historia y prácticas epistolares en las épocas moderna y contemporânea. Huelva : Universidad de Huelva, 2014. p. 79. 23 Dirección de secretarios de señores y las materias, cuydados y obligaciones que les tocan, con las virtudes de que se han de preciar, estilo y orden del despacho y expediente, manejo de papeles de ministros, formularios de cartas,(…), y otras curiosidades que se declaran en la primera hoja, Madrid, Alonso Martín de Balboa, 1613. 24 Secretario y consegero de señores y ministros: cargos, materias, cuydados, obligaciones, y curioso agricultor de quanto el gobierno, y la pluma piden para cumplir con ellas, Madrid, Francisco García de Arroyo, 1639. 25 BOUZA, F. Corre manuscrito… op. cit. p. 242-243. 26 ABARCA, Juan Fernandes. Discurso de las partes y calidades con que se forma un buen secretario, con una recopilación del número que hay de cartas misivas para su exercicio, Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1618. 27 SÁNCHEZ, C. Los manuales… op. cit. p. 67.
28 ISSN 2358-4912 caso ultramarino, aludindo a necessidade de uma relação de poder e confiança entre senhor e secretário. A pesquisadora Elena del Rio Parra estudou as obras do dramaturgo Lope de Vega, que além dessa função também atuou como secretário em diferentes casas nobiliárquicas da Espanha. Com isso, Lope de Veja tematizou a prática de secretariar entre seus personagens. Neste sentido, as análises de Parra indicam que um dos poderes do secretário concentrava na capacidade de “modificar las acciones y actitudes” de seu senhor, por isso, a relação entre ambos merecia atenção e dedicação.28 Na coletânea O homem Barroco dirigida por Rosario Villari o texto de Salvatore Nigro, destinado a indicar questões sobre o secretário analisa este ofício como perpassado pelas habilidades da filosofia e com certo poder heróico, pois, também exercia papel na formação dos príncipes. Para Nigro, do século XVI ao XVIII, o secretário se configura como uma inteligência auxiliar, especificamente em uma sociedade baseada em relações lineares, entre camadas altas e baixas. Assim, o secretário era visto como “um raio da grandeza do Príncipe, a cujo serviço colocava saberes particulares”.29 Diante destas qualificações requeridas ao secretário, a mais pertinente estava ligada ao silêncio, – “o ofício baseava-se no segredo e no secretismo” 30 – qualidade que aparece em toda a tratadística de secretário da idade moderna. No dicionário setecentista de Rafael Bluteau consta que o secretário é aquele que “tem por officio escrever cartas de hum Cavalheyro, Principe & ou que toma, & guarda os segredos do seu senhor, para os declarar, & significar quando convèm. Guarda o secretario o segredo quando os calla”.31 Assim, a significação de secretário se imbrica entre o que escreve cartas e o que guarda segredos. Na sequência, Bluteau indicou um exemplo de Pyrrho, o rei de Epirotas, que “confessava que seu Secretario Cyneas com a penna, & a língua lhe ganhara mais Cidades, que todos os seus Capitães com a espada”. Estes exemplos mostram a relação íntima e importante do secretário com os governos, pois passava por sua pena fundamentalmente todas as questões que envolviam os processos governativos. O Secretario Portuguez Compendiosamente Instruido no modo de Escrever Cartas, de Francisco José Freire, editado pela primeira vez em 1745, consagrou-se como a mais relevante publicação em português na qual o tema da prática de secretariar e da escrita epistolar foi abordado.32 Freire nasceu em Lisboa no ano de 1719 e faleceu aos 53 anos. Realizou estudos de humanidades no Colégio Santo Antão, inaciano, e na Casa de São Caetano, de clérigos Theatinos. Foi “gentil-homem em casa do cardeal patriarcha de Lisboa, D. Thomás d’Almeida”33 – figura influente em Portugal. O fato de Freire ter sido secretário do patriarca de Lisboa reforça o que foi destacado anteriormente, ou seja, que a maior parte dos escritores de tratados atuaram no ofício de secretaria. Além disso, dedicou a obra ao patriarca, o que já alude as redes de sociabilidades nas quais circulava e buscava se manter – escreveu Freire: “sempre em mim era acto necessario consagrar a V. Eminencia este Livro (…)” pois, era Almeida uma “altissima Dignidade Cardinalicia; e sagradamente coróado primeiro Principe da Mitra Patriarcal de Lisboa”.34 Freire escreveu dezenas de obras, de circulação impressa e manuscrita, entretanto, O Secretario Portuguez foi a de maior repercussão no ambiente livreiro de Portugal, em função das inúmeras reedições ao longo dos séculos XVIII e XIX – embora também tenha sido criticada, logo após a primeira edição, pelo padre oratoriano Luís Antônio Verney. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
28
PARRA, Elena del Rio (Brown University). La figura del secretario en la obra dramática de Lope de Vega. www.ucm.es/info/espetaculo/numero13/secretos.html. Acesso em março de 2008. 29 NIGRO, Salvatore S. El secretario. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença, 1994. p. 84. 30 NIGRO, S. El secretario op. cti. p. 85. 31 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, rchitectonico (…). Coimbra, 1712 – 1728. p. 537. Dicionário digitalizado e disponível em www.ieb.usp.br. Acesso em junho de 2014. 32 O secretario portuguez compendiosamente instruido no modo de escrever cartas. Por meyo de huma instrucçam. Preliminar, regras de Secretaria, Formulario de tratamentos, e hum grande numero de Cartas em todas as especies, que tem mais uso. Escrito e consagrado ao Eminentissimo, e Reverendissimo Senhor CARDEAL PATRIARCA, Primeiro de Lisboa, Do Conselho de Estado, e Capellaõ Mor. Por seu Criado Francisco Joze Freire. Lisboa, Na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca. Anno MDCCXLV. 33 Diccionario Bibliographico Portuguez. Estudo de Innocêncio Francisco da Silva. Aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Tomo 2º. Lisboa, imprensa Nacional, 1849. 34 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 3.
29 ISSN 2358-4912 Francisco José Freire, ao iniciar o compêndio, escreveu que se inspirou no escrito do italiano Isidoro Nardi.35 Porém, mais do que se inspirar, traduziu vários trechos e os incorporou, especialmente, na introdução. Contudo, segundo José da Silva Simões, Nardi se baseou e copiou partes da obra francesa Le Secrétaire à la Mode de Juan Puget de la Serra.36 O mesmo fez o espanhol Juan Páez de Valenzuela com a obra de Juan Fernandes de Abarca. Estes apontamentos evidenciam a presença de um certo tipo de rede de leituras, de releituras, de cópias e de traduções no espaço latino, no que diz respeito a tratadística epistolar. A principal intenção de Freire era instruir os jovens portugueses no exercício da escrita epistolar através de uma obra em língua materna, para que não precisassem recorrer aos estrangeiros – as intenções de Freire estavam relacionadas às mudanças portuguesas no ensino, transcorridas, principalmente, na segunda metade do século XVIII.37 A preocupação de Freire com o ensino de novos secretários se imbricava com o que o historiador Santiago Martinez Hernánez indicou como a oportunidade social que o domínio da escrita ofereceu para muitos indivíduos na idade moderna. Hernández apontou que muitas famílias de letrados foram se perpetuando nos ofícios da administração real, ao ponto de “erigirse en auténticas dinastías de secretarios, contadores y oficiales que, con el tiempo, acabaron siendo ennoblecidos por la Corona”.38 A primeira parte do compêndio é uma carta ao leitor, chamada de Satisfação necessária, na qual Freire indicou o motivo da publicação, que seria “o zelo, e amor da Patria, virtude engrandecida por muitos e praticada por poucos”.39 A mocidade portuguesa foi criticada por Freire, pois se dedicava mais a espada do que ao aprendizado das letras, o que gerava em alguns jovens a ausência de habilidade com a prática de escrita de cartas. Entretanto, essa falta de manejo com a pena também se relacionava à ausência de manuais de secretário em português, conforme destacou Freire. Situação que não ocorria na Espanha, na Itália ou na França, por exemplo, para citar apenas as línguas latinas. Deste modo, Freire indicou a intenção de ser útil aos principiantes na arte epistolar, sugerindo que se dedicassem a estudar as instruções e as advertências, e pouca atenção dessem aos exemplos de cartas, pois eram suas. Na mesma época, em outras partes da Europa, já eram comuns as publicações de coletâneas de cartas, como exemplo de trato epistolar. Neste sentido, Freire apontou que existiam importantes cartas portuguesas que podiam vir à luz, o que não ocorria pela modéstia dos autores ou pela “ambiciosa conservasaõ de seus parentes”.40 A segunda parte do compêndio denominada Instrução Preliminar apresentou indicações específicas do ofício de secretário. No entanto, Freire advertiu que muito pouco confiava em suas instruções, necessitando o secretário ser “dotado de hum vivo engenho”.41 O secretário deveria conhecer as línguas latinas e muitíssimo bem o português, além de estudar outras obras sobre cartas. Para o autor, a maior dificuldade que o secretário encontraria estava relacionada ao exórdio. Assim, sugeriu que o principiante considerasse que todas as cartas – menos as de narração e de descrição – se dividiam em quatro partes: “no primeiro se narra o facto; no segundo se roga a que se agradeça, ou respectivamente se daõ os agradecimentos; no terceiro se offerece o prestimo; e no quarto se desejaõ felicidades”.42 Deste modo, para o uso abundante de termos e de proposições no início da carta, bastaria que o secretário estivesse atento a “quatro cousas; isto he o principio à quo, o termo ad quem, a instrumental, e a causal”43 – sendo estas questões uma constante entre os manuais epistolares no século XVI e XVII. O V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Isidoro Nardi. Il secretario principiante ed istruito. Diviso in due Parti de Lettere in questa Terza Impressione. Roma, MDCCX. (3º edição) 36 SIMÕES, José da Silva. Sintaticização, Discursivização e Semantização das orações de gerúndio no português brasileiro. São Paulo, 2007. Tese de Doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas. USP. FFLCH, DLCV. p. 174. 37 Para saber mais sobre as mudanças educacionais consultar, por exemplo, o que escreveu Ana Rosa Cloclet da Silva e Kenneth Maxwell. Conferir bibliografia. 38 HERNÁNDEZ, Santiago Martinez. Memória aristocrática y cultura letrada: usos de la escritura nobiliária en la Corte de los Austrias. In.: BOUZA, Fernando. (org) Cultura Escrita & Sociedad. n°. 03, 2006. Astúrias: Ediciones Trea, 2006. p. 71. 39 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 4. 40 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 4v. 41 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10. 42 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10v. 43 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10v.
30 ISSN 2358-4912 princípio à quo estava relacionado a qualidade da pessoa que escrevia a carta, o ad quem se relacionava ao destinatário, o instrumental eram os termos que podiam melhor acompanhar os princípios à quo e ad quem, e o causal significava o uso de certos verbos que podiam revestir a observância dos princípios à quo e ad quem. Com estas ponderações, Freire mostrou o quanto era importante observar as palavras escolhidas, em particular os pronomes de tratamento, para que se evitasse qualquer tipo de desentendimento entre o senhor e seus destinatários. Depois deste ensinamento, ponderou uma delicada questão, indicando que suas instruções apenas abriam espaço ao “engenho do Secretario principiante”, para que pudesse usar suas ideias, “porque depois de estar prático nos quatro modos sobreditos, poderá desta Causal extrahir com facilidade muitos, e novos principios para a sua carta, formando hum periodo mais unido”.44 Além de instruções para o início da carta e de indicações de expressões destinadas a introduzir determinados assuntos, Freire mostrou que o encerramento também requeria cuidados, de acordo com o grau de amizade e ordem hierárquica estabelecidas entre remetente e destinatário. As instruções foram concluídas com a apresentação de três regras que o secretário deveria seguir: respeito ao amo que serve, a pessoa a quem se escreve e ao assunto da carta. Estas regras se desdobravam em 10 princípios, divididos em qualidades e defeitos. Assim, as Perfeiçoens do secretario, consistiam em segredo, erudição, generalidade, reflexão e eloquência. Já os vícios eram a demora, a prolixidade, a aspereza, a ignorância e a escuridade. Freire escreveu pequenos textos explicativos para cada perfeição e vício. O historiador Tiago Miranda observou que a divisão entre perfeições e vícios, apresentadas por Freire, foram copiadas de Isidoro Nardi: Segretezza, Erudizione, Generalità, Riflessione, Eloquenza, Tardità, Ampliezza, Rigidezza, Ignoranza e Oscurità.45 O compêndio também trouxe exemplos de cartas acompanhados por Livros de Advertencia – pequenos textos que discorreram sobre cada tipo de carta, indicando o que deveria ser evitado e o que fazer parte. As cartas foram apresentadas junto da divisão de gêneros: Demonstrativo, Judicial e Deliberativo – fragmentação pertencente à tradição retórica e a estruturação da nova epistolografia, começada no início do século XVI e atribuída a Erasmo de Rotterdam. Os três gêneros compreendiam 12 tipos principais de carta e suas subdivisões.46 Além disso, ainda existiam três tipos de cartas que não se enquadravam nos gêneros, mas que receberam observações e exemplos eram as cartas de gênero misto, as discursivas e as de satírica e desprezo.47 O compêndio de Freire representou um marco na produção livresca de Portugal, diante das reedições e das questões que sugere ao indicar, por exemplo, a ausência deste tipo de produção entre os portugueses. Caberia, como realizou Carmem Sánchez para a Espanha, uma análise dos inventários de livrarias e bibliotecas particulares em Portugal após 1745 para que se pudesse ter um panorama da recepção da obra e entre quais grupos sociais estava presente. Embora saiba-se que um público específico – oficiais de secretaria, secretários, burocratas – fosse o destinatário deste tipo de publicação. Em relação à repercussão nos espaços privados, esta questão fica mais problemática, já que o estilo dos mais de 500 exemplos de cartas sugeridos por Freire não percorrem os meandros da individualidade, como tinha que ser, considerando não se tratar de uma questão para as sociabilidades da idade moderna – a ideia de individualidade desponta no transcorrer do século XIX, com cartas que se inspiram no universo íntimo da vida cotidiana. A historiografia espanhola, nos últimos 20 anos, vem publicando uma expressiva quantidade de estudos que analisam a importância da tratadística epistolar e do universo escrito no exercício do governo monárquico moderno. Neste sentido, verifica-se a necessidade do aumento de estudos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 12. MIRANDA, Tiago C. P. Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Batella (Org.). Prezado Senhor, Prezada Senhora: estudos sobre as cartas. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 46. 46 Cartas de gênero Demonstrativo: Parabéns, Oferecimento, Agradecimento, Aviso e Louvor. Gênero Judicial: Desculpa e de Justificação e Queixas. Gênero Deliberativo: Pêsames, Recomendações, Boas Festas, Consolação, Exortação e Conselho. Como exemplo de subdivisã para cartas de Boas Festas: para bispos e cardeais, para pessoas particulares, resposta às cartas de Boas Festas de cardeais, resposta às cartas de Boas Festas de bispos, para cavaleiros e para pessoas particulares. 47 Ainda fez parte do compêndio um Formulario de Tratamentos muy necessario ao Secretario portuguez, que serviria de base à seleção do devido tratamento e um Formulario de Sobrescritos. 45
31 ISSN 2358-4912 voltados às análises da escrita e sua relação com o governo do império ultramarino português. Atualmente, identifica-se poucas reflexões sobre a cultura escrita do império português, embora sejam estudos de inegável qualidade acadêmica. Mas, faltam análises que se proponham a estudar a escrita, com o aporte teórico e metodológico da história social da cultura escrita, ponderando: produção, recepção, circulação e, sobretudo, a conservação dos documentos. Este texto apenas apresenta algumas questões que fazem parte de uma pesquisa maior e em desenvolvimento que se propõe a problematizar a intrínseca relação entre o governo e a escrita. Eis algumas ponderações: quem foram os secretários dos principais governadores-gerais e vice-reis da América portuguesa? Se possuíam, qual era a formação destes secretários? Como se deram as práticas de produção e conservação da correspondência destes administradores? Como podemos problematizar a posse particular da documentação produzida pelos administradores ultramarinos, já que a maior deles, ao regressar ao reino, levava os documentos em suas bagagens? Por que e como muitos destes documentos, levados nas bagagens pessoais, ingressaram nos acervos de instituições públicas de guarda documental? Será que uma análise da presença e envolvimento dos secretários – como sujeitos diretamente ligados à produção e conservação da escrita – não remeteria questões ainda desconsideradas no exercício do governo ultramarino? Será que o estudo destes oficiais e suas práticas não indicaria problematizações quanto à conservação documental, começada durante a produção da escrita? Estudos referentes à organização, formação e estabelecimento do Arquivo de Simancas indicam disputas entre relações de memória e esquecimento sendo estabelecidas deste o século XVI, como mostrou o historiador Fernando Bouza. Deste modo, será que uma análise da escrita que considere quem assinou o documento mas também quem participou da produção não proporia questões ainda não tematizadas sobre a cultura escrita luso-brasileira no espaço do governo? Para quem estuda a documentação setecentista da capitania de São Paulo, especialmente, a administração do governador-geral Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, morgado de Mateus, e os primeiros meses do governo de seu substituto, Martim Lopes Lobo de Saldanha, com frequência encontra a assinatura de Tomás Pinto da Silva, que foi secretário da capitania. Se a presença deste oficial é pertinente em expressiva quantidade de documentos ligados à capitania de São Paulo, porque pouco se sabe sobre ele, sendo que passou por suas mãos basicamente toda a papelada de mais de uma década de governo. Além disso, Tomás Pinto da Silva, com ordens de D. José I, foi encaminhado ao Rio de Janeiro para que fosse secretário do vice-rei 2º marquês do Lavradio. Entretanto, a notícia não agradou o vice-rei que escreveu ao marquês de Pombal desqualificando Tomás Pinto da Silva. A Pombal, Lavradio afirmou que preferia os secretários que o acompanhavam deste a Bahia, quando foi governador daquela capitania. Será que relações de poder e saber estavam comprometidas entre Lavradio e Silva, já que tinha sido secretário do morgado de Mateus, com quem o vice-rei teve alguns desentendimentos? Infelizmente este texto não oferece muitas respostas. Mas, isso também pode significar o quanto ainda temos por pesquisar sobre a cultura escrita do império ultramarino, considerando a produção, recepção, circulação e conservação dos documentos produzidos durante o período colonial lusobrasileiro. Salvatore Nigro, estudando a figura do secretário, apontou que “Ninguém retratava o secretário. Não era possível fazê-lo. Corpo, gestos, vestuário e pronuncio empurravam-no para a sombra, para a inevidência, o conformismo, o anonimato; e para uma opção de solidão”.48 Será que estes preceitos foram tão obedecidos pelos secretários que pouco se sabe sobre eles? Ou será que se negligencia suas atuações, o que os levaria ao anonimato? V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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NIGRO, Salvatore S. El secretario. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença, 1994. p. 86. As referências dos manuais de secretário e outros compêndios apenas aparecem nas notas de rodapé.
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HOMENS DE ESPADA E DE PENA: COMANDANTES DE FRONTEIRA E CONTROLE DE CIRCUITOS DE COMUNICAÇÃO NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (1790-1812)50 Adriano Comissoli Esta comunicação analisa o papel dos comandantes militares da capitania do Rio Grande de São Pedro dentro da rede de inteligência estabelecida para vigiar e espionar seus vizinhos espanhóis na bacia do rio da Prata em inícios do século XIX. Eles formavam o nodo de um circuito de comunicação que conectava espiões e batedores destinados a obter notícias em cidades hispano-americanas, às altas autoridades da monarquia portuguesa, responsáveis por determinar sua agenda geopolítica. Cabialhes designar os espiões, bem como selecionar e sintetizar as informações alcançadas por meio de correspondência e de relatos orais. Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Pelas notícias que me trouxeram os espias que tenho no campo espanhol: espiões, redes de informação e guerra na fronteira platina (séc. XVIII e XIX)”, em desenvolvimento. Até o momento efetuou-se o levantamento dos maços de número 1 a 8 (1790 a 1804) do fundo Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e da correspondência do governador Paulo José da Silva Gama, publicada em 2008.51 A consulta do se estenderá até o maço 33, alcançando o ano de 1812, com o fim da intervenção portuguesa sobre a Banda Oriental. Já foram identificados 130 documentos que tratam da vigilância lusitana na região platina. Dado o modo de arquivamento estes documentos compõem-se de número variável de cartas. Comunicação política é um tema bastante amplo, ainda mais em se tratando do “império de papel” português, como o apelidou António Manuel Hespanha.52 A alcunha se deve não à fragilidade do construto político, mas ao fato de que, em considerável medida, o mesmo era governado pelo fluxo constante de cartas que se dirigiam de Lisboa para as possessões em diversas ilhas e continentes e destes para a Corte. A correspondência e, por meio dela, a escrita eram atividades cruciais na administração de espaços tão distantes, mas que se mostravam interligados. Sobre o tema, felizmente, temos contado contribuições importantes como as de Bicalho, de Frazão, de Santos e do projeto coletivo coordenado por Fragoso.53 Todos estes esforços demonstram como a ida e vinda de papéis construíam uma governabilidade. Contribuo considerando a comunicação política junto ao fenômeno da fronteira platina, pois possibilita uma perspectiva particular devido à existência de uma bem elaborada rede de informações que buscava coletar e repassar informações desde as possessões espanholas. Trocando em miúdos, falo de espionagem, cuja obtenção de informações se divide em dois tipos. O primeiro consiste em utilizar patrulhas e batedores avançados que, circulando pela região da campanha entre a capitania do Rio Grande de São Pedro e a Banda Oriental, procuram pela movimentação de tropas espanholas e localização de criminosos fugitivos. O segundo método é o dos espias localizados em cidades hispânicas com a finalidade de manter as autoridades portuguesas devidamente atualizadas tanto de iniciativas militares quanto dos humores políticos, elemento essencial nos agitados anos das duas primeiras décadas do século XIX. O vocábulo espia significa claramente espião, pois é descrito pelo dicionário de Raphael Bluteau como “O que anda desconhecido entre os inimigos, para descobrir os 50
Esta investigação contou com apoio Auxílio Recém-Doutor da FAPERGS. MIRANDA, Márcia Eckert & MARTINS, Liana Bach (coord). Capitania de São Pedro do Rio Grande: correspondência do Governador Paulo José da Silva Gama 1808. Porto Alegre: CORAG, 2008. 52 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. 53 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FRAZÃO, Gabriel Almeida. Amizade no papel: Antônio Vieira e suas relações de sociabilidade. Niterói: Dissertação de mestrado/PPGH-UFF, 2006. SANTOS, Marília Nogueira dos. Escrevendo cartas, governando o império: a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no governo-geral do Brasil (1691-1693). Niterói: Dissertação de mestrado/PPGH-UFF, 2007. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (2009). Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII, Tempo, v. 14, n.27, pp. 36-50. 51
34 ISSN 2358-4912 seus intentos, & para dar aviso aos seus”.54 Hoje minha atenção se volta aos comandantes com quem tais informantes trocavam mensagens orais e escritas. Embora o Rio Grande de São Pedro, no extremo sul da América lusa, formasse um único espaço de fronteira com os domínios espanhóis do vice-reino do rio da Prata seus administradores entendiam que o mesmo era composto por subdivisões. Repartiam a região em dois pólos: a fronteira do Rio Grande e a do Rio Pardo. Cada uma delas tinha por centro de comando as povoações de mesmo nome. A primeira localizava-se na área mais ao sul da capitania, onde em 1737 fora fundado seu primeiro presídio militar. Até 1763 – ano da invasão espanhola – Rio Grande servira de centro administrativo e capital. A segunda geria a porção ocidental. Rio Pardo fora o núcleo populacional luso mais a oeste na região até 1801, quando a incorporação dos sete povos missioneiros da margem esquerda do rio Uruguai adicionou um vasto território. Das duas localidades partira a maior parte das correspondências localizadas até o momento e que esgotam o intervalo 1790-1804. A maior parte das missivas, portanto, fora redigida justamente pelos comandantes de fronteiras e direcionadas ao governador da capitania ou ao seu ajudante de ordens. Os dois comandantes de fronteira desempenharam o papel de nodos da rede, aglutinando as notícias que lhes chegavam de diferentes canais: bilhetes e cartas de seus subordinados, relatos orais de batedores, questionamento de viajantes e informes diversos. Todos os canais eram válidos para manter-se a par do que ocorria no sul da América, no Rio de Janeiro e mesmo na Europa. Manuel Marques de Souza nascera no Rio Grande de São Pedro em 1743, filho de imigrantes do Reino. Pertencia à primeira geração de sua família nascida na América. Em carta ao príncipe Dom João, em 1801, logo após obter uma vitória militar sobre o quartel espanhol de Serro Largo, declarou haver iniciado seus serviços militares em 1769 (aos 26 anos) sentando praça de “Tenente dos Voluntários escolhidos com soldo”.55 Sua participação nas fileiras seguiu até o fim de sua vida em 1822, quando desfrutava a mais alta patente das tropas regulares, a de tenente-general. Neste longo intervalo o oficial –que nunca fora soldado – participou das inúmeras operações bélicas que opuseram vassalos de Portugal e de Espanha no quinhão meridional da América. A partir de 1777, quando se estabeleceu a paz de Santo Ildefonso, ele passou ao posto Comandante da Fronteira do Rio Grande. Na mesma altura fora nomeado para comandar a Fronteira do Rio Pardo o tenente-coronel Patrício José Correia da Câmara. Ele nascera a bordo de um navio que transportava seus pais ao Reino, sendo batizado na freguesia de Santo Elói em Lisboa. A exemplo de Marques de Souza, também gozou de longevidade, falecendo em 1827 com quase noventa anos de idade e como seu contemporâneo deu início a um importante tronco familiar sul rio-grandense, o qual frequentemente destinou seus integrantes masculinos à vida militar. Patrício sentou praça ainda em Portugal, tendo servido no Estado da Índia antes de ser remanejado ao do Brasil. Aderiu à causa da emancipação brasileira em1822 e quatro anos depois foi elevado à Visconde de Pelotas com grandeza. Antes das distinções, contudo, Correia da Câmara e Marques de Souza foram comandantes militares. E, a julgar pelas cartas que trocavam, amigos (“Meu Antigo Amigo e Senhor do meu coração”).56 Nascidos em boas famílias iniciaram suas experiências nas tropas já nas colocações de oficiais. Os homens bem nascidos que se dirigiam à vida militar não ingressavam como praças e soldados, a qualidade social atribuída a seu nascimento lhes garantia a inserção em postos de comando, fazendo com que as forças regulares reprisassem a hierarquia da sociedade. Era virtualmente impossível que um praça humilde galgasse posições até o alto oficialato. Ser um oficial militar significava bastante na sociedade sul rio-grandense porque significava bastante na monarquia portuguesa. Certamente não se aproximava de um verdadeiro título de nobreza, mas reconhecia a distinção social de seu portador. É indício desta a prática de integrar a patente militar ao nome do sujeito, como uma espécie de título. A constatação vale não apenas em documentos de ordem militar, mas nos mais diversos registros produzidos como menções da Câmara municipal, inventários post-mortem e registros eclesiásticos. Esse panorama levou Saint-Hilaire a escrever em seu diário que no extremo sul “os homens apenas são considerados pelas suas patentes militares, e os funcionários civis e os juízes não gozam da menor consideração”, destacando o papel de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez e Latino (...),Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de JESUS, 1712. AHU-RS. Requerimento de 19 de maio de 1802. 56 AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 38. 55
35 ISSN 2358-4912 árbitro de conflitos que cabia aos oficiais.57 Embora a desconsideração dos juízes pareça questionável as patentes militares desempenhavam seu papel na gestão cotidiana da sociedade lusa, mantendo-o posteriormente na brasileira. Os oficiais militares do Rio Grande eram em grande número. De fato, eram em número demasiado. Tiago Gil percebeu que havia capitães que não dispunham de homens para comandar, mas que ostentavam a patente com altivez. Segundo ele nas companhias de Milícias e de Ordenanças do distrito de São Francisco de Paula, em 1824, só havia o capitão, sendo a segunda considerada “imaginária”, devido à falta de homens. “Ou seja: capitães havia, e por todas as partes, mesmo sem ter quem comandar”.58 Desenvolvi esta ideia com a ajuda de dois mapas das forças militares. O mapa das tropas de 1ª linha indica um corpo de 1.088 homens para o ano de 1805, sendo que 174 destes postos estavam vagos. Portanto, o efetivo contava 914, dos quais 47 compunham ao alto oficialato (alferes, tenentes, capitães, tenentes-coronéis, coronéis, brigadeiros e marechais), ou seja, uma proporção de um oficial para cada 18,4 praças. No mapa da cavalaria miliciana para o mesmo ano os oficiais estavam em um para cada 34 subordinados.59 É recorrente na literatura histórica a apresentação de serviços ao rei de Portugal por parte dos oficiais das tropas regulares. Em casos como o do Rio Grande de São Pedro estes se tornavam uma lista longa, pois devido aos inúmeros confrontos com os espanhóis as oportunidades de destacar-se com bravura no real serviço se multiplicavam. Manuel Marques de Souza, por exemplo, contava participações na guerra de retomada da vila de Rio Grande em 1776, na anexação dos povos missioneiros em 1801, na intervenção sobre a banda Oriental em 1811-12 e nas ações de contenção às forças de José Gervásio Artigas, que encerraram-se em 1820. Patrício José Corrêa da Câmara dispunha de folha de serviços semelhante, acrescentando seus anos na Índia. Para minha análise considero que a anexação do território missioneiro em 1801 foi não apenas uma ofensiva militar, mas igualmente uma ação de infiltração. Mediante contatos prévios os portugueses apoiaram a revolta de caciques guaranis insatisfeitos com a administração espanhola das reduções. Essas tratativas permitiram um entendimento que propiciou o sucesso das armas de Sua Majestade Fidelíssima e as hostilidades se desenvolveram dentro do panorama da chamada Guerras das Laranjas, que mais uma vez opôs Portugal e Espanha. Para Guihermino César o bom desempenho na operação americana deveu-se “antes de tudo à ação premonitória do comandante da fronteira de Rio Pardo, o citado Ten.-Cel. [Patrício José Correia da] Câmara. Graças à sua compreensão e hábeis providências, incorporaram-se” aqueles terrenos.60 Ação premonitória é um termo demasiado forte. Prefiro considerar que Correia da Câmara estava a par das possibilidades oferecidas pelo agressivo panorama sul americano e europeu. A troca de correspondência que teve com o amigo Marques de Souza demonstra exatamente isto. Ambos tiveram compreensão do momento e tomaram hábeis providências, mas interessa-me entender como estas foram socialmente possíveis. A compreensão obtida por estes agentes históricos requeria inteirar-se do que ocorria e esta condição demandava obter informações precisas e atualizadas. Da mesma forma, implicava selecionar e sintetizar os relatos que chegavam de diferentes fontes. Não localizei menções aos espias e bombeiros portugueses antes de 1801, mas surgem no decorrer das operações bélicas deste ano. Uma carta de Marques de Souza, já no final da guerra, a Correia da Câmara, em 11 de dezembro, anuncia a possibilidade de uma investida espanhola, o que sabia pela
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parte que me dá o meu Tenente-Coronel, tanto do Exército inimigo ir retrogrando [sic.] a marcha, como não terem os bombeiros avistado pelas Coxilhas do Jaceguai a partida do Quintana, o qual
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SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 64. 58 GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho. Tropeiro e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Rio de Janeiro: Tese de doutorado PPGHIS UFRJ, 2009, p. 222. 59 COMISSOLI, Adriano. Ajudado por homens que lhe obedecem de boa vontade: considerações sobre laços de confiança entre comandantes e comandados nas forças militares luso-brasileiras no início do oitocentos. In. MUGGE, Miquéias e COMISSOLI, Adriano (org.). Homens e armas: recrutamento militar no Brasil – século XIX . São Leopoldo: Oikos, 2011. 60 CÉSAR, Guilhermino. CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período Colonial. História. Porto Alegre: Globo, 1970, p. 216.
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ISSN 2358-4912 asseguram ir muito falto de Cavalhada. Penso que o seu destino será fazer frente à Fronteira do Rio 61 Pardo para não perderem mais terreno e que talvez já tenham a notícia da Paz, como creio
Marques de Souza atentara aos movimentos inimigos anteriormente. Em 14 de novembro escrevera ao brigadeiro e governador interino Francisco João Roscio: “posso dar a V.S. uma conta exata do nº de Tropa alistadas que tem os Espanhóis em Buenos Aires, Distrito da Colônia, Montevidéu, e Maldonado, cujo alistamento excede a 5.000 praças; e não conto os Santafesinos, Cordoveses, Paraguaios e de onde tem baixado muita gente”.62 Uma informação tão segura e precisa era resultado da troca de mensagens com os informantes que viviam nas cidades citadas e com os vigias que adentravam os campos vizinhos. Os informantes são geralmente mencionados quando os comandantes de fronteira escrevem ao governador informando notícias que deles receberam. Podiam se tratar de cartas de oficiais, bilhetes, relatos orais de batedores ou correspondência de sujeitos que habitavam nas cidades espanholas. Em certos casos ocorria de enviarem periódicos para dar crédito ao que noticiavam. Outros expedientes eram utilizados pelos comandantes para apurar o que se passava. Sendo Rio Grande uma localidade portuária Marques de Souza ordenava que se interrogassem os capitães e a tripulação de embarcações que chegassem ao porto e em certa ocasião não se furtou a recorrer às relações particulares: “do Rio de Janeiro chegou a minha vizinha com dez dias de viagem; houveram diferentes notícias; as quais ainda recebo por peta e precisam quarentena".63 O cuidado com a veracidade das notícias é um item particularmente caro ao sistema de informações português e os comandantes não desdenhavam a necessidade de diferenciar notícias seguras de outras que requeriam confirmação. Em ofício ao brigadeiro Roscio, datado de janeiro de 1803, o sargento-mor Joaquim Félix da Fonseca, comandante de uma das guardas da região de Missões, demonstra que não era fácil separar o joio do trigo quando se tratava de notícias oriundas de diversas fontes. Ao relatar que os espanhóis se concentravam “nesta fronteira”, a do Rio Pardo, ele recomendava precaução ainda que não houvesse manifestações hostis. Ainda que eu não tenha podido descobrir indícios alguns, pelos quais se possa julgar com probabilidade terem os Espanhóis intenções sinistras, e demonstrativas de algum próximo rompimento, não deixo, contudo, de observar, que eles agora estão mais impertinentes, e que dificultam mais a comunicação, a qual dantes admitiam mais franqueza. Não obstante eles não têm até agora reforçado, nem aumentado as guarnições dos Passos do Uruguai antes pelo contrário, as mesmas guarnições se tem diminuído pela deserção de gente, que guarnecia os ditos Passos, em consequência do que os mesmos Espanhóis tem dito várias vezes, que esperavam nova Tropa que estava em marcha para mudar estas guarnições. Esta, porém, e outras semelhantes asserções não se podem acreditar com segurança, nem tão pouco, notícias que lhes dão poucos verossímeis, muitas 64 vezes contraditórias .
Como se depreende do trecho final era preciso estar vigilante não apenas para a obtenção de notícias como para o teor das mesmas; os relatos desencontrados e opostos surgiam com frequência. A incerteza da credibilidade de uma notícia, contudo, não a fazia ser descartada. Em carta a Patrício José Correia da Câmara o mesmo Fonseca comenta que “A eficácia nos avisos e comunicação recíproca das novidades, e a indispensável prontidão em se concorrer a qualquer ponto, aonde se avise ser preciso, julgo ser o meio mais consequente que a defesa desta Fronteira”.65 Ao Ajudante de Ordens do governador, José Inácio da Silva, Fonseca escrevia na mesma época informando que a fronteira estava tranquila, mas que “tive, não obstante, os dias passados, algumas notícias dadas por um Espanhol, que esteve neste Povo, e afirmou, que em toda a Povoação de B. Aires, em Paraguai, Correntes, Galeguay [sic.], havia muitos preparativos de guerra”. Ele mostrou-se cético, demonstrando que a triagem de informações era atravessada pela avaliação dos oficiais encarregadas de juntá-las, já que “Parecem incombináveis as referidas notícias com o estado de tranquilidade, e inalteração da Fronteira”. 61
AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 38. AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 27. 63 AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 15. 64 AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 10. 65 Idem. 62
37 ISSN 2358-4912 Contudo, a estimativa de novo conflito buscava ser cuidadosa, pesando prós e contras, pois “apesar desta incoerência, acho que não devem desprezar-se as ditas notícias, nem tão pouco a voz vaga e quase geral de que as intenções dos Espanhóis são de reconquistar estes Povos”.66 A preocupação em oferecer diferentes versões e acrescentar às mesmas a sua leitura não era algo de pouca repercussão no que se refere à obtenção de informações. Joaquim Félix da Fonseca escrevia a três importantes figuras da capitania: o comandante de uma de suas fronteiras, o ajudante de ordens do governador e este próprio, ainda que interino. Os dois primeiros, reunindo ainda outras informações as repassavam ao último, responsável por emitir um parecer o mais detalhado e cuidadoso ao vice-rei no Rio de Janeiro que repassaria o mesmo à Corte. Portanto, o cuidado em apurar a veracidade dos vários e contraditórios relatos levava os oficiais militares a escutar mesmo os simples rumores e as notícias vagas. Em carta também de 1803, Patrício José Correia da Câmara comunicava-se com o governador interino Roscio, lembrando recomendações que ambos receberam do falecido governador anterior, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Patrício recordava foram alertadosa para "não desprezar todos os meios de poder adquirir quaisquer notícias da parte dos Espanhóis para com elas se combinar a seriedade dos acontecimentos, e cujas notícias ou verdadeiras ou ainda adulteradas deviam seguir à sua Presença".67 Esta passagem oferece indícios importantes. Primeiro, que a prática de espionagem e a rede de informações existia em 1801, data da morte de Sebastião Xavier, e provavelmente antes. É provável que o sistema tenha sido responsável por estabelecer o contato com os caciques guaranis que propiciaram a entrada dos portugueses na região das missões. Segundo, as notícias não deviam ser desprezadas a despeito das dúvidas sobre sua veracidade. Todas deviam ser enviadas ao governador. Terceiro, a responsabilidade de compilar as informações cabia ao último, que as recebia de diferentes fontes e, portanto, estava em posição privilegiada de contrastar os relatórios. Não raro os comandantes Correia da Câmara e Marques de Souza comentavam em suas correspondências ao governador que este teria condições de separar as verdadeiras notícias das equivocadas ao unir os pontos de vista oriundos de Rio Pardo e de Rio Grande, aos quais somente ele tinha acesso. Conclui-se o escalonamento do circuito de comunicação, o qual seguia, compreensivelmente, a hierarquia política da capitania. A rede portuguesa de informação passava por diversos pontos, havendo momentos de coleta e repasse e momentos de compilação e síntese, bem como de avaliação. Os comandantes de fronteira participavam de um destes momentos, mas eram auxiliados por outros oficiais, como Joaquim Félix da Fonseca. A correspondência entre Manuel Marques de Souza e o sargento-mor Vasco Pinto Bandeira, bastante recorrente, permite conhecer mais do processo de obtenção de conhecimento sobre o que ocorria na região de fronteira. No dia 6 de dezembro de 1804 Vasco conta que se encontrava pronto a despachar uma patrulha quando chegou “o nosso Muniz a dizer-me que o Tenente-Coronel [espanhol] já saiu e traz oito peças de Artilharia cujo calibre ignora; e que isto soube por carta que veio no Correio”.68 A ignorância sobre o destino da partida espanhola punha os oficiais em polvorosa. O mencionado Muniz (cuja identificação não é mais completa) serviu neste caso de mensageiro e é interessante notar que fora informado pelo correio, por carta. De quem e de onde, desconheço. Vasco, por sua vez, ponderou e pôs-se alarmado: "Estas invariáveis notícias me fazem cada vez estar mais cuidadoso e inquieto, e principalmente sendo ditas por este que sempre me tem falado a verdade. Agora mesmo o despacho a ir encontrar essa gente e com a sua visita certificar-se do que trazem e o nº da gente”. O “nosso” Muniz era, para Vasco, confiável por sempre falar a verdade, o que indica que agia como olheiro com alguma frequência. As notícias seriam, portanto, críveis. Mas mais detalhes eram necessários e o informante fora enviado a apura-los até por que “O homem que mandei a Montevidéu até agora não aparece pode ser ter lhe acontecido alguma coisa que o embaraçasse a voltar, e por esse motivo não tenha vindo com a notícia como esperava”. Finalmente, Vasco solicitou ao comandante Marques de Souza passagem à povoação espanhola de Serro Largo para “certificar-me da verdade destas notícias, e ainda até ontem fui convidado pelo Comandante para que lá fosse”.69 Em 27 do mesmo mês Vasco anunciava que passava pela guarda portuguesa de Serrito a partir da qual "às 9 horas do dia logo passei ao outro lado [os domínios espanhóis] entrando a dar princípio de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 13. AHRS, Autoridades Militares, maço 3, doc. 35. 68 AHRS, Autoridades Militares, maço 7, doc. 130. 69 Idem. 67
38 ISSN 2358-4912 adquirir algumas notícias, encontrei um Espanhol estancieiro da costa do Rio Negro”. Depois consultou “um contrabandista que diz saíra de Montevidéu a doze dias” e “agora espero do Serro Largo para onde mandei dois sujeitos por diferentes caminhos; que conforme a notícia que trouxerem” Vasco se dirigiria àquela localidade a convite do comandante espanhol. Como se percebe mais uma vez, toda a fonte de informação era válida, não importa sua origem. Estancieiros espanhóis, contrabandistas, sujeitos enviados na frente da partida e homens encarregados de buscar notícias em Montevidéu implicam na diversificação de caminhos da informação e na complexa ação de agrega-la de forma eficiente e verossímil. Valendo-se de meios diversos o sargento-mor português alcançou novidades sobre as movimentações espanholas que alguns dias antes o preocuparam, sendo “daqui (...) as notícias que pude alcançar agora”.70 O comandante Manuel Marques de Souza juntando as várias notícias repassou-as ao governador da capitania. A mobilização espanhola terminou por ser uma expedição punitiva aos índios charrua e minuano, a fim de coibir o roubo de gado. Contudo, seu volume fez as forças portuguesas se colocarem em prontidão, o que demonstra que cada ação na fronteira era acompanhada de reação tão rápida quanto possível. Estas percepções colocam matizes mais vivos à ideia de paz tensa vivida no território do sul da América no período. Quantos aos comandantes e outros oficiais eles tinham por incumbência uma tarefa tão importante quanto o combate efetivo: a redação de cartas que permitiam a administração e vigilância sobre a região de fronteira. Coletando e repassando informes abasteciam, por meio do fluxo de correspondências do “império de papel”, as altas esferas em Lisboa, que desenhavam os planos portugueses para a região do rio da Prata. As penas destes oficiais militares se mostravam mais fortes que suas espadas, na medida em que as primeiras eram responsáveis por determinar quando as segundas seriam desembainhadas.
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AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 130A.
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GUERRAS E MISSÕES NO EXTREMO NORDESTE DO BRASIL: A AÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE CONQUISTA Adriel Fontenele Batista O artigo que o leitor tem em mãos está voltado para a compreensão de um dos aspectos relacionados à experiência histórica dos jesuítas no evento de conquista do rio Paraíba, então ocorrido entre o ano de 1584 e 1587. A como fonte principal desse estudo é o documento que hoje conhecemos como Sumário das Armadas, que foi produzido ao longo do período de guerras por padres jesuítas que participaram ativamente de vários eventos relacionados à conquista daquela região. Neste artigo tratamos de uma das dimensões discursivas do evento de conquista, que foi a construção de um sentido para os eventos narrados pelos jesuítas em relação a um passado recente de guerras na região do rio Paraíba – passado no qual os autores não estavam incluídos - e um presente em que a missão jesuítica da Paraíba, apesar da sua participação efetiva nas guerras de conquista daquele tempo, se via ameaçada. Passemos a isso.71 Conforme apontou Regina Célia Gonçalves, os conflitos entre os portugueses e as populações indígenas na região norte da capitania de Itamaracá estão implicados num conjunto de outros eventos que antecedem mesmo as guerras descritas diretamente no Sumário das Armadas. Segundo a autora, os antecedentes das guerras de conquista na região ao norte da capitania de Itamaracá e possivelmente já na região do rio Paraíba, remontam à década de 1560, quando os índios Potiguara teriam rompido as relações de colaboração que mantinham até então com os portugueses na região.72 Tal consideração encontra respaldo no primeiro capítulo do Sumário, onde que se pode ler : “os negros petiguares (o maior em número, e como já disse, o mais guerreiro gentio do Brasil) de vinte anos a esta parte corriam todas as fronteiras de Tamaracá”73. De acordo com a narrativa dos jesuítas, as expedições militares oficiais e particulares que antecediam a efetiva conquista não haviam surtido nenhum efeito positivo, como se pode ler no trecho que toca brevemente as ações de Antônio Rodrigues Bacellar, à época capitão da ilha de Itamaracá, que teria dado guerra aos índios da região do rio Paraíba: “estas e as outras [guerras] nunca serviram de mais que os fazer [aos índios] destros, ensinando os a pelejar”.74 O tempo que antecede as guerras oficiais na região é, portanto, composto pelos jesuítas como um quadro de abandono, desordem e degradação, preparando a entrada das autoridades coloniais e da própria Companhia de Jesus naquela história. Era sobre uma capitania de Itamaracá marcada pelo perigo, pelos prejuízos e em franco despovoamento que ocorria a ação desenfreada da “gente miúda” que, “sem mantimentos, nus como selvagens e sujeitos a todas as perseguições e misérias do mundo, se metem os homens duzentas, trezentas e quinhentas léguas pelo sertão dentro, servindo ao diabo”75. Embora a descrição jesuítica da terra aponte para suas qualidades excepcionais (especialmente no que concerne ao aproveitamento do pau-brasil e o cultivo da cana), o “antes” da conquista é descrito como um tempo de desordem política, de degeneração moral dos homens e de ruína da própria sociedade no âmbito local. A cena inicial da conquista tem, portanto, como pano de fundo, uma sociedade definhando por dentro e por fora sob o estado de guerra permanente contra os índios, com pouca ordem e nenhuma virtude em uma terra em que a natureza era essencialmente má e que piorava a má índole das gentes: [os índios] são muito falsos e inclinados a enganos e aleives e é tão próprio e natural isso do clima, e terra do Brasil, que logo se pega e tem já pegado a quase todos os brancos naturais do Brasil, antes a 71
Grande parte da discussão presente nesse artigo já foi publicada em: BATISTA. A. F. O Sumário das Armadas: guerras, missões e estratégias discursivas na conquista do rio Paraíba. EDUFRN, 2003. 72 Ver o tópico O pau de tinta e o cativeiro ou os antecedentes da conquista, em: GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na capitania da Paraíba -1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007.p. 49-64. 73 Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983, p. 29. 74 Ibidem. 75 Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983; FURNE, 1983, p. 30.
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ISSN 2358-4912 todos, que a ruim semente que lhe a principio, lançaram do limoeiro de Lisboa e das outras cadeias do reino, piorou ainda mais esta natureza ruim. E assim se deve fazer pouco fundamento dos ditos 76 do Brasil, como não forem de pessoas mui qualificadas na virtude.
Em relação à estrutura do documento, o “antes da conquista” abarca os três primeiros capítulos. O primeiro produz um ponto de partida para a sucessão de eventos que levam à conquista e mistura as especificidades da geografia local e diferentes descrições sobre os índios da região com informações gerais a respeito da colônia e do estado de danação em que os homens e as capitanias se encontravam inicialmente. O segundo e o terceiro capítulo tratam do tempo em que ocorreram as primeiras expedições oficiais e particulares à região do rio Paraíba, mas ainda sob o signo da desordem.77 A primeira expedição, tal como descrita, ocorreu no ano de 1574 e foi comandada pelo ouvidor geral Fernão da Silva, por mandado do governador geral Luiz de Brito. De acordo com os jesuítas, essa armada oficial e pioneira havia saído da Bahia com um triplo objetivo: castigar o gentio Potiguara, expulsar os franceses da região e escolher um lugar junto ao rio para fundar povoação. Não há muitas informações acerca dessa expedição; o relato é breve e termina com uma descrição que se pode dizer irônica, retratando um oficial da importância do ouvidor geral Fernão da Silva, que fora à região para castigar os índios, correndo deles: “a voltar pela praia que não houve vagar para nada.”78 No mesmo capítulo aparece a armada sob o comendo do governador Luiz de Brito de Almeida, em setembro de 1575, que seria a maior já preparada até aquele momento. Segundo a narrativa, essa armada havia partido “com toda gente que pode ajuntar, levando toda a nobreza da cidade, oficiais da justiça e fazenda, com todos os petrechos e mantimentos necessários, enfim com o maior aparato de capitães e soldados e recado das mais coisas que lhe a ele foi possível ajuntar”.79 Contudo, à grandiosidade da empresa corresponde uma proporcional descrição de fracasso e prejuízo, pois, conforme se pode ler no mesmo capítulo, a armada havia tomado ventos contrários ao cabo de alguns dias e voltado à Bahia sem sequer aportar em Pernambuco ou na região do rio Paraíba. A narrativa volta-se, portanto, para a fazenda real gasta na armada, “desfeita em ar, sem mais lembrança do Parahiba”. A última expedição descrita ainda no segundo capítulo teria acontecido no ano de 1578, encomendada pelo governador Lourenço da Veiga, na qual haviam tomado parte o ouvidor geral Cosme Rangel de Macedo e o provedor mor da fazenda Cristóvão de Barros. Segundo a narrativa, esses esforços também não teriam surtido efeito, com que os “maiores” ficaram recolhidos à ilha de Itamaracá, “avisando-o sempre, e procurando fazer jornada, mas não houve efeito”. No final desse capítulo, a narrativa apresenta um pequeno remate80, que é a chave de interpretação das virtudes cardinais do discurso jesuítico sobre a conquista da Paraíba: 76
Ibidem; capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983, p. 27. Os limites entre a oficialidade e não oficialidade das expedições de conquista narradas no Sumário são tênues, pois todas foram ordenadas por um monarca: inicialmente por D. Sebastião, depois pelo Cardeal D. Henrique (à época, rei de Portugal e sucessor de D. Sebastião) e, depois de 1580, por Felipe II de Espanha. Todavia, como veremos adiante, o lugar social do expedicionário, oficial ou civil, acaba sendo relevante para o reconhecimento ou a negação das mercês relativas à conquista. Conforme se lê no Sumário, as “expedições oficiais” são as comandadas diretamente por oficiais da Coroa; as não oficiais, por sua vez, eram as comandadas por particulares que, mesmo estando no cumprimento de ordens reais, representam a concessão régia de um privilégio a um civil. 78 A principal personagem da história contada pelos jesuítas era Martim Leitão, que detinha a patente de ouvidor geral no tempo em que o Sumário era escrito. Isso nos leva a considerar que a informação sobre a suposta debandada desonrosa do ouvidor geral Fernão da Silva não é despretensiosa e participa da construção da imagem do ouvidor geral Martim Leitão como herói que havia, supostamente, superado a todos do passado de guerras na região. Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 2, folha 24; FURNE, 1983, p. 33. 79 Ibidem. 80 Assim como a tópica exordial, a tópica do remate também fazia parte do arsenal de estratégias retóricas de que dispunha um homem instruído no século XVI. No remate, a escrita retoma os principais pontos já apresentados no início, geralmente apelando para a comoção do leitor. Segundo Robert Curtius, a função do remate na Idade Média era basicamente didática, era a informação para o leitor (que geralmente lia para um público) de que o texto chegava ao fim. O remate era aplicado diretamente ao final do texto escrito, mas, quando esse texto era formado por capítulos, poderia ser utilizado em determinadas zonas que encerram um conjunto de orações, formando etapas cumpridas pela escrita. Ver: A tópica, em: CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, São Paulo, Hucitec: Edusp, 1996. p. 121-156. 77
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ISSN 2358-4912 [...] e parece que Nosso Senhor a tinha guardado [a conquista] para o tempo, em o qual havia de haver quem a procurasse de toda a força de coração, e se concluísse, e escusasse o muito cabedal e excessivos gastos, que os oficiais de fazenda de Sua Majestade nesta empresa sempre fizeram, e 81 davam em despesa, para ostentação e seus intentos mais que para alcançar efeito.
O tempo da conquista (que somente se inicia no capítulo 4) já aparece anunciado no trecho acima: seria um tempo novo, delimitado antes pelo destino (Nosso Senhor), para um herói espetacularmente virtuoso que comandava a empresa de conquista, um homem que se faz representar nesse discurso como destinado a realizar a empresa de conquista com toda força, coração82 e com zelo nas coisas da fazenda de El Rey. A força necessária e o espírito valoroso aparecem nessa última parte do texto como as virtudes de um herói conquistador que ainda não fora mencionado diretamente, mas que acaba sendo desvelado ao longo do discurso jesuítico.83 O fracasso84 das primeiras guerras é, portanto, resultante da ausência da virtude entre os homens que haviam tentado realizar a conquista da região antes do ouvidor geral Martim Leitão, homens supostamente incapazes de realizar uma conquista daquela grandeza, devido a suas fraquezas morais e espirituais. Delimita-se, nesse ponto, a passagem para o capítulo que trata das duas tentativas de conquista comandadas por Frutuoso Barbosa, no ano de 157985 e 1582. Na primeira expedição de Frutuoso Barbosa, ainda durante o reinado de D. Henrique, a empresa era particular, movimentada pela promessa da patente de governador por dez anos logo que fosse garantida a povoação e fundada a nova capitania. Segundo se pode apreender da narrativa dos jesuítas, essa era uma expedição que tinha tanto o financiamento da Coroa portuguesa quanto o investimento de cabedal do próprio concessionário. Na segunda tentativa, no tempo do rei Felipe II, Frutuoso Barbosa parece já não ter recursos próprios para a expedição, daí que os custos foram por conta da fazenda real. Seja como for, as expedições comandadas por Frutuoso Barbosa eram de iniciativa particular, com autorização e financiamento da Coroa, mas ainda assim comandadas por um civil em busca de mercês régias. Foi, muito possivelmente, por esse fato que a autoridade de Barbosa enquanto conquistador acabou sendo, repetidas vezes, contestada pelos oficiais da Coroa envolvidos na empresa. De fato, segundo se lê no quarto capítulo do Sumário, Frutuoso Barbosa não foi declarado capitão do forte de São Felipe e São Thiago (primeira praça de guerra da região do rio Paraíba) como queria, porque o general Diogo Flores de Valdez,
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Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 2, folha 25; FURNE, 1983, p. 33. 82 O “coração” é uma alegoria literária, uma metáfora da interioridade que é habitada pelo espírito. Para usarmos um termo de Fernando de La Flor: “ uma das moradas da alma” concebidas no pensamento e na literatura religiosa do século XVI. Ver: DE LA FLOR, Fernado R. Las sedes del alma: La figuracion del espacio interior en la literatura y en la arte. In: ____. La península metafísica: arte, literatura y pensamiento en la Espana de la Contrareforma. Madri: Editora Biblioteca nova, 1999, p. 201-237. 83 O tipo heroico não aparece ainda diretamente nos capítulos do documento. Entretanto, fora dos capítulos o nome de Martim Leitão já aparece nos quatro sonetos que emolduram (moldura como parte da obra, não à parte dela) o Sumário das Armadas. Nas peças, todas de caráter encomiástico, Martim Leitão é comparado aos grandes generais da história e da literatura do Ocidente. Exploraremos alguns trechos dos sonetos mais adiante. 84 O fracasso é um ponto de vista que se pode apreender no discurso dos jesuítas e é esse ponto de vista que está sendo explorado no nosso estudo. Essas primeiras expedições devem ter contribuído para a construção de informações úteis sobre a região e sobre os próprios índios e seus modos de guerrear, informações que devem ter sido aplicadas nas guerras seguintes. Retomando aqui uma ideia que nos foi apresentada informalmente por Gonçalves, um know-how ou “tradição de guerra e de conquista” deve ter-se formado entre os homens daquela sociedade desde as guerras contra os índios Kaeté de Pernambuco e continuada e reforçada nas guerras do rio Paraíba. 85 Vale lembrar que a data da expedição é mencionada com incerteza pelos jesuítas. Ela pode ter ocorrido, na verdade, no ano de 1580. Seja como for, o que é relevante para nossa argumentação é que as expedições de Frutuoso Barbosa aconteceram no período de transição da Coroa portuguesa para a formação da União Ibérica sob o reinado de Felipe II de Espanha.
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ISSN 2358-4912 [...] ao vê-lo ir na armada, como pessoa privada, com pouca conta e respeito,por outras razões que Ihe-pare-ceram, e suas provisões dizerem que El Rey o fazia capitão quando ele a conquistasse (o que ele não fizera) lhas não guardou; remetendo ao exército português elegesse cabeça para os portugueses.
Tornando à lógica estrutural do discurso jesuítico, vale observar que as virtudes cardinais do evento de conquista já haviam sido apresentadas no segundo capítulo, fazendo com que, no terceiro, ou seja, na narrativa sobre a expedição de Frutuoso Barbosa, o leitor do Sumário se deparasse justamente com a ausência dessas virtudes. Notemos que a forma como se descreve a primeira expedição comandada por Barbosa não deixa dúvidas de que os jesuítas não o tinham em boa conta, e a vilanização da sua imagem toma corpo no decorrer da narrativa: “com muitos resgates, munições, petrechos e coisas do armazém necessárias assim à conquista” e que “devia de montar um mui grande pedaço, com que vendo se infunado86 e cheio de senhoria, e subido a tal estado se vazou todo por ali se esquecendo da obrigação que trazia”. Seguindo a mesma lógica, a segunda expedição de Frutuoso Barbosa começa com a lembrança da suposta falta cometida por ele na primeira. De acordo com os jesuítas, Frutuoso Barbosa chegava novamente a Pernambuco, “por mandado de El Rey D. Philippe nosso senhor, já com menos arrogância se consertou com os da Villa de Olinda”. A narrativa recai, nesse excerto, sobre a falta de habilidade e de vontade de Frutuoso Barbosa para conduzir a empresa de conquista do rio Paraíba. Em alguns trechos, aparecem supostos erros de manobras táticas durante a marcha de guerra, a falta de comando e a “desordem tamanha”, que teriam levado muitos homens à morte, inclusive um filho do próprio Frutuoso Barbosa. Os jesuítas não deixam de dar sua opinião sobre a causa do fracasso, remetendo-a, mais uma vez, à falta de virtude daquele pretenso conquistador: [...] e não sei como feito, pelos inconvenientes e impossibilidades que a tudo achava Frutuoso Barbosa. Fugiram a maior pressa que o medo a cada um ensinou por verem, da banda do além, junto, muito gentio petiguar. Mandando dali o galeão com aviso a Sua Majestade do que passava, desesperado já Frutuoso Barbosa de sua vaidade, veio a lograr um novo casamento, que à sombra 87 da governação, de caminho em Pernambuco havia conseguido [...]
Vale relembrar aqui que a representação negativa da figura de Frutuoso Barbosa tem fundamento no momento de tensões políticas do período compreendido entre os anos de 1587 e 1588, que marcava a mudança do governo de João Tavares (1585-1588) para o governo de Frutuoso Barbosa (1588-1591). Sendo este contrário aos jesuítas88 e já tendo assumido (ou em vias de assumir) o governo da capitania logo após a demissão do ouvidor geral Martim Leitão, o posicionamento político dos jesuítas haveria, sem dúvida, de aparecer no Sumário. As representações negativas sobre a figura de Frutuoso Barbosa, tal como produzidas pelos jesuítas, fazem dele uma personagem ligada aos antecedentes da conquista, e não ao tempo da empresa comandada pelo ouvidor geral Martim Leitão. A partir do capítulo 4, dois elementos caracterizam uma ruptura radical com os fracassos, com as faltas e com o passado que os jesuítas constroem habilidosamente para a capitania da Paraíba. O primeiro desses elementos é a narração dos eventos que passa a ser feita sob a auctoritas de testemunhas oculares, introduzindo os jesuítas diretamente na história que contam. O segundo é a presença de um herói conquistador, representando a retomada das expedições de caráter oficial sob o comando de um homem representado como tendo as verdadeiras e necessárias virtudes para aquela empresa. 86
Algo como: envaidecido, soberbo. Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 3, folha 32; FURNE, 1983, p. 37. 88 Não se pode dizer que o simples fato de Frutuoso Barbosa ter optado por trazer franciscanos (e não jesuítas) nas suas expedições de conquista represente uma posição contrária dele em relação aos missionários da Companhia. É, contudo, com a consideração desse fato, juntamente com a forma de representação escrita dos jesuítas sobre essa personagem no Sumário, com a denúncia de Frutuoso Barbosa ao rei, relatando sobre os desentendimentos ocorridos entre jesuítas e franciscanos em 1589 (franciscanos que o próprio Frutuoso Barbosa havia convocado no início do seu governo), e com os ataques políticos de João Tavares (ele mesmo um aliado dos jesuítas) a Frutuoso Barbosa no ano de 1589 que podemos considerá-lo dessa maneira. 87
43 ISSN 2358-4912 Na narração da primeira expedição militar comandada pelo ouvidor geral Martim Leitão, o nome de Frutuoso Barbosa ainda aparece mencionado entre as tropas, mas sempre como um empecilho real às boas e importantes iniciativas de Martim Leitão. De fato, toda citação de Frutuoso Barbosa aparece acompanhada de referências às más qualidades já imputadas a ele no capítulo anterior, qualidades que os jesuítas não cansam de relembrar a cada passagem, além de construírem outras no decorrer da narrativa: soberbo, vaidoso, desinteressado, imprevidente, impaciente e medroso.89 Outra forma de vilanização e de denúncia dos jesuítas a Frutuoso Barbosa, relativamente menos explícita, é a narração de eventos nos quais ele aparece rejeitando as determinações do comando das tropas, fazendo com que aquelas que seriam suas atribuições acabassem sendo executas por outros milicianos. Encontram-se exemplos dessa forma de denúncia indireta no capítulo 11: “instou muito o general [Martim Leitão] com Frutuoso Barbosa, para que quisesse ir duas léguas acima [...] e por autos, que se disso fizeram, desistiu de tudo, dizendo não estaria mais uma hora no Parahiba [...] e por não perder tempo mandou ao capitão João Paes”. Também no capítulo 13: “elegeram ao capitão Simão Falcão, que pareceu pessoa para isso, por Frutuoso Barbosa em nenhuma maneira querer aceitar esta empresa [...] com estar a tudo presente, do que Simão Falcão foi logo avisado”.90 Entre o quarto e o vigésimo terceiro capítulo do Sumário, aparecem relatadas todas as ações do ouvidor geral Martim Leitão, abarcando o tempo das três jornadas militares que partiram de Olinda para a região do rio Paraíba sob seu comando.91 Essa zona do texto, de acordo com a lógica do discurso jesuítico, representa o verdadeiro tempo da conquista: um tempo de vitórias sobre os inimigos e de efetivos avanços na fronteira bélica para além da margem norte do rio. O discurso jesuítico propõe, portanto, um conflito moral entre dois diferentes tempos, cada um representado por um tipo ideal de homem.92 Sob essa perspectiva, Frutuoso Barbosa representaria o passado, a falta de virtudes e os fracassos já mencionados nos antecedentes da conquista. O tempo da conquista, por sua vez, é representado pelo ouvidor geral Martim Leitão, um tempo de virtudes marcado por três vitoriosas jornadas militares, nas quais os próprios narradores haviam tomado parte. Seria um tempo também de dificuldade e empecilhos, mas caracterizado pela virtude e pela honradez daquele herói conquistador, qualidades que se refletiriam na própria conquista do espaço fronteiro e na fundação daquela capitania. Dessa forma, o capítulo 24, que é o final do Sumário das Armadas, representa o resultado dessas jornadas conquistadoras: a última cena da conquista como a imagem edificante de uma nova capitania sendo construída com o esforço de todos e, principalmente, com o sacrifício do ouvidor geral que, segundo os jesuítas, o fazia na construção da capitania “como que a fizera para si e seus filhos”. Vale a pena recuperar uma pequena parte da descrição jesuítica acerca da nova capitania: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Com isto acabarei aqui as guerras do Parahiba com seu dono e peço a Deus daqui em diante suceda assim ao mais assim ao conquistador como ao Parahiba, que já hoje tem cinqüenta moradores 89
Essas referências negativas à figura de Frutuoso Barbosa aparecem distribuídas em vários capítulos: soberbo, vaidoso e desinteressado no terceiro capítulo; imprevidente, impaciente e medroso no sexto, sobretudo na descrição dos momentos de ataque dos índios ao forte de São Felipe e São Thiago, em que se lê: “Frutuoso Barbosa, que não tinha paciência com estas escaramuças e com requerimentos de medo as estorvava, quanto podia, de dentro de sua casa que tinha no meio do forte”. 90 É interessante notar que os jesuítas não mencionam se Frutuoso Barbosa havia desistido da empresa de conquista ou de estar na praça de guerra. O episódio relatado no capítulo 13 é uma reunião de conselho sobre a empresa de conquista, realizada no Colégio dos jesuítas da Vila de Olinda; a presença de Barbosa no conselho já mostra que ele não havia desistido da empresa de conquista. Seja como for, ele só é mencionado pelos jesuítas até a dita reunião, na qual Frutuoso Barbosa havia recusado participar de uma nova expedição à região do rio Paraíba. A partir daí, Frutuoso Barbosa já não aparece no Sumário das Armadas. 91 Martim Leitão não participou da expedição comandada por Diogo Flores de Valdez, a mesma que acabou fundando o forte de São Felipe e São Thiago entre maio e junho de 1584. Entretanto, os jesuítas não poupam tinta para inscrevê-lo em todos os eventos políticos e aparatos necessários para essa expedição. 92 Para Hayden White, parafraseando Hegel, os “dramas da vida real” são enredados na escrita histórica a partir de três tipos de homens ideais, grandes, pequenos e depravados, correspondentes na escrita épica a heróis, homens medianos e criminosos. Ver: WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Lourêncio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992. Em relação aos tipos heroicos, ver o tópico Heróis e Soberanos, em: CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. p. 223-240.
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ISSN 2358-4912 casados portugueses e outros tantos solteiros, postos lá a custas de Martim Leitão, como também o foram os fortes que fez, porque com tudo isso não se gastou um real da fazenda de Sua Majestade [...] por que o que podemos sem falta afirmar que Martim Leitão deixou a capitania do Parahiba conquistada, com fortaleza e guarnição, e acompanhada e povoada de tanto número de gentio [...] e 93 assim mais segura que todas as capitanias do Brasil [...]
Escrevendo sobre o passado com vistas no seu próprio presente, a cena representada na narrativa do capítulo final é marcada por uma ausência sentida e uma presença indesejada pelos missionários jesuítas. A ausência era a do ouvidor geral Martim Leitão, que em fevereiro de 1587 havia deixado não apenas a capitania da Paraíba para se recolher em Pernambuco, mas também o cargo de ouvidor geral do Brasil. Segundo a narrativa, a dispensa do ouvidor geral Martim Leitão era uma injustiça motivada por inveja dos inimigos e pelas “más pagas do reino” a um homem que, de acordo com os jesuítas, até os índios “chorando diziam que não queriam outro ouvidor”.94 A ausência do ouvidor geral fazia da capitania conquistada, desenvolvendo-se em relativa segurança, uma imagem edificante, sem dúvida, mas instável, ameaçada pela ausência daquele herói conquistador. A cena final da conquista é, portanto, um apelo à comoção do leitor e uma petição disfarçada retoricamente, uma tentativa de mudar a realidade que, tal como representada no discurso jesuítico, era uma ameaça aos índios e à segurança de tudo o que haviam conquistado até ali. A presença indesejada, naquele contexto, era a de Frutuoso Barbosa, que havia feito uma série de requerimentos à corte de Felipe II para receber a patente de governador da capitania e havia obtido êxito em 1588. O que se passa de forma interdita no capítulo final do Sumário das Armadas é, de fato, que a própria missão jesuítica naquela capitania estava ameaçada sem a proteção do ouvidor geral Martim Leitão e com Frutuoso Barbosa chegando ao governo da capitania. Em suma, aquela personagem que os jesuítas haviam remetido ao passado da conquista tornara-se uma ameaça real ao presente e ao futuro das missões jesuíticas na Paraíba, uma ameaça que acabou se confirmando no governo de Frutuoso Barbosa com denúncias e dificuldades impostas aos jesuítas da Paraíba com a expulsão episódica que sofreram em 1591, já no governo de Feliciano Coelho.
Referências Sumário das armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba scrito e feito por mandado do mui reverendo padre em cristo cristovao de Gouvêa visitador da Companhia de Iesu de toda a província do Brasil. Cópia do códice manuscrito, depositado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...].In: História da conquista da Paraíba. Paraíba: Editora Universitária/FURNE, 1983. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, São Paulo, Hucitec: Edusp, 1996 DE LA FLOR, Fernado R. Las sedes del alma: La figuracion del espacio interior en la literatura y en la arte. In: ____. La península metafísica: arte, literatura y pensamiento en la Espana de la Contrareforma. Madri: Editora Biblioteca nova, 1999 GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na capitania da Paraíba -1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas SP: Editora da Unicamp, 2006. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Lourêncio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992.
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Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo final, folha 148; FURNE, 1983, p. 100. 94 Ibidem.
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A GUERRA DOS TAMOIOS EM ESCRITOS JESUÍTICOS: A TOMADA DO FORTE COLIGNY Agnes Alencar95 Eventos envolvendo franceses, tamoios, portugueses e tupiniquins na região do que hoje conhecemos como Rio de Janeiro tiveram data incerta de seu início no século XVI, sendo comumente atribuído o início a 1556 e, tradicionalmente, 1560 como um marco do conflito devido à derrubada do Forte Coligny, o baluarte francês criado por Villegagnon na baía de Guanabara. Estes acontecimentos por sua vez já vem sendo delineados anos antes. Em 1548, em carta a D. João III96, Luis de Góis, um colono da América portuguesa, alerta ao monarca que os franceses se aproximam cada vez mais do território português. Em 1551 é seu filho, Pedro de Góis, que redige missiva ao monarca97 a fim de narrar o encontro com navios franceses na Baia do Cabo Frio e roga ao monarca pelo povoamento das terras brasílicas em nome da proteção do território Português. A comitiva de Villegagnon desembarcou em São Vicente em 1555. Segundo Maria Fernanda Bicalho, “o projeto de fundação da França Antártica tinha o apoio de Henrique II, Rei de França, de Gaspar de Coligny, Almirante da Marinha Real, do Duque de Guise, cardeal de Lorena, e de comerciantes e armadores franceses”, a empreitada tinha como um de seus principais objetivos “garantir à França uma parcela do mercado de especiarias monopolizado pelos portugueses”98. As inimizades entre franceses e portugueses se fizeram desde os primeiros momentos da chegada dos portugueses ao territorio americano. Em missiva enviada a Calvino, Villegagnon expressa parte desta dificuldade quando escreve sobre "proximidade desleal dos portugueses". E prossegue dizendo que "êstes, apesar de não terem podido proteger a região em que nos instalamos, suportam muito mal a nossa intromissão aqui e nos perseguem com ódio insano"99. Manuel da Nóbrega e José de Anchieta foram jesuítas que acompanharam de perto as contendas entre franceses e portugueses, registrando-as em suas cartas. Mencionam, em diversos momentos, que a presença francesa é problemática por causa da influência que hereges passam a ter sob os indígenas que eles também desejam catequizar e, em nome de seus propósitos evangelizadores, ambos tomam parte nas negociações de paz do conflito. Duas destas cartas100 escritas pouco depois da tomada do Forte Coligny que narram os eventos do embate serão os documentos principais para pensarmos os conflitos e a posição jesuíta frente aos personagens nele envolvidos. Dentro da lógica jesuítica de ação no mundo, as cartas ocupam um papel central, como atestam as diversas pesquisas sobre a função da escrita epistolar nas práticas jesuíticas101. Há trabalhos 95
Mestranda do programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista CAPES. 96 Carta de Luís de Góis a D. João III, dando conta dos perigos que corria o Brasil com a presença dos corsários franceses, que já chegavam a Baia do Rio de Janeiro” In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no Século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Nacional das Comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro 1965 97 "Carta de Pedro de Góis a D. João III, com notícias do Brasil e referindo o combate que teve com um galeão francês, encontrado na Baía do Cabo Frio" In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Naciona das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. 98 BICALHO, Maria Fernanda. “A França Antártica, o corso, a conquista e a ‘peçonha luterana’”. In: História. São Paulo, 27(1), 2008. 99 Segundo Paul Gaffarrel em seu Histoire du Bresil Français, o original desta carta se encontraria em Genebra. Há um tradução publicada no volume 57 da Revista de História, publicada em 1964, que é a que utilizo neste momento. Cf. VILLEGAGNON, Nicolas D. “Carta de Villegagnon a Calvino, 1557” in: Revista de Historia, 57, 1964. 100 ANCHIETA, José de. “Carta de José de Anchieta ao Padre Geral, 1560” In: Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. NÓBREGA, Manuel da. “Carta ao Cardeal Infante D. Henrique, 1560” In: Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 101 Cf. HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil: Nóbrega: 1549-1558” In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 38, p. 87-119, 1995. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
46 ISSN 2358-4912 preocupados com o tipo de escrita da Companhia - sobre sua retórica, seus componentes didáticos, sobre a especificidade de seu gênero literário, entre outros – e outros atentos às temáticas que seus conteúdos permitem investigar tais como a escravidão, as sociabilidades coloniais ou as representações de indígenas que são encontradas nestas missivas. Cabe aqui dialogar com algumas dessas análises, entre elas a de José Eisenberg, que localiza estas cartas como uma “instituição” desenvolvida pelos jesuítas nos primeiros anos da Ordem religiosa, sendo “centrada na redação periódica de correspondência, através da qual os irmãos prestavam contas e pediam ajuda para suas atividades de campo”, ou seja, uma instituição comunicativa para a validação de sua missão. Einsenberg marca ainda que “do período de 1549 a 1610, mais de seiscentas cartas foram enviadas, das missões no Brasil para Portugal e para o resto da Europa”, estabelecendo uma rede que tinha por média o envio “de dez cartas por ano, escritas por mais de cem missionários.”102 Há ainda outros autores, como Charlote Casteunal-L'Estoile, que expuseram as diversas funcionalidades que as cartas assumiam dentro da Companhia.103 Para além de estabelecerem a mencionada rede de informação, permitindo conhecimento e controle dos eventos em seus diversos campos missionários, as cartas agiam sobre a sensibilidade e crença dos inacianos como 'consolação', estando carregadas do sentimento de unidade da Ordem. Para José Eisenberg esta instituição epistolar seria a espinha dorsal da Companhia de Jesus no século XVI e alerta que mesmo os silêncios e omissões nas cartas possuem significado, devendo ser lidos como indícios do pensamento jesuítico naquele momento. O que precisava ser dito e o que precisava ser ocultado compõem a atividade jesuítica. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Embora a redação de cartas não fosse necessariamente a principal atividade dos jesuítas no Brasil, ela era de extrema importância. As cartas eram escritas com muito cuidado, algumas delas excedendo quarenta páginas manuscritas. Para os missionários, aquela era a única via de comunicação com pessoas que tinham algum interesse em suas atividades pastorais. As cartas que chegavam da Europa, por sua vez, não raro causavam comoção entre os jesuítas do Brasil; assim também longos períodos sem notícias eram causa de desconsolo e frustração entre os irmãos. A chegada de uma carta jesuítica era seguida de sua leitura em voz alta para todos os irmãos. Essas sessões de leitura constituíam ocasiões especiais na vida dos missionários 104 na colônia, às vezes durando toda a madrugada.
As cartas funcionavam como um elemento de coesão da Ordem, pois experiências particulares de missionários na China, no Brasil ou na Índia, se tornavam experiências coletivas, integrando o horizonte de expectativas de toda a Companhia. As cartas eram lidas, muitas vezes copiadas, censuradas e distribuídas em diversos colégios ou áreas de missão; para serem, enfim, lidas em voz alta como parte da integração e da formação da Companhia. A leitura compartilhada alegrava pelo sucesso de uma missão e compadecia das agruras vividas por cada jesuíta, tornando coletivas as experiências individuais. "Através dos Relatos edificantes, os jesuítas do Brasil também tentavam convencer possíveis missionários a se engajarem na empreitada ultramarina”.105 A reflexão de Fernando Lodoño106 juntamente com análise de Eisenberg, permitem perceber as cartas jesuíticas como parte da construção de uma imagem da Ordem e de seus membros na Europa, elemento importante em época de conflitos religiosos. FLORÊNCIO. Thiago de Abreu. A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação de mestrado, PUC-Rio, Departamento de História, 2007. VILLAS BÔAS, Luciana . “Arte da memória e escrita dos primeiros jesuítas no Brasil”. In: Revista Camoniana. Vol. 1, Nº 1. Viçosa, JUN/DEZ 2010. Disponível em: http://www.revistacamoniana.ufv.br/arearestrita/arquivos_internos/artigos/Artigo_Luciana_Villas_Boas__diagra mado.pdf (último acesso em 31 de Março de 2013). EISENBERG, José. As missões Jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 102 EISENBERG, José. Op. Cit. P. 48 103 CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil - 15801620. São Paulo: Edusc, 2006. 104 EISENBERG, José. Op. Cit. P. 49 105 EISENBERG, José. Op. Cit. P 55 106 LODOÑO, Fernando Torres. “Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI” In: Revista Brasileira de História. V. 22, Nº 43. São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v22n43/10908.pdf (Último acesso em 31 de março de 2013)
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ISSN 2358-4912 Sob a influência do padre Ignácio a Companhia, desde os primeiros anos, utilizou a escrita como forma predominante de comunicação, ação e registro. Já foi mencionado que no início os jesuítas estavam dispersos pela Itália, Irlanda, Portugal, Espanha, França e depois Ásia. Assim, o objetivo fundamental de qualquer carta era a união dos ânimos em torno da procura da vontade de Deus. Ignácio de Loyola, como primeiro superior geral, teve muito claro que havia de produzir uma 107 imagem da Companhia através das letras .
Eisenberg, Castelnau-L’Estoile e Lodoño ajudam a construir um significado para as missivas dentro da lógica jesuítica, o que nos permite começar a compreender o papel das cartas de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta não como gestos isolados ou como parte de uma coletânea em um livro, na sua posterior edição. Suas reflexões permitem inseri-las na experiência jesuítica na América Portuguesa como parte da estratégia de controle da Companhia, integrando os missionários à unidade maior da Ordem e como parte do exercício constante de todos os jesuítas em prol de sua salvação. A carta de Nóbrega é endereçada ao Cardeal Infante D. Henrique, irmão de D. João III, e naquele momento, arcebispo de Évora. Nóbrega escreve pouco depois da destruição do Forte Coligny, em 1560, em resposta ao pedido do próprio D. Henrique, que estava desejoso de obter notícias do que acontecera. O jesuíta passa, então, a narrar diversos acontecimentos; dificuldades na conversão dos gentios, as contradições que ele via na conduta dos cristãos que preferiam que os índios se comessem e se furtassem uns aos outros para conseguir mão de obra - já que nesses termos era permitido o uso da mão de obra indígena - e como isso atrasava o trabalho catequético. Logo no início da carta, Nóbrega louva a atuação de Mem de Sá, uma vez que “depois da vinda deste governador” a conversão do gentio “cresceu tanto que for falta de operários muitos deixamos de fazer muito fructo, e todavia com esses poucos que somos, se fizeram quatro egrejas em povoações grandes”108. O jesuíta explica ainda que o motivo desse crescimento é justamente porque “pôde vencer Men de Sá a contradição de todos os Christãos desta terra, que era quererem que os indios se comessem, porque nisso punham a segurança da terra, e quererem que os indios se furtassem uns aos outros, para elles terem escravos”109. A missiva de Anchieta por sua vez é destinada ao Padre Geral, escrita no mesmo ano que a de Nóbrega, 1560. O jesuíta relata logo no início da missiva que devido a ausência de navios que pudessem levar as cartas, tentará dar conta do que aconteceu entre os anos de 1558 - quando enviou a última carta - e o ano de 1560. Esta é por sua vez uma longa carta que versa sobre os temas mais diversos do exercício missionário da Companhia. Anchieta também enfatiza a resistência dos indígenas a catequese como Nóbrega e fala das dificuldades encontradas. Sobre a tomada do forte, último assunto tratado na missiva, Anchieta começa por mencionar brevemente a ajuda que saiu de S. Vicente dizendo que "daqui saiu socorro em navios e canoas, e nós outros demos o costumado socorro das orações(...)". O forte, de acordo com a descrição de Anchieta, "era fortaleza mui forte, assim pela natureza e situação do lugar, toda cercada de penhas, que se não se podia entrar senão por subida estreita". Nóbrega por sua vez dá alguns detalhes em sua carta referentes a estratégia de Mem de Sá provavelmente graças a sua proximidade com a zona de batalha estes detalhes são possíveis. Narrando as ações de Mem de Sá escreve: "D'alli nos partimos ao Rio de Janeiro, e assentou-se no conselho que dariam de supito no Rio de noite, para tomarem os Francezes despercebidos; e mandou o Governador a um que sabia bem aquelle Rio, que fosse andiante guiando a armada"110. Sobre este guia Nóbrega não dá maiores detalhes, sua missiva não nos deixa perceber se era um colono já familiarizado com o território, se era algum francês que estava lutando ao lado dos portugueses, ou se era um indígena dos muitos que se tinham aliado aos portugueses. A Missiva de Mem de Sá para Regente D. Catarina narrando os eventos nada menciona sobre o guia111. 107
LODOÑO, Fernando Torres. Op. Cit. P. 17 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 220 109 NÓBREGA, Manuel da. Op Cit. P. 221 110 NÓBREGA, Manuel da. Op Cit. P. 223 111 “Carta de Mem de Sá à Regente D. Catarina, sobre a conquista da ilha de Villegagnon, 1560” In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Naciona das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. 108
48 ISSN 2358-4912 Em sua narrativa dos eventos Nóbrega escreve que havia dentro da fortaleza mais de sessenta franceses e mais de oitocentos índios. Enquanto isso Mem de Sáo escreve que dentro da fortaleza haviam setenta e quatro franceses e alguns escravos e andando em terra havia “muito mais de mil homes do gentio da terra, tudo gente escolhida e taõ bons espingardeiros quanto os francezes”112. A antropóloga Christina Osward faz em sua tese de doutorado um cruzamento entre as fontes portuguesas e francesas e analisa estes números tão contraditórios. A autora explica que segundo os relatos franceses uma parte considerável dos franceses já havia deixado a fortaleza de Villegagnon, o próprio já havia retornado a França em busca de novos subsídios para a sua empreitada, e o que havia era um forte muito mal guardado113. Quanto a vitória dos portugueses ambos acreditam que a fuga dos franceses se deu pela intervenção divina. Anchieta descreve que "fugiram os franceses, desamparando a torre, recolhendo-se as povoações dos bárbaros em canôas, de maneira que é de crer que fugiram mais com o espanto que lhes pôs o senhor que com as forças humanas"114. A narrativa de Nóbrega coloca como uma maravilha Divina que “depois de combatida dous dias, não se podendo entrar e não tendo já os nossos pólvora (...) sabendo que na fortaleza estavam passante de sessenta francezes de peleja e mais de oitocentos indios e que eram já mortos dos nossos dez ou douze homens com bombardas e espingardas” diante desse cenário desfavorável o jesuíta continua para contar o milagre dizendo que “mostrou então nosso Senhor sua misericordia, e deu tão grande medo nos francezes e nos indios que com elles estavam, que se acolheram da fortaleza e fugiram todos, deixando o que tinham sem poder levar”.115 A retomada do território português invadido pelos franceses é uma vitória divina também por ser em um momento em que os calvinistas franceses representam um elemento herético e nocivo. Pensando este aspecto da vitória portuguesa quero neste momento destacar algumas das preocupações de Nóbrega e Anchieta diante da aliança entre franceses e os indígenas. Estas estão ligadas sobretudo o fato de estarem os indígenas aliados a um grupo de hereges, uma vez que escreve Nóbrega que estes “Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de Calvino, que está em Genebra” mas não apenas isso, continua Nóbrega, “segundo soube delles mesmos e pelos livros que lhes acharam muitos, e vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gentio”116. Anchieta, ao discorrer sobre o que fora encontrado no forte quando de sua tomada por Mem de Sá destaca que foram encontradas "grande copias de cousas de guerras e mantimentos, mas cruz alguma, imagem de Santo, ou sinal algum de catolica doutrina se não achou, mas grande multidão de livros hereticos (...)"117 De certa maneira, a preocupação dos inacianos é bastante legítima, uma vez que para Villegagnon a principal agenda exposta a Calvino era justamente o alargamento da fé protestante118. Nóbrega diz ainda a D. Henrique que estes hereges chegaram a enviar alguns dos meninos dos gentios para aprender essas heresias com o próprio Calvino. Os objetivos distintos da Coroa e dos religiosos por vezes se alinham em interesses comuns, sobretudo em um momento da ocupação portuguesa no qual por vezes colonizar e cristinizar se tornam movimentos conjuntos ou correlatos. Enquanto a ameaça proselitista protestante não apenas assusta os jesuítas, bem como atrapalha o seu trabalho de catequização, a presença francesa na costa da América Portuguesa se tornara um problema crescente ao longo dos anos. Quanto a participação dos indígenas no conflito ao lado dos portugueses, pouco foi dito pelos inacianos. Sabemos dessas alianças e Mem de Sá os menciona quando escreve para D. Catarina sobre a ferocidade dos indígenas aliados aos franceses em comparação aos seus aliados “os mais desarmados e com pouca vontade de pelejar”119. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
112
Idem, p. 43 Conferir em especial o quarto capítulo da tese no qual a autora se detém nos relatos da guerra. OSWARD, Christina. Entre os tupinambá: a gesta dos franceses na guanabara. Tese de Doutorado. Departamento de Antropologia Social, UFRJ – Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2009. 114 ANCHIETA, José; Op. Cit. P. 170 115 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 225 116 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 226 117 ANCHIETA, José; Op. Cit. P. 170 118 VILLEGAGNON, Nicolas D. Op. Cit. 119 “Carta de Mem de Sá à Regente D. Catarina, sobre a conquista da ilha de Villegagnon, 1560”, Op. Cit. P. 43 113
49 ISSN 2358-4912 As missivas de Nóbrega e Anchieta nos colocam em contato com figuras indígenas facilmente influenciáveis, que se aproximam das crenças dos que estão mais perto. Evidência de que estes inacianos ignoram ao menos em parte a complexidade das relações construídas entre os indígenas, bem como o sentido da guerra para essas sociedades ameríndias. A guerra faz parte do processo de construção de identidades destas sociedades indígenas, construção que se dá pelo contraste com o inimigo. De maneira pragmática a Guerra marcava o tempo, a transição para a vida adulta no caso dos homens. As alianças por sua vez não eram tão rígidas ou fechadas, como demonstra Carlos Fausto, em texto publicado em 1992, uma vez que “as aldeias, unidas uma a uma formavam um conunto ‘multicomunitário’, capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos de aliança e de guerra”. O antropólogo escreve ainda que “os limites dessas unidades não são palpáveis, nem definitivos: um dia poder-se ia estar de um lado e no dia seguinte do outro”120. Diante disto cabe sim desconfiar das alianças forjadas pelos ameríndios tanto com franceses como com portugueses. Diferentemente do que acreditavam os inacianos, os indígenas não estavam cegos pela força demoníaca que os calvinistas exerciam sob eles, pois suas escolhas passavam por filtros mais complexos e por uma relação primordial desconhecida dos europeus: os índios aliavam-se com franceses e portugueses pelo fato de cada um deles ter se aliado com seus inimigos indígenas121. Os indígenas viam nesse enfrentamento entre franceses e lusos uma oportunidade de manter e continuar a sua própria guerra. A missiva de Nóbrega não leva em consideração estes movimentos, ele imagina que sem a presença francesa os índios serão facilmente submetidos ao credo católico, uma vez que são ainda um papel em branco122, no qual pode-se escrever o que bem desejar, sejam católicos ou protestantes os autores das inscrições. Enquanto os interesses dos padres da Companhia se aliavam aos da Coroa, cristianizar e colonizar homens e espaços, podemos imaginar que os interesses dos grupos indígenas se alinhavam aos dos próprios europeus, portugueses ou franceses, a continuidade de uma dinâmica de guerras e alianças mais antiga que a chegada dos colonos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etmologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 384 121 Sobre este aspecto da Guerra dos Tamois cf. SZTUTMAN, Renato. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Notícias de uma certa confederação Tamoio” In: Mana, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, Oct. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v16n2/07.pdf (último acesso em 03 de Junho de 2013) 122 Essa ideia é trabalhada por Tiago Florêncio em sua dissertação de mestrado na qual ele analisa o pensamento de Jean de Lery em comparação ao de Manuel da Nóbrega. Cf. FLORÊNCIO, Thiago de Abreu e Lima. A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação de mestrado, PUC-Rio, Departamento de História, 2007
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ENTRE A LEI E A REALIDADE: A ADMINISTRAÇÃO DE LUÍS DA CUNHA MENEZES NA CAPITANIA DE GOIÁS (1778-1783) Alan Ricardo Duarte Pereira123 Introdução As Cartas Chilenas, escrita pelo ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga, acabou notabilizando uma figura importante na Capitania de Minas Gerais, o Fanfarrão Minésio ou, mais exatamente, o governador Luís da Cunha Meneses. Antes de ir para a Capitania de Minas Gerais no final de outubro de 1783, Luís da Cunha Meneses administrou de 1779 a 1783, a Capitania de Goiás que apresentava, nesse período, certa instabilidade e convivia, diuturnamente, com problemas na área administrativa, fiscal, militar, entre outros. Para tanto, o presente trabalho tem como objetivo fulcral analisar, de forma panorâmica e propedêutica, a atuação política – práxis política – de Luís da Cunha Meneses na Capitania de Goiás destacando-se, entre outros aspectos: a tentativa de reanimar a mineração, a situação militar com a reorganização das companhias e a criação de outras; reestruturação urbanística e pacificação de tribos indígenas. Em geral, ao discutir a figura de Luís da Cunha Meneses e sua atuação político-administrativa, inevitavelmente, aparecem críticas e controversas de seu governo. Na Capitania de Goiás foi acusado, entre outros aspectos, pelos ouvidores da capitania, vigários e membros da câmara. Todavia, em Minas Gerais seu governo não somente recebeu críticas internas ou de órgãos da Coroa, mas os conflitos ganharam visibilidade com a escrita das Cartas Chilenas do ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga. Esse documento escrito no final do século XVIII constitui, sem dúvida, uma obra fundamental que expressa, simultaneamente, convenções literárias – sobretudo do Arcadismo e do Barroco – e a retratação de uma época. Em resumo, o texto é escrito por Critilo (representando Tomás António de Gonzaga) de Santiago no Chile (Minas Gerais) e enviado a Doroteu na Espanha. Assim, o principal assunto do texto era o governo de um déspota local chamado Fanfarrão Minesio. Os dois interlocutores comentavam de seus passados em Vila Rica na Capitania de Minas Gerais frente ao governo de Luís da Cunha Meneses. Desse modo, é necessário analisar, mesmo que brevemente, a retratação da figura de Luís da Cunha Meneses para compreender, mais profundamente, como sua atuação na Capitania de Goiás permitiu, doravante, acumular experiências, conhecer o espaço e o contexto das Minas. As Cartas Chilenas e a administração de Luís da Cunha Meneses na Capitania Minas Gerais e Goiás Os estudos de Cartas Chilenas circunscrevem, quase sempre, aos aspectos formais e estilísticos. Por outro lado, a historiografia sobre o tema aponta, de forma demasiada, os conflitos entre o governador Luís da Cunha Meneses e o ouvidor Tomás António Gonzaga como resultado de interesses pessoais. No entanto, ao estudar esse documento de caráter literário e histórico não se aprofunda, com maior meticulosidade, a razão das críticas que levaram Gonzaga a escrever – mesmo que tais críticas fossem, sobremaneira, implícitas – sobre a administração de Luís da Cunha Meneses. A imagem construída deste governo, segundo a maioria dos estudos, acaba cristalizando (somente) conceitos negativos referente à figura de Luís da Cunha Meneses e, talvez, disseminando uma concepção errônea da sociedade mineira – ou seja, marcada pela corrupção e abuso de autoridade124. Ademais, não se trata de 123
Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista do CNPq. Para Lapa (1957 e 1958), o que prevalece em Cartas Chilenas é simplesmente a imagem negativa de Meneses. O apêndice documental que o autor conseguiu reunir atesta, uma vez mais, os abusos do governo de Meneses. De tal forma que a conclusão de Rodrigues, ao estudar os documentos da época, recaiu, basicamente, em dizer que “(...) Luís da Cunha Meneses foi em Goiás, o mesmo ditador insensato que Minas Gerais sofreu (...). ( JÚNIOR, 1995, p.08)”. Ao lado dessa perspectiva, é interessante elencar, no debate historiográfico, o trabalho de Joaci Pereira Furtado (1997) intitulado Uma República de Leitores: história e memória na recepção das Cartas Chilenas (1845-
124
52 ISSN 2358-4912 desconstruir, de maneira completa e sem fundamento, a imagem que Gonzaga fez da administração de Meneses, mas entender, nesse contexto, o cruzamento de interesses pessoas e uma realidade que inexoravelmente exigiu, por conseguinte, atitudes não escritas em leis. Nesse sentido, como estudar as Cartas Chilenas sem cair em reducionismos e superficialismos e, ao mesmo tempo, levar em consideração os aspectos literários e históricos? Trata-se, obviamente, de uma questão complexa e importa, mais ainda, de não descurar determinados aspectos e promover a eternização de outros fatores. Para tanto, é importante averiguar, nas Cartas Chilenas, uma questãochave: o contexto da sociedade colonial e, outrossim, a especificidade de cada capitania125. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
1989), que objetivou analisar, detalhadamente, a influência das Cartas Chilenas e, respectivamente, as interpretações que os estudiosos elaboraram para esse documento. Segundo Joaci (1997), as Cartas foram estudadas a partir de dois procedimentos correlatos: primeiramente, o estudo da vida de Gonzaga (uma biografia do autor) e, em segundo plano, o contexto antecessor ao da Inconfidência Mineira. Esses procedimentos de estudos poderiam ser distribuídos, além disso, em três períodos. De 1845 a 1880 insere um momento que as Cartas foram estudadas com base numa leitura romântica. Em consequência, o objetivo fundamental dessa leitura foi, então, extrair aspectos da nacionalidade brasileira. Em outras palavras, tratou-se de conhecer esse documento para observar o nascimento de uma consciência nacional e, portanto, como a sociedade se comportava frente à Coroa portuguesa em um contexto de crescente crise do poder lusitano. Ao lado disso, o segundo momento de leitura das Cartas se restringiu ao período de 1880 e 1950. Para tanto, os historiadores e estudiosos, ao estarem imbuídos de uma perspectiva positivista, não buscavam somente características estéticas do texto, mas, sobretudo, a capacidade de estudar as Cartas como reflexo do real. Ou seja, compreendê-las como um documento histórico e, assim, extrair os fatos. O último momento de 1950 até os dias atuais representa, segundo o autor, uma maneira de estudar as Cartas em sua especificidade como texto poético. Nesse tipo de estudo procura-se, então, reduzir o caráter revolucionário que, segundo a historiografia, influenciou, decisivamente, o acontecimento da Inconfidência Mineira. Trata-se, em resumo, de “(...) um duplo crivo relativista, de natureza tanto subjetivista quanto classista, que faz com que elas ganhem um aspecto mais acentuado de programa partidário-pedagógico, em detrimento de sua caracterização como documento revolucionário-nativista. Tal mudança é vista, por Joaci, como índice de progresso intelectual na interlocução das Cartas, e, ainda mais, quando se especifica uma decorrência que lhe parece fundamental: nos novos estudos, admite-se a menor subordinação dos seus versos aos supostos fatos, e, desse modo, a maior liberdade significativa de seus próprios signos poéticos. (PÉCORA, 1998, p.154)”. 125 Deve-se acrescentar, nesse sentido, os avanços da historiografia brasileira no estudo do Brasil Colônia. A historiografia brasileira (e, igualmente, portuguesa) vem demonstrando nos últimos estudos voltados para o Brasil Colonial, que, esquivando-se de uma visão simplista de sociedade fundamentada no comércio e escravismo, acrescentou, grosso modo, que no Brasil estabeleceram-se, naquela época, práticas administrativas e sociais além do previsto pela coroa portuguesa. Ademais, se no debate historiográfico do Brasil Colônia, surgiram obras que de certa forma elaboraram uma dicotomização entre a relação Brasil e Portugal (com frequência, Portugal era tido como a metrópole desenvolvida em discrepância do Brasil colônia dependente em todos os sentidos); por outro lado, e mais atualmente, os historiados. que estudam com afinco e profundidade o período colonial, demonstram que nos domínios ultramarinos desenvolveram, por sua vez, práticas administrativas complexas e, nem sempre a estrutura social aqui implantada seguiu, conforme a tradição portuguesa, as mesmas formas. Desse modo, as abordagens centram-se, sem dúvida, a partir de parâmetros externos, ou, dito de outra forma, uma visão externalista da sociedade colonial. Por outro lado, a partir da década de 70 (e o segundo livro didático é o resultado da incorporação desses postulados interpretativos) têm buscado desconsiderar, como procedimento de análise, os fatores externos e propõem estudar esse período a partir de determinações internas. Ciro Flamarion Cardoso foi, em geral, o primeiro historiador a propor, com efeito, a perspectiva de estudar as sociedades coloniais priorizando, então, suas especificidades. Jacob Gorender , por sua vez, ao se basear em Cardoso desenvolve o conceito de sistema escravista colonial – embora esses autores apresentem, ademais, uma necessidade de estudar o Brasil Colonial numa visão interna, encontram-se, no bojo de cada interpretação, os pressupostos de antigos historiadores, como Novais, Celso Furtado e Caio Padro Júnior. O historiador João Luis Fragoso – ao lado de outros, como, por exemplo, Maria Fernando Bicalho e Fátima Gouvêa – explicam a sociedade colonial a partir de sua lógica interna. Para isso, o respectivo autor, fundamenta suas pesquisas para o Vale do Paraíba Fluminense e aponta para o surgimento de elites locais ( PEREIRA, 2014, p.42)”. Ver: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados In: Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v.1, p. 129-202. SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750); in: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla M.
53 ISSN 2358-4912 O ouvidor Gonzaga lançou, de maneira áspera e contundente, o que poderíamos considerar, no plano administrativo e político, o seguinte aviso aos governadores e ministros do Brasil “Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerário sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e talvez que tu sejas também um deles, (...). (GONZAGA, 1996, p.90)”. Embora estivesse referindo-se a figura do governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, a respectiva assertiva demonstra, em maior ou menor grau, um aspecto geral da administração no Brasil Colonial e específico, qual seja: o fato que o (s) conflito (s) entre um ouvidor e governador não era (m) um caso isolado e acabou tornandose, com o passar do tempo, uma prática generalizada. Assim, o debate entre esses indivíduos e outras instâncias da administração era, no Brasil, constante e afigurava-se, ademais, um campo eivado de discrepâncias e complexidades. De maneira mais elementar, segundo Aparício “Esta contenda entre Fanfarrão Minésio e o Ouvidor de Vila Rica representava, antes de mais, a luta entre a realidade e a lei. (APARÍCIO, 1998, p.270)”. Nessa vertente mais geral, percebe-se, então, que Gonzaga tinha como pressuposto a lei e os dispositivos legais da Coroa e, em razão de disso, acusava Luís da Cunha Meneses de governar a Capitania de Minas Gerais arbitrariamente ou de maneira corrupta. Por outro lado, ao levar em consideração o contexto que Luís da Cunha Meneses presenciava – tanto na Capitania de Goiás como Minas Gerais – suas ações estavam pautadas, sobretudo, pela realidade de cada capitania. Todavia, embora seus interesses estivessem em consonância com as determinações legais da Coroa portuguesa, a realidade das capitanias levou-o, por conseguinte, a adotar medidas que extrapolassem leis e instâncias administrativas. No plano específico, o conflito entre ouvidor e governador era, igualmente, resultado de interesses pessoas. Segundo Critilo,
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Por isso Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a virtude estragar de um vasto império. Indigno, indigno chefe! Tu não buscas o publico interesse. Tu só queres mostrar ao sábio augusto um falso zelo, poupando, ao mesmo tempo, os devedores, os grossos devedores que repartem contigo os cabedais, que são do reino. (GONZAGA, 1996, p. 259-269,).
Assim, é fundamental reconhecer – além dos aspectos gerais do Brasil Colonial que aparecem no documento – as Cartas Chilenas nasceram, antes, como uma crítica personalidade e direcionada à figura de Luís da Cunha Meneses. Nesse sentido, é um documento movido de interesses pessoais do ouvidor de Vila Rica que objetivou, de todas as formas, não somente criticar a figura Meneses, mas, especialmente, tornar visível para a Coroa e outras instâncias administrativas, as arbitrariedades deste governador126. No final do século XVII e início do XVIII, após a descoberta de ouro Minas Gerais em 1690 e Cuiabá em 1718 – até então povoada majoritariamente por índios – tornou-se, imediatamente, foco de maiores interesses por parte da Coroa portuguesa às regiões auríferas no que diz respeito à proteção das minas e o povoamento desta região. Nesse contexto, a Capitania de Goiás foi, sem dúvida, C.Conquistadores e negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra e a cultura política do Antigo Regime. Revista Almanack braziliense n: 2º, novembro de 2005._____ A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo – História Social, 2003. PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Por que ficamos diferentes? O ensino do Brasil Colonial nos livros didáticos? In: Revista Espaço Acadêmico, n.157º, julho, 2014. Disponível em : http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/22679/13132 . Acesso em : 24 de Julho . 126 Portanto, deve-se compreender que “Apesar do seu compromisso com e a metrópole, o ouvidor de Vila Rica foi também porta-voz da plutocracia mineira que se via, à época, afastada do poder pelo governador, que não hesitava em favorecer os grupos mais desfavorecidos em detrimento daquele. No entanto, apesar de não ser parte integrante da plutocracia mineira, tinha ligações fortes e bastante próximas. Pensamos que está é um premissa que importa colocar em evidência. É bom não esquecermos que o ouvidor chegou a Minas pouco tempo antes do governador Cunha Meneses, e que estava de partida para a Baía. Escritas da elite para a elite, as Cartas Chilenas denotam, elementos mineiros, o que acentua alguns traços de afinidade do autor com aquele povo, mas que não provam em nosso entender ligações definitivas, visto que o ouvidor não era plutocrata, mas sim burocrata proveniente do Reino. Mais do que critica global ao sistema, que esconde atrás de si disputas pessoais, com argumentos institucionais. (APARÍCIO, 1998, p.271-272).
54 ISSN 2358-4912 resultado direto das expedições de bandeirantes oriundos, sobretudo, da Capitania de São Paulo e Bahia . A justificava para essas bandeiras pautou-se, ademais, no pressuposto que “Se em Minas e em Mato Grosso tinha sido encontrado tanto ouro, argumentavam eles, em Goiás, território situado entre esses dois, devia também existir. (PALACÍN e MORAES, 2008, p.20)” 127. Desse modo, em 1722 o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o filho128, saiu da Capitania de São Paulo com uma expedição de 500 pessoas129. Decorridos 3 anos, 3 meses e 18 dias, segundo os relatos coevos, Bartolomeu e sua companhia encontrou ouro nas cabeceiras do Rio Vermelho. Todavia, somente em 1725 voltaram a São Paulo disseminando a notícia de ter encontrado ouro nas cercanias de um rio. Assim, depois dessa primeira bandeira organizou, uma vez mais, outra expedição saindo de São Paulo para iniciar, a partir de então, a ocupação das minas130.
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Portanto, a existência de minas nesta região atraiu, quase de forma absoluta, a atenção da Coroa portuguesa, especialmente em razão da localização de Goiás, pois (...) era evidente que a capitania de Goiás gozava de situação muito peculiar devido à localização privilegiada de sua única vila no setecentos, Vila Boa de Goiás, situada a 16 graus e 10 minutos de latitude sul, um pouco a oeste do Meridiano de Tordesilhas. Um detalhe, que, sem sombra de dúvidas, significava um olhar diferenciado dos governantes portugueses para garantir as minas do Cuiabá, que estariam em terras espanholas. Por conseguinte, era necessário consolidar uma sociedade local e instalar uma nobreza da terra, o que implicava em ocupar cargos na câmara municipal , atuar na conquista, na defesa e dilatação das fronteiras, integrar as ordenanças, possuir hábitos nas ordens de Cristo, de Avis e de Santiago. (MORAES, 2010, p.78). Ver: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: FUNAPE, 2012. _____.Em terra de cego, caolho tem vida da rei: as emigrações no setecentos para o Sertão dos Guayazes. Notas de Pesquisa.In: Revista UFG. Julho 2011. Ano XIII nº 10. Disponível em: http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/Revista%20UFG%20Julho%20%202011/arquivos_pdf/cristina_de_cassia_pereira_moraes.pdf. Acesso em: 06 de Julho de 2013 128 A expressão “o filho” é utilizada para diferenciar, ademais, o Bartolomeu Bueno “pai” que, por volta de 1682, já tinha encontrado ouro na região de Goiás. Assim, caberia ao seu filho retornar pelo mesmo trajeto e encontrar o ouro. 129 “O Rei concedeu a licença, mandando que o governador desse um regimento à bandeira. Todos os gastos da expedição corriam por conta dos organizadores, que, em troca, receberiam vantagens nas novas minas que descobrissem e os principais cargos políticos na região. A bandeira era uma expedição organizada militarmente, e também uma espécie de sociedade comercial. Cada um dos participantes entrava com uma parcela de capital, que consistia ordinariamente em certo número de escravos. Os principais financiadores dessa descida foram João Leite da Silva Ortiz, genro do próprio Anhanguera e proprietário das lavras em Minas, e João de Abreu, irmão de Ortiz. Muitos dos participantes também entravam com certo número de escravos, com o alferes Braga, que depois deixou uma narrativa de viagem da bandeira. Eram mais ou menos 150 os membros da bandeira, mas o número total, incluindo os escravos, índios e alguns pretos, chegava quase a 500. (PALACÍN e MORAES, 2008, p.21)”. 130 Durante o século XVIII, o povoamento de Goiás deu-se, num primeiro momento, com a exploração de minas e a fundação, em 1726, do Arraial de Sant’Ana governada por Bartolomeu Bueno da Silva que recebeu, em razão dos descobrimento das minas, o título de capitão-mor até o período de 1734 quando, infelizmente, perde os privilégios recebido pela Coroa portuguesa. Em 1736, o Arraial de Sant’Ana foi elevado a categoria de Vila – então chamada Via Boa –, porém, efetivamente erigida em 1739 ao lado do Rio Vermelho e, finalmente e somente, em 1744 foi criada a Capitania de Goiás. Historiograficamente, os estudos que explicam o povoamento de Goiás e, consequentemente, a fixação – permanente ou efêmera – da população pautou-se, durante muito tempo (especialmente na década de 90) nos pressupostos elaborados por Henri Pirenne e Max Weber. Segundo essa linha de pensamento, o processo de ocupação foi/é (assim como também a formação da sociedade) resultado direto do ouro que proporcionou, em grande escala, a migração de indivíduos e a construção de arraiais e vilas. No entanto, como demonstrou Moraes (2012, p.26) “(...) pensamos que esse tipo de historiografia, ao supervalorizar as atividades econômicas, negligenciou consideravelmente a história social como um todo”. Para a respectiva autora, o enraizamento ocorreu, na verdade, através da vivência religiosa como forma de sociabilidade, ou seja, as Irmandades e Confrarias transformar-se-iam num elemento capaz de, não somente executar plenamente as funções de cunho religiosas, mas, sobretudo, aglutinar (e, portanto, enraizar) os habitantes que chegavam à Vila Boa com o desejo ávido de riqueza. Por conseguinte, o que foi definido por Caio Padro Júnior como sentido da colonização no livro Formação do Brasil Contemporâneo implica dizer – mas numa lógica diferenciada que preconiza não somente o caráter meramente econômico/comercial e escravista– o projeto de colonização da América Portuguesa abriu, então, um campo incomensurável de prestações de serviços que, ao serem executados, permitiu, na Capitania de Goiás e outras, o estabelecimento de nobres – acompanhando, por sua vez, de privilégios nobilitantes.
55 ISSN 2358-4912 Nesse contexto, qual seria a trajetória de Luís da Cunha Meneses antes de chegar a Capitania de Goiás no final do século XVIII? No processo de Habilitação a Ordem de Cristo, pode-se encontrar algumas informações biográficas de Luís da Cunha Meneses. Nasceu a 16 de Maio de 1742 em Lisboa131 proveniente de uma importante família portuguesa e descente direito de D. João II. (CANEADO, 1945; FREIE, 1973). Seus pais foram José Félix da Cunha Meneses e D. Constança Xavier de Meneses132 e avós, D. Luís de Meneses – marquês de Louriçal e Conde de Ericeira – e D. Ana Xaviver de Rohan. Seu pai desempenhou funções importantes na área militar, como, por exemplo, foi 8º alcaide-mor de Tavira e possuidor de uma diversidade de comendas da Ordem de Santiago e, em 1750, veador da Rainha D. Maria Ana de Áustria. Nesse contexto, Cunha Meneses iniciou sua atividade militar com 17 anos ao assentar Praça no Regimento de Setúbal em 1759 e, posteriormente, a nomeação para capitão na respectiva infantaria. Em meado de janeiro de 1777 é conferido a Luís da Cunha Meneses o governo de Goiás e, do mesmo modo, em fevereiro recebeu o Hábito da Ordem de Cristo com uma tença anual de 12 000 réis. Para tanto, desembarcou em Salvador em agosto de 1778 e chegou a Vila Boa de Goiás em 16 de Outubro do mesmo ano. Durante sua viagem, Meneses escreveu um relato informando, em detalhes, a sua viagem pelo sertão.133 Ao chegar a Goiás enviou um comunicado a Martinho de Melo e Castro da sua chegada e tratou de resolver imediatamente os problemas econômicos e administrativos que assolavam a Capitania de Goiás. Ao lado disso, recebeu em Lisboa de Martinho de Melo e Castro uma cópia da Instrução de seu antecessor, José de Almeida Vasconcelos, e, igualmente, o relatório final do respectivo governador. Os dois documentos permitiram, por sua vez, uma visão panorâmica da Capitania de Goiás. A instrução estava dividida em quatro artes: primeiro, realizava um mapeamento dos problemas da capitania que levaram, com o tempo, ao estado de crise. Em segundo, um rol de soluções para os problemas apontados. Nesse ponto, a preocupação fundamental era citar os problemas para, através da experiência administrativa e política, suprimir, de vez, as dificuldades encontradas em Goiás. Em terceiro, debatia sobre a civilização dos índios e, por fim, o documento tratava de informar a organização dos corpos militares. Nesse contexto, a presença de Luís da Cunha Meneses em Goiás destacou-se, entre outros aspectos: primeiramente pelas tentativas de reanimar a mineração na zona do Rio Maranhão. Com a ajuda do sargento-mor Tomás de Sousa buscou, em 1732, mudar o leito do rio, no entanto, em razão da insalubridade do local e os custos onerosos não conseguiu finalizar esse projeto. Ademais, a atuação de Cunha Meneses efetivou, principalmente, com a organização de o aparelho militar. Em razão de sua formação militar utilizou essa instância, nas duas Capitanias, como um instrumento de governação134. Em Goiás, a preocupação com o aspecto militar era, em primeiro lugar, com o fornecimento de mantimentos e provisões e, em segundo, sua atenção pautou-se na formação de novos corpos militares e a reorganização dos que existiam (em especial os postos militares de 2º minha, milícias ou terço auxiliares e de 3º linha, as ordenanças). Todavia, foi acusado por muitos de criar regimentos sem necessidade, mas, ao observar o contexto da Capitania de Goiás e o clima de insegurança que pairava em decorrência da ameaça indígena, compreende-se, afinal, que a reestruturação dos corpos militares era fundamental para a segurança da Capitania de Goiás. Asseverava que, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
(...) mais do que muitas das outras dos referidos armamentos, e mais petrexos de guerra, para a sua natural defença; porque suposto seja a mais central e mais confinante com os domínios de outra 131
As informações genealógicas de Luís da Cunha Meneses podem ser encontradas na Habilitação à Ordem de Cristo em 4 de fevereiro de 1777. Ver: Arquivos Nacionais –Torre do Tombo, Habilitações da Ordem de Cristo, Letra L-Maço 10, Doc.15. 132 Ademais, segundo Aparício (1998), cita que D. Constança de Xavier de Meneses era neta de D. Francisco Xavier de Meneses, quarto conde de Ericireira, responsável por introduzir, em Portugal, o movimento iluminista. 133 Ver: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Secção de Manuscritos, Cod. 13.04.10, nº 27. 134 Assim, pode-se perceber o interesse pela organização militar de Cunha Meneses ao chegar em Salvador na Baía “ A sua grande povação He composta, e comandada por hu corpo militar que a guarnese de que He chefe hu capitão, e comadante de hu Regimento de Infantaria Auxiliar com seu magnífico uniforme emcarnado, canhois, e vestia azul, cuberto de grandes cazas de ouro, outro de cavalaria tão bem auxiliar uniformemete fardado de amarelo, canhão, forro, e vista azul alamares de prata, e seus capacetes com ar tão arogante, militar que faria imulação as tropas regulares, se concorressem nas suas manobras. ( Secção de Manuscritos, cod.13.04.10, nº27)”.
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ISSN 2358-4912 Coroa, sempre pela sua natural cituação, está sofrendo uma hostilissima guerra; não só as muitas nações silvestres; mas ainda a um grande numero de pretos callambolas aquilombados (...)
(AHU_ACL_CU_008, Cx. 4, D. 16). Tratava-se, a partir dessa perspectiva, de um tarefa árdua de militarizar as companhias e, com isso, conseguir apoio humano para sua administração que, desde Goiás, foi perpassada por conflitos e críticas. Em outras palavras, Cunhas Meneses não somente utilizou dos corpos militares para a proteção da Capitania – que, afinal, estava prevista em lei – mas, aproveitando desse aparato, objetivou, estrategicamente, angariar um braço político para seu governo. Por conseguinte, a função do aparelho militar residia, basicamente, na capacidade de manter a ordem em espaços de instabilidades e, no contexto das Capitanias em que a extração do ouro era a principal a atividade, a vigilância sistemática dos espaços frente ao contra-bandos. Portanto, o fato de utilizar as forças militares como instrumento de ação política trouxe, ao mesmo tempo, benefícios para sua governo e tornou-se, sem dúvida, uma peça fundamental. Entretanto, segundo Aparício, foi “(...)um dos seus pontos fracos, pois a complexidade dos interesses individuais sobrepunham com frequência aos coletivos e do bem comum. (APARÍCIO, 1998, p.193)”. No relatório enviado para Lisboa, é possível perceber, pormenorizadamente, a composição das forças militares em Goiás, Quadro 1. Forças militares de Goiás em 1779
Postos Superiores Soldados Totais Total Geral
Companhia de Dragões ( 1º Linha)
Companhia de Pedestres
Regimento de Cavalaria Auxiliar (14 companhias)
Companhias de Ordenanças ( 18 companhias)
Companhias dos Pardos Forros (8 companhias)
11
04
100
222
88
60 71
83 87
480 580
1882 2104
703 791
3633
Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Cartografia Manuscrita, Goiás. Anexo do ofício remetido por Luís da Cunha Meneses a Martinho de Melo e Castro a 9 de julho de 1779.
Ao lado do elemento militar, a administração de Luís da Cunha Meneses ganhou, de fato, envergadura com a edificação da aldeia D. Maria I em 16 de julho de 1781 e, consequentemente, a pacificação da tribo Caiapó. Posteriormente, a edificação desta aldeia tornou, para seu governo, uma coroa de glória. No processo de aldeamento e submissão dos índios contou com a ajuda de José Luís Pereira que conhecia essa tribo indígena e organizou uma expedição com 50 homens (e alguns “línguas” responsáveis por efetivar a comunicação). Decorrido quase seis meses da partida voltaram, então, com 36 índios caiapós. O primeiro contato dos índios com Cunha Meneses foi pacífico e, de imediato, tratou de conversar com o índio mais velho avisando, portanto, que se parassem os ataques aos habitantes da Capitania de Goiás protegeria, sob todas as formas, à tribo. Desse modo, após esse primeiro contato e ao voltarem para a tribo, Luís da Cunha Meneses decidiu – em companhia dos índios – um local para instalar a referida tribo. Com 14 léguas da capitania e nas cercanias do rio Fartura criou-se, em meados de julho de 1781, a aldeia D. Maria com 687 índios Caiapós. A planta do aldeamento dividia-o em zonas, como, por exemplo: zona agrícola destinada à plantação de frutas; habitação, com 6 edifícios para 420 casais e zona de armazenamento para o sal. No respectivo aldeamento foi instalado, além do cemitério, uma igreja intitulada N. Sra. da Glória. Assim, a preocupação de Meneses era coadunar, em harmonia, os elementos europeus com a cultura indígena135. Afinal, qual era o objetivo do aldeamento para o contexto da Capitania de Goiás? Em geral, quando Luís da Cunha Meneses esteve nas duas Capitanias (Minas e Goiás), o instrumental legal que
135
“(...) a direcção com que estabeleci a referida aldeia, e o adiantamento da sua construção, que me parece ter sido proporcionada e acomodada ao natural de huns habitantes, que nasseram, e sempre viverão o matto gozando de hum ar livre (...). (AHU_ACL_CU_008, Cx. 4, D. 16)”.
57 ISSN 2358-4912 sistematizava as idéias concernentes aos indígenas era, tão somente, o Diretório136 pombalino. Tal documento aceitava a concepção dos jesuítas que deveria conceder liberdade aos indígenas, como também civilizá-los através da educação. Por outro lado, o documento afirmava a idéia que os índios poderiam servir, com efeito, aos trabalhos da Coroa. Igualmente, ao substituir a participação dos jesuítas pelos diretórios leigos obrigava a incentivar, nesse sentido, a agricultura, casamentos mistos e costumes europeus. Desse modo, o objetivo não recaiu somente na evangelização dos índios como forma de apaziguar, nas capitanias e regiões importantes, os conflitos. Mais do que isso, o fundamental era integrá-los no processo de colonização para, então, consolidar a expansão ultramarina. A atitude de Luís da Cunha Meneses frente aos indígenas mostrou-se, naquele período, inovador. A Capitania de Goiás, desde as primeiras bandeiras, já presenciava o conflitos com as tribos indígenas que assolavam os habitantes. A tribo Caiapó prejudicava a mineração nas imediações dos rios Pilões e Claro, portanto, a pacificação era fundamental. Para tanto, Cunha Meneses estava convencido que era necessário dominar as tribos indígenas pela força, todavia, sua atuação tornou-se inovadora, pois, de maneira estratégica, compreendeu que somente a força não poderia resolver os conflitos. Infere-se da documentação, portanto, que seu principal instrumento foi, indubitavelmente, a persuasão. De tal forma que ao escrever para o irmão, Tristão da Cunha Meneses, informava de três objetivos fundamentais referentes aos indígenas: catequização, civilização e A rentabilização econômica. Para Cunha Meneses esse três objetivos, em uníssono, poderiam
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Nesta ordem em que estão postos, creio se poderá a vir a tirar mais alguma utilidade, além das referidas, e que tem conseguido os que têm morrido e os que se acham existentes, por todos terem recebido as verdadeiras Luzes e Conhecimentos, com a graça do Baptismo.
(AHU_ACL_CU_008, Cx. 2, D. 18). Considerações finais Ao estudar a atuação de Luís da Cunha Meneses na Capitania de Minas Gerais e, igualmente, na Capitania de Goiás, em geral, é recorrente atribuir a esse governador uma imagem demasiada tirânica, despótica, autoritária, entre outros aspectos. Com a escrita das Cartas Chilenas pelo ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga, consagrou, no meio literário e histórico, a figura de Cunha Meneses. Entrentanto, ao olharmos, com acuidade, a atuação política do referido governador compreende-se, afinal, que era necessário coadunar os aspectos legais ao contexto de cada capitania. Ou seja, tratava mais do que aplicar a lei, mas adequá-la, harmonicamente, a realidade. Assim, se de um lado a figura de Cunhas Meneses é construída sob o lastro da arbitrariedade, por lado, esse aspecto demonstra, de maneira mais elementar, que para efetivar uma administração foi preciso conhecer não somente a lei, mas, antes, a realidade de cada capitania. Referências Arquivo Histórico Ultramarino -Códices do Conselho Ultramarino: 242,243, 244, 264, 340, 458, 610, 611, 617, 1232, 1515 e 1516 -Documentos Avulsos de Goiás: 2, 4, 6, 7, 11, 17, 21, 25, 28 e 29 -Secção de Cartografia Manuscrita de Goiás: 875, 876, 877 e 878. Arquivo Nacional – Torre do Tombo Chancelaria de D. Maria I : livro 46 e 85 -Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I : livro 1 e 32 -Habilitações da Ordem de Cristo -Registro Geral de Mercês, D. José I: livro 29 -Registro Geral de Mercês, Registro de Certidões: livro 1, 27 e 29. -Registros Paroquiais, Casamentos, Lisboa: livro 12, Caixa 14
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Ver: Directório que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não Mandar o Contrário. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758.
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ISSN 2358-4912 Bibliografia ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados In: Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v.1, p. 129-202. APARÍCIO, João Paulo da Silva Aparício. Governar no Brasil Colonial: a administração de Luís da Cunha Meneses nas capitanias de Goiás ( 1778-1783) e de Minas Gerais ( 1783-1788). Dissertação de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Letras, 1998. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo – História Social, 2003. _____. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra e a cultura política do Antigo Regime. Revista Almanack braziliense n: 2º, novembro de 2005. Directório que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não Mandar o Contrário. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758. ÉCORA, Alcir. Documentação histórica e literatura. In: Revista da USP, São Paulo, n. 40 p. 150-157, dezembro/fevereiro, de 1998. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla M. C.Conquistadores e negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GONZAGA, Tomás Antonio. Cartas Chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996. JÚNIOR, Afonson Penna. Introdução. In: LAPA, Manuel Rodrigues. As Cartas Chilenas, um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. LAPA, Manuel Rodrigues. As Cartas Chilenas, um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. _____. Obras Completas de Tomás António Gonzaga. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: FUNAPE, 2012. _____.Em terra de cego, caolho tem vida da rei: as emigrações no setecentos para o Sertão dos Guayazes. Notas de Pesquisa. In: Revista UFG. Julho 2011. Ano XIII nº 10. Disponível em: http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/Revista%20UFG%20Julho%20%202011/arquivos_pdf/cristina_de_cassia_pereira_moraes.pdf. Acesso em: 06 de Julho de 2013. PADRO, Caio Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977. PALACIN, Luis. GARCIA, Ledonias Franco. AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos I. Colônia. Goiânia: Ed. UFG, 1995. PALACÍN, Luís. MORAES, Maria Augusta de Sant’ Anna Moraes. História de Goiás (1722-1975. Goiânia: Ed. da UCG, Ed. Vieira, 2008. PALACIN, Luis. O século do ouro em Goiás. Goiânia: Editora Oriente, 1972 PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Por que ficamos diferentes? O ensino do Brasil Colonial nos livros didáticos? In: Revista Espaço Acadêmico, n.157º, julho, 2014. Disponível em : http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/22679/13132 . Acesso em : 24 de Julho . SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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CURADO E OS FERIDOS DE OLINDA: A CÂMARA ENTRE A CONIVÊNCIA E O CONFLITO Aledson Manoel Silva Dantas* Pois é certo que todos aqueles que governam adquirem inimigos e maus afetos137 A câmara de Olinda, em 1676, acusou Antônio Curado Vidal de causar a “inquietação” da “nobreza” das capitanias de Pernambuco e Paraíba, assassinando até os próprios familiares e expropriando terras por meio da violência. A instituição municipal alegava, ainda, que o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida estava em conluio com Vidal, adotando uma postura conivente com a violência na capitania. No ano seguinte, porém, a câmara de Olinda lamentava o fim do mandato do Governador, relatando o seu zelo com a justiça e seu compromisso com a “quietação” dos povos. Por meio da análise desse conflito e, principalmente, de sua resolução, buscar-se-á analisar elementos da cultura política dos grupos que disputavam a hegemonia na capitania de Pernambuco. Os oficiais da câmara de Olinda, em 1676, fizeram uma representação ao Conselho Ultramarino na qual se queixavam dos transtornos que Antônio Curado Vidal causava aos moradores das capitanias de Pernambuco e Paraíba. Diziam que a “inquietação” que entre a “nobreza daquelas capitanias” era resultado das estratégias espúrias de enriquecimento que Vidal praticava, fazendo “todo o gênero de maldade”. A câmara de Olinda acusava, ainda, o governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida de ser cúmplice de Antônio Curado, contribuindo para a desunião dos moradores daquelas duas capitanias e fomentando o ódio e os conflitos que existiam na região. A situação, de acordo com os oficiais, era tão tensa que previam a deflagração de uma “guerra civil”, caso não houvesse algum tipo de punição para os criminosos138. Um ano depois, a situação mudou. A câmara de Olinda lamentava o fim do governo de D. Pedro de Almeida, e afirmava que neste período os “poderosos” não foram favorecidos e que a capitania de Pernambuco passou por um tempo de grande “sossego e quietação” 139. Por que mudou tanto o quadro exposto pela câmara de Olinda em 1676 e 1677? É possível que tenha havido um acordo entre o governador, os oficiais da câmara de Olinda e Antônio Curado Vidal, evidenciando uma forma de negociação comum aos grupos políticos, violenta de início, mas que culmina em uma reconfiguração das relações entre os que disputam o poder. Ao final, pode-se dizer que não houve grandes mudanças, apesar dos apelos da Câmara de Olinda feitos à Coroa portuguesa, pelos quais se afirmava que uma “guerra civil” era iminente140. Antônio Curado Vidal permaneceu com o cargo de Mestre de Campo, além de ter permanecido um grande proprietário de terras. É provável que as ações de Antônio Curado Vidal tivessem como objetivo o acúmulo de riqueza. Por meio da força, Vidal teria conseguido suas terras, aumentando e o seu cabedal. Existem menções sobre terras que lhe pertenciam em registros de datas de sesmarias. No total, cinco sesmarias citam Antônio Curado Vidal como confrontante: quatro em Pernambuco e uma na Paraíba141. Ao examinar as suas ligações familiares, nota-se o fato de ser sobrinho de André Vidal de Negreiros, figura importante no contexto do Atlântico Sul. Assim como o tio, Antônio Curado Vidal era mestre de campo e, como afirmava seu filho, Antônio Vidal Curado, teria libertado a capitania da Paraíba do “inimigo holandês”142. Significa que era pertencente a uma família que tradicionalmente prestava serviços à Coroa. *
Graduado pela UFRN, membro do Laboratório de Experimentação em História Social, trabalho feito com orientação da professora Carmen Alveal. 137 João Falcão de Souza, Conselheiros do Conselho Ultramarino. In: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 47. 138 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064. 139 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 10, Doc. 915. 140 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064 141 As sesmarias PB 0027, PE 135, PE 0357, PE 0382 e PE 0390 fazem menção às terras que teriam pertencido a Antônio Curado Vidal. Apesar disso, ainda não há registro de nenhuma sesmaria que lhe tenha sido doada. Disponível em Sesmaria do Império Luso-brasileiro: 142 Sesmaria PB 0027. Disponível em Sesmaria do Império Luso-brasileiro:
60 ISSN 2358-4912 Vidal era um indivíduo bem relacionado. Conseguiu a patente de mestre de campo por meio de uma indicação feita pelo seu tio, André Vidal de Negreiros, intermediada por D. Pedro de Almeida, governador de Pernambuco, e endossada pelo Governador Geral, em 1675, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça. Vê-se, nesse caso, um elemento da cultura da sociedade do período analisado. Além da distribuição de favores baseada em valores pessoais, existia a busca pela manutenção do status da família em que o sujeito está inserido. O governador geral, em carta remetida a ao Governador Dom Pedro de Almeida, expôs que os serviços de Antônio Curado Vidal não eram suficientes para ser nomeado mestre de campo, e que não eram válidos os “merecimentos” que Negreiros apontou. Afonso Furtado de Castro afirmou que
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querendo [...] dar a Vossa Senhoria este gosto, e fazer a André Vidal de Negreiros que também me escreve apertadamente sobre este negócio aquela lisonja, [...] me acho sem a fé de ofícios, e sem as certidões [...] e ocasiões [militares] em que se achou para nela se relatarem os fundamentos e 143 justificação com que eu o provejo .
O favorecimento a Antônio Curado Vidal fica mais evidente, quando o governador geral afirma que essa nomeação poderia causar-lhe problemas, pois não respeitava o costume das anteriores, para as quais foram indicadas pessoas com mais serviços. Afonso Furtado de Castro chega a chamar o pedido de Negreiros de “fineza”144. Este ambiente que poderia ser classificado como um cenário de corrupção explícito tem sido interpretado de outra forma na historiografia sobre o império português. Uma grande importância tem sido atribuída para as relações de reciprocidade, ou de troca, presentes nesta sociedade do século XVII, e vista como uma dos elementos balizadores das interações entre os diferentes grupos sociais. Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha chamaram este tipo de configuração de economia do dom145, uma forma de organização social que obedecia a uma lógica clientelar146. A trajetória seguida por Antônio Curado Vidal reflete, levando-se em consideração as influências da sociedade sobre o indivíduo, o lugar social que ocupa, ou seu status. Ao refletir sobre esta questão, a partir do conceito de habitus147, apreende-se que existe uma expectativa de comportamento, e que está relacionada com o grupo no qual o indivíduo se insere. O que significa afirmar que, de uma maneira não automática ou determinada, Antônio Curado Vidal assumiu uma posição que lhe era esperada ao adotar práticas que eram próprias de sua posição: ser um militar de alta patente, senhor de terras, possuir algum cargo administrativo, agregar ao patrimônio familiar bens materiais e imateriais, como hábitos de ordens militares, utilizar a força quando preciso e desfrutar dos benefícios que determinada relação interpessoal possa oferecer. Tem-se, dessa forma, os traços mais gerais que caracterizam Antônio Curado Vidal e as relações que mantinha. Analisar-se-á, agora, as acusações feitas a ele e suas implicações no contexto na qual estão inseridas. A partir dos pontos que serão levantados, será possível refletir sobre o que a câmara de
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Coleção Documentos Históricos, vol. 10, p. 151-152. Carta para o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida sobre o posto de Mestre de Campo daquela capitania. 144 Coleção Documentos Históricos, vol. 10, p. 151-152. Carta para o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida sobre o posto de Mestre de Campo daquela capitania. 145 HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (Org.). História de Portugal: Antigo Regime, v. 4. Lisboa: Estampa, 1993. 146 GOUVEA, M. de Fátima S.; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português 1688-1735. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n.8, jan-jun 2004, p. 97. 147 Pierre Bourdieu, em O campo econômico, define habitus como a mediação entre uma “posição no espaço social e as práticas, as preferências”, como “uma disposição geral diante do mundo”. Em Razões práticas sobre a teoria da ação, Bourdieu afirma que os “habitus são os princípios geradores de práticas distintas e distintivas” e “estabelecem as diferenças entre o que é bom e mau” para determinado grupo. Para este artigo, pensa-se este conceito dentro do universo mental de grupos que se declaravam como da “governança” e, portanto, aptos para exercerem cargos de mando. BOURDIEU, Pierre. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. 11ed. Campinas: Papirus, 2011.
61 ISSN 2358-4912 Olinda pretendia quando buscava a “quietação” dos povos, suas estratégias para a manutenção de sua importância e qual era a sua definição do governador ideal para a capitania de Pernambuco. Vidal foi acusado, em 1676, de ter mandado matar a sua madrasta e mais dois parentes dela, o seu cunhado, Miguel Rodrigues Valcacer, e seu genro, Luís Pereira. O assassinato de parentes rituais homens e mesmo o de sua madrasta seria uma maneira de diminuir a divisão da riqueza da família ou de garantir um quinhão maior na repartição que ocorria nos casamentos. Fora do círculo familiar, de acordo com a acusação, Vidal mandou cortar um membro de um mulato carameleiro chamado João, de sua propriedade, e capou com suas próprias mãos um mulato de nome José. Os assassinos contratados por Antônio Curado Vidal eram indivíduos que tinham algo a ganhar com o mestre de campo, todos de uma condição social inferior: o fogueteiro João Gomes, o mulato Antônio João, um mulato de seu tio nomeado Domingos “tapa brica” e um crioulo chamado Luís, foram acusados de ter matado o capitão Martim Paco; Antônio Carvalho, por fim, ficou encarregado de matar a Amaro Cordeiro e foi agraciado com o posto de alferes148. A lista de acusadores de Antônio Curado Vidal é longa e nela estão contidos nomes importantes da administração municipal e militares: o capitão Francisco Pereira Guimarães, o alferes Francisco Fernandes Reja, o capitão Manuel da Costa Gadelha, o capitão Bartolomeu Cabral de Vasconcelos, João Gomes de Melo149, Miguel Rodrigues, Manuel Gonçalves Correa, Álvaro Barbalho de Lira (ver tabela 2), Diogo Figueira, o capitão de infantaria Zenóbio Acioli Vasconcelos (ver tabela 2), João Alves de Carvalho, Miguel Álvares, Tomé Soares, Miguel do Vale e Domingos Dias Soeiro. Analisando-se as tabelas 1 e 2, vê-se que há uma mudança de nomes em relação aos dois anos. Há somente a permanência de Gaspar de Sousa Uchoa. Poder-se-ia afirmar que a diferença do discurso da câmara de Olinda em relação ao governador de Pernambuco é resultado de permuta dos seus oficiais. Não obstante, é preciso ressaltar a presença de dois acusadores de Antônio Curado Vidal e de D. Pedro de Almeida. Isso reforça a hipótese de uma negociação entre as partes. Tem-se, portanto, uma briga de iguais. E isso reflete o caráter faccioso das elites de Pernambuco que se afasta da divisão clássica entre nobreza da terra e mascates, presente na historiografia de Pernambuco150. Existia, também, uma divisão entre a própria elite olindense, que vivia seus momentos de “inquietação”. Nesse ambiente de grandes tensões, a figura do governador aparece como um facilitador por excelência para a resolução dos conflitos. Antes de aprofundar esta questão, entretanto, convém entender o que era a elite de Olinda na segunda metade do século XVII e início do XVIII. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1064. Oficial da câmara de Olinda em 1664: AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 742; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 753. 150 As rivalidades existentes entre senhores de engenho e mercadores eram as mais evidentes da capitania. Pode ser percebida facilmente pela leitura da documentação. Sobre esse assunto, Charles Boxer, em A idade do ouro no Brasil, faz um contraponto entre os conflitos de Pernambuco e as disputas entre paulistas e emboabas, nas regiões das minas. Para o autor, nesses dois casos, havia uma clara distinção entre insiders e outsiders, ou reinóis e “naturais da terra”. As tensões entre mascates e senhores de engenho fazem uma dos capítulos mais importantes da historiografia de Pernambuco. Para uma contextualização mais aprofundada sobre este tema: Cf. BOXER, C. R. The Golden age of Brazil, 1695-1750: Growing pains of a colonial society. 3ed. California: University of California Press, 1969; MELLO, Mário. A Guerra dos Mascates como afirmação nacionalista. Recife: CEPE, 2012; entre outros trabalhos: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 149
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ISSN 2358-4912 Tabela 01 – Oficiais da Câmara de Olinda em outubro de 1676 OFICIAIS OCUPAÇÃO Gaspar de Sousa Uchoa Capitão, mestre de campo, provedor da santa casa de misericórdia, em 1660, e senhor de terras. Luís Barbalho de Vasconcelos Sim mais informações João Cavalcanti de Albuquerque151 Sim mais informações Nuno Camelo Capitão Matias de Sá Sem mais informações 152 [Manuel Leitão de Vasconcelos] Sem mais informações Fontes: AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 15, Doc. 1561, AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 20, Doc. 1906; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1060.
Tabela 02 – Oficiais da Câmara de Olinda em 1677 OFICIAIS Mai Ago Dez OCUPAÇÃO Zenóbio de Acioli Vasconcelos X X Coronel, mestre de campo. Gaspar de Sousa Uchoa X X X Capitão, mestre de campo, provedor da santa casa de misericórdia, em 1660, e senhor de terras. Manuel da Silva Pinto X X X Senhor de terras. Manuel Carneiro da Cunha X X Coronel de Ordenanças, provedor da santa casa de misericórdia, em 1697. Álvaro Barbalho de Lira X X Sem mais informações. Gaspar da Costa Casado X X Capitão Fontes: AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 15, Doc. 1561; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1071; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1087; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1098; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 2, p. 101, 253-254; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 16661700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 4, p. 43, 70. 325; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 5, p. 29.
A maior referência para os estudos desse período é Evaldo Cabral de Mello. Em A Fronda dos Mazombos, este autor analisa os conflitos entre a câmara de Olinda, autoridades régias e os comerciantes da praça mercantil do Recife. A nobreza da terra de Olinda, também identificada de açucarocracia por Mello, demonstra possuir um sentimento de exclusividade em relação ao acesso dos cargos camarários. Além disso, foram os responsáveis diretos pela deposição de dois governadores: Jerônimo de Mendonça Furtado, em 1666, e Sebastião de Castro Caldas, em 1710, depois de uma tentativa de assassinato, deflagrando a Guerra dos Mascates153. As questões mais latentes estavam relacionadas ao endividamento dos senhores de engenho e à sua respectiva cobrança por parte dos credores, muitas vezes protegidos pelos governadores. Uma questão bastante cara ao grupo que hegemonizava os cargos da câmara de Olinda, na segunda metade do século XVII, era a reconstrução da antiga vila, que foi incendiada pelos holandeses. A intenção de reerguer Olinda iniciou-se logo após a expulsão dos holandeses. O governador André Vidal de Negreiros foi um dos que se empenharam em conseguir, além da reconstrução a vila, transferir a sede administrativa de Recife para Olinda. Ainda em 1709, apesar dos esforços de alguns de 151
De Acordo com Pereira da Costa, era juiz ordinário. COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 4, p. 280. 152 Não há certeza em relação a este nome, tendo em vista o estado da documentação. 153 MELLO, Evaldo C. de, op. cit.
63 ISSN 2358-4912 seus antigos moradores, a então Cidade de Olinda permanecia quase desabitada. O governador Sebastião de Castro Caldas, no mesmo ano, afirmava que
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não só deixaram os moradores de reedificar as suas casas por falta de cabedais, e por estarem habituados a viverem nas suas fazendas com mais comodidade e liberdade, mas impossibilitaram a seus sucessores para o não poderem fazer em nenhum tempo, por quanto trataram de vender as pedras das suas casas para as cercas, e obras dos conventos e para vir para o Recife para as casas que nele fabricavam, e nesta forma foram diminuído de tal sorte a dita Cidade que em ruas inteiras nem alicerces lhe deixaram, e de tal sorte que ninguém sabe os chãos que lhe pertencem por se não 154 acharem demarcadas, e todas cobertas de mato .
A falta de recursos para a reconstrução de Olinda provocou uma dispersão dos oficiais de sua câmara, que tiveram que se dividirem entre a vila, e depois cidade, e as suas fazendas e engenhos, mais distantes do litoral. Significa que Olinda não possuía a mesma dinâmica social do período anterior à invasão por parte dos holandeses. O acréscimo do status da localidade e a hegemonia política de Olinda contrastam com uma involução urbana, em uma flagrante contradição. Isso revela a preponderância da política em relação à economia, perceptível na medida em que os senhores de engenho, em geral, possuíam uma posição privilegiada em relação aos comerciantes, não obstante o seu poder econômico. O grupo de Olinda, assim, mantinha-se no poder por meio do uso da coerção aos governadores e do exclusivismo, conferido pela proteção que a legislação proporcionava: com a limitação do acesso aos cargos camarários155 e com a proibição do confisco de engenhos e escravos para o pagamento de dívidas. Esses ciumentos e furiosos vassalos tinham que ser controlados. Essa era uma das principais tarefas dos governadores escalados para a capitania de Pernambuco: administrar as tensões existentes entre os produtores de açúcar, feridos pelo estado em que se encontrava Olinda, e os comerciantes fornecedores de crédito, ansiosos pela emancipação do Recife. Havia, também, conflitos dentro da açucarocracia, refletindo-se em um quadro menos homogêneo deste grupo. Quais eram, então, as qualidades necessárias para controlar as tensões em Pernambuco? Para os oficiais da câmara de Olinda, existia a necessidade da manutenção da hegemonia de sua cidade com a presença constante do governador. Em 1661, Francisco de Brito Freire assumia o governo da capitania de Pernambuco, passando a realizar o seu expediente no Recife. Descontentes, os oficiais da câmara reclamarão ao Rei afirmando que era “lastimosa coisa considerar se despovoar o melhor lugar que Vossa Majestade tem em o estado do Brasil”. Diziam, também, que os governadores seguintes deveriam seguir o exemplo de André Vidal de Negreiros quando esteve à frente da capitania. Outro ponto importante reclamado pelos oficiais é a presença do ouvidor, elemento importante, assim como o governador, para a manutenção da justiça156. Por vezes, em uma eventual alteração dos ânimos, o governador era visto pela câmara como a figura que promoveria a “quietação”. Em 1677, quando o conselho municipal muda o discurso de avaliação em relação ao governador D. Pedro de Almeida, foi afirmado que ele não teria agido “com ódios, ou afeições”, sem permitir que os poderosos oprimissem os pobres. O governo seguiu-se, foi afirmado, “com tanta suavidade, [...] que ficam estas capitanias sentindo muito a sua falta, pelo grande sossego, e quietação que no seu tempo lograrão”157. Pelo exposto no ano anterior, quando diziam que D. Pedro de Almeida era conivente com as “maldades” que aconteciam, tem-se um quadro totalmente inverso. Não se sabe o que teria provocado essa mudança de postura, tendo em vista que, em 1677, havia oficiais que eram os acusadores de Antônio Curado Vidal e do governador. O que parece ser algo aparentemente certo é um acerto de contas entre as partes. O governador era vista, nesta sociedade, como aquele que incorporava uma das principais atribuições do rei. Dentro da concepção corporativa e jurisdicionalista da sociedade, admite-se que esta seria como “um organismo, cujo bem estar geral depende do desempenho autônomo das funções 154
AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 23, Doc. 2115. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 156 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 632. 157 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064. 155
64 ISSN 2358-4912 dos vários órgãos ou membros”. A “cabeça” desse corpo social deveria cuidar em manter a harmonia entre todos os corpos sociais, “atribuindo a cada um o lugar que lhe é próprio”158. Nuno Gonçalo Monteiro afirma que “o fim último do ‘bom governo’ era a justiça’, entendida como dar a cada um o seu lugar”. A justiça, vista dessa forma, seria a “primeira” atividade do poder159. Manter a harmonia e, consequentemente, a justiça era algo difícil na capitania de Pernambuco, tendo em vistas as inimizades existentes na capitania, e que eram conhecidas pelo Conselho Ultramarino. Em 1709, este havia solicitado para o governador Sebastião de Castro e Caldas para que lhes informasse sobre o porquê de o governador estar administrando a justiça em Olinda, e não no Recife. Caldas respondeu relatando, de maneira detalhada, o momento em que viviam os habitantes de Olinda e Recife. O governador afirmou os “moradores da governança” viviam em seus engenhos e fazendas
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com sofisticarias, [...] apontando meios inúteis para o fim que pretendem [manutenção da hegemonia de Olinda], e prejudicais a boa ordem e administração de justiça, o que já fazem por opinião, e hombridade; encaminhada por ódio à vingança dos moradores do recife, por que se não dá 160 igual entre os arrais de Portugal e Castela, nem entre outras nações onde o costuma haver .
Diante destas palavras, é possível perceber as dificuldades pela quais passavam os governadores de Pernambuco, tendo que conviver com súditos que se odiavam e que disputavam a hegemonia política na capitania. O grupo de Olinda, em especial, exigia um tratamento diferenciado e a concessão de privilégios no trato dos assuntos da governança, como a exclusão dos mercadores nas eleições para oficiais da câmara. Por outro lado, esses indivíduos viviam em uma espécie de “disputa interna”, por vezes resultado de disputas por terras, exacerbando os discursos em relação à situação política da capitania. Isso é perceptível no uso de palavras como “guerra civil”, detona um momento tenso e de acirramento dos ânimos. Não se pode considerar essa expressão como exagerada. Afinal, o conflito, armado ou não, surge como uma das possibilidades de ação dos grupos, no momento em que sentem que há um desequilíbrio entre os rumos da política local e seus interesses. Ressalta-se que a câmara de Olinda, assim como outras do Império português, foi pródiga em expulsar governadores, como Jerônimo de Mendonça Furtado, em 1666161. Soma-se a isso o sentimento exclusivista da nobreza de terra de Pernambuco. Segundo Evaldo Cabral de Mello, este grupo julgava merecer “um tratamento preferencial, um estatuto jurídico privilegiado” que o colocou em oposição aos mercadores, “legitimando sua hegemonia sobre os demais estratos sociais da capitania”162. Isso, não excluiu, não obstante, a existência de graves agitações dentro deste próprio grupo. A chave para o entendimento do conflito analisado é a ideia de quietação/inquietação, traduzida pelo como a manutenção de uma ordem, da harmonia entre os grupos sociais. Esta ideia surge a partir da geração das tensões nos desdobramentos das disputas políticas. No caso analisado, percebeu-se que o governador seria a figura mais importante na resolução dos conflitos, sendo esta uma de suas maiores atribuições, percebida e cobrada pelos agentes do poder local. O governador de Pernambuco tinha que conviver com múltiplas tensões, além da mais perceptível e estudada: a entre senhores de engenho e mercadores. Percebeu-se, também, o caráter faccioso dos grupos de Olinda, que queriam uma maior atenção do governador para os seus interesses. Ao final, os problemas gerados pelas ações de Antônio Curado Vidal foram, provavelmente, absorvidos e lentamente esquecidos, até que não houvesse mais por que revirar tais assuntos. Ao final, as negociações já haviam sido concretizadas.
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HESPANHA, António M. História das instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 208-209. 159 MONTEIRO, Nuno. G. Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do período joanino. Análise social. Lisboa, vol. XXXV (157), 2001, p. 962. 160 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064 161 CF. MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 162 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 127.
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ATIVIDADES CIENTÍFICAS NA CAPITANIA DE SÃO PAULO (1796-1823) Alex Gonçalves Varela163 Temos como objetivo analisar a atividade científica praticada por naturalistas ilustrados na Capitania de São Paulo, através de suas memórias científicas, discutindo a contribuição dessas atividades para o processo de institucionalização das ciências naturais na América Portuguesa. Pretendemos fazer uma reflexão no campo da história das ciências ilustradas (séculos XVIII e XIX). Para a realização de tal investigação selecionamos três ilustrados: José Bonifácio de Andrada e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrade, e João Manso Pereira. Um ponto em comum une as suas respectivas trajetórias de vida: o estudo das potencialidades do mundo natural da América Portuguesa, mais especificamente da Capitania de São Paulo. Suas produções científicas são notáveis, porém ainda pouco estudadas. Compreendem memórias científicas produzidas nas Academias de que foram sócios e artigos publicados em diversos periódicos científicos, além de relatórios, roteiros e memórias das viagens científicas de que participaram. Portanto, o propósito em manter o envolvimento com estudos acerca da história das ciências no período da ilustração encontra nos três estudiosos mencionados campo apropriado e perspectivas fecundas de trabalho. O estudo das memórias dos naturalistas João Manso Pereira, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e José Bonifácio de Andrada e Silva serviu como um importante elemento de comprovação da existência de práticas científicas na América de colonização portuguesa. A importância da análise contextualizada de tais memórias residiu no fato de se poder observar a atividade científica como ela era realmente praticada pelos ilustrados coloniais, a concepção de ciência que partilhavam, suas posturas metodológicas e sua proximidade ou afastamento das modernas teorias científicas, entre outras questões. Portanto, as memórias aqui analisadas constituíram-se como a “pedra preciosa” para refutar a tese de que a América Portuguesa caracterizou-se por um grande vazio de práticas científicas no período compreendido entre o final do Setecentos e o início do Oitocentos. A região da América Portuguesa em que os três naturalistas mencionados atuaram foi a Capitania de São Paulo. Ao estudarmos esse espaço colonial observamos uma série de esforços para que as práticas científicas fossem ali institucionalizadas164, uma vez que tal região ocupou um lugar central no projeto reformista político-científico de D. Rodrigo, que visava modernizar a administração do Império português para assim manter a sua sobrevivência e da própria monarquia portuguesa. No projeto reformista político-científico de D. Rodrigo, as “produções naturais” da colônia deveriam ser pesquisadas e estudadas cientificamente, pois elas eram vistas pelos dirigentes lusos como fontes geradoras de riquezas. Para a tarefa de mapeamento, levantamento e investigação dos recursos naturais coloniais, a Coroa portuguesa deu início a um processo de contratação dos estudiosos portugueses, quer reinóis, quer coloniais. Esses naturalistas a serviço da Coroa teriam um papel fundamental no âmbito do projeto do todo-poderoso “ministro da Viradeira”, uma vez que eles fariam conhecer aos dirigentes lusos a imensa variedade e diversidade da riqueza natural colonial. Portanto, os homens de Estado e os da ciência estavam unidos numa única missão: o projeto de modernização do Império português. A Coroa portuguesa contratou naturalistas com o objetivo primordial de averiguar a presença de ferro e salitre na Capitania de São Paulo. O primeiro a ser contratado foi o químico João Manso Pereira, que se revelou um caso notável de autodidatismo num indivíduo que jamais saiu da América Portuguesa para ir realizar estudos superiores em Portugal ou qualquer outro país europeu, ao contrário de Martim Francisco e, particularmente, José Bonifácio, que se distinguiu por uma brilhante carreira intelectual com os refinamentos de uma educação superior europeia. João Manso publicou diversas memórias sobre temas os mais variados possíveis, deixando transparecer o enciclopedismo típico dos estudiosos da época, assim como se revelou uma homem prático ao produzir inúmeras invenções com o objetivo de torna-las úteis à sociedade em que vivia. 163
Professor do Departamento de História da UERJ. Shozo Motoyama. Ciência em São Paulo: um Esboço Histórico. In: História da Cidade de São Paulo. v. 1: a Cidade Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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67 ISSN 2358-4912 Tais características também se faziam presentes nas memórias de Martim Francisco e José Bonifácio, evidenciando assim o quanto estavam integrados ao clima de opinião da Ilustração. João Manso foi um naturalista preocupado com a difusão de inovações técnicas pela sociedade colonial. Maior exemplo disso foi a sua proposta de reforma dos alambiques, com a qual buscou convencer os senhores de engenhos coloniais da pouca eficiência dos alambiques existentes nos engenhos da América Portuguesa, apresentando soluções técnicas para melhorar o seu desempenho. Essa preocupação com a difusão de novidades técnicas pela Capitania de São Paulo o filiava, assim como a Martim Francisco, ao grupo de naturalistas que gravitavam ao redor do Frei Conceição Veloso na Tipografia do Arco do Cego, local onde eram produzidas traduções e edições técnico-científicas que visavam promover a modernização e o desenvolvimento de uma série de atividades. Tais publicações deveriam ser espalhadas pela colônia com o intuito de difundir as novidades técnicocientíficas que visavam promover a modernização e o desenvolvimento de uma série de atividades. Tais publicações deveriam ser espalhadas pela colônia com o intuito de difundir as novidades técnicocientíficas da época. Tal postura revela o engajamento dos Ilustrados coloniais com o projeto de modernização do Império Português encabeçado por D. Rodrigo. Os principais trabalhos de João Manso foram realizados no campo da química. Em várias passagens de suas dissertações mostrou estar conectado às principais ideias desse campo científico, sobretudo às propostas e conceitos defendidos pela “revolução química” de Lavoisier, como a utilização do conceito de calórico e o elogio e uso da nomenclatura química estabelecida pelo estudioso francês. Porém, como também procedeu Martim Francisco em uma de suas memórias, Manso ainda se reportava aos autores da química pré-Lavoisier, deixando assim registrada em seu trabalho a presença de duas diferentes tradições químicas. Tal fato reflete o período de transição então vivido por esse campo do conhecimento, e não o atraso do pensamento do autor em relação à ciência tal como ela era prática na época. Quanto ao projeto de uma instalação de uma fábrica de ferro na Capitania, João Manso não teve o mesmo sucesso – nesse projeto, o autoditatismo foi, sem dúvida, o principal obstáculo. Isso porque o estudioso não teve a possibilidade de frequentar as principais escolas de mineração da época, como Bergakademie, em Freiberg, e ter o conhecimento das principais técnicas de mineração aplicadas até então para a extração dos materiais minerais e para a construção de estabelecimentos siderúrgicos. A esse fato devem-se acrescentar as dificuldades relativas à natureza do material mineral da região de Araçoiaba. Quanto ao projeto de produção de salitre, o naturalista se empenhou no processo de construção de nitreiras artificiais para tentar obter o material e, numa visão fantasiosa, acreditou ser possível obtê-lo por meio da putrefação de cadáveres. Para o lugar de João Manso, o qual não teve êxito nos projetos dos quais se encarregou, a Coroa portuguesa contratou o naturalista Martim Francisco Ribeiro de Andrada, nomeado para o cargo de Diretor Geral das Minas de Ouro, Prata e Ferro da Capitania de São Paulo, ao realizar inúmeras viagens mineralógicas pelo seu território, mapeando, pesquisando e catalogando não apenas os materiais minerais presentes em seu solo, como também as suas produções vegetais. As memórias mineralógicas, fruto das viagens realizadas por Martim no interior da Capitania, serviram como importante testemunho para a análise da sua prática científica. Em tais dissertações, observa-se que o viajante-naturalista seguia o conjunto das práticas científicas mineralógicas tal como elas eram praticadas no período, seja pelos termos científicos que ele utilizava como pela metodologia de trabalho que partilhava – ou seja, descrição, identificação e classificação dos minerais em seu local de ocorrência -, deixando transparecer o caráter geográfico que dava ao seu trabalho. Outra característica da sua prática científica foi a ênfase do naturalista na observação das regularidades permanentes, integrando-se a uma tradição de estudos que tinha em Buffon um dos seus grandes representantes. A observação e a descrição das regularidades permanentes enquanto consequência de processos são muito presentes em seus trabalhos. Ainda que as reflexões teóricas não tenham ocupado de forma predominante as páginas de suas produções científicas, Martim não deixou de se preocupar com tais questões. Em uma de suas memórias apareceu o posicionamento do autor numa das chamadas “controvérsias geológicas” que existiram no período, a que versava sobre a origem da basalto, argumentando não ser ele um produto vulcânico, como afirmavam os vulcanistas, mas de origem sedimentar (química).
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68 ISSN 2358-4912 A quantidade de minerais identificados por Martim em seu trabalho na Direção das Minas vinha ao encontro de uma política estatal que tinha como objetivo a produção mineral. Daí, o seu empenho em examinar as ocorrências de diversos minerais como o ouro, a prata, o ferro, entre outros. Nos relatórios de viagens de Martim prevaleceu o tom descritivo, estando eles inseridos no projeto universalizante da História Natural. A descrição dos minerais e das plantas, ainda que fosse o seu objeto de interesse de primeira ordem, se juntava a descrições de outra natureza como o estado de cada localidade da capitania paulista, as informações sobre o número de habitantes, as produções agrícolas, os costumes, as atividades de trabalho, a indumentária e os prédios, entre outros aspectos. A presença desse tom descritivo era uma das características da história natural do setecentos, cabendo ao historiador natural observar e coletar dados. Nos textos de Martim, a visão utilitária da ciência se fez presente. Para o autor, a ciência deveria ser aplicada para o bem público e para proporcionar benesses para a humanidade. A ciência seria a fonte capaz de solucionar os problemas existentes na sociedade da Capitania de São Paulo. Tal visão de ciência também se fazia presente nos textos de João e nos de José Bonifácio, assim como nos textos dos demais naturalistas ilustrados que trabalhavam a serviço da Coroa portuguesa naquele momento. A ida ao campo foi uma das características marcantes da prática científica de Martim Francisco, traço este que também se fazia presente nas memórias dos demais naturalistas. A necessidade de se averiguarem as produções naturais necessárias para o desenvolvimento do Reino levou os naturalistas a se lançarem pelas diversas regiões da América Portuguesa. No caso de Martim e José Bonifácio, os minerais se constituíram como os materiais mais estudados e analisados, sempre descritos no local de sua ocorrência. Quanto ao projeto de instalação da fábrica de ferro no Morro de Araçoiaba, Martim logo que assumiu a chefia da Direção das Minas buscou indicar o local mais adequado para ser erguido o estabelecimento e redigiu informações sobre a localização espacial do mineral de ferro encontrado na região. Todavia, essa instalação não foi imediata, tendo ocorrido somente após a vinda da Corte para a América Portuguesa. O naturalista também enfrentou alguns problemas para a realização de sua prática científica no momento em que realizava as viagens científicas pelo interior da Capitania, fato registrado em seus diários. O péssimo estado das estradas foi uma reclamação constante, uma vez que dificultava o acesso e atrapalhava o deslocamento de uma região para outra. Outra dificuldade foi a contenda entre o naturalista e o governador da Capitania, fato que não foi apanágio da relação entre esses dois personagens, mas dos vários naturalistas que trabalharam no espaço colonial. No ano de 1819, José Bonifácio retornou ao Brasil, depois de permanecer na Europa por mais de três décadas. Quando por aqui chegou, o Rio de Janeiro já havia se tornado a nova sede da Corte Portuguesa, ou melhor, a capital do Império luso-brasileiro. A abertura dos portos pôs fim à condição de dependência colonial e a posterior elevação a Reino colocou o “Brasil” em condições de igualdade com a nação portuguesa. Uma das primeiras atividades que José Bonifácio realizou em sua terra natal foi a viagem mineralógica pela Capitania de São Paulo em companhia do irmão Martim Francisco. O relatório dessa viagem apresentou temas que até então não haviam aparecido nas memórias elaboradas exclusivamente pelo último naturalista. A presença de Bonifácio trouxe algumas reflexões que ele vinha desenvolvendo ao longo de suas viagens científicas pelo território luso no âmbito da Intendência Geral das Minas e Metais do Reino. Entre esses temas apareciam a valorização da agricultura como fonte de riquezas, a utilização do sistema de classificação dos minerais do geognosta Abraham Gottlob Werner, a preocupação coma preservação das matas e arvoredos em virtude da importância dessas produções vegetais como fonte de combustível para os fornos e forjas das fundições de ferro e engenhos, e a prática de estudar e analisar as minerações antigas para servir de guia para as novas descobertas mineralógicas. As memórias científicas produzidas por João Manso, Martim Francisco e José Bonifácio tiveram um papel de extrema relevância para a constituição de redes de informação que ajudariam o governo luso a conhecer de forma mais detalhada a Capitania de São Paulo e tomar as medidas necessárias para introduzir as reformas necessárias para a sua modernização. Tais memórias informavam sobre o estado de cada localidade, o número de habitantes, as produções naturais minerais e vegetais que continham, as atividades comerciais e agrícolas que desenvolviam e os costumes dos seus habitantes, entre outros aspectos. Além disso, no caso mais específico de Martim e Bonifácio, tais memórias em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
69 ISSN 2358-4912 sentido prospectivo traçavam políticas de terras, migratórias, indigenistas, anti-escravistas, mineralógicas, botânicas e metalúrgicas. Além da viagem mineralógica, José Bonifácio preocupou-se com a elaboração de projetos científicos que contribuíssem para a implantação do conjunto das necessidades da história natural no território do “Reino do Brasil”. Tanto que propôs a criação de uma Universidade, de Sociedades Econômicas, de um estabelecimento da administração das Minas, de Escolas Práticas de Metalurgia e de uma Academia de Agricultura, além da organização de expedições científicas, entre outras instituições de importância fundamental para a formação de uma elite capaz de promover a modernização da sociedade brasileira. No ano de 1821, Bonifácio e Martim Francisco iniciaram as suas respectivas trajetórias de vida no campo da política enquanto estadistas e parlamentares, ao integrarem a Junta Provisória de São Paulo. A partir desse momento, os estudos mineralógicos deixaram de ocupar o lugar central na trajetória de vida dos dois naturalistas, uma vez que a preocupação principal passou a ser aquela voltada para a formulação de um projeto político para o país que começava a surgir. Contudo, em seus textos políticos, destacando-se principalmente os de José Bonifácio, observamos a utilização de metáforas científicas – como a ideia de amalgamação e a ideia de de que a s reformas sociais deveriam ser operadas conforme o ritmo lento e gradual das mudanças que ocorriam no mundo da natureza, conforme afirmava o naturalista sueco Carl von Linneu, entre outras -, que deixavam transparecer a importância que a história natural, sobretudo a mineralogia, teve em sua formação. Tal fato nos leva a afirmar que as faces de naturalista e de político (estadista e parlamentar) na trajetória de vida dos dois personagens são indissociáveis, característica esta presente nos ilustrados do século XVIII. Com o convite feito por D. Pedro a José Bonifácio para ser o seu principal ministro, a intromissão deste nos assuntos políticos do país ocorreu de forma definitiva. Junto com Bonifácio, viria o irmão Martim Francisco, que passava a ocupar a pasta da Fazenda, constituindo assim o gabinete dos Andradas, responsável pela elaboração de um projeto político que buscava construir uma nação civilizada nas Américas. No âmbito da pasta da Fazenda, Martim redigiu o texto “Memória sobre a estatística ou análise dos verdadeiros princípios desta ciência e sua aplicação à riqueza, artes e poder do Brasil” no qual elaborou o projeto de um levantamento estatístico do Brasil, para que assim pudesse contabilizar os diversos elementos que compunham o país, conhecer as especificidades de cada localidade e tomar as medidas necessárias para a aplicação de reformas que possibilitassem o seu desenvolvimento econômico. José Bonifácio centrou o seu projeto político para o Brasil em três temas centrais: o desenvolvimento das ciências, a reforma das sesmarias e da agricultura, e a inclusão dos habitantes do novo país, eliminando as profundas diferenças que os unia, incluindo aí a escravidão. A eliminação da sociedade escravista viria a ser o objetivo primordial de Bonifácio para a construção de uma nova sociedade, de acordo com os padrões modernos europeus. Imbuído dos ideais do reformismo ilustrado europeu e defensor de um modelo centralizado de monarquia, Bonifácio propôs um projeto civilizador que encerrava uma proposta de inclusão dos vários setores sociais, embora de forma subordinada à elite brasileira. Para a realização de tal projeto, era necessária a manutenção da unidade de todo o território da colônia portuguesa da América com a implementação de reformas sociais profundas, como a gradual extinção da escravidão e o processo de civilização dos índios. Somente assim poderiam amalgamar-se os elementos que representavam a heterogeneidade da população brasileira constituída por brancos, índios, mulatos, pretos livres e escravos, entre outros, e torna-la uma e indivisa e, portanto, moderna e civilizada. O passo seguinte dessa nação imaginada por Bonifácio seria a criação de uma nova “raça”, com um conjunto de características culturais comuns, que servisse de substrato para a nova identidade nacional. E, para ele, a alternativa proposta era a mestiçagem, que deveria ajudar no processo de homogeinização da nação e ao mesmo tempo civilizar os índios e os negros, por meio da mistura sanguínea, mas também cultural, com os brancos. Daí, o estadista propor a vinda de imigrantes de vários grupos sanguíneos para o Brasil, como os alemães e os chineses, entre outros, deixando assim registrado que futuro do país estava na mistura de todos os grupos. Os três personagens estudados revelam a riqueza do pensamento ilustrado no Brasil da virada do século XVIII para o XIX. Em suas respectivas trajetórias de vida, a ciência e a política sempre caminharam lado a lado. Em primeiro lugar, porque estavam engajados no projeto reformista políticoV Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
70 ISSN 2358-4912 científico de modernização do Império português liderado por D. Rodrigo. A ciência foi o elemento que lhes forneceu o referencial metodológico para mapearem e pesquisarem as “produções naturais” do Reino e da colônia com o intuito de descobrir novas fontes de recursos econômicos que pudessem promover o desenvolvimento e a modernização da nação portuguesa e das partes que compunham o seu Império Atlântico, sobretudo o Brasil. Em segundo lugar, ao serem chamados para atuar como estadistas e parlamentares, no caso específico de José Bonifácio e Martim Francisco, passaram a formular os projetos políticos para a jovem nação brasileira e os meios possíveis para inseri-la no concerto das nações civilizadas. Do Império Luso-americano ao Império do Brasil, foram homens extremamente atualizados com o pensamento europeu e buscaram aplicar e experimentar novos conhecimentos à sua comunidade local.
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Referências MOTOYAMA, Shozo. Ciência em São Paulo: um Esboço Histórico. In: História da Cidade de São Paulo. v. 1: a Cidade Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004. VARELA, Alex Gonçalves. Atividades Científicas na “bela e Bárbara” Capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009.
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O GOVERNO DE ANTÓNIO DE ALBUQUERQUE NO MARANHÃO: ELITES LOCAIS E TRÁFICO DE ESCRAVOS INDÍGENAS (1690-1701) Alexandre de Carvalho Pelegrino165 Este artigo pretende discutir o governo de António de Albuquerque Coelho de Carvalho no Maranhão (1690-1701). Lá sua família possuía duas capitanias donatárias (Cametá e Cumã), o que, de certa forma, colocava os interesses deste servidor da monarquia portuguesa muito além da rotina administrativa. Ainda nos anos de 1630, a capitania do Cametá foi doada para Feliciano Coelho de Carvalho, filho do então governador Francisco Coelho de Carvalho, que, por sua vez, era avô de António de Albuquerque. Já a segunda foi doada para António Coelho de Carvalho, irmão de Francisco Coelho de Carvalho. Quem herdou esta parcela importante do patrimônio da família foi justamente o pai de António de Albuquerque, também chamado António de Albuquerque, e que foi governador do Estado do Maranhão entre 1667 e 1671166. Optei por dividir o texto em duas partes. Num primeiro momento discutirei a trajetória ascendente de António de Albuquerque, o moço. Sua longa experiência militar nos sertões do Estado do Maranhão transformou António de Albuquerque num governador muito bem quisto pelas elites locais camarárias (principalmente Belém e São Luís). O relacionamento entre essas elites e o governador é justamente o tema da segunda parte. Acredito que esta relação amistosa devia-se, sobretudo, a conjuntura de “sertões abertos” vivida na década de 1690. Graças aos longos anos vivendo entre os moradores, António de Albuquerque foi capaz de perceber que, numa sociedade carente de mão de obra, a boa distribuição do trabalho indígena, forma dominante das estratégias de povoamento daquela época, era condição essencial para o sucesso da colonização. A trajetória de António de Albuquerque: António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o moço, teve o azar de não ser o filho primogênito167. Tinha ainda outros dois irmãos: Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho, o filho primeiro, e Feliciano de Albuquerque Coelho. Como era típico das famílias nobres no antigo regime, o primeiro varão era o herdeiro natural de todo o patrimônio da casa. Restava aos outros rebentos duas opções: a carreira eclesiástica ou as armas. Feliciano de Albuquerque Coelho escolheu, ou foi obrigado a escolher, a primeira opção. Enquanto para António restaram as aventuras militares no ultramar. A história dele mostraria que esta estratégia de manutenção do patrimônio e ascensão social não poderia ter sido mais acertada. Quando ainda era muito jovem, em 1666, recebeu a notícia de que seu pai havia sido nomeado o novo governador do Estado do Maranhão. Pela primeira vez pisaria na América. António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o velho, decidiu levar também o seu filho primogênito. Este fato é conferível a partir do pedido feito para ele receber a mercê do hábito da Ordem de Cristo168. A mesa da consciência e ordens, responsável por julgar os pedidos, recusou a súplica da família, pois além de Francisco ser muito jovem, contrariando os estatutos da ordem, que previam a idade mínima de 18 anos, o suplicante estava de partida para o Maranhão, o que dificultaria as provanças. Não durou muito a primeira passagem de António no Maranhão, já que o governo de seu pai não foi dos mais calmos e após o término do triênio não tardou a voltar para Portugal, levando consigo seus dois filhos. 165
Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação do Professor Dr. Ronald Raminelli. Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected] 166 A união das duas capitanias sob administração de uma mesma pessoa só foi possível pelo casamento entre António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o velho, e sua prima d. Inês Coelho de Carvalho, filha de António Coelho de Carvalho e “herdeira” da capitania do Cumã. Chamarei o pai de “o velho” e o filho de “o moço”. 167 Existe uma pequena biografia de António de Albuquerque, ver: LEITE, Aurelino. Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho: capitão-general de São Paulo e Minas do Ouro no Brasil. Lisboa: Agencia Geral das Colônias, 1994. Porém, esta obra é concentrada na sua atuação no Rio de Janeiro e nas Minas, além de conter algumas imprecisões. 168 ANTT. Habilitações da Ordem de Cristo. Letra F. Maço 34. Doc. 94.
72 ISSN 2358-4912 Ainda nesta primeira jornada teve o privilégio de receber educação dos padres jesuítas. Segundo a crônica de João Felipe Bettendorff, foi ele mesmo quem iniciou os dois jovens nos estudos:
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Fiz logo da sacristia, ainda por acabar, classe, e ajuntaram-se ali belos moços para meus discípulos, entre eles os dois filhos do senhor governador António de Albuquerque Coelho de Carvalho, a saber: Francisco, o mais velho, e António, que hoje nos governa, o mais moço, que por aquele tempo teria os seus 13 anos. Iam estudando todos com furor e grande aproveitamento, porque alguns deles já 169 tinham começado a traduzir Quinto Cúrcio.
Em sua segunda partida para o Maranhão foi acompanhar o governador Inácio Coelho da Silva (1678). Seu primeiro posto ocupado foi o de capitão-mor da capitania do Cametá, nomeado pelo próprio pai, donatário dela. Antes disso, já havia mostrado suas qualidades militares em pelejas nos sertões: “principalmente na guerra que se foi dar aos tapuias de corso que invadiram o rio Itapecuru em que se houve com particular trabalho e risco de vida passando duas vezes as capitanias do GrãoPará e Gurupá...”170 Enquanto ele foi capitão-mor do Cametá, esforçou-se na tentativa de resolver os problemas que a capitania enfrentava. Dada a rala população do Estado do Maranhão só existiam duas possibilidades para o “aumento” das capitanias donatárias: ou se transportava população de outros locais, notadamente dos Açores, ou desciam-se os índios dos sertões. Foi na segunda opção que António mirou. O sucesso das iniciativas de António de Albuquerque, o moço, foi recompensado pelo rei com a prorrogação de quatro anos do prazo para povoar a capitania, que já contava com quinze moradores e muitos índios. A carreira de António de Albuquerque foi posta a prova nos tensos anos de 1680. Nessa época, a carência de mão de obra indígena - consequência direta da nova lei de liberdade aos índios promulgada no dia 1 de abril de 1680 - aliada às constantes falhas da companhia de comércio em abastecer as cidades de São Luís e Belém deixavam as elites locais inquietas. O tempo fechou de uma vez em 1684, quando os moradores revoltaram-se contra o estanco, contra o governador e clamavam justiça ao rei171. Francisco de Sá e Meneses, governador na época, pediu para António de Albuquerque, dado o seu prestígio e bom relacionamento com habitantes de São Luís, ir pessoalmente tentar acalmar os ânimos172. No entanto, o fracasso em negociar com os moradores de São Luís nem de longe abalou a carreira ascendente de António, que, em 1685, foi nomeado capitão-mor do Pará173. Por esses anos chegou ao Maranhão o novo governador, Gomes Freire de Andrade, responsável pela pacificação da revolta e punição exemplar dos culpados, até com energia exagerada é verdade, mandando enforcar Manuel Bequimão e Jorge Sampaio de Carvalho, mas, afinal de contas, era necessário mostrar o poder real e evitar novas sublevações. Gomes Freire também empenhou-se em expandir a influência da coroa nos sertões do Maranhão. Neste contexto, um militar como António de Albuquerque tinha um enorme valor: sendo mandado ao cabo do norte a introduzir os missionários da companhia e desenhar os sítios mais convenientes do sertão para se fazerem as fortalezas que servissem para guarda deles o fazer com efeito atropelando muitas dificuldades e em algumas experimentar evidentes perigos de sua 169
BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, p. 316. 170 ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5, f. 305v. 171 Para uma rápida análise das duas principais revoltas coloniais ocorridas no Maranhão no século XVII (1661 e 1684), ver: CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicando clamores’: Queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII).” Projeto História, São Paulo, n. 33, p. 159-178, dez. 2006. 172 João Francisco Lisboa narra o episódio desta forma. Ver: LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 432. Existem alguns trabalhos sobre Alcântara que direta ou indiretamente abordam a trajetória de António de Albuquerque. Ver: VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara no seu passado econômico, social e político. São Luís: AML/ALUMAR, 1999. LIMA, Carlos de. Vida, paixão e morte da cidade de Alcântara – Maranhão. São Paulo: Plano Editorial SECMA, 1997/1998. 173 Neste cargo, gozava de ampla autonomia, inclusive financeira, visto que o rei destinava um montante anual para a sua atuação. O rei confiou a António de Albuquerque a composição das defesas, principalmente as fortificações, nas fronteiras do Estado do Maranhão.
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ISSN 2358-4912 vida pondo de paz o gentio por onde passava gastando muito com ele de sua fazenda nas drogas de 174 que o proveu obrando em tudo com zelo valor e prudência
Sua vasta experiência nos sertões foi essencial, também, para conter os avanços dos franceses, que sempre criaram muitos problemas no cabo do norte175. Para tanto, construiu fortalezas, fez alianças com indígenas e puniu aqueles que se aliavam aos inimigos da coroa portuguesa: e penetrando o sertão do Cumaú domesticar o gentio dele dando principio a uma fortaleza junto a qual se fez uma populosa aldeia, e se resolver a navegar o rio das Amazonas visitando as novas fortalezas e onde experimentou muitos incômodos com dispêndio de sua fazenda e risco de vida no 176 discurso de 5 meses que gastou nesta jornada dando por ordem de Vossa Majestade...
Sua intimidade com os sertões era algo incomum para um homem do seu extrato social. Por isso, seus serviços eram muito apreciados na corte, já que dava “exemplo a todos com o sofrimento do áspero das marchas havendo-se nelas como qualquer soldado sem se excetuar no trato e no trabalho aos mais, e só no despender sua fazenda ser particular...”177 O próprio padre João Felipe Bettendorff atesta a singularidade da carreira de António de Albuquerque. Segundo o religioso, após Rui Vaz de Siqueira, governador do Estado do Maranhão entre 1662 e 1667, somente os Albuquerques aventuraram-se em locais tão distantes da segurança oferecida pelas cidades de São Luís e Belém: Imitou-o depois nas visitas das Capitanias, António de Albuquerque Coelho de Carvalho [o velho], que chegou a visitar o Gurupá, não havendo depois outro governador que até lá chegasse, detendo-se comumente todos entre os limites do Maranhão e Grão-Pará, tirando seu filho, que hoje nos 178 governa, que chegou até o rio Negro, pelo ano 1695.
Ao final do governo de Artur de Sá e Meneses (1689), sucessor de Gomes Freire de Andrade, António de Albuquerque Coelho de Carvalho foi escolhido pelo rei para o cargo mais alto do Estado do Maranhão. A decisão régia foi exaltada pelos oficiais da câmara de São Luís: digo de que tem tomado posse com geral aplauso e aceitação de todos os vassalos de Vossa Majestade moradores neste seu Estado, por havermos concebido de sua prudência, zelo, e outras boas partes grandes esperanças assim nos conveniências do real serviço de Vossa Majestade como na aplicação ao remédio de nossas misérias, já quase insuportáveis que por bem lhe constarem e donde procedem e como podem melhor só levar-se lhe será menos dificultoso remediá-las, havendo criado-se entre nós e vivido muitos anos sendo a causa principal deste nosso conceito a grande piedade que reconhecemos assiste na lembrança de Vossa Majestade para conosco da qual e de sua 179 grandeza procederá toda nossa melhora...
A questão importante que devemos colocar é: em que consistia os “remédios” para a pobreza dos moradores? A câmara municipal era onde estava representada a elite local das Américas. Assim como 174
ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5, f. 305v. Existem alguns documentos onde podemos perceber que, assim como os portugueses, os franceses também partiam em direção aos sertões para participar do tráfico de escravos indígenas. Ainda estou tentando entender como estas guerras influenciavam nos fluxos de escravos indígenas. 176 ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5. A acirrada disputa pelas alianças com os grupos indígenas nas fronteiras explica-se pela enorme importância que eles tinham nas guerras. Quem conseguisse lutar com mais índios ao lado provavelmente sairia vencedor. Sabedores disto, os portugueses sempre empenharam-se em comercializar ferramentas de metal (anzóis, enxadas, pás, armas de fogo etc) com os índios. O próprio rei escrevia que: “Sendo um deles se convém ter contentes e propícios os índios do cabo do norte socorrendo-os gratuitamente com ferramentas e outras drogas, ou ao menos dando essas pelos mesmos preços em que as tirão aos franceses.” IHGB, 1699, 11, 27 (Arq. 1.2.24) 177 Idem. 178 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, p. 250. 179 APEM. Livro de Copiador de Carta (1689-1720). 1690, julho, 28. 175
74 ISSN 2358-4912 no Brasil, no Maranhão eles eram proprietários de terras, engenhos e currais de gado180. Deste modo, interessavam-se bastante por uma eficaz distribuição da mão de obra, especialmente a custos baixos. Então, qual era a forma mais eficaz de aplacar as misérias vividas no Maranhão? Tentarei responder esta questão na segunda parte. O governo de António de Albuquerque no Maranhão teve vida longa, aproximadamente dez anos. Pelos anos de 1699, António passou a escrever ao rei dizendo que estava doente e que necessitava retornar ao reino. O monarca cede aos pedidos do seu vassalo e autoriza seu regresso em 1701. Com seu retorno para Portugal era importante conseguir um casamento, afinal alguém deveria dar continuidade ao nome da família e administrar o extenso patrimônio. Casou-se, então, com d. Luísa de Mendonça. Juntos tiveram o filho herdeiro de António de Albuquerque, Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho181. Entretanto, o seu afastamento do campo de batalha foi temporário. Poucos anos depois do seu retorno a Lisboa já estava novamente em ação na guerra de Sucessão ao trono espanhol. Sua boa atuação lhe rendeu, posteriormente, a nomeação para o governo do Rio de Janeiro (1709). Naquela altura a guerra dos emboabas, grave conflito entorno da administração das minas descobertas no interior da América portuguesa, havia estourado182. Devido à sua capacidade de negociação, António de Albuquerque conseguiu pacificar e colocar sob a administração da coroa lusitana território tão importante. Seu último posto ultramarino foi o governo de Angola em 1721, sendo que lhe restava pouco tempo de vida. Em 1724, António de Albuquerque morreu em Luanda. Assim, podemos concluir que a ascensão social da família foi bastante contundente. Se lembrarmos que Francisco Coelho de Carvalho, avô de António de Albuquerque, o moço, casou-se com Brites de Albuquerque, filha de senhores de engenho em Pernambuco, e compararmos com o casamento conseguido para Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho com dona Teresa de Lencastre, filha de um visconde, a diferença não é pequena183. Se António de Albuquerque, o moço, teve de se embrenhar nos sertões da América para acumular serviços e pleitear mercês ao rei, seu filho pode gozar de uma vida no reino, ocupando cargos de prestígio, gastando os rendimentos das comendas e administrando as capitanias donatárias da família à distância, através de intermediários. O último episódio da família relacionado com suas capitanias é exatamente o da sua extinção, que não podemos nem definir como trágico, pois eles foram indenizados graciosamente por d. José I. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
As relações entre António de Albuquerque e as elites locais: O tráfico de escravos indígenas direcionado para São Luís durante os tempos de António de Albuquerque Nos primeiros anos do governo de António de Albuquerque localizei, na documentação produzida pela câmara municipal de São Luís, dados detalhados sobre as “repartições” de escravos indígenas
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XIMENDES, Carlos Alberto. Sob a mira da câmara: Viver e Trabalhar na cidade de São Luís (1644-1692). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2010. FEIO, David. Salomão Silva. O nó da rede de “apaniguados”: oficiais das câmaras e poder político no Estado do Maranhão (primeira metade do século XVIII). Dissertação de Mestrado. Belém. Universidade Federal do Pará (UFPA), 2013. 181 O casamento de seu filho foi arranjado com d. Teresa de Lencastre, filha de Diogo Correia de Sá, visconde de Asseca. 182 “A nomeação para o cargo de governador-geral da capitania do Rio de Janeiro coincidiu com um novo reordenamento estratégico da zona mineradora na geopolítica do Império português. A larga experiência de Albuquerque nos negócios coloniais fazia dele a pessoa mais apta a enfrentar as dificuldades advindas da implantação de governo político numa região dominada pelos poderosos e potentados locais, onde os seus conhecimentos militares certamente seriam decisivos. E foi com esta disposição enérgica e firme que ele tomou para si a missão de subir às Minas e pacificar os revoltosos: mal desembarcado no Rio de Janeiro, tratou logo de aviar uma expedição para lá, convencido de que era mais prudente viajar disfarçado, em vestes simples e modestas, sem o luzimento do aparato do cargo que ocupava.” ROMEIRO, Adriana. “A construção de um mito: António de Albuquerque e o levante emboada.” Tempo, 2009, p. 118. 183 É verdade que o título de visconde estava na base da nobreza titulada. Todavia, representava um reconhecimento muito maior da monarquia do que a autodenominação de “nobreza da terra” feita pelas elites locais na América Portuguesa.
75 ISSN 2358-4912 promovidas pelas elites locais184. No “Livro de Registros Gerais 1689-1746” estão computadas as “peças” que desembarcavam na urbe e eram posteriormente compradas pelas elites. As informações são detalhadas entre os anos de 1689 e 1694, pois a partir daí o documento apresenta uma lacuna, somente retomando os registros em 1702185. Na sequência da lei dos resgates de 1688 tivemos várias guerras contra grupos indígenas nas fronteiras do Estado do Maranhão186. Foi justamente neste período que assumiu o governo António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o moço. Ora as guerras direcionavam-se para os sertões do rio Itapecuru e Mearim, região de expansão ligada à pecuária, mas que gerava não muitos escravos. Ora elas iam em direção aos sertões do Cabo do Norte, rio Amazonas e Negro, ligadas aos conflitos com franceses, espanhóis, extrativismo, além, é claro, do tráfico indígena. Eram desses locais que saíam a maior parte dos escravos indígenas. Estas redes de comércio ligando os sertões amazônicos e as cidades de São Luís e Belém mostram uma situação muito mais complexa do que a simples constatação de que o Estado do Maranhão era pobre e não se desenvolvia plenamente graças a ausência de escravos africanos187. Segundo o documento citado, até 1704 desembarcaram 308 escravos indígenas, comprados por 103 pessoas, o que dá uma média de 2,99 escravos por pessoa188. Deste número total 42% eram homens e 58% eram mulheres189. A média de idade dos escravos fica na casa dos 19,6 anos. Além disso, os “direitos” pagos pelos moradores a fazenda real entre 1689 e 1694, respondem pelo valor, nada desprezível, de 1,138,400 réis. Prossigo com os dados que comprovam a boa distribuição do trabalho indígena nos primeiros anos da década de 1690 a partir do livro “Inventário de bens do Conselho. Entregas e Recebimentos dos procuradores” da câmara de São Luís. Na minha pesquisa acredito que os índios eram a principal riqueza do Estado do Maranhão, pois sem eles não haveria trabalho, e, consequentemente, a produção estaria seriamente comprometida. Além disso, a análise das contas da câmara municipal nos permite chegar à conclusão de que a sistematização progressiva orquestrada pela coroa portuguesa em torno do trabalho indígena gerava receitas igualmente indispensáveis para a colonização.190. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Colocamos a palavra repartição entre aspas por tratar-se do termo utilizado na fonte. Estes índios eram aqueles comprados nas tropas de resgate. Os índios eram chamados de “peças” ou mesmo “negros. Não encontrei nenhuma referência ao famoso termo “negro da terra”. 185 Esta lacuna está relacionada claramente ao estancamento das expedições de resgate e a epidemia de varíola que assolou o Estado do Maranhão a partir de 1694. Com a brusca queda demográfica decorrente das doenças e a falta de reposição dos plantéis de escravos a partir das tropas, a elite local, representada na câmara municipal, passou a reclamar constantemente ao rei por novas remessas de escravos africanos e/ou o envio de tropas aos sertões Assim, ao contrário do que propõe Luiz Felipe de Alencastro, as quedas demográficas na população indígena estavam longe de inibir o tráfico ameríndio, funcionavam justamente com o efeito oposto: o decréscimo no número de índios estimulava a busca por escravos nos sertões. Esta crítica as ideia de Luiz Felipe de Alencastro foram feitas pela historiadora Camila Loureiro Dias. DIAS, Camila Loureiro. “O livro das canoas – uma descrição”. Texto apresentado no IV Encontro Internacional de História Colonial, Belém, 3 a 6 de setembro de 2012. Cada vez mais, ao longo dos anos de 1690, quem controlava a distribuição do trabalho indígena era a Junta das Missões (1686). 186 Por exemplo, a guerra contra as “amanejús” ainda no governo de Artur de Sá e Meneses, que gerou boas rendas para a fazenda real. As guerras no início da década de 1690 nos sertões do Itapecuru e Mearim contra os índios “cahicahizes”. As várias guerras nos sertões do rio amazonas e cabo do norte promovidas por Hilário de Sousa de Azevedo, algumas “justas”, outras “injustas”. 187 Visão produzida por boa parte da historiografia e combatida por Rafael Chambouleyron. 188 O documento inteiro computa chegadas de escravos na praça de São Luís até 1746, porém com imensas lacunas e sem os mesmos detalhes dos anos iniciais. A montagem da tabela completa ainda está sendo feita. Até agora fizemos somente até 1704, que de certa forma está ligada a conjuntura do governo de António de Albuquerque. 189 Algo que não aparece nos dados analisados de forma mais quantitativa e que é bastante interessante: acredito que o tráfico indígena, pelo menos para este curto período analisado, possuía um forte traço familiar. Era comum a compra de famílias, por exemplo, um índio e uma índia com uma criança de colo. Qual a importância disso? Qual o impacto disto nas formas de dominação da população escrava? 190 Até o momento só consegui processar os dados relativos às receitas. Estou trabalhando nas despesas. A qualificação delas vai permitir entender os padrões de gastos de uma câmara municipal localizada na periferia do império colonial português.
76 ISSN 2358-4912 Neste texto, me limitarei aos resultados mais relevantes. Em primeiro lugar, devo destacar que as receitas da câmara municipal de São Luís não são elevadas, em boa parte dos anos ficaram entre 100$000 réis a 200$000 réis. Em segundo lugar, identifiquei seis fontes de receitas principais: as rendas das terras do conselho; as imposições aos engenhos; o direito sobre a passagem dos barcos que iam para Tapuitapera (Alcântara); o contrato das carnes (arrematado para marchantes); a atividade jurídica dos oficiais camarários (aplicação de multas e coimas) e, por fim, os escravos vendidos em praça pública. Os escravos vendidos pela câmara de São Luís, muitas vezes sob concessão do governador António de Albuquerque, incrementavam substancialmente as receitas. Normalmente o dinheiro das “peças” vendidas era aplicado nas obras públicas (notadamente a reforma da câmara municipal). O governador também auxiliava as elites locais através da aplicação do dinheiro arrecadado na venda de escravos para a manutenção e/ou construção de fortalezas. Um exemplo muito claro disto foi na fortaleza da ponta de João Dias, instalação militar fundamental para a defesa da praça de São Luís191. Afinal, sem segurança não poderia existir produção agrícola. A experiência, vivência e conhecimento da terra eram alguns dos pontos alegados pelos oficiais das câmaras tanto de São Luís quanto de Belém para pedir ao rei a permanência de António de Albuquerque no poder. Conhecedor da forma como se praticava a guerra nos sertões da América portuguesa, bem relacionado com os índios, inclusive tendo um filho mestiço no Cametá e capaz de falar línguas indígenas, António era visto como um intermediário ideal nas relações entre o rei e os moradores do Estado do Maranhão192. Todavia, como mostramos no parágrafo anterior, as relações também tinham a sua parte material mais imediata. Em 1693, quando António de Albuquerque deveria deixar o cargo, os oficiais pediram ao rei a sua permanência, vale ressaltar que no ano anterior a câmara de São Luís havia registrado a sua maior receitas em pelo menos 15 anos193. Portanto, é possível concluir que tanto a experiência nos sertões quanto a conjuntura favorável explicam o bom governo de António de Albuquerque no Maranhão. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicando clamores’: Queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII).” Projeto História, São Paulo, n. 33, p. 159-178, dez. 2006. DIAS, Camila Loureiro. “O livro das canoas – uma descrição”. Texto apresentado no IV Encontro Internacional de História Colonial, Belém, 3 a 6 de setembro de 2012. FEIO, David. Salomão Silva. O nó da rede de “apaniguados”: oficiais das câmaras e poder político no Estado do Maranhão (primeira metade do século XVIII). Dissertação de Mestrado. Belém. Universidade Federal do Pará (UFPA), 2013. LEITE, Aurelino. Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho: capitão-general de São Paulo e Minas do Ouro no Brasil. Lisboa: Agencia Geral das Colônias, 1994. LIMA, Carlos de. Vida, paixão e morte da cidade de Alcântara – Maranhão. São Paulo: Plano Editorial SECMA, 1997/1998. LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1972. 191
BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, pp. 18-19. 192 Em algumas cartas de António de Albuquerque podemos vê-lo advogando a favor das elites camarárias. António de Albuquerque era visto pelas elites como o único capaz de oferecer os “remédios” para a pobreza dos moradores. 193 Não era unanimidade a permanência de António de Albuquerque no cargo de governador. Gomes Freire de Andrade, ex-governador do Maranhão, colocava-se contra a decisão. Alegava que António de Albuquerque era vassalo íntegro, que não se valia das redes de contrabando, e, portanto, não tinha mais condições financeiras de continuar exercendo um posto numa paragem tão distante.
77 ISSN 2358-4912 VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara no seu passado econômico, social e político. São Luís: AML/ALUMAR, 1999. XIMENDES, Carlos Alberto. Sob a mira da câmara: Viver e Trabalhar na cidade de São Luís (1644-1692). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2010. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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PODER LOCAL, ELITE E FAMÍLIA COLONIAL NA VILA DE CIMBRES: NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS OCORRIDAS NOS SERTÕES DE ARAROBÁ DE PERNAMBUCO (1762-1822) Alexandre Bittencourt Leite Marques194
Nas últimas décadas, a historiografia brasileira vem cada vez mais realizando estudos acerca do relacionamento entre os poderes locais e a Coroa portuguesa. Variadas são as fontes de pesquisa (petições, provisões, editais) disponíveis que trazem indícios entre as negociações envolvendo os diversos nichos de poder local da América portuguesa e a administração central da Coroa.195 Os documentos também fornecem pistas sobre as disputas entre famílias da elite pelo poder local.196 Na América e em quase todas as demais áreas do Império português, o poder local era representado principalmente por intermédio das Câmaras municipais e das Ordenanças. As Câmaras eram formadas por oficiais eleitos no município e depois ratificados pela administração central da Coroa. Os oficiais das Câmaras tinham como atribuições o cuidado com o bem público, cabendo a eles assuntos ligados ao cotidiano da comunidade como, por exemplo, administração, justiça, saúde. Já os oficialatos das Ordenanças eram formados a partir das nomeações de capitães e demais mandatários. Dessa forma, ao ratificar os oficiais eleitos para as Câmaras, e ao nomear homens para as Ordenanças, o rei de Portugal e seu governo interferiam na administração de um município. Na medida em que a Coroa concedia certa autonomia aos conselhos e garantia as normas locais e hierarquia social, ela assegurava também a possibilidade de lidar com as diferentes realidades municipais. Por outro lado, esses nichos de poder eram motivos de interesse das elites locais, pois proporcionavam a seus ocupantes, além de mandonismo e status social, a possibilidade de negociar diretamente com o poder central de Portugal às mais variadas questões. Nesse sentido, as Câmaras e as ordenanças serviam de instrumentos de interlocução entre pessoas de municípios inseridos nas vastidões territoriais da América portuguesa e o centro do Império português.197 194
Universidade de Pernambuco – UPE/CNPq, Instituto Superior de Ensino de Pesqueira - ISEP.
[email protected] 195 Em relação às negociações envolvendo a vila de Cimbres, o Governo de Pernambuco e a Metrópole portuguesa, nos basearemos no conceito de “autoridades negociadas” desenvolvido por Jack P. Greene, no qual consiste na percepção de que havia flexibilidade de negociações entre a os representantes das Coroas da Europa moderna e as colônias europeias na América. A partir dos poderes locais os colonos conseguiam negociar as políticas e práticas da Coroa no intuito de atingir seus interesses particulares. Sobre a utilização desse conceito, ver GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). Na Trama das Redes: Política e Negócios no Império portugês, séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Já em relação ao conceito de centro, adotaremos o mesmo utilizado por Helidacy Corrêa “no qual a zona central de poder não é exclusivamente um fenômeno localizado no espaço (...) Nesse sentido, o centro é tomado como espaço de ação. Refere-se a estrutura das atividades, funções e pessoas inseridas em uma rede de instituições”. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara de São Luis e a política da monarquia pluricontinental do Maranhão. In: FRAGOSO; SAMPAIO. (Org.) Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. 196 Existe uma ampla e complexa discussão a respeito do conceito de “família”. No presente trabalho, adotaremos o conceito antropológico-social utilizado por Tanya Maria Pires Brandão, que conceitua a “família” como um “vínculo de parentesco, estabelecido a partir dos laços de sangue e de casamento”. Tomando como amostra a Capitânia do Piauí, Brandão também analisa que o caráter elitista da família colonial da América portuguesa se dá através das condições econômico-financeiras suficientes para deixar bens materiais a seus descendentes. BRANDÃO Tanya Maria Pires. A elite colonial piauiense: família e poder. – 2.ed. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. p. 117 e 122. 197 A respeito do funcionamento das Câmaras e das ordenanças, ver BICALHO, Maria Fernanda Batista. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA. (Org.) O antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. op.
79 ISSN 2358-4912 Apresentamos aqui um trabalho que procura compreender as disputas entre membros de famílias da elite pelos nichos de poder da Vila de Cimbres, bem como entender as negociações realizadas entre esses poderes locais da dita vila, o governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa, na passagem do século XVIII para o XIX. A possibilidade de realizar um estudo da “cultura política dos tempos modernos” envolvendo as autoridades de uma distante paragem da América e o centro do Império português é, portanto, a finalidade desta pesquisa.198 O recorte espacial compreende o termo (município) de Cimbres e sua vila. Outrora um povoado chamado de Ararobá, e depois Monte Alegre, a vila foi erguida em um antigo aldeamento indígena organizado por religiosos e possuía seus limites jurídico-administrativos estendidos por um vasto território então chamado de sertões de Ararobá, localizado no interior da Capitania de Pernambuco. Já o recorte temporal da pesquisa tem como baliza cronológica o ano de 1762, data em que Cimbres é elevada a categoria de vila através de um Edital, até 1821, ano da morte de um dos principais chefes locais e homens de negócios dos sertões de Ararobá de Pernambuco, o capitão mor Antonio dos Santos Coelho da Silva.199 Utilizamos como fontes da pesquisa diversos tipos de documentos oficiais como cartas, petições, edital, alvarás, provisões trocados entre a Câmara Municipal da vila de Cimbres, o Governo da Capitania de Pernambuco e a Coroa portuguesa. Tais documentos coloniais fazem parte do Livro da Criação da Vila de Cimbres, do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Além disso, usamos também inventários post-mortem localizados no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP) e biografias escritas sobre personalidades dos sertões de Pernambuco, desenvolvidas pelo Centro de Estudos de Historia Municipal de Pernambuco (CEHM).200 Quando devidamente analisados, todo esse conjunto de fontes podem fornecer indícios das relações familiares, disputas e negociações envolvendo os membros da elite local de Cimbres, o Governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa. A partir do início do século XIX , a Vila de Cimbres se viu envolvida em um episódio que repercutiu do Governo da Capitania de Pernambuco até o centro do Império português: a disputa entre parentes de uma das famílias mais ricas e poderosas da região após a morte de seu patriarca. O ano era 1821, quando veio a falecer o Capitão mor de Ararobá, Antonio dos Santos Coelho da Silva. Logo após o seu óbito, emergiu no seio da família a desconfiança e a disputa entre os genros do dito homem pelo seu título de capitão mor e pelo prestígio e interlocução que este posto ocupava na sociedade colonial. Segundo pesquisas biográficas feitas por José de Almeida Maciel e Luis Wilson, o então capitão havia nascido no século XVIII, em Porto (Portugal), e depois se mudou para a colônia brasileira onde se tornou dono de uma das maiores fortunas do interior de Pernambuco, chegando a ocupar a presidência do Senado da Câmara de Cimbres. Casado com D. Teresa de Jesus Leite (filha de Inácia Maria Leite com o Capitão Antonio Alves Passos, então proprietários de uma fazenda de gado nos sertões pernambucano), Santos Coelho e sua esposa tiveram seis filhas, dentre elas: 1) Clara Coelho V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
cit., p. 189-222. COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op cit., p. 241-260. SOUZA, George Cabral de. A gente da governança do recife colonial: perfil de uma elite local na América portuguesa (1710-1822). In: In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op cit., p. 51-86. 198 Maria de Fátima Gouvêa e Marília Nogueira dos Santos utilizam o termo “cultura política nos tempos modernos” como algo que pauta a “dinâmica das sociedades de corte, na pessoa do rei enquanto cabeça capaz de articular o corpo social como um todo, na mistura entre o ‘público’ e o ‘privado’, bem como uma indissociação entre o político, o econômico e social.” GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SANTOS, Marília Nogueira dos. Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVIII e XVIII. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política do passado: historiografia e ensino de historia. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 199 Escolha do local da vila de Cimbres – Edital para feitura nele declarada. FIAM/CEHM. Livro da criação da vila de Cimbres (1762 – 1867). - Recife: Cepe, 1985. 295 p. (Coleção Documentos Históricos Municipais). p. 40. 200 Em relação ao Livro da criação da vila de Cimbres, ele é uma compilação de vários tipos de documentos manuscritos - petições, ofícios, cartas, etc - que foram produzidos no período de 1762 – 1867. No ano de 1985, cópias impressas do Livro passaram a integrar a coleção Documentos Históricos Municipais, publicada pelo Centro de Histórias Municipais.
80 ISSN 2358-4912 Leite dos Santos, que casou com o Sargento mor (e depois Capitão mor) Manuel José de Siqueira, filho do mestre de Campo da Ribeira do Moxotó, o português Pantaleão de Siqueira Barbosa, proprietário de inúmeras fazendas de gado fundadas em extensas sesmarias. 2) Teresa de Jesus, que casou com o Tenente Coronel Domingos de Souza Leão. 3) Ana Vitória, que casou com o Juiz (e depois) Capitão mor Francisco Xavier Paes de Melo Barreto, também considerado homem de alta linhagem.201 Ao verificar as descrições feitas por Wilson e Almeida, e compará-las com nossas pesquisas realizadas nos inventários post-mortem da antiga Comarca do Sertão e em outros documentos como petições e provisões, foi possível perceber alguns aspectos sobre a família de Santos Coelho, no que tange a casamentos, bens materiais, negócios e a ocupação de cargos públicos e uso destes para fins particulares. Em relação ao matrimônio, todos os casamentos das filhas do Capitão Antonio dos Santos Coelho tinham algo em comum: o fato dos esposos serem homens de destaque na região, pois possuíam títulos, cargos, propriedades, negócios rentáveis e também pertenciam a famílias de prestígio nos sertões de Pernambuco. Em outras palavras, o velho Capitão fez questão de unir suas rebentas a pessoas que faziam parte também de outras famílias da elite local, exatamente como ocorreu entre ele e sua esposa há décadas atrás. Por outro lado, os genros de Santos Coelho também possuíam variados interesses em aderir a família de um homem com inestimável prestígio social, político e econômico na Capitania.202 Sendo assim, essa família se organizava horizontalmente entorno do Capitão, através do casamento das filhas deste com homens de outras famílias que, conscientemente, se juntavam ao grupo, criando laços parentescos equidistantes uns dos outros. Percebe-se com isso que o matrimônio tinha muita importância na sociedade colonial, pois de acordo com Leila Mezan Algranti, “o casamento sacramentado conferia status e segurança aos colonos, tornando-o desejável tanto pelos homens como pelas mulheres”.203 Nesse sentido, certos casamentos traziam alianças, benefícios econômicos, acrescimento social e material para as famílias envolvidas. É o exemplo do que percebemos no inventário post-mortem de uma das filhas de Antonio dos Santos Coelho (a Clara), onde o inventariante e esposo da falecida, Manuel José de Siqueira, além de ser possuidor da patente de Sargento mor, também mantinha junto a sua mulher uma quantidade significativa de bens que iam desde títulos de ouro e prata, passando por mais de 160 escravos, animais e móveis da casa, até chegar em lavras de terras e diversas propriedades. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Ao casar suas filhas com homens de outras famílias da elite local, Santos Coelho não só expandiu os laços de alianças familiares, como garantiu para todas as envolvidas um fortalecimento de status social e de bens materiais. Entretanto, o que talvez o velho capitão não esperasse fosse uma disputa entranhada, violenta e mortífera que ocorreria entre dois dos seus genros após seu falecimento. Segundo Almeida Maciel e Luis Wilson, após a morte de Santos Coelho, em 1821, logo surgiu uma disputa escarnecida que se arrastaria por alguns anos entre dois dos seus genros: o Sargento mor Manuel José de Siqueira e Francisco Xavier Paes de Melo Barreto para ver quem herdaria o título de Capitão mor de Ararobá. O primeiro encomendou uma emboscada para o segundo, mas os tiros atingiram o alvo errado, matando assim, em 1830, Ana Vitória, esposa do Francisco Xavier e cunhada do próprio mandante do crime. Meses depois, Xavier doente veio a falecer. Já o outro concunhado dos 201
Cf. MACIEL, José de Almeida. Pesqueira e o antigo termo de Cimbres. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1980; e WILSON, Luiz. Roteiro de Velhos e Grandes Sertanejos. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1978. 202 O prestígio, riqueza e influencia de Santos Coelho era conhecido até em Portugal, pois em 1807 o governador de Pernambuco enviou um documento relatando, dentre outras coisas, que o dito capitão “ter servido a Vossa Alteza Real com o donativo de Seiscentas e doze arrobas de algodão, valendo estas segundo preços correntes, três Contos, novecentos e oitenta e cinco mil, quinhentos e sessenta reis (...) sendo aquele donativo um dos maiores que me foram oferecidos, e quem deu o mais poderoso cultivador de algodão desta capitania”. AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. 203 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In Fernando A. Novais; Laura de Mello e Souza. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 87. 204 IAHGP. Inventário post-mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.
81 ISSN 2358-4912 rivais, Domingos de Souza Leão, percebendo o clima de disputa gerado ao longo dos anos, mudara-se antes, com sua família, dos sertões de Ararobá para o Engenho Caraúna, em Jaboatão. Por fim, Manuel José de Siqueira, diz-se que de desgosto (ou de remorso) pela morte da cunhada D. Ana Vitoria, morreu em outubro do ano seguinte, em1831.205 Ao ler essa história da desavença, logo surgiram algumas reflexões: se Manuel morreu mesmo arrependido do que fez, difícil dizer, pois até os pesquisadores não tiveram convicção sobre essa afirmação. O fato é que por trás dessa história de assassinato entre membros da família de Antonio dos Santos Coelho da Silva está a disputa envolvendo dois homens da elite local por um posto, nesse caso, o de capitão mor, e de todo um status social, interlocuções e benefícios particulares que o detentor deste título poderia obter. Durante o período colonial, existiram algumas disputas entre diferentes membros da elite local por cargos camarários ou por patentes de Ordenanças. Um dos motivos, além do status social, era a capacidade de interlocução que esses cargos ou patentes proporcionavam ao detentor junto a Coroa portuguesa, pois aquele que exercia o poder local, de um jeito ou de outro, sempre estava em contato com os representantes da metrópole portuguesa. Uma vez ocupando esses cargos de influência, os postulantes tinham a possibilidade de realizar negociações dos diversos interesses, seja público, ou até mesmo particular junto a Coroa. O próprio Antonio dos Santos Coelho da Silva, anos antes de sua morte, fez uso de sua posição na sociedade local como capitão mor para obter algum tipo de privilégio junto a Alteza Real. É o que demonstra o seguinte despacho para sua petição no ano de 1804:
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(...)havendo infinitos lugares despovoados e perigosos de cometimentos, muito principalmente para o suplicante pela razão das indispensáveis arrecadações e remessas dos reais donativos para a fronta da Fazenda, por cujo princípio obteve pela ouvidoria provisão para o uso de armas ofensivas e defensivas durante o contrato, mas esta provisão não se faz cumprida por se entender que a ouvidoria jamais podia concedê-la sem que o suplicante represente a S. A. R. provisão para continuar com o uso de pistolas e de acompanhar-se de um criado armado com bacamarte não só pelo tempo de contrato, mas em qualquer outro, pelo razão de também ter servido a Sua Alteza Real em diferentes ofícios desse lugar nos quais criou alguns inimigos, contudo não tem chegado esta provisão o suplicante é amigo das leis e não pretende o uso das armas proibidas que por cômodo e 206 para a defesa de sua vida e dos reais donativos que a miúdo conduz para esta praça.
No caso acima se nota que, como reforço para continuar com o porte de armas dele e de seu capanga, “não só pelo tempo de contrato, mas em qualquer outro”, e em áreas fora da vila de Cimbres (nos “infinitos lugares despovoados” do sertão), o capitão fez questão de lembrar a importância das ditas armas para a defesa dos donativos reais contra os perigos do Ararobá e para a defesa de sua própria vida, haja vista que por fazer variadas atividades em nome da Coroa, terminou por acumular alguns inimigos. Nesse sentido, Santos Coelho se beneficiou da posição de prestígio que seu cargo ocupava, para poder realizar negociações em seu próprio benefício com a Coroa portuguesa, neste caso específico, a utilização de armas proibidas em lugares fora da vila e por tempo indeterminado. Na mesma situação se encontrava também um dos genros do Capitão Santos Coelho, o sargento mor Manuel José de Siqueira, que entre 1811 e 1812 solicitou e recebeu autorização da Coroa portuguesa para usar armas de defesas, como também para armar homens forros que o deveriam acompanhar tanto em diligências oficiais, quanto em seus negócios particulares: Que em razão do seu posto de várias diligencias do Real Serviço, prisões de facínoras e execução de outras reais ordens, como também em consequência do manejo de seus negócios, sendo um dos maiores fazendeiros daquela vila, lhe era forçoso transitar muitas vezes por caminhos desertos, expostos aos ataques dos malfeitores, pelo que me pedia lhe concedesse faculdade para poder usar de armas de defesas, assim como os forros que houvessem de acompanhá-lo em todas as mencionadas ações de diligências do Real Serviço e nas do seu negócio. Hei por bem à vista do seu requerimento e 205
Sobre maiores detalhes da disputa que terminou em morte ver: MACIEL, op. cit. p., 161-194; e WILSON, op.cit. p. 1151-1160. 206 Cópia de petição, despacho e mais documentos do capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva, 30 de outubro de 1804. FIAM/CEHM, op. cit., p. 178.
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ISSN 2358-4912 dos documentos que apresentou, conceder ao suplicante o uso de armas de defesas na forma de sugestão, que Vossa Mercê lhe permita e aos ditos forros que o acompanham nas ações das 207 mencionadas diligências e viagens.
Nessa provisão, percebe-se novamente que um homem se apropriava da posição de prestígio que seu posto lhe conferia para ter contato e negociar com a Coroa interesses de questão públicas e particulares também. Esse porte de armas permitiria, assim, a realização de viagens mais seguras contra os ataques de “malfeitores” por essas paragens. Manuel José de Siqueira tem mesclados assim dois papéis: Homem de negócios e de terras e oficial do Rei encarregado de diligências judiciais. Ou seja, a própria solicitação do sargento-mor para armar forros que o deveriam acompanhar em diligências oficiais e de seus negócios particulares tornava visível as práticas cotidianas que mesclavam as estruturas oficiais com estruturas de poder privadas nos sertões da Capitania de Pernambuco. O pedido de solicitação para andar com armas proibidas em lugares distantes da vila de Cimbres dá indícios de ser uma constante entre o Capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva e seus genros, pois outro homem casado com uma de suas filhas, Domingos de Souza Leão, também conseguiu uma autorização junto a Coroa portuguesa para isso. É o que está declarado na seguinte provisão régia, feita nos anos de 1811 e 1812: Faço saber aos que esta provisão virem, que atendendo a representar-me Domingos de Souza Leão que em razão de ser administrador dos engenhos Gurjau de Baixo e Carauna, sitos na freguesia de Santo Amaro de Jaboatão, Capitania de Pernambuco, onde também possuía uma fábrica de algodão no sertão do Brejo da Madre de Deus, por cujos caminhos sendo muitas vezes necessários atravessar e pelos quais conduzindo as suas fazendas com risco de vida, me pedia por isso lhe concedesse provisão para poder usar de armas proibidas e de pistolas nos coldres, e visto o seu requerimento e o mais que me foi presente, hei por bem que o suplicante possa tão somente usar de 208 armas defesas na forma da lei para o efeito nesta declarado(...)
Diferente do seu sogro e do seu genro, Domingos de Souza Leão não pediu a autorização do uso de armas proibidas também para seus homens, se contentando somente em ter a liberação destas para si mesmo. Entretanto, com essa solicitação da necessidade de andar armado por caminhos que vão da Freguesia de Jaboatão, situada no Litoral, até o Brejo da Madre de Deus, localizado no sertão da Capitania de Pernambuco, Souza Leão repete o discurso usado pelos outros dois parentes e membros da elite local, afirmando que essas armas eram para uso particular, na medida em que corria “risco de vida” ao transitar pelos caminhos que levavam a seus negócios particulares, neste caso, aos engenhos e a fábrica de algodão. Ainda sobre Souza Leão, outro documento, feito em 1816, descreve: “Parecer do Desembargador Antonio José Barroso de Miranda, ouvidor da Comarca do Sertão, sobre a representação de Domingos de Souza Leão, genro do Capitão mor, contra os índios da vila de ‘Simbres’ e o seu pároco”.209 Nesse caso, o parecer consta com nome de Souza Leão atrelado ao seu sogro, o capitão mor. O fato de aparecer ao lado de Santos Coelho certamente tinha o intuito de reforçar a representação feita por Leão. Daí se percebe a importância de se ter um cargo camarário ou de se ter uma patente de ordenança, haja vista que eles podiam ter tanta influencia para aquele que os possuía, quanto para aqueles que estavam próximos do seu detentor. Em relação a ocupação de cargos camarários e de posse de patentes, era comum haver casos no Império português de um membro manter as duas coisas ao mesmo tempo.210 O próprio capitão Santos 207
Dom João por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, em África de Guiné, faço saber aos que essa provisão virem que atender a representar-me Manuel José de Serqueira, sargento mor das ordenanças da vila de Cimbres, capitania de Pernambuco, 13 de novembro de 1811. FIAM/CEHM, op. cit., p. 231. 208 Registro de uma provisão régia que alcançou Domingos de Souza Leão, para uso de pistolas e armas proibidas. FIAM/CEHM. op. cit., p. 230. 209 ANTT, Cota atual: projecto reencontro, M.F 75. 210 Segundo Adriano Comissoli e Tiago Gil: “Câmara funcionava em estreita proximidade com as tropas de Ordenanças, uma vez que há uma grande coincidência de nomes entre os ocupantes das duas instituições. Essa
83 ISSN 2358-4912 Coelho era um exemplo disso, pois verificamos nas correspondências de 1807, entre o Governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa, uma declaração do governador a respeito dos muitos documentos que comprovam os serviços prestados pelo capitão à Alteza Real:
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Mostra me ter servido na vila de Cimbres (...) desta Capitania, de Almotacé, procurador, juiz ordinário e dos órfãos, de provedor comissário dos defuntos e ausentes, desempenhando com satisfação pública de seus deveres (...) ratifica aqueles mesmo serviços e mostra sinais que fora 211 capitão de duas Companhias de Cavalaria Auxiliar.
A mesma coisa acontece com Francisco Xavier Paes de Melo Barreto, outro genro de Santos Coelho, onde analisamos que em um inventário post-mortem da comarca de Cimbres, do ano de 1822, ele aparece como Juiz de Órfãos e Capitão mor da vila: “Inventário que mandou proceder o Juíz de Órfãos e Capitão Mor Francisco Chavier Paes de Mello Barreto, dos bens que ficaram por falecimento de João José de Mello”.212 Comparando os trechos das documentações acima, se percebe que tanto sogro quanto genro chegaram a acumular cargos silmultâneos na Câmara e na Ordenanças de Cimbres, o que demonstra que o que ocorria nos sertões de Ararobá de Pernambuco não fugia da tendencia do que acontecia nas demais regiões do império português. E foi justamente esse acúmulo de cargos nas instancias judicial e militar adquiridos por Francisco Xavier, após a morte do seu sogro, que possivelmente gerou o descontentamento do outro membro da família, o sargento mor Manoel José de Siqueira. A tal ponto do último provocar um assassinato dentro da propria família, pois como visto no inventário acima, em 1822, Xavier já aparecia com a patente adquirida de capitão mor, ou seja, um ano após o falecimento do velho capitão Santos Coelho. Nesse sentido, o perfil de membros da família do capitão Antonio dos Santos Coelhos nos ajudou a compreender as disputas e negociações de indivíduos da elite local que deram vida as instituições da vila de Cimbres, na América portuguesa. Ao mesmo tempo em que contribuíam para o funcionamento dessas instituições de poder no ultramar, essas pessoas também se utilizavam delas em prol de seus interesses particulares, na medida em que a ocupação de cargos camarários e de postos militares permitia uma maior interlocução com a Coroa portuguesa, facilitando, por muitas vezes, meios para elevação de prestígio, de status social e de negócios econômicos dos súditos do rei.
Referências AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In Fernando A. Novais; Laura de Mello e Souza. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ANTT, Cota atual: projecto reencontro, M.F 75. BICALHO, Maria Fernanda Batista. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). O antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. – Teresina: Editora da UFPI, 1999. 142. característica foi bastante comum em diversos conselhos lusitanos, tanto da Europa quanto da América, da Ásia e da África”. COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op. cit, p. 247. 211 AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. 212 IAHGP. Inventário post-mortem de João José de Melo, 1822. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 62.
84 ISSN 2358-4912 COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara de São Luis e a política da monarquia pluricontinental do Maranhão. In: FRAGOSO; SAMPAIO. (Org.) Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVIXVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. FIAM/CEHM. Cópia de petição, despacho e mais documentos do capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva, 1804. FIAM/CEHM. Documentos Históricos Municipais: Livro da criação da vila de Cimbres (1762 – 1867). Leitura paleográfica por Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e Costa. Colaboração do Departamento de História da UFPE. Introdução de Potiguar Matos. Notas de Gilvan de Almeida Maciel. - Recife: Cepe, 1985. 295 p. (Coleção Documentos Históricos Municipais). FIAM/CEHM. Provisão que virem atender a representar-me Manuel José de Serqueira, sargento mor das ordenanças da vila de Cimbres, capitania de Pernambuco, 1811. FIAM/CEHM. Registro de uma provisão régia que alcançou Domingos de Souza Leão, para uso de pistolas e armas proibidas. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SANTOS, Marília Nogueira dos. Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVIII e XVIII. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política do passado: historiografia e ensino de historia. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). Na Trama das Redes: Política e Negócios no Império portugês, séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. IAHGP. Inventário post-mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107. IAHGP. Inventário post-mortem de João José de Melo, 1822. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 62. MACIEL, José de Almeida. Pesqueira e o antigo termo de Cimbres. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1980. SOUZA, George Cabral de. A gente da governança do recife colonial: perfil de uma elite local na América portuguesa (1710-1822). In: In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. WILSON, Luiz. Roteiro de Velhos e Grandes Sertanejos. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1978. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AS CAPITANIAS DE ITAPARICA E TAMARANDIVA E DO PARAGUAÇU: ADMINISTRAÇÃO E PODER NA AMÉRICA PORTUGUESA (1552-1592) Alexandre Gonçalves do Bonfim213 Introdução As primeiras capitanias hereditárias foram doadas no Brasil na década de 1530. Após estas, entre as décadas de 1550 e 1560 novas donatarias foram constituídas na América portuguesa. Essas capitanias foram Itaparica e Tamarandiva, instituída em 1556 e Paraguaçu instituída em 1565. As duas concessões estavam localizadas no Recôncavo (Baía de Todos os Santos) sendo o território de Itaparica e Tamarandiva formado pelas ilhas que dão nome a donataria214 e Paraguaçu formada por uma extensa faixa de terra entre os rios Jaguaripe e Paraguaçu, correndo dez léguas sertão adentro215. Todavia o processo de concessão das duas apresentou algumas especificidades frente as donatarias doadas na década de 1530. Primeiramente, elas foram doadas após a instalação do Governo Geral no Brasil, sendo as primeiras instituídas após a chegada de Tomé de Souza a Bahia. Além disso, soma-se o fato que os territórios das duas donatarias foram doados, inicialmente, sob a condição de sesmaria. Depois, atendendo ao pedido de confirmação das terras feito pelos dois donatários, a Coroa confirmou as terras aos mesmos donos, sob a condição de capitania216. Quanto aos donatários, destaque para o senhor de Itaparica e Tamarandiva, Dom António de Ataíde, o Conde de Castanheira, que era, no momento das doações, Vedor da Fazenda e principal Conselheiro do Rei Dom João III. Enquanto o capitão de Paraguaçu, Dom Álvaro da Costa era filho de Dom Duarte da Costa, governador do Brasil, entre 1553 e 1557. Ou seja, os dois donatários em questão era indivíduos ligados ao governo da Coroa. Indicar essas singularidades é importante, pois estas serão os guias para o exercício de entender como as duas capitanias aqui estudadas se inseriam no contexto maior de consolidação das estruturas administrativas no Brasil no século XVI. As donatarias se constituíram em um momento que outros elementos da colonização como o poder concelhio, religiosos e outros colonos já estavam postos na Bahia. Assim, esse trabalho também tem como objetivo levantar questões acerca do relacionamento dessas donatarias como os outros elementos da colonização acima apontados. A administração do Brasil quinhentista Portugal constituiu suas primeiras possessões além-mar no século XV. Desde então a Coroa lusa lançou mão de diferentes soluções político-administrativas. Não havia um dispositivo padrão, mas diferentes formas para manutenção de suas posses que eram escolhidas de acordo com as especificidades de cada território. Essa característica da colonização do Antigo Regime português é chamada por António Manuel Hespanha e Maria Catarina dos Santos de pluralismo administrativo217. Esse pluralismo pode ser constatado no Brasil quinhentista já que diferentes soluções políticoadministrativas foram escolhidas para conservação do território nos primeiros 50 anos de colonização da América portuguesa.
213 Licenciado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Atualmente é mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sob a orientação da Prof. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
[email protected] 214 GARCEZ, Angelina. A sesmaria de Itaparica. In: Anais do V Congresso de História da Bahia. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia; Fundação Gregório de Mattos, 2001, p.75. 215 Doação da Capitania de Paraguaçu de Dom Álvaro da Costa. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1929, p. 226. 216 GARCEZ. Op. Cit. p. 76. 217 HESPANHA, António. SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Império Oceânico. In: MATTOSO, José. História de Portugal v.4 (O Antigo Regime). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 351-364.
86 ISSN 2358-4912 Nos primeiros trinta anos, a ação colonizadora de Portugal no Brasil se resumia as feitorias. Essas construções tinham a função de armazenar e comerciar as mercadorias, mas também acumulavam o papel de pontos estratégicos para defesa da costa. As feitorias não foram suficientes para repelir a ação de embarcações de outras nações europeias. Dessa maneira, a Coroa teve que pensar em outra forma de manter o Brasil sob seu domínio. A adoção do sistema de capitanias hereditárias em 1532, tendo como principal incentivador Dom António de Ataíde, se mostrou a mais indicada para a situação. As donatarias consistiam em um sistema no qual o rei, soberano de todas as terras conquistadas, doava a seus súditos o domínio político de uma determinada base territorial. No entanto os capitães donatários não tinham o domínio direto de todo o território da donataria, sendo obrigados a doar a maior parte dela sob a forma de sesmarias (como veremos mais abaixo, a única exceção a essa regra era a capitania de Itaparica e Tamarandiva). Ainda tinham o direito de administrar a justiça do território de sua capitania e algumas obrigações como montar um aparato administrativo que respeitasse à ordem jurídica da Coroa, propagar a fé católica e incentivar o aproveitamento econômico das terras sob seu domínio. Os tributos do rendimento da capitania eram recolhidos pelo donatário que tinha direito a uma parte do arrecadado218. Entretanto a maioria dos donatários não investiu em suas capitanias, dificultando a ocupação satisfatória da terra como desejava a Coroa 219. Soma-se a isso a resistência indígena a colonização portuguesa para entender o porquê que as donatarias não foram totalmente eficazes para uma ocupação satisfatória do Brasil. Aliás, a morte do donatário da capitania da Baía de Todos os Santos, Francisco Pereira Coutinho, provocado por tupinambás moradores da ilha de Itaparica tornou-se um estopim para que a Coroa tomasse uma nova medida para salvaguardar a colonização do Brasil220. Assim, o governo geral foi adotado para a consolidação de uma instituição central para administração na colônia221. Porém as capitanias não deixariam de existir tanto que as capitanias alvo desse estudo foram criadas após o estabelecimento do Governo Geral. Aliás, a instituição central do governo geral tinha como objetivo, também, fornecer ajuda aos capitães donatários em dificuldade222. Em 1549 Tomé de Souza trazia de Portugal o “Regimento” que além de confirmar sua posição como governador geral, estipulava algumas prioridades. Entre elas, a construção da cidade sede do governo geral, Salvador223. O regimento também indica que o governo geral devia incentivar a distribuição de sesmarias aos colonos interessados em aproveitar as terras economicamente – sendo a cana de açúcar a cultura mais incentivada – além do combate aos chamados “índios bravios”. O texto tinha especial atenção ao gentio tupinambá, que provocava sérios problemas a colonização portuguesa principalmente na região da Baía de Todos, sendo que a morte de Coutinho é só mais um exemplo224. É nesse contexto de progressiva normalização administrativa da América Portuguesa é que são instituídas as capitanias aqui estudadas. Elencar as singularidades da constituição de Itaparica e Tamarandiva e Paraguaçu permite levantar algumas discussões sobre a política e administração da América Portuguesa bem como entender com essas duas donatarias se encaixavam nesse contexto.
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SALDANHA, António Vasconcelos. As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001.p. 17-23. 219 Somente Duarte Coelho de Pernambuco e Martim Afonso de Souza de São Vicente mobilizaram frotas e seus séquitos do reino para a capitania, além de gastos militares e financeiros no intuito de combater índios bravios, escravizando estes e ocupando suas terras. GALLO, Alberto. Aventuras y desventuras del gobierno señorial en Brasil. In: CARMAGNANI, Marcello (org.). Para una historia de America, v. II. Los nudos I. México: Fondo de Cultura Económica, s/d, p. 198-265, p. 207. 220 PARAÍSO, Maria Hilda Barqueiro. Revoltas indígenas, a criação do governo geral e o regimento de 1548. In: Clio – Revista de pesquisa histórica. Pernambuco: UFPE, n° 29.1, 2011. 221 SILVA; AMARAL, 1919, p. 267. 222 O governador geral, ainda, era um cargo importante dentro da ordem administrativa do Antigo Regime português, sendo a indicação de Tomé de Souza mais uma maneira de beneficiar COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil: Ofício, regimentos, governação e trajetórias. 1° ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2009, p. 67. 223 Regimento que levou Thomé de Souza, Governador do Brazil. In: SILVA, Ignácio Accioli Cerqueira e; AMARAL, Braz (coment.). Memórias Históricas e políticas da Bahia, vol.1. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1919, p. 263. 224 Regimento que levou Thomé de Souza, Governador do Brazil. In: SILVA; ACCIOLI. Loc. Cit.
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ISSN 2358-4912 A instituição das capitanias de Itaparica e Tamarandiva e do Paraguaçu Capitania de Itaparica e Tamarandiva Já com o governo geral instituído, Tomé de Souza retribuiu ao seu primo, Dom António de Ataíde, o favor da indicação ao Governo Geral com a carta de sesmaria que concedia ao conselheiro do Rei as ilhas Itaparica e Tamarandiva, além da “Ribeira que se chama Rio Vermelho que está do lado do leste da cidade de Salvador com uma legoa por costa de mar para leste e para dita Ribeira [...] duas legoas de terra para o Certão e do dito Rio para contra essa Cidade” 225. Essa doação foi contestada pela Câmara de Salvador226. Todavia, Gabriel Soares de Sousa, escrevendo o seu “Tratado Descritivo do Brasil” de 1587, afirma que a situação da jurisdição da ilha ainda era indefinida trinta anos depois da doação de 1549.227 A contrariedade da doação da sesmaria pode estar no fato que este documento obriga o beneficiado a morar em suas terras para aproveitá-las economicamente, algo que não ocorreu, já que o Conde de Castanheira não se mudou para o Brasil228. Em 1556, a Coroa confirmou as ilhas para o Conde de Castanheira. Todavia, o rei confirmou as ilhas como capitanias através de uma carta de doação e de um foral229. Com isso, as ilhas de Itaparica e Tamarandiva foram desmembradas da Capitania Real da Baía, com a Câmara de Salvador perdendo qualquer jurisdição sobre elas. No entanto, como dito acima, Gabriel Soares de Souza indica como que no momento que ele escrevia o “Tratado” a contenda entre a Câmara e o donatário já durava mais de trinta anos. Isso significava que o embate continuou após a conversão das ilhas de sesmaria à capitania, apontando para um conflito entre dois corpos dentro da sociedade que se formava no Brasil nos moldes da monárquica corporativa230. Esses dois corpos seriam o poder camarário na figura da Câmara de Salvador e o poder senhorial na figura do Donatário de Itaparica e Tamarandiva, o Conde de Castanheira. Infelizmente é difícil encontrar dados relativos à Câmara de Salvador no século XVI. Afonso Ruy aponta que esses documentos foram destruídos devido a Invasão Holandesa de 1624. Essa documentação poderia nos fornecer importantes dados sobre quem fazia parte da Câmara naquele momento, quais eram os interesses dos membros da Câmara com relação às ilhas, entre outras informações relevantes. A Coroa portuguesa, naquele momento prezava pela ocupação do território, portanto a mudança das ilhas de Itaparica e Tamarandiva ao status de capitania permitiria que as ilhas fossem divididas em diversas sesmarias, o que facilitaria a ocupação da mesma. Contudo, aqui está outro problema. A capitania em questão foi doada ao morgado instituído pela mãe do Conde de Castanheira, Dona Violante de Távora. O morgado era uma instituição portuguesa que consistia na agregação dos bens de uma determinada família em posse de uma pessoa, geralmente o primogênito do casal instituidor, no intuito de não provocar a dispersão desses bens231. A sesmaria só poderia ser constituída através de um dispositivo jurídico específico. A fragmentação da capitania em sesmaria dividiria a donataria em 225
GARCEZ. Op. Cit. p. 74. RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009, p. 260. 227 SOUZA, Gabriel Soares. VARNHAGEN, Francisco (org.). Tratado Descritivo do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Laemmert, 1851, p. 142. 228 Afonso Ruy também aponta a não vinda de Dom António de Ataíde ao Brasil como um dos motivos do embargo da Câmara. RUY, Affonso. História da Câmara da cidade de Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953, p. 20. 229 A carta de doação e o foral são os documentos constitutivos de uma capitania. Enquanto a carta de doação garantia a transferência da capitania ao donatário, além de estabelecer o limite da terra doada, os forais estabeleciam quais os direitos que os donatários teriam, além das obrigações com relação a sua donataria. Para uma análise detalhada dos dispositivos legislativos da carta de doação e dos forais, ver: SALDANHA, 2000, Op. Cit. p. 68-79. 230 HESPANHA, António. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163188. 231 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Herança no Brasil colonial: os bens vinculados. Revista de Ciências Históricas da Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto, Volume V (Separata), 1990, p. 291-319. 226
88 ISSN 2358-4912 diversos bens diferentes que seriam doados a diferentes pessoas, fora da família do dono da capitania, o que iria de encontro à instituição do morgado. Por isso a capitania de Itaparica se configurava como a única capitania em que não havia a possibilidade de doação de sesmaria232. Porém essa situação não impossibilitava o aproveitamento das terras, assim como a manutenção de indivíduos já instalados nas ilhas. As terras da capitania de Itaparica e Tamarandiva poderiam ser ocupadas por outros sujeitos através do aforamento233. No século XVI, diversas pessoas já morando dentro das ilhas234, alguns ligados ao donatário como João Fidalgo, loco-tenente de Dom António de Ataíde235. Este possuía uma ilheta em Itaparica, assim como Gomes Pacheco, procurador do Conde de Castanheira que era proprietário de um curral na ilha236. A capitania de Itaparica e Tamarandiva ainda teve como forma de organização administrativa territorial no primeiro século da colonização a “freguesia”. Esta era uma unidade territorial eclesiástica que consistia no domínio jurisdicional de uma paróquia. A freguesia acabava sendo uma das mais úteis formas de organização do território do Império. Os moradores da região da freguesia eram assistidos pelas paróquias através dos sacramentos, garantindo a religião para os indivíduos, perpetuando assim, a ordem sociocultural portuguesa em seu Império Ultramarino237. Em Itaparica foi constituída, no século XVI, a freguesia de Bom Jesus da Vera Cruz de Itaparica que, junto com a instalação de uma missão jesuítica instalada na ilha em 1560 pelo Padre Luís de Gram junto com os tupinambás, demarcava a presença da Igreja na capitania238. A freguesia, portanto, era mais um elemento da estrutura administrativa régia que influenciava na ocupação do espaço da capitania de Itaparica e Tamarandiva, sendo mais uma contribuição para a concretização da colonização da América Portuguesa. Ao pontuar a constituição da capitania, percebe-se que em nenhum momento a donataria iria de encontro aos objetivos da Coroa pautados no regimento de 1548. A donataria incentivava a ocupação de terra de indivíduos, bem como a ação da Igreja. Quanto a esta, ela seria fundamental para “pacificação” dos índios da ilha através de uma missão jesuítica. Com isso, percebe-se que a capitania de Dom António de Ataíde, um dos poucos grandes do Reino com posse no Brasil, seria um elemento que contribuía para a administração do Brasil no século XVI. Além disso, a ocupação da donataria poderia ser útil para o Conde já que o mesmo era um incentivador das Conquistas no Ultramar e dos rendimentos que estas poderiam oferecer239. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Capitania do Paraguaçu Em 1557, o filho do governador geral Dom Duarte da Costa, Dom Álvaro da Costa recebeu de seu pai uma grande sesmaria entre os rios Jaguaripe e Paraguaçu. Dom Álvaro foi um dos líderes no combate às revoltas indígenas ocorridas no Recôncavo. Porém, em 1558, Dom Álvaro da Costa volta, junto com seu pai, para Portugal, o que impossibilitaria qualquer investimento de sua parte nas terras
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Doação de Dom Antonio de Athaide Conde da Castanheira das Ilhas de Taparica, e Tamarandiva. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: TypographiaMonroe, 1929, p. 333. 233 O aforamento era concessão do domínio útil de uma parcela da terra, mediante o pagamento de um tributo estipulado pelo possuidor, algo que também era previsto na doação de sesmaria. ABREU, Maurício de A. “A apropriação do Território no Brasil Colonial”. In: CASTRO, Iná Elias; CORRÊA, Roberto L. GOMES, Paulo César (org.) Explorações Geográficas. Bertrand Brasil, RJ, 1997, p.197-245. 234 As informações sobre os moradores de Itaparica e Tamarandiva foram encontradas em documentos da Primeira Visitação do Santo Ofício no Brasil digitalizadas pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e disponíveis online neste link: 235 O loco-tenente era a figura que representava o donatário quando esse não estava presente na capitania, delegando todas as faculdades jurídico-administrativas do capitão. SALDANHA, Op. Cit. 162-181. 236 RICUPERO. Op. Cit. p. 261. 237 HESPANHA, SANTOS. In: MATTOSO, Op. Cit. p. 351-366. 238 OSÓRIO, Ubaldo. A ilha de Itaparica. História e tradição. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979, 37. 239 Práticas comerciais e financeiras e reestruturação econômica em considerações de D. António de Ataíde, Conselheiro e Vedor da Fazenda de D. João III. in D. João III e o Império. Lisboa, CHAM, UNL/ CEPCEP, UCP, 2004, p. 501-512.
89 ISSN 2358-4912 recém-obtidas no prazo de cinco anos, conforme estava estipulado na carta de sesmaria240. Assim, em Portugal, no ano de 1562, Dom Álvaro da Costa, vai até o Rei Dom Sebastião I pedindo a confirmação da capitania que foi obtida. Novamente, em 1565, Dom Álvaro vai ao Rei para pedir a ratificação de suas posses. Dessa vez, o Rei confirmou as terras do Paraguaçu, mas com o status de capitania, Desse momento em diante, o filho de Dom Duarte da Costa era capitão donatário do Paraguaçu. Diferente da capitania de Dom António de Ataíde, a doação de Paraguaçu previa a doação de sesmarias. Entre os anos de 1565 e 1575, verificou-se mais de uma dezena de concessões sesmariais dentro da capitania de Dom Álvaro da Costa, sendo que na maioria dos casos previa-se que o agraciado com as terras desenvolvessem a criação de gado241. As doações eram feitas pelos loco-tenentes do donatário. O primeiro loco-tenente foi Fernão Vaz da Costa, primo de Dom Álvaro e tesoureiro “das terras do Brasil” entre os anos de 1550 e 1560242. Após a morte de Fernão Vaz da Costa, Pedro Carreiro, antigo criado da família Costa ganhou a função locotentente243. Além do cargo, estes últimos se apossaram de sesmarias dentro da capitania. O primeiro falecido entre 1567 e 1568244, possuía uma ilha de uma légua na barra do Jaguaripe, enquanto o segundo obteve uma sesmaria em 1578, próximo ao rio Jaguaripe. A ocupação desses cargos e os usufrutos que eles ofereciam atestam como a lógica clientelar, característico do Antigo Regime, agia na escolha das pessoas para o usufruto dos bens provindos da administração colonial245. Pedro Carreiro foi responsável por diversas doações de sesmarias na capitania do Paraguaçu. Estão, entre essas sesmarias, as que foram concedidas aos descendentes de Diogo Álvares Correira, o Caramuru, náufrago no Brasil desde 1509 e que se casou com a índia denominada Catarina Paraguaçu, filha de Itaparica, chefe tupinambá246. Gracia Álvares, filha de Diogo Álvares Caramuru, casada com Antão Gil recebeu uma sesmaria de Pero Carreiro em 1574247. Antonio Paiva, casado com Felipa Álvares descendente de Diogo Álvares, recebeu uma sesmaria de frente a Itaparica. Dessa maneira, vemos que a capitania do Paraguaçu além de responder pela necessidade de ocupação territorial, atendia, também, indivíduos que de alguma maneira influenciava na colonização portuguesa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Conclusão As capitanias de Itaparica e Tamarandiva e do Paraguaçu tornaram-se as primeiras constituídas após estabelecimento do Governo Geral. À distância, os donatários contavam com a ajuda de seus loco-tenentes que geriam os interesses daqueles dentro das capitanias. Assim, as capitanias em questão se constituíram, na segunda metade do século XVI, como elementos que contribuíam para o Governo Geral com a distribuição de terras a colonos. Tanto em Itaparica e Tamarandiva como em Paraguaçu se observou a presença de lavradores, criadores de gado e até donos de engenho248, indicando como as capitanias poderiam ser um espaço onde colonos poderiam desenvolver suas atividades, permitindo assim o desenvolvimento socioeconômico da colonização portuguesa na região. Apesar disso, o donatário de Itaparica teve que enfrentar a oposição da Câmara de Salvador, ainda quando as ilhas estavam sob a condição de sesmaria. A conversão em capitania se mostrou uma boa solução encontrada pelo Rei, pois retiraria qualquer jurisdição da Câmara nas terras. Porém, infelizmente, a falta de documentação não permitiu maiores esclarecimentos sobre o motivo da 240
Doação da Capitania de Paraguaçu de Dom Álvaro da Costa. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1929, p. 235. 241 NUNES, Antonietta Aguiar. Reminiscências da capitania de Paraguaçu: memória histórica de Jaguaripe nos séculos XVI e XVIII. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, n. 92, jan-dez/1996, p. 267-286. 242 Traslado da 1° Provisão de El-Rei Nosso Senhor do Ordenado, que tem o Vigário Geral. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume XXXV. Rio de Janeiro, 1937, p. 331. .243 NUNES. Op. Cit. p. 267-286. 244 NUNES. Loc. Cit. 245 RICUPERO. Op. Cit. p. 13-33. 246 Carta d’El Rei a Caramuru. In: OSÓRIO. Op. Cit. p. 21. 247 FREIRE, Felisbello. História Territorial do Brasil, v. 1 (Bahia, Sergipe e Espírito Santo). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1998 (edição fac-similar), p. 18; NUNES, 1996, Op. Cit. p. 267-286. 248 NUNES. Op. Cit.
90 ISSN 2358-4912 contenda. Enfim, permitindo ocupar as terras e a inserção do poder eclesiástico, como se observou em Itaparica com a missão jesuítica e com a freguesia de Vera Cruz, as capitanias alvo desse estudo se mostravam duas estruturas úteis para a administração colonial e para a manutenção da colonização portuguesa no Brasil quinhentista.
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O PROBLEMA DA FRONTEIRA EQUATORIAL NA ÉPOCA DA MONARQUIA HISPÂNICA (1600-1640) Alírio Cardoso249 Este texto pretende explorar um aspecto que vem chamando a atenção dos pesquisadores nos últimos anos sobre a União Ibérica (1580-1614), a percepção que tinham os portugueses que viviam no ultramar sobre a situação de vassalagem com relação à Castela, especialmente nas áreas de fronteira. Como se sabe, a união dinástica havia sido ensaiada durante gerações de matrimônios entre as Casas Reais de Portugal e Espanha. Durante sessenta anos Portugal e Espanha permitiram com este acerto político-dinástico-militar o controle de imensas áreas ultramarinas na América, África e Ásia. Paradoxalmente, este foi o período em que a estabilidade da Monarquia Hispânica também passou por uma grave crise, período fértil em rebeliões, nos Países Baixos, mais tarde em Portugal e na Catalunha, depois, a ameaça da concorrência inglesa, francesa e neerlandesa nos oceanos Índico e Atlântico. Este foi um período de intensa atividade diplomática, e uma atenção especial sobre as regiões fronteiriças, sobretudo por conta da política exterior do duque de Lerma.250 Nesse sentido, estava claro que a Pax Hispanica, período de resfriamento da campanha bélica espanhola nos Países Baixos, não ganhou o mesmo sentido nas conquistas americanas. Pesquisas mais recentes têm demonstrado que, por exemplo, nas Índias castelhanas, esta guerra era bem mais ativa e sistemática.251 Assim, nas terras de ultramar passa a ser cada vez mais evidente a mobilização de tropas, de modo a manter a unidade política das imensas regiões, e responder à ameaça dos concorrentes oceânicos. Nos últimos anos, os estudos sobre a Monarquia Hispânica têm mudado seu foco, prestando a devida atenção a processos transoceânicos, a partir da intersecção entre os diversos territórios espanhóis. De modo geral, estes novos estudos vêm tentando avaliar o impacto global da Monarquia para além da própria Europa.252 Nesse sentido, muitos destes estudos passam a propor outra interpretação acerca da organização geopolítica do “império”, buscando compreender o reforço da identidade entre as partes e a consciência sobre a flexibilização das fronteiras, quer sejam políticas, econômicas ou culturais253. Como consequência, ao longo das últimas décadas do século XVI, a circulação de prata, escravos, madeira, açúcar tornava as relações comerciais entre as duas partes, Espanha e Portugal, cada vez mais simbiótica, favorecendo a livre associação entre homens de negócios dos dois lados do Atlântico.254 A integração de Portugal à Monarquia Hispânica, nesse sentido, é também uma 249
Universidade Federal do Maranhão.
[email protected] GARCÍA GARCÍA, José Bernardo. La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma. Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 27-81. 251 Sobre o tema, ver: DÍAZ BLANCO, José Manuel. Razón de Estado y buen Gobierno. La Guerra Defensiva y el imperialismo español en tiempos de Felipe III. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2010, pp. 28-29. 252 VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), declive imperial y adaptación. Louvain: Leuven University Press, 2001; SCHAUB, Jean-Frédéric. La Francia española. Las raíces hispanas del absolutismo francés. Madrid: Marcial Pons, 2004; CARDIM, Pedro. “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”. Hispania, vol. LXIV, nº 216 (janeiro-abril, 2004), pp. 117-156; MARQUES, Guida. “L’Invention du Bresil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union iberique (1580-1640)”. Paris: Tese de doutorado apresentada a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009; VENTURA, Graça M.. A união ibérica e o mundo atlântico. Lisboa: Colibri, 1997; RUSSELL-WOOD, A.J.R. “Centers and Peripheries in the Luso-Brazilian World, 1500-1808”. In: DANIELS, Christine; KENNEDY, Michael V. Negotiated Impires: centre and peripheries in the Americas, 1500-1820. Nova York: Routledge, 2002, pp. 105142; MOLHO, Anthony; CURTO, Diogo Ramada. “Les réseaux Marchands à l’époque moderne”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 3 (maio-junho, 2003), pp. 569-579. GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004. 253 CARDIM, Pedro; RUIZ IBÁÑEZ, José Javier; SABATINI, Gaetano. “Introduzione”. In: SABATINI, Gaetano (Ed.). Comprendere le Monarchie Iberiche. Risorse Materiali e rappresentazioni del potere. Roma: Viella, 2010, pp. 15-34. 254 SCHWARTZ, Stuart B. “Prata, açúcar e escravos: de como o império resgatou Portugal”. Tempo, vol. 12, nº 24 (2008), pp. 201-223; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Le versant brésilien de l’Atlantique-sud. 1550-1850”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 2 (março-abril, 2006), pp. 339-385. Sobre a dinâmica dos fluxos inter250
92 ISSN 2358-4912 expressão da enorme circulação mundial de pessoas, conhecimentos e mercadorias, ensejada pela dinamização dos circuitos oceânicos a partir do século XV, processo que alguns chamaram de “mundialização”, “ocidentalização” ou até mesmo “globalização”.255 Assim, numa perspectiva bastante pragmática, diversos comerciantes portugueses atentavam para as enormes vantagens de uma relação tão próxima com os territórios espanhóis no Atlântico, cujo benefício mais claro seria o acesso ao mercado da prata hispano-americana.256 É bom lembrar que, no período da união monárquica, esta interação já ocorria, por exemplo, entre os mercados do Rio de Janeiro e de Buenos Aires que se relacionavam de maneira simbiótica, interdependentes de prata, escravos e grãos, com a participação ativa de ricos imigrantes portugueses na cidade castelhana257. A noção de fronteira que utilizamos aqui parece muito mais próxima da definição de Covarrubias, como “raya” ou “limite” compartilhado entre dois reinos, de onde deriva termos como “frontero”, “frontal”, “frontispício”.258 Essa definição nos parece mais apropriada, no caso da documentação sobre o antigo Maranhão, que a noção de “confim” utilizado por Raphael Bluteau em seu Vocabulário Português e Latino. O Maranhão, como veremos, é identificado como uma entidade geográfica muito mais próxima, “frontal”, portanto, ao Peru. Ao contrário do que foi sugerido algumas vezes pela historiografia, o Maranhão não faz parte do Atlântico Sul. Esta região, no contexto dos regimes de navegação do século XVII, era fronteira entre a América portuguesa e as Índias castelhanas na parte meridional do Atlântico Norte. Região que chamaremos aqui de Atlântico equinocial.259 Ao fim do século XVI, essa fronteira era quase que completamente desconhecida, o que gerou uma série de especulações acerca de possíveis conexões com as Índias castelhanas.260 O contexto geopolítico da união hispano-lusa contribuiu para uma reflexão aberta sobre alguns destes limites espaciais. Entre o final do século XVI e o início do século XVII, as cartas, crônicas, e memoriais costumavam identificar estas terras a partir de comparações com o território espanhol. Estas fontes permitem entender uma realidade estranha aos dias de hoje: o Maranhão preservava uma distância física com relação ao Estado do Brasil, e não participava naturalmente dos seus circuitos de navegação. Eram regiões distantes entre si e cujo vínculo comercial era dificultoso em vários níveis. A palavra “Maranhão”, antes da conquista hispano-lusa (1615), utilizado largamente na cartografia da época, tinha outro significado. Era assim conhecida a fronteira entre as terras espanholas e portuguesas na América. A palavra, com esse significado, já aparece em documentos da primeira metade do século XVI. Na época de Filipe II, de Castela, esse território era praticamente uma área de transição (não de trânsito). Não era considerada exatamente “Brasil”, apesar de estar ligada politicamente ao Estado do Brasil, mas não chegava a ser entendida, de outra forma, como parte das
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
regionais, ver: COSTA, Leonor Freire. “Entre o açucar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs). Nas rotas do Império. Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória/Lisboa: Edufes/ IICT, 2006, pp. 97-134. 255 GRUZINSKI. Serge. Les quatres parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004; PUTNAM, Lara. “To study the fragments/whole: microhistory and Atlantic world”. The Journal of Modern History, vol. 39, nº 3 (verão de 2006), pp. 615-630. Sobre a relação entre as conquista oceânicas e o conceito de globalização, ver: GINZBURG, Carlo. “Memoria e Globalizzazione”. Quaderni Storici, nº 120, año XL, fasc. 3 (Dezembro, 2005), pp. 657-669. 256 Ver, por exemplo: AGS, Secretarias Provinciales, 1476, flºs 156-159. 257 Sobre o comércio entre o Rio de Janeiro e o rio da Prata, nas Secreatarias Provinciales do Archivo General de Simancas, ver: SP, 1476. Sobre o tema, ver entre outros: CANABRAVA, Alice Piffer. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1984; TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal. Trabajo, negócios e intereses en la plaza naviera y comercial. Bahía Blanca: Editorial de la Universidad Nacional del Sur, 2004. 258 COVARRUBIAS OROZCO, Sebastian de. Tesoro de la lengua Castellana o Española, Editorial castalia/Nueva Biblioteca de erudición y crítica, 1995 [1611], p. 561. 259 A expressão foi utilizada pelo Doutor Rafael Chambouleyron (UFPA). 260 Sobre o tema, ver: REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, Belém, Secult, vol. 1, 1993; ver também: RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. “El control de territorio. Misiones en la demarcación de fronteras amazónicas”. Boletín Americanista, año LVIII, nº 58, (2008), pp. 115-131; ROUX, Jean Claude. “De los limites a la frontera: los malentendidos de la geopolítica amazónica”. Revista de Indias, vol. LXI, nº 223 (SetembroDezembro, 2001), pp. 513-539.
93 ISSN 2358-4912 Índias de Castela. Portanto, o “Maranhão” corresponderia (mais ou menos) aos atuais Estados brasileiros de Pará, Amazonas, Acre, Amapá, Tocantins, Piaui, Maranhão.261 Além disso, eventualmente a Capitania do Ceará fazia parte desta macrorregião. No que diz respeito à união monárquica, quase todo esse território está localizado a Oeste do meridiano de Tordesilhas262. A cartografia que dedicava-se a representações do rio Amazonas jamais foi privilégio de portugueses ou espanhóis. Nesse sentido, os declarados limites entre os principais rios da região (Marañón, Negro, Orinoco), e as supostas ligações entre Maranhão, Peru e Caribe interessaram, ao longo dos séculos XVI e XVII, um considerável grupo de cronistas, cartógrafos e navegantes de outras nações, a exemplo de Raleigh, Bry, Hondius, Schangen, Jansson, e Arnoldus Fiorentinus van Langeren. Estas possibilidades de integração física obviamente ensejavam especulações sobre integrações comerciais. Para Anthony Pagden, a ideia de uma integração mais efetiva para além dos aspectos fiscais e bélicos sempre esteve presente entre certos setores letrados da Monarquia Hispânica.263 Então, mesmo que os Monarcas espanhóis não tivessem uma política específica para integração de seu vasto império, este era um panorama presente nos escritos e expectativas de seus vassalos, incluindo os próprios portugueses. A conquista da Amazônia, em 1615, havia dado um exemplo disso. Nela houve um processo de adesão voluntária orientado tanto para a necessidade expulsão dos franceses, da prevenção contra os holandeses, mas que também estava claramente interessado no desenvolvimento de um mercado inter-regional cuja referência não deixava de ser a comparação entre os processos de conquista no Peru, Caribe e Brasil264. Muitas das representações da época sobre a fronteira amazônica, ou equatorial, tinham como base duas percepções bem fundadas num certo imaginário sobre a região. Em primeiro lugar, a ideia muito difundida, a partir da primeira metade do século XVII, segundo a qual a região poderia integrar geograficamente Brasil e o Vice-Reinado do Peru; em segundo lugar, a noção de que estas terras abrigavam uma grande quantidade de riquezas não desveladas, incluindo metais preciosos, mas também uma infinidade de gêneros naturais que poderiam ser extraídos das florestas e comercializados nos mercados europeus. Nesse sentido, a fronteira equatorial, identificada principalmente com o território do antigo Estado do Maranhão, reproduzia expectativas presente em outras regiões do velho Brasil ou mesmo das Índias. Por fim, apesar da enorme importância dos relatos quinhentistas e seiscentistas, muitos destes eram desprovidos de uma dimensão empírica, incorrendo em diversas generalizações. Isto começa a mudar exatamente no período filipino, momento em que surgiriam crônicas mais fidedignas, interessadas na apreciação mais objetiva acerca destas fronteiras. Apesar das distâncias entre o Maranhão e o Brasil, paradoxalmente, as políticas filipinas ajudaram a integrar melhor as duas partes isoladas da América Portuguesa. Durante todo o período em que vigorou a união monárquica chegavam aos Conselhos espanhóis quantidades de crônicas, cartas, pareceres e pequenos informes cujo tema principal era a possibilidade de integração entre os as partes espanhola e portuguesa da América. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Amazônia e a integridade do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 18. REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, p. 12. 263 PAGDEN, Anthony. El imperialismo español y la imaginación política. Estudios sobre teoría social y política europea e hispanoamericana (1513-1830). Barcelona: Planeta, 1991, p. 94. 264 Ver: CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. 262
94 ISSN 2358-4912 CARDIM, Pedro; RUIZ IBÁÑEZ, José Javier; SABATINI, Gaetano. “Introduzione”. In: SABATINI, Gaetano (Ed.). Comprendere le Monarchie Iberiche. Risorse Materiali e rappresentazioni del potere. Roma: Viella, 2010, pp. 15-34. CARDOSO, Alírio. “A Conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626)”. São Paulo: Revista Brasileira de História, v. 31, nº 61 (2011), pp. 317-338. CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. COSTA, Leonor Freire. “Entre o açucar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs). Nas rotas do Império. Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória/Lisboa: Edufes/ IICT, 2006, pp. 97-134. COVARRUBIAS OROZCO, Sebastian de. Tesoro de la lengua Castellana o Española, Editorial castalia/Nueva Biblioteca de erudición y crítica, 1995 [1611]. DÍAZ BLANCO, José Manuel. Razón de Estado y buen Gobierno. La Guerra Defensiva y el imperialismo español en tiempos de Felipe III. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2010, pp. 28-29. GARCÍA GARCÍA, José Bernardo. La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma. Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 27-81. GINZBURG, Carlo. “Memoria e Globalizzazione”. Quaderni Storici, nº 120, año XL, fasc. 3 (Dezembro, 2005), pp. 657-669. GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004. MARQUES, Guida. “L’Invention du Bresil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union iberique (1580-1640)”. Paris: Tese de doutorado apresentada a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009. MOLHO, Anthony; CURTO, Diogo Ramada. “Les réseaux Marchands à l’époque moderne”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 3 (maio-junho, 2003), pp. 569-579. PAGDEN, Anthony. El imperialismo español y la imaginación política. Estudios sobre teoría social y política europea e hispanoamericana (1513-1830). Barcelona: Planeta, 1991 PUTNAM, Lara. “To study the fragments/whole: microhistory and Atlantic world”. The Journal of Modern History, vol. 39, nº 3 (verão de 2006), pp. 615-630. REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Amazônia e a integridade do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001. REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, Belém, Secult, vol. 1, 1993. ROUX, Jean Claude. “De los limites a la frontera: los malentendidos de la geopolítica amazónica”. Revista de Indias, vol. LXI, nº 223 (Setembro-Dezembro, 2001), pp. 513-539. RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. “El control de territorio. Misiones en la demarcación de fronteras amazónicas”. Boletín Americanista, año LVIII, nº 58, (2008), pp. 115-131. RUSSELL-WOOD, A.J.R. “Centers and Peripheries in the Luso-Brazilian World, 1500-1808”. In: DANIELS, Christine; KENNEDY, Michael V. Negotiated Impires: centre and peripheries in the Americas, 15001820. Nova York: Routledge, 2002, pp. 105-142. SCHAUB, Jean-Frédéric. La Francia española. Las raíces hispanas del absolutismo francés. Madrid: Marcial Pons, 2004. SCHWARTZ, Stuart B. “Prata, açúcar e escravos: de como o império resgatou Portugal”. Tempo, vol. 12, nº 24 (2008), pp. 201-223. TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal. Trabajo, negócios e intereses en la plaza naviera y comercial. Bahía Blanca: Editorial de la Universidad Nacional del Sur, 2004. VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), declive imperial y adaptación. Louvain: Leuven University Press, 2001. VENTURA, Graça M. (Org.). A união ibérica e o mundo atlântico. Lisboa: Colibri, 1997. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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O DEGREDO NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA (1680-1777) Aluísio Gomes Lessa265 Este texto traz alguns apontamentos relativos a uma pesquisa ainda em desenvolvimento sobre o degredo no extremo sul da América Portuguesa, e tem como objetivo apresentar algumas possibilidades (e limitações) de investigação sobre o tema a partir das fontes e bibliografia disponíveis. O recorte aqui proposto inclui a Colônia do Sacramento, o Rio Grande de São Pedro e a Ilha de Santa Catarina durante a maior parte do século XVIII, em um contexto de intensas disputas entre as Coroas ibéricas pela região, que exigiram a movimentação de importantes contingentes populacionais – incluindo muitos degredados –para sua defesa e ocupação. Assim, o ponto de partida deste estudo é dado pela primeira fundação da Colônia do Sacramento em 1680, se estendendo até o Tratado de Santo Ildefonso em 1777, que pôs fim ao período mais acirrado de disputas entre espanhóis e portugueses naquele espaço. O sistema de degredo praticado por diferentes países da Europa moderna, entre eles Portugal e seu império ultramarino, adquiriu uma dupla função ao longo de sua existência: se por um lado signifcava uma forma de punição, por outro representava uma oportunidada para a Coroa obter o contingente populacional necessário para conquistar, povoar e defender suas possessões coloniais. Especificamente no caso lusitano, o degredo foi inicialmente praticado através do envio de prisioneiros para as galés, onde executavam trabalhos navais, e para os coutos, cidades dentro de Portugal que recebiam condenados ao exílio interno. A partir da expansão marítima do século XV novas modalidades passaram a se juntar às duas iniciais, quando então se constituiu um sistema de degredo imperial. À medida que os territórios ultramarinos iam sendo conquistados, logo passavam a receber condenados ao degredo e, dessa forma, integrar o sistema266. No inicio da colonização da America Portuguesa o percentual de degredados entre a população de origem europeia parece ter sido muito significativo, levando-se em conta as muitas referências bibliográficas existentes sobre o Brasil que o consideram uma terra de degredados 267. No entanto, as tentativas de quantificação mais precisas sobre o número total de degredados esbarram no fato de que o degredo era uma pena amplamente aplicada, por diferentes instâncias de poder em diferentes partes do império, além de ser aplicada tanto pela justiça secular quanto pela eclesiástica. Mesmo assim, alguns números podem ser conhecidos. Coates apresenta a estimativa de que ao longo de sua história cerca de cinquenta mil pessoas de todas as partes do império teriam passado pelo sistema de degredo português268. Para a América Portuguesa do século XVIII os números mais precisos são da Amazônia, fronteira setentrional dos territórios lusitanos no continente e local que mais recebeu degredados no período. Simei Torres aponta que entre 1750 e 1800 os Estados do Grão-Pará e Maranhão receberam um total de 721 degredados269. Para o período final do século, entre 1784 e 1800 Janaína Amado calcula que somente os condenados em Portugal ao degredo externo para toda a América Portuguesa totalizaram 1.182 pessoas270. Já para o extremo sul da América Portuguesa, até o momento, não há estimativas precisas, mas sabe-se que a região recebeu um número muito expressivo de condendos ao degredo, uma vez que tanto a Ilha de Santa Catarina foi o segundo local preferido para o envio de
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação do Prof. Dr. Fábio Kühn. Bolsista do CNPq. Contato:
[email protected] 266 COATES, Timothy J. Convicts and orphans: forced and state-sponsored colonizers in the Portuguese Empire, 1550-1755. Stanford: Stanford University Press, 2001. pp.43-50. 267 TOMA, Maristela. Imagens do degredo: história, legislação e imaginário (a pena de degredo nas Ordenações Filipinas). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002, pp. 13-48. 268 COATES, op.cit., p.183 269 TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis. Degredados na Amazônia Portuguesa (1750-1800). Mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: 2006, p.96. 270 AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol, VI (suplemento), 2000, p. 827.
96 ISSN 2358-4912 degredados no Brasil durante o século XVIII, atrás apenas da região amazônica271, enquanto a Colônia do Sacramento se constituiu como um importante centro de degredo do mesmo período272. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Punição dos Degredados O degredo foi uma pena amplamente aplicada, que punia desde os pequenos delitos até os crimes de maior gravidade. Para compreender as especificidades desta punição é preciso considerar as particularidades da noção de criminalidade do Antigo Regime, que penalizava até mesmo as menores faltas, que posteriormente deixariam de ter caráter punitivo. A atenção a esse aspecto é necessária, uma vez que muitas observações negativas sobre os degredados presentes na historiografia não observaram tais singularidades, apresentando esses homens e mulheres como criminosos perigosos e nocivos à colonização. Em seu livro quinto, as ordenações filipinas (1603) apresentam mais de duzentos e cinquenta tipos de crimes que poderiam ser punidos com o degredo, entre os quais é possível distinguir três níveis de gravidade. Havia os delitos menores, que poderiam resultar em degredo interno ou poucos anos de degredo externo. Os delitos graves, como blasfêmia, assassinato, injúria, sequestro, estupro e feitiçaria, que poderiam levar as penas de maior duração. Por fim, havia os delitos imperdoáveis, que incluiam quatro crimes: heresia, lesa-majestade, falsificação e sodomia 273. Além disto, as ordenações também tratam de como as punições seriam aplicadas e definem como principal impedimento aos condenados o retorno ao local de onde foram expulsos durante o tempo estipulado de degredo, estando eles livres para retornar assim que a pena fosse cumprida274. Utilização dos Degredados A presença de degredados no extremo sul da América Portuguesa se desenvolveu em meio a um contexto de expansão meridional lusitana, iniciado a partir do fim da União Dinástica em 1640 e foi promovido tanto por empreendimentos privados quanto por aqueles dirigidos pela Coroa, orientada pelo princípio diplomático do Uti Possidetis. Assim, povoadores saídos das vilas de São Paulo, Santos e São Vicente rumo ao sul fundaram os povoados de Paranaguá (em torno de 1646), São Francisco do Sul (por volta de 1658), Laguna (final do século XVIII), Nossa Senhora do Desterro (por volta de 1675) e Curitiba (1693)275. Neste mesmo período ocorre a primeira fundação da Colônia do Sacramento (1680), às margens do Rio da Prata, em uma expedição essencialmente patrocinada por comerciantes do Rio de Janeiro – que tinham interesse no lucrativo contrabando da prata potosina – mas também de acordo com os planos da Coroa em ampliar seus domínios pela região. Por fim, a expansão meridional deste período também incluiu o Rio Grande de São Pedro, que inicialmente atraiu paulistas e lagunistas interessados nas reservas de gado dos Campos de Viamão (a partir da década de 1730) e cuja ocupação prosseguiu com a fundação de Rio Grande (1737). Segundo Luis Ferrand de Almeida, "num tempo em que toda a gente disponível era pouca para a colonização de áreas vastíssimas, não se admira que se recorresse muitas vezes aos próprios criminosos, dos quais se procurava assim tirar alguma utilidade social. A Colônia do Sacramento não escapou ao destino de tantas praças longínquas"276. Esta presença de degredados relatada pelo autor também diz muito sobre o Rio Grande de São Pedro e Ilha de Santa Catarina e as formas como eles foram utilizados pela Coroa nas três regiões podem ser verificados em diferentes momentos da expansão meridional lusitana. Uma destas ocasiões foi o momento da exploração inicial das terras sulinas, uma vez que nas entradas dos paulistas rumo aos sertões era prática contar com o auxilio dos condenados ao degredo, como se observa em instruções reais relativas à busca por metais precisoso em 271
Ibid. ALMEIDA, Luis Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973, p. 66-7. 273 COATES, op.cit., pp.24-25. 274 Ordenações Filipinas, Livro V, Título 141. 275 KÜHN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Administração Na América Portuguesa:A Expansão Das Fronteiras Meridionais Do Império (1680-1808). Revista de História, São Paulo, n. 169, julho/dezembro 2013, p. 65-66. 276 ALMEIDA, op.cit., 67-68. 272
97 ISSN 2358-4912 Paranaguá, onde se orienta que se aproveite de criminosos para a obtenção de informações relativas às minas a serem descobertas, em troca de perdão de seus crimes277. O mesmo se verifica no momento inicial de ocupação da Colônia do Sacramento, quando se estabelece que, para povoar a praça, além de casais do Reino, fossem também utilizados degredados e vagabundos da cidade do Rio de Janeiro278. Uma segunda ocasião em que se verifica a presença de degredados na região é a defesa do extremo sul, fronteira entre os domínios portugueses e espanhóis na América e palco de inúmeros conflitos entre as coroas ibéricas ao longo do século XVIII, o que exigiu constante deslocamento de forças militares. Estas, em decorrência da dificuldade das autoridades coloniais em obter voluntariamente membros para a formação de suas tropas, eram constituídas em grande parte de elementos considerados indesejáveis, entre os quais estavam os degredados. Além de soldados, a defesa da região também envolveu a construção de fortalezes desde o litoral do Rio de Janeiro até a Colônia do Sacramento, incluindo as da Barra do Rio Grande e as da Ilha de Santa Catarina, edificações que normalmente contavam com degredados entre os seus construtores279. Por fim, as punições impostas aos soldados que se afastassem das normas também fazia com que o extremo sul não apenas recebesse condenados, mas também realizasse condenações ao degredo, como atestam, por exemplo, as inúmeras penas de degredo para as galés aplicadas em Rio Grande280. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
EM BUSCA DE TRAJETÓRIAS DE DEGREDADOS NO EXTREMO SUL I. Condenados em defesa da fronteira meridional Laura de Melo e Souza apresenta o extremo sul da América Portuguesa como "o grande sorvedouro de desclassifiacados por todo o século XVIII devido à questão fronteiriça da Colônia do Sacramento e, por algum tempo, dos Sete Povos das Missões"281. Os condenados ao degredo que foram enviados para defender a região não eram somente os integrantes das forças militares coloniais, como é o caso de Gregório Gomes Henriques, engenheiro militar português que foi enviado do Rio de Janeiro, onde exercia seu ofício, para a Colônia do Sacramento em 1701. O motivo de sua condenação não é conhecido, mas sabe-se que anteriormente ele havia sido preso no Rio de Janeiro por conta de um de seus trabalhos ter desagradado o governador, o que, no entanto, não impediu que ele continuasse a ensinar artlharia na aula militar da cidade e a dirigir obras de fortificação282. De forma semelhante, o degredo não impediu Gregório de seguir trabalhando, sendo mencionado em uma carta do rei D. Pedro II sobre a defesa daquela praça: “trateis logo de a fortificar em tal forma que fique com a defesa que se necessita, fazendo-se lhe aquelas obras que parece ao engenheiro Gregório Gomes Henriques, que aí se acha”283. A continuidade do exercíco de seu ofício era bastante proveitosa para a Coroa, porque ele não era meramente um condenado ocioso que poderia ser aproveitado onde a população era escassa, mas principalmente porque pessoas com formação especializada como a sua eram muito requisitadas devido à falta de profissionais qualificados na colônia, possibilitando inclusive que os degredados que
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MELLO E SOUZA, Laura de. Os desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p.109. 278 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento (1680-1777). Porto Alegre: Livraria do Globo, 1937, Volume I, p.108. 279 FERNANDES, Suelme Evangelista. De um Império a Outro: a construção e os conflitos no Real Forte do Príncipe da Beira (1776-1792). In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História, Guerra e Paz. Londrina, ANPUH, 2005, p.5. 280 ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 1977. v. I, pp. 92-94, 126, 138-9 281 MELLO E SOUZA, op.cit., 118-119. 282 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista – A Vida e a Construção da Cidade da Invasão Francesa até a Chegada a Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004, p. 249. 283 Arquivo Histórico Ultramarino (de agora em diante, AHU), Conselho Ultramarino, 224, fl. 10v in: ALMEIDA, op.cit., 408-9.
98 ISSN 2358-4912 tivessem esse perfil pudessem receber um tratamento privilegado, como atesta a continuidade de sua carreira nas fortificações de Salvador, após o cumprimento de sua pena em Colônia284. Outro caso de um degredado que esteve envolvido na defesa da fronteira meridional foi Salvador Brochado de Mendonça, que cumpriu pena de degredo entre 1733 e 1738, o que significa que seu delito foi considerado leve. Salvador foi enviado para a Colônia do Sacramento como soldado, no entanto, de forma diferente do que parece ter ocorrido com a maior parte dos condenados, que só passaram a executar essa função em decorrência de sua pena de degredo, ele já servia como soldado na guarnição do Rio de Janeiro antes de lá ser expulso. Mesmo ainda durante o cumprimento de sua pena, o soldado foi promovido a cabo de esquadra e continuou a ascender na hieraquia militar após o término de sua pena, entre 1739 e 1753, prosseguindo na Colônia do Sacramento mesmo estando livre para deixar a praça e retornar ao Rio de Janeiro, passando para sargento supra, depois para sargento do número e em seguida alferes, desta vez não em Colônia mas na Ilha de Santa Catarina, e finalmente retornando a Sacramento como tenente285. A trajetória de Salvador Brochado demonstra que nem sempre o degredo significou uma interrupção definitiva na vida dos condenados, já que sua expulsão penal do Rio de Janeiro e envio forçado à Colônia do Sacramento parece ter se transformado em uma oportunidade de construção de uma carreira militar e de seu estabelecimento definitivo naquela praça, conforme se verifica por sua continuidade na região (ainda que brevemente interrompida pelo período de cerca de ano em foi alferes na Ilha de Santa Catarina), mesmo depois de estar livre para retornar ao Rio de Janeiro e lá prosseguir com sua vida. Além disto, ele parece ter conseguido reunir alguns recursos, já que consta na lista de moradores da praça de 1749 que ele possuía um escravo286, além de receber das autoridades o reconhecimento pelos serviços que prestou, sendo elogiado por sua participação “em toda a guerra daquela Praça, principiando a mostrar seu préstimo e zelo com que servia na reedificação dos baluartes e muralhas desta, trabalhando pessoalmente e fazendo trabalhar aos [de]mais...”287. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
II. Condenados pela Igreja Em "Os excluídos do Reino" Geraldo Pieroni realizou um amplo estudo sobre as condenações ao degredo realizado pelos tribunais do Santo Ofício de Lisboa, Évora e Coimbra ao abordar o degredo como o resultado da política de controle e coerção realizada pela inquisição portuguesa. Embora a maioria das condenações ao degredo tenham sido realizadas por tribunais seculares, os números de degredados por tribunais eclesiásticos não são desprezíveis. Entre 1550 e 1720 a Inquisição enviou para o Brasil quinhentos e noventa condenados288. Porém, tal como ocorre com o número de degredados pela justiça secular, também no caso da Igreja este não pode ser tomado como a quantidade total de condenados julgados por tribunais eclesiásticos, que também na América Portuguesa realizaram suas condenações ao degredo. Ao estudar a presença da inquisição no Rio Grande de São Pedro e na Colônia do Sacramento, Lucas Monteiro identificou alguns processos inquisitoriais que resultaram em condenção ao degredo, como os casos de Noutel Seco e Manuel Cristovão, moradores da Colônia do Sacramento acusados de desrespeitar o sacramento do matrimônio ao testemunhar a favor de um bígamo. Os dois acabaram recebendo a sentença de degredo para a Costa do Marfim em 1692289. Para o extremo sul há também o caso de um auto de denúncia realizado pelo pároco da freguesia de Viamão, José Carlos da Silva, contra Joana Gracia Maciel cuja sentença, em 1757, determinou que ela fosse "expulsa para fora desta freguesia com pena de não tornar a ela e quando por algum incidente re[gressar] fiz saber ao que julgo seja presa em ferros e remetida pelo escrivão meirinho ao porto dos 284
RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p.108. 285 AHU, Colônia do Sacramento e Rio da Prata, 463; AHU, RJ, 2279; Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol, 23 (1929), p. 522. 286 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (de agora em diante, ANRJ), códice 94, vol. 1, fl.40v. 287 AHU, RJ, 2279. 288 PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. Brasília/SP: UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2000, p.279. 289 MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2011, pp. 169-171.
99 ISSN 2358-4912 casais". Seu caso, por tanto, pode ser encaixado naqueles tipos de degredo em que não há um local definido para o cumprimento da pena (em que pese haver a indicação no processo que ela acabou sendo enviada para Rio Pardo), tendo mais peso nesse tipo de a expulsão penal em si e não tanto o reaproveitamento de uma mão de obra ociosa. A denúncia contra Joana foi motivada ''pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento'', tendo uma das testemunhas apontada que ela andava concubinada com toda a vizinhança e outra confirmando que ela maltratava uma de suas índias administradas. Outro aspecto interessante para a análise deste documento é que uma das testemunhas apontou "que era público em toda esta vizinhança que a dita denunciada tratava tão mal, de pancadas, mortas de fome e nuas, mas que até a uma delas por nome Susana lhe meteu um tição de fogo por entre as pernas, por cuja razão o Capelão que exercia nesta freguesia, Manuel Luís Vergueiro [...] a dita índia e a degradou para São Paulo por evitar para que a dita denunciada não matasse a dita índia"290. A análise deste trecho é reveladora ao apontar que o degredo não necessariamente seria aplicado apenas como uma punição por algum delito, ao menos não para os indígenas, mas também poderia ser aplicado em outras circunstâncias, como a de uma índia administrada maltratada. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
III. Condenados em Circulação pelo Mundo Atlântico As comutações foram parte essencial do sistema de degredo no Império Português, uma vez que ela dava flexibilidade às condenações e dessa forma permitia que a mão de obra disponível representada pelos condenados pudesse ser utiizada pelas autoridades quando houvesse mudanças na demanda por pessoas para defender e ocupar as diferentes partes do império291. Um caso em que a trajetória de um degredado foi marcada pelas mudanças no local de cumprimento da pena é o de Gabriel Theodoro de Sá, português que em 1744 foi degredado por toda a vida para Angola, o que aponta para a grande gravidade do delito que levara à sua condenação. Em Angola foi novamente condenado, desta vez após furtar as firmas de ministros do Tribunal da Relação, recebendo uma pena de açoitamento. O próximo local em que Gabriel aparece na documentação já é a Colônia do Sacramento, em 1751, o que aponta para a possibilidade de sua pena de degredo perpétuo em Angola ter sido comutada para algum lugar da América Portuguesa. Em Colônia ele aparece descrito pelas autoridades como um rábula, e sua atuação como uma espécie de advogado parece se relacionar a muitos dos delitos associados a ele na documentação292. A documentação, especialmente as fontes paroquiais, também apontam para a possibilidade de inserção dos degredados nas sociedades para onde eram enviados. Os registros de batismo, por exemplo, registram o nome de Gabriel Theodoro de Sá por ocasião do batismo de nove escravos entre 1756 e 1773, que eram filhos de quatro escavas suas293, dando um indício de suas posses. Ao mesmo tempo os batismos também mostram que ele construiu uma familia na Colônia do Sacramento, casando-se com Inácia da Silva, com quem teve ao menos seis filhos, nascidos ente 1751 e 1758. Os padrinhos de seus filhos também revelam indícios de sua inserção social, indicando com quem estabelecia relações e auxiliando também a pensar em que tipo de atividades ele poderia estar envolvido. Joaquina, sua filha mais velha, foi apadrinhada por Manuel Botelho de Lacerda, mestre de campo e juiz da Alfândega, enquanto Luís e José tiveram como padrinho o governador de Colônia, Luis Garcia de Bivar294. No entanto, mesmo inserido na Colônia do Sacramento, Gabriel viu-se novamente obrigado a circular pelo Império Português, quando tem negado um pedido para continuar a residir na praça. Este pedido possibilita observar tanto que ele não cumpria mais a pena de degredo quanto o fato de que aparentemente sua pena, originalmente de degredo perpétuo para Angola, ao ser comutada para o Brasil fora reduzida em anos, tornando-se uma pena com um tempo final estipulado295. Ao ser expulso, acompanhado de sua mulher, Gabriel esteve na Ilha de Santa Catarina, onde continuou a cometer delitos, apresentando uma provisão falsa que dizia que havia sido dispensado dos estudos em 290
Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA), Juízo Eclesiástico, Processo 7 – Joana Gracia Maciel, fl. 6v e 12. 291 TOMA, op.cit,. p.25. 292 AHU, CS, 513. 293 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (de agora em diante ACMRJ), 4º Livro de Batismos de Escravos da Colônia do Sacramento. 294 ACMRJ, Livros de Batismos de Colônia do Sacramento. 295 ANRJ, Códice 94, Vol. 5, fl. 78v.
100 ISSN 2358-4912 Coimbra e se formado bacharel para poder advogar em qualquer parte 296. Após seis anos de ausência, Gabriel volta a aparecer nos registros de Colônia em 1766, quando parece ter prosseguido com suas atividades, voltando a aparecer como proprietário de escravos nos já citados registros de batismo. É interessante observar que em sua história de muitas indas e vindas Gabriel conseguiu dar continuidade de suas práticas ilícitas e o conhecimento destas pelas autoridades não o impediram de prosseguir com sua trajetória de vida nas diferentes partes do Império Português para onde ele foi. Embora muitos detalhes sobre a vida de Gabriel sejam desconhecidos, este caso demonstra o potencial que o cruzamento entre fontes de diferente tipo, como as administrativas, judiciais e eclesiásticas têm para preencher algumas lacunas importantes para o estudo do degredo, auxiliando a pensar o que acontecia com os condenados ao degredo durante e após o cumprimento de suas penas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Conclusão Os apontamentos apresentados ao longo deste texto procuraram analisar o degredo não apenas em termos institucionais, observando também qual poderia ser o impacto desta condenação nas trejetórias de vida dos degredados. Para isto, na tentativa de ir além de descrições genéricas feitas pelas autoridades sobre massas de degredados deslocados pelo território para socorrer alguma região em dificuldade, foram buscados alguns casos específicos de degredados que pudessem auxiliar a compreender melhor o sistema de degredo no império português. Assim, por meio das tentativas de reconstrução de trajetórias de vida de degredados, ainda que de forma lacunar, é possível construir uma visão mais complexa sobre quem eram esses condenados, o que poderia ocorrer com eles durante o período em que cumpriam suas penas e quais as possiblidades que existiam para que eles pudessem se inserir na sociedade das localidades que os recebiam. Referências ALMEIDA, Luis Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973. AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol, VI (suplemento), 2000. ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1977, v. I. RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. COATES, Timothy J. Convicts and orphans: forced and state-sponsored colonizers in the Portuguese Empire, 15501755. Stanford: Stanford University Press, 2001. FERNANDES, Suelme Evangelista. De um Império a Outro: a construção e os conflitos no Real Forte do Príncipe da Beira (1776-1792). In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História, Guerra e Paz. Londrina, ANPUH, 2005. KÜHN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Administração Na América Portuguesa: A Expansão Das Fronteiras Meridionais Do Império (1680-1808). Revista de História, São Paulo, n. 169, julho/dezembro 2013. MELLO E SOUZA, Laura de. Os desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2011. ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livro V. Organização de Sílvia Hunold Lara. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. Brasília/SP: UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2000. RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 296
AHU, CS, 1767.
101 ISSN 2358-4912 TOMA, Maristela. Imagens do degredo: história, legislação e imaginário (a pena de degredo nas Ordenações Filipinas). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002. TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis. Degredados na Amazônia Portuguesa (17501800). Mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: 2006. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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OS PALIMPSESTOS DA LEI E AS POTENCIALIDADES DAS FORMAS E DO CAMPO DE UMA HISTÓRIA DA JUSTIÇA (MINAS GERAIS, SÉCULO XVIII) Álvaro de Araujo Antunes297 Enquanto a administração e o direito são campos consolidados e bem visitados na história, o mesmo parece não ocorrer com a Justiça, apesar da contribuição valiosa de autores como Paolo Prodi, Bartolomé Clavero, Antonio Manuel Hespanha, Silvia Hunold Lara, Joseli Maria Nunes Mendonça e Arno e Maria José Wheling, entre outros.298 O fato é que, no mais das vezes, a Justiça é considerada, de forma muito automática e deletéria, um dos braços da administração ou do direito.299 Qualquer tentativa de mudar esse quadro e delimitar um campo de investigação da justiça depende da fixação de fronteiras, entendendo-as como aquilo que separa e que também permite o contato e a conexão. Afinal, os domínios da historiografia não são puros e muito menos se fecham sobre si.300 A história do direito e da administração precedem a da justiça e com ela se comunicam.301 Na busca por maior especificidade com o intuito de delimitar um campo de pesquisa, valeria retomar os conceitos e sentidos de justiça considerando não apenas o corrente na literatura especializada da época, mas também o que se evidenciava nas práticas mais cotidianas dos auditórios e fora deles. Contra esta proposta, poder-se-ia alegar uma especialização excessiva de áreas já consagradas, repisando a conhecida discussão sobre uma “história em migalhas”.302 O argumento pode até ser procedente se considerada uma limitada acepção da justiça como a oficial e adstrita ao Estado e às suas estruturas administrativas. O mesmo argumento deixa de valer ao se ampliar a definição, as formas e as áreas de execução da justiça. Diante dessa abrangência, a proposta de uma história da justiça não implica fragmentação, mas sim a delimitação de uma ampla linha de investigação, nisso há, obviamente, implicações para uma apreciação plural da história e da história da justiça.303 Com a finalidade de delimitar o campo de uma história da justiça, parte-se de três pressupostos que contribuem para seu delineamento.304 O primeiro está em considerar que a justiça não é, em
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Professor Adjunto III do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005; HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; WHELING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004; LARA, Silvia Hunold, MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. (org.) Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, CLAVERO, Bartolomé. Historia Del derecho: derecho común. Salamanca: Universidad, 1994. 299 Aliás, para Hebert Hart, mesmo no campo das teorias escolásticas, o direito, em especial o natural, era considerado um ramo da moral ou da justiça. HART, Hebert L.A. O conceito de Direito. 5.ed.Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p.18. 300 “Apesar de falarmos freqüentemente em uma ‘História Econômica’, em uma ‘Historia Política’, em uma ‘História Cultural’, e assim por diante, a verdade é que não existem fatos que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. Todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas”. BARROS, José d’Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p.15. 301 Para uma discussão mais extensa da proposta ver: ANTUNES, Álvaro de Araujo. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da História da justiça na América portuguesa. Revista de História, São Paulo, n.169, 2013. 302 A referência a obra de Dosse não é despropositada, pois recoloca, diante das pretensões universalistas de uma “história do todo”, a questão das perdas e ganhos de uma história fragmentada e especializada. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Edusc, 2003. 303 Ao invés de uma perspectiva fragmentária, se aposta em uma história escrita no plural dedicada à análise de seguimentos da história global. Sobre os prós e contras de uma “história em migalhas” ver: REIS, José Carlos. História e teoria. Historicismo, modernidade, temporalidades e verdade. 3.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. 304 CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 298
103 ISSN 2358-4912 absoluto, um resultado exclusivo da administração ou dos direitos reconhecidos pelo Estado.305 O segundo pressuposto entende que a justiça, com base na sua conceituação, é uma potência, uma vontade ou virtude que só adquire sentido e reconhecimento na sua execução, quando posta em ação. O terceiro decorre desse último princípio: a justiça se expressa em atos singulares, enquanto o direito exprime a força de intenções gerais.306 Em ambos os casos, contudo, justiça e direito são entendidos como técnicas e veículos de dominação e de conflitos polimorfos.307 Os três pressupostos citados serão abordados recorrendo-se a casos exemplares que foram extraídos da documentação judicial produzida em Mariana, Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII. A escolha desse tipo documental não é despropositada, mas sim coerente com o espírito de uma história da justiça como a que aqui se propõem e que será indicada, brevemente, no final dessa comunicação. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Primeiro pressuposto: a justiça não é resultado exclusivo da administração ou dos direitos reconhecidos pelo Estado Na segunda metade do século XVIII e início do século XIX, o “campo jurídico” – lugar de “concorrência pelo monopólio de dizer o Direito” – se dilatava e se retraía ao sabor de forças complementares ou concorrentes da sociedade e da Coroa.308 Esta, apesar dos esforços de centralização política, não lograria hegemonia e teria um domínio limitado de diversas áreas, incluindo a da administração oficial da justiça. Outras Justiças se impunham nos meandros e margens da ordem oficial. São exemplos conhecidos o direito e a justiça dos “rústicos” – expressão valorativa utilizada pelos letrados para caracterizar normas e práticas dos povos isolados e ignorantes das formalidades jurídicas e da vida civil. Vez ou outra, as ações judiciais dão mostra do acesso da população considerada rústica à Justiça oficial, executada nos auditórios das vilas e cidades. Em uma das ações que defendeu no ano de 1794, o Dr.José Pereira Ribeiro, advogado em Mariana, justificou sua demora em dar resposta a um embargo, alegando que seu constituinte “é morador em grande distância desta cidade, rústico e ignorante dos termos de direito, motivo porque não acudiu em tempo a dar informações para o despacho”.309 O advogado retomava uma imagem, construída pelos eruditos, que conferia ao rústico um estatuto jurídico diferenciado. In rústico est preasumptio ignorantia. Tocava-lhes o direito natural, mas não o direito oficial, pois “todas as formalidades escritas eram estranhas a cultura jurídica tradicional”.310 Estratégia do advogado ou não, o fato é que o argumento só teria força se tivesse algum lastro na realidade. Nas Minas, os rústicos era população vária, imensa e espalhada. Os homens que viviam nas brenhas e sertões teriam pouco contato com a lei escrita, bem como restrições para a aquisição do saber letrado e até mesmo das leis da civilidade.311 Importava mais a sobrevivência, de onde um imperativo da força e da resistência. 305
Segundo Hespanha, uma visão apropriada da justiça deve: 1) considerar os mecanismos não oficiais e não judiciais da justiça; 2) não supervalorizar a justiça da corte em detrimento da periférica; 3) atentar para as tecnologias disciplinares, “diferentes da lei, da justiça (numa palavra, da ‘coerção’) na instituição da disciplina social”. HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: historia e prospectiva de um paradigma”. In. Idem. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.9. 306 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.7. 307 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.32. 308 BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.226 et segs. 309 “Como se dizia nos pleitos, ‘não se deve imputar negligência a um ignorante’”. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Espelho de Cem Faces; o universo relacional de um advogado setecentista.São Paulo: Editora Annablume/PPGH/UFMG, 2004, p.185. e Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) – 2 Oficio, Códice 192, Auto 4813. 310 HESPANHA, Antonio Manuel. As fronteiras do poder: o mundo dos rústicos. Revista Seqüencia. Santa Catarina, n.51, dez, 2005, p.72. 311 GOUVEIA, Antônio Camões. Estratégias de interiorização da disciplina. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.433.
104 ISSN 2358-4912 A justiça dos rústicos seguia um código próprio e constituía uma ordem que, em determinadas ocasiões, poderia ser um útil argumento nos processos oficiais, como no caso apresentado acima, em outras, configuraria uma força ofensiva.312 Nestes casos, a concorrência pelo monopólio de dizer o Direito, tornar-se-ia mais notável, explodindo em violência e revolta. Normalmente, o estopim para esses levantes era um sentimento de injustiça, de uma promessa não cumprida, de partilhas desiguais, retribuições não recebidas, direitos ignorados. Seriam esses os sentimentos que motivariam os levantes que buscariam restabelecer, por força, o equilíbrio na balança da justiça. Apesar de toda a vigilância, nas cidades e vilas, nichos do poder público, pairava o perigo da ação de grupos violentos e, por vezes, armados.313 Conta Marcos Magalhães de Aguiar que em Congonhas do Campo, Minas Gerais, um grupo de pessoas armadas se antepôs aos funcionários da Justiça e libertou, das mãos dos juízes de vintena, a Alexandre de Souza. Os amotinados que libertaram ao dito Alexandre diziam que “não tinham medo da Justiça, antes queriam morrer do que deixá-lo levar preso”.314 Possivelmente, nessa mesma localidade, Alexandre de Souza esteve envolvido em um levante de pessoas armadas com pistolas, clavinas, foices e outros instrumentos contundentes, que se rebelaram contra uma decisão do magistrado de reintegrar umas terras de onde extraíam ouro. O motim ou assuada, com a participação de mais de 100 pessoas, se levantara ao clamor de “viva o povo” e “viva el rei”. A exortação era uma demonstração de uma força paralela e contrária a do Estado, mas também de uma noção de Justiça vinculada à concepção de “bem comum”, que não feria a prerrogativa do rei enquanto soberano justo, ainda que afrontassem diretamente seus funcionários.315 Um conflito no qual se debatiam noções de Direito e de Justiça divergentes, mas que, por vezes, poderiam se assentar sobre uma mesma autoridade e princípios. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Segundo pressuposto: a justiça é uma potência, uma vontade ou virtude que só adquire sentido e reconhecimento na sua execução, quando posta em ação É conhecido o papel que o direito e a justiça, desde a Idade Média, adquiriram para legitimar a existência do rei, do imperador.316 Para Senellart, o governo justo não constituía um limite do poder régio, mas o fundamentava.317 A mesma perspectiva, bem próxima dos teóricos da Razão de Estado, pode ser identificada no dicionário de Joaquim José Caetano Pereira e Souza, para quem a justiça, mais do que a expressão do poder régio, era, efetivamente, “o fundamento do trono”.318 Tratava-se de uma prática legitimadora e instituinte, portanto. No tradicional resgate histórico das monarquias e no 312
A serventia do direito dos rústicos é notada na transformação de esquemas lingüísticos dominados no nível prático e oral, para uma gramática formalizada, mediante um trabalho de codificação escrita. Mais do que um simples ajuste formal, tratava-se de uma mudança em nível ontológico, pois, segundo António Manuel Hespanha, o direito dos rústicos tem na fluidez da oralidade uma das suas características fundamentais. Entretanto, é graças a esse processo de codificação e apropriação que é possível resgatar os contornos desse direito dos rústicos em uma dimensão histórica. HESPANHA, Antonio Manuel. As fronteiras do poder: o mundo dos rústicos, p. 58 et segs. 313 Nesse sentido, conforme observa Marcos Magalhães Aguiar, o bairro de Antônio Dias era considerado, em depoimento da época, como sendo um “sítio aonde não vai Justiça, em que só vivem pessoas facinorosas e destemidas, havendo muitos (sic) poucos que não sejam desta qualidade”. AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas: uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p.96 314 AGUIAR. Negras Minas:uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial, p. 91-92. 315 Definia-se por assuada o agrupamento de 10 pessoas ou mais, todas estranhas e não familiares, para promover o mal ou dano a alguém. Se fossem familiares ou escravos, o número subia para 15. Quanto o caso em questão, observa Marcos Magalhães que “o motor do delito [...] estava na definição do aproveitamento público – pelo menos no período inicial – das propriedades em litígio”. AGUIAR. Negras Minas:uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial, p. 93. 316 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France, p.31. 317 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimem medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed.34, 2006, p.69. 318 SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de um Diccionario jurídico, theorético e pratico, remissivo às Leis compiladas e extravagantes. Obra posthuma. Lisboa: TypographiaRollandiana, 1825. Tomo 2, p.166. Cf. BOTERO, João. Da razão de estado. Tradução de Raffaela Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992, p.19.
105 ISSN 2358-4912 âmbito da teoria do direito, o rei foi alçado, paulatinamente, à condição de viga mestra do edifício jurídico, na mesma medida em que se fazia da justiça seu alicerce e sua face mais visível.319 Conforme José Subtil, “todas as fontes doutrinais da primeira época moderna nos falam da Justiça como a primeira atribuição do rei”.320 Tal perspectiva doutrinal penetrou no solo mais ordinário dos auditórios da justiça. Existe um processo conservado no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana que permite distinguir com nitidez a associação da justiça à imagem de D. Maria I. Trata-se de um agravo apresentado à ouvidoria da Comarca de Vila Rica referente a um processo, aberto em agosto de 1797, contra Luiz Teixeira Miranda, seus filhos e escravos. Os agravantes haviam apresentado uma carta de seguro ao Juiz Ordinário de Mariana, o que lhes facultariam a responder em liberdade o processo aberto para apurar a agressão que teria sofrido João Machado Ribeiro. O juiz ordinário e Capitão Mor José da Silva Pontes, todavia, indeferiu o pedido, alegando que os réus tinham “outro crime de que não estavam seguros”, qual seja o de portarem armas curtas e facas de ponta.321 Por conta desse agravante, o juiz determinou que fossem recolhidos à enxovia, como determinavam as leis. O Dr. Antônio da Silva e Souza, advogado de Miranda e de seus filhos e escravos, alegou como defesa que a devassa aberta para apurar o crime não respeitou os prazos estabelecidos por lei, que as testemunhas foram subornadas e que o juiz tinha interesses na condenação dos réus.322 O advogado enfrentava o juiz ordinário considerando-o “menos bem aconselhado e fazendo-se ignorante de todos os procedimentos [...] sem assessor e professor de Direito”. Pela falta de alguém para instruí-lo, o juiz ordinário teria “praticado nulamente e ainda sem jurisdição para criminar os agravantes”. 323 Mas não seria apenas a imputada ignorância do juiz ordinário o motor para sua sentença. Para o Dr.Antônio da Silva e Souza, o juiz ordinário agira “em ódio e vingança contra os agravantes para sua total ruína e perdição, muito a satisfação de seus inimigos capitais que concorreram de mão comum valendo-se do representante”. Em um estilo repleto de interjeições e exclamações, Silva e Souza concluía acerca da atuação do juiz: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Eis aqui as injustiças e desordens que escandalosamente e com falta de jurisdição e transgressão das leis do reino e extravagantes providenciais se praticaram pelo juiz a qual contra os agravantes que só Vossa Majestade poderá providenciar como verdadeira justiça e legisladora.324
O ataque do advogado ao juiz prossegue entremeando exortações dirigidas à Rainha D. Maria I, caracterizada pelo advogado como a “Justiça animada na terra”. O agravo é dirigido diretamente à rainha, a quem o advogado implorava uma atitude: a “administração da verdadeira justiça que é Vossa Magestade a Própria e animada na terra e em todo o reino”. A figura da rainha como justiça animada, que se repete em diversos momentos na articulada do advogado é significativa. Ela revela forma clara o segundo pressuposto que apresentamos no início dessa comunicação. A justiça é uma potência, reside no ânimo como virtude ou atributo, mas só expressa pela ação. 319
Cabia ao rei fazer o bem, isto é, fazer a Justiça, pois “sem rei e sem Justiça tudo são roubos e latrocínios”. FERREIRA, Manoel Lopes. Prática Criminal expandida na forma da Praxe..., Manuscrito, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, Caixa 507. 320 SUBTIL, José. “Os poderes do Centro”. In: MATOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.157; Sobre a associação simbólica do rei com a justiça, ver ainda: CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do antigo regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p.76. 321 A “carta de seguro” era uma forma legal de se assegurar a vida daquele que a requeria contra eventuais vinganças , uma vez que nesta carta estava expressa a proteção do Rei ao portador. A carta podia ser passada àqueles que negavam o crime ou que alegavam legítima defesa e, em certas condições, asseguravam aos réus responder o processo em liberdade. ORDENAÇÕES Filipinas. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, 3.v, p.1302. 322 Conforme explicita o próprio Silva e Souza, o prazo para se dar abertura de devassa ex-Ofício era oito dias após o ocorrido e deveria ser concluída em trinta dias. Carmem Silvia Lemos, tratando com as devassas, observou que esse prazo era freqüentemente ultrapassado. LEMOS, Carmem Silva. A justiça local: os juizes ordinários e as devassas da comarca de Vila Rica (1750-1808). Belo Horizonte, 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, p.101. 323 ASCM – 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224. 324 ASCM – 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224.
106 ISSN 2358-4912 Contudo, como uma virtude, a justiça não era uma propriedade exclusiva do rei, embora fosse dele esperada.325 Justo era todo aquele que agia com justiça, com retidão, direito. A Justiça era uma virtude, uma potência que só se exterioriza na conduta do indivíduo em meio à sociedade.326 Sendo assim associada à sociedade, a noção de justiça seria variável conforme as contingências e valores locais e temporais. Diante dessa transitoriedade e particularismo, o direito oficial buscava transcender, criando normas que tinham a pretensão de universalidade, sem nunca lograr vencer a força do tempo que o tornava velho, inadequado, lançado ao desuso.
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Terceiro pressuposto: a justiça se expressa em atos singulares, enquanto o direito exprime a força de intenções gerais Durante muito tempo, os estudos sobre a justiça no Brasil e em Portugal demonstraram um apego ao discurso explícito das fontes, notadamente, das leis. Para evidenciar esse aspecto, não é preciso retomar em detalhes a produção historiográfica acerca da história da administração e, por extensão, da justiça. É sabida, por exemplo, a influência das interpretações, como a de Raimundo Faoro, que subordinaram a realidade às leis, fieis à crença de que o Brasil foi construído com decretos e alvarás.327 Outros estudos, como os de Caio Prado Junior, contudo, reproduziriam a incompatibilidade entre, por um lado, as exigências institucionais dos modelos de organização jurídica e judicial, e, por outro lado, a especificidades de situações vividas. A consciência dessa pluralidade de condições, nas quais confluem poderes e normas oficiais e não oficiais, permite relativizar as concepções que entendem a Colônia e Minas Gerais como decalque da ordem ou como a imagem do caos. Tratava-se, antes sim, de uma efusão pulsante de forças, muito mais vivas do que as imagens congeladas da noção de ordem e desordem podem revelar. Nos processos judiciais nota-se um universo de práticas de justiça paralelas com o qual se deparava instituições oficiais na concorrência para se ocupar o campo jurídico, na luta pelo poder de dizer o direito. Os casos de vingança, corriqueiros nas Minas, podem ser entendidos como formas outras de se fazer justiça. Paul Ricouer considera a vingança uma maneira de executar a justiça pelas próprias mãos, respondendo com violência a violência sofrida, em um espiral infinito de sofrimento que impede “a justa distância entre os antagonistas”. Para o autor, a justiça oficial, praticada por um intermediário imparcial, serviria para romper com esse processo de agressão, distanciando as partes em contenda e substituindo a violência pela palavra.328 Já para Foucault, essa imparcialidade é uma quimera e a palavra não seria mais do que outro meio para se exercer a violência. A violência, mesmo que a dulcificada pelo discurso judicial, faz parte da justiça.329 Ações violentas poderiam ser entendidas como um ato de justiça – ainda que esta fosse considerada pouco virtuosa, na perspectiva do direito oficial – quando inspiradas por noções como a de honra ou regradas por um sistema de condutas habituais, costumeiras. A violência servia tanto de limite para ações que fugiam às normas de convivência, como também era uma forma de sanar a ofensa recebida.330 Mostra disso pode ser encontrada na ação movida contra Rafael, o escravo do tenente Bernardo Gonçalves Chaves. Segundo informações dos autos, era por volta de duas da tarde quando, na “rua pública” do arraial de Antônio Pereira, Rafael encontrou com Domingos Carvalho Ribeiro e lhe atirou 325
Acerca da justiça como fundamento da monarquia, Botero conta que Demétrio, rei da Macedônia, ao negar, por falta de tempo, o pedido de uma mulher por justiça, teria ouvido “pois deixa também de ser rei”. BOTERO, João. Da razão de estado, p.19. 326 KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad. João Baptista Machado. 2 ed. Coimbra: Armênio Amado editor, 1979. p.3. 327 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10.ed. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000, p.187. e SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: poder e miséria no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p.92. 328 RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.11. 329 FOUCAULT, Michel Foucault. “Conferência 1” In. FOUCAULT, Michel Foucault. A verdade das formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral Melo Machado e Edurado Jardim Moraes. Rio de Janeiro: Graal, 2002. 330 Citando Émile Durkheim, Marco Antônio Silveira observa que “nos só nos vingamos do que nos fez mal e o que nos fez mal é sempre um perigo. O instinto da vingança é, em suma, apenas o instinto de conservação exasperado pelo perigo”. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1997, p.149.
107 ISSN 2358-4912 uma panela de barro “na sua cara e rosto”. Não bastassem os cortes produzidos pela agressão, a panela estava cheia de “triaga de gente muito fedorenta [...] muito mal adubada”. O “indigesto delito” deixou Domingos Carvalho Ribeiro “muito mal asseado e todo coberto da dita triaga desde a cabeça até os pés contanto desaforo e atrevimento que depois do R. cometer o dito delito, ainda disse algumas palavradas (sic)”.331 O ocorrido deixou o advogado do autor, indignado pela petulância de um escravo que, em lugar público, atingira um homem livre na “cara e rosto [do autor], parte a mais nobre e distinta do corpo humano”. O “porco fato”, conforme adjetivava Silva e Souza, teria sido encomendado pelo tenente Bernardo Gonçalves Chaves, senhor do escravo Rafael. A defesa, nas mãos do Dr.João de Souza Barradas, alegava que o escravo agira por conta própria, por saber que seu senhor havia sido ofendido por Domingos Carvalho Ribeiro, “pessoa de baixa esfera”, com “várias palavras menos decentes” ferindo a honra de seu senhor. O caso teve ainda alguns desdobramentos que não cabe aqui detalhar. O que se quer fixar é que o tenente se sentia ofendido e que seu escravo, por conta própria ou não, buscou reparar a ofensa atingindo o autor do processo em sua honra, decompondo-o publicamente como uma forma de repor o quantum de honra que havia sido tirado de seu senhor. O caso da triaga indica que em Minas Gerais a sociedade concebia meios próprios para reparar a perda, ou melhor, a subtração de um “capital simbólico”, um quantum de honra perdido. A injúria e a violência eram a linguagem usada por todas as camadas sociais e ganhava forma pela ação de se fazer justiça pelas próprias mãos. Fosse ela oficial ou não, violenta ou não, a justiça se expressa exclusivamente pela ação, de onde sua singularidade contrastante com a dimensão mais generalizante do direito. Direito e justiça são conceitos aproximados, porém guardam sutilezas relevantes, algumas delas constituídas ao longo do tempo. Michel Villey, atento as diferenças, traça um longo estudo sobre as variações da fórmula gregoromana acerca de direito (dikaion) e justiça (dikaiosunê). Segundo Villey, Dikaion, o direito, é a justiça objetiva, fora do ser, real. Já Dikaios é a “justiça em mim”, subjetiva, expressão individual e virtuosa da justiça (dikaiosunê).332 A justiça, enquanto virtude, como parte integrante do homem justo, manifestase individualmente, mas reflete em toda a cidade, em toda a república, por conta da sua natureza relacional. Grosso modo, Villey, baseado em Aristóteles, considera que o direito e a justiça têm o papel de “atribuir a cada um o que é seu” (suum cuique tribuere). Ambos têm uma dimensão relacional, portanto, e visam à vida em sociedade, ao bem do outro. O Direito (jus) visa regular esse espaço social dividindo as coisas “proporcionalmente” entre as pessoas, estabelecendo uma ordem ideal, direita. Uma ordem que, em razão da influência da cultura sacra judaico-cristã, reduz o direito à lei e aproxima a justiça divina da misericórdia.333 Também para Hobbes o direito é considerado um conjunto de leis, não mais as do Torá, dos Dez Mandamentos, mas as leis postas pelo Estado.334 Seja humano ou divino, moral ou legal, o direito, ou melhor, os direitos se impõem, em última análise, pela força e têm propensão à universalidade. Direitos no plural, mas, nem por isso, menos gerais. Exemplo disso é o direito natural, infundido por Deus a todos. A mesma generalidade pode ser encontrada no direito das gentes, comum e, talvez em menor medida, no positivo e costumeiro. Para além da sua universilidade, o direito teria a função de permitir ou vetar, por meio de “uma coleção de leis homogêneas”.335 Nas palavras de Rousseau, as quais representam uma das perspectivas ilustradas do setecentos, “o objeto das leis é V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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ACSM - 2 Ofício, Códice 207, Auto 5167. VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 69 et segs. 333 VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito, p.113. 334 Uma perspectiva similar pode ser identificada no pensamento de Kant para quem o direito é “o conjunto de condições que possibilitam a coexistência das liberdades individuais”. VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito, p.143- 45. 335 “Esta palavra ‘direito’ tem várias significações. Toma-se por aquela faculdade natural que cada um tem para poder obrar ou não obrar”. GONZAGA, Tomás Antônio Gonzaga. Tratado de direito natural. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, p.120. 332
108 ISSN 2358-4912 sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas e jamais como um indivíduo ou como ação particular”.336 Em qualquer dos sentidos atribuídos, o direito se exprime pela universalidade, pela força da sanção e da permissão. 337 Desta forma, a história e a filosofia do direito parecem ter mais a revelar sobre as formas e as forças de sanção instituídas do que sobre a execução das mesmas: o exercício da justiça. A justiça congrega a ação, e, ao fazê-lo, abre espaço para as práticas múltiplas, para os jogos de força e para as singulares. Nesse sentido, o poder – assim como a justiça, na acepção apresentada – pode ser apreendido como relação, ao contrário do que evidencia uma parcela dos pensadores seiscentistas e setecentistas que o entendia como uma essência emanada do rei, do povo ou de Deus. Com esse deslocamento, coloca-se no cerne da análise de uma história da justiça, para além do aspecto da virtude, a questão da relação de forças. Em suma, o approach sobre as formas do direito tende a se desdobrar em estruturalismos, enquanto que o enfoque sobre a justiça, ao resgatar as relações de força na prática ordinária da sociedade e dos auditórios, revela singularidades perceptíveis quando se apreende a justiça como uma ação. Assim entendida, a história da Justiça exige uma compreensão dos aspectos formais das leis, da jurisprudência, da dogmática, das estruturas e dos agentes administrativos, mas, sobretudo, do seu exercício efetivo na sociedade, naquilo que existe de próprio nos jogos das forças.338 A justiça envolve mais do que as formas regulares e legítimas de poder, em seu centro ou periferia, permitindo conhecêlo nas margens, para além das regras de direito, “na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício”, eventualmente na sua faceta rústica e violenta, por vezes, esmaecidas, mais ainda assim inscritas, nos palimpsestos da justiça.339 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências
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ROUSSEAU, Jean –Jacques. Do contrato social; Ensaios sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1984, p.54, vol.1. 337 Nas palavras de Antonio Manuel Hespanha, que cabe bem para a discussão aqui esboçada: “fica por se questionar tudo quanto se encontra antes e depois do acto legislativo, os problemas da legitimidade da lei e da correspectiva consciência do dever de obedecer são remetidos para o filósofo do direito; a questão da adequação ou justeza da lei, para o político; enquanto que nem sequer são normalmente colocadas as interrogações acerca das funções (históricas) da lei, das suas relações com outras “tecnologias disciplinares” (para utilizar a fórmula de M. Foucault), ou dos factores sociais, culturais e políticos que condicionam a sua eficácia”. HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: historia e prospectiva de um paradigma”. In:Idem. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva, p.11. 338 “Quero logo insistir, para reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, p.8. 339 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. p.32 e 33. HESPANHA, Antônio Manuel. Da iustitia a disciplina textos, poder e política pena no Antigo Regime. In: HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
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Documentos
Impressos: FERREIRA, Manoel Lopes. Prática Criminal expandida na forma da Praxe..., Manuscrito, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, Caixa 507. GONZAGA, Tomás Antônio Gonzaga. Tratado de direito natural. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, p.120. ORDENAÇÕES Filipinas. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, 3.v.
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Manuscritos: Arquivo da Casa Setecentista de Mariana 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224. 2 Ofício, Códice 207, Auto 5167. 2 Oficio, Códice 192, Auto 4813.
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VALE DE LÁGRIMAS: MULHERES RECOLHIDAS NO SERTÃO DE MINAS GERAIS (c.1750-c. 1716) Ana Cristina Pereira Lage340 Conhecida inicialmente como Casa de Oração do Vale de Lágrimas, a instituição surgiu por volta de 1750, próxima à Vila de Minas Novas, na região norte de Minas Gerais. Posteriormente, em 1780, quando a instituição foi transferida para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, foi denominada como Recolhimento de São João da Chapada e ainda como Recolhimento de Sant’Anna da Chapada. A Vila de Minas Novas, fundada em 1730 como Arraial de Nossa Senhora de Bom Sucesso do Fanado, foi desanexada politicamente da Capitania da Bahia em 1757, quando passou para a subscrição da Comarca do Serro Frio na Capitania de Minas Gerais. Eclesiasticamente continuou vinculada ao Arcebispado da Bahia até 1853. Esta particularidade da região acarreta a busca de documentos em arquivos diversos, tanto mineiros, quanto baianos. Segundo José Joaquim da Rocha (1897), em 1788 a Vila de Minas Novas vivia da exploração de ouro e de diamantes. Nos anos de pouca chuva, a população sofria pela falta de alimentos e do baixo abastecimento da região. O clima era quente e seco e toda a água provinha do Rio Araçuaí. A margem deste rio foi escolhida para a instalação do Recolhimento do Vale de Lágrimas por volta de 1750. A instituição aqui analisada foi fundada pelo padre Manoel dos Santos que, após ser atingido por um raio e sobrevivido, prometeu angariar esmolas e estabelecer um recolhimento feminino no sertão da capitania mineira. Sua fundação esteve ligada a uma visão sobrenatural de um eclesiástico, muito comum nos relatos de fundação de outras instituições do mesmo tipo. Após o acontecimento, o padre então “[...] applicou os seus bens todos á construcção d’esse edifício”341 A Casa de Oração do Vale de Lágrimas, nome que remete às desgraças humanas após o pecado capital, além dos sofrimentos que seriam pagos por meio de orações no plano terreno, estabeleceu-se enquanto Recolhimento, instituição vista inicialmente como espaço de devoção e vida contemplativa, diferenciando-se dos conventos da época pela ausência dos votos por parte das recolhidas. No dicionário de Rafael Bluteau, a palavra recolhimento aparece caracterizada como: “casa de religião ou retiro do mundo, sem votos religiosos.”342 A fundação deste tipo de instituição era mais facilitada pelo fato de ser exigida somente uma licença episcopal para o seu funcionamento, enquanto os conventos necessitavam de uma ordem papal e a aceitação da instalação por parte de uma determinada ordem religiosa. Assim, as recolhidas necessitaram apenas da autorização de D. Jozé Botelho de Mattos, arcebispo da Bahia. Alguns documentos apontam para o fato de que o Recolhimento funcionou por um longo período sem autorização e também pelo desconhecimento de sua existência pelas autoridades baianas. Porém, já em um documento datado de 1754, o Arcebispo da Bahia D. Jozé Botelho de Mattos, faz referências à autorização da instituição e, ainda, informa o recebimento de diversos outros documentos de autoridades da região e até da regente da Casa de Oração, os quais indicavam a situação de funcionamento da casa mantida pelas “mulheres recolhidas no sertão”. O Arcebispo também apresenta as suas preocupações pessoais com o local da instalação e o encaminhamento de subsídios para a sua manutenção. 343 No século XVIII, o sertão caracteriza-se como “(...) o interior, o coração das terras. Opõe-se a marítimo e costa.” 344 O termo definia então a fronteira entre o conhecido e habitado (o litoral) e o desconhecido e pouco habitado (interior). No espaço desconhecido do interior, estabelecia-se a Casa 340
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
[email protected] PIZARRO e ARAÚJO, 1822, p.191. 342 BLUTEAU, v.4, 1712, p. 297. 343 D. Jozé Botelho de Mattos. Officio do Arcebispo da Bahia, para Diogo de Mendonça Corte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instrucções a este respeito. 1754. In: SILVA, 1937, p.335. 344 BLUTEAU, v.4, 1712, p. 395. 341
112 ISSN 2358-4912 de Oração do Vale de Lágrimas, que era assim descrita por D. Jozé Botelho de Mattos: “Está sito este Recolhimento na parte mais remota deste Arcebispado, apartado 4 legoas da mais vizinha povoação, e em lugar solitário, montuoso e tanto que me seguram causa horror.”345 No espaço solitário estabelecia-se um grupo de mulheres sem votos religiosos e de várias origens, as quais poderiam solicitar a saída quando desejassem. Verifica-se que havia uma complexidade e diversidade dos tipos de reclusas devido à ausência de estabelecimentos específicos para suprir às necessidades das mulheres da região norte das Minas setecentista. Assim, o recolhimento aqui analisado recebia meninas e mulheres adultas, órfãs, pensionistas, devotas, algumas que se estabeleciam temporariamente para guardar a honra enquanto os maridos e pais estavam ausentes da Colônia ou embrenhados no sertão em busca de ouro, e ainda como esconderijo daquelas consideradas como desonradas pela sociedade da época. Recebeu diversas mulheres, solteiras, casadas ou viúvas para que se dedicassem à Oração e à instrução necessária para uma determinada formação religiosa. 346 Para a compreensão da abertura do Recolhimento, deve-se considerar as proibições para a abertura de conventos nas terras mineiras.347 A dificuldade em alcançar a regulação oficial do poder político pelas instituições femininas passava por diversas questões. Em um primeiro momento é possível identificar a necessidade de canalizar a população feminina na Capitania de Minas Gerais para o casamento e o povoamento do território, tornando o incentivo ou a proibição da abertura dos conventos e recolhimentos assuntos centrais das preocupações demográficas da Colônia portuguesa na América.348 Era muito difícil casar nas Minas setecentistas, uma vez que os brancos livres tinham dificuldade em encontrar mulheres que pudessem desposar e o Estado português via nas uniões legitimas uma forma de controlar a população desordeira. Por outro lado, deve-se atentar para o fato que alguns pais preferiam encaminhar as suas filhas para conventos portugueses ou de outras capitanias em vez de casá-las com homens que estavam abaixo de sua condição social e, além disso, consideravam que a presença de uma filha em uma instituição religiosa acarretaria também dotá-la de algum conhecimento devocional e alcançar dádivas religiosas para a família. Deve-se então entender as características principais dos dois únicos recolhimentos femininos existentes em Minas Gerais neste período: o Recolhimento de Macaúbas e a Casa de Oração do Vale de Lágrimas. Ambos surgiram principalmente da devoção popular e depois solicitaram a permissão de funcionamento aos bispados ou arcebispados e à administração portuguesa. Constituíam-se como um lugar misto de devoção, educação e ainda recebiam meninas e mulheres tanto por motivos práticos, quanto religiosos. Para o caso mineiro, salienta-se a ruralidade das instituições, as dificuldades em serem reconhecidas pelo sistema administrativo colonial, como ainda a necessidade de demonstrar a religiosidade e os vínculos com fundadores devotos às causas religiosas. 349 Somente em 1780, quando o Recolhimento do Vale de Lágrimas transferiu-se para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, foi que este passou a estabelecer-se em ambiente urbano. A Casa da Oração, como era considerada inicialmente a instituição aqui analisada, ainda tinha a particularidade de receber mulheres que circulavam no sertão. Toda a documentação analisada até este momento aponta para as irregularidades e dificuldades da vida no sertão e das recolhidas, o que possibilita uma reflexão acerca das necessidades específicas para a reclusão das mulheres no Vale de Lágrimas, que se protegiam ao formar um grupo, especialmente enquanto os seus pais ou maridos embrenhavam-se pelo sertão em busca de ouro, instituindo então um local onde exerciam os seus instintos devocionais. Pode-se apontar que este é o caso da primeira regente da instituição, D. Isabel Maria, além de sua irmã Quitéria com relação ao seu pai:
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Bastantes annos há, que de palavra e por letra tenho recebido e tomado varias informações sobre hum recolhimento de mulheres de que he fundadora e governante huma D. Isabel Maria, filha do Mestre de Campo da Conquista João da Sylva Guimarães, que há muitos annos, que ajuízo por mais 345
D. Jozé Botelho de Mattos. Op. Cit. In: SILVA, 1937, p. p.336. ALGRANTI, 1999 347 Segundo Thaís Nívia de Lima e Fonseca (2010), a proibição de entrada do clero regular e de seculares sem paróquia em Minas Gerais foi determinada pela Carta Régia de 9 de junho de 1711 348 D. João V. Sobre fazer casar os moradores das minas e outras partes. Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei - 1721 – 1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1979, p. 26. 349 AZZI, e REZENDE, 1983. 346
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ISSN 2358-4912 de vinte, que com alguns homens brancos e escravos vive entranhado naquelles sertões, sem comercio de outras creaturas nacionaes, mantendo-se do que trabalha e de algumas porções de ouro, que os Governadores deste Estado lhe tem mandado dar para descobrimento que lhes representa e segura 350 muito capaz para o que tem dom especial.
Em uma região inóspita, com tantas dificuldades para o estabelecimento regular de pessoas, um grupo de mulheres agrupava-se para orar e guardar-se dos problemas externos à instituição. Assim foi o caso das primeiras recolhidas. Alguns documentos apontam para a pobreza do recolhimento: “[...] É de maneira destituído de rendas, que as recolhidas vivem de esmolas.”351 A sobrevivência da instituição por meio de esmolas está presente em quase toda a documentação consultada, inclusive nos relatos de Saint-Hilaire, quando visitou a região em 1817. 352 A Casa de Oração pertencia às mulheres que lá habitavam, sem muita opulência e com cômodos suficientes para abrigá-las. Havia também uma capela anexa, com dois Côros para a celebração do Ofício Divino. Viviam de esmolas, além de alguns trabalhos manuais feitos pelas recolhidas e do trabalho de escravos que eram doados para a instituição. Embora já aceitas pelo poder eclesiástico, foi somente em 1779 que as recolhidas solicitaram a confirmação Real para o funcionamento da instituição. 353 Segundo documento de 1780, as Recolhidas foram transferidas do Vale de Lágrimas para o próximo Arraial de Santa Cruz da Chapada por causa das diversas inundações do rio Araçuaí no primeiro terreno.354 Outro documento relata a saída das recolhidas da Casa próxima de Minas Novas e parece que o processo não foi tão simples assim, uma vez que o sertão ermo e os problemas de acesso aparecem para justificar a transferência. A Casa ficava entre dois rios (Araçuaí e Fanado), aos pés de um morro e tornava-se inabitável nos momentos de cheias dos rios: Dizem a Regente e mais Recolhidas em outro tempo na Caza chamada o Valle de Lagrimas, erecta pelo Padre Manoel dos Santos e hoje assistentas no Arrayal da Chapada, que na referida Casa do Valle de Lagrimas por ficar entre o rio Arassuahy e o Fanado fabricada sobre as próprias ripas daquelle em campo ermo a muy fúnebre, e debaixo de hum monte experimentarão as Supplicantes gravíssimas necessidades, tanto corporaes, como espirituaes, por que no tempo das águas, exedente dos referidos dous rios ficava impedida a conducta dos mantimentos, e dos Padres que as confessassem, e alem disso por conta da habitação naquele lugar adquirirão as Supplicantes muitas e graves moléstias, que hoje padecem sem remédio, como tudo se mostra dos documentos juntos; ate que as Supplicantes vendo-se assim consternadas aflictas, e doentes e o que mais he flagelladas do dito Padre erector, e director das Supplicantes. por motivos que por prudência casão, ainda que bem notórios; evacuarão a referida Casa do Valle de Lagrimas, com corpo unido buscarão o Arrayal da Chapada, e nelle se achao congregadas e recolhidas na Caza particular de hum bemfeitor, que movido de piedade lhe largou, conservando as Suppes. aquelle bom nome e reputação que sempre 355 tiverao.
Devido às enchentes do rio Araçuaí e por estarem estabelecidas em uma região de difícil acesso, as recolhidas passavam por necessidades espirituais, devido à falta de confessores e, ainda, necessidades físicas, uma vez que o alimento não chegava às suas terras. Assim, várias mulheres ficaram doentes. Transferiram-se então para Santa Cruz da Chapada, uma vila próxima, onde conseguiram uma habitação temporária. O requerimento acima consiste em diversos depoimentos de homens notórios
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D. João Botelho de Mattos. Op.cit., p. 335) VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descripção geographica, physica e política da Capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1901, p. 853 352 SAINT-HILAIRE, 1830 353 ROCHA, op. Cit., 1897, p.183. 354 ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro, 1897 355 REQUERIMENTO da regente e mais irmãs do Recolhimento do arraial da Chapada no termo de Minas Novas, solicitando confirmação no sentido de erigirem capela dedicada a Santa Ana. 1780. Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 116. Doc. 9194 351
114 ISSN 2358-4912 da região e da Comarca do Serro Frio que atestam a seriedade da obra das recolhidas, além de solicitar a abertura de uma nova casa em uma região mais habitável: o Arraial de Santa Cruz da Chapada. O médico Antônio Xavier Ribeiro, diagnosticou que todas as recolhidas possuíam doenças crônicas incuráveis, pois estavam raquíticas, asmáticas e com “fluxos de sangue pela boca”. Eram doenças “ (...) todas adequeridas na sua morada chamada Vale de Lagrimas, por ser esta cituação mto humida entre matos sem aquelle refrigério mexeu com que se salubriram os corpos, incomunicavel, pesimo e inhabitavel.”356 A mudança para o Arraial de Santa Cruz tornava-se imprescindível para as curas necessárias às recolhidas, tanto espirituais quanto temporais. O mesmo documento atesta as virtudes dessas mulheres, além dos direcionamentos educativos esperados na Casa, como indica Antonio José de Araújo:
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O viver das sobreditas recolhidas, he com muita virtude, e costumes exemplarissimos, causando pelas suas virtudes, não so admiração, mas também grande contentamento, como he publico e notório; não so nesta Comarca, como em toda a Capitania e lugares mais distantes; e por essa cauza sempre forao estimadas por todos os Excelentissimos Senhores Governadores; e o mesmo pelos senhores Corregedores desta Comarca, e ultimamente por mim. He huma Casa de Oração Seccullar, sem votto algum, utillissima aos pouso deste paiz; por que ali mandão alguns Pays de famílias ensinar suas filhas; tendo as Recolhidas por alguns annos. E dali costumao sahir, não so provectas em Artes Liberaes; mas também no Santo amor, eterno de Deus: também parece útil o dito Recolhimento para em casos semilhantes aos supra referidos, aliviar algum danno de desordem mayor. He o que posso informar a V. Merce com pura verdade; segundo o que me informarão, feitas as indagaçoens, que semilhante matéria pedia. Villa do Bom Sucesso de Minas Novas de junho 23 de 357 1780 .
Pelo documento acima pode-se detectar que eram mulheres estimadas pela sociedade mineira, especialmente pelas autoridades. Ainda não foi possível encontrar a documentação que autoriza a instalação no Arraial de Santa Cruz da Chapada, mas sabe-se que as recolhidas conseguiram o seu intento, pois uma documentação do mesmo ano de 1780, já aponta a presença das mulheres em sua nova morada. Pode-se considerar que, neste momento, ocorreu uma melhoria econômica da instituição, pois então possuíam 36 escravos de ambos os sexos, que plantavam milho, feijão e arroz em três fazendas. Em outras duas fazendas criavam gado, embora as suas terras não eram propícias para a mineração. Havia ainda o pagamento de anuidades pelos pais que recolhiam as suas filhas e diversas doações, o que garantia a autosuficiência do local. O Recolhimento possuía então no seu interior 12 escravas donzelas para assistir às recolhidas. Contavam com 35 Recolhidas, sendo 33 donzelas e 02 casadas. Estas últimas foram encaminhadas para evitar maiores danos e prejuízos para a honra familiar.358 Pelo perfil do público que abrigava no recolhimento neste período, pode-se inferir sobre a necessidade de aceitar ainda uma diversificação em seu interior, não só de moças, mas também mulheres casadas para guardar a honra. Além disso, possuíam um número considerável de escravas para assistir às necessidades das recolhidas e terras que podiam produzir alimentos suficientes para a casa. Com a mudança para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, passaram a utilizar a denominação de recolhimento e substituíram o Vale de Lágrimas pela proteção de Santa Ana. D. João Botelho de Mattos já fazia menção a estes indícios, uma vez que as recolhidas no Vale de Lágrimas portavam um hábito como a mãe de Nossa Senhora e construíram uma capela anexa em devoção a esta santa no terreno inicial.359 A capela erguida na nova casa também recebeu o mesmo nome. A devoção à mãe de Nossa Senhora estava muito presente nas Minas setecentistas, especialmente em terras mineradoras, uma vez que esta é considerada a padroeira dos mineradores360. 356
REQUERIMENTO da regente e mais irmãs. Id. Ibid. REQUERIMENTO da Regente e demais irmãs. Id. Ibidem. 358 ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Op. Cit., 1897 359 D.João Botelho de Mattos, op.cit., p.335. 360 Sant’Anna tornou-se padroeira de mineradores – tradição já corrente na Espanha – e de “moedeiros”. Assim como as minas, Anna escondia ouro em seu ventre: Maria Imaculada. A analogia teve ressonância no mundo rural das Minas Gerais, alvo das esperanças que colonizadores nutriam há séculos. (MELLO e SOUZA, 2002, p. 238) 357
115 ISSN 2358-4912 Em uma região de sertão, onde as mulheres recolhidas possuíam laços com mineradores, as suas orações eram direcionadas à Santa protetora também de seus parentes. Torna-se ainda importante salientar o papel fundamental da Santa na educação de sua filha Maria, o que se destaca nas obras barrocas na sua retratação enquanto Sant’Ana Mestra. Esta última, a santa representada com um livro aberto e com uma menina atenta ao seu lado, demonstra o papel das mães enquanto educadoras de suas filhas. A santa torna-se “[...] onipresente no catolicismo setecentista das Minas. Mais do que um instrumento do saber, o livro é um canal de comunicação, destinado a Maria e aberto também ao fiel que contempla a imagem.”361 Entende-se que a relação de sant’Anna com a educação reflete no estabelecimento do recolhimento feminino que se coloca sob a sua proteção e institui-se enquanto espaço de educação. Na visão católica, a educação inclui todas as experiências pelas quais se desenvolve a inteligência, se adquire o conhecimento e se forma o caráter. Em um sentido mais estreito, é o trabalho feito por certas agências e instituições. Considerando as especificidades espaciais e temporais, as famílias, escolas, conventos e recolhimentos tornam-se ambientes propícios para desenvolver a inteligência, o conhecimento e a formação do caráter. Nesse sentido, o caráter que se pretende no ambiente educativo católico compreende principalmente a devoção a Deus. A documentação consultada nesta pesquisa aponta algumas pistas para analisar a instrução das recolhidas e ainda a capacidade de letramento que era exigido das mesmas. Na instituição aqui analisada, encontra-se indícios documentais de letramento tanto para a celebração do Ofício Divino, quanto para a formação nas Artes Liberais. Com relação ao Ofício Divino, o dever de rezar, dado aos religiosos, aponta para a observância e leitura de determinadas orações em horários específicos, sendo que, geralmente, os textos vinham em latim e estavam contidos nos livros designados como breviários. Com relação ao Recolhimento da Chapada, não foi possível ainda encontrar indicações das leituras feitas pelas mulheres recolhidas, mas alguns documentos dão pistas para o letramento religioso, especialmente por intermédio de uma educação escrita, pois “(...) dali costumão sahir não só provectas em artes liberaes, mas tambem no Santo amor, e temor a Deos.”362 Segundo Bluteau, as artes liberais compreendiam gramática, retórica, lógica, aritmética, música, arquitetura e astrologia.363 Provavelmente a formação das recolhidas na Chapada não compreendia todas as propostas das Artes Liberais, mas na opinião do autor das informações acerca da instituição, a formação compreendia, além das artes liberais, uma formação devocional. Um documento aponta o domínio da escrita pela Regente e das demais recolhidas na Chapada. O atestado de boa conduta do Sr. Bernardo José de Almeida, datado de 1781 e escrito pela Regente do recolhimento, Catarina Escolástica do Lado, foi assinado por esta e por trinta e uma recolhidas.364 Os nomes em homenagem aos santos das recolhidas, especialmente à Sant’Anna, apontam para uma tendência comum nos recolhimentos e conventos, cuja proteção era necessária para a habitação em um local tão distante dos grandes centros habitáveis. A data do fechamento da instituição é imprecisa, mas encontram-se vestígios do seu funcionamento em 1817, como aponta o viajante Auguste de Saint-Hilaire (1830), quando passou por Santa Cruz da Chapada. Segundo este, as poucas mulheres da comunidade eram já idosas e não aparecia ninguém para substituí-las. As suas impressões sobre a economia local apontam para um decréscimo na produção do ouro e o investimento em plantações de algodão, arroz e hortaliças. A V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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MELLO e SOUZA, Id.ibid. p. 243 ABRANCHEZ, op.cit., p. 357 363 BLUTEAU, v.1, 1712, p. 573 364 Regente Catharina Escolastica do Lado; Quiteria Felicyana; Gertrudes Anna da Conceiçam; Joaquina Maria dos Anjos; Leonora Anna da Trindade; Rita de S. Thereza; Bernarda de Jezus Maria; Escolastica Maria de Xpto; Anna Perpetua de Sto. Antonio ; Tereza de Jezus; Anna da Gloria; Ricarda do Espirito Santo ; Rita do Paraizo; Maria da Purificação; Maria da Cruz de Jezus; Quiteria de Sta Anna; Maria Querubina de S. Jose; Francisca Xavier de Jesus Maria; Anna Lourenza das Chagas; Maria do Rozario; Jacinta Maria de S. Jose; Joanna do Amor de Deos; Antonia da Conceição; Rita de Deos; Ignacia de Jesus Maria; Joanna de S. Lucas; Laurianna da Exaltação; Anna Maria do Carmo; Joanna do Espirito Santo; Anna da Mercez; Clara Maria Baptista; Maria Serafim dos Anjos. (Atestado passado pelas Irmãs da Casa de Oração e Recolhimento de Santa Ana a Bernardo José de Almeida sobre os serviços prestados gratuitamente a casa. Secretaria do Governo da Capitania. Seção Colonial. SG. CX.11. Doc.21. 16/08/1781. APM) 362
116 ISSN 2358-4912 população local não passava de 600 pessoas, sendo na maioria mulatos. No breve relato sobre o recolhimento, aponta caminhos de transformações em seu cotidiano, especialmente quanto ao estabelecimento de uma regra para o direcionamento das ações das recolhidas. Neste momento, as recolhidas eram chamadas por freiras pela comunidade local, portavam o hábito das carmelitas e agora seguiam a regra de Santa Teresa. Este trabalho pretendeu discutir alguns indícios acerca da História do Recolhimento do Vale de Lágrimas ou de Sant’Ana da Chapada no período do seu funcionamento. As fontes encontradas até o presente momento apontam para a presença de práticas de letramento na instituição, mas também propiciam um olhar para as transformações ocorridas no seu interior tanto no momento da sua mudança de localidade, quanto nas suas orientações. As mulheres recolhidas no sertão mineiro modificaram não só o nome da instituição, mas também as orientações praticadas em seu cotidiano. Nos relatos do seu último visitante que registrou a passagem na casa, este nem sequer cita Sant’Anna e salienta muito mais o lado de aproximação das mulheres recolhidas com uma regra instituída e a aceitação dessas mulheres enquanto freiras pela sociedade local. Como ocorreu esta transformação e a instituição da regra das carmelitas, ou ainda quais obras eram lidas pelas recolhidas, são questionamentos que só serão elucidados com a busca de novas fontes que poderão preencher as lacunas desta pesquisa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto: Imprensa Oficial de Minas Gerais, V. 02, 1897. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia – condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. Atestado passado pelas Irmãs da Casa de Oração e Recolhimento de Santa Ana a Bernardo José de Almeida sobre os serviços prestados gratuitamente a casa. Secretaria do Governo da Capitania. Seção Colonial. SG. CX.11. Doc.21. 16/08/1761. Arquivo Público Mineiro. AZZI, Riolando e REZENDE, Maria Valéria. A vida religiosa feminina no Brasil colonial. In: AZZI, Riolando (org.). A vida religiosa no Brasil. Enfoques históricos. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das artes da Companhia de Jesu, 1712. Disponível em: www.brasiliana.usp.br . acesso em 15 de junho de 2013. Carta de D. Lourenço de Almeida a D. João V. In: Registro de Alvarás, cartas, ordens e cartas régias do governo ao Rei. 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. v.31. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1980, p.241. D. João V. Sobre fazer casar os moradores das minas e outras partes. Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei - 1721 – 1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. V. 30, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979, p. 26. D. Jozé Botelho de Mattos. Officio do Arcebispo da Bahia, para Diogo de Mendonça Corte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instrucções a este respeito. 1754. In: SILVA, Cel. Ignacio Accioli de Cerqueira. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Vol. V. Bahia: Imprensa Oficial, 1937. pp.335-336. FONSECA, Thaís Nívia de Lima. “Segundo a qualidade de suas pessoas e fazenda”: estratégias educativas na sociedade mineira colonial. Revista Varia História. Belo Horizonte: vol.22, no. 35, jan/jun 2006. MELLO e SOUZA, Maria Beatriz de. Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia de Santa’Anna. In: Topoi, Rio de Janeiro, 2002, pp.223-250. PIZARRO e ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas à jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Parte II,Tomo VIII. Rio de Janeiro: Typografia de Silva Porto. 1822. Requerimento da regente e mais irmãs do Recolhimento do arraial da Chapada no termo de Minas Novas, solicitando confirmação no sentido de erigirem capela dedicada a Santa Ana. 1780. Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 116. Doc. 9194
117 ISSN 2358-4912 ROCHA, José Joaquim da. Memoria histórica da Capitania de Minas Geraes. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, Imprensa oficial de Minas Gerais. 1897, Ano 2, vol.3. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes. Tomo 2. Paris: Grimbert et Dorez, 1830. VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descripção geographica, physica e política da Capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Inprensa Oficial. Belo Horizonte, 06,3-4, 1901. pp. 761-853 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AS ESTRATÉGIAS DA FAMÍLIA DE ANTÔNIO FERNANDES D’ELVAS – HOMENS DE NEGÓCIOS, COROA ESPANHOLA E INQUISIÇÃO365 Ana Hutz366 A tríade: cristãos novos, Coroa espanhola e Inquisição (1580-1640) O relacionamento entre a Coroa espanhola e os comerciantes portugueses, notadamente cristãos novos, foi sendo construído desde o início da União entre Espanha e Portugal. Esse relacionamento se fortaleceu sobremaneira durante o reinado de Filipe III, no qual os cristãos novos portugueses tornaram-se os responsáveis pelo arrendamento de numerosos contratos da Coroa espanhola. Nesse período, ocorrem ainda renovações relevantes nos circuitos mercantis de parte importante do mundo. Por fim, no reinado de Filipe IV, os cristãos novos se tornaram os grandes prestamistas da Coroa espanhola, desbancando os banqueiros genoveses. Longe de significar somente uma mudança de nacionalidade dos banqueiros, tal mudança significou a integração de um espaço cada vez mais importante no comércio internacional, o Atlântico, cujas riquezas que proporcionava seriam fundamentais para a construção das mudanças econômicas em operação nos circuitos europeus. Se no que tange ao mundo dos negócios a relação entre cristãos novos e Coroa foi mais ou menos linear, o mesmo não se pode dizer dos outros fatores que impactavam a vida dos conversos. A política filipina frente a esse grupo foi muito menos unívoca do que pode parecer. Uma parte desse problema pode ser explicada pelo entrelaçamento da Coroa com a Inquisição, instituição dual, que apesar de sua relativa independência, também pertencia à Coroa, na medida em que era o rei a nomear o Inquisidor geral, por exemplo. As dificuldades impostas pela realidade da perseguição inquisitorial e pelo incremento das instituições que seguiam os estatutos de limpeza de sangue, impeliam os cristãos novos a se organizarem politicamente pleiteando, junto ao rei e eventualmente até mesmo junto ao papa, melhores condições de vida para o conjunto dos cristãos novos. Os pedidos mais frequentes durante a União Ibérica eram o fim da proibição de casamentos entre cristãos novos e velhos, o fim da proibição no acesso aos mais diversos cargos públicos, a reforma da Inquisição em Portugal, considerada mais rigorosa com os cristãos novos do que a espanhola durante o período por se utilizar de testemunhos singulares para a condenação dos reús, a permissão de saída do reino e, por fim, o perdão geral para os pecados de toda a gente da nação. Nesse artigo apresentamos as pesquisas que desenvolvemos sobre Antônio Fernandes d’Elvas, sua família, suas conexões familiares, seus negócios e seu relacionamento com a Coroa e com a Inquisição. Como queremos demonstrar, sua história é muito representativa da tríade composta por cristãos novos, Coroa espanhola e Inquisição. A família de Antônio Fernandes d’Elvas Antônio Fernandes d’Elvas pertencia a uma tradicional família de conversos portugueses conectada com a família de importantes homens de negócios cristãos novos. Essas conexões eram dadas, de maneira geral, pelo casamento, uma importante estratégia de negócios durante o Antigo Regime. Um bom exemplo dessa estratégia foi a união entre a família d’Elvas com a família Solis. Antônio Fernandes d’Elvas uniu-se a Elena Rodrigues Solis, filha do rico comerciante Jorge Rodrigues Solis, com quem Antônio viria a ter diversos negócios e parcerias. Outro exemplo merecedor de nossa atenção é a relação fortemente endogâmica entre as famílias Fernandes d’Elvas, Mendes de Brito e Gomes Solis. Luiza d’Elvas, filha dos mencionados Antônio Fernandes d’Elvas e Elena Rodrigues Solis casou-se com Francisco Dias Mendes de Brito, da poderosa família dos Mendes de Brito. Jorge Fernandes d’Elvas, filho de Antônio Fernandes d’Elvas era 365
Doutoranda em História Econômica pelo Departamento de História da USP.
[email protected]. Nesse artigo apresentamos os resultados parciais da tese que estamos desenvolvendo junto ao Programa de História Econômica da USP 366 Bolsista de doutorado pela CAPES com Bolsa Sanduíche na Universidade de Yale pela mesma agência de fomento.
119 ISSN 2358-4912 casado com Violante de Brito, filha de Duarte Gomes de Solis, banqueiro muito influente de Filipe IV, autor de um trabalho sobre economia e comércio relevante na época.367 Esse último, por sua vez, casou-se com uma das filhas de Heitor Mendes Dias de Brito, o Rico. Um dos filhos de Heitor Mendes casou-se, por sua vez, com outra filha de Duarte Gomes de Solis.368 A fidalguia é encontrada nessas três famílias portuguesas antes de elas se ligarem pelo casamento. Embora não tenha sido possível encontrar a data da conversão para o cristianismo de cada uma delas, percebe-se que a família dos Mendes de Brito já era fidalga antes mesmo da conversão forçada, ainda em 1473.369 Isso nos oferece um indício de que sua conversão tenha se dado menos pela força e mais devido às oportunidades que, dadas às circunstâncias sociais e políticas, a conversão envolvia. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Principais negócios da família Desde a descoberta de uma rota marítima para a Ásia por Vasco da Gama antes mesmo do alvorecer do século XVI, os portugueses se empenharam, não sem dificuldades, em se apropriar do excedente gerado pelo comércio de especiarias e outras mercadorias asiáticas apreciadas nas praças europeias. Conquistaram, pouco a pouco, localidades que se tornariam muito importantes na rota do Cabo, como Goa, por exemplo. A chamada “Carreira da Índia” ligava a Europa e a Ásia através do comércio. Esse por sua vez, era feito por agentes privados, que carregavam seus navios com a permissão da Coroa portuguesa que se utilizava da Casa da Índia para regular a organização desses negócios. Quando Filipe II da Espanha assumiu o trono de Portugal, contudo, o Império português na Ásia já estava em decadência há algumas décadas.370 Essa decadência se relacionava à perda do monopólio real tanto na Carreira da Índia, como no comércio realizado internamente na Ásia, que também havia sido dominado pelos portugueses. Relacionava-se ainda à rebelião dos Países Baixos e à perda da hegemonia da Antuérpia, principal mercado das especiarias e dominado pela comunidade portuguesa que lá comercializava e residia.371 Impossibilitados de impedir a retomada o comércio privado de comerciantes locais e tendo enormes dificuldades em reestabelecer uma nova praça para receber as especiarias à altura de Antuérpia, os portugueses continuaram, na medida do possível, com a exploração dessa rota cada dia menos lucrativa. Não bastassem os fatores já mencionados, a exploração da Carreira da Índia parecia ainda menos vantajosa frente às possibilidades que o comércio americano começara a proporcionar. No que tange aos cristãos novos portugueses, o comércio asiático, em especial o comércio da pimenta, foi o grande responsável por alavancar a riqueza de algumas famílias que se tornariam, nas décadas subsequentes, conhecidas e importantes no mundo dos negócios.372 James Boyajian chega a afirmar que “(...) with the pepper contract regime of the carreira da Índia in the Habsburg period – Ximenes d’Aragão, Gomes dElvas, Mendes de Brito, Coronel, Rodrigues d’Évora e Veiga, Rodrigues Solis, and Angel – emerged from obscurity into historical Record at this time.”373 Até o final do século XVI, por exemplo, vemos o comerciante Jorge Rodrigues Solis, sogro de Antônio Fernandes d’Elvas, figurando como um dos mais
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M.J. DA COSTA FELGUEIRAS GAYO, A. DE AZEVEDO MEIRELLES e D. DE ARAÚJO AFFONSO, Nobiliário de famílias de Portugal: arvores de Costados. Oficinas gráficas "Pax", 1941. 368 Fernanda OLIVAL, 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', in ed. Maria José Pimenta Ferro Tavares. Poder e Sociedade (actas de Jornadas Interdisciplinares). Lisboa: Universidade Aberta, 1998, pp. 113. 369 A.C. DA COSTA, Corografia portuguesa, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal: com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem : varões illustres, genealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoes. Na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706. 370 Para esse e outros assuntos relacionados à presença portuguesa na Ásia consultar: Bernardo Gomes de BRITO e C. R. BOXER, The tragic history of the sea, 1589-1622; narratives of the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen São Thomé (1589), Santo Alberto (1593), São João Baptista (1622), and the journeys of the survivors in South East Africa. Cambridge,: Published by the Hakluyt Society at the University Press, 1959.,Sanjay SUBRAHMANYAM, O império asiático português, 1500-1700 : uma história política e econômica. Lisboa: DIFEL, 1995. 371 James C. BOYAJIAN, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993. 372 AGS - Contadúria Mayor de Cuentas - 3a. Época - legajo 707 - Núm - Ano de 1605. 373 James C. Boyajian, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640, pp.14.
120 ISSN 2358-4912 proeminentes e frequentes participantes nos contratos da pimenta.374 Como vimos, grande parte dessas famílias já estavam relacionadas entre si, sobretudo via matrimônio, e outras tantas alianças viriam a ser formadas da mesma forma na primeira metade do século XVII. O comércio asiático era controlado pela Coroa, mas executado por agentes privados. Os chamados contratadores utilizavam uma rede de distribuidores e correspondentes espalhados pelas praças europeias de Hamburgo, Amsterdam, Livorno e Veneza, por exemplo. A importância de uma rede de confiança, fortalecida por relações familiares se faz notar quando analisamos os nomes dos distribuidores. Novamente encontramos Antônio Fernandes d’Elvas, já claramente atuando em conjunto com seu sogro que era, como vimos, contratador.375 De um modo geral, a lucratividade do negócio da pimenta caía a cada ano,376 pressionada pela concorrência dos comerciantes, pelas crescentes dificuldades na viagem Lisboa-Goa, sendo o ataque de corsários especialmente nocivo, pelo envolvimento espanhol em conflitos com a Inglaterra e com os Países Baixos e por fim, pela concorrência da economia atlântica. Esse processo foi paulatino; o colapso total do sistema asiático aconteceria somente após 1640.377 Os cristãos novos portugueses mais do que acompanharam esse processo, protagonistas que foram na mudança de eixo do capital privado. Tanto Jorge Rodrigues Solis como Antônio Fernandes d’Elvas mantiveram-se nos negócios da pimenta até cerca de 1610, quando seus nomes começam a desaparecer dos contratos asiáticos, com exceção do fornecimento de naus, que Solis fora forçado a tomar, como veremos a seguir. A partir de 1610, ambos passam a figurar nos contratos atlânticos e nos contratos das feitorias de escravos africanos. Outros cristãos novos ligados à família mais ampla de d’Elvas continuaram nos negócios da pimenta, como Manuel Gomes d’Elvas e Heitor Mendes de Brito.378 Isso nos faz crer, entretanto, que no início do século XVII, o principal parceiro comercial de Antônio Fernandes d’Elvas era de fato seu sogro, Solis, pois o capital de ambos movimentavase de forma muito coerente na mesma direção. No início da União das Coroas, o domínio ibérico nas possessões americanas era relativamente recente, mas a exploração colonial já começava a ter as características que marcariam o Antigo Sistema Colonial da era mercantilista. Tratamos aqui, é evidente, do processo de domínio metropolitano que se deu nas Américas espanhola e portuguesa e que se distingue do processo que predominou na Ásia. É nas Américas que a colonização atingiu sua expressão máxima: ocupação, povoamento e exploração. 379 Do ponto de vista dos agentes desse sistema, notadamente os cristãos novos portugueses, é possível afirmar que esse estavam envolvidos em praticamente qualquer negócio que envolvesse o comércio ultramarino no período estudado. Não ficaram de fora, portanto, de um dos mais lucrativos empreendimentos da época: o tráfico de escravos. As principais regiões “fornecedoras” dos escravos africanos eram Guiné-Cabo Verde e Congo-Angola, sendo que a segunda região tornou-se a mais importante entre as fornecedoras a partir de 1580. O comércio era regulado inicialmente através de licenças expedidas pela Coroa espanhola, que autorizava o traficante a comprar escravos nas feitorias africanas e vendê-los nos mercados fornecedores.380 Era o sistema de licenças também que regulava o fornecimento de mão de obra escrava para a América espanhola. Esse sistema vigorou até 1595, quando a Coroa espanhola o abandonou definitivamente e o trocou pelo regime de asientos, sistema mais seguro e vantajoso para a Coroa e para os negociantes. Um asiento nada mais era do que um contrato realizado entre a Coroa e um ou mais comerciantes. Tratava-se de um contrato leiloado pela Coroa espanhola que conferia ao mercador o monopólio do fornecimento para uma ou mais localidades específicas. Nesse contrato o mercador se comprometia a fornecer uma quantidade de escravos mínima e máxima. Trata-se, portanto, de uma espécie de terceirização do tráfico de escravos que trazia o benefício do monopólio para o asientista e o benefício do fornecimento e do pagamento do asiento para a Coroa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Ibid.pp. 19. Livro do lançamento e serviço que a cidade de Lisboa fez a El-Rei nosso senhor no anno de 1565: documentos para a história da cidade de Lisboa. Lisboa: 1947. apud. Ibid.pp. 19-23. 376 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 7 - 8v , fl 14 - 14v,fl 16v ,fl 26v,fl 29 - Ano de 1618. 377 James C. Boyajian, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640, pp.241. 378 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 32v - 35v - Ano de 1618. Ver também: ibid.pp. 95. 379 Fernando A. NOVAIS, Aproximações : estudos de história e historiografia. São Paulo, SP: CosacNaify, 2005. 380 Luiz Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2000. 375
121 ISSN 2358-4912 Os cristãos novos portugueses foram praticamente os monopolistas no tráfico de escravos para as Américas espanhola e portuguesa entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII. Esse monopólio não se dava exclusivamente entre os asientistas ou entre os detentores das licenças, mas perpassava por outros agentes. O tráfico de escravos funcionava utilizando-se de uma ampla rede de comerciantes, indo desde o detentor do direito de explorar o tráfico, o contratador, ou asientista, conforme o caso, passando pelos responsáveis por comprar os escravos, os comerciantes locais na costa africana, passando ainda pelos mestres dos navios e demais agentes que transportariam as mercadorias até as praças onde seriam vendidas nas Américas e, por fim, pelos negociantes locais nas Américas, alguns bastante poderosos, que compravam os escravos e os revendiam localmente. Entre os principais negócios de Antônio Fernandes d’Elvas e de seu sogro Jorge Rodrigues Solis encontrava-se o lucrativo tráfico de escravos. Antônio Fernandes d’Elvas foi considerado o maior traficante de escravos de seu tempo basicamente porque possuía negócios nas duas pontas do tráfico de escravos, na costa Africana e na América.381 O negociante certamente sabia que o acesso às fontes africanas é que lhe permitiria o acesso à ponta americana do negócio. Isso explicaria o afinco com que procurava ampliar sua presença na costa africana. Entre 1615 e 1623, data provável de sua morte ele foi o contratador de Guiné e entre 1616 e 1623 detinha o contrato em Angola. Elvas foi o primeiro mercador a arrematar ambos os contratos quase simultaneamente. A respeito do ineditismo de um mercador ser monopolista dos contratos Luiz Felipe de Alencastro afirma, e nós concordamos, que isso “(...) configura um movimento de capitais portugueses refluindo do Índico para o Atlântico, após a ofensiva anglo-holandesa no Oriente, o fim do ciclo da pimenta e a crise no Estado da Índia.” 382 Isso é corroborado pela própria saída, ou tentativa de saída, tanto de Antônio Fernandes d’Elvas como de seu sogro, Jorge Rodrigues Solis, dos contratos da pimenta, mais ou menos no mesmo período. A esse propósito, convém ressaltar que a associação entre Antônio Fernandes d’Elvas e seu sogro ficava clara também no que tange ao tráfico de escravos. Jorge Rodrigues Solis teria arrematado o contrato das Ilhas de São Tomé383 em 1618, mas esse contrato teria sido revogado no mesmo ano, pois a Junta de Fazenda entendeu que, sendo ele sogro de Anônio Fernandes d’Elvas, na prática é como se os dois fossem donos de todos os contratos na costa africana, o que poderia gerar “inconvenientes”.384 Ainda assim, os contratos de Guiné e Angola lhe ajudaram a garantir o asiento para as Índias de Castela no mesmo período, ou seja, entre 1615 e 1623. Antônio Fernandes d’Elvas possuía ainda o contrato de fornecimento de escravos para o Brasil385. Outros parentes de Elvas e Solis participaram ativamente de seus negócios no trato de escravos. Seu cunhado, Jerônimo era seu feitor em Cabo Verde e Angola, seu outro cunhado, Francisco Gomes Solis era feitor do contrato de Portugal e seu filho, Jorge Fernandes dElvas foi seu feitor em Cartagena. Disso fica claro que Antônio Fernandes d’Elvas empregava seus parentes para as atividades mais importantes de seu contrato.386 Para conseguir o asiento para a América espanhola, Elvas teve que pagar 120 mil ducados anualmente à Coroa espanhola. Esse asiento, por sua vez, lhe deu direito a vender no mínimo 3.500 e no máximo 5.000 escravos anualmente. Essa venda poderia se dar de forma direta ou através da venda de licenças a outros traficantes, método extremamente lucrativo utilizado por todos os asientistas. O asiento tomado por Antônio Fernandes d’Elvas foi provavelmente o primeiro firmado para a América espanhola a dar lucro para seu respectivo asientista. Isso se deveu ao fato de que ele inaugurou um novo momento na história dos contratos portugueses, após o período inicial, em que os contratos não puderam ser devidamente cumpridos e um período de administração direta pela Coroa que foi ainda pior em termos de fornecimento de escravos. Assim, o asiento de d’Elvas teria sido o primeiro cumprido adequadamente o
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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José Gonçalves SALVADOR, Os magnatas do tráfico negreiro : séculos XVI e XVII. São Paulo: Livraria Pioneira Editora : Editora da Universidade de São Paulo, 1981, Hugh THOMAS, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870. New York: Simon & Schuster, 1997, Enriqueta VILA VILAR, Hispanoamérica y el comercio de esclavos. Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1977, Ana HUTZ, 'Os cristãos novos portugueses no tráfico de escravos para a América Espanhola (1580-1640) ' (Dissertação de mestrado, Unicamp, 2008). 382 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, pp.101-02. 383 Que depois cairia em mãos holandesas. 384 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 159v - 160 - Ano de 1618. 385 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 4 - Ano de 1618. 386 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, pp.101.
122 ISSN 2358-4912 que significa que o negociante conseguiu vender e lucrar com as licenças de escravos a que tinha direito e que os escravos chegaram devidamente aos portos de Cartagena, Buenos Aires e Vera Cruz. Paradoxalmente, foi justamente o sucesso do asiento de Antônio Fernandes d’Elvas o responsável pela declaração de falência de seu contrato. A explicação para isso não é tão simples nem tampouco consensual entre os historiadores. Hugh Thomas interpreta que o sucesso de d’Elvas “(…) excited extraordinary jealousy for him, and not only among the sevillanos. Accused of cheating the king, he defended himself inadequately, and sent to prison where he died.”387 Enriqueta Vila Vilar nota, entretanto, que o período do asiento de d’Elvas teve consequências espetaculares. “Durante los años de 1617, 1618 y 1619 llegaron a Indias más esclavos que en ninguna otra época y el control del tráfico se hace realmente imposible. Solo existía una solución para cortar los abusos: declarar el asiento en quiebra.”388 Ou seja, junto com todos os escravos legalmente trazidos pelo contrato de d’Elvas, intensificava-se o contrabando que tanto incomodava as autoridades metropolitanas. A prisão de Antônio Fernandes d’Elvas nos parece, portanto, relacionada ao elevado índice de contrabando de seu período e às frequentes reclamações a esse respeito por parte das autoridades ultramarinas, como a Casa de la Contratación, mas deve também ser colocada dentro de um contexto mais amplo. O período final do contrato do asiento de d’Elvas corresponde à chegada de Filipe IV ao poder e de seu valido, o conde-duque de Olivares, ainda mais simpático à ajuda dos homens de negócios cristãos novos em um período de turbulência financeira pela qual a Coroa vinha passando. Trata-se de um período bastante turbulento no qual se punha em xeque com mais vigor a própria dominação filipina sobre Portugal. Assim, por paradoxal que pareça, pouco tempo antes de ter seu asiento declarado falido, o mesmo Antônio Fernandes d’Elvas era chamado pelo conde-duque de Olivares, junto com outros cristãos novos de bastante cabedal como Manuel Veiga d’Évora e Thomás Ximenes d’ Aragão, a frequentar a corte de Filipe IV. 389 Logo após seu asiento ter sido declarado falido, Antônio Fernandes d’Elvas teria falecido de uma doença infecciosa.390 Sua mulher, Elena Rodrigues Solis foi a responsável por seus negócios utilizando-se para isso do auxílio de pessoas de sua confiança e dos procuradores e feitores do falecido marido. Devido à falência, Elena teve muitas dificuldades em mandar cobrar dívidas que estavam no nome do marido e, no entanto, teve que liquidar, ou seja, pagar diversas dívidas para seus credores. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
O perdão geral de 1605 Com a chegada de Filipe III ao trono espanhol um pequeno grupo de iminentes cristãos novos frequentou a Corte com o objetivo de negociar um perdão geral para os homens da nação. Essas negociações duraram de 1598 a 1605; Em troca de uma determinada quantia, que acabou sendo fixada em 1.700.000 ducados, acrescidos das comissões dos ministros que negociaram do lado da Corte, os cristãos novos de todo o reino, incluindo as colônias no além-mar, obteriam um perdão pelos pecados passados e aqueles que estivessem presos nos cárceres do Santo Ofício seriam soltos. As negociações foram bastante lentas e homens importantes e bem relacionados com a Corte se revezaram na tentativa de angariar o breve papal que perdoaria os da nação. Entre os envolvidos nas negociações dois nomes saltam aos olhos: Heitor Mendes, que teria organizado em Portugal uma espécie de comissão de cristãos novos abastados para dar início às conversas com a Corte em 1598 e Jorge Rodrigues Solis, o sogro de Antônio Fernandes d’Elvas, que juntamente com Rodrigo de Andrade, outro negociante de prestígi,o teria chegado à Corte em 1600 para continuar a negociação iniciada em 1598. Jorge Rodrigues Solis não conseguiu finalizar o acerto do perdão geral; como se sabe esse só seria dado cinco anos depois. Durante seu envolvimento com os ministros de Filipe III, notadamente Pedro de Franqueza, braço direito do valido do rei, o duque de Lerma, acabou caindo numa espécie de armadilha tendo sido obrigada a tomar um contrato pouco rentável de fornecimento de naus para as Índias.
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Hugh Thomas, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pp.165. Enriqueta Vila Vilar, Hispanoamérica y el comercio de esclavos, pp.50. 389 James C. BOYAJIAN, Portuguese bankers at the court of Spain, 1626-1650. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983. 390 AGI – Indiferente General, 2976. apud. Enriqueta Vila Vilar, Hispanoamérica y el comercio de esclavos, pp.112. 388
123 ISSN 2358-4912 As negociações do perdão geral são um tema complexo que tem sido alvo da historiografia mais recente.391 Mencionamos aqui o episódio porque eles nos parece um claro exemplo de como os cristãos novos se organizavam politicamente enquanto grupo. Esses cristãos novos não representaram a totalidade dos homens da nação, como se depreende das reclamações feitas por outros conversos durante a execução do breve papal.392 Contudo, a organização existia e foi mobilizada em momentos como o da chegada de Filipe IIII ao trono e novamente com a chegada de Filipe IV. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Perseguição inquisitorial e negócios A família de Antônio Fernandes d’Elvas e as famílias relacionadas a ela procuraram durante várias décadas alcançar a fidalguia. Essa construção se iniciou precocemente, com o primeiro foro de fidalgo de que temos notícias ainda no século XV com os Mendes de Brito, como já mencionamos, e também com os Fernandes d’Elvas, que já era fidalgo no tempo de D. Manuel.393 O foro de fidalgo precocemente conquistado era, contudo, insuficiente frente às pressões de uma sociedade que prezava pela pureza de sangue. Em 1623, por exemplo, Francisco Dias Mendes de Brito, filho de Heitor Mendes, preocupado, e com razão, com o falatório acerca das origens cristãs novas de sua família, pediu a realização de autos de justificação de nobreza para si e seus antecessores. Isso foi feito mencionando-se basicamente as riquezas da família, suas propriedades, seus criados e posses, bem como o fato de que o sobrenome da família constava em muitos livros de Sua Majestade. Além disso, o Inquisidor geral, D. Fernão Martins Mascarenhas, lhe forneceu certidão abonatória na qual afirmava que Heitor Mendes de Brito estava isento das leis exigidas contra os cristãos novos. Certidões desse tipo foram emitidas em outras localidades onde a família tinha negócios, notadamente em Ceuta394 A preocupação de Francisco Dias Mendes de Brito com as origens cristãs novas da família expressou-se ainda no fato de que ao fundar um morgadio para a família em 1624, optou por excluir parentes conhecidos e afamados por serem cristãos novos.395 A atitude de Francisco Dias Mendes de Brito parece contrastar com a atitude de seu pai que anos antes se envolvera nos pedidos de perdão geral de 1605. Mas, os tempos eram outros e o ódio contra dos cristãos novos recrudescera em meados na década de 1620. Parte da família, contudo, não pensava como Francisco e deve ser por essa razão que se observa seu irmão Nuno Dias Mendes, envolvido nas negociações de um malfadado perdão geral com o Conde-Duque de Olivares entre 1626 e 1627. A família de fato não passaria isenta da perseguição inquisitorial quando a situação começara a piorar para os cristãos novos portugueses. Nos anos de glória da família, na década de 1630, quando o relacionamento com a Coroa atingira seu ápice, temos o registro do processo de alguns membros menos importantes da família. No período imediatamente posterior à Restauração portuguesa, temos o processo de um mercador de maior estatura, neto de Heitor Mendes e também chamado Francisco Dias Mendes de Brito. A prisão de um homem rico e poderoso como Francisco Dias Mendes de Brito, que ocorreu ainda durante a Guerra de Restauração portuguesa não se tratou de um fato isolado e precisa ser contextualizada. De fato, a perseguição aos ricos homens de negócio portugueses se concentrou entre 1630 e 1680.396 Em 1632, por exemplo, João Nunes Saraiva, um dos grandes banqueiros de Filipe IV, foi preso nos cárceres da Inquisição onde ficou por cinco anos. A situação dos cristãos novos que viviam na Espanha piorara muito após 1640, e em especial após 1643, quando o grande protetor dos portugueses, Olivares, foi brutalmente afastado do governo. Não por acaso, na década de 1650, período em que Francisco Dias foi preso, caíram
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O assunto foi tratado ao menos em dois excelentes trabalhos recentes: Ana Isabel LÓPEZ-SALAZAR CODES, Inquisición portuguesa y monarquía hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: Colibri, 2010. e Juan I. PULIDO SERRANO, 'Las negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607)', in Sefarad, vol. 66, 2006. 392 AGS, SP, Libro 1466, f.224 v. 393 ANTT. Chancelaria de Filipe I. Livro 9, folha 258 e 460, Livro 13. folha 3388, Livro 15, folha 183, Livro 21, folha 1338, Livro ii, folha 309, Chancelaria de Filipe II, Livro 15, folha 239. 394 Fernanda Olival 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', 116-19. 395 Ibid.pp. 118. 396 Henry Arthur Francis KAMEN, The Spanish Inquisition : a historical revision. New Haven, Conn. ; London: Yale University Press, 1998.
124 ISSN 2358-4912 também outros comerciantes e banqueiros importantes, como Montesinos, Blandon e El Pelado.397Todos tiveram que pagar multa ao Santo Ofício, algo que não era uma prática tão comum assim. Em nossa opinião, trata-se de um exemplo definitivo do uso critérios não religiosos na perseguição à heresia judaica pela Inquisição. O terror da onda de perseguições que fez com que famílias inteiras partissem da Espanha nos anos de 1650, também fez parte da família Mendes de Brito. No processo de Francisco Dias, por exemplo, consta o testemunho de Miguel Dias Jorge, 20 anos, oficial de livros de homens de negócios. Segundo ele, sua família era próxima da família de Francisco e ambos seriam observantes da Lei de Moisés. Ainda de acordo com ele, ao ver seus parentes sendo levados pelos oficiais do Santo Ofício, sua mãe foi à casa de Francisco e pediu ajuda para fugir com seus filhos, com medo de que fossem todos presos. Francisco prometeu que ia ajudá-la no dia seguinte pela manhã, mas não houve tempo, pois toda a família teria sido presa naquele mesmo dia.398 Como em outras famílias de cristãos novos, também era frequente nessa que um ou mais filhos fossem não só bons católicos para os padrões da época, mas inclusive que alguns fossem enviados ao seminário ou, no caso das mulheres, ao convento. Tratava-se de um sinal de pureza que podia salvaguardar a família em caso de dúvidas sobre a sinceridade de sua fé. Uma das filhas de Antonio Fernandes d’Elvas e Elena Rodrigues Solis, Branca Antonia, era assídua frequentadora da igreja das carmelitas, por exemplo399 Do outro lado do oceano, porém, mais especificamente em Cartagena de Índias, Francisco Rodrigues Solis, cunhado e feitor de Antonio Fernandes d’Elvas, seria processado pela Inquisição em 1636, anos após a morte de Antonio, que se deu em 1623. Francisco foi a Cartagena a pedido de sua irmã, Elena, com o objetivo de liquidar os negócios que o falecido marido possuía no local. Acabou permanecendo ali e atuando como comerciante, sobretudo no tráfico de escravos. A prisão de Francisco Rodrigues Solis ocorreu no contexto da Grande Cumplicidade ocorrida no Tribunal de Cartagena, que prendeu ricos portugueses como Blas de Paz Pinto, Luis Fernandes Suárez, João Rodrigues de Mesa e o próprio Francisco Rodrigues Solis, e confiscou a enorme quantia de 155 mil pesos de uma só vez, quantia que representava quase a metade do que o Tribunal confiscara nos 30 anos anteriores a esse episódio.400 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Conclusões Famílias como a de Antônio Fernandes d’Elvas, de origem cristã nova, mas já há muito tempo desconectadas com suas raízes judaicas, compuseram uma relevante parte dos homens de negócios portugueses que atuaram não só em Portugal e Espanha, mas na Ásia e nas Américas portuguesa e espanhola. Esses homens e mulheres eram, contudo, identificados com o elemento judaizante e, como tal, sua estratégias de negócios agiam no sentido de espalhar seu capital por todo o mundo conhecido, naquilo que hoje chamamos de redes de comércio e, suas estratégias de nobilitação agiam no sentido de escamotear as origens judaicas de suas famílias. Novos estudos como esse que ora se apresenta devem ajudar a reflexão acerca da atuação dos cristãos novos enquanto grupo e do próprio funcionamento das sociedades do Antigo Regime. Referências
Archivo General de Simancas: AGS - Contadúria Mayor de Cuentas - 3a. Época AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 Archivo General de Indias AGI – Indiferente General, 2976. Archivo Historico Nacional 397
Ibid.pp. 294. AHN - Inquisición - Toledo - legajo 142 - Exp 6 - - Ano de 1653 – 1657. fl. 14 399 Frei Joseph Pereira de SANTANNA, Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular observancia nestes Reynos de Portugal, Algarve e seus Domínios. 1745. 400 José Toribio MEDINA, Historia del tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Cartagena de las Indias. Santiago de Chile: Imp. Elzeviriana, 1899. 398
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ISSN 2358-4912 AHN - Inquisición - Toledo - legajo 142 Arquivo Nacional da Torre do Tombo ANTT. Chancelaria de Filipe I. Livro 9, Livro 13, Livro 15, Livro 21, Livro ii, Chancelaria de Filipe II, Livro 15. Bibliografia ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2000. BOYAJIAN, James C., Portuguese bankers at the court of Spain, 1626-1650. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983. BOYAJIAN, James C., Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993. BRITO, Bernardo Gomes de e BOXER, C. R., The tragic history of the sea, 1589-1622; narratives of the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen São Thomé (1589), Santo Alberto (1593), São João Baptista (1622), and the journeys of the survivors in South East Africa. Cambridge,: Published by the Hakluyt Society at the University Press, 1959. DA COSTA, A.C., Corografia portuguesa, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal: com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem : varões illustres, genealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoes. Na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706. DA COSTA FELGUEIRAS GAYO, M.J., DE AZEVEDO MEIRELLES, A., et al., Nobiliário de famílias de Portugal: arvores de Costados. Oficinas gráficas "Pax", 1941. HUTZ, Ana, 'Os cristãos novos portugueses no tráfico de escravos para a América Espanhola (1580-1640) ', (Campinas, 2008). KAMEN, Henry Arthur Francis, The Spanish Inquisition : a historical revision. New Haven, Conn. ; London: Yale University Press, 1998. LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel, Inquisición portuguesa y monarquía hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: Colibri, 2010. MEDINA, José Toribio, Historia del tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Cartagena de las Indias. Santiago de Chile: Imp. Elzeviriana, 1899. NOVAIS, Fernando A., Aproximações : estudos de história e historiografia. São Paulo, SP: CosacNaify, 2005. OLIVAL, Fernanda, 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', in Poder e Sociedade (actas de Jornadas Interdisciplinares), ed. FERRO TAVARES, M.J.P. (Lisboa, 1998). PULIDO SERRANO, Juan I., 'Las negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607)', in Sefarad (2006). SALVADOR, José Gonçalves, Os magnatas do tráfico negreiro : séculos XVI e XVII. São Paulo: Livraria Pioneira Editora : Editora da Universidade de São Paulo, 1981. SANTANNA, Frei Joseph Pereira de, Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular observancia nestes Reynos de Portugal, Algarve e seus Domínios. 1745. SUBRAHMANYAM, Sanjay, O império asiático português, 1500-1700 : uma história política e econômica. Lisboa: DIFEL, 1995. THOMAS, Hugh, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870. New York: Simon & Schuster, 1997. VILA VILAR, Enriqueta, Hispanoamérica y el comercio de esclavos. Sevilla: Escuela de Estudios HispanoAmericanos, 1977.
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ISSN 2358-4912 A CIDADE NA IMAGEM: O PERCURSO DA VILA DE SÃO FRANCISCO-AL NO ACERVO ICONOGRÁFICO DO GRUPO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro401 As Imagens dos Estudos da Paisagem Adotar a imagem como ferramenta para o estudo da paisagem não implica apenas em usá-la como base para a identificação das marcas edificadas e das expressões do sítio. É encarar também como aspectos a serem considerados nos estudos a propriedade desses produtos de carregarem uma série de intenções norteadas pelo processo de sua produção. Nessa perspectiva, este artigo trata de uma experiência do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, sediado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFAL, que desde 1998 vem trabalhando com o tema da história urbana priorizando a análise iconográfica em suas ações metodológicas. Já realizou um conjunto expressivo de projetos relacionados a cidades brasileiras situadas no Nordeste do Brasil, colocando como questão principal o entendimento de como surgiram e se transformaram seus núcleos de mais densa base temporal. Em princípio, tomou-se como recorte geográfico cidades situadas nos Estados da Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, tendo com intuito final compreender o que revelam os mapas e vistas sobre o desenho urbano destas localidades, buscando contribuir no entendimento do processo ocupacional do território brasileiro. Deste horizonte geográfico macro, algumas cidades foram selecionadas sobre os quais se mostraram mais generosos o material cartográfico e as evidências materiais identificadas in loco. Dentre elas: Penedo, Porto Calvo, Marechal Deodoro, em Alagoas; Cabo de Santo Agostinho, Olinda e Igarassu, em Pernambuco. Os dados coletados ao longo dos estudos geraram um expressivo conjunto composto por imagens de época, mapas cadastrais e aerofotogramétricos, fotos digitais e material audiovisual, que hoje integram o banco de dados imagético do Grupo. No que tange à iconografia histórica, há um acento nas fontes seiscentistas. Cabe lembrar que, neste século, o Nordeste foi contemplado com a produção de um material cartográfico de excepcional qualidade que foi denominado “cartografia do açúcar” por ter sido gerado devido ao apelo econômico desta atividade. São mapas portugueses, mas também os gerados pela presença holandesa no Brasil. Sabe-se o papel que os Países Baixos tiveram na Europa nesta época, no campo da investigação científica e artística, confluindo para uma produção cartográfica, bibliográfica e artística, que dará razão a este período ser conhecido como a “Idade de Ouro” dos Países Baixo. Conseqüentemente, a presença no Brasil da WIC (Companhia das Índias Ocidentais) e do conde João Maurício de Nassau com sua comitiva, fizeram com que, de alguma forma, o Nordeste do Brasil fosse incluído nesta produção. Circunstância que hoje possibilita estudos baseados em fontes que ecoam a uma distância de mais trezentos anos. Fig.1. Intervenção sobre mapas de George Marcgrave que retratam a Capitania de Pernambuco, integrando o livro de Gaspar Barléus (1637), com a marcação das localidades acima referidas.
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Graduanda em Arquitetura e Urbanismo da UFAL; bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem.
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FONTE: Arquivo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem
Esse material, buscado em arquivos nacionais e internacionais, tem alimentado o banco de imagens da pesquisa e permitido a sobreposição de mapas e vistas, trazendo resultados significativos para a história das cidades nordestinas. A pesquisa vale-se também de vistas aéreas, que são buscadas para além das disponibilizadas pelo Google Earth, que são contrastadas com outros materiais imagéticos. A todos estes, se acumula a produção continuada de novos mapas e desenhos gráficos pela equipe, requerendo um minucioso trabalho através de programas computacionais como CorelDraw, Adobe Illustrator, Adobe Photoshop, AutoCAD, GarageBand, Sony Vegas e Adobe Premiere. Cerca de 100 mil imagens compõem os arquivos do Grupo, o que fez com que se tornassem, eles mesmos, um objeto não só de organização, mas de investigação, tendo em vista a necessidade de operacionalização rumo à produção de conteúdos digitais e materiais voltados para divulgação científica do conhecimento. 402É nessa perspectiva que se apresenta este artigo, enquanto resultado de um estudo vinculado ao projeto financiado pelo CNPq intitulado Imagens em rede para estudos da paisagem, que tem dentre seus objetivos subsidiar a discussão acerca do desafio contemporâneo, no âmbito da pesquisa, de uniformização da imagem para uso documental.403
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SILVIA, M. Angélica da. et al. A tarefa de arquivar: Os desafios na organização dos materiais imagéticos do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, p. 01. 403 Com esse projeto de pesquisa, a equipe pretende dar suporte para a sua socialização considerando os trabalhos já consolidados do RELARQ, da qual o grupo já atua como parceiro juntamente com Programas de Pós-Graduação da UFMG e UFSC. Através de uma matriz de formatação documental, a Rede tem dentre seus objetivos a iniciativa inédita de construir um catálogo on-line que possa ser compartilhado por diversas instituições numa abrangência Latino-Americana, o que já vem sendo feito através da disponibilização do acervo do Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcelos da UFMG.
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ISSN 2358-4912 Um Estudo das Imagens em Penedo Para a realização dos estudos acerca dos registros imagéticos da cidade de Penedo foiconsiderado uma série de projetos de pesquisa desenvolvidos enquanto atividades do Grupo que geraram cerca de 5(cinco) milimagens reunidas e elaboradas durante 14 anos de investigações.O primeiro deles, que se apresentou sob o título de Estudos da Paisagem, financiado pelo CNPq (1999), teve como foco inicial a observação dos edifícios de caráter religioso que integravam o conjunto edificado do núcleo mais antigo da cidade. A idéia era a de compreender como as igrejas interferiram na composição do tecido urbano de origem colonial, estendendo a análise à configuração de seu arruado. O estudo acerca da relação entre edifícios e caminhos aos poucos foi suscitando questionamentos acerca do Forte Maurício de Nassau, construído durante a invasão holandesa ao Brasil, pois, a primeira capela da então Vila de São Francisco fora instalada dentro dos limites da fortificação, hoje inexistente. Dentre fotografias de igrejas e do arruado, vistas aéreas e infográficos, cerca de 100 imagens foram geradas nesse projeto, que registram o processo e o resultado de identificação do primeiro conjunto edificado de Penedo e de reconhecimento da gênese de seu desenho urbano. Fig. 2. Na sequência: infográfico realizado com base no mapa JohannesVingboons (1666); infográfico realizado com base no mosaico fotográfico da CODEVASF, indicando os caminhos direcionamentos semelhantes entre os séculos XVII e atuais, bem como a localização da Igreja Matriz (1) e da Igreja do Rosário (2); e foto da Igreja Matriz em 1999.
FONTE: Arquivo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem
Os resultados sobre a influência da fortificação sobre o traçado da cidade motivaram a realização de estudos acerca do tema do sistema defensivo das vilas e cidades de origem colonial e o embate entre a iconografia histórica e imagens atuais de Penedo indicou sinais do local onde estariaconstruído o Forte Maurício. Assim, em 2005, o Grupo de Pesquisa realizou trabalhosconjuntamente com o Laboratório de Arqueologia da UFPE, quando foi possível exercitar a interdisciplinaridade na tentativa de abordaralternânciasdas análises geoarqueológica e cartográfica, antiga e atual, na busca de uma reconstituição de uma paisagem. Durante a execução do projeto trabalhou-se com 3158 imagens, sendo elas, iconografia história, fotos aéreas, mapas e fotografias. Estas últimas somam um conjunto de cerca de 2000 são produzidas pelo Grupo. Estas, Por estarem também associadas a uma equipe de arqueologia, foram mais direcionadas para prospecção e restauração das edificações que se situam na antiga localização do forte com ênfase em seus materiais e detalhes sem abster-se dos arruados, das edificações religiosas e da natureza.Inseridoem alguns destes temas está a rocheira, onde não pôde deixar de captar olhares atentos de todas as câmeras por ser o local onde teria existido um dos baluartes do Forte Maurício, e ainda, por o rochedo margeando o rio ser um ponto que provavelmente se manteve inalterado ao longo dos séculos, o que amplia as chances de apreensão e averiguação de vestígios históricos.
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ISSN 2358-4912 Fig. 03: Na sequência: Rocheira vista do Rio São Francisco; Rocheira; Estudo de Prospecção
FONTE: Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem – FAU/UFAL, 2005
A intimidade com o lugar, construída com o desenvolvimento das investigações, fez o Grupo ampliar o olhar acerca da paisagem para além de seus aspectos materiais. Não apenas a dinâmica da cidade motivou essa ampliação, como também a própria aproximação com a iconografia. Mapas, vistas, desenhos gráficos, pinturas, quando examinados em detalhe, trazem à tona uma série de dados dos mais variados gênero: de revelações sobre espécies da flora e fauna às atividades relacionadas à tecnologia construtiva. Nos dias de hoje, ainda é possível encontrar na paisagem nordestina sinais de uma série de práticas que continuam vivas no quotidiano mostrando que o tempo presente é a soma de vários tempos. Neste aspecto, o Grupo de Pesquisa realizou vários projetos voltados ao Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, financiados pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nos quais foi possível averiguar a eficiência destas fontes. Em 2010 o iniciou-se a execução do levantamento de práticas relativas ao patrimônio imaterial de Penedo, tomando-se como eixo condutor as práticas e saberem vinculados ao Rio São Francisco, selecionando-se a pesca, a feira e as festividades religiosas. Fig.3: Na sequência: Festa de Bom Jesus dosNavegantes, festividade popular e religiosa realizada em Penedo-AL; Barracas da feira de rua; artesanato local representando o pescador
FONTE: Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem – FAU/UFAL, 2005.
Com esse material imagético coletado e produzido, integrantes do grupo atualmente colocam-se frente ao desafio de catalogá-lode maneira a contribuir para a socialização desse ganho notório de conhecimento cultural acerca do lugar. Para tanto, vem sendo utilizado o programa disponibilizado pela Rede Latino-Americana de Acervos de Arquitetura e Urbanismo (RELARQ) que permite implementar a organização arquivística, associando uma série de informações a cada imagem, tais como titulo, endereço, procedência, série, subsérie e temática além de permitir uma descrição detalhada dos elementos representados na mesma, facilitando sua posterior identificação no banco de dados.
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ISSN 2358-4912 Um Processo de Construção da Imagem Nesse estudo sobre o conjunto imagético construído pelo grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem acerca do núcleo de origem colonial da cidade de Penedo, o registro visual da cidade sofreu várias interferências de caráter operacional e subjetivo. No primeiro caso, pode-se citar os financiamentos recebidos para o desenvolvimento de determinadas abordagens de investigação, direcionando e justificando, assim, focos e abrangências da produção iconográfica. Assim como o progressivo incremento da tecnologia de produção imagética acessada pelo Grupo, a qual abrange desde programas computacionais até equipamentos de projeção, captação e armazenamento de imagem que obviamente influenciaram os processos e produtos de elaboração dos registros visuais. Se no inicio as fotografias realizadas com as máquinas analógicas, permitiam um progressivo acumular de imagens, hoje, com os recursos digitais, elas se produzem de forma acelerada, ao mesmo tempo em que flexibilizam as possibilidades de registro, permitindo sua pré-visualização. No âmbito da subjetividade, nesse processo empírico de investigação, um filtro, que inicialmente teria a função de identificar ruas e edifícios, foi revelando gestos, movimentos de coisas e pessoas, o que desestabilizou a ideia mais próxima do senso comum que vê a arquitetura enquanto matéria estática. Além disto, ampliou a noção de paisagem, mostrando, por exemplo, que as suas marcas nem sempre são tão visíveis a ponto de serem reconhecidas como memória urbana. Por vezes trata-se de um trecho de rua, de marcas na toponímia, ou uma vegetação que tem vencido o tempo, detalhes que apenas um estudo mais aprofundado revela o seu significado. Assim, o estudo desse percurso investigativo revelou que a importância das descobertas não está apenas em abordar o desaparecimento das marcas da memória urbana, mas, por vezes, desconhecimento das mesmas. O material produzido, pois, pelo Grupo retrata uma trajetória de pensamento. Durante esse tempo de estudos da paisagem, vários foram os olhares sobre as localidades. Olhares matizados pela subjetividade de pesquisadores em vários níveis de amadurecimento (BIC, PIBIC, mestrandos e doutorandos) que acompanharam o estado da arte sobre os principais temas motivadores do Grupo (iconografia, paisagem, história urbanística e patrimônio) e que, consequentemente, direcionaram o registro sobre eles. A própria paisagem de Penedo segue seus percursos, em seus ritmos, sugerindo, durante os últimos 15 anos de estudos, formas de serem observadas. Portanto, o que se pode notar, a partir da experiência de observação das imagens de Penedo, é que há um expressivo caráter documental nesse acervo imagético em termos quantitativos e, especialmente, tipológicos cujos trabalhos de organização e sistematização do banco de imagens em muitos contribuiriam para a construção de uma rede de disponibilização documental, considerando os registros visuais como paisagens planificadas. E, nesse jogo de percepção do tempo e do espaço, a própria paisagem de Penedo que teve seus tempos congelados pelo registro visual, configura-se como objeto de investigação, na medida em que tais documentos permitem o embate entre temporalidades.
Referências ALBUQUERQUE, Marcos. Et al. Reconhecimento arqueológico em Penedo. IPHAN, 2005. CASTRIOTA, L.B.Imagens do moderno: a preservação do acervo do Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos, 2005. CASTRIOTA, L.B.Tecnologia digital e acessibilidade: a Rede Latino-americana de Acervos de Arquitetura e Urbanismo, 2007. IPHAN.Manual do Inventário Nacional de Referências Culturais, 2000. MACHADO, R. V. O. Pernambuco no papel. Tese de doutorado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. MUNIZ, B. M. RELATÓRIO FINAL: TÍTULO DO PROJETO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM. PIBIC, 2001. MUNIZ, B. M. RELATÓRIO FINAL: A IGREJA E O FORTE: DIÁLOGOS ENTRE URBANISMO E ARQUITETURA NA CIDADE DE PENEDO. PIBIC, 2002. SILVIA, M. Angélica da. et al. O olhar holandês e o novo mundo. EDUFAL, 2011.
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CONFLITOS ENTRE TERRA E MAR: QUERELAS PELA POSSE DE LOCALIDADES PESQUEIRAS NOS SÉCULOS XVII E XVIII NA CAPITANIA DO RIO GRANDE Ana Lunara da Silva Morais404 A atividade da pesca esteve presente desde os primórdios da criação da capitania do Rio Grande. A atividade pode ser verificada no Auto de Repartição de Terras do Rio Grande, documento no qual se averiguou a doação e o uso de todas as sesmarias que haviam sido concedidas na capitania do Rio Grande entre 1600 a 1614.405 Das 186 datas de sesmaria doadas entre 1600 e 1614 na capitania, 18 apontavam a pesca como atividade. A quantidade de sesmarias referente à atividade pesqueira na primeira e na segunda década do seiscentos demonstra como a atividade era corriqueira e importante na capitania. Verificou-se que alguns indivíduos possuíam mais de uma sesmaria nas quais se realizavam pescarias, como João Lostão Navarro406, Domingos Martins, e José do Porto, o que pode indicar que tal atividade não fosse voltada apenas para a subsistência dos mesmos e de suas famílias, ou que se especializavam nesta atividade para o abastecimento de outras capitanias. João Lostão Navarro era possuidor de oito sesmarias na costa leste da capitania do Rio Grande concedidas entre 1601 e 1608, referente ao Auto de Repartição de Terras do Rio Grande. As pescarias de Navarro eram comercializadas com indivíduos de Pernambuco, que por vezes navegavam até seu porto para buscar os pescados, como consta no relato do indígena Caspar Paraoupaba, da capitania do Ceará, para o mercador holandês Kilian Van Resemlaer, em 1628.407 A atividade pesqueira na capitania do Rio Grande continuou durante o período de dominação holandesa (1631-1654). Segundo o viajante e cronista holandês Joan Nieuhof, na lagoa de Guaraíras, havia uma grande quantidade de peixes. Nieuhof afirmou que na cidade de Nova Amsterdam, correspondente a Natal, possuía poucos moradores, os quais viviam das pescarias, e da produção de farinha e tabaco. O pescado do Rio Grande, juntamente com a farinha teriam tornado-se a principal fonte de abastecimento para as praças holandesas na Paraíba e outras localidades durante os confrontos com portugueses.408 Acredita-se que um dos responsáveis pelas pescarias que abasteciam as praças holandesas foi João Lostão Navarro, pois no mapa de George Marcgrave da capitania do Rio Grande, elaborado em 1643, constam cinco casas referentes aos sítios de João Lostão Navarro, localizadas nas margens e na foz sul do rio Trairi, nas proximidades da atual cidade de Nísia Floresta, e distância cerca de 40 Km da cidade do Natal.409 A existência dos sítios de pesca no mapa de 1643 evidencia a continuidade da atividade pesqueira na capitania do Rio Grande, sobretudo, por parte de Navarro. Mesmo verificando-se a atividade pesqueira desde o início da colonização da capitania, é a partir da segunda metade do século XVII, que se conseguiu perceber por meio dos documentos disponíveis um volume maior de conflitos referente à atividade da pesca. Há correspondências diretas tanto de moradores como de autoridades da capitania com o Conselho Ultramarino sobre o assunto. Há registros do Senado da Câmara de Natal sobre a regulamentação da atividade pesqueira, como o imposto a ser cobrado das embarcações, redes, e regulamentações sobre a forma e o valor que o peixe deveria ser vendido. Também se encontrou as querelas referentes à prática de tais regulamentações e 404
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante da Rede de Laboratórios de Experimentação em História Social (UFRN, UFRJ, UnB) – RLEHS, e colaboradora da Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro. 405 Translado do Auto de Terras do Rio Grande. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGRN, n° 1 e 2, p. 5-131, 1909, v.7. 406 Era original da Baixa Navarra, território incorporado à França em 1589. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. Natal: Departamento estadual de Imprensa, 1997. p. 49-50. 407 GERRITSZ, Hessel. Jornaux et Nouvelles, etc. p. 172 Apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. p. 50. 408 NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1981. p. 86-89. 409 MARCGRAVE, George. Praefecturae de Paraiba Et Rio Grande. Amsterdam, 1662. Disponível em . Acessado em 30 de agosto de 2013.
132 ISSN 2358-4912 de disputa pela localidade onde a atividade pesqueira parece ter sido mais rentável na capitania do Rio Grande. Dessa forma, este artigo objetivou apresentar e analisar algumas querelas, as quais se considerou relevante não apenas para a compreensão da atividade na capitania, mas também para as formas de usufruto da terra na capitania. Desde 1679, há registro de possíveis discórdias entre moradores da capitania ou mesmo entre moradores e indivíduos residentes de outras capitanias que realizavam pescarias no Rio Grande. No dito ano, consta um termo de vereação no qual se relatou a queixa de moradores que acusaram algumas pessoas que estavam alojadas no rio das Guaraíras com redes que tapavam os rios e impediam que o peixe subisse para a lagoa de mesmo nome, e com isso impediam a pesca nesta última. Os oficiais da Câmara de Natal perante as queixas determinaram que quem cometesse tais acusações deveria ser multado e obrigado a pagar 6$000 réis de condenação, sendo dois mil para quem acusasse e quatro mil para as despesas do Senado da Câmara. Além disso, os mesmos oficiais ordenaram passar edital dando notícia a respeito.410 Na comarca de Alagoas do Sul, capitania de Pernambuco, também se verificou algumas disputas referentes às áreas pesqueiras. Desde 1655, havia sido proibida pelos oficiais da Câmara da dita comarca o uso de redes de pesca de malha fina, pois as mesmas prejudicariam a reprodução e passagem do peixe entre rios e lagoas/mar, sendo cobrada uma multa no valor de cem cruzados pela Câmara. 411 As querelas derivadas entre moradores (dos quais alguns se utilizavam das redes prejudicando outros pescadores; e alguns denunciavam aqueles que se utilizavam das redes) e oficiais sobre a proibição do uso das redes de pesca prolongaram-se entre meados do século XVII até meados do século XVIII. A lagoa de Guaraíras, cujo nome permanece até hoje, foi descrita desde os primeiros relatos sobre a capitania do Rio Grande, como no que foi elaborado por padres da Companhia de Jesus em 1607, os quais relataram que nas proximidades do rio Jacu, havia três lagoas que se destacavam por seu tamanho e por sua abundância de peixe: Guaraíras, Papeba, Papari.412 A lagoa de Guaraíras, segundo mapa de 1643, elaborado por George Marcgrave, desaguava em uma outra lagoa chamada Papeba, cujo despejo formava um rio, o Trairi, que desaguava no oceano Atlântico. A lagoa de Guaraíras por sua grande extensão, abundância em peixes e por sua localização privilegiada, na costa litorânea sul da capitania, parecia ser uma localidade muito frequentada para o exercício da pesca. Não foi possível identificar os nomes dos envolvidos nesta querela por meio da documentação disponível. Pode-se supor, entretanto, que o grande número de indivíduos que lá pescavam, fosse para a subsistência e/ou para a comercialização do peixe, possivelmente entraram em conflito ao perceber que outros sujeitos tentaram beneficiar-se da pesca, colocando as redes em um ponto estratégico, na passagem do rio para a lagoa, acumulando um grande número de peixes, e em contrapartida, impedindo a passagem dos peixes para a lagoa de Guaraíras, como consta na queixa, diminuindo a quantidade de pescado para os demais pescadores. Para a capitania de Pernambuco, é sabido que, em 1725, alguns indivíduos, reconhecidos como “poderosos da terra”, possivelmente ligados à açucarocracia413, foram responsáveis pelo envenenamento de alguns rios na dita capitania, prejudicando a pesca e o abastecimento da mesma.414 Acredita-se que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 30v. 01/10/1679. CUERVO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Pescaria e bem comum: pesca e poder local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (séculos XVII e XVIII). In: CAETANO, Antonio Filipe (Org.). Alagoas colonial: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012. 412 Relação das cousas do Rio Grande, do sítio e disposição da terra (1607) ARSI - Archivum Romanum Societatis Iesu. 15, p. 439-440. Apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tombos I, II e III. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 557-559. 413 A construção do status dos senhores de engenho foi analisada por. Segundo Evaldo Cabral de Mello, na segunda metade do século XVII, com as guerras de restauração, os senhores de engenho e lavradores construirão seu status, açucarocracia, articulando o discurso do nativismo pernambucano, argumentando as consecutivas conquistas da capitania: contra os índios no século XVI; e expulsão dos holandeses no século XVII. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: editora 34, 2003. p. 159. 414 CARTA do físico Dionísio de Amaral de Vasconcelos ao rei [D. João V] sobre o envenenamento dos rios feito pelos poderosos da terra, os prejuízos para a pesca e o abastecimento da capitania de Pernambuco. 5/09/1725. AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 39, D. 2977. 411
133 ISSN 2358-4912 este envenenamento esteja atrelado ainda aos vestígios políticos da Guerra dos Mascates, conflito político e econômico entre senhores de engenho e mercadores ocorrido entre 1710 e 1711.415 No início do século XVIII, o crescimento de Recife aspirava uma maior autonomia política, visto seu crescimento comercial, implicando na necessidade de criação de uma Câmara, visto que se encontrava sob a jurisdição de Olinda desde a Restauração (1654). Esta disputa política também estava associada à discórdia entre os senhores de engenhos e mercadores, devido à crise do açúcar na segunda metade do século XVII416, na qual os senhores de engenho efetuaram empréstimos junto aos mercadores, endividando-os. Assim, supõe-se que o envenenamento de rios na capitania de Pernambuco tenha sido uma tentativa dos representantes da açucarocracia em prejudicar os mercadores de Recife. Na capitania do Rio Grande verificou-se outras querelas pela posse de localidades pesqueiras. Entretanto, o único conflito referente à atividade pesqueira que foi relatado pela historiografia norterio-grandense417 trata-se do direito de uso de terras no litoral norte na capitania do Rio Grande, entre o Porto de Touros418 e a capitania do Ceará, no lugar chamado Salinas.419 Havia sido concedida uma sesmaria na localidade acima referida, equivalente a grande parte da costa norte da capitania do Rio Grande, a Francisco de Almeida Vena e aos seus cunhados e sobrinhos.420 Os indivíduos que receberam os títulos de sesmarias passaram a impedir que outros moradores realizassem pescarias ou recolhessem sal na terra que lhes foram concedidas. Possivelmente, os indivíduos prejudicados, aqueles que foram impedidos de continuar usufruindo da terra, recorreram à Câmara para que se tomasse uma solução. Nos termos de vereação de 4 de novembro de 1680, consta que os oficiais da Câmara acordaram em escrever ao Governador Geral da Bahia, Roque da Costa Barreto (1678-1682) para informar dos danos que a sesmaria causaria aos demais moradores.421 É sabido que os oficiais da Câmara do Natal, por meio de uma correspondência datada de 20 de novembro de 1680, solicitaram a revogação da sesmaria em questão ao Governador Geral, o qual teria respondido em 18 de fevereiro de 1681.422 Na resposta, o Governador Geral informou que tomaria uma resolução mediante uma petição dos mesmos oficiais da Câmara do Natal. O trâmite burocrático parece ter se resolvido, e o parecer do Governador Geral validou o pedido dos oficiais da Câmara, revogando a sesmaria concedida nas Salinas, liberando-a para a pesca e recolhimento de sal, tendo a Câmara de Natal, em termo de vereação de 1682, divulgado o edital de liberação das Salinas.423 Segundo o jurista Paolo Grossi, propriedade é, sobretudo, mentalidade.424 Para o autor, há diferentes modelos de propriedade, pois a mesma é relativa à mentalidade da sociedade de
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415
MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. p. 143-148. Ibid. p. 203. 417 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2° ed . Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984. p. 377; POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. p. 30-31; LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3° ed. EDUFRN: Natal, 2008. Coleção História Potiguar. p. 132. 418 O Porto de Touro, ou Toures, segundo os mapas dos holandeses George Marcgrave e Claes Jansz Visscher localizava-se entre o rio Pirangi e a atual praia de Cotovelo, cerca de 20 quilômetros ao sul da cidade do Natal. MARCGRAVE, George. Praefecturae de Paraiba Et Rio Grande. Amsterdam, 1662; VISSCHER, Claes Jansz. Het Noorder van Brasilien, dar in vertoont werden de voornaemfle zeehavenen, als Parayba, Phernambuco, Bahia de todos os Santos ende meer andere. Amsterdam, 1651. 419 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 35v. 04/11/1680. O lugar chamado Salinas localizava-se na costa norte da capitania do Rio Grande, cerca de 170 quilômetros da cidade do Natal. 420 Não se encontrou esta sesmaria no fundo de sesmarias presente no IHGRN. Acredita-se que a mesma tenha sido retirada dos livros originais devido a sua posterior invalidade. 421 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 35v. 04/11/1680. 422 Carta para os oficias da Câmara da capitania do Rio Grande sobre a data que se deu a Francisco de Almeida Vena. 18 de fevereiro de 1681. Documentos Históricos, códice 9, fls. 89. 423 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 43v. 03/03/1682. 424 Cabe apontar que a mentalidade referida não possui vinculações com a História das mentalidades originária na França na década de 1960, nem de suas variantes. A mentalidade referida trata-se de “mentalidade possessória”, expressão utilizada inicialmente pelo historiador Marc Bloch pensando na propriedade individual, moderna, como resultado histórico. O termo “mentalidade possessória” posteriormente foi utilizado pelo jurista Paolo Grossi. BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos século XVII e XVIII. São Paulo: EDUSC, 2001. GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 416
134 ISSN 2358-4912 determinado período, e das interpretações diferentes dos sujeitos desta mesma sociedade.425 Grossi nos atenta para a necessidade de compreender as ações de cada instituição e/ou indivíduo por meio de sua mentalidade, estando esta articulada ao seu contexto histórico, aos seus costumes e padrões morais, os quais norteariam a mentalidade possessória. Nesta perspectiva, na qual propriedade implica em diferentes mentalidades, pode-se perceber um conflito referente às diferentes mentalidades possessórias sobre o uso da terra das Salinas. Francisco de Almeida Vena, o qual possuía barcos e redes de pescarias426, juntamente com seus cunhados e sobrinhos, por meio da solicitação da sesmaria passaram a dominar a área e a impedir que demais moradores usufruíssem das terras para a pesca e para o recolhimento de sal. A mentalidade possessória da família de Francisco de Almeida Vena fundamentou-se pelo meio burocrático legislativo do Império português, o qual assegurava por meio da sesmaria o domínio útil das terras solicitadas. No entanto, esta mentalidade diferia-se dos demais moradores da região que costumeiramente realizavam há muitos anos pescarias e recolhiam sal, fundamentando-se, portanto, no costume o seu direito à terra. João Maia da Gama, Governador do Maranhão entre 1722 a 1728, em seus relatos sobre a capitania do Rio Grande, quando de sua passagem pela mesma no ano de 1729, destacou as muitas pescarias realizadas no litoral e apontou conflitos existentes pelas localidades pesqueiras, possivelmente referenciando-se a querela ocorrida na Salinas. Segundo o mesmo:
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Destas pescarias se tem senhoreado os sesmeiros, ou donos das terras a elas contiguas não consentindo que pessoa alguma use das tais redes nas praias que chamam suas sem lhe pagarem de arrendamento em cada verão ou ano 40 mil réis, 20, 16, ou 10, conforme a opinião dos interesses em que esta cada uma das ditas paragens ou pescarias, e como estas todas são na costa do mar, e rios que entram para dentro da terra parece não podem pertencer aos tais donatários, somente lhe poderia pertencer o lugar aonde se situa uma limitada casa de palha que se perde nas tais terras, e sítios que sô servem para aquele verão em que se pesca, as quais casas ficam na margem do mar, e lugar aonde chega a maré, quatro ou seis braças, pelo que querem muitos dos moradores que se não paguem as tais rendas das pescarias mas que sô sejam livres para todas as pessoas que puderem por redes por ser este o negocio mais frequentado daquela capitania e com que se socorre muita gente pobre, e que quando devam pagar renda, deve ser esta a fazenda real de Vossa Majestade por ser 427 senhor das praias e rio, e serem aqueles sítios realengos.
Gama apontou que havia indivíduos que monopolizavam o uso das terras propicias a pesca na capitania, e que cobravam arrendamentos das ditas terras, mesmo que delas se utilizassem pouquíssimas braças de terra para a construção de pequenas casas de palha que deveriam servir apenas de apoio durante as pescarias. Gama ainda destacou que muitos dos pescadores que necessitavam das terras realengas para a atividade pesqueira eram pobres, o que evidencia que a atividade era praticada para a subsistência e/ou para venda local, e não apenas para a venda para outras capitanias.428 Segundo Bicalho, a posse de terras litorâneas na cidade do Rio de Janeiro no setecentos também causou conflitos entre seus moradores, oficiais da Câmara, e autoridades régias. Bicalho apontou que a Câmara era responsável pela administração das terras pertencentes à mesma, ou seja, a área concelhia, que incluía os espaços públicos de uso comum: as ribeiras, as praias e os rossios. Entretanto, o provedor da Fazenda Real Francisco Cordovil de Serqueira e Mello, bem como o Governador da capitania do Rio de Janeiro, Luiz Vahia Monteiro, alegaram que os oficiais da Câmara haviam aumentado o seu domínio da terra concelhia, gerando um conflito pela jurisdição de algumas áreas marítimas no Rio de Janeiro.429
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GROSSI. Paolo. Historia da propriedade e outros ensaios. p. 30. Carta para os oficias da Câmara da capitania do Rio Grande sobre a data que se deu a Francisco de Almeida Vena. 18 de fevereiro de 1681. Documentos Históricos, códice 9, fls. 89. 427 GAMA, João Maia da. Um herói esquecido. República portuguesa Ministério dos colonos, 1944. Coleção pelo império N° 100. II. p. 103. 428 Ibid. 429 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 331. 426
135 ISSN 2358-4912 As terras litorâneas do Rio de Janeiro eram consideradas pela Câmara de uso comum a todos, visão esta corroborada pela ordem régia de 10 de dezembro de 1726, a qual proibiu a edificação em praias e o avanço delas em direção ao mar, por serem as terras consideradas de bem público.430 Entretanto, muitas das terras litorâneas do Rio de Janeiro eram consideradas propriedades de indivíduos que justificaram suas posses por meio de compra ou herança, sendo o Governador Luiz Vahia Monteiro convivente nestes casos devido ao fato de ter monopolizado as licitações e as repassado para quem achasse que merecesse, e, portanto, permitido que estes indivíduos passassem a deter o domínio de uso das praias, proibindo frequentemente o acesso de pescadores.431 Percebe-se, por meio dos casos explanados, que a Câmara possuía a preocupação de garantir as terras referentes ao bem público para o uso comunitário dos moradores. Cabe apontar que garantir as terras para os moradores que dela utilizavam-se, também significava o aumento da renda da Câmara, fosse pela cobrança de aforamentos, enfiteuses, laudêmios, dos dízimos, além de multas e outras atribuições. Assim, as posturas dos oficiais da Câmara não deve ser compreendida como ações livres de interesse. Além disso, manter muitos pescadores em áreas sob a jurisdição da Câmara favorecia o controle das atividades destes, o que poderia favorecer a alguns indivíduos da Câmara que estavam envolvidos com a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande, como era o caso de: Bento Ferreira Mouzinho, escrivão no Senado da Câmara de Natal entre 1718 e 1732, e possuidor de pescarias nas proximidades de Guaraíras;432 e de Antônio Lopes Lisboa, procurador da Câmara da cidade do Natal de 1675 a 1676, almotacé em 1676, escrivão de 1679 a 1688, e vereador de 1693 a 1697433, e possuidor de terras e pescarias no Pirangi.434 Na segunda década do setecentos, verificou-se um outro conflito pelo uso de terras onde a atividade pesqueira era propícia, na praia da Redinha, nas proximidades da cidade do Natal. Em agosto de 1715, Joana de Freitas, viúva do capitão Manuel Correia Pestana, solicitou ao rei D. João V, uma provisão para que capitães, cujos nomes não foram indicados pela viúva, do Rio Grande e seus sucessores não utilizassem suas terras para realizar pescarias.435 Segundo a viúva, a terra pertencia a seu falecido marido, e que este teria ofertado a terra há alguns capitães da capitania, para que realizassem pescarias por meio de terceiros. Alguns capitães aceitaram a tal oferta, mas, outros não, fazendo estes últimos que não aceitaram a oferta o pagamento pela pesca. A viúva solicitou ao rei Dom João V que tais usuários da terra, ou seja, os capitães e suas respectivas famílias, deixassem de pescar nas mesmas para seu sustento, permitindo a pesca apenas para aqueles indivíduos que comercializavam com Pernambuco.436 O interesse da viúva em assegurar suas posses na Redinha foi um esforço iniciado por seu falecido marido, Manuel Correa Pestana, poucos meses antes de sua morte, em abril de 1715. Nessa data, Manuel Pestana solicitou para si as terras da Redinha à Câmara de Natal, as quais foram demarcadas em 22 de julho de 1715, sendo meia légua em quadra, incluindo os sítios de pesca. Manuel Pestana justificou que há muitos anos habitava as ditas terras, realizando pescarias na mesma, e que também a possuía por herança de seu pai, o Sargento-mor Manuel da Silva Vieira437, o qual teria solicitado a dita V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Ibid. p. 331-333. Ibid. 432 Ver nota de rodapé número 31 sobre Bento Ferreira Mouzinho. 433 LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 434 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Naufrágios no litoral potiguar. Natal: Uruassu, 1988. p. 35 435 REQUERIMENTO de Joana de Freitas, viúva do capitão Manuel Correia Pestana, ao rei D. João V, pedindo provisão para que o capitão-mor do rio grande do norte e seus sucessores não se intrometam na pescaria que faz na sua propriedade na praia da redinha, 23/08/1715. AHU-RN, Papeis Avulsos, Cx. 01, D. 80. 436 Ibid. Acredita-se na possibilidade de haver um alvará ou ordem Régia que regulamente a obrigação das Capitanias do Norte em propiciar a pesca para o abastecimento da capitania de Pernambuco. Contudo, não se acredita em um beneficiamento da capitania de Pernambuco, visto que em 1689, os oficiais da Câmara acordaram que os moradores da Capitania pagariam 2$000 réis por cada rede de pesca utilizada, e os que não fossem, pagariam 5$000 réis, caso contrário pagaria a multa de 6$000 réis, o que evidencia um protecionismo a atividade pesqueira do Rio Grande até o ano de 1701, quando a mesma anexou-se à Pernambuco, havendo uma padronização dos impostos. IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 86. 02/06/1689. 437 Manuel da Silva Vieira foi Juiz Ordinário da Câmara da Cidade do Natal entre os anos de 1974 a 1679, e de 1694 a 1696. LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 431
136 ISSN 2358-4912 terra por meio de sesmaria em três de agosto de 1676, desde então pagando mil réis de foro anual à Câmara.438 Este caso exemplifica como as áreas propícias à pesca geraram conflito na capitania do Rio Grande, sobretudo, pelas diferentes mentalidades possessórias dos sujeitos envolvidos no conflito. Neste caso, o Capitão Manuel Correa Pestana e sua esposa Joana de Freitas estavam insatisfeitos com o fato de outros indivíduos realizarem pescarias em suas terras na praia da Redinha. Contudo, como os mesmos haviam afirmado anteriormente, foram eles próprios que permitiram que alguns capitães utilizassemse da dita terra. Embora seja sabido, que a terra na Redinha tenha sido “ofertada” por Manuel Pestana para capitães da capitania, não se pode verificar se esta oferta era referente ao arrendamento da terra, ou se era apenas um favor. Acredita-se na possibilidade do casal ter se beneficiado da terra disponibilizando-as para outros indivíduos em busca de uma possível troca de favores.439 Contudo, quando esta disponibilização da terra não mais era necessária ou mesmo não mais rendia os benefícios esperados, Manuel Correa Pestana tentou impedir o uso da mesma por outrem, bem como o fez sua esposa Joana de Freitas posteriormente. Na América portuguesa, conforme os povoados tornavam-se mais importantes erigiam-se vilas ou cidades, e a Coroa portuguesa instituía seus órgãos administrativos, as Câmaras, as quais recebiam um patrimônio, geralmente de uma légua em quadra, ou seja, 6,6 Km2, denominado área concelhia.440 As sesmarias concedidas dentro do concelho de uma Câmara, eram chamadas de sesmarias de “chão” ou urbana, e estavam subordinada à Câmara, devendo os moradores solicitarem a doação da terra, demarcarem e ainda pagarem o foro anual pelo uso da terra.441 Em algumas localidades, como apontam os estudos da historiadora Maria Fernanda Bicalho para a cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, a arrecadação do foro e a cobrança de laudêmio representavam as maiores fontes de recurso da Câmara, e também implicava em alguns conflitos.442 Para a capitania do Rio Grande, verificou-se querelas referente a posses de terras subordinadas à Câmara. Em um termo de vereação de dezembro de 1692, os oficiais da Câmara ordenaram a cobrança do foro das terras da jurisdição da Câmara443, bem como dos impostos referentes às pescarias, e que os mesmos fossem pagos até o último dia do ano, e quem não o fizesse teria seus bens penhorados. Ainda neste termo de vereação, os oficiais da Câmara acordaram notificar Baltazar Antunes de Aguiar, que apresentasse sua petição de aforamento que tinha de suas terras dentro do prazo de dois dias, caso contrário a Câmara arrendaria a terra a outros indivíduos que se interessassem.444 Ao que parece Baltazar Antunes de Aguiar apresentou sua petição à Câmara e continuou de posse da terra onde realizava pescarias, pois três anos depois desta solicitação da Câmara, o sesmeiro foi novamente chamado a atenção. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AHU-RN, Papeis Avulsos, Cx. 01, D. 80. As ligações existentes entre diferentes famílias da América portuguesa, visando à formação de uma clientela, de laços de amizades e de vínculos políticos ou familiares, que poderiam gerar benefícios para si, foi conceituada por Antônio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, como redes clientelares. Associado às redes, os autores também lançaram o conceito de economia do dom, que concerne à manutenção das relações políticas por meio das reciprocidades nas trocas de favores entre as redes estabelecidas. HESPANHA, Antônio Manuel. XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1993. v. 4. p. 340. 440 TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens: a secularização do uso, da forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009. p.394-395. 441 O pagamento dos foros anuais auxiliava nas receitas locais, sendo solicitado muitas vezes o aumento do termo das mesmas, para aumentar a arrecadação. ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. p. 151. 442 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império. p. 202. 443 A cidade de Natal foi fundada em 1599, e embora não se saiba ao certo o ano de criação da Câmara, acredita-se que a mesma tenha sido instituída logo em seguida da fundação de Natal, pois se verificou pelo Auto de Repartição de Terras do Rio Grande, o registro da concessão de uma terra feita pelo Capitão-mor Jerônimo de Albuquerque ao concelho ou concelhia em 1605, referente à sesmaria de número 76. Translado do Auto de Terras do Rio Grande. Revista do IHGRN, n° 1 e 2, p. 5-131, 1909, v.7 TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens. p. 394-396. 444 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 105-105v. 02/02/1692. 439
137 ISSN 2358-4912 Desta segunda vez, a Câmara notificou que o foro para as terras da costa litorânea da capitania, dentro da jurisdição da Câmara de Natal, deveriam pagar 2$000 réis, e que tais terras não deveriam ser arrendadas a terceiros, pois caso assim alguém o fizesse teria de pagar o aforamento por si e pelo arrendatário. Neste termo, os oficiais da Câmara notificaram a Baltazar Antunes de Aguiar, que por ter comprado a terra que habitava a Paulo da Costa Barros445, encontrava-se irregular perante a Câmara, pois este último não poderia ter vendido a terra visto que pertencia à Câmara. Mediante a situação, a Câmara negociou com Baltazar Antunes de Aguiar, o pagamento do foro de meia pataca anualmente para formalizar a posse da terra pelo último.446 Como demostrou-se, as áreas propicias para a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande foram alvo de disputa entre seus moradores e de autoridades da capitania, os quais por meios diferentes interessaram-se em garantir o seu acesso à terra, e por vezes proibir o usufruto das pescarias por outrem. Este breve ensaio sobre a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande atenta a detalhes que possibilitam compreender as ações de indivíduos moradores da capitania do Rio Grande em disputas por localidades onde a atividade pesqueira era propicia. O conhecimento destas querelas nos faz refletir sobre uma maior complexidade da história dos indivíduos moradores da capitania do Rio Grande, bem como na sua particularidade referente à cultura pesqueira. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th18th Century. 2007. fls 387. Tese (Doutorado em História) – Johns Hopkins University, Baltimore, 2007. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos século XVII e XVIII. São Paulo: EDUSC, 2001. CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2° ed . Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984. CUERVO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Pescaria e bem comum: pesca e poder local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (séculos XVII e XVIII). In: CAETANO, Antonio Filipe (Org.). Alagoas colonial: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012. GAMA, João Maia da. Um herói esquecido. República portuguesa Ministério dos colonos, 1944. Coleção pelo império N° 100. II. GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. HESPANHA, Antônio Manuel. XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1993. v. 4. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tombos I, II e III. São Paulo: Edições Loyola, 2004. LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3° ed. EDUFRN: Natal, 2008. Coleção História Potiguar. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. Natal: Departamento estadual de Imprensa, 1997. ______. Naufrágios no litoral potiguar. Natal: Uruassu, 1988. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: editora 34, 2003. 445
Não se encontrou nenhuma sesmaria de Paulo da Costa Barros na capitania do Rio Grande, apenas uma na capitania do Ceará, datada de 1681. Plataforma SILB. Referência: CE 0016. A Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro) é uma base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa no mundo atlântico. Acesso em 10 de out de 2013: disponível em: . 446 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 122-122v. 01/03/1695.
138 ISSN 2358-4912 NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1981. p. 86-89. POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens: a secularização do uso, da forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009.
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JOÃO LOURENÇO, O “PRÍNCIPE ENCOBERTO”, LIBERTADOR DOS CATIVOS. PROFETISMO, ESCRAVIDÃO E TRÂNSITOS CULTURAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (MINAS GERAIS, SÉC. XVIII) Ana Margarida Santos Pereira* Em meados do séc. XVIII, foi preso em Minas Gerais um homem branco, de origem portuguesa, acusado pela justiça secular de perturbar a ordem estabelecida, promovendo um levantamento de escravos no Serro do Frio. Posteriormente, foi denunciado à Inquisição e, depois de vários anos no cárcere, declarado como louco. A nossa comunicação segue a trajectória do estranho forasteiro que se apresentou como mendigo para, depois, revelar que era um príncipe com a missão de libertar os escravos do Brasil. O que profetizava? Como se explica a inquietação por ele causada? Qual o seu acolhimento junto da população de origem africana? Ao responder a estas questões, procuraremos mostrar que o caso por nós estudado desafia a ideia, geralmente aceite, de que o milenarismo não teria tido penetração entre os africanos e seus descendentes no Brasil, fornecendo novos dados para o estudo das relações interétnicas na América portuguesa. A prisão Por volta de 1742, chegou à Vila do Príncipe,447 na Comarca do Serro do Frio, em Minas Gerais, um homem branco que atendia pelo nome de António da Silva. Vestido de forma simples, “em trajes de mendicante”,448 e ostentando uma longa barba, que desde logo lhe valeu a alcunha de “O Barbas”, ocupava-se em fazer vias-sacras e ia de porta em porta a pedir aos habitantes que orassem pelas almas do Purgatório, não aceitando outra esmola senão a comida para o seu sustento diário. Durante algum tempo, viveu em casa de João Gonçalves, ferreiro, “aonde ensinava a ler algunns rapazes”. Essa atividade seria, porém, bruscamente interrompida pela prisão do forasteiro, ocorrida após a divulgação de notícias segundo as quais António da Silva iria encabeçar “hua soblevação de negros” que teria lugar na região, havendo já ali preparativos nesse sentido. A eminência de uma revolta de escravos preocupava, naturalmente, os proprietários locais, que teriam procurado neutralizar o perigo, exigindo a intervenção das autoridades para garantir a preservação dos interesses do grupo e a manutenção da ordem instituída. Na ação, foram presos António da Silva e Mariana da Assunção, preta de nação Xambá, escrava de Manuel Lopo Pereira, sob a qual recaía a acusação de ser sua cúmplice. A ordem de prisão foi expedida pelo ouvidor-geral da Comarca e, uma vez cumprida, deu-se início à audição de testemunhas, com interrogatórios a cargo de António Camelo Alcoforado, que então desempenhava as funções de juiz ordinário. A partir daí, a história, cujos contornos eram, à partida, curiosos, tomou um rumo inesperado, revelando pormenores que fazem dela um caso sem paralelo no Brasil colonial. Infelizmente, a devassa levada a cabo pela justiça civil não foi, até hoje, localizada mas, no decurso dos interrogatórios, António da Silva foi também acusado de heresia, dizendo-se que teria proferido “muitas palavras mal soantes, e contrarias á nossa santa Fe”. Uma tal acusação exigia que dela fosse notificado o Tribunal do Santo Ofício, sob cuja alçada recaíam os casos de heresia. Não havendo ali um comissário que pudesse receber a denúncia e encaminhá-la para Lisboa, deu-se conhecimento do caso à justiça eclesiástica que, na sequência, abriu um inquérito próprio para apuramento dos fatos. A audição de testemunhas – nove ao todo – teve lugar nos dias 19 e 20 de dezembro de 1744, em sessões conduzidas pelo padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos, vigário da vara no Serro do Frio, *
Pesquisa financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Portugal, por intermédio do Programa POCTI – Formar e Qualificar, Medida 1.1. A autora escreve segundo o padrão do Português Europeu. 447 A vila, criada em 1714, foi elevada à categoria de cidade em 1838, com a denominação de Serro, que ainda hoje mantém. 448 Exceto indicação em contrário, as citações aqui apresentadas foram colhidas em: ANTT, TSO, IL, Maços, n.º 58, doc. não numer., fl. 269-328v.
140 ISSN 2358-4912 com a assistência do padre João Caldeira de Mendonça, que procedeu ao registo dos depoimentos. As informações apuradas no âmbito do inquérito corroboraram a denúncia, patenteando, assim, a gravidade do caso. Dando cumprimento às disposições em vigor, o vigário da vara informou, portanto, os inquisidores, enviando-lhes o auto de testemunhas e uma carta, na qual informava ter contactado as autoridades civis para assegurar que os presos seriam mantidos atrás das grades até à chegada de notícias de Lisboa. Após a análise dos depoimentos, os inquisidores decidiram-se pela continuidade do caso, ordenando a realização de um novo inquérito para audição judicial das testemunhas, com o objetivo de estabelecer a veracidade dos factos e averiguar a capacidade do denunciado, ou seja, a sua sanidade mental e a existência de circunstâncias ou fatores que eventualmente pudessem toldar-lhe o entendimento. O padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos foi, uma vez mais, o responsável pelos interrogatórios, que tiveram lugar entre setembro e outubro de 1746; o padre Luís da Rocha Azevedo registou os depoimentos das testemunhas, agora em número de 15. A maioria delas pertencia à elite local: eram mineiros e proprietários de terras, alguns dos quais tinham contribuído, de forma direta, para a prisão de António da Silva. Além destes, foram ainda ouvidas Mariana da Assunção, a sua alegada cúmplice, e Clara, preta de nação Courá, escrava de António Ferreira da Silva. O inquérito terminou com o interrogatório do denunciado, que negou de forma veemente todas as acusações das quais era imputado; as suas explicações não seriam, porém, suficientes para persuadir o responsável pelas investigações que, antes pelo contrário, viu nelas a confirmação das suas suspeitas. Em carta enviada aos inquisidores, o padre Miguel Carvalho afirmava mesmo que António da Silva era “bastantemente sagaz e prespectivo”, o que lhe permitiria adaptar o discurso conforme o interlocutor, declarando-se, ele próprio, persuadido que “O Barbas” tinha “suas allucinações do Demonio”, em virtude das quais cometia os “absurdos” dos quais fora acusado. A decisão do Tribunal de Lisboa, dada a conhecer em 09 de março de 1753, ou seja, quase sete anos após a realização do inquérito judicial, não iria, porém, ao encontro da opinião expressa pelo padre Miguel Carvalho; ao invés, tomava como provado que o denunciado “padecia loucura”. Assim sendo, deveria ser imediatamente libertado, se porventura ainda estivesse preso, e os seus bens, confiscados por ordem do padre Miguel Carvalho, restituídos. O antigo vigário da vara, que o retivera no cárcere sem para isso ter ordem do Tribunal, foi, aliás, severamente repreendido e, além disso, recebeu ainda uma advertência formal dos inquisidores: se voltasse a proceder da mesma forma, não ficaria sem punição.449 No entanto, se hoje conhecemos a extraordinária figura de António da Silva e alguns aspectos da sua não menos extraordinária passagem por Minas Gerais, é principalmente graças aos dois autos de testemunhas que, na década de 1740, foram enviados para Lisboa pelo padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos.450 Vejamos, agora, as acusações das quais foi alvo para, assim, percebermos as razões V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Em resposta à carta enviada de Lisboa, o padre Miguel Carvalho justificou-se dizendo que agira como agira “tanto para que o juizo seccular nam entrasse em mais procedimentos como tambem para que o mesmo prezo, vendo sse na sua liberdade nam continuasse em mayores erros, entre [aqueles] povos rusticos”. Ainda assim, pedia humildemente perdão por ter excedido as suas competências, movimentando-se à margem das instruções do Tribunal. Sobre a atuação do Santo Ofício em defesa das suas prerrogativas, contra os abusos levados a cabo pelas autoridades eclesiásticas sediadas no Brasil, ver: PEREIRA, A. M. S. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas Capitanias do Sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. 1. ed. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006. P. 63-76. 450 Além dos dois autos por nós localizados na Torre do Tombo, existem ainda, no arquivo da Inquisição de Lisboa, outros documentos sobre o mesmo caso, também por nós identificados: em 27 de março de 1753 o Tribunal recebeu uma ordem emanada do Conselho Geral do Santo Ofício, em que se pedia aos inquisidores para informarem “logo” sobre o conteúdo de um requerimento enviado no ano anterior pelo denunciado, no qual dava conta das “gravissimas necessidades” que nos últimos sete anos padecera no cárcere, “por ser pessoa pobrissima, e que so vivia das esmolas que hos fieis lhe davão andando pedindo por diversas partes das Minas, antes da sua prisão, e nesta se [alimentava] ainda de esmolas, mas por ser a terra pouco populosa, e os moradores da mesma menos abundantes de charidade, e cabedaes; [faltavão] aquellas, e [perecia] quasi muitas vezes á fome o supplicante”. Às dificuldades de ordem material, somava-se ainda a sua convicção de não haver cometido qualquer falta merecedora de castigo por parte da Inquisição. Além disso, suspeitava que o Tribunal não fora informado da sua prisão: caso contrário, teria sido, entretanto, enviado para Lisboa, a fim de ser processado. Solicitava, portanto, que se indagasse e se, de facto, assim fosse, o mandassem soltar. A resposta dos
141 ISSN 2358-4912 que conduziram à sua prisão, elucidando esta questão, à partida, intrigante: como e por que motivos um homem tão piedoso como ele aparentava ser se tornou incômodo ao ponto de mobilizar uma parte da população local e as próprias autoridades, tanto civis como eclesiásticas, para garantirem a sua permanência no cárcere, onde ficaria encerrado, pelo menos, durante nove anos?
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
As acusações Os depoimentos das testemunhas ouvidas no decurso dos interrogatórios permitem dividir as culpas apresentadas contra António da Silva em dois grupos: o primeiro diz respeito às blasfémias e proposições heréticas que, alegadamente, teria proferido. Neste aspecto, o seu caso era semelhante a muitos outros, cujo conhecimento chegou até nós e dos quais existem registos para a época: os comentários jocosos de que eram alvo as pessoas da Santíssima Trindade, os santos ou a Igreja e os seus representantes, os insultos a eles dirigidos, as dúvidas em relação a questões de doutrina, formuladas em termos pouco ou nada convencionais, tudo isso dava conta de perplexidades comuns ao homem moderno, quer quanto ao papel da Igreja como intermediária entre o Homem e o divino, quer quanto ao Catolicismo, ele próprio, por muitos tido como insuficiente para responder aos seus anseios e apaziguar as inquietações geradas pelas mudanças do tempo.451 Os textos sagrados, cuja autoridade se mantivera até então intocável, perderam, a pouco e pouco, o seu estatuto, ao mesmo tempo que se assistia à afirmação do homem e das suas potencialidades. A difusão do livro e das práticas de leitura, a que então se assistia, promoveu igualmente a “apropriação inventiva de textos e símbolos considerados sagrados”, em busca de respostas que permitissem lidar com uma realidade, sob muitos aspectos, angustiante e que, apesar das conquistas alcançadas nos séculos anteriores, persistia em escapar ao controlo dos homens. Daí até à heresia seria, por vezes, só um pequeno passo.452 Algumas das afirmações cuja autoria foi atribuída a António da Silva ilustram, quanto a nós, de forma eloquente o que acaba de ser dito. Assim, por exemplo: questionava a oração do Pai Nosso, na passagem em que se diz “não nos deixeis cair em tentação”, perguntando “porque razam Deos Senhor Nosso sendo poderoso nos havia de deichar cahir”, e, a este propósito, teria mesmo chegado a dizer que Ele “não governava bem”, porque dera aos homens o livre-arbítrio e, com ele, a possibilidade de pecarem. Os aspectos exteriores da vivência religiosa eram-lhe especialmente detestáveis: sobre as relíquias dos santos, dizia que as de cá “não erão verdadeyras” e a frequência da igreja parecia-lhe dispensável, “porquanto tinha hum livro que bastava estar lendo por elle e postos de joelhos aquelle tempo, pouco mais, ou menos, que o sacerdote gastava no altar meditando, o que se podia fazer ao pê de hum pâo escondido e assim satisfazer ao preceito da missa”. Pior: no decurso do seu depoimento, Mariana da Assunção contou que se recusara a ter relações sexuais com ele por medo do Inferno e que, ao ouvir a sua justificação, António da Silva lhe dissera que “isso se não comfessava, e que não havia Inferno, e que as pessoas, quando morrião tornavão se a gerar nas mulheres, para tornar a nascer”. Noutra ocasião, disse que “Christo Senhor Nosso não hera o que salvava, mas sim o Padre Eterno”; mais tarde, já na prisão, dizia que “Deos não [hera] outra couza mais, do que hum homem, como qualquer dos outros homenns” e, agastado com a própria sorte, acrescentava que “não [havia] Deos verdadeyro, mas antes, que [hera] mentirozo, porquanto se [diziam], que [dava] a cada hua das pessoas hum anjo da goarda este havia de ser para o goardar de todo o mal, e como as não [goardava], que elle [hera] o que [tinha] a culpa, e [devia] ser o castigado, e não elle dito Antonio da Sylva”. Estas e outras afirmações de teor análogo, igualmente relatadas pelas testemunhas, eram naturalmente graves – umas menos, no caso das blasfémias; outras mais, no que se referia às proposições heréticas, que questionavam os próprios fundamentos sobre os quais assentava a doutrina cristã – e, como tal, passíveis de serem denunciadas à justiça eclesiástica ou até, mesmo, levadas ao conhecimento dos inquisidores. Num meio pequeno, em que todos se conheciam e as notícias inquisidores, com data de 29 de março, dava conta da decisão comunicada pelo despacho de dia 09 mas o Conselho Geral mandou que se repetisse de imediato a ordem de soltura. São estas as últimas notícias que temos de António da Silva. ANTT, TSO, IL, Ordens do Conselho Geral, liv. 157, fl. 102-106. 451 Cf. DELUMEAU, J. (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989; e MUCHEMBLED, R. Popular culture and elite culture in France: 1400-1750. 1. ed. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 1985. 452 VILLALTA, L. C. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado) – Departamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 1999. P. 416-456.
142 ISSN 2358-4912 circulavam de forma célere, é fácil supor que dariam lugar a rumores, provocando o escândalo geral da população, ainda mais tratando-se de um forasteiro e, por isso mesmo, duplamente suspeito. No entanto, dificilmente poderiam justificar que os poderes locais se mobilizassem para neutralizá-lo, mantendo-o longe dos olhares públicos e privado do convívio com os seus mais próximos durante vários anos. A reação das autoridades foi, antes de mais, determinada por outro tipo de acusações, relacionadas com os contactos mantidos por António da Silva com alguns elementos de origem africana, designadamente escravos, e a sua atuação junto deste segmento da população. Isso mesmo foi confirmado por algumas testemunhas, como Sebastião Lopes Afonso, natural de Fiães do Rio, no termo de Montalegre, estalajadeiro, o qual fora uma das pessoas encarregues de cumprir a ordem emitida pelo ouvidor-geral da comarca e, como tal, participara na captura. A decisão de mandar prender “O Barbas”, garantia, fora determinada pelo fato de haver na vila “hua grande revoluçam entre os moradores della por respeito de se dizer que [...] tinha feito hum ajuntamento de negros para dar de repente [nela]”. A originalidade do caso reside precisamente nos destinatários eleitos pelo protagonista para alvo do seu discurso: a população negra e, em particular, os escravos. O teor das suas propostas aproxima-o de outras figuras carismáticas que irromperam na mesma época em Portugal e no Brasil, onde há registo de surtos messiânico-milenaristas até aos nossos dias, mas o facto de dirigirse especificamente à população de origem africana conferiu às referidas propostas um carácter único, fazendo deste um caso impar para o período colonial brasileiro.453 As declarações produzidas por Mariana da Assunção, a sua alegada cúmplice; Alexandre Correia, preto crioulo, 31 anos, escravo de João Cardoso da Silva, em cuja loja trabalhava como alfaiate; Manuel Mendes Raso, mineiro e proprietário de roças, natural de Macieira de Cambra; e António Pires Carneiro, que vivia da sua roça, genro do anterior, permitem reconstituir, nos seus traços gerais, o discurso de António da Silva e o projecto místico, de caráter messiânico, cuja concretização o teria guiado até ali. Os elementos comuns a este tipo de narrativa encontram-se, todos eles, presentes: um líder, cuja identidade permanecia envolta em incertezas; uma missão, transmitida diretamente pela divindade, que tinha, em última análise, como objetivo reformar a ordem vigente, instituindo uma sociedade mais justa, em que a dicotomia senhores-escravos seria definitivamente abolida; uma mensagem de esperança, especificamente dirigida aos mais despossuídos e, por isso, também mais receptivos a esse tipo de discurso; e um meio para alcançar os objetivos propostos. Apresentando-se como um líder dotado de virtudes carismáticas, em comunicação direta com o divino, António da Silva atraiu até si diversos seguidores, reunindo em pouco tempo à sua volta um grupo mais ou menos numeroso formado, na sua quase totalidade, por escravos. Alguns destes relataram ter tido visões em que a mãe da Virgem ou uma criança identificada com sendo o Menino Jesus lhes pediam para transmitir uma mensagem ao “pobre das barbas”, a quem deveriam dizer que “já era tempo”, indícios estes que revelariam quer a autoridade do forasteiro, quer a natureza transcendente da sua missão. E se dúvidas houvesse, António Carimá, preto forro, adivinhador, encarregou-se de desfazê-las, declarando que António da Silva “era princepe e que havia sahir [daquela] terra com coroa, e que isso mesmo significavão huas estrellas que apparecião na madrugada com rabos e brassos”. Embora reclamasse para si o papel de profeta, dizendo-se imbuído de funções sobrenaturais, António da Silva procurava também identificar-se com aqueles a quem se dirigia, captando, assim, as suas simpatias: em tom de segredo, dizia-lhes que era filho natural de D. João V e que este quisera nomeá-lo para lhe suceder, “porem que o princepe Dom Jozeph e seus inimigos o querião matar, por cuja cauza se abzentara disfarsado havia quatro annos mandado por Deos e seus anjos”. Fruto de relação com uma mulher de baixa categoria, perseguido pelo próprio irmão – o herdeiro oficial da Coroa – e obrigado a assumir uma identidade falsa para sobreviver, movia-se pois, tal como os seus interlocutores, nas franjas da sociedade, vendo-se ainda, como muitos deles, atirado para os confins do território brasileiro. O seu esforço de identificação com os cativos levá-lo-ia, de resto, mais longe, porque, além de dizer que conversava na igreja com uma imagem de Nossa Senhora da Purificação, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Ver HERMANN, J. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; e QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. 1. ed. São Paulo: Dominus, 1965.
143 ISSN 2358-4912 pertencente a uma irmandade de pardos, chegou a apresentar-se como “João Lourenço Negro”, asseverando ser esse o seu nome verdadeiro. Para capitalizar a seu favor o descontentamento dos escravos, António da Silva/João Lourenço criou de si uma imagem austera e despojada. Apesar de ser, como dizia, um príncipe, vivia das esmolas que lhe davam, aceitando apenas o estritamente necessário para o seu sustento, não abusava do álcool e nem sequer consta que tivesse amantes.454 A sua conduta era, assim, em tudo distinta da que se observava em muitos colonos, incluindo os senhores, frequentemente censurados, pela Igreja e não só, por constituírem um mau exemplo para os seus escravos. O carisma pessoal do forasteiro e o apelo irresistível da sua mensagem teriam eliminado qualquer desconfiança que esses escravos pudessem sentir e até, mesmo, o seu próprio medo, congregando momentaneamente naquela figura de longas barbas as aspirações de um grupo para quem a liberdade era, em muitos casos, apenas um sonho. No entanto, o modo como tudo deveria acontecer parecia um tanto ou quanto equívoco. Senão, vejamos: numa reunião que teve lugar na roça de Manuel Lobo Pereira, em que estiveram presentes diversos escravos, António da Silva revelou-lhes solenemente a sua identidade, anunciando ter sido enviado por Deus e pelo rei, seu pai, “a restaurar os pretos e mulatos dos captiveyros e tira llos do poder de seus senhores para hir com elles restaurar a Caza Sancta”. Inquirido sobre como o faria, respondeu que levava consigo um papel para ser afixado à porta da igreja, “e que depois de publicado, como elle vinha mandado do Padre Eterno e de el rey que logo todos os senhores lhe havia (sic) entregar seus escravos”.455 No entanto, as evidências indicam que a estratégia do “Príncipe Encoberto” era mais complexa do que davam a entender as suas palavras, passando mesmo pela revolta armada: Mariana da Assunção declarou perante o vigário da vara que “vindo ella testemunha de caza de seu senhor para a igreja a houvir missa emcontrou no Morro na Forca, dez ou honze negros com alguas armas, e preguntando lhe (sic) ella testemunha que ajuntamento era aquelle (...) lhe dicerão os ditos negros, que o pobre das barbas que estava na villa era filho do nosso rey, e que vinha mandado por Deos a esta terra para se levantar com os pretos contra os brancos, e ficarem forros os dittos pretos, e irem pela gentilidade pregando e levantando igrejas restaurar a Caza Sancta e descobrir as prophecias que estavam incubertas”. Manuel Mendes Raso ouviu-lhe dizer que “no sitio delle mesmo testemunha era o campo de Jozapha e que todos brancos e negros sedo havião de ser todos huns, e que não havia de haver captivos”; dizia também que naquele mesmo lugar estava a cadeira do Padre Eterno e que a lenha que lá se via era para atear o fogo “por honde todos havião passar”.456 As dúvidas aparentemente manifestadas por diversos escravos em relação ao sucesso da iniciativa e o receio do que pudesse suceder-lhes, em caso de fracasso; a intensificação dos rumores, aliás confirmados por um dos que tinham assistido à reunião a que atrás fizemos referência; e o nervosismo dos proprietários perante a eminência de uma revolta, acabariam, no entanto, por frustrar os planos do “príncipe” e “profeta” que, sem dificuldade, foi preso e, durante vários anos, permaneceu a braços com a Justiça. Ironicamente, os escravos a quem prometera a liberdade foram, depois, os mesmos que o incriminaram, para se livrarem eles próprios do castigo. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
O protagonista Quando foi interrogado pelo padre Miguel Carvalho, o prisioneiro identificou-se como António da Silva, filho legítimo de Ana Maria e de Manuel da Silva, dois “pobres de ganha vida” que moravam em Santo António do Tojal, nos arrabaldes de Lisboa, onde, segundo afirmava, nascera e fora batizado. 454
Manuel da Silveira Camacho, natural de São Roque do Pico, nos Açores, cirurgião, declarou, ele próprio, que “em algum tempo tivera sua emclinação ao dito Antonio da Sylva, por ver, que este era devoto das almas, e andava com hum timão de baeta sobre as carnes, sem querer acceitar esmolas de ouro, nem roupas, nem outra couza algua que varias pessoas lhe offerecião”. 455 Este papel seria a “bula” encontrada por Manuel Lobo Pereira na posse da sua escrava e pelo mesmo entregue ao padre Miguel Carvalho. Nela, “João Lourenço Principe Emcuberto” anunciava, entre outras coisas, que viajara para o Brasil com o intuito de “todo o povo pàrdo, indios, e negros, a [si] juntar sem nimguem os poder cativar, para todo o mourismo, neste tempo desbaratar, e os lugàres santos a portuguezes christàos entregar”. 456 FOUILLOX, D.; et. al. Dicionário cultural da Bíblia. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996. P. 152: “Significando Josafat «Deus julga», o nome simbólico de Vale de Josafat designa o lugar imaginário onde Deus exerce o poder de julgar os povos”, ou seja, é o cenário onde terá lugar o Juízo Final.
144 ISSN 2358-4912 Ainda pequeno, fugira de casa dos pais, dirigindo-se para a capital, “aonde asistio em varias cazas servindo a quem lhe dava algua couza”, e, depois, como aguadeiro. Mais tarde, insatisfeito com a sua própria sorte, resolveu embarcar para a América, empregando-se na galera Santo António e Almas, o que lhe permitira custear a viagem. Esteve no Rio de Janeiro mas, a certa altura, “achou huns homens de caminho com quem se aranchou, e passou com elles para as Minas”. Aí chegado, passou a mendigar o seu sustento de porta em porta, primeiro na comarca do Rio das Mortes e, depois, no Serro do Frio, onde acabaria por ser preso. Seria esta a sua verdadeira história? Quem era, afinal, o “profeta” das Gerais? Provavelmente, nunca saberemos. Na Vila do Príncipe, as opiniões dividiam-se: uns tinham-no como louco, relatando episódios que atestariam a sua falta de juízo, mas outros havia para quem o misterioso forasteiro era, acima de tudo, dissimulado e também muito sagaz, numa palavra, um homem “velhaco”. O padre Miguel Carvalho estava convencido que teria tido uma “criacam muito diverssa” daquela a que no seu depoimento fazia menção, outros asseguravam que tivera algum tipo de instrução formal e outros ainda desconfiavam que era ou já fora membro da Igreja. Exactamente no mesmo ano em que António da Silva foi preso no Brasil, morria em Lisboa Pedro de Rates Henequim, condenado à fogueira por ter pretendido coroar o infante D. Manuel (irmão de D. João V) como imperador da América meridional, onde seria erigido o Quinto Império do mundo, separado de Portugal.457 Porém, ao contrário deste, cujas propostas eram inspiradas nos ensinamentos do padre António Vieira, o “profeta” do Serro do Frio não aludiu em nenhuma ocasião ao Quinto Império mas apenas à possibilidade de vir a haver dois reis, um em Portugal e o outro nas Minas. Eco distante das propostas de Henequim? Frutos, ambas, de um ambiente cultural específico, em que à conceção linear da História, característica do mundo judaico-cristão, poderíamos opor uma concepção cíclica, mais próxima da escatologia indígena? Na verdade, ao prometer a redenção terrena, António da Silva aproximava-se também de Vieira e, por seu intermédio, do próprio pensamento judaico. A intenção de combater os “infiéis” e reconquistar a Terra Santa, que ficaria sob o domínio português, são, aliás, outros tantos indícios que remetem para o autor da Clavis Prophetarum, sugerindo uma vez mais que o “Príncipe Encoberto” poderia ser, na verdade, um jesuíta heterodoxo ou, pelo menos, alguém cuja educação tivera lugar num colégio da Companhia. Seja como for, o que parece não oferecer dúvidas é que António da Silva foi, antes de mais, um homem de fronteira, cuja trajetória desafiou os limites da época, pondo em causa algumas das suas dicotomias – colonizador/colonizado, branco/negro, livre/escravo, cultura letrada/cultura popular, ortodoxia/heterodoxia, sanidade/loucura, etc. – e, com elas, os princípios sobre os quais assentava, em grande medida, a sociedade colonial. O seu projeto religioso não excluía, aliás, a concretização de objetivos de natureza política, nos quais podemos identificar a existência de interesses locais, que se opunham aos da metrópole. Um ser múltiplo e contraditório. Ou seja, um homem em sintonia com o seu tempo. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências DELUMEAU, J. (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989. FOUILLOX, D.; et. al. Dicionário cultural da Bíblia. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996. GOMES, P. F. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (16801744). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. HERMANN, J. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MUCHEMBLED, R. Popular culture and elite culture in France: 1400-1750. 1. ed. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 1985. PEREIRA, A. M. S. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas capitanias do sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. 1. ed. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006. QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. 1. ed. São Paulo: Dominus, 1965. 457
GOMES, P. F. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; e ROMEIRO, A. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
145 ISSN 2358-4912 ROMEIRO, A. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. VILLALTA, L. C. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado) – Departamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 1999.
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A FAMÍLIA ESCRAVA EM PEQUENAS UNIDADES PRODUTIVAS: DIFERENTES SIGNIFICADOS E ESTRATÉGIAS PARA SENHORES E CATIVOS – BORDA DO CAMPO – MINAS GERAIS- SÉCULO XVIII E XIX Ana Paula Dutra Bôscaro∗ Introdução O presente trabalho apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa ainda em desenvolvimento, cujo principal objetivo consiste na compreensão da presença, importância e significado da família escrava nos pequenos plantéis do Alto do Termo da Borda do Campo, Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais. Esta região fazia parte da fronteira dos grandes núcleos mineradores do século XVIII, uma área periférica, composta por pequenas propriedades, com atividades voltadas inicialmente para a mineração associadas às atividades vinculadas ao abastecimento interno. Na área mais alta do Termo da Borda do Campo, região próxima a Barbacena, estava localizado o Alto do Termo da Borda do Campo, uma localidade composta por seis povoados, Nossa Senhora da Conceição do Ibitipoca, Santa Rita do Ibitipoca, Ribeirão de Alberto Dias, Ibertioga, Santana do Garambéu e São Domingos da Bocaina. Esta localidade caracterizava-se por ser mais afastada dos grandes centros de revenda de produtos locais, com terras menos férteis e presença de serras íngremes, que acabavam por dificultar a fixação de agrupamentos humanos no local. 458 Nossa pesquisa centra-se, portanto, neste espaço composto por pequenas roças, com predomínio daquelas propriedades sem nenhum ou com até 3 cativos em sua composição social, com ausência de um espaço político e inicialmente caracterizado pela baixa demografia. Embora o Alto do Termo da Borda do Campo fosse constituído, primordialmente, por pequenas propriedades, vale ressaltar que neste cenário de extrema miséria, houve também espaço para o estabelecimento de grandes propriedades e de homens e mulheres mais abastados. 459 Todavia, como o intuito desta pesquisa consiste na compreensão da presença, importância e significado das famílias cativas em pequenas propriedades, selecionamos como objeto de estudo aqueles domicílios nos quais foram verificados a presença de até 3 mancípios. Desta forma, além de nos possibilitar perceber de que forma estavam estabelecidas estas pequenas propriedades na referida localidade, na primeira metade do século XIX, a análise da Lista Nominativa para o ano de 1831, permitiu também levantar dados sobre a origem, sexo, idade e estado civil dos cativos que compunham as escravarias dos seis povoados, informações que muito contribuíram para a compreensão do perfil das famílias escravas encontradas. Buscamos demonstrar o significado e a importância que a família assumiu para os mancípios presentes no local, bem como entender se estas foram usadas como uma estratégia de manutenção, sobrevivência e ascensão destes domicílios e proprietários. O estudo inicial destas pequenas escravarias nos permitiu deduzir quais as estratégias adotadas por estes senhores e demonstrar também como se dava a reposição da mão-de-obra cativa nestas pequenas propriedades. A composição social e a reposição da mão-de-obra cativa nas pequenas escravarias do Alto do Termo da Borda do Campo Através da Lista Nominativa para o ano de 1831, percebemos que a presença de cativos africanos foi bastante significativa na localidade. Foram avaliados 114 fogos e constatado um total de 213 cativos. Destes mancípios, 100 foram arrolados como africanos, 96 como crioulos, 11 listados como ∗
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – MG. OLIVEIRA, M. R. Avô imigrante, pai lavrador, neto cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p. 625-644, 2011. 459 Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 458
147 ISSN 2358-4912 pardos e 6 como mestiços. Os africanos representaram neste contexto, 47% da população mancípia presente nos seis povoados por nós analisados, um número bastante expressivo para uma localidade extremamente periférica, com predomínio dos domicílios sem nenhum ou até três cativos, e habitada primordialmente por pequenos lavradores livres e pobres. No que se refere ao sexo destes cativos, em relação aos mancípios africanos, constatamos a predominância do sexo masculino com 70 indivíduos homens e apenas 30 mulheres. Já os crioulos apresentaram um maior equilíbrio sexual, perfazendo um total de 46 homens e 50 mulheres. Dentre os 11 escravos designados como pardos, 8 eram homens e 3 eram mulheres, e no que concerne aos mestiços, 4 eram mulheres e 2 eram homens. Os dados por nós obtidos corroboram com as pesquisas de José Flávio Motta, Clotilde Paiva e Tarcísio Botelho, ao constatarem que as razões de masculinidade entre escravos oriundos da África eram recorrentes, uma vez que havia uma nítida preferencia pela importação de indivíduos do sexo masculino, mais aptos ao trabalho que mulheres e crianças. No que concerne ao maior equilíbrio sexual encontrado para os cativos nativos, estes autores afirmaram ser esta a indicação primordial de que a reprodução natural provavelmente ocorrera nestas pequenas propriedades. 460 Os dados referentes à faixa etária e número de crianças escravas presentes na localidade confirmam os resultados acima expostos. Por meio da lista de 1831 foi-nos possível perceber que a maior parte dos mancípios nascidos no Brasil enquadrava-se na faixa etária de 11 á 20 anos. Já a os cativos africanos, em sua maioria, apresentaram idades variáveis entre 21 e 49 anos, ou seja, 63% dos africanos que compunham as pequenas escravaria do Alto do Termo Da Borda do Campo encontrava-se em idade produtiva, uma vez que esta idade poderia variar entre os 15 e 44 anos. Estes escravos em idade produtiva eram considerados mais aptos ao trabalho do que africanos idosos, mulheres e crianças, possuindo consequentemente, um preço aquisitivo mais elevado no mercado. Desta forma, como afirmou Marcia Mendes Motta, a sua posse por parte da população mais pobre era muito precária, restando a estes pequenos proprietários a compra de mancípios africanos em idade mais avançada, bem como de mulheres e crianças, por serem escravos de preços mais acessíveis.
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Todavia, os dados por nós obtidos nos possibilitou encontrar resultados diferentes dos supracitados, uma vez que foi computado um maior percentual de africanos homens na faixa etária de 21 á 49 anos de idade. No que concerne a presença de crianças escravas na localidade (aqui classificadas como aqueles cativos com até 10 anos de idade), foi-nos possível constatar que estes pequenos proprietários não pareciam investir na compra de crianças africanas, pois dos 27 cativos inocentes presentes na localidade, apenas 4 foram designados como africanos, 18 como crioulos, 4 como pardos e 1 como mestiço, ou seja, 85,2% das crianças presentes nos seis povoados por nós analisados eram nativas do Brasil. O pequeno número de crianças africanas demonstra que estes indivíduos buscavam aplicar seus investimentos, principalmente, na compra de africanos homens em idade produtiva, e não na aquisição de crianças, mulheres e idosos por serem cativos de menor valor monetário. A significativa presença de crianças nascidas na localidade, até a idade de 10 anos, revelaram que a reprodução natural pode ter sido utilizada como mecanismo de reposição de parte da força de trabalho, ainda que encontremos parcela majoritária de africanos nas faixas etárias produtivas, indicando também uma provável recorrência ao tráfico. Desta forma, podemos inferir que a reposição do corpo mancípio nas pequenas escravarias do Alto do Termo da Borda do Campo, na primeira metade do século XIX, se deu por duas formas distintas: através da reprodução natural dos escravos e pela aquisição de cativos via tráfico, o que nos permitiu comprovar que o acesso ao tráfico de escravos foi uma possibilidade viável tanto para os grandes, quanto para certa parcela dos pequenos produtores locais. 460
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAFESP. Annablume, 1999; PAIVA, Clotilde Andrade & BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e espaço no século XIX mineiro: algumas evidências de dinâmicas diferenciadas. In: Anais do VII Seminário Sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995. 461 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários escravistas em uma região policultora (1808-1888). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1989.
148 ISSN 2358-4912 As famílias cativas em pequenas propriedades: significado e estratégia para senhores e cativos
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A análise da composição social das pequenas escravarias por nós analisadas permitiu-nos perceber, que a reposição da mão-de-obra cativa no Alto do Termo da Borda do Campo se deu tanto por meio da reprodução natural, quanto pelo acesso destes chefes de domicílios ao tráfico de escravos, demonstrando desta forma, que estas duas possibilidades podem não ter sido excludentes, mas sim complementares. Para Manolo Florentino e José Roberto Góes, o tráfico de escravos, e consequentemente a constante chegada de novos africanos nos plantéis, teria provocado muito mais uma dissensão do que a união dos mesmos, resultando não só na predominância de casamentos endogâmicos, como também no isolamento destes africanos recém-chegados. Outra característica proveniente do tráfico de escravos era o elevado índice de masculinidade entre os africanos adquiridos no mercado, fator que acabava por dificultar as uniões, uma vez que o percentual de mulheres africanas era sempre muito inferior ao dos homens.462 Sabe-se hoje que o tráfico de escravos, por mais que pudesse interferir na união dos mancípios, não regulava a formação de famílias cativas.463 Todavia, grande parte dos trabalhos que se dedicam a estudar a constituição de famílias escravas tende a analisar as grandes plantations exportadoras, uma vez que estas dispunham de maiores escravarias, havendo, portanto, uma chance mais elevada de se encontrar casais cativos.464 A Lista Nominativa de 1831 nos permitiu demonstrar que embora as famílias cativas fossem mais representativas nas médias e grandes propriedades, não deixaram, no entanto, de estarem presentes também nos pequenos plantéis. Assim, dos 213 escravos analisados, 170 foram designados como solteiros, 18 como casados, 24 intitulados como “sem informação”, e apenas 1 como listado como viúvo. Vale destacar, contudo, que os números de escravos casados e solteiros presentes na região, não podem ser entendidos como uma representação completamente fidedigna da realidade, uma vez que esbarram nas limitações impostas pelas fontes. Embora muitos senhores incentivassem as uniões entre seus cativos, pouquíssimas eram oficialmente sacramentadas pela Igreja Católica. Segundo Sheila de Castro Faria, no século XIX os constantes entraves burocráticos à realização dos matrimônios entre mancípios levaram a uma perda de interesse dos escravos pelas formas católicas de união matrimonial.465 Os trâmites para a realização de casamentos de escravos eram os mesmos da população livre, sendo necessária a apresentação de alguns documentos, testemunhas e também a realização de alguns rituais, exigências que acabavam por dificultar, e muito, o acesso dos cativos ao matrimônio legal.466 No entanto, mesmo quando as uniões matrimoniais nos moldes cristãos não se tornavam efetivas, os escravos buscavam constantemente outros meios para formulação de laços familiares, como por exemplo, a realização de uniões consensuais.467 Este parece ter sido o caso dos cativos que compunham a reduzida escravaria de Tomás da Silva Braga, proprietário casado, de 44 anos, residente no povoado de Nossa Senhora da Conceição do Ibitipoca. Nesta pequena propriedade residia o crioulo Miguel de 49 anos, intitulado como solteiro, a
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FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 463 MACHADO, Cacilda ; FLORENTINO, M. G. Famílias e Mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de afastamento do mercado de cativos (Século XIX). Afro-Asia (UFBA), Salvador, n.24, 2000. 464 Neste sentido ver: SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 465 CASTRO, Faria, Sheila de. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 466 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 467 SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
149 ISSN 2358-4912 africana Joana de 27, também listada como solteira, e a pequena Delfina, crioula de 2 anos, referenciada como “sem informação”.468 Situação semelhante pôde ser observada também no domicílio de José Vital Neves, proprietário casado, de 40 anos, residente no mesmo povoado. Este pequeno proprietário tinha posse sobre o africano João de 18 anos e sobre a crioula Inocência de 22 anos, ambos intitulados como solteiros. Fazia parte da composição de sua reduzida escravaria, também o inocente Manoel, crioulo de 1 ano de idade, designado como “sem informação”.469 Constatamos assim, que o maior problema na análise da Lista Nominativa, bem como na maior parte dos documentos que buscam entender e reconstruir os laços familiares que foram estabelecidos pelos escravos, tanto crioulos quanto africanos, reside no fato de que o estado conjugal destes cativos era feito levando-se em consideração única e exclusivamente o reconhecimento das uniões perante a Igreja. Todavia, cabe ressaltar que estas uniões consensuais, embora não sancionadas legalmente pela Igreja Católica, menos ainda expostas nas fontes documentais da época, podiam ser igualmente estáveis e duradouras. Ao contabilizarmos separadamente o estado civil dos 96 crioulos, 100 africanos, 11 pardos e 6 mestiços, nos deparamos com um total de 15 africanos designados como casados, e apenas 3 crioulos com o mesmo estado civil. Nenhum dos pardos ou mestiços avaliados apresentou o estado civil de casado, sendo todos eles designados como solteiros ou “sem informação”. A tabela abaixo nos permite uma melhor visualização dos números acima expostos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Cativos Casados Solteiros Sem informação Viúvos Total
Tabela 1: Escravos: Estado Civil – Porcentagem Alto do Termo da Borda do Campo – 1831 Crioulos % Africanos % Pardos % 3 3,2 15 15 --78 81,4 81 81 6 54,5 15 15,4 3 3 5 45,5 0 1 1 -96 100 100 100 11 100
Mestiços -5 1 -6
% -83,3 16,7 -100
Fonte: Listas Nominativas de 1831/ CEDEPLAR
Podemos perceber que os africanos foram os que mais reconheceram seus relacionamentos perante a Igreja Católica. Destes 15 africanos contabilizados como casados, 9 eram homens e 6 eram mulheres. Dentre os 9 africanos homens casados, 4 tinham idade superior a 50 anos de idade, e os outros 5 encontravam-se em idade produtiva com idades variáveis entre 20 á 34 anos. Já entre as africanas, somente uma contava com idade superior a 50 anos, as outras 5 tinham idades variáveis entre 20 à 46 anos. Os 3 crioulos designados como casados eram mulheres que contavam com a idade média de 17,3 anos. Importante ressaltar que nenhum homem crioulo, nos seis povoados por nós analisados apresentou este estado civil, sendo todos designados como solteiros ou “sem informação”. O maior percentual de africanos casados fez-se refletir na composição social das famílias escravas encontradas na localidade. Optamos por considerar somente as uniões legalmente oficializadas, não computando, portanto, as uniões consensuais encontradas. Desta forma, foram constatados 5 casamentos endógamos de africanos e 3 casamentos mistos entre crioulos e cativos oriundos da África. Estes resultados obtidos para Alto do Termo da Borda do Campo se aproximam da hipótese de Robert Slenes, de que as preferencias endógamas conviveram constantemente com a aceitação das práticas exógamas.470 Esta afirmação se torna ainda mais evidente quando se destaca a ausência de matrimônios endógamos entre os crioulos, uma vez que os 3 cativos nacionais arrolados como casados formaram uniões mistas com africanos. 468
Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 469 Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 470 SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
150 ISSN 2358-4912 Acreditamos que a própria demografia do tráfico na localidade possa explicar, em parte, os dados acima expostos, contudo, devemos levar em consideração que a diferença numérica entre africanos e crioulos era ínfima, uma vez que os mancípios africanos e crioulos representaram 47% e 45% da população cativa local respectivamente. Outro fator que nos chamou atenção durante a análise, foi o equilíbrio sexual existente entre os cativos crioulos (46 homens e 50 mulheres), havendo, portanto, a possibilidade de se formarem uniões endógamas também entre estes mancípios. Tais fatores nos leva á alguns questionamentos: Qual a importância da constituição de uma família para estes recémchegados? A construção de laços de parentesco teria o mesmo significado tanto para os crioulos quanto para os africanos? Em hipótese e corroborando da argumentação de João Fragoso, acredita-se que após serem desenraizados de forma violenta pelo tráfico escravo atlântico, estes africanos tinham pressa em constituir laços de sociabilidade na nova terra, buscando parceiros que lhes permitissem a constituição de uma família e, portanto, uma maior integração nos plantéis. 471 O casamento e a consequente formação de famílias cativas, além de permitir uma maior socialização entre os escravos, era também uma forma de se obter alguns benefícios. Em Campinas, ser casado significou, entre outras coisas, ter uma residência própria, maior autonomia, proteção e liberdade, além da possibilidade de manter no fogo de suas casas a memória dos seus antepassados. Desta forma, mais do que representar um espaço próprio para se morar, este recinto constituiu-se em um elemento cultural importante para a formação de identidades no cativeiro. 472 Estes pequenos privilégios advindos do matrimônio e da constituição familiar entre os cativos, eram de extrema importância tanto para os africanos quanto para os crioulos, que viam nestas concessões uma maneira de melhorar e suportar as difíceis condições de vida no cativeiro. Demonstrada a importância e significado da constituição dos laços parentais para os cativos, restanos analisar os significados que estas famílias adquiriram para os pequenos proprietários presentes na localidade, bem como tentar compreender se estes as utilizavam como uma estratégia de ampliação e manutenção de suas propriedades, ou ainda como uma forma de ascensão social. Acreditamos ser minimamente reducionista considerar a formação de famílias cativas e o possível nascimento de crianças sob o julgo da escravidão, unicamente como uma “estratégia senhorial” para manutenção, ampliação ou mesmo ascensão destes pequenos proprietários e seus domicílios. Todavia, deve-se ressaltar que nos seis povoados que compunham o Alto do Termo da Borda do Campo, contabilizamos um total de 114 fogos com a presença de até 3 cativos. Tais dados nos permitiu inferir que em algum momento, ao longo da vida destes pobres lavradores, a compra de escravos foilhes acessível, possibilitando até mesmo aos mais pobres, inclusive aos pardos, que tivessem acumulado algum pecúlio, a aquisição de 1 ou mais cativos, inclusive de africanos. A posse de um ou mais cativos representou para estes homens e mulheres livres e pobres não somente o complemento do trabalho familiar, mas antes, uma forma de distinção social. Corroborando com a hipótese de A.J.Russell-Wood ao afirmar que pode ter havido coincidência entre as aspirações dos senhores de escravos e dos próprios cativos, uma vez que ambos se beneficiavam com a formação das famílias escravas473, acreditamos que a aquisição de escravos e a possível constituição de famílias cativas, foram vistas por estes pequenos proprietários como uma das maneiras de afirmarem seu prestígio e distinção naquela sociedade. Muito possivelmente, a formação destas famílias escravas, e o consequente nascimento de crianças fruto destas uniões sancionadas ou não, representaram para os senhores a ampliação de sua posse e riqueza. Aventamos a hipótese de que os pequenos proprietários do Alto do Termo da Borda do Campo, por serem indivíduos extremamente pobres, dependentes principalmente da acumulação de excedentes para a compra de seus escravos, viam na formação das famílias cativas, bem como na reprodução natural de suas reduzidas escravarias, uma maneira de ampliar sua posse e ascender socialmente. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Fatima, Maria, de. (Org). O Brasil Colonial 1720-1821. Vol, 3. 1° Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 472 SLENES, 1999, p. 49. 473 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
151 ISSN 2358-4912 A nosso ver, a constituição de famílias cativas, sobretudo, nas pequenas propriedades foi um componente que entrou positivamente nos cálculos econômicos destes pequenos proprietários, adotando muitas vezes, a reprodução natural como uma das formas de manutenção ou ampliação do plantel. Como foi demonstrado, mesmo se tratando de um contingente populacional muito miserável, percebemos que os chefes de domicílios por nós analisados, tinham nítida preferencia pela aquisição de africanos homens e em idade produtiva. Desta forma, levando-se em consideração tal preferencia, partimos da hipótese de que até mesmo estes pequenos proprietários que recorriam ao tráfico não desprezavam sua importância para manutenção das famílias escravas, uma vez que pressupomos ser o ingresso de novos africanos no cativeiro, sobretudo em idade produtiva, fundamental para o crescimento dos matrimônios nos povoados. Por fim, vale destacar que consideramos ser a família cativa fruto tanto dos interesses de proprietários quanto dos próprios mancípios que compunham as escravarias, pois para que a família cativa pudesse ser estabelecida, não bastava à vontade e desejo dos escravos, mas também a existência de meios propícios para a constituição e efetivação destes laços.
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Considerações finais O presente trabalho buscou apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa ainda em desenvolvimento. Através da análise da Lista Nominativa para o ano de 1831, foi-nos possível levantar alguns dados ainda introdutórios, bem como formular algumas questões, ponto de partida para futuras reflexões e análises. Os dados obtidos deverão ainda ser cruzados com os com os registros paroquiais de batismos e inventários post-mortem destes homens e mulheres livres e pobres, para que assim, futuramente, possamos dialogar melhor acerca da importância, significado e estratégias que as famílias cativas assumiram para estes cativos e pequenos proprietários. Por fim, vale advertir que a escolha da Lista Nominativa como fonte documental representa um corte no tempo, ou seja, os dados se referem, especificamente, as características desses povoados para o ano de 1831, não podendo ser estes resultados considerados válidos para os anos anteriores ou subsequentes a esta data. Referências FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Fatima, Maria, de. (Org). O Brasil Colonial 1720-1821. Vol, 3. 1° Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. MACHADO, Cacilda; FLORENTINO, M. G. Famílias e Mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de afastamento do mercado de cativos (Século XIX). Afro-Asia (UFBA), Salvador, n.24, 2000. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (18011829). São Paulo: FAFESP. Annablume, 1999. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários escravistas em uma região policultora (1808-1888). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1989. OLIVEIRA, M. R. Avô imigrante, pai lavrador, neto cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p. 625-644, 2011. PAIVA, Clotilde Andrade & BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e espaço no século XIX mineiro: algumas evidências de dinâmicas diferenciadas. In: Anais do VII Seminário Sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995. RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
152 ISSN 2358-4912 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Listas Nominativas de 1831 - disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site: https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em 15/05/2014.
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MOBILIZAÇÃO DE NEGROS EM SERVIÇOS MILITARES EM MINAS COLONIAL: NOTAS DE PESQUISA Ana Paula Pereira Costa474 O texto visa elucidar algumas notas iniciais de uma pesquisa em desenvolvimento na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Diamantina, intitulada: “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”475. O objetivo maior da investigação tem sido analisar as vantagens e os conflitos em torno da mobilização de negros (escravos ou não) para atuar no universo militar colonial, formal e informal, mais especificamente da comarca mineira de Serro Frio no século XVIII. Esta região, composta pelos Termos de Vila do Príncipe e Tejuco, teve sua origem ligada às atividades de exploração do ouro e de pedras preciosas. No início do século XVIII foi descoberto ouro nas cabeceiras do Rio Jequitinhonha e seus afluentes. Por conseguinte grandes levas de pessoas se dirigiram para o local formando povoados. Dentre esses temos o surgimento daquele que depois ficou conhecido como Vila do Príncipe (atual cidade do Serro) e do Tejuco (atual Diamantina). Em 1729 foi anunciada a descoberta de diamantes nas rochas e no leito dos rios da região do Vale do Jequitinhonha. O comunicado chegou a Portugal em 1729, expedido pelo governador da capitania, D. Lourenço de Almeida. Com o anúncio oficial da descoberta, a coroa tratou de pôr ordem na casa: organizou a exploração dos diamantes e, claro, a cobrança dos respectivos impostos. O aumento da produção trouxe rápida prosperidade à população da localidade, notadamente ao Arraial do Tejuco que crescia vertiginosamente476. Divulgadas as riquezas das duas localidades citadas, ambas tornaram-se o centro de convergência dos exploradores e comerciantes, atraídos pelo ouro e, sobretudo, pelos diamantes. Para elas deslocaram-se principalmente paulistas, portugueses e negros, ao lado de outros estrangeiros em número menor. Nas palavras de Couto (1954) “O ouro passou a ser satélite do diamante. A terra desvirginada mostra, no seu leito recamado de ouro, a pedra que fascina e encanta. Enche-se o distrito diamantino de aventureiros, beleguins e tropas”477. Faremos no trabalho ora apresentado alguns apontamentos acerca da visão que autoridades régias, membros da elite local e a população mais ampla da referida região tinham acerca da mobilização dos negros (escravos e forros) para atuar seja em “milícias particulares” usadas por homens da elite em diligências de prestação de serviços à Coroa portuguesa, seja em tropas ligadas a estrutura militar lusitana (companhias auxiliares de infantaria; companhias de ordenanças de pé; corpos de pedestres e corpos de homens-do-mato) usadas em variados serviços de manutenção da ordem pública. Ressaltaremos a construção de um discurso sobre o uso dos negros em tais atividades, a criminalidade, o armamento, a necessidade e os problemas advindos com esta prática durante o século XVIII na comarca de Serro Frio. Em um artigo publicado em 2003 a historiadora Sílvia Lara chamou atenção para a existência de dois movimentos historiográficos revisionistas surgidos no Brasil quase simultaneamente – a partir da década de 1980 – que, apesar de tratarem de temas complementares, (o estudo da escravidão africana e 474
Professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri/UFVJM COSTA, Ana Paula Pereira. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Projeto de pesquisa apresentado ao programa institucional de iniciação científica e tecnológica – PIBIC/CNPq. Diamantina: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, 2013. 476 Ver: FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde. São Paulo: Annablume, 1996. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ver também: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976 [1862-68]. 477 COUTO, S. R. Vultos e fatos de Diamantina. Edição revista e ampliada. Belo Horizonte, Armazém de Ideias, 2002 [1954]. In: LOPES, Fabrício A. MILAGRES, Alcione R. & PIUZANA, Danielle. Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo Distrito Diamantino na Literatura de Viagem. Caderno de Geografia. V.21, n.36, 2011. p. 68. 475
154 ISSN 2358-4912 seus descendentes no Brasil e a análise da sociedade colonial) permaneceram restritos a seus eixos específicos478. O primeiro conjunto historiográfico questionou o enfoque estritamente macroeconômico e a ênfase no caráter violento e inexorável da escravidão a fim de romper com estudos que se apoiassem numa ótica senhorial que era, inevitavelmente, excludente. Novas pesquisas passaram a valorizar a experiência escrava analisando os valores e as ações dos mesmos como elementos importantes para a compreensão da própria escravidão e de suas transformações. Já o segundo movimento repensou a natureza das conexões metrópole/colônia, refutando a ideia de que suas relações se pautariam em dualidades e contradições de interesses meramente econômicos. Um foco maior sobre a política foi realizado e a partir de um diálogo com uma historiografia notadamente portuguesa, que revitalizou a ótica da sociedade de Antigo Regime, novas abordagens sobre as relações de poder no mundo colonial surgiram. Pesquisas sobre os modos de governar e sobre o funcionamento de diversas instituições que agregavam e davam consistência as redes hierarquias que ligavam horizontal e verticalmente a sociedade colonial foram se desenvolvendo em conexão com estudos realizados para outras partes do império português (África e Ásia, sobretudo)479. De lá para cá, alguns historiadores brasileiros tem procurado conectar essas historiografias, conforme sugestão de Sílvia Lara, num esforço para complexificar e sofisticar as análises desses dois campos. No debate que foi se articulando, três pontos que têm sido cada vez mais referência e parte da preocupação dos historiadores são a presença estrutural da população negra no mundo colonial “brasileiro”, inserida mediante a escravidão africana, os mecanismos da dominação escravista e o surgimento de um grande contingente de libertos e livres nesta colônia oriundos da escravidão, alforria e mestiçagem480. Desta forma, a presença estrutural dos escravos, livres e libertos na América portuguesa, ainda que analisada de formas e a partir de formulações conceituais diversas tem sido apontada como o diferencial mais importante pelos autores que, desde então, lidaram com o tema. No entanto, se o centro da resposta continua a ser a presença massiva desses grupos e o modo como tornaram-se um elemento estrutural na colônia, trata-se também, em segundo lugar, de entender como podiam estar integrados à rede hierárquica que ordenava as relações sociais nas conquistas ultramarinas481. Neste sentido, novas investigações tem procurado analisar como a escravidão e os negros (escravos ou não) foram incorporados à teia hierárquica que ordenava a sociedade colonial “brasileira” e codificava as relações sociais no Antigo Regime482, permeada pelos valores de honra, prestígio, distinção, desigualdade e hierarquização. Dentre os mecanismos de hierarquização e alcance de distinções sociais para a parcela da população negra que existia na América portuguesa durante o período colonial, há muito se vem destacando a importância da esfera militar. Luís Geraldo Silva, ao abordar o período da guerra de restauração pernambucana contra o domínio holandês, travada entre 1645 e 1654, ressalta que nesse momento foram criadas as milícias de homens de cor na América portuguesa483. Reconquistados Pernambuco e as demais capitanias do Norte em 1654, em boa medida graças aos esforços dos colonos brancos e dos negros e índios a eles subalternos, os terços de homens de cor foram ali mantidos e depois, ao longo do século XVIII, se disseminaram por
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LARA, Sílvia. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América. In: FERLINI, Vera L. & BICALHO, Maria F. (Orgs.). Modos de governar. São Paulo: Alameda, 2005. p. 33. 479 Idem. p. 25, 31-32. 480 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Campinas: Unicamp, 2004. Tese de Livre-Docência, p. 16-17. Para exemplos dos estudos mencionados que fazem as respectivas revisões historiográficas ver: In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos Oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 481 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Op. cit. p. 17. 482 Idem. p. 18. 483 SILVA, Luiz Geraldo. Sobre a “etnia crioula”: o Terço dos Henriques e seus critérios de exclusão na América portuguesa do século XVIII. In: GONÇALVES, Andréa Lisly; CHAVES, Cláudia M. Graças & VENÂNCIO, Renato Pinto (Orgs.). Administrando Impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. p. 71.
155 ISSN 2358-4912 praticamente todas as capitanias da colônia brasileira. O engajamento dos negros (libertos e cativos) para lutar na guerra de restauração era feito mediante promessas de liberdade484. Ainda sobre essa situação e contexto Hebe Mattos destaca que não são poucas as referências que revelam os ganhos dos soldados das companhias em luta em Pernambuco (inclusive os das tropas negras) com os escravos capturados do inimigo pelas tropas portuguesas, que via de regra, eram vendidos para a Bahia e seu valor repartido entre os soldados, como recompensa485. Por fim, temos o estudo de Francis Albert Cotta que analisou a trajetórias de militares negros e mestiços patenteados que conseguiram alcançar relativa mobilidade social numa sociedade escravista através de sua atuação e inserção no universo militar das Minas setecentista. Para este autor a posse de uma patente militar dava aos negros, mestiços e pardos lugares de destaque na sociedade mineira do século XVIII, pois propiciava a esses homens considerável poder ao comandarem grandes contingentes de soldados e ao lhes fornecerem oportunidades de aderirem aos valores tidos como ideais pela sociedade católica portuguesa tais como o casamento, a formação de uma família e a posse de escravos486. Na América lusa havia diferentes formas de se incorporar os negros escravizados, forros ou livres no âmbito militar. Tais homens podiam, por exemplo, serem utilizados de uma forma privada, como uma espécie de guarda pessoal constituída informalmente, isto é, sem a conotação militar que se associa às tropas de negros montadas recorrentemente durante todo o período colonial em caso de necessidade, sendo a mais famosa conhecida como “terço dos Henriques”. Para o caso de Minas Gerais os inúmeros relatos dos indivíduos que se aventuraram nas trilhas dos sertões mineiros em busca de títulos, sesmarias, patentes e cargos políticos, no intuito de conseguirem poder ou prestígio e, assim, tornarem-se potentados locais, denotam bem esta situação. Em tais relatos deixam claro que viam nas conquistas a serem realizadas, feitas às custas de suas vidas, fazendas e escravos armados, oportunidades para adquirir riqueza, poder e status. Com efeito, acompanhados de seus negros armados (nesses casos quase sempre escravos), muitos potentados das Minas, sobretudo em seus anos iniciais de formação, atuaram sistematicamente em combate a levantes e conflitos, internos e externos, em povoamento de novos territórios a fim de angariar mercês e reconhecimento social487. Mais do que a participação dos colonos na conquista do território colonial o que afirmações como estas devem explicitar é a importância adquirida pelos escravos para os seus senhores. Vale lembrar que a prática de armar seus próprios escravos, seja para lutar em guerras, seja para entrar em confrontos diversos, era difundida em quase todas as sociedades escravistas e também o foi no Brasil colonial488. Alguns autores ressaltam mesmo que pegar em armas para, eventualmente, lutar V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Idem. MATTOS, Hebe. Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina & NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos do Império. Niterói: EdUFF, 2006. p 32-34 486 COTTA, Francis A. Negros e mestiços na milícias da América portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. p. 108-112. 487 Na verdade esta realidade se fez presente em várias partes da América Portuguesa. Além de Minas Gerais, para o Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Goiás, são inúmeros os relatos que apontam as constantes intromissões daqueles que se arrogavam o título de principais da terra na conquista, defesa e povoamento da colônia, o que na maioria das vezes era feito à custa de seu sangue, vida, fazenda e escravos. Neste sentido ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, cap. 12. Ver também: FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa”. Revista Tempo, volume 15, Niterói, 2003, p. 11- 35. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Ed. 34, 2003. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: 1600-1900. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, partes 1 e 2. KARASCH, Mary. The Periphery of the periphery? Vila Boa de Goiás, 1780-183. In: DANIELS, Christine & KENNEDY, Michael V. (Orgs.). Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 15001820. New York & London: Routledge, 2003, p. 143-169. 488 Para mais exemplos ver: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times to the modern age. Yale University Press: New Have & London, 2006. CAPELA, José. Donas, Senhores e Escravos. Porto: Edições Afrontamento, 1995. BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro. Uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. PAIVA, Eduardo França. De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no 485
156 ISSN 2358-4912 em diversos tipos de conflitos ao lado de seus senhores era considerada uma extensão dos serviços usualmente prestados pelos cativos. Presos às redes clientelares, eles encarregavam-se de executar as ordens do senhor, que em retribuição podia, por exemplo, solucionar querelas e agravos, tomar para si as suas causas e enfrentar os seus inimigos489. Em outras palavras, além da posse das patentes militares e da ocupação de postos na governança e demais cargos administrativos, a posse de numerosa escravaria ou de aliados que pudesse dispor a serviço de El Rey era também importante na definição de um indivíduo como poderoso no contexto colonial e, logo, com prerrogativa de mando, desde que o senhor de tal escravaria estivesse em condição de armá-los à sua custa, poder desviá-los de suas atividades principais para a realização de outras diligências e que tenha estabelecido com tais agentes uma via de reciprocidade (desigual)490. Cabe sublinhar que não desconsideramos a existência do uso de coerção e força sobre a parcela da população negra escravizada. Tão pouco ao adotarmos a ideia de reciprocidades entre os atores na construção das redes de relação desconsideramos o conflito e as tensões inerentes a tais interações. Pelo contrário, ao falarmos em tais termos pensamos e necessariamente consideramos que elas eram desiguais e que reforçavam hierarquias491. Do ponto de vista do escravo o uso de reciprocidades além de proporcionar ganhos concretos e melhoras nas suas condições de vida, revela o papel ativo dos escravos no processo de produção e reprodução de uma sociedade escravista, pois entende-se que os comportamentos cativos baseados nesses elementos não seriam expressão da adesão passiva ao ideário senhorial. Em alguns casos as reciprocidades talvez tenham sido os meios mais acessíveis para que pudessem reiterar sua humanidade e tornar a si próprios participantes da construção de suas histórias492. Além do uso dos negros como milícia particular, outra maneira pela qual se podia associá-los ao âmbito bélico era atrelá-los à estrutura formal da organização militar lusitana, e nesses casos não necessariamente se encontravam somente escravos, mas forro e livres. Esta se constituía a partir de três tipos de forças: os corpos regulares (conhecidos também por tropa paga ou de linha), as milícias ou corpos de auxiliares e as ordenanças ou corpos irregulares493. Mas haviam outras formas de organização mais específicas que subdividiam as forças de acordo com as hierarquias sociais. No caso dos negros poderiam ser agrupados, basicamente, em quatro espécies de milícias: as companhias auxiliares de infantaria; as companhias de ordenanças de pé; os corpos de pedestres e os corpos de homens-do-mato494. De acordo com Francis Cotta, em Minas Gerais colonial as companhias auxiliares de infantaria de pretos, e também de pardos libertos, podiam atuar tanto na destruição de quilombos e repressão aos índios, quanto na defesa das fronteiras marítimas e terrestres em auxílio às tropas regulares. Nas companhias de ordenanças de pé dos pretos libertos, e dos homens pardos, as principais missões também estavam relacionadas aos confrontos com os quilombolas e índios bravos. Atuavam assim localmente para preservar a tranquilidade e o sossego públicos. De forma semelhante aos corpos auxiliares, não recebiam soldos, armamentos ou equipamentos. Por seu turno, o corpo de pedestres era formado por negros, pardos libertos e por escravos. Eles “entravam nos matos, descendo córregos por despenhadeiros impraticáveis”495. Pela vasta experiência eram requisitados como guias nas expedições militares. Tinham seus soldos e jornais pagos pela fazenda real e eram comandados por capitães pardos. Por fim, os homens pardos, negros libertos e escravos também se inseriam nos corpos de
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início do século XVIII. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F. Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. 489 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 84 e 87. 490 FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII”. Op. cit. passim. 491 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 20. 492 Idem. p. 22. 493 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (17351777). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação de Mestrado. p. 17. 494 COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado. p. 207. 495 Idem. p. 208.
157 ISSN 2358-4912 homens-do-mato. Eles não recebiam soldos, fardamentos, equipamentos, armamentos ou alimentação da fazenda real. Eram recompensados através das tomadias pagas pelos proprietários dos escravos fugidos496. Todas essas forças foram institucionalizadas nas Minas a partir dos primeiros anos dos setecentos e foram vistas de maneiras distintas pelas diversas autoridades portuguesas e pela população, o que também pode ser dito acerca do armamento particular de escravos. Em relação as tropas de homens de cor os documentos que serão listados a seguir expressam bem a ideia de “utilidade” que a mobilização dos negros, escravos, livres ou libertos passou a ter para ordenar o território mineiro. O primeiro trata de um requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo ao rei a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. Segundo o relato:
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Pedem para que V. Mage haja por bem de sua real grandeza os mande aly regimentar no mesmo modo tratamento, honras que gozão os homens pretos de Pernambuco, Bahia e Sam Thome com
companhias necessárias na villas e arraes para os velarem, socorrerem e investigarem rondando aquelas terras, cerras, estradas, campanhas, rios e matas para melhor conclusão e serventia do real serviço, pelos descaminhos que aly se dão ouro e diamantes e outros mais bens do povo e prejuízo grave que dão os foragidos, ciganos e contrabandistas a real fazenda e aos moradores daquelas povoações se faz crível e verossímil (...) E outro sim para ajuda de custo, pólvora, xumbo e alimentos pela longitude de dias e noites que gastão por aqueles montes e veredas e embrenhas na examinação dos delinquentes para os cercar, prender e destroir e porem as estradas e lugares livres daqueles insultosos lhes dê saques livres e tomadias que não forem diamantes, ouro ou outros 497 moveis pertencentes a real fazenda (...)
No segundo documento temos uma carta de 1753 do governador das Minas, José Antônio Freire de Andrade, informando a Diogo de Mendonça Corte-Real acerca dos roubos e outras violência cometidas pelos negros que andavam fugidos no Arraial do Tejuco na qual também temos identificado a utilidade dos homens de cor, escravos no caso, para a manutenção da ordem na região: No dia nove de outubro do anno passado me chegou hua carta do comandante dos Dragoens, que se acha destacado no serro frio Simão da Cunha Pereira, nella me dava conta do desaforo em que se tinhão posto os negros que andavão fugidos as casa de seus senhores com os mullatos, mistiços e carijós que se lhe tinhão agregado roubando os corregos dos diamantes marchey no dia quinze deste continente trazendo comigo os poucos Dragoens que restavam das patrulhas, que impedem a extração do ouro, logo que aqui cheguei reforçei a dos córregos sendo de pouca utilidade porque a poucos dias hu lote de negros, mulatos e carijós me atacarão hua patrulha de dez soldados Dragoens e does pedestres, sendo que os não podia prender ou afugentar da demarcação com as tropas pagas e que as ordenanças eram de ma qualidade para andarem a pe nos córregos escrevi ao capitão Felizberto Caldeira Brant contratador dos diamantes (...) para que este mandasse
por promptos dos homens que tras costiando o seu contracto cento e cincoenta e com este numero e com os Dragoens e pedestres em dia vinte de dezembro dando hu assalto nos córregos se prenderão dezoito e sendo informado de que naquella noite havião passado a ponte do rio Jequitinhonha para fora da demarcação alguas partidas de negros, mulatos e carijós sem demora mandei sobre eles e pondo se em resistência matarão algus e prenderão outros e os que restavão das tropas se escaparão na montanha. Continuei em mandar seguir os que tinha noticia 498 sahiao para o certão aonde se prenderão algus (...)
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Idem. Arquivo Histórico Ultramarino-MG/Cx: 69; Doc: 5. Data 07/01/A1756. Requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo ao rei a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. Em anexo: 1 aviso. Grifo meu. 498 Arquivo Histórico Ultramarino-MG/Cx: 61; Doc: 3. Data 09/01/1753. Carta de 1753 do governador de Minas, José Antônio Freire de Andrade, informando a Diogo de Mendonça Corte-Real acerca dos roubos e outras violência cometidas pelos negros que andavam fugidos. Em anexo: carta (cópia). Grifo meu. 497
158 ISSN 2358-4912 Percebe-se nos dois documentos que a atuação de negros, escravos, forros ou livres em tropas de serviços militares responsáveis por tarefas de grande perigo, controle dos descaminhos, proteção contra ataques de criminosos, negros fugidos era recorrente nas Minas. Conforme destaca Francis Albert Cotta, a atribuição de entrar nos matos, em lugares intrincados e de difícil acesso acabou recaindo sobre os africanos e seus descendentes, cativos ou libertos. Eles patrulhavam as estradas em busca de aquilombados, índios bravos, facinorosos e assaltantes que atacam as vilas e arraiais. Eram os mais aptos a identificar rastros e vestígios de passagem de pessoas499. No entanto, recentemente alguns estudos apontaram que em Minas Gerais colonial essa questão do armamento dos negros, tanto formal, isto é, para montagem de tropas milicianas ou de ordenanças de negros escravizados, forros ou livres; quanto informalmente, ou seja, nos casos em que eram utilizados para defesa pessoal ou em diligências em prol da Coroa feitas por potentados locais, não deixou de fomentar discussões, dúvidas e polêmicas quanto à medida certa de seu emprego500. Se o uso constante de negros armados nas duas formas de organização citadas – formal e informal – em campanhas militares, para conter motins, para desmantelar quilombos, para defesa pessoal de homens poderosos, denota que tal prática era algo corriqueiro para os habitantes da capitania mineira, conforme explicitado nos documentos acima; toda uma legislação que defendia o uso moderado das armas pelos negros, bem como a proibição de armar escravos na capitania indica que apesar de corriqueiro isso era algo que preocupava as autoridades coloniais. Não por acaso, tentativas de regulamentação do porte de armas não foram poucas. Entretanto, esse é um ponto ainda pouco trabalhado pela historiografia, sobretudo para a região abarcada pela presente pesquisa, haja vista que só muito recentemente no âmbito da história militar, e colonial, os pesquisadores passaram a se interessar em compreender o comportamento e as instituições militares em seus contextos social, político, econômico e cultural501. Ao longo do Setecentos vários bandos, ordens e cartas régias foram emitidos proibindo aos negros, cativos, forros e livres o uso de todo tipo de armas, particularmente as de fogo, embora sem muito sucesso502. De fato, as leis constituíam letra morta no contexto social da colônia, pois o descumprimento a essas regras era frequente. Segundo Liana Reis essa característica seria consequência das redes relacionais estabelecidas entre os colonos, na medida em que viabilizavam o acesso e o uso das armas. Um exemplo seria a relação estabelecida entre quilombolas e determinados grupos sociais, especialmente os donos de tabernas e vendas. Muitos comerciantes acobertavam a fuga dos cativos e forneciam a eles mercadorias, que incluíam armas e pólvora. Esse posicionamento garantia o acesso dos quilombolas aos gêneros necessários à sua sobrevivência e ao mesmo tempo se constituía em uma fonte de lucro para os homens de negócio. Além disso, segundo a autora, essa relação marcaria a opção da sociedade em estabelecer uma convivência com aqueles que fugiam do cativeiro503. Como se vê se, por um lado, a relação, proximidade ou possibilidade da parcela negra da população em ter acesso a armas e ao universo bélico contribuíam para criar um clima de tensão e conflito na localidade através das fugas, formação de quilombos, rebeliões, crimes e ameaças cometidas. Por outro lado, apesar dos riscos e preocupações, a necessidade colocada pelo contexto denota que os senhores e as autoridade régias precisavam munir os negros (cativos, forros e livres) de facas, facões, paus e até mesmo armas de fogo para que realizassem diversos tipos de trabalhos. Podemos sublinhar o V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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COTTA, Francis A. Negros e mestiços na milícias da América portuguesa. Op. cit. p. 65. PAIVA, Eduardo França. De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII. Op. cit. REIS, Liana Maria. “Minas Armadas: Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira setecentista”. Varia História. Revista de História do Departamento da UFMG, n.o 31, 2004. COSTA, Ana Paula Pereira. “Potentados locais e seu braço armado: as vantagens e dificuldades advindas do armamento de escravos na conquista das Minas”. Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 18-32. 501 MOREIRA, Luiz Guilherme S.; LOUREIRO, Marcello José G. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. p. 16. 502 REIS, Liana Maria. Criminalidade escrava nas Minas Gerais Setecentistas. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2008. Vol. 1. p. 478. 503 REIS, Liana Maria. “Minas Armadas: Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira setecentista”. Op. cit. p.196. 500
159 ISSN 2358-4912 imprescindível reforço e socorro que propiciavam às forças pertencentes à estrutura militar mais formal para atuação em serviços de defesa e ordenamento social e o auxílio que prestavam às autoridades metropolitanas para realização de serviços cruciais para o exercício da governabilidade régia em território ultramarino, conforme visto nos documentos mencionados. Além disso, cabe destacar a proteção que forneciam às elites em um cenário hostil e belicoso. Ou seja, em várias situações os senhores e as autoridade régias permitiam e estimulavam aos negros (escravos, forros e livres) a usarem armas e a se atrelarem ao universo militar colonial, porque isso se fazia necessário numa conjuntura em que a possibilidade de mobilizar homens para lutar era fator crucial para a definição do poder das elites locais, para a sobrevivência, para o sucesso das diligências de manutenção da ordem e, consequentemente, para a sustentação dos interesses régios no além-mar.
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ISSN 2358-4912 O GADO EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII Anderson Pereira504 Introdução “O gado em Sergipe no século XVIII” é um estudo que propõe compreender o gado como elemento da riqueza em um período de transição econômica na Capitania de Sergipe. As principais fontes utilizadas foram os cronistas, as cartas régias e os inventários post-mortem da Comarca de São Cristóvão/SE. No entanto, as fontes para a história da pecuária em Sergipe se encontram dispersas e sem sistematização, dificultando o pesquisador visualizar o complexo sistema econômico que envolve o gado. O trabalho se justifica por várias razões. Uma carece na historiografia sergipana de estudos que aprofundem a análise socioeconômica sobre o gado como elemento da riqueza. Outra justificativa seria que na conjuntura econômica de Sergipe a pecuária possibilitou os curraleiros e a fazenda real acumularem riquezas. Por fim, foi à importância econômica da atividade criatória para a Capitania de Sergipe e a Metrópole. Os principais referenciais teóricos são os trabalhos de Fernando Novais e José Roberto do Amaral Lapa. Os conceitos básicos empregados são “sistema colonial” proposto por F. Novais, e “mercado interno” sugerido por J. R. do Amaral Lapa. A noção de “sistema colonial” proposta por Fernando Novais permite apreender a dinâmica e a estrutura do sistema colonial Português e é também uma ferramenta de análise do funcionamento da economia do gado em Sergipe. Seguindo Novaes, o surgimento e o funcionamento do sistema colonial se justificariam pelo acumulo primitivo de capital através do comércio dos produtos agrícolas coloniais e da venda para as Colônias dos produtos manufaturados da Metrópole.505 Assim, para o autor o sistema colonial seria o conjunto de mecanismos (processos econômicos e normas de política econômica) através dos quais a Metrópole promove a acumulação capitalista. Os mecanismos de funcionamento do "Antigo Sistema Colonial do mercantilismo" são: o monopólio comercial, o escravismo e o tráfico negreiro. O funcionamento do sistema se daria pela estrutura socioeconômica que se organizava nas colônias, a produção escravista e a concentração de renda nos grupos dominantes. A Colônia tinha por objetivo fornecer artigos que a metrópole necessitava e oferecer mercado para os manufaturados da metrópole. Desta forma, a colonização do Novo Mundo se deu nos quadros do Antigo Sistema Colonial, isto é, o sistema colonial do Antigo Regime.506 Fernando Novais nos chama a atenção para o fato de nem todas as manifestações da colonização portuguesa do Brasil expressar diretamente esse mecanismo, mas os mecanismos do sistema colonial mercantilista constituem o componente básico do conjunto, a partir do qual deve, pois ser analisado.507 Pensar a economia do gado em Sergipe Colonial a partir do conceito de “sistema colonial” proposto por Novais permite ver também o caráter mercantil da colonização. Com isso, a inserção da colonização de Sergipe no quadro do comércio europeu, ainda seria um canal de acumulação primitiva do capital mercantil no centro do sistema. Outro importante conceito para o entendimento da pecuária é o de “mercado interno”. Tal conceito proposto por José Roberto do Amaral Lapa contribuiu ao relativizarmos o pacto colonial. Esse autor privilegia o mercado interno numa perspectiva dinâmica e integrativa à colônia. Ele define o “mercado interno” como sendo um ou mais sistemas de trocas formados ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, 504
Licenciado em História, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, e doutorando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista FAPESB com o projeto Os afortunados da Colônia: riqueza, acumulação e distinção em São Cristóvão/SE (1760-1820), orientado pela professora Drª. Maria José Rapassi Mascarenhas. E-mail:
[email protected] 505 Cf. Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. p.16. 506 Fernando Novais, loc. cit., p.260. 507 Fernando Novais, op. cit., p.261.
161 ISSN 2358-4912 este mercado possui oscilações internas, relacionadas direta ou indiretamente com os mercados externos.508 Logo, a mercantilização da economia de subsistência e o abastecimento teriam um espaço próprio na economia colonial. A economia do gado na Capitania de Sergipe no século XVIII funcionou de acordo com os processos econômicos e normas de política econômica específica gerenciada pela Metrópole. A pecuária era voltada para o abastecimento do mercado interno. Muito embora, “a construção deste mercado interno é concomitante com o mercado intercolonial e se faz cumprindo ou reagindo às imposições do capitalismo internacional que rege o mercado mundial”.509 Portanto, ao considerar a existência de um mercado interno importante na Capitania de Sergipe, capaz de fazer com que regiões inteiras se voltassem para o abastecimento e permitisse um grupo detentor dos meios de produção o acúmulo de riqueza, esta riqueza em alguns momentos foi superior àquela oriunda dos produtos destinados ao mercado externo. O gado em Sergipe no século XVIII foi uma das medidas da riqueza possuída pelos seus proprietários. Ter gado constituía um importante diferencial entre as famílias. Pois, a riqueza ainda estava associada à posse de gado.
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As funções econômicas da pecuária sergipana intra e extracapitania No século XVIII, os currais já estavam espalhados por quase todo o território de Sergipe, predominantemente no pediplano sertanejo.510 O curral servia para recolher o gado. Provavelmente os grandes cercados estavam localizados as margens dos Rios Piauí, Vaza-Barris, Sergipe, e São Francisco. Os currais de médio porte estavam localizados nos tabuleiros costeiros. Existia uma zona de criação que cobria grande parte do pediplano sertanejo e tabuleiros costeiros. Já os pequenos estavam próximos à planície litorânea. Possivelmente os de tamanho médio era a grande maioria.511 A localização dos principais currais quase no centro do território e próximos às vilas facilitava a distribuição de carne e couro para toda a Capitania. Os currais neste período estavam em áreas não aproveitadas para a produção da cana de açúcar, algodão e fumo. O valor das terras destinadas à criação de gado estava condicionado ao tipo de solo, ao clima, a disponibilidade de água, ao tamanho da terra e a atividade econômica desenvolvida. As zonas da pecuária extrapolavam o território de Sergipe, assim por mais que houvesse uma demarcação administrativa as pastagens, fazendas, sítios e currais poderiam ultrapassar estes limites. Isto significa dizer que a principal zona de criação neste momento seria a do Rio São Francisco. Possivelmente nesta área se criava bois, vacas e cavalos para suprir as demandas da Colônia. As zonas dos Rios Piauí e Vaza-Barris estariam ocupadas com gado para o consumo interno e externo. E as dos Rios Sergipe e Japaratuba estariam ocupadas pelo gado de quintal512. Dados ainda imprecisos faz supor que em Sergipe oitocentista existia em média de 150 a 200 currais espalhados pelo território. A pecuária extensiva apresentou certa variedade de tipos de fazendas de gado, desde as mais próximas do litoral às mais distantes do mercado, submetidas também a diferenças de clima e vegetação.513 As fazendas não tinham fronteiras e o gado era criado solto. Uma estância de gado se constituía em geral com três léguas de terra, dispostas ao longo de curso d’água, por uma de largura, sendo meia para cada margem. Na pecuária sergipana havia três
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Cf. José Roberto do Amaral Lapa, O Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 45. Ibid., p. 49. 510 Para a localização geográfica dos currais tomei como base a obra de Adelci Figueiredo Santos e José Augusto Andrade intitulada Nova Geografia de Sergipe publicada pela Secretaria de Estado da Educação e do Desporto e Lazer, em Aracaju nos anos de 1998. 511 Com base nos inventários post mortem de São Cristóvão e cronistas classifiquei os currais de acordo com a quantidade do rebanho, assim um curral de grande porte possuía em média acima de 200 reses, um curral de médio porte tinha 200 a 50 reses, e de pequeno porte abaixo de 50 reses. 512 Ele seria o gado criado próximo às fazendas de cana de açúcar para a alimentação da população local e utilizado como força motriz. 513 Cf. Maria Yedda Leite Linhares, Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal et l’Europe Atlantique, le Brésil et l’Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, vol. XXXIV, Lisboa, Paris, Dez., 1995. p.5. 509
162 ISSN 2358-4912 tipos de propriedades: sítio514, fazenda e curral. As instalações de uma fazenda são sumárias: currais e casas de vivenda, tudo de construção tosca.515 Em geral, os objetos existentes nos currais eram: arames, arreios, cordas, estribeiras, escovas, ferraduras, freios, tesouras, e selas. O gado era diferenciado pela ferra que possuía. Ele era ferrado com dois tipos diferentes. Um para indicar o lugar onde estava localizada a fazenda de criar, e o outro para indicar o proprietário da rês. O gado vacum era do tipo: vacas leiteiras, parideiras, bois capados, de entrega, manso, novilhos, e bezerros; o tipo cavalar era constituído de cavalos mansos, bestas, éguas parideiras, e poldros. Para o século XVIII, a estimativa do rebanho sergipano era de aproximadamente 15.000 reses.516 Este seria considerado de tamanho médio em comparação com outras capitanias respeitando a sua distribuição na área do território. O tamanho do rebanho variava de acordo com as condições de criação, clima, e demanda do mercado interno colonial. As maiores manadas estavam localizadas as margens do Rio São Francisco. O gado mais nobre/corte estava às margens do Rio Piauí e Vaza-Barris. O tamanho do rebanho de corte era pequeno, mas garantia o abastecimento extracapitania com a boa qualidade da carne. As ordens religiosas católicas presentes em Sergipe tais como: jesuítas, capuchinhos, carmelitas, beneditinos e franciscanos se tornaram grandes detentores de terras, gados e engenhos.517 Por exemplo: a ordem de Nossa Senhora do Carmo tinha 14 currais de gado vacum e cavalar no sertão do Palmar, freguesia do Lagarto e 14 currais de gado vacum no Rio de S. Francisco, freguesia da Villa Nova, 1 fazenda na Praia de Santa Maria com 60 cabeças de gado.518 Os principais curraleiros da zona do Rio Vaza-Barris no século XVIII eram Francisca de Barros Pantojá; Francisco Rodrigues Ferreira; Gonçalo Gomes Lobato; João Bernardo de Macedo; Jose Cardozo de Santa Anna e Cardula Maria de Sam Joze; Jose de Souza de Menezes; Joze Figueiredo Prado; Manoel Caetano do Lago; Manoel Joze de Vasconcelos e Figueiredo; Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcellos; Maria Caetana; Paulo Ribeiro e sua mulher Maria de Oliveira; Teodósia Fagundes Pereira.519 No século XVIII, o gado era uma fonte de alimentação importante para os colonos, além de serem empregados como força motriz (nos engenhos, no preparo das lavouras) e meio de transporte (de ferramentas, mercadorias, e pessoas). Os rebanhos sergipanos, além de abastecerem Bahia e Pernambuco, constituíram-se na retaguarda econômica dos engenhos, suprindo suas necessidades de carne e animais para tração e transporte.520 Muitos eram os produtos extraídos do gado, destacava-se a carne como um dos principais alimentos da colônia e o couro largamente utilizado para exportação. Ao mesmo tempo em que alarga o território colonial, a pecuária traz mudanças mais profundas na sociedade luso-brasílica.521 A primeira função econômica da pecuária sergipana foi garantir o abastecimento do mercado interno colonial com carne. Os rebanhos de gado da Capitania de Sergipe tinham que percorrer vários quilômetros através dos caminhos e estradas coloniais para atingir seu mercado consumidor principal: a Praça de Salvador. Em geral, as boiadas que não desciam à Salvador imediatamente na semana em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Denominação usual das terras arrendadas no Sertão. Em Sergipe Colonial era bastante comum o termo sítio de gado. 515 Ibid., p. 187. 516 Dados extraídos de: Sebastião da Rocha Pitta, Historia da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Academia Real, 1730.; Antônio de Santa Maria Jaboatão, Novo Orbe Seráfico Brasílico: crônica dos frades menores da província do Brasil. (1761). Livro I, II e III. Rio de Janeiro: IHGB, 1858-62.; e André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real, 1711. 517 Felisbelo Freire, História de Sergipe. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. 518 AMU, Lisboa. Doc. 6698. Séc. XVIII. Relação dos Mosteiros, Hospícios e Rezidencias da Província de N. S. do Carmo da Bahia e Pernambuco, do numero dos seus Religiosos e das rendas de cada um delles, segundo a conta, que deram os seus respectivos Priores e Vigários Priores. 519 Arquivo do Judiciário de Sergipe. SCR/C.1º OF – Inventários Cx. 01, 02, 03. Inventários post-mortem da Comarca de São Cristóvão. 520 Cf. Maria Thetis Nunes, Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.104. 521 Cf. Luiz F. Alencastro, O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 341.
163 ISSN 2358-4912 que ali chegavam ficavam pastando em fazendas e engenhos da região.522 Nos primeiros “Livros de Registro de Entrada de Gado”523 de Salvador algumas zonas de criação em Sergipe aparecem, entre elas: Rio São Francisco, Rio Real, Lagarto, Porto da Folha, Vaza-Barris e Itabaiana. A carne bovina supria as necessidades na falta da carne de baleia e bacalhau. Ela atendia a demanda alimentar dos colonos de Salvador e Recife, e militares que transitavam por Sergipe em campanha. Em muitos casos se retirava o gado dos currais para a alimentação dos soldados. O objetivo de se criar gado na Capitania era abastecer com carne os mercados da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Uma segunda foi colaborar para a dinâmica do complexo circuito mercantil. Como atividade extensiva na Capitania, no momento da venda do rebanho fazia-se a reunião do rebanho e em tropas caminhavam em direção aos currais próximos às cidades. O gado era vendido por cabeça/arrobas e seu preço variava de acordo com a raça, a qualidade (porte ou leiteiro), a condição física, e o valor da carne no mercado. O mercado extracapitania se desenvolvia entre Bahia-Sergipe, Pernambuco-Sergipe, e Sergipe-Minas. Já o mercado intracapitania se desenvolvia entre São Cristóvão-Litoral, Lagarto-Campos-Itabaiana, Sertão do São Francisco-Ilhas do São Francisco/AL. Desta maneira, o mercado da carne bovina dependia da demanda dos engenhos e das cidades. O mercado do couro dependia da demanda da produção do fumo e das feiras livres. Os currais portáteis foram importantes para estrumar as terras em que se pretendia semear o tabaco. Caracteristicamente a pecuária constituía-se em um sistema cujos mecanismos de comercialização não se encontravam sob seu controle.524 Nas exportações sergipanas, o gado tem parcela destacada, não só o boi em pé como couros secos, sola e cavalos para a cavalaria.525 Além do gado em pé, fornece o sertão a carne seca. É preciso lembrar ainda os subprodutos, couros salgados, curtidos, solas e vaquetas.526 O comércio e o consumo de carne relativamente avultado são propulsores de uma das principais atividades da colônia: a pecuária.527 As boiadas criadas em Sergipe eram um complemento indispensável à economia açucareira.528 O gado por ser um setor de monopólio real colaborava para a dinâmica do complexo circuito mercantil quando ele era um produto em substituição a outro nas exportações. Uma terceira função foi ser o um dos capitais para a expansão da economia açucareira. O gado tornou-se a principal riqueza durante todo o século XVII se estendendo até a segunda metade do século XVIII em Sergipe Colonial. Ainda no oitocento, o cultivo da cana-de-açúcar começou a se expandir em Sergipe, e foi à atividade econômica que logo enriqueceu e destacou o Vale de Cotinguiba superando o comércio de gado. Com a decadência da pecuária, muitos criadores migraram para a produção de açúcar. Assim, possivelmente, a renda gerada pela pecuária com a venda dos sítios, fazendas, e currais; pelo comércio da carne, e exportação de couros foi aplicada na expansão da economia açucareira. Se junta a este capital a concessão de crédito dado pela Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão e Salvador, e ordens religiosas e irmandades, o capital do tabaco, e investimentos e créditos vindos da Bahia, Alagoas e Pernambuco. Apesar de perder espaço nas exportações da Capitania, a pecuária se manteve como atividade econômica importante durante a expansão do açúcar, algodão e fumo durante este período colonial. Uma quarta foi acumular e concentrar riqueza nas mãos de um pequeno grupo. No século XVIII, a pecuária já não era a principal forma de acumular riqueza, mas a carne e couro eram importantes produtos de exportação de São Cristóvão. Na atividade criatória quem realmente acumulou riqueza foram os donos ou feitores dos currais, os mercadores, os curraleiros/criadores de gado, os marchantes, os transportadores de rebanhos e os donos de manufaturas de couro. A forma como se realiza a acumulação de capital dentro da economia criatória induzia a uma permanente expansão, sempre que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Cf. Juliana da Silva Henrique, Os “Livros de Registro de Entrada de Gado” da Feira de Capoame (1784-1811). IV Conferência Internacional de História Econômica & VI Encontro de Pós-Graduação em História Econômica. São Paulo: ABPHE, 2012. 523 Arquivo Histórico Municipal de Salvador. Fundo: Câmara, Seção:Tesouro, Sub-seção: Matadouro, Itens 172. Livros de Registro de Entrada de Gado de 1784-1811. 524 Cf. Francisco Carlos Teixeira da Silva, Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p.146. 525 Cf. Maria Thetis Nunes, Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 35. 526 Cf. Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Editora. Brasiliense, 23" edição, 1994.p.191. 527 Ibid., p.182. 528 Cf. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p.340.
164 ISSN 2358-4912 houvesse terras para ocupar, independentemente das condições de procura.529 Em contraposição aos mestiços e escravos libertos, vaqueiros e feitores pobres. O gado era comercializado internamente na Capitania e oferecia um mercado local fiel nas feiras livres. Ainda no século XVIII, em Laranjeiras/Sergipe, centro açucareiro, reunia uma imensa feira de gado, abastecendo os engenhos da capitania, enquanto a feira de Porto da Folha concentrava, à beira-rio, os artigos do Sertão.530 Este mercado possibilitou variar e sustentar os rebanhos até quase o fim do período imperial. A demanda por vaca, boi, cavalos e bestas em Sergipe advinha do setor açucareiro das principais regiões produtoras, das feiras dos centros urbanos da região, do fabrico de produtos alimentícios e do couro. O gado foi também uma mercadoria moeda. Ele era usado como moeda para fazer trocas, e pagar dívidas. Assim, aqueles poucos que permaneceram na pecuária acumularam e concentraram riqueza. Outra foi aumentar a riqueza pública através da tributação sobre o gado. Os impostos cobrados sobre os produtos da pecuária eram uma fonte de receita importante para a fazenda real da Capitania e da Coroa. Os principais eram: a finta, o dízimo sobre o gado, os direitos sobre animais, partido ao curraleiro criador, donativo imposto nos criadores de gado, e a taxa sobre bestas novas. Além de taxas alfandegárias cobradas sobre os couros curtidos, queijo e manteiga. Havia tributos cobrados nas travessias do gado nas barcas pelas passagens dos rios. Com tantos impostos era grande a sonegação de reses por parte dos curraleiros nos censos e inventários. “A expansão do gado, ocupando extensas áreas do sertão brasileiro, fomentando o comércio inter-regional, e a exportação do couro, mostram a sua importância na formação da riqueza colonial e de particulares”.531 Em 1782, a criação de gado já se apresentava decadente. É tão mau o método de criar, que os gados andam misturados os de um com os de outros donos, e só se distinguem pela marca do ferro, e sinal das orelhas.532 Nas palavras de Antônio Sousa, “antigamente criavam-se muitos gados nas grandes campinas, que tem pela beira-costa, e com tanta abundância, que se exportava algum para o Rio de Janeiro; porém não só se não exporta mais, compram muitas boiadas, e cavalhadas aos Mineiros que anualmente descem, porque aquelas campinas provando antigamente bem para a criação de gados, tanto vacum , como cavalar , hoje tem desmerecido por muitos motivos: 1º pela pequena qualidade dos gados; 2° pela escassez do leite nas vacas, e pouca manteiga, ou nata no mesmo leite; e pelo pouco sebo nos animais; 3° por darem as vacas por muito tempo de mamar aos bezerros, e falharem muitas parições; antigamente se contavam maravilhas não só dos pastos, corno dos animais, e suas produções”.533 Além das secas e da concorrência com outros centros da pecuária, estas foram em conjunto às causas da decadência da pecuária em Sergipe. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Conclusão Por que o gado é um elemento da riqueza? Porque ele foi uma das medidas da riqueza possuída pelos colonoos. Já que ter rês constituía um importante diferencial entre as famílias. E ainda a riqueza estava associada à posse de gado. Mesmo com a economia em transição da pecuária para o açúcar, o gado era extremamente presente e mantinha-se como uma referência em muitas atividades produtivas. A aquisição de rês representava um objetivo a atingir: manter a tradição, o poder e o status. Nesta sociedade, o gado tinha um papel central no raciocínio dos colonos. O tamanho da manada representava uma riqueza simbólica e um elemento fundamental para o estabelecimento do estatuto dos curraleiros e por extensão, dos membros da família. O estatuto de um indivíduo nesta sociedade é definido pelo trinômio: gado, terra, e escravos como símbolo de riqueza e prestígio. O gado constituiu uma riqueza e era uma forma de conservar e reproduzir a vida material, social e cultural. A pecuária em Sergipe no século XVIII era caracterizada por: reses de boa qualidade, criadas em currais de médio porte, e muitas estâncias de criação. Criava-se o gado com mão de obra ora escrava, ora livre. O principal destino do gado era o abastecimento do mercado interno colonial. Na Capitania 529
Cf. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. p.62. Cf. Francisco Carlos Teixeira da Silva, Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p.145. 531 Francisco Carlos Teixeira da Silva, op. cit., p.132. 532 Cf. Antônio Muniz de Sousa, Viagens e observações de hum brasileiro...Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1834. p.41 533 Antônio Muniz de Sousa, op. cit., p.124-125. 530
165 ISSN 2358-4912 de Sergipe, um indivíduo rico era aquele que possuía gado, terra, e escravos. O gado como elemento da riqueza significava um importante meio de mobilidade na hierarquia social. Se a riqueza é a situação que se refere à abundância na posse de gado e terra e se aplica à condição de alguém ter em abundância um determinado bem de valor. Esta riqueza implica um acordo social sobre o direito de propriedade. Logo, a riqueza está relacionado à estratificação social e a condição de grupo, poder e status. Nesta sociedade, aquele que não gerava riqueza e não consumia determinados produtos de luxo estava à margem da sociedade e do estilo de vida padrão. A posse e o nível de poder de compra hierarquizavam as relações sociais. Um bem para ser considerado como riqueza, precisava ser útil e sua utilidade era percebida quando se satisfazia as necessidades e desejos do indivíduo. Assim, o valor do gado como riqueza está condicionada ao seu uso, sua função, e seu papel junto aos indivíduos, e este valor é medido pelo seu caráter socioeconômico. Concluímos que mesmo com a riqueza transitando do gado para o açúcar, possuir gado ainda era um sinal de poder econômico e reconhecimento social.
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Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real, 1711. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1967. HENRIQUE, Juliana da Silva. Os “Livros de Registro de Entrada de Gado” da Feira de Capoame (17841811). IV Conferência Internacional de História Econômica & VI Encontro de Pós-Graduação em História Econômica. São Paulo: ABPHE, 2012. JABOATÃO, Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico: crônica dos frades menores da província do Brasil. (1761). Livro I, II e III. Rio de Janeiro: IHGB, 1858-62. LAPA, José Roberto do Amaral. O Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982. LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal et l’Europe Atlantique, le Brésil et l’Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, vol. XXXIV, Lisboa, Paris, Dez., 1995. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. NUNES, Maria Thetis. Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. PITTA, Sebastião da Rocha. Historia da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Academia Real, 1730. PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Editora. Brasiliense, 23" edição, 1994. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8. SOUSA, Antônio Muniz de. Viagens e observações de hum brasileiro...Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1834.
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O “SERVIÇO DAS ARMAS”: PATENTES E MILITARES NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB O A\REINADO JOSEFINO (1750-1777) André Fellipe dos Santos534 Considerações iniciais A confirmação das patentes militares, concedidas pelos capitães-mores no período colonial, era necessária, pois com ela era possível o solicitante galgar uma carreira no serviço das armas e na burocracia da Coroa portuguesa aquele mundo de Antigo Regime. O que se observa na documentação referente à Capitania do Rio Grande do Norte é que os militares que atuavam nessa região solicitavam uma confirmação régia, reforçando, portanto, a submissão à Coroa e busca de seus objetivos de ascensão social. Este artigo tem por objetivo analisar, a partir do estudo de cartas patentes e dos requerimentos de confirmação das mesmas, a configuração militar na Capitania do Rio Grande, observando os cargos distribuídos, bem como aonde essas patentes se concentravam; observando também é a estruturação desse documento, bem como a possibilidade de uma construção de perfil e trajetória dos “homens d’armas” estudados. Trata-se de militares, pelas observações feitas, que pertencem a grupos de ordenança. Os documentos utilizados estão localizados nos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU-RN), no período do reinado de D. José (1751-1777). Deve-se levar em consideração que nessa temporalidade (posterior à “Guerra dos Bárbaros”), a Capitania do Rio Grande já se encontrava num certo nível de estabilidade em relação aos conflitos com os indígenas. As tropas militares no contexto da Capitania do Rio Grande do Norte Para manter o controle sobre a população de suas conquistas ultramarinas, a Coroa portuguesa desempenhou uma série de procedimentos que visavam à proteção contra invasões estrangeiras, a defesa contra os indígenas rebeldes, o estabelecimento da ordem na colônia que, nesse sentido, teve nos organismos militares um dos responsáveis para assegurar as pretensões da Coroa portuguesa no “Brasil colônia”. O “Serviço das Armas”, portanto, esteve ligado a um sistema que serviu de base para sustentação da monarquia portuguesa com mercês, privilégios, isenções, desde a gestação da sociedade colonial535. Observa-se que as organizações militares adquiriam características diferentes em cada uma das partes do ultramar português, no que diz respeito à estruturação e composição dessas.536 As tropas de ordenança, por exemplo, que serviram durante o período colonial são apenas uma parte da estruturação militar portuguesa. No decorrer da História Militar, John Keegan classifica que há seis tipos principais em que os homens podem se organizar militarmente: o guerreiro, o mercenário, o escravo, a tropa regular, a milícia, e o recruta537. Tratando-se da organização militar no contexto das Capitanias do Norte no Estado do Brasil , em especial na zona açucareira, nota-se a presença de três tropas que predominavam, a saber:
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Graduando em História, UFRN, Orientador: Lígio José de Oliveira Maia,
[email protected] GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 58. 536 Idem. p. 60. 537 KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo. Companhia das Letras. 1995. Apud SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, p. 13. 535
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ISSN 2358-4912 Pela tropa de linha, ou regular, que corresponde ao exército profissional e burocrático português; pelas milícias, o conjunto de tropas auxiliares de reserva, gratuitas, de serviço voluntário; e pelas 538 ordenanças, o agrupamento dos homens restantes em idade militar de cada freguesia .
As tropas regulares ou simplesmente “tropas pagas” tinham um caráter de atuação permanente, profissional e pagas. Segundo Silva, essas tropas concentravam-se em especial em centros urbanos, em povoações cuja influência política era maior, além de guarnecerem fortalezas. Trata-se de uma tropa na qual o recrutamento era obrigatório. O perfil dos homens que compunham esse grupo militar era de solteiros e das mais baixas camadas sociais: vadios539 e criminosos, oficiais sem emprego ou sem renda. O ingresso a essas tropas se dava de maneira subversiva sobre as camadas inferiores. Em relação à manutenção dessas tropas Gomes informa que: Diante da impossibilidade ou indisposição da Coroa e das câmaras em arcar com as despesas de manutenção das tropas regulares, o investimento na mobilização e manutenção de efetivos pagos ficou restrito a regiões estratégicas e momentos de declarada tensão. Com a comunicação da descoberta do ouro na região das Minas Gerais na década de 1690, por exemplo, foram criadas companhias de Dragões de Cavalaria, formadas por soldados recrutados em Portugal, para reforçar o controle régio sobre a região e diminuir o poder e participação dos terços de milícias e 540 ordenanças comandados pelos poderosos locais .
Essa “impossibilidade” ou “indisposição”, como colocou Gomes, fez com que outros componentes desse organismo militar tivessem maior representatividade nas capitanias do Norte. As Milícias e as tropas de ordenança diferenciam-se das tropas regulares por serem de caráter local, ou seja, eram grupos locais que se organizam militarmente. As milícias aparecem como um conjunto de tropas auxiliares, gratuitas e de serviço voluntário. As tropas milicianas concentram-se, sobretudo, nas principais vilas da zona açucareira e também nas vilas sertanejas, a partir do século XVIII541. A composição dessas tropas se dava de forma bastante seletiva, eram homens que, de maneira geral, ocupavam uma mesma qualidade étnica e social. A participação nessas tropas era condicionada a renda suficiente, por parte do ingressante, para manter-se com armamentos e fardamentos, além do sustento dos demais integrantes dessas tropas, visto que elas não eram remuneradas. A presença desses homens considerados respeitados, abonados, trouxe às milícias um prestígio e status social para quem dela participasse. Essas milícias consistiam em terços e companhias de infantaria e cavalaria. A característica volátil dessas milícias permitia que elas, assim como as tropas regulares, participassem de ações em outros locais, deslocando-se do seu local de origem. Essas eram inclusive solicitadas pela Coroa para prestação de serviços, como aparece no ofício do governador da Capitania de Pernambuco, em 1775 ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, sobre o envio de um batalhão de Henriques e outro de pardos, para ser entregue ao vice-rei do Estado do Brasil542. Já em relação às ordenanças, observa-se que a criação desses corpos em Portugal deve-se à tentativa de reformar a antiga organização militar medieval. Esses encontraram resistência frente à população
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SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003, p. 142. 539 Silva define os vadios como aqueles que são excluídos dos meios de produção. Dentro da estrutura social canavieira são descritos como vagabundos, gente sem patrão ou ofício, constituído muitas vezes por escravos libertos ou brancos inválidos. Os vadios constituem um grupo considerado improdutivo, desligado de qualquer atividade, tornando-se marginais perante a sociedade. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.p. 15-18. 540 GOMES, José Eudes. Op. cit., p.107 541 SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit. p. 143 542 AHU – Pernambuco , Papéis Avulsos, Caixa 120, Doc. 9177.
168 ISSN 2358-4912 masculina portuguesa, pois sua maneira de arregimentá-los rompia com a tradição medieval “de que a obrigação de comparecimento a esse tipo de serviço só se justificava em caso de invasão do reino”543. As ordenanças foram organizações que se formaram localmente. Deveriam ser organizadas em terços, companhias e esquadras. Um terço era composto por aproximadamente 2500 homens. Esses eram divididos em 10 companhias que por sua vez eram formadas por 10 esquadras que possuíam 25 homens cada. Cada terço era comandado por um capitão-mor de ordenança. A eleição desses por parte da câmara só ocorria em caso de ausência de senhores da terra, ou se esses senhores não morassem na terra, ou ainda se o rei não nomeasse ninguém para o posto. Cada capitão-mor de ordenança escolhia os seus oficiais auxiliares (sargento-mor, alferes)544. Sobre as eleições desses cargos oficiais, Costa aponta que deveriam ser obrigatoriamente preenchidos por “pessoas principais da terra”, respeitando assim a organização hierárquica lusitana545. No Rio Grande observa-se nas cartas patentes expressões referentes aos oficiais como homens abonados, afazendados, homem nobre ou de conhecida nobreza, das principais famílias, reforçando, portanto, o prestígio por quem o exercia e de quem detinha esses cargos. Com isso, nota-se na criação das tropas de ordenanças um caráter de reformulação, a fim de atender as necessidades militares da Coroa de forma mais organizada, disciplinada, e sem deixar que esta não tivesse o controle sobre esta organização. As cartas patentes, e as requisições de sua confirmação reforçam esse controle, além de nos mostrar uma parte do perfil dos oficiais de ordenança.
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As cartas patentes e o panorama militar no Rio Grande do Norte Dentro da análise das patentes é preciso definir de que tipo de tropas aparece nos documentos. Alguns aspectos levam a crer que são de ordenança: em primeiro lugar, essas tropas não são pagas. Em algumas dessas cartas existem a expressão “não haverá soldo algum da Real Fazenda”, ou seja, não há despesas com esses oficiais. Outro aspecto é o próprio termo “ordenança” que aparece em suas patentes (sargento-mor de infantaria das ordenanças, coronel do regimento de infantaria das ordenanças). Assim, abordar-se-ão tais cargos enquanto composto por oficialatos de ordenanças. Raphael Bluteau define a carta patente como um documento em “que o superior declarava que dava licença ao seu súdito” para “exercitar algum ofício”546. O superior, no caso das patentes analisadas, é o capitão-mor da Capitania do Rio Grande. Trata-se de documentos padronizados, onde se pode observar algumas informações referentes ao perfil e trajetória dos escolhidos. No trecho a seguir, da carta patente de Francisco da Costa Vasconcellos observamos esses aspectos anteriormente citados: João Coutinho de Bargança, Cappitão Mor da Cidade do Natal Cappitania do Rio Grande do Norte, a cujo cargo está o Governo della, por S.[Sua] Mag.e[Majestade] Fidelliçima que Deus Goarde &tc [etc]. Faço saber, aos que esta minha carta patente virem, que porquanto se acha vago o posto de Coronel de Cavalaria do Regimento desta [...] e com effeyto nomearão entre os quais foy hum delles, Françisco da Costa de Vasconçellos, Capitão do mesmo Regimento, huma das principais pessoas desta Cappitania, e dos mais afazendados della; por tal, e por me constar por documentos, que me aprezentou, haver servido nas tropas pagas da Cidade da Parahiba de Soldado da mesma, e nesta e no dito Regimento actualmente tem exercido de Capitão de huma das Companhias delle, das honze que este se compoem, e no Sennado da Camara desta Cidade ocupado os melhores lugares della, como sejão, o de Juis ordinr.º[ordinário], e outros mais que me consta ter servido com muyta satisfação, e Zello do Real Serviço, sempre com louvável procedimento, e melhor obediência em tudo quanto por mim, pellos meus antecessores, e seus offiçiaes mayores, lhe tem sido emcarregado
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Para maiores informações sobre o contexto do surgimento das ordenanças ver: GOMES, José Eudes. Op. cit., p. 75 -77. 544 GOMES, José Eudes. Op. cit. p 77. 545 COSTA, Fernando Dores. Insubmissão: aversão e inconformidade sociais perante os constrangimentos do estilo militar em Portugal no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade de Nova Lisboa, Lisboa, 2005 Apud GOMES, José Eudes. Op. cit. p. 78 546 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. [vol.6]. Coimbra:, 1712.
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ISSN 2358-4912 pertençente ao serviço e por esperar delle que daqui em diante, se haverá da mesma maneira, em 547 muyto como deve a boa confiança que faço ao servisso de Sua pessoa.”(grifos meus) .
A análise dessas cartas patentes permite-nos recolher informações relevantes. Abril escreve que o estudo dessas patentes nos ajuda a “perceber a importância de uma trajetória administrativa em colônias: dos caminhos que um indivíduo constrói ao longo do ofício em que está encarregado”548. Como dito anteriormente, o responsável pela distribuição dos cargos militares era o capitão-mor. Segundo o Regimento dos Capitães-Mores [1570] a “eleição dos Capitães das Companhias, Alferes, Sargentos e mais Oficiais delas, se fará em Câmara pelos Oficiais dela e pessoas que costumam andar na Governança dos tais lugares”; na Câmara ainda ocorria o juramento dos Santos Evangelhos desses oficiais.549 Outra informação importante presente nas patentes é o que diz respeito ao ‘beneficiado’, podendo assim traçar um pouco do perfil dos oficiais indicados, as trajetórias desses indivíduos e quem eram e aonde serviram. No geral, eram homens já reconhecidos e influentes na sociedade, sendo eles “das principais pessoas desta capitania”, afazendados ou abonados, e que já possuíam algum status, reconhecimento e prestígio nas ribeiras aonde atuavam. Eles já possuíam alguma experiência militar, tal como registra a carta patente anterior que concedia o posto de Coronel de Cavalaria a Francisco da Costa de Vasconcelos; como menciona o documento, antes de receber a mercê no dito posto consta “haver servido nas tropas pagas da Cidade da Parahiba de Soldado da mesma, e nesta e no dito Regimento actualmente tem exercido de Capitão de huma das Companhias”550. O exemplo da patente do coronel Francisco ainda apresenta um ponto relevante no conteúdo desses documentos, e que contou como um dos requisitos que qualificaram o dito oficial para assumir o tal cargo; o mesmo era um dos homens que compunha o Senado da Câmara da Paraíba onde ocupou um enobrecido cargo de Juiz Ordinário. Além de cargos militares, as patentes ainda podem apresentar quais serviços que foram realizados pelo beneficiado. Muitos desses homens tinham nesses postos um status de privilégio na sociedade colonial, bem como dentro da instituição militar. Aos oficiais superiores cabia honrar e estimar qualquer oficial, aos “subalternos e soldados da dita Ribeira lhe obedeção cumprão e guardem suas ordens de palavra e por escrito tão pontual e inteiramente como devem, e são obrigados”551. Outro ponto relevante presente nas cartas patentes é a razão pela qual o posto em questão se achava vago: alguns por ‘deixação’, isto é, porque abandonaram o posto; outros porque o antecessor foi promovido ou transferido para outra ribeira; há também vaga por falecimento, entre outros fatores. Um caso divergente deste quadro diz respeito a nomeação de Davi Dantas de Faria no posto de Coronel de Cavalaria do Regimento do Assú, cargo até então ocupado por Antonio da Rocha Bezerra, que foi deposto do cargo por incapacidade. A carta mostra que os moradores desta Ribeira fizeram uma representação ao capitão mor Pedro de Albuquerque e Mello contra Antonio da Rocha “das insolências, e perturbações” por “ser hum homem pitulante, e da sua pitulançia, tem resultado naquella dita Ribeyra muitas das Ordens, em disservissos de Sua Majestade”; essas atitudes renderam ao senhor Antonio da Rocha uma sentença do Ouvidor Geral da Paraíba “na qual lhe deu tres annos de degredo para hum dos lugares de Africa, e comdemnação de tresentos mill para as despesas da Justiça pella desobediência que fes a mesma Justiça, e atendendo eu mayores desordens naquella Ribeyra”552. Com isso observamos que o fato de possuir uma patente, não garantia ao beneficiado a permanência no cargo. A partir da análise dessas cartas patentes e requerimentos de confirmação das mesmas, constrói-se o seguinte quadro:
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AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 421. ABRIL, Victor Hugo. Centralidades repartidas de poder: governo colonial e instituições locais. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 549 Regimento dos Capitães-Mores [1570]. Disponível em: . Acesso em 01/05/2014. 550 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 421. 551 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 368. 552 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 397. 548
170 ISSN 2358-4912 Distribuição de Cartas Patente na Capitania do Rio Grande no reinado josefino (1750-1777) Favorecido Tipo de Patente Local Ano Capitão Mor Manuel Coelho Capitão de Infantaria Ribeira do 1751 Francisco Xavier de Serrão Potengi Miranda Henriques Gaspar de Paiva Capitão de Infantaria Ribeira de [anterior Francisco Xavier de Baracho Goyaninha a 1751] Miranda Henriques Antonio de Paiva Capitão de Infantaria Ribeira do 1740 Francisco Xavier de da Rocha Mopebu Miranda Henriques Bernardo de Faria Capitão de cavalos Ribeira do 1742 Francisco Xavier de e Freitas Cunhaú Miranda Henriques Maximiliano Sargento-Mor Ribeira do 1750 Francisco Xavier de Pereira Torres Potengi Miranda Henriques João Gonçalves Coronel do Regimento de Ribeira do 1751 Pedro de de Melo Cavalaria Seridó Albuquerque e Melo Gonçalo Freire de Coronel do Regimento de Capitania do 1752 Pedro de Amorim Infantaria Rio Grande Albuquerque e Melo Sebastião Dantas Tenente-Coronel do Capitania do 1751 Pedro de Correia Regimento de Cavalaria Rio Grande Albuquerque e Melo Antonio de Paiva Sargento-Mor de Infantaria Cidade do 1754 Pedro de da Rocha Natal Albuquerque e Melo João Francisco Capitão de Cavalaria Capitania do [anterior Pedro de Ribeiro Rio Grande a 1754] Albuquerque e Melo Jerônimo Cabral Sargento-Mor de Cavalaria Ribeira do Açu 1755 Pedro de de Macedo Albuquerque e Melo David Dantas de Coronel de Cavalaria Ribeira do Açu 1756 Pedro de Faria Albuquerque e Melo Alexandre Coronel de Cavalaria Ribeira do 1755 Pedro de Rodrigues da Seridó Albuquerque e Melo Cruz Cipriano Lopes Coronel de Cavalaria Ribeira do 1758 João Coutinho de Galvão Seridó Bragança Francisco da Coronel de Cavalaria Cidade do 1759 João Coutinho de Costa de Natal Bragança Vasconcelos José da Costa de Capitão de Cavalos Ribeira do Açu 1758 João Coutinho de Carvalho Bragança Sebastião Dantas Tenente-Coronel de Cavalos Cidade do 1755 João Coutinho de Correia Natal Bragança Manuel Antonio Capitão de Cavalos Ribeira do 1755 João Coutinho de das Neves Seridó Bragança Francisco Capitão de Cavalos Ribeira do 1758 João Coutinho de Ferreira Souto Mossoró Bragança V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
(Fonte: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 351; Caixa. 6, Doc. 357; Caixa 6, Doc. 358; Caixa 6, Doc. 359; Caixa 6, Doc. 368; Caixa 6, Doc. 369; Caixa 6, Doc. 370; Caixa 6, Doc. 383; Caixa 6, Doc. 386; Caixa 6, Doc. 387; Caixa 6, Doc. 396; Caixa 7, Doc. 397; Caixa 7, Doc. 406; Caixa 7, Doc. 420; Caixa 7, Doc. 421; Caixa 7, Doc. 423; Caixa 7, Doc. 424; Caixa 7, Doc. 427; Caixa 7, Doc. 428.)
No quadro, observa-se um levantamento geral das informações contidas nessas patentes: o nome do favorecido, a patente em questão, o local em que foi designado, bem como o ano e o Capitão Mor que a concedeu. Outro dado importante é a disposição dessas patentes, pois nota-se que, em sua maioria, são oficiais designados para tropas de cavalaria. O quadro ainda permite-nos perceber a distribuição dessas patentes por localidades. Das 19 patentes analisadas, 4 são para a Ribeira do Seridó, 3 para capitania do Rio Grande; 2 para as Ribeira do Assú, Potengi e cidade do Natal; e 1 para as Ribeiras do Mipibu e Cunhau. O número reduzido de
171 ISSN 2358-4912 patentes levantadas até aqui, não nos permite construir um quadro mais completo, ou chegar a uma hipótese mais abrangente, senão das questões até agora disponibilizadas e já discutidas. Ainda é possível através de cruzamento de fontes, observar quem eram esses homens, seus núcleos familiares e algumas de suas posses, nesse sentido, foi possível obter dados de dois desses homens d’armas até aqui. O coronel de milícias Alexandre Rodrigues da Cruz era português e possuiu uma criação de gado na fazenda Acauã Velha, no Acari. Além disso, o coronel ainda possuiu uma sesmaria na Serra do Dorna, em Currais Novos-RN. Foi casado com Vicência Lins de Vasconcelos e tiveram duas filhas. A primeira, Ana Lins de Vasconcelos, casou-se com Antônio de Sá Barroso, e a segunda, Teresa Lins de Vasconcelos, que casou-se com Francisco Cardoso dos Santos, um português, que residia no Acari. A esposa do coronel, segundo indícios, também era natural de Portugal, e teria sido parenta muito próxima de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, esposa do Coronel Cipriano Lopes Galvão, do Totoró553. O Coronel Cipriano Lopes Galvão era natural de Igaraçu, Pernambuco. Em 1721, ele foi inventariante dos bens deixados por seu pai, cujo inventário processou-se em Goianinha, na Capitania do Rio Grande do Norte. Cipriano Lopes Galvão foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da Ribeira do Seridó, o mesmo adquiriu uma sesmaria por nome Totoró, aonde fixou uma fazenda de criação de gado. O dito coronel ainda possui, na Serra de Santana, um aviamento para o fabrico de farinha de mandioca. Ele foi pai do Capitão-mor da Capitania do Rio Grande do Norte Cipriano Lopes Galvão554. A partir da análise desses dois personagens é possível observar um pouco da figura desses homens d’armas. Após receber as patentes, os militares requeriam a confirmação desses postos ao rei. Ao requerer a confirmação das patentes ao rei os oficiais reforçam a submissão à Coroa e busca de seus objetivos, além de atenuar o fato de que exercer um posto militar não é algo permanente. Em muitos desses documentos não há o registro da confirmação dessas patentes. Ao confirmar a ‘validade’ dessas patentes o rei dava o parecer favorável solicitante como é observado no trecho à seguir: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Faço saber a vos Capitam Mor da Cappitania do Rio Grande, que Gaspar de Payva Baracho, requereu no meu Concelho Ultramarino a confirmaram da Patente que lhe passou o Capm[capitão] Mor vosso antessessor Francisco Xavier de Miranda Henriques, do posto de Capitão de Infantaria da Ordenança da Ribeyra de Goyaninha, do Regimento de que he Coronel Theodozio Freire de 555 Amorim .
O caso de Gaspar de Paiva Baracho nos faz pensar em outras situações, pois o dito oficial só requereu ao rei a confirmação da sua patente onze anos após ter recebido sua carta pelo capitão mor, e já no ano seguinte recebeu a confirmação por parte do rei. Essa situação repete-se com a de Bernardo de Faria e Freitas que requereu a confirmação nove anos depois de ter recebido a carta patente, e no ano seguinte também recebe a confirmação do rei. Além desses dois casos ainda existe o de Antonio de Paiva da Rocha que requereu confirmação onze anos após ter recebido sua carta patente por mãos do capitão-mor da Capitania do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques556. Ao observar esses casos surge o questionamento do por que na demora em solicitar a confirmação dessas patentes. Considerações finais Este trabalho teve o objetivo de abordar um tipo de documentação ainda pouco explorado na historiografia: as cartas patentes e os requerimentos de confirmação das mesmas. Ao estudá-los, pôdese notar que são documentos que dão grande contribuição para a construção historiográfica militar. Apesar de serem padronizados, contém informações que, com cruzamento de dados e com uso de outras fontes, permite-nos o traçado do perfil desses oficiais, além de características militares e políticas da Capitania do Rio Grande.
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MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Senado Federal, Centro gráfico, 1981, p.251. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 369-373. 555 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 357. 556 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 358. 554
172 ISSN 2358-4912 Trata-se de uma abordagem inicial que será aprofundada posteriormente, tal estudo permite-nos atentar para as possibilidades ao estudar as cartas patentes e os requerimentos de confirmação, além de uma contribuição para a construção de uma História Militar do Rio Grande do Norte.
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Referências ABRIL, Victor Hugo. Centralidades repartidas de poder: governo colonial e instituições locais. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra, 1712, vol. 06. BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Senado Federal, Centro gráfico, 1981. RODRIGUES, Victor Luís Gaspar. As companhias de ordenança no estado português da Índia (15101580): ensaios de criação, razões do insucesso. Oceanos, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n. 19, p. 212-218, 1994. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001. ______. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.
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ISSN 2358-4912 A ATUAÇÃO DO OUVIDOR LUÍS FERREIRA DE ARAÚJO E AZEVEDO NOS SEQUESTROS DOS BENS DE INCONFIDENTES MINEIROS: O CASO DE HIPÓLITA JACINTA TEIXEIRA DE MELO557 André Figueiredo Rodrigues558 Existem poucos dados biográficos sobre Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Sabe-se que nasceu em 1722, pois na ocasião da Inconfidência Mineira tinha 67 anos. Ele veio de Angola, onde era juiz de fora, para as Minas Gerais nomeado ouvidor, corregedor e provedor dos defuntos e ausentes da comarca do Rio das Mortes por Decreto, de 10 de abril de 1779, tomando posse em São João del-Rei em 22 de abril de 1780.559 Poucos meses antes do final de seu mandato, oficiais da Câmara de São José, atual Tiradentes, enviaram representação ao Conselho Ultramarino solicitando a permanência do ouvidor no cargo. Em maio de 1783, nova representação pedia a prorrogação de sua serventia. Essas solicitações foram tão positivas que exerceu o cargo de ouvidor por três triênios consecutivos, de 1780 a 1790.560 O mestre de campo Inácio Correia Pamplona, em depoimento como testemunha na devassa mineira, em 30 de junho de 1789, informou que o ouvidor Luís Ferreira participou do batizado de dois dos filhos de Inácio José de Alvarenga Peixoto, realizado na vila de São João, em 8 de outubro de 1788, cerimônia que reuniu os principais líderes da Conjuração Mineira e transformara-se em mais uma das reuniões sobre o levante.561 Não se pode concluir, como lembrou Márcio Jardim, que apenas por presenciar a festa do batizado tenha sido ele um inconfidente. Entretanto, como o denunciante Pamplona lembrou os nomes de Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís Vaz de Toledo Piza e padre Carlos Correia de Toledo e Melo, todos estes revoltosos e efetivamente envolvidos no projeto de uma sedição em Minas Gerais, surgiu a suspeita de que Luís Ferreira fosse um dos importantes conspiradores da comarca do Rio das Mortes que não foram presos.562 A cumplicidade de Luís Ferreira pelas ideias e amizade que mantinha com pessoas detidas como inconfidentes foi denunciada em carta anônima dirigida ao visconde de Barbacena. Com riqueza de detalhes e narrando acontecimentos da vida são-joanense, seu autor enumerou acusações de irregularidades cometidas pelo ouvidor no exercício de seu ofício, inclusive algumas atitudes e atos
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Este texto, com modificações, se baseia em informações extraídas de nossa tese de doutorado Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise dos sequestros de bens dos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes, defendida no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), em 2008, e que contou com o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – processo nº 2004/15892-5. Vale a ressalva que “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”. 558 Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis,
[email protected] 559 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Manuscritos Avulsos da Capitania de Minas Gerais [doravante AHU/MAMG], cx. 117, doc. 81 – Carta de D. Rodrigo José de Menezes, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a ineficiência do Tribunal da Junta da Fazenda e solicitando providências a fim de alterar tal situação. Vila Rica, 31/12/1781; AHU/MAMG, cx. 114, doc. 36 – Decreto de D. Maria I, concedendo ao bacharel Luís Antônio de Araújo e Azevedo o lugar de ouvidor do Rio das Mortes. Lisboa, 10/4/1779; BIBLIOTECA MUNICIPAL BAPTISTA CAETANO D’ALMEIDA. Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei, ACOR 06, fls. 131-132 – Auto de posse dado ao dr. Luís Ferreira de Araújo e Azevedo do lugar de Ouvidor, Corregedor e Provedor dos Defuntos e Ausentes da comarca do Rio das Mortes. 560 AHU/MAMG, cx. 118, doc. 10 – Representação dos oficiais da Câmara de São José, pedindo a continuação da ocupação no cargo de ouvidor-geral da Comarca do Rio das Mortes, por Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São José, 6/2/1782; AHU/MAMG, cx. 119, doc. 34 – Representação dos oficiais da Câmara de São José, pedindo a prorrogação da serventia de Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. São José, 17/5/1783. 561 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Códice 5: Inconfidência em Minas Gerais – Levante de Tiradentes [de agora em diante ANRJ/ADIM-C5], v. 1, fl. 88v – Inquirição da testemunha Inácio Correia Pamplona. Vila Rica, 30/6/1789. 562 JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989, p. 245.
174 ISSN 2358-4912 que demonstraram ser o denunciado partícipe do movimento de contestação que se preparava em Minas.563 Apesar de a maioria dos fatos alegados contra o ouvidor ser documentável, a interpretação é desafetuosa e a incriminação despida de prova material. Mesmo com a apresentação de nomes de testemunhas que comprovariam as afirmações, o governador decidiu não aprofundar as investigações sobre os suspeitos. De acordo com a carta-denúncia, Luís Ferreira era corrupto, demonstrava sentimentos antilusitanos em público e era amigo particular do padre Toledo e de seu irmão Luís Vaz, de José Aires Gomes, de Francisco Antônio de Oliveira Lopes e de Alvarenga Peixoto. Acusações, aliás, semelhante às feitas pelo governador dom Rodrigo José de Meneses contra ele, em carta de 31 de dezembro de 1781, ao ministro Martinho de Melo e Castro, ao acusá-lo de arrogante, corrupto, desordeiro e ignorante.564 Ignorância presente no modo como se expressava, na maneira como escrevia a Língua Portuguesa recheada com vícios dos estratos sociais mais baixos e nas sentenças despropositadas que sua pena e/ou de seus ajudantes proclamavam nos documentos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
onde chegam as ridículas sentenças que tem o trabalho de lançar nos autos depois de terem sido feitas por um rábula seu assessor, que mandando-lhas escrita em papéis separados, tem já sucedido ele enganar-se trocando-as, e lançando as sentenças de degredo em ações de Libelo Cível, o que é 565 notório por toda a parte.
Quando os desembargadores José Pedro Machado Coelho Torres e Marcelino Pereira Cleto chegaram à vila de São João del-Rei para inquirir testemunhas para o processo de devassa aberto para julgar o crime de Inconfidência, em 1789, o ouvidor Luís Ferreira bajulou-os, “oferecendo-lhes obséquios, touros, saraus e passeios públicos fora de hora”, com receio de que alguém tocasse em seu nome. Para evitar quaisquer problemas, Luís Ferreira indicou as pessoas que deviam testemunhar, intimando outras a não comparecerem perante os juízes. Atitudes que, segundo o missivista da denúncia anônima, não foram percebidas pelos juízes da Alçada, por estarem “sempre cercados dos meirinhos e escrivães da ouvidoria”, ou assistidos em casa e acompanhados sempre pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo Azevedo.566 Esses relatos comprovam o jogo da corrupção na política e na economia da Inconfidência. De todas as acusações merecem destaque as que indicaram que Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, esposa do inconfidente Francisco Antônio, foi favorecida pelo magistrado no processo de sequestro de seus bens: Não menos ir fazer sequestro, por ordem de Vossa Excelência, à mulher do coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, e esta lhe dar três vacas paridas sabe Deus pelo que; e ele as mandar vir para a chácara do seu meirinho geral Antônio José Simões, onde estão hoje. O que é público e o sabem: o capitão Leandro Barbosa da Silva; o ajudante Tomás da Costa Salvador; e o sargentomor pago Joaquim Pedro da Câmara. E na mesma ocasião, induziu e persuadiu ele e o seu meirinho geral, à D. Hipólita, que devia mandar pessoa ao Rio de Janeiro indagar o bom e o mau sucesso da prisão do marido e que, com algumas dádivas, alcançasse favores – o que poderia conseguir porque ‘o dinheiro vencia tudo’. Ela lhe certificou que estavam prontos 10 ou 12 mil cruzados. Para este fim, lhe introduziram um filho do dito meirinho geral do mesmo nome, Antônio José Simões Dias, o qual foi há dias à Ponta do Morro, e se tem andado a preparar para quando chegar o dito ministro [Luís Ferreira de Araújo e Azevedo] e seu pai [o meirinho geral Antônio José Simões, o velho], do sequestro do coronel Alvarenga [que ambos foram realizar em Campanha e São Gonçalo do
563
. ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 2, fl. 18v-19 – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789. 564 AHU/MAMG, cx. 117, doc. 81 – Carta de D. Rodrigo José de Menezes, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a ineficiência do Tribunal da Junta da Fazenda e solicitando providências a fim de alterar tal situação. Vila Rica, 31/12/1781. 565 . Ibidem; ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Seção Colonial [doravante APM/SC], cód. 224, rolo 46, gav. 3, fl. 125v – Carta de D. Rodrigo José de Meneses a Martinho de Melo e Castro. Vila Rica, 31/12/1781. 566 . ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 42, fls. 2-2v – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789.
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ISSN 2358-4912 Sapucaí com Bárbara Eliodora] para ir logo para o Rio. Testemunhas: Joaquim Barbosa, porteiro; 567 o capitão Joaquim Simões de Almeida; e os mais que os ouviram.
O coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes nasceu em 1750, na Borda do Campo, atual Barbacena. Era filho de José Lopes de Oliveira e Bernardina Caetana do Sacramento. Em 1781, aos 36 anos de idade, casou-se com Hipólita Jacinta, mulher de família abastada que trouxe para o casamento apreciável dote que, oito anos mais tarde, seria sequestrado pela devassa. Dona Hipólita, nascida em Prados, era filha de Clara Maria de Melo e do capitão-mor Pedro Teixeira de Melo e irmã do então ocupante desse posto na vila de São José del-Rei, Gonçalo Teixeira de Carvalho. O casal morava na fazenda da Ponta do Morro, entre a vila de São José e o arraial de Prados, e nunca teve filhos legítimos. Mas o casal criou duas crianças: Francisco da Anunciação Teixeira Coelho e Antônio Francisco Teixeira Coelho, filho ilegítimo de Maria Inácia Policena da Silveira (irmã de Bárbara Eliodora, esposa do inconfidente Alvarenga Peixoto) e do marechal de campo Antonio José Dias Coelho.568 Única mulher que participou da Inconfidência, Hipólita é citada em dois episódios registrados no processo de devassa. Ela tinha pleno conhecimento das discussões sobre a revolta e participava ativamente em 1789. Ela destruiu uma denúncia completa que seu marido escrevera para levar pessoalmente ao governador, visconde de Barbacena, delatando o movimento, como tentativa para diminuir a pena por ter-se envolvido no intento sedicioso.569 Também ateou fogo em todos os papéis que julgou poder incriminá-los.570 Em uma carta enviada em maio de 1789 ao marido, acolhido na fazenda Paraopeba, denunciou a traição de Joaquim Silvério dos Reis e mencionou o destino de outros inconfidentes. Sem mostrar muitas dúvidas, dizia que “se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o alferes Tiradentes para que vos sirva, ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”, conforme bilhete enviado ao padre Toledo, por intermédio de seu compadre Vitoriano Gonçalves Veloso. No mês seguinte, em 12 de junho de 1789, seu marido Francisco Antônio de Oliveira Lopes foi preso, por causa de seu envolvimento com os inconfidentes. Por pronunciarem práticas de lesamajestade, ou seja, por proporem uma insurreição contra a autoridade real na capitania de Minas Gerais, os sediciosos foram penalizados, de imediato, com o sequestro de seus bens.571 À família Oliveira Lopes coube a perda total de seus pertences, sem direito à meação da mulher, nem mesmo dos bens indivisos da herança paterna, que dona Hipólita tinha direito. A apreensão dos bens do casal iniciou-se, em 25 de setembro de 1789, na fazenda Ponta do Morro, e contou com a presença do meirinho Antônio José Simões Dias, o pai, e do ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, que apreenderam a propriedade, 430 animais de criação e 74 escravos, assim como os utensílios e os rendimentos das extrações de ouro. O ouvidor e seu ajudante pouparam os objetos de dentro da casa e seus bens pessoais, a revelia da ordem governamental que determinava a listagem e apreensão de tudo o que se encontrasse em posse da família. Após incessante luta para reaver a parte que lhe cabia dos bens sequestrados, já que inicialmente negaram-lhe o direito à meação conjugal, Hipólita Jacinta, guiando-se possivelmente por sugestão do ouvidor Luís Ferreira, escreveu ao secretário do Ultramar em Lisboa, dom Rodrigo de Sousa Coutinho, alegando que parte dos pertences apreendidos em sua casa era de sua herança paterna.572 Os argumentos e as provas apresentadas foram convincentes e, por isso, ela obteve despacho favorável. 567
. Ibidem, fl. 3v. Grifos do original. “Óbito e registro do testamento de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva do Inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes”. Prados, 27/04/1828. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 431-433. 569 “Auto de perguntas ao coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes”, 1ª inquirição, Cadeia Pública (Vila Rica), 15/6/1789. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira [daqui por diante ADIM]. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1978, v. 2, p. 57. 570 “Formação de culpa: inquirição da testemunha Francisco Antônio de Oliveira Lopes”, Casa do desembargador José Pedro Machado Coelho Torres (Vila Rica), 8/8/1789. In: ADIM, 1981, v. 4, p. 158. 571 Sobre os sequestros empreendidos aos inconfidentes mineiros, conferir: RODRIGUES, André Figueiredo. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010. 572 Infelizmente, não foi possível descobrir quais bens eram dela e quais eram do sequestro. Na documentação não consta o Auto de Partilha. Sabemos, apenas, que a partilha ocorreu. Conferir: “D. Rodrigo de Sousa Coutinho 568
176 ISSN 2358-4912 Com o Despacho de dom Rodrigo, a favor da meação do patrimônio de Francisco Antônio, dona Hipólita conseguiu salvaguardar parte de seus bens de casada, mais os oriundos da herança paterna. Esta informação corrige o exposto pela historiografia que afirma que Hipólita foi a única esposa de inconfidente a não conseguir a meação do patrimônio do marido, por ter sido penalizada pelo visconde de Barbacena devido à sua participação ativa no movimento insurreto.573 Na verdade, ela foi a última mulher a conseguir reaver o que lhe pertencia (1804); no mínimo, uma década depois das demais senhoras. Na ocasião dos sequestros, dona Hipólita declarou à Justiça, estrategicamente, bens que em grande parte eram de sua sogra Bernardina Caetana, uma vez que ela e seu marido eram os testamenteiros da matriarca. O patrimônio foi apreendido pela devassa, como se fosse do “degredado e confiscado” Francisco Antônio, e estava sendo administrado pelo fiel depositário Pedro Joaquim de Melo, primo de Hipólita Jacinta.574 Por “repetidas vezes”, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira, irmão do inconfidente Francisco Antônio e cunhado de dona Hipólita, apresentou certidões para que o fiel depositário entregasse os bens de sua mãe, desmembrando-os do sequestro ocorrido em 25 de setembro de 1789. Mesmo com a possibilidade de ser preso pelo não cumprimento dessa medida, como escrito nos atestados, o fiel depositário e primo de dona Hipólita, não se interessou pela divisão patrimonial, deixando-o integrado ao sequestro. Inconformado e ao perceber o descaso e a falta de empenho em se fazer cumprir a decisão judicial, a qual lhe foi favorável a devolução dos bens da herança de sua mãe, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira tomou uma iniciativa em agosto de 1794: denunciou ao juiz responsável pela devassa, Antônio Ramos da Silva Nogueira, a artimanha montada por sua cunhada e acobertada pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Alegou que a restituição dos bens estava desfavorável aos seus interesses e, também, aos do Estado metropolitano, pois, enquanto o que lhe pertencia por herança estava listado como patrimônio do inconfidente, o que cabia ao seu irmão e deveria ser objeto da real apreensão, foi omitido da devassa. Com a delação, esperava ganhar a confiança e o respeito do devassante quanto à solução da disputa familiar. Transcrevamos a apresentação dos fatos:
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Diz o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira, que no sequestro que se procedeu por este Juízo na Ouvidoria do Rio das Mortes contra o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes compreendido, condenado, e definitivamente sentenciado pelo delito de Sublevação se ocultaram muitos bens, que o suplicante denuncia quais são os do Rol junto, e poderão ainda haver muito mais como há de constar do Inventário feito entre dona Hipólita Jacinta Teixeira, mulher do dito proscrito, e seu irmão capitão-mor Gonçalo Teixeira, que todos pertencem ao referido sequestro por ser o suplicante dito condenado no perdimento de sua inteira meação, e para segurança dos 575 mesmos, e sobre eles requer o suplicante seus direitos, e ações que lhe competirem.
Foi devido às brigas familiares causadas pela herança de Bernardina Caetana que detectamos processos de sonegação e corrupção presentes nos Autos de Devassa. O patrimônio escondido contava com vários escravos, “muitos trastes de casa”, como jarros, bacias de prata, dois faqueiros “de colheres, – Ofício à Junta da Real Fazenda da Capitania de Minas Gerais mandando informar sobre o requerimento de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva de Francisco Antônio de Oliveira Lopes”. Lisboa, 28/09/1802. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 368; “Contadoria Geral – Informação sobre requerimento incluso de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, relativo ao sequestro de sua meação”. Rio de Janeiro, 17/10/1804. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 386-387. 573 A historiografia a que me refiro é composta, por exemplo, por: OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de. Nota explicativa ao Apenso XXXVII. In: ADIM, 1981, v. 3, p. 407; REIS, Liana Maria. A mulher na Inconfidência (Minas Gerais – 1789). Revista do Departamento de História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 9, p. 86-95, 1989, p. 93; VALE, Dario Cardoso. Memória histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n.], 1985, p. 92; VIEIRA, José Crux Rodrigues. Tiradentes: a Inconfidência Mineira diante da história. Belo Horizonte: 2º Cliche Comunicação & Design, 1993, v. 2, t. 1, p. 329-332. 574 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO (doravante IHGB). DL 101.2, fl. 15 – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 575 Ibidem, fl. 42. Grifo nosso.
177 ISSN 2358-4912 garfos e facas de cabo de prata”, “várias dúzias de cadeiras, baús, caixas e armários” e “várias dúzias de louças de prata da Índia e de pó de pedra”.576 Entre os bens semoventes foram encobertos bois, vacas, cavalos, éguas e potros, com suas selas e arreios. Todos estes bens estavam “ocultos nas fazendas da Laje, Gales e Ponta do Morro e em casas de Pedro Joaquim de Melo [o fiel depositário] e do tenente Antônio Gonçalves [de Moura]”. Quanto aos bens imóveis registrou-se a indicação da desconhecida fazenda Bananal, localizada no termo de Mariana, que foi vendida ao coronel João Damasceno, sendo que este ainda devia a maior parte das prestações de compra da propriedade.577 Nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira não existe qualquer menção às fazendas chamadas Gales e Bananal como pertencentes ao conjurado Francisco Antônio. O próprio desembargador Antônio Ramos da Silva Nogueira achou estranha a omissão daqueles bens de raiz, chegando a sublinhar no manuscrito a indicação da existência da fazenda Bananal, de tão surpreendente que foi a sua descoberta.578 Quando foi chamada para depor na inquirição de sequestro dos bens denunciados pelo seu cunhado, Hipólita Jacinta disse que desconhecia quaisquer bens existentes nas fazendas Bananal e Laje. Na fazenda Gales, localizada no termo da vila de São José, os inquiridores apreenderam nove cabeças de gado vacum. Ainda, em São José, na fazenda Carandaí, do capitão Antônio Gonçalves, foram encontradas e sequestradas várias éguas e bois que pertenciam ao casal Hipólita e Francisco Antônio.579 Mas, de todas as omissões, as mais significativas foram as dos escravos: 74 cativos não apareceram listados no sequestro coordenado pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Manuel Caetano entregou ao juiz Antônio Ramos da Silva Nogueira lista contendo os nomes dos escravos furtados do inquérito da Inconfidência. Estes números são impressionantes: metade de sua unidade escravista esteve subtraída às escondidas da devassa. Nos Autos de Devassa, em sua edição impressa, está registrado que Francisco Antônio teve 69 mancípios apreendidos. Na documentação original seus números chegaram a 74 pessoas listadas. Dona Hipólita, em 27 de abril de 1795, quando inquirida sobre os bens “ocultos ao sequestro” e que foram “denunciados no Juízo dos Feitos do Contencioso da Real Fazenda”, apresentou as seguintes justificativas para que os 74 escravos omitidos não aparecessem na lista do sequestro:
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576
ANRJ/ADIM-C5, v. 7, doc. 2, fls. 1-7 – Traslado do sequestro feito a Francisco Antônio de Oliveira Lopes. IHGB. DL 101.2, fls. 44-44v; 78v-80v – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes. Além desses bens, denunciou-se, ainda, “um crédito, ou execução que é devedor Manuel Inácio Rodrigues, cuja ação principiou contra Manuel Antônio camarada do dito Manuel Inácio Rodrigues”. In: Ibidem, fl. 78. 578 No documento, encontramos: “Uma fazenda chamada o Bananal, sita no termo de Mariana, que foi vendida ao coronel João Damasceno, que ainda se deve a maior parte de seu valor”. [grifo do original]. In: Ibidem, fl. 78. A fazenda Bananal é a mesma que consta no processo de compra dos bens do tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira feita por Francisco Gomes Martins e, depois, por José Aires Gomes. Este tenente-coronel era pai de Maria Inácia de Oliveira, esposa do inconfidente da Borda do Campo, e do sedicioso Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 579 Ibidem, fls. 80v-81; 83-83v. 577
178 ISSN 2358-4912 Quadro 1 Justificativas apresentadas por Hipólita Jacinta dos escravos omitidos no sequestro de Francisco Antônio de Oliveira Lopes
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Quantidade de escravos omitidos
Justificativa “seis foram apresentados aos ministros” e que estes não foram inventariados porque “se achavam hipotecados a Domingos da Cunha por dívidas que (...) lhe devia” e, os outros dois, por “andarem fugidos juntos com outros mais”; “todos estes haviam sido sequestrados e se acham no depósito do primeiro sequestro como dele há de constar”; “nasceram depois do sequestro”; “pertenciam a sua mãe Bernardina Caetana” [mãe do inconfidente]; pertenciam a outras pessoas; eram “escravos nascidos depois do sequestro e que se dizem mortos”; na ocasião do sequestro estavam fugidos, “hoje estão falecidos”; não pertenciam ao seu patrimônio; na ocasião do sequestro estavam fugidos e, quando presos, “foram levados para a casa do sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira”; estavam depositados nas mãos de Pedro Joaquim de Melo.
8 16 8 3 15 5 4 4 3 8
Fonte: IHGB. DL 101.2, fls. 79-80 – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes.
Dos 74 escravos apontados no agravo de sequestro (Quadro 1), 54 foram denunciados como novos bens e reconhecidos por dona Hipólita como sendo de seu patrimônio. Se somarmos os 74 mancípios originalmente sequestrados pela devassa com os 54 cativos sonegados e delatados, concluímos que no plantel de Francisco Antônio de Oliveira Lopes havia 128 escravos. Mas, voltando-se à lista entregue por Manuel Caetano, observa-se a delação de 74 nomes de cativos. Destes, seis encontravam-se no sequestro, nove transferiram-se para o patrimônio de Manuel Caetano com o desenvolvimento do processo, cinco morreram entre a data de confecção do primeiro sequestro e o dia da delação e, do restante, 54 mancípios eram novos. Portanto, da delação, apenas esta quantidade de negros não foi arrolada entre os bens apreendidos ao sedicioso. Com estas informações, podemos calcular os cativos que estavam no plantel de Francisco Antônio no momento da confecção do primeiro sequestro (25 de setembro de 1789) e a data da delação feita por seu irmão, em agosto de 1794. Quadro 2 Plantel escravista de Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1789-1796) Quantidade de escravos 23 25 54 41 5
Origem da escravaria Herança de Francisco Antônio – partilha dos bens de José Lopes de Oliveira (1790) Auto de Arrematação (1796) Denúncia do sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira (1794) Sequestro realizado pela devassa da Inconfidência (1789) Escravos que nasceram e morreram / não contabilizados nos itens acima (17891794)
148 Fonte: IHGB. DL 101.2, fls. 16; 18-21; 43-44v; 74-83v – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes; IHGB. DL 3.4, fls. 155-164v – Autos de depósito / Prestação de contas do capitão Pedro Joaquim de Melo, depositário dos bens do inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes.
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ISSN 2358-4912 Pelo Quadro 2 se presume que, de 1789 a 1796, o plantel de Francisco Antônio era composto por 148 escravos. Este número representa um aumento de 74 mancípios ou 200% sob o total de cativos apreendidos pela devassa, considerando-se, para o efeito deste cálculo, os sequestros originais (74 escravos). Se todos esses negros fossem sequestrados pela devassa da Inconfidência e, também, listado pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, quando esteve na fazenda da Ponta do Morro em 1789, se poderia atribuir a Francisco Antônio de Oliveira Lopes o epíteto de o maior escravista da Conjuração Mineira. Hipólita, no final do processo, conseguiu evitar, portanto, o confisco de 74 escravos, duas propriedades, bois, vacas e cavalos, além de muitas bugigangas de casa, como jarros, bacias, louças, faqueiros, baús, cadeiras e armários; graças ao provável suborno realizado ao ouvidor Luís Ferreira, que recebeu “três vacas paridas sabe Deus pelo que...”.580 Em abriu de 1795, mesmo sendo chamada pela Justiça para prestar esclarecimentos e reconhecendo atos de sonegação no sequestro empreendido pelo ouvidor, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo não foi penalizada. A fortuna que havia sido escondida permaneceu nas mãos da família, sem que sofresse nova apreensão. Seu cunhado recebeu a parte que lhe cabia da herança, subtraindo-a dos bens que foram confiscados pela devassa. Quanto ao ouvidor, também nada aconteceu contra ele.
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ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 42, fl. 3v – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789.
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INSERÇÃO PORTUGUESA NA VILA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE PARANAGUÁ (1800-1830): O CASO DOS AGRICULTORES André Luiz Cavazzani581 É ampla a historiografia que atesta a relação entre a imigração lusitana e a participação de seus quadros nos mais variados patamares do comércio. É sabido que no período colonial, ingressavam por aqui portugueses jovens, alguns, inclusive, ainda sem pontas de barba, com o fito de se fazerem, na expressão consagrada do Marquês do Lavradio, Senhores de Comércio. Sabe-se, também, que a adesão lusitana ao comércio em terras brasileiras prosseguiu alcançando outros tempos inclusive do século XX582. Evidente, também, que associar os portugueses unicamente ao setor mercante, esmaece a complexidade referente ao seu arraigamento em terras brasileiras. Embora apresentasse tendências bem marcadas ( como a já descrita adesão lusitana ao comércio, por exemplo) este processo foi, no geral, multifacetado. Numa sondagem feita por Carlos Bacellar, para a Capitania de São Paulo, entre 1801 e 1802, tendo como referencia as listas nominativas de habitantes, se vê que a maioria dos portugueses dedicava-se à agricultura.583 Cidade portuária, situada na costa sul do país, Paranaguá recebeu entre 1801 e 1830 um número considerável de portugueses. Muito embora tivesse importância secundária, no período em foco, o porto de Paranaguá relacionava-se com outras praças mais importantes (da bacia platina inclusive) conhecendo um pequeno, porém, insinuante comércio. Não obstante o comércio e o perfil litorâneo da cidade havia ali agricultores portugueses. Quantos eram? O que plantavam? Como viviam? São as perguntas que se procura responder nestas páginas, a partir do recurso às listas nominativas elaboradas para a vila em questão lidas numa perspectiva longitudinal, acompanhando o evolver dos domicílios entre 1801 e 1830. O que se quer é apreender um pouco do cotidiano de imigrantes portugueses, que se radicaram em Paranaguá, abordando processos de assimilação, meios de sobrevivência nuançando os processos de arraigamento destes indivíduos. Iniciam-se as considerações pela base da pirâmide formada pelos imigrantes lusitanos dedicados à agricultura: os não escravistas. Entre os anos de 1801 e 1830, respeitando-se um intervalo (aproximadamente quinquenal), descontando-se repetições, foi possível levantar quatorze domicílios sem escravos, chefiados por portugueses, em oposição a 27 domicílios de portugueses agricultores e escravistas. Não foi uma constatação extraordinária. Entre os portugueses a posse cativa era, geralmente, mais frequente do que o contrário. Manoel de Oliveira (54 anos), oriundo da Ilha de São Miguel, casado com Rita natural de Paranaguá, vivia em 1801 na companhia de seis filhos e plantava mandioca;584 José Francisco (49 anos), também natural das ilhas (do Fayal no caso), teve seu domicílio arrolado em 1805, vivia com sua esposa, Gertrudes, natural de Paranaguá, mais quatro filhos. Quanto às suas ocupações foi registrado como “he agricultor e nada mais consta no registro [sic]”.585 Em 1830 seu domicílio voltou a ser arrolado. Nesse ano foi indicado que ele, somando 91 anos, já se encontrava viúvo, e continuava plantando “para o gasto” contando com a ajuda de um filho solteiro de 19 anos.586 Antonio de Ramos 581
UFPR / PDJ Há uma vasta bibliografia que não será enumerada aqui pela limitação de espaço. Boa parte dela pode ser recuperada aqui: CAVAZZANI, André Luiz M. Tendo o Sol por testemunha: população portuguesa na Baía de Paranaguá. Tese de Doutorado. Programa de História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2013. 583 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Reinóis na população paulista às vésperas da Independência. In: ANAIS DO XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, 2000. p.20. 584 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÂO PAULO: Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 49, 2a Cia 585 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1805. Fogo:230, 1ª Cia. 586 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1830. Fogo: 91, 2ª Cia. 582
181 ISSN 2358-4912 natural do Porto, arrolado em 1805, era viúvo e vivia com seu neto de 15 anos, “plantando para seu custo”.587 Assim como aconteceu com José Francisco (citado há pouco), Joaquim Monteiro teve seu domicílio registrado em duas ocasiões (1815 e 1830). Tal como ocorreu com seu patrício, no intervalo de cinco anos, seguiu atuando na lavoura sem contar com mão de obra escrava. Caso diferente ocorreu com João Gonçalves natural de Aveiro. Se em 1824 ele integrava, mediante posse de dois escravos, o rol de pequenos proprietários, em 1830 ele se viu alijado desta condição alinhando-se ao lado dos pequenos lavradores despossuídos. Em nenhum caso acompanhado, aliás, pôde se perceber a entrada de escravos novos em domicílios não escravistas. Numa dinâmica que remonta à máxima do Evangelho de São Mateus588, o acréscimo de cativos tendia a ser mais frequente em domicílios já escravistas do que o contrário. É importante salientar que, no caso dos domicílios que não operavam no regime de coerção cativa, a ausência de escravos não significava, necessariamente, práticas restritas à agricultura de subsistência. Assim se vê, por exemplo, registros de domicílios que mesmo despossuídos de escravos chegaram a vender farinhas. Manoel de Oliveira em 1801, além de plantar mandioca, “vendeu 15 alqueires de farinha”.589 José Monteiro, casado e natural do Porto, chegou a vender “90 alqueires de farinha” em 1824590. No mesmo ano o lisboeta Antonio da Silveira, casado, foi indicado como “planta para o gasto e vendeu 36 alqueires de farinha”.591 Não se tratavam de quantias inexpressivas. Ao apresentar A conta de mantimentos para a gente que tem se empregado no Brigue Cascudo desde seu princípio até o dia 9 de outubro de 1846, Jozé Barrozo, um dos responsáveis pela sua construção, discrimina os montantes da ração de farinha consumida na bóia: 59 alqueires e meio de farinha de mandioca (821,1 litros) teriam alimentado 41 homens durante aproximadamente 130 dias de trabalho.592 Planta rústica de cultivo relativamente fácil, pouco vulnerável aos ataques de pragas, vegetação estranha, doenças, exigindo mínimos cuidados. A cultura da mandioca foi traço onipresente, constituindo-se a principal referência alimentar e de trabalho, nas pequenas unidades agrícolas parnangüaras daqueles que a historiografia convencionou chamar de “livres e pobres”.593 A análise das listas nominativas revela que os reinóis nesta faixa estavam plenamente alinhados à população local. Alguns furando covas em terrenos acanhados, outros articulando o plantio com a produção da farinha. Mais trabalhoso que plantar mandioca era “farinhar”, ou seja, beneficiá-la. A mandioca deveria ser descascada, moída, prensada (para se retirar o suco ácido no caso da espécie brava), e depois torrada. Este último processo suscitava, inclusive, certa utensilagem: a roda, a prensa, o tacho, o forno. De maneira que se vê aí uma sensível diferenciação entre os que plantavam mandioca e aqueles que conseguiam vendê-la como farinha. Mas não é improvável que aqueles que não dispusessem de utensílios utilizassem formas alternativas para obter aquela que era a primordial fonte calórica daquelas paragens. O uso do tipiti (cesto cilíndrico de dois palmos de altura trançado a partir de lascas de taquara) fazendo a função de prensa que, diga-se de passagem, é ainda hoje utilizado pelas comunidades ribeirinhas, consiste num exemplo nesta direção. O beneficiamento da própria
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ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 191, 2a Cia 588 Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. (São Mateus 25,29) BÍBLIA, A.T. Gên. Português. Bíblia Sagrada. trad. Centro Bíblico Católico.34.ed. rev. São Paulo : Ave Maria. 589 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 49, 2a Cia. 590 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 29, 1ª Cia. 591 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 46 1ª Cia. 592 Este documento é apresentado por LEANDRO, José Augusto. A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná. In Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n. 54, 2007. pp.261278. 593 Idem.
182 ISSN 2358-4912 produção em fábricas alheias, mediante alguma espécie de contrato, tal como faziam os canavieiros “partidistas”594, também pode ter sido uma solução no universo das possibilidades daquele contexto. Ainda, mostrando capacidade de adaptação às condutas autóctones, também se viu portugueses não escravistas recorrendo à estratégia da incorporação de agregados (em geral pardos). Fosse para garantir a subsistência, fosse para ultrapassar este limiar tratavam de aumentar, via agregação de indivíduos, a força de trabalho em seus núcleos domiciliares. O mesmo Antônio da Silveira que disse ter vendido 36 alqueires de farinha contava, em seu domicílio, com três agregados. A parda Jacinta Maria, viúva de 28 anos, agregada ao domicílio em 1824 e seus filhos, também pardos, Pedro 11 anos e Joaquina 10 anos.595 Em 1810, Manoel Marques de Jesus (natural de Braga, 32 anos) casado com Isabel Gonçalves, vivia de sua lavoura de mandioca, tendo agregada ao seu domicílio a parda Maria Gomes.596 Na sociedade em questão, a cor dos indivíduos não se resumia a uma questão de fenótipo, remetia antes a um lugar social. Construídas historicamente as categorias classificatórias expressas na cor, vinham (ou vem?) sempre imbuídas de polissemia variando nas diferentes circunstancias sociais, bem como nos variados contextos em que são aplicadas. E, nesse sentido, a questão dos pardos é permeada por complexidades. Estudiosos do assunto já puderam observar que, mediante cabedal material e social amealhado ao longo da vida, um indivíduo mulato poderia mesmo sofrer um processo de branqueamento social, passando a ser reconhecido como branco. Mas o contrário também era passível de ocorrer.597 No caso de Paranaguá a conotação pardo tendia a aproximar os livres de cor do mundo do cativeiro.598 Em 1830, se verificou na lista nominativa, que somente oito indivíduos pardos foram denominados livres em oposição a 406 que foram denominados cativos e quatro alforriados. No levantamento nominativo de 1801 havia apenas dezesseis pardos livres para 542 cativos e, também, quatro manumitidos. Quanto aos denominados negros nenhum foi classificado como livre: 675 indivíduos foram classificados como cativos em 1801 e seis alforriados. Em 1830, se têm 875 negros cativos, seis alforriados, e nenhum denominado livre, mas havia também um importante número de pardos que não tiveram sua condição jurídica indicada. Em 1801 este foi o caso de pelo menos 550 pardos contra apenas 48 negros não definidos como livres ou cativos. Em 1830 o padrão se repete: 660 pardos não tiveram sua condição indicada contra 77 negros. Quanto aos brancos, não houve caso em que sua condição de livres não tenha sido afirmada. 599 Esta diferença gritante entre o número de pardos sem condição indicada contra o número de negros na mesma situação pode ser lida como mais um indicador da oscilação entre o cativeiro e a liberdade protagonizada pelos livres de cor. Os pardos agregados aos domicílios portugueses integravam o rol daqueles que não tiveram sua condição de livres ou escravos anotada. Mas, ao que tudo indica, pareciam ser livres de cor incorporados ao domicílio em condição de subalternidade, numa dinâmica que faz lembrar as considerações de Cacilda Machado. A autora pôde captar dinâmicas que permeavam as relações entre brancos, pardos, negros, na freguesia de São José dos Pinhais, na passagem do século XVIII para o XIX. Detectando a vigência de um conjunto de práticas patriarcalistas, Cacilda Machado observou que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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A respeito dos lavradores de cana sem engenhos na Capitania de São Paulo consulte-se, por exemplo, FERNÁNDEZ, Ramón V. Garcia. Os Lavradores de Cana em São Sebastião. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.40, 1996. pp.173-190. 595 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 46 1ª Cia. 596 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1810. Fogo 62 1ª Cia. 597 GUEDES, Carlos Roberto. Sociedade escravista e mudança de cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX. In FRAGOSO, João. & Florentino, Manolo. & SAMPAIO, Carlos Jucá. & CAMPOS, Adriana. (org.) Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de Vitória : Edufes, 2006. 598 Fato que parece de acordo com as considerações de Hebe Matos para quem: na verdade durante todo o período colonial, e mesmo até bem avançado do século XIX, os termos negro e preto foram usados exclusivamente para designar escravos e forros. Em muitas áreas negro foi sinônimo de africano... Pardo foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência europeia de alguns deles. CASTRO, Hebe Maria M. de. Das cores o silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional,1995. p.219 599 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801 e 1830.
183 ISSN 2358-4912 onde faltava a capacidade para se investir em escravos, sobrevinham esforços senhoriais para, informalmente, incorporar livres de cor ao cativeiro. Prática alimentada e impulsionada, segundo a autora, pela própria lógica hierárquica daquela sociedade fundada na escravidão.600 Tratando-se, portanto, de uma sociedade escravista busca-se, doravante, colocar em evidencia a situação daqueles domicílios que se caracterizaram pela presença de cativos em sua estrutura. Um dado de coesão bastante perceptível entre os domicílios escravistas e aqueles descritos há pouco é a onipresença da cultura da mandioca. Analisando inventários paranangüaras abertos à segunda metade do século XIX, José Augusto Leandro traçou algumas considerações que, conforme as análises aqui empreendidas parecem válidas, também, para a primeira metade do século XIX. Segundo o autor... “é possível inferir que esta classe, proprietária de escravos, produzia para além da subsistência do seu grupo e de seus próprios cativos. Evidencia-se, também, que essa produção de alimentos concentravase quase que em único produto a farinha de mandioca.” 601 Contudo, antes de se referendar a citação acima, cabe apontar uma exceção. Natural de alguma das vilas do Arcebispado de Braga Lourenço Maciel Azamor já contava 79 anos quando foi arrolado na lista nominativa de 1801. Era casado com Vitória Rodrigues de 80 anos. Ainda compunham o domicílio o filho Antonio Maciel (19 anos, nascido em Paranaguá), sua mulher Ana Luiza (natural do Rio de Janeiro, 19 anos) e uma filha (Maria, de um ano de idade). Azamor reunia um pequeno plantel de quatro escravos adultos: Francisco (51 anos); Luzia (21 anos); Antonio (61 anos); Maria (31 anos). No item ocupações ficaria anotada a seguinte expressão: “vive da lavoura de mandioca e diz que não lhe chega para comer”.602 Não deixa de ser curiosa esta indicação, afinal, mesmo sendo escravista, dandose crédito à informação prestada pelo recenseador, o domicílio não esteve imune a uma crise de subsistência. Ao que parece não conseguira produzir nem para a subsistência de seu grupo, tampouco, para a dos cativos. Infelizmente o mesmo fogo não chegou a ser arrolado em levantamentos posteriores para que se pudesse entender melhor se esta crise chegou a ser superada nos próximos anos. Esse não foi o caso de José Gonçalves Lopes. Natural “de Portugal”, 59 anos, casado com Maria de Jesus (58 anos) reunia um plantel de dez escravos, ou, melhor, dez escravas (seis meninas de dois, três, sete, oito e nove anos de idade e quatro mulheres de 41, 42, 46 e 57 anos). A inquirição sobre a produção de seu domicílio acusou que ele: Planta mandioca para sustento de sua Caza, abatido o qual sobraram-lhe 220 alqueires de farinhas.603 Entre os farinheiros havia ainda Antonio Jozé Sintra. Natural de Sintra, senhor de cinco escravos, ao ser arrolado em 1824 indicou ter produzido duzentos alqueires de farinha. Pedro Martins natural de Lisboa, arrolado em 1830 na condição de senhor de oito escravos, também era farinheiro, tendo conseguido produzir 150 alqueires de farinha.604 O caso de Pedro Martins chama atenção, aliás, por outros motivos. Em 1801, o mesmo reinol havia sido arrolado como agregado ao domicílio do tenente miliciano Faustino José Borges, natural de Lisboa, senhor de seis escravos dedicados ao plantio de mandioca e à produção de farinhas.605 O domicílio pôde ser acompanhado até 1830. Nesse ínterim, o ano de 1824 marca uma inflexão naquela estrutura doméstica: Pedro Martins é arrolado como marido de Gertrudes Borges, filha de Faustino Borges. Após o falecimento deste último o fogo toma o contorno captado em 1830 quando, então, se vê Pedro Martins assumindo a chefia da casa no lugar do sogro, acrescentando mais dois novos cativos ao plantel original, mantendo também a atividade praticada por seu sogro. A incorporação de adventícios portugueses no domicílio do sogro, a quem acabavam substituindo depois na liderança familiar, não era, portanto, um expediente restrito ao universo dos comerciantes.606
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MACHADO, Cacilda. Op. cit. p. 30. LEANDRO, José Augusto. Op. cit. p. 270. 602 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 40 1ª Cia. 603 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 112 1ª Cia. 604 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 18 1ª Cia; 1830, Fogo197. 605 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 32 1ª Cia. 606 Há vasta literatura que indica esta modalidade de incorporação de adventícios portugueses nas famílias e, por extensão, na sociedade local. No caso dos comerciantes portugueses muitos destes portugueses eram 601
184 ISSN 2358-4912 Avançando-se um pouco mais com relação ao tamanho dos planteis se vê que a raiz tuberosa continua lá onipresente. Mas essa tonalidade monocórdia vai ganhando um pouco mais de nuance. Senhor de treze escravos, o Capitão Antonio da Silva Neves acusou, em 1801, viver “de suas lavouras de mandioca, feijão, arroz, vendeu duas pipas de cachaça e algumas arrobas de açúcar”. A renda do domicílio era incrementada ainda com o trabalho de três escravos ladinos (dois barbeiros e um carpinteiro).607 O domicílio do Capitão João Crisóstomo Salgado foi registrado no intervalo de 1805 e 1830. O número de integrantes do plantel manteve-se constante, como também se mantiveram constantes as atividades desenvolvidas naquela estrutura: “vive de lavoura para seu consumo. Consumiu 246 alqueires de farinha. Tem olaria de fazer telhas fez 2500.” 608 Parte do plantel cativo ao domicílio foi indicado como sendo proveniente de Santos, tal como a esposa do reinól, Dona Maria Magdalena, também santista. Há ainda a notícia de uma filha do casal (16 anos) nascida em Curitiba. Dado que pode ser indício de processos de mobilidade que acabaram cessando a partir de 1805. Em 1830, como já havia sido indicado em item anterior, o domicílio era encabeçado por Dona Maria Magdalena, já viúva. O sargento José Vieira Belém, de 52 anos, natural de Lisboa, casado com Roza Maria (40 anos) mantinha um plantel, em 1830, que também somava 24 escravos, constando que: Vive de Lavouras comsomio farinha 190 alqueires; vendeo 40 alqueires de Arros e 100 de maça de Cal.609 Entre os grandes escravistas, detentores de dez ou mais escravos, verificou-se que a menção à produção de farinhas foi mais rara do que a menção ao seu consumo. É provável que estivessem concentrados na produção de víveres mais lucrativos; ou então, conforme o exemplo mencionado, mobilizassem ao ganho parte da força cativa. Isso não quer dizer que não produzissem farinhas. Contudo, conforme a assertiva de José Augusto Leandro, é admissível imaginar que tal gênero ficava retido no próprio fogo alimentando o plantel e os seus demais moradores da unidade domiciliar. Já nos plantéis pequenos e médios, a dar crédito aos informes das listas nominativas, quando se tratava de produção destinada à venda, as farinhas reinavam absolutas. Finalmente, já em vias de conclusão, podem ser retomadas algumas questões acerca do perfil geral dos 41 portugueses envolvidos com a lavoura em Paranaguá durante o recorte indicado anteriormente. Em primeiro lugar cabe perguntar se havia alguma relação entre a sua proveniência e a prática da lavoura. Em Paranaguá não foi levantado nenhum dado que pudesse encorajar uma tendência nesta direção. Somente seis açorianos (entre os 41 lavradores) dedicavam-se ao trato agrícola. O restante dos agricultores portugueses, dividido de forma mais ou menos equilibrada, provinha de áreas continentais em especial nortistas e, também, dos grandes centros Lisboa e Porto. Também se pôde testar se havia alguma hierarquização (entre os reinóis agricultores) relacionando proveniência e tamanho de plantel. Nesse caso se obteve novamente uma reposta negativa. Entre os quatorze não proprietários de escravos havia dois ilhéus e o restante equilibrava-se entre Porto, Lisboa e Braga. O restante dos ilhéus dividia-se entre o grupo dos donos de três, sete e, finalmente, onze escravos. Não havia, é verdade, ilhéus no restrito grupo dos dez portugueses lavradores que possuíam mais de catorze escravos. Mas é difícil imaginar que isso se devesse a alguma espécie de hierarquização no interior deste grupo. Talvez esse número se explicasse mesmo pela baixa proporção dos provenientes das ilhas diante de seus conterrâneos. Todos os portugueses agricultores, sem exceção, conheceram o casamento. Um único português que havia sido registrado como solteiro veio a se casar depois. Casou-se com uma mulher natural da vila de Paranaguá; e, nesse comportamento, esteve completamente consonante com seus conterrâneos lavradores que, feita apenas uma exceção (lembre-se do caso de Dona Magdalena santista),
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incorporados como caixeiros, para depois, assumirem o lugar do sogro falecido na gerência do comércio e da família. Cf: MARTINHO, Lenira Menezes. & GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro : Secretaria da Cultura,1993. 607 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 1, 2ª Cia. 608 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1810. Fogo 107, 1ª Cia. 609 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1830. Fogo 10, 1ª Cia.
185 ISSN 2358-4912 desposaram mulheres naturais de Paranaguá. Fato que sugere a importância do casamento no processo de arraigamento e socialização destes indivíduos. Ainda, com relação ao perfil etário dos 41 lusitanos agricultores, se tem a idade mínima fixada em 25 anos e a máxima em 98 anos. Entre os portugueses mais velhos (81, 91, 98 anos) havia dois senhores de catorze escravos e um que não possuía nenhum. Os demais despossuídos que, descontando-se o de 91 anos, somam treze, dividem-se entre as faixas etárias de trinta a sessenta anos. Por fim, para o caso dos proprietários, se tem que entre 285 escravos: 83 (29,2 %) concentravam-se na faixa de senhores que possuíam entre 51 a sessenta anos; 62 (21,7%) nas mãos de senhores de 71 a noventa anos; cinquenta (17,5%) nas mãos de senhores 61 a setenta anos; 46 (16,1%) nas mãos de proprietários de 25 até quarenta anos e, por fim, (15,4%) pertenciam a senhores de 41 até cinquenta anos. Vê-se, portanto, uma distribuição equilibrada, fazendo pender a concentração cativa para as faixas etárias mais avançadas da amostra, sobretudo, entre os portugueses de 51 a sessenta anos, indicando, que, no caso dos portugueses, a aquisição de cativos se dava paulatinamente. Situação que não contrasta do que foi verificado por Carlos Bacellar, quando este relacionou a posse de escravos e a idade média dos proprietários reinóis para o conjunto de vilas Capitania de São Paulo em 1801610. Escravistas donos de engenho e lavradores de maiores superfícies convivendo com pequenos roceiros trabalhando com a família sem a ajuda de um escravo sequer. A cultura da mandioca atravessava, é verdade, esses dois âmbitos. Mas naquela sociedade escravista era tácita a diferença entre um e outro grupo. Nem pobres nem proeminentes, também foram visitados os domicílios dos remediados. A emigração para Paranaguá, para a América lusitana, era uma possibilidade de sucesso aos portugueses... Mas somente possibilidade. O êxito dependeu de um grande número de fatores. E oscilava também conforme a imprevisibilidade ditada pelo acaso. Um quadro heterogêneo que desencoraja, portanto, apreensões unívocas acerca dos processos de enraizamento protagonizados pelos lusíadas em Paranaguá.
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Referências CAVAZZANI, André Luiz M. Tendo o Sol por testemunha: população portuguesa na Baía de Paranaguá. Tese de Doutorado. Programa de História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2013. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Reinóis na população paulista às vésperas da Independência. In: ANAIS DO XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, 2000. LEANDRO, José Augusto. A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná. In Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n. 54, 2007. FERNÁNDEZ, Ramón V. Garcia. Os Lavradores de Cana em São Sebastião. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.40, 1996. GUEDES, Carlos Roberto. Sociedade escravista e mudança de cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX. In FRAGOSO, João. & Florentino, Manolo. & SAMPAIO, Carlos Jucá. & CAMPOS, Adriana. (org.) Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de Vitória : Edufes, 2006. MARTINHO, Lenira Menezes. & GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro : Secretaria da Cultura,1993. MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social no Brasil escravista. Rio de Janeiro : Apicuri, 2008.
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BACELLAR, Carlos. Op. cit.10.
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RAREFEITA TRAJETÓRIA DO MAMELUCO SIMÃO ROIZ: DAS “TEIAS DE FALSOS ENGANOS” À PRISÃO INQUISITORIAL (1587-1593) Andreza Silva Mattos611 O mameluco Simão Roiz Simão Roiz foi um mameluco que conviveu com a índia Gracia Fernandes.612 E dessa união um filho foi gerado, cujo nome foi o mesmo do pai, Simão Rodrigues, assim como também o fora o nome do seu avô porque, no final do século XVI, os homônimos predominavam não somente entre os nobres, mas também entre as famílias menos abastadas, como pode ser observado.613 Por ser um mameluco, Simão Roiz devia ter a tez amorenada, como mencionou Ronaldo Vaifas ao indicar a cor da pele do jesuíta mameluco Manuel de Moraes, personagem do livro “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” (2008).614 Segundo as informações de Jorge Couto (2011), poderíamos descrever, ainda por verossimilhança, que Simão Roiz tinha a tez acobreada, assim como tinham os “mamelucos do Egito” (2011, p. 349). Nosso mameluco de tez acobreada nasceu por volta de 1552, sendo apontada, em seu processo, a idade de 40 anos. Foi fruto da união entre Simão Rodrigues, homem branco, pedreiro, e sua escrava, a índia Felipa – ambos falecidos. No interrogatório genealógico realizado, em 1592, pelo Visitador do Santo Ofício, Heitor Furtado de Mendonça, Simão Roiz disse que não conheceu seus avós, tios e irmãos (ANTT, IL, Proc. n.º 11.632). Por volta de 1592, ele só tinha a seu filho Simão Rodrigues, pois a companheira, Gracia Fernandes já havia, nessa data, falecido. Diferente do filho que era natural da Capitania da Bahia, Simão Roiz informou ser natural da Capitania de Ilhéus, doada a Jorge Figueiredo Correa. Não temos dados para precisar quando o Simão Roiz abandonou sua terra natal para ir morar nas terras do Engenho Sergipe do Conde, no Recôncavo baiano. Contudo, é certo que à época do nascimento do filho ele já estava na Capitania da Bahia, local onde, provavelmente, deve tê-lo criado, transferindo-lhe tanto os hábitos da cultura materna – os gentílicos, quanto os hábitos da cultura portuguesa, os quais herdara do seu pai. Nas terras do engenho Sergipe do Conde, fez amizades, dentre as quais se destacaram as que mantiveram Francisco Pires e João Gonçalves, ambos mamelucos. João Gonçalves, jovem de 20 anos, denunciou Simão Roiz na mesa do Santo Ofício, o qual, que por sua vez, denunciou Francisco Pires. Na teia de relacionamentos de Simão Roiz ainda constava Gonçalo Álvarez, que também morava em Sergipe do Conde. Este engenho pertenceu ao Conde de Linhares e estava localizado no Recôncavo baiano, “formando-se nas terras do herdeiro de Mem de Sá, dom Fernando de Noronha, terceiro conde de Linhares” (TAVARES, 2001, p. 155). Gonçalo Álvares, além de exercer a função de carpinteiro no engenho do Conde de Linhares, atuou como soldado no sertão norte da Bahia colonial desde o ano de 1575, quando houve a guerra contra as tribos dos caciques Aperipê e Surubi, no sertão do rio Real. Incorporando esta função de soldado sertanista, Gonçalo Álvares foi ao sertão norte da Bahia objetivando apresar os índios para, provavelmente, utilizar-se de suas forças laborais no engenho de Sergipe do Conde. Com esse propósito, partiu em meados de 1590, levando “consigo 25 homens deles
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Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Especializada em Ciências da Religião (UFS). Licenciada em História na mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa “Culturas, Identidades e Religiosidades” da UFS, organizado pelo Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa. E-mail:
[email protected] 612 O sobrenome “Roiz” é uma abreviatura de Rodrigues, utilizada no processo inquisitorial. Optamos por utilizá-lo na forma abreviada para diferenciar do nome do filho de Simão Roiz que também é Simão Rodrigues. 613 Os genealogistas mencionam que era comum o neto usar os sobrenomes de avós, paternos ou maternos. Quando “havia um avô ilustre, em geral o neto adotava não só o sobrenome como o nome completo do antepassado” (SILVA, M., 2005, 29). 614 Ronaldo Vainfas, no livro “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição”, informa-nos que o padre Rafael Cardoso, ex-procurador da Companhia de Jesus, disse que Manoel de Morais (o jesuíta, personagem da trama abordada) “tinha parte de mameluco e na cor se mostrava” (2008, p. 15). Os que o conheceram destacaram sua tez amorenada. “Mestiço, disseram uns; moreno, disseram outros” (VAINFAS, 2008, p. 15).
187 ISSN 2358-4912 brancos deles mamelucos afora muitos negros frecheiros615 para fazerem descer e trazer consigo gentios do dito sertão para o mar [...]” (CONFISSÃO DE GONÇALO ÁLVARES, in: ANTT, IL, Proc. n.º 12.229, fl., 01v). Entre os 25 homens mamelucos, estavam Simão Roiz, seu filho Simão Rodrigues, João Gonçalves, Francisco Pires, bem como outros companheiros. Enquanto estiveram no sertão, os integrantes dessa entrada comeram carne de bichos do mato na Quaresma e nos demais dias proibidos pela Igreja. A concepção de sertão foi concebida por várias versões que variavam segundo o interesse e o significado que cada observador lhe atribuía. No caso dos jesuítas, que estavam a serviço da colonização por meio da catequese, o sertão funcionava como um chamariz para onde eles deveriam ir a fim de “socorrer” os nativos, imbuídos do espírito da Contrarreforma, da qual foram porta-vozes, para fundar missões e evangelizar os índios. Por outro lado, para os soldados sertanistas, o sertão era o local onde se poderia apresar os índios para levá-los para os engenhos onde empregariam sua mão de obra. Indo para além dessa prática de comer carne em dias de preceitos, objetivamos nesta pesquisa, a partir da teia de relacionamentos de Simão Roiz, compreender as ações de alguns soldados sertanistas que pregaram aos índios contra os interesses das atividades missionárias dos jesuítas, a exemplo do que fizeram Lázaro da Cunha e Francisco Pires – companheiros de Simão Roiz durante as expedições no sertão. Observaremos como essas ações influenciaram no julgamento desses homens, quando foram processados e sentenciados durante a I Visita do Santo Ofício da Inquisição na Bahia, entre os anos de 1591 e 1593. Esses sujeitos estão ligados por uma rede de sociabilidades, da qual tratou Nobert Elias, segundo o qual os indivíduos constituem teias de interdependências, uma teia ordenada de configurações que resultam da “totalidade das ações nas relações que sustentam uns com os outros” (ELIAS, 2008, p. 142). Nesta conjuntura, a compreensão do que aqui nos propomos seria obstada se fosse reduzida a análise das ações de um indivíduo, no caso, apenas de Simão Roiz. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Teia de “falsos enganos” Ao lançarmos um olhar criterioso às vicissitudes de Simão Roiz, encontramos outros soldados que nos dão conta de informações para alcançarmos a inteligibilidade das relações tecidas nesse espaço múltiplo que foi o sertão colonial, a exemplo dos resgates indígenas e, sobretudo, das pregações dos sertanistas aos índios contra as intenções missionárias dos jesuítas. Acreditamos na possibilidade de Simão Roiz não ter pregado contra os jesuítas porque, se assim o fizesse, seu nome, provavelmente, constaria entre as denunciações daqueles que compuseram sua teia de relacionamentos. Sobre ele falaram apenas que tinha presenciado Lázaro da Cunha falar sobre seus feitos no sertão contra os jesuítas. As pregações de Lázaro da Cunha aconteceram no sertão de Laripe ou Raripe, próximo à capitania de Pernambuco, ainda em terras baianas, no atual território de Sergipe. Situava-se “à margem direita do São Francisco, no hoje território de Sergipe” (MELLO, 1970, p. 11, grifo do autor). Capistrano de Abreu esclarece-nos que as entradas para o sertão partiram da Bahia – “seguindo a margem direita do rio São Francisco” (ABREU, 1935, p. XXI); e de Pernambuco – seguindo a margem esquerda desse mesmo rio, sendo as últimas margens do São Francisco limites comuns de ambas as capitanias.616 A população baiana atirou-se pela costa até as divisas da antiga capitania de Francisco Pereira Coutinho, tornando frequentes as “viagens entre Bahia e Pernambuco beirando o mar” (ABREU, 1935, XXII). Comecemos a seguir as aventuras de Lázaro da Cunha, pelo sertão de Laripe, contadas pelas ricas informações do seu processo inquisitorial. Ele compareceu para confessar ao Visitador em 21 de janeiro de 1592, dentro do tempo da graça do Recôncavo baiano. Informou ser natural da capitania do Espírito Santo, filho de Tristão da Cunha, homem branco, e de Isabel Paiz, mameluca. A essa altura,
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A expressão “negros frecheiros” refere-se aos índios, com destaque ao uso da flecha. A margem do rio São Francisco do lado de Pernambuco havia “numerosas serras, matas formando uma cinta quase contínua, como em Ilhéus e Porto Seguro, embora em direções muito menores, dificultavam as entradas e tolhiam a expansão pernambucana que pouco se afastou do rio. Os que dele se afastaram, se não utilizavam canoas que os levassem ao Recife, preferiam a praça da Bahia para suas transações” (ABREU, 1935, p. XXVI). 616
188 ISSN 2358-4912 contava com trinta anos e informou uma particularidade: não tinha lugar certo de morada (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 23v).617 Passada a confissão de Lázaro da Cunha, tendo ele já sido denunciado pelos companheiros, o Visitador perguntou, logo na primeira sessão, se ele lembrava, sabia, ouviu ou viu de alguma pessoa que “lá no sertão pregasse os gentios que se não viessem fazer cristãos e que não descessem com os padres da Companhia para as igrejas ou outras coisas semelhantes” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 28v). Nesse momento, o réu confessou, e disse que quando estava no sertão de Laripe, por cinco anos, próximo a Pernambuco, para onde foi seguindo o curso do rio São Francisco, chegaram dois padres da Companhia de Jesus, sendo um por nome João Vicente, e pregaram pela língua gentílica, solicitando que os índios fossem e “descessem para o mar para as igrejas para deus a fazerem-se filhos de deus” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 29). Quando da chegada dos jesuítas ao sertão, Lázaro informou que foi até eles saber quais eram as suas intenções, e quando percebeu que os padres pretendiam levar os índios, ele teve que agir. Diante da ameaça, alegou que pregou pública e notoriamente “pela mesma língua gentílica que ele bem sabe, pregou aos ditos gentios em contrário dos ditos padres” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 29). E para consolidar, aconselhou ao principal da aldeia que:
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Não descesse nem consentisse descer os seus gentios com os ditos padres para o mar desta Bahia mas que se deixasse estar onde estava por que se descesse com os padres que lhes haviam de tomar as suas mulheres e que quando muito lhe daria uma só e que se descesse que não havia de ter que muitas mulheres nem usar dos costumes de seus antepassados como lá tinhas e usavam no sertão e que estas coisas lhe dizia aconselhava para lhes estornar a descida com os padres dizendo que lhe mais que quando não quisesse se não descer que descesse com o dito seu capitão para Pernambuco [...]
(ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fls., 30-30v). Buscando uma forma de amenizar sua ação perante o Visitador, o réu acrescentou que seu capitão Manoel Machado (já falecido na data do processo), bem como todos os outros soldados, eram consentidores e aconselhadores que os ditos gentios não fossem com os padres. Simão Roiz foi testemunha dessas pregações. Não no sertão de Laripe onde tudo aconteceu, mas durante os dias em que a resgatou índios no sertão na expedição de Gonçalo Álvares, período no qual presenciou Lázaro da Cunha “gabar-se” de seus feitos, quem nos conta é o cristão novo Tristão Rodrigues, ao denunciar o propagandista ao Visitador: [...] e que outrossim o dito Lázaro da Cunha na dita jornada lhe disse também per muitas vezes em diversos lugares perante outros companheiros, gabando-se que quando ele andava entre os gentios propriamente como gentio fazendo seus costumes gentílicos, pelejara contra os cristãos por parte dos ditos gentios e que tomarão um ou dois cristãos e depois os largara e que lhe parece que isto lhe ‘ouvirão também Simão Roiz mameluco’ [...] (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 9, grifo
nosso). Ao ser perguntado sobre quem mais fez essas pregações contra os jesuítas, Lázaro da Cunha citou os nomes de Afonso Pereira, o marigui618 que é “morador em o forte de Ceregipe e assim mais Francisco Pires, morador em Ceregipe do Conde e Manoel Miranda residente no forte de Ceregipe” (ANTT, IL, Proc. nº 11.068, fl., 31).619 É sobre as ações de Francisco Pires sobre as quais também trataremos.
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Interessante percebermos no processo de Lázaro da Cunha, os delatores informaram lugares diferentes onde ele residia, como se pode notar: Marçal Aragão e o jesuíta João Vicente disseram ser ele estante no engenho do Conde de Linhares, local onde Simão Roiz e Francisco Pires moravam; Bastião Madeira informou que ele morava na casa de Bernardo Ribeiro, não clareando sobre a localidade; Simão Roiz usou uma expressão que se coaduna ao que Lázaro disse ao Visitador: “morador ora em passe” (ANTT, IL, Proc. nº 11.068, fl., 15) – o que nos leva a crer que ele estava de passagem por Sergipe do Conde. 618 Marigui, em português, significa mosquito (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 31). 619 O Forte de Ceregipe era a região conquistada, em 1590, pelo capitão Cristóvão de Barros e seus homens.
189 ISSN 2358-4912 No processo desse segundo propagandista da anticatequese constam as denunciações de Gonçalo Álvares (com quem foi ao sertão das Alpariacas e Topimaensis juntamente com Simão Roiz), a do jesuíta João Vicente (que presenciara tais ações) e a de Lázaro da Cunha. Compareceu perante o Visitador em 13 de março de 1592. Disse ser cristão velho, natural de Porto Seguro. Sobre seus pais informou que era filho de “Antônio Eanes, homem branco, lavrador e de Catariana sua escrava negra brasila, ambos defuntos” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 12). Suas confissões não eram novidades, porque o Visitador já tinha conhecimento de suas práticas contra os jesuítas, e logo sobre elas quis saber na primeira sessão do interrogatório. Por ele foi dito que:
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Pregou e aconselhou os ditos gentios, dizendo-lhes que não viessem com os ditos padres para o mar porque lhes haviam de tolher ter muitas mulheres e que tinham troncos em que os haviam de prender e os havia de açoitar e que lhes não haviam de deixar-lhes seus bailes e costumes de seus antepassados e que os haviam de fazer cristãos e que não os haviam de deixar viver em suas gentilidades e que não os haviam de deixar dormir com as suas sobrinhas (ANTT, IL, Proc. n.º
17.809, fls., 17v-18). As ações de Francisco Pires contra as intenções dos jesuítas foram além daquelas propagadas por Lázaro da Cunha. Ele não apenas persuadiu os gentios a não seguirem com os padres, como os amedrontou, falando-lhes que iriam ser açoitados no tronco. E disse ao Visitador que isso fazia movido pelo seu proveito, como pelo interesse de toda a companhia de soldados da qual era integrante, porquanto tinha por objetivo resgatar os índios por via de Pernambuco, e não queria que os gentios faltassem no sertão com a vinda deles com “os padres da Companhia de Jesus para esta Bahia” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 18). Descortinavam-se, na mesa inquisitorial, as teias de intrigas urdidas pelos mamelucos contra os jesuítas enquanto exerceram a função de soldados no sertão colonial. Francisco Pires argumentou, em sua defesa, que reconhecia não ter agido como um bom cristão, e entendia que era melhor para os índios renunciarem a seus usos e costumes para se fazerem “cristãos e batizarem-se, porém que lhes aconselhava e pregou ao contrário pelo dito seu interesse temporal” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 18v). Mas as argumentações foram inválidas e Francisco Pires saíra gravemente sentenciado da mesa inquisitorial, sendo preso, praticamente um ano após a sua confissão, precisamente, em 21 de janeiro de 1593, dois dias após a prisão de Simão Roiz. Parafraseando Ronaldo Vainfas, Francisco Pires revelou uma “verdadeira teia de falsos enganos” (1997, p. 182), que não se limitaram às relações entre ele e os jesuítas pelo controle dos nativos. A prisão inquisitorial Acreditamos que as intrigas urdidas nas veredas do sertão colonial tiveram ressonâncias diretas nas conclusões dos processos inquisitoriais movidos contra muitos soldados sertanistas, como no caso de Simão Roiz que foi proibido de retornar ao sertão. Nos espaços do sertão, ele encontrou a “brecha” que lhe permitiu praticar ações que foram de encontro aos dogmas estabelecidos pelo catolicismo, isso porque “para cada indivíduo há uma margem de liberdade que se origina precisamente das incoerências e dos confins sociais” (LEVI, 1998, p. 182). A cultura do sertão colonial não refletia a cultura das áreas colonizadas, o que ofereceu a Simão Roiz um “um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um” (GINZBURG, 2006, p. 20). A punição revela fissuras no relacionamento de toda uma categoria de soldados sertanistas com os jesuítas. Simão Roiz é a apenas a porta de entrada para compreendermos como se deram as relações socioculturais entre os sujeitos coloniais no sertão com seus divergentes interesses. Dessa disputa pelo controle dos gentios surgiu o embrião da intolerância em relação às práticas dos mamelucos que atuaram como soldados no sertão e foram processados e presos em virtude dos procedimentos da I Visita da Inquisição à Bahia, entre 1591 e 1593. O confinamento dos réus era uma prática comum a quase todos que pecavam e precisavam ser reconciliados com a Igreja (SIQUEIRA, 2013). Foi consequência direta dos processos inquisitoriais contra eles movidos. E assim, por comer carne de bichos do mato na Quarema e nos demais dias
190 ISSN 2358-4912 proibidos pela Igreja, Simão Roiz foi preso em 19 de janeiro de 1593. Dois dias após sua prisão, chegara ao cárcere Francisco Pires, sendo ambos levados a auto público de fé no domingo de 24 de janeiro daquele ano. A sentença a eles imposta foi a “abjuração por suspeita leve” que corresponde ao quarto veredito incluso no Manual dos Inquisidores, elaborado por Nicolau Eymerich, em 1376, e reelaborado por Francisco de La Peña, em 1578. Esse veredito determinava, em caso de suspeita pública, que o réu deveria abjurar no meio da nave da igreja de frente para o altar para que todos os presentes o vissem (EYMERICH, 1993). Foi o que ocorreu a Simão Roiz, a Francisco Pires e a outros companheiros de cárcere. A cerimônia do auto público da fé aconteceu na Sé de Salvador, a qual era situada com o rosto sobre o mar da Bahia, defronte do ancoradouro das naus. A Igreja era de “três naves, de honesta grandeza, alta e bem assombrada, com cinco capelas bem feitas e ornamentadas e dois altares nas ombreiras da capela-mor” (SOUSA, 1987, p. 135). Foi no altar da Sé que os réus foram apresentados publicamente e expostos à humilhação moral e social, perante o Visitador do Santo Ofício, os padres, os assessores, grande concurso de religiosos e do povo. Todos estavam lá para ouvir, além do sermão, as palavras de arrependimento dos condenados. É chegada a hora da abjuração. Simão Roiz deveria estar absorto pelas lembranças de tudo o que lhe acontecera até aquele momento. Aguardava a sua vez de ser chamado, porque era assim que funcionava a abjuração pública e coletiva. Ao ouvir seu nome, deveria agir conforme o ritual, aproximando-se e “ouvindo de pé a leitura de suas faltas” (SIQUEIRA, 2013, p. 624). Em seguida, tinha que ficar de joelhos perante o Visitador a fim de repetir as palavras da abjuração. Algo semelhante deve ter ocorrido com os demais que com ele estavam. A abjuração, nas palavras de Francisco Bethencourt, reflete “o ato de expressão pública e formal do arrependimento do penitente, de recusa das heresias cometidas e de compromisso renovado com a Igreja Católica” (2000, p. 249). Simão Roiz, ao desrespeitar os dogmas católicos, rompeu automaticamente com a Igreja, sendo necessário fazer a abjuração para ser reconciliado. A ação de Heitor Furtado de Mendonça para com Simão Roiz refletiu o modo de proceder a Inquisição em um plano macro: concluir os processos, às pressas, com “o propósito de reunir o maior número de penitentes – forma de tornar mais brilhante a festa principal da instituição” (BETHENCOURT, 2000, p. 221). Com o número maior de penitenciados, evitou-se fazer abjuração individual, para fazê-la em ato coletivo visando a obter uma maior mobilização da população, a qual presenciaria “abjuração de todos os reconciliados, por pequenos grupos” (BETHENCOURT, 2000, p. 250). Além das penitências espirituais impostas, as sentenças também trouxeram uma imposição que se adequava à realidade colonial: proibiu os réus a não mais retornarem ao sertão – local onde habitavam os índios, onde os soldados praticavam ações que contradiziam o catolicismo, local, sobretudo, onde eles pregavam contra as intenções dos jesuítas, tornando-se empecilhos às ações missionárias. Percebemos que a proibição de retorno ao sertão não se limitava a garantir o restabelecimento espiritual dos réus. Contribuía, mormente, com o desenvolvimento das ações missionárias, uma vez que coube somente aos jesuítas, através de lei real de 1591, a tarefa ou “o privilégio de ‘descer os índios do sertão’, o que por sua vez, implicava o poder exclusivo de destribuição e do uso dos indígenas nas regiões litorâneas” (DAVIDOFF, 1982, p. 35, grifo do autor). Com o auxílio das novas determinações legais, os jesuítas poderiam retomar seu projeto evangelizador atravancado pelos soldados sertanistas que além de pregar contra as intenções dos jesuítas, invadiam aldeias para aprisionar índios, pondo em descompasso o ritmo dos trabalhos missionários que iniciavam ao romper da manhã com os badalos do sino a soar.
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Considerações Finais O sertão colonial, lócus de atuação de Simão Roiz e de seus companheiros que atuaram como soldados sertanistas, tornando-se alvo de Heitor Furtado de Mendonça que trabalhou para zelar pela unidade da Fé Católica, agindo de modo a tentar impedir os desvios dos homens que se diziam cristãos, mas que, no sertão, agiam contra o catolicismo. A rarefeita trajetória de Simão Roiz nos mostrou que o sertão foi o palco das discordâncias que moveram jesuítas e sertanistas. Entretanto, havia uma concordância básica que era a relevância do
191 ISSN 2358-4912 gentio para o sucesso da colônia. Mas grande parte dos gentios negava-se a responder a ambos os grupos, cujas relutâncias variavam desde as lutas armadas à acomodação e aculturação. Embora tenha iniciado pela acusação de comer carne em dias de preceitos, o processo de Simão Roiz revelou, como bem disse Ronaldo Vainfas, uma teia de “falsos enganos”, por meio da qual os sertanistas acabaram pregando contra os jesuítas para obterem a mão de obra dos gentios. Essa disputa entre sertanistas e jesuítas foi sendo ampliada à medida que as distintas estratégias acabavam chegando no limite da outra. Ambos os interessados coincidiam quanto à necessidade de introduzir os índios na vida “civilizada”, mas quando se sentiam ameaçados, os colonos sertanistas atingiam os jesuítas no seu ponto franco – nas atividades missionárias. Por isso que acreditamos que os jesuítas, auxiliares da comitiva inquisitorial, podem ter influenciado nas decisões tomadas, inclusive na pena de não mais retornar ao sertão. As punições podem se configurar como uma ressonância dos acontecimentos de outrora, coadunando-se com a metáfora de George Duby (1986) referente aos redemoinhos formados a partir da pedra atirada na água. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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CONVERSÃO NOS CAMINHOS DE DENTRO: ENCONTROS DOS KIRIRI E JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1660-1699) Ane Luíse Silva Mecenas Santos620 Após a expulsão dos holandeses, intensifica-se uma rota de povoamento rumo ao sertão da Bahia. Nesse processo de expansão pelos “caminhos de dentro” são estreitados antigos laços com as comunidades de tapuais. Antigos aliados dos portugueses no apressamento de índios e de escravos. Diante da conquista desse novo espaço, os territórios religiosos é partilhado entre as ordens religiosas, os jesuítas ficam sob a tutela da margem sul do Rio São Francisco, enquanto que os capuchinhos ficam com a margem ao norte. Esse trabalho visa analisar o processo de conversão jesuítica alicerçado nas comunidades Kiriri do sertão da Capitania da Bahia e de Sergipe Del Rey. O marco temporal adotado compreende a formação das primeiras aldeias administradas pelos jesuítas até a publicação do Catecismo Kiriri organizado pelo padre Mamiani. A conversão dos kiriri foi apresentada em estudos como fato isolado de aldeamentos específicos, como o caso do Geru, sempre debatendo a história e a conversão desse povo levando em consideração os limites territoriais estabelecidos pelo colonizador. Outra contribuição proposta por esse trabalho visa utilizar para a constituição da interpretação histórica confrontando diferentes fontes, de cunho administrativo, dos quais destaco os alvarás, decretos e cartas, e de cunho religioso, cartas ânuas, catecismos e gramáticas. Em virtude da especificidade linguística os jesuítas que aturaram nessa região foram a partir do processo de observação e de registro dos hábitos locais sistematização um códice linguístico adequado as suas necessidades. Primeiramente, o padre João de Barros organizou um manuscrito que não chegou a ser publicado e ao final do século XVII o padre Mamiani publica com a autorização da ordem dois instrumentos de conversão o catecismo em língua kiriri e a gramática. Esses instrumentos foram utilizados nas aldeias de Mirandela, Saco dos Morcegos, Natuba e Geru. Dentre os Kiriri destaca-se os dialetos Kipeá, Dzubukuá, Kamuru e Sapuyá. Os dois primeiros foram alvo de estudo, o primeiro foi analisado pelo padre Mamiani e o segundo pelo capuchinho Bernardo de Nantes. No catecismo Kiriri do padre jesuíta são destacados os hábitos e costumes da população, tanto no Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri como na Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da naçam Kiriri.. Os resquícios desse trabalho são os murmúrios dos detentores do poder da escrita que tentam estabelecer a comunicação com os gentios. Para isso, o conhecimento da língua local passa a ser imprescindível para o êxito da catequese. Através desses dois documentos pensamos ser possível perceber a importância do domínio da língua local para a comunicação e como instrumento de conversão na “arte de educar” o gentio. A palavra seria um canal para que o índio pudesse alcançar a salvação, sendo esse o papel fundamental da missão. Ao longo do processo de colonização, muitos desempenharam a função de um homem-memória, ao registrar os feitos, ao narrar as conquistas e ao descrever as paisagens621. Distante do mundo europeu, as penas filtravam o olhar do estrangeiro acerca da América, e por isso foi descrita com estranhamento e admiração. A comunicação se tornava necessária. Serviu como instrumento de controle por parte da estrutura burocrática do antigo regime, bem como estratégia de benesses por parte dos súditos do rei. O volume documental produzido, sejam os alvarás, as cartas e ou os diários de viagem o Novo Mundo se
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Diretora do Museu Galdino Bicho e da Pinacoteca Jordão de Oliveira. Professora da Universidade Tiradentes e da Rede Pública do Estado de Sergipe. Doutoranda em História pela UNISINOS. Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Sergipe. Pesquisadora dos grupos de pesquisa do diretório da Capes, “Jesuítas nas Américas”, “Culturas, Identidades e Religiosidades” e “Arte, Cultura e Sociedade no Mundo Ibérico (séculos XVI a XIX)”. 621 RAMINELI, Ronald. Viagens Ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008. p. 32
193 ISSN 2358-4912 descortina perante a tessitura do velho. Nesses registros além da descrição do era visto, cada linha escrita carrega em suas marcas os mundos do escritor.622 Pela seleção da escrita as narrativas acerca do Novo Mundo foram tecidas. Não apenas no mundo burocrático da corte, mas nos bastidores da fé. Nesse ensejo uma vasta escrita, voltada a “adaptar” os mecanismos de conversão dos indivíduos que viviam na América, foi produzida623. Catecismos e gramáticas passaram a ser elaborados pelos membros das mais diversas ordens. O significativo número de publicações, envolvendo a normatização das línguas indígenas para o modelo latino, reflete a diversidade de povos e consequentemente de costumes, conforme aponta Daher:
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
(...) as operações de dicionarização e de gramaticalização das línguas indígenas não são apenas fundamentos de estratégias catequéticas, são elas mesmas determinadas teologicamente, ratificação evidente do princípio unitário da verdade divida profunda frente à multiplicidade 624 superficial das línguas humanas, desde a dispersão da língua adâmica no mundo.
Uma das necessidades que se estabeleceu estava pautada na questão do conhecimento e a partir da estratégia, construir a narrativa do texto. A efetivação da colonização precedia da necessidade de domínio do espaço e do outro. Conhecer o lugar era condição sine qua non para o êxito da ação. E nessa conquista pelo espaço era imprescindível a formação de alianças. Na dinâmica de povoação da América Portuguesa foi efetivada, primeiramente, com a ocupação do litoral. Nesse momento inicial, foi possível estabelecer os limites de norte a sul da colônia, uma língua foi instituída como a falada na costa, que a partir de um tronco linguístico “unificava” povos. Após a expulsão dos holandeses tornou-se imprescindível fincar raízes nos caminhos de dentro625. E avançar rumo aos sertões. A cada passo distante da costa, da zona de conforto o conhecimento adquirido nas décadas anteriores apresentou falhas. Dessa forma, com a colonização rumo aos “caminhos de dentro”626 , tornouse fundamental encontrar novas formas de comunicação para conhecer o espaço e assim efetivar o projeto de conquista. E nesses novos caminhos um grupo desses “novos” sujeitos históricos passam a ser os Kiriri. Conforme Dantas, os Kiriri são “índios que formavam importante grupo lingüístico cultural do Nordeste brasileiro, cujo habitat se estendia desde o Paraguassu e o rio de São Francisco até o Itapirucu, afastado da linha da costa, domínio dos povos de língua Tupi”627. Almeida também faz referência ao grupo: “Do tronco linguístico macro-jê e habitantes do sertão do São Francisco, os kariris tiveram seus costumes descritos por jesuítas e capuchinhos (...)”628. A instrumentalização do processo de conversão foi travado a partir da elaboração de uma gramática e de um catecismo em língua Kiriri. Com a finalidade de facilitar a comunicação e assessorar os padres durante a prática de conversão. Organizados para publicação pelo padre Mamiani, um homem memória, que registra nas suas duas obras o estranhamento pelo que viu e dessa forma descobriu costumes e diferenças. Mamiani ocupa por ter domínio da língua do outro ocupa o espaço bilíngue.
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CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVII. Coleção tempos. Tradução Mary del Priore. Brasília: Editora da UnB, 1994, p. 13. 623 Dos quais podemos destacar: Arte da Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasi,l do padre Jose de Anchieta, 1595; Arte da Grammatica da lingoa brasílica, do padre Luiz Figueira, 1687; Diccionario da língua geral do Brazil, sem data definida; Caderno de vocábulos da língua geral, muito necessário para com brevidade se aprender, feyto no anno de MDCCL; Diccionario dos vocábulos mais uzuaes para a inteligência da dita linguage; Diccionario da Lingua geral do Brasil que se falla em todas as Villa, lugares e aldeias deste Vastissimo Estado. Escrito na Cidade do Pará. Anno de 1771; Diccionario portuguez, e brasiliano, obra necessária aos ministros do altar(...) 1795. 624 Daher, Andrea (2012), A oralidade perdida. Ensaios de história das práticas letradas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.46 625 Os caminhos do sertão já eram empreendidos pelos criadores de gado ainda no século XVI, contudo esse projeto de governo passou a ser intensificado após a Restauração pernambucana. 626 Termo encontrado na documentação do Arquivo Ultramarino e se refere ao caminho da Bahia, passando pela Capitania de Sergipe até chegar ao Rio São Francisco. 627 DANTAS, Beatriz Góis (1973), Missão Indígena no Geru. Aracaju: UFS, p. 2. 628 ALMEIDA, Maria Celestino de (2010), Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, p.32.
194 ISSN 2358-4912 E o papel do bilíngüe, na sociedade colonial, é o do individuo que ocupa a zona do hiato entre dois mundos sociais, representado suas maneiras de falar. Tornando-se o elo entre mundos e desempenhando um papel social para as duas sociedades de que fala. As formas de comunicação ocorrem nas misturas, “lingüística de contato”. Nas zonas de fronteira linguísticas são adquiridas novas formas de fala.629 De acordo com Leite630, Mamiani nasceu na cidade de Pésaro, Itália, no dia 20 de janeiro de 1652. Tornou-se membro da ordem, quando tinha 16 anos, em abril de 1668. Embarcou para o Brasil em 1684. Tinha com destino a missão do Maranhão, contudo foi enviado para a aldeia do Geru, na Capitania de Sergipe Del Rey já nos limites com a Bahia. Nesse aldeamento, atribui-se a ele a fundação do templo votivo a Nossa Senhora do Socorro. Organizou e publicou as obras Catecismo Kiriri e Arte da Gramática Kiriri. A sua atuação na Terra Brasilis não durou muito tempo, em 1701 retornava ao Velho Continente. Posteriormente, tornou-se procurador em Roma e lá viveu até a seu falecimento em 8 de março de 1730. Todavia a normativa de instrumentos linguísticos não ficou restrita aos domínios portugueses na América, esteve presente na dinâmica do Império português. Após a expulsão holandesa dos domínios da África e do Novo Mundo é possível constar uma “corrida” aos sertões e a ampliação dos domínios nessas localidades. Para mapear as publicações da Companhia de Jesus o primeiro caminho foi seguir os “rastros” da tipografia responsável pela publicação dos textos da língua kiriri. As duas obras organizadas por Mamiani foram publicadas pela Officina de Miguel Deslandes. O responsável pela tipografia era Miguel Deslandes, francês, naturalizado português e desde 1687, tornou-se impressor real631. Durante a segunda metade do século XVII, sob o selo dessa tipografia, publicaram dezenas obras da Companhia. Dentre os livros, sete obras foram de autoria do padre Antônio Vieira. É conveniente destacar a publicação de duas gramáticas nesse período, uma em língua Kiriri e a outra em língua Angola. Assim como o Brasil, Angola também foi invadida pelo holandeses na primeira metade do século XVII. E, nessa restauração da antigas colônias nos dois lugares a Companhia de Jesus ficou responsável por normatizar a língua nesses dois lugares do Império português. Conforme aponta Batista: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
(...) os jesuítas estavam inseridos em um processo no qual línguas das Américas, da África e da Ásia foram aprendidas num momento que ficou conhecido, posteriormente, como de expressiva publicação de obras referentes às línguas das terras colonizadas por nações europeias a partir das 632 Grandes Navegações.
A Arte e língua Angola foi organizada pelo padre Pedro Dias633. O jesuíta elaborou a normativa da língua quimbundo na Bahia634. Possivelmente, por não ter vivido na África e não ter elaborado o registro in loco, a sua obra não possui um espaço dedicado ao leitor como na gramática e no catecismo de Mamiani. Na documentação consultada, não foi possível encontrar como o referido padre aprendeu o Kiriri. Serafim Leite aponta a existência de um manuscrito elaborado pelo padre João de Barros, no período em que esteve como superior na aldeia de Canabrava. E na escrita de Mamiani inicia ressaltando a experiência de vinte e cinco anos dos “religiosos da Companhia desta Provincia do Brasil” nos sertões 629
BURKE, Peter. A arte da conversão. Tradução Álvaro Luiz Hattnher. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 29. 630 LEITE, Serafim (1949), História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 351-353. 631 CUNHA, Xavier da, 1840-1920 Impressões deslandesianas: divulgações bibliographicas. Lisboa: Imprensa Nacional, [1895], (1896). - 2 v. http://purl.pt/254 632 BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Descrição de línguas indígenas em gramáticas missionárias do Brasil colonial. DELTA, Vol. 21. 2005. p. 123. 633 No ano de 2006 a Biblioteca Nacional organizou a publicação fasc-similar do livro. 634 LIMA, Ivana Stolze. Na Bahia, a arte da língua de Angola. Comunidades linguísticas no mundo Atlântico. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo Social. Natal, 2013, p. 1-13. Consultado em 14 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371346755_ARQUIVO_ArtigoAnpuh2013.pdf
195 ISSN 2358-4912 do Brasil. A ação dos jesuítas junto aos kiriri teve inicio nos idos de 1666, na aldeia de Natuba. No ano seguinte foi inserido um novo aldeamento, Canabrava. E por volta de 1691, efetivou-se a atuação em Saco dos Morcegos e por fim, em 1683 no Geru. A comunicação entre os padres que viveram nesses aldeamentos pode ser observada também quando analisamos as licenças da ordem para publicação. No catecismo há três licenças. A primeira é assinada pelo jesuíta Antônio de Barros, que em sua assinatura apresenta a localização em que preparou seu parecer para publicação, a aldeia de Canabrava. O outro padre é João Matheus Falletto que se encontrava na aldeia do Geru, ou missão de Nossa Senhora do Socorro. E terceiro autorizar a impressão é o provincial da Companhia Alexandre de Gusmão, que assina do colégio da Bahia. Outro ponto curioso acerca das licenças é referente importância que os padres atribuem a obra. Para Antônio de Barros o catecismo irá beneficiar as “almas, com que poderão agora ser melhor doutrinadas nos mysterios”. João Matheus Falletto a obra não fere os bons costumes e só iria facilitar a instrução e a salvação das almas por parte dos missionários. Já o provincial autoriza a impressão, não pelo fim que a mesma iria atender, mas por ter sido avaliada e respaldada pelos outros padres especialistas na língua. Sua licença é semelhante a atribuída a Arte da Língua de Angola, do padre Pedro Dias. E com relação a publicação em língua Angola, é curioso também observar que todas as licenças foram elaboradas por jesuítas que se encontram no colégio da Bahia. Ao analisar as licenças da gramática podemos observar a repetição da autorização do provincial Alexandre de Gusmão, com os mesmos termos e assinada na mesma data, 27 de junho de 1697, apenas com a alteração, do nome da obra. O padre João Matheus Falletto também apresenta um licença para a publicação da gramática, com pequenas passagens que foram publicadas no catecismo e suprimidas na versão da arte. A diferença se faz presente na terceira licença do padre Joseph Coelho do seminário de Belém. O referido jesuíta salienta os dezenove anos que viveu junto aos índios Kiriri e apoia a publicação pela contribuição que a mesma proporcionaria aos missionários na “salvação daquelas almas”. Os indícios do processo de aprendizado do Kiriri pelo padre Mamiani é possível constar nas advertências ao leitor, onde ele descreve a importância da obra e a dificuldade em organizá-la. O trabalho se tornou árduo por conta da dificuldade de pronunciação, que gerava discordância entre os próprios padres. Esse ponto pode ser confirmado na licença de publicação do padre João Matheus Falletto quando afirma que o catecismo é claro, apresenta a propriedade da língua no que era humanamente possível visto que a “pronúncia bárbara, & fechada” dificultava o entendimento. Por isso, para o autor a obra não é perfeita, contudo, faz-se necessário a publicação pois o mérito está na normatização básica para o estabelecimento da comunicação. Essa é a justificativa apresentada pelo padre por ter elaborado um catecismo bilíngue. Com as frases em Kiriri e em português Mamiani defende a tese que o leitor poderia ter maior facilidade em aprender a língua indígena, seja ele um padre ou qualquer outra pessoa. Para ele, a importância da obra é poder “administrar o remédio” ao gentio, e mesmo na ausência de um padre, os índios pudessem aprender o que era mais importante, os mistérios, pois caso um individuo que não fosse religioso tivesse posse do catecismo deveria ensinar o método para seus filhos, seus escravos e todos pelos quais fosse responsável. O jesuíta descreveu a estruturação do seu método de aprendizagem. Ao ouvir cada palavra, ele anotava a pronuncia e o significado. Entretanto, o método só alcançou êxito, pela constante comunicação, com outros padres e com os índios. Esse é um ponto de destaque da obra de Mamiani a dinâmica da comunicação, a circulação de padres entre as aldeias Kiriri e os detalhes de como o conhecimento oral é estruturado e moldado para a escrita europeia. Podemos concluir que a aprendizagem do autor passava pela capacidade do mesmo em ordenar os sentidos. Primeiramente, com o olhar e assim observar os gestos e o espaço no qual estava inserido. Em seguida, com a audição, saber ouvir e conseguir interpretar os ditos e os silêncios. E por fim, construir a trama da memória do que viu e ouviu em uma narrativa. Esse oficio era importante para conseguir cumprir com o objetivo da publicação da obra:
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ISSN 2358-4912 (...) para os missionários novos serem ouvidos, e entendidos pelos índios, que he o fim principal, que se pretende, pois por falta dele não se declarao aos índios muitos mysterios, & muitas cousas 635 necessárias a hum Cristão.
O catecismo foi organizado em três partes, dedicada as orações, aos mistérios e as instruções. O jesuíta optou em organizar os ensinamentos em forma de diálogo porque era a forma mais utilizada e de acordo com ele era também a mais fácil de ser ensinada. Mamiani ratifica o era necessário que o índio aprendesse, as orações e as respostas das perguntas gerais. De acordo com ele, não deveriam esperar que os índios aprendessem tudo, porque não era necessário como também para o autor eles não tinham capacidade para isso. Mas deveriam entender ao processo como uma prática ordenada. Para ilustrar os ensinamentos as explicações acerca da doutrina, foram relacionadas aos elementos práticos da vida e do mundo que os cercavam. Na passagem em forma de diálogo na qual o padre explica a Santíssima Trindade: Explicarei isso como o exemplo do rio. Nasce a agua da fonte do rio, & corre formando o rio, & dahi sahe formando hua lagoa. A mesma agua he a que sahe da fonte, corre no rio, & fórma a lagoa. A fonte, o rio, & a lagoa são três lugares distintos entre si, & para a lagoa são três lugares distintos entre si, & com tudo he hua só, & a mesma agua que sahe da fonte para o rio, & para a lagoa: Assim 636 o Padre he Deus, o Filho he Deos & em três pessoas distintas.
Nos elementos apresentados antes das normativas as quais se dedica o catecismo, são elencadas algumas características referente aos Kiriri. Mamiani, nas advertências ao leitor salienta o cuidado com o povo bravo, bárbaro e que não tinha capacidade de aprendizagem. E na gramática ele retoma essa discussão ao problematizar a língua e associar seus caráter “bárbaro” ao ausência de lei e de regras. Mamiani, ao longo de sua escrita, constrói sua narrativa a partir de duas concepções de tempo, duas modalidades de ser no mundo: o sagrado e o profano. As duas concepções são regidas tanto em caráter individual, nas práticas diárias de cada sujeito, bem como no que tange o coletivo da comunidade, nas atividades do bem comum do grupo. Dessa forma, a normatização da rotina é estabelecida com o intuito de alcançar a salvação. Observa-se que no tempo profano há um conjunto maior de práticas particulares, constituídas pelas orações individuais, modelos de vida seguidos a partir dos mandamentos. Contudo, a salvação não é alcançada apenas através do conjunto de atividades individuais, pois a ação praticada com o outro também deve ser discutida e ensinada. Para Eliade: Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem continuo. Há, por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua maioria, festas periódicas); por outro lado, há o tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro a continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode “passar”, sem perigo, da duração 637 temporal ordinária para o Tempo sagrado.
Já na gramática Mamiani638 aponta outras concepções de tempo, partindo dos tempos verbais. De acordo com o autor na língua kiriri os verbos podem ser conjugados no presente do indicativo, no futuro do indicativo, no pretérito perfeito do indicativo, pretérito do indicativo, no gerúndio, no particípio, no imperativo e permissivo, no modo optativo e conjuctivo. Para indicar cada tempo verbal
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MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698]. 636 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p. 43-44. 637 ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, p. 63. 638 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1877), Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da naçam Kiriri. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.35.
197 ISSN 2358-4912 há uma série de regras apresentadas, entretanto a conjugação só é feita na primeira pessoa do singular. Para as outras pessoas verbais devesse apenas mudar os artigos dos pronomes. O tempo ordinário era rompido pelo tempo sagrado639 todos os domingos, o primeiro dia das festas do Nascimento do Senhor, da Ressurreição, Pentecostes, as festas da Circuncisão, da Epifania, da Ascensão, do Corpus Christi, do Nascimento do Senhor, da Purificação, da Anunciação, da Assunção, como também o dia de São Pedro e São Paulo. Ao observar essas datas destacadas pelo inaciano podemos ter uma ideia do calendário festivo das aldeias. Além disso, mostra que tanto no domingo como no dias santos deve-se ouvir a missa640 e rezar, mas se podia também cozinhar, comer, caçar e pescar. As atividades voltadas para a alimentação eram permitidas. O jejum também marca o tempo, pode ser incluído no conjunto de práticas que marcam a passagem dos anos e do tempo sagrado. As datas festivas remontam ao tempo litúrgico, constitui-se na antiga prática de rememorar a partir da representação o ritual de evento sagrado o passado mítico da fé cristã641. A festa marca a saída da vida temporal “ordinária” e inserção do indivíduo no tempo mítico, percebem-se encenadas que fazem parte de um conjunto de regras que compõem o universo festivo, passíveis de repetição. Trata-se de um tempo ontológico. Para Bakhtin: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
As festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo. Na base, encontra-se constantemente uma concepção determinada e concreta do tempo natural (cósmico), biológico e histórico. Além disso, as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos marcantes da festa. E são precisamente esses momentos – nas formas concretas das diferentes festas – que criaram o clima típico da 642 festa.
Anualmente, na festa de Nascimento de Cristo, a etiqueta cerimonial que compõe a mentalidade cristã dessa data é rememorada de forma semelhante ao longo dos anos. Isso contribui com a formação de uma mentalidade coletiva e simbólica do grupo que participa da celebração. Na festa anual, que marca a passagem do tempo há o reencontro com o tempo sagrado, e nesse caso coletivo. Os elementos específicos que compõe as festas não foram apresentados. Não se identificou a normatização das festividades. A descrição dos rituais não consistia no objetivo de Mamiani. Possivelmente, a ritualização da festa fosse composta principalmente pelo visível, de forma teatral, por isso não haveria a necessidade de registrar no “manual” que serviria de base para a comunicação entre os membros da ordem e o grupo de gentios que falava o Kiriri não traz a “tradução” dos ritos. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia identificamos como procissões que ficaram a cargo dos jesuítas a da Santíssima Trindade e a Terça Feira das quarenta horas. O tempo sagrado era marcado pelas festas bem como através dos sacramentos. Dos quais Mamiani destaca sete: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema unção, ordem e matrimônio. Ato necessário para o bom cristão e estabelecido tanto no Concílio de Trento como nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e também presente no mencionado catecismo, é a penitência. Para isto o indígena deveria utilizar sua memória para elencar todos os pecados praticados após o batismo. No Título XXXIV das Constituições, intitulado da “Contrição, confissão, e satisfação, que se requer para o sacramento da penitencia e dos effeitos que elle causa” são estabelecidas três regras básicas que o penitente é obrigado a cumprir para alcançar a perfeita purificação dos pecados, são elas: a contrição, a confissão e, por fim, a satisfação da culpa pelo Confessor. 639
ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes. 640 Realizar missas pela manhã era também o que estava estabelecido nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia celebrado no dia 12 de junho de 1707, no Título IV Em que tempo, hora, e lugar se deve dizer a Missa, artigo 336, “Prohibe o Sagrado Concilio Tridentino, que os Sacerdotes digão Missa fora das horas devidas, e competentes, as quaes conforme o costume universal da Igreja, e Rubricas do Missal Romano, são desde que rompe a alva até o meio dia” (VIDE, 2007, p.137). 641 ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, p. 64. 642 BAKHTIN, Mikahail (2008), A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 8.
198 ISSN 2358-4912 A segunda cousa, que deve fazer o penitente é a Confissão vocal, e inteira de todos os seus peccados com a circunstancias necessariais: e para que esta sua Confissão seja inteira, e verídica, deve tomar tempo bastante para examinar com diligencia, e cuidado a consciência antes da Confissão, discorrendo pelos Mandamentos da lei de Deos, e da Santa Madre Igreja, e pelas obrigações de seu estado, vícios, companhias, tratos, e inclinações, que tem; vendo como peccou por pensamentos, palavras, e obras, e fazendo quanto puder por distinguir, e averiguar as espécies, e numero dos peccados. O qual exame feito, procurarão Confessor, a quem hão de dizer todos os seus peccados, e os mais que depois do exame lhe lembrarem. E requeremos a todos os nossos súbditos da parte de deos nosso Senhor , que não deixem de confessar peccado algum por pejo, e vergonha, ou temos dos Confessores, ainda que o pecado seja o mais grave, e enorme, que se póde considerar, porque são muitas as almas, que por este principio se condemnão643. Nessa passagem das Constituições é possível constatar a necessidade e a importância dada à confissão: a necessidade da consciência do ato e o arrependimento são características necessárias para a “purificação dos pecados”. No entanto, a confissão, para o branco, normalmente europeu, era algo simples de se fazer, levando em consideração as normas estabelecidas tanto no Concílio como nas Constituições, mas como seria confessar índios que viviam nas aldeias jesuíticas e que falam uma língua totalmente diferente daquelas conhecidas pelo colonizador? No catecismo kiriri a confissão era também prática obrigatória pelo menos uma vez ao ano, sob pena de excomunhão. A confissão era necessária, principalmente, quando havia iminente perigo de morte. Para efetivar o sacramento o pecador deveria ficar de joelhos e, em seguida, rogar a Deus e contar seus “verdadeiros pecados”:
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Fazer confessar o pecado para que ele receba do padre o perdão divino e saia conformado: tal foi a ambição da Igreja católica, sobretudo a partir do momento em que tornou obrigatória a confissão privada anual e além disso exigiu dos fiéis a confissão detalhada de toso os seus pecados ‘mortais’. Ao tomar essas decisões carregadas de futuro, a Igreja romana certamente não avaliava em que engrenagem punha o dedo, nem que peso estava impondo aos fiéis, nem que avalanche de problemas 644 decorrentes uns dos outros haveria de desencadear.
Dentre os diversos pecados o de mentir ou esconder alguma informação do padre local era profundamente abominado. Após a confissão era necessário pagar a penitência declarada pelo Confessor, podendo ela ser o jejum, dar esmola, fazer uma oração ou “rezar as contas”. A confissão era necessária nos dias da quaresma e principalmente quando havia conspícua ameaça de depauperamento: quando estavam doentes, quando fossem à guerra ou quando uma mulher fosse parir. E seguir os costumes dos avós significava ir para o inferno.645 A comunhão era prática comum na vida dos cristãos batizados. Fazia-se necessário comungar entre o período da Quaresma e da festa de Corpus Christi, como também jejuar. A prática do jejum era imprescindível em todas as festas da Quaresma, na vigília do Natal e da Ressureição. Nessas datas os gentios deveriam comer uma só vez durante o dia, mas nessa refeição não poderiam se alimentar de carne. O jejum dos índios, como também dos “negros da América”, era apenas não comer carne e alimenta-se uma vez ao dia. Estavam desobrigados nos seguintes casos: Não peccaõ, se estão doentes; se não tem de comer bastante para poder comer o necessário; se trabalhão muito; se lhes falta peixe, ou legumes, ou outro mantimento fora da carne; se são de pouca 646 idade, ou se são muito velhos.
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VIDE, Sebastião Monteiro da (2007), Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia / feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, p. 57. 644 DELUMEAU, Jean (2009), História do Medo no Ocidente 1300-1800. Uma cidade sitiada. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, p. 11. 645 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p. 157. 646 _________. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p.106.
199 ISSN 2358-4912 Percebemos que não se trata apenas de ensinar a oração, mas, sobretudo, explicar a importância do ato para quem o pratica. Nos diálogos encontramos a seguinte pergunta “Como havemos de rezar?” e a resposta “Há muitos modos, mas sobre tudo He bom rezar o Padre nosso, porque Jesu Christo ensinou esta oração aos seus discípulos. He bom também ki rezar a Ave Maria, ou a salve Rainha, pois assim nos ensinou a rezar a santa Igreja; para q a May de Deos interceda por nós para o seu Divino Filho” (MAMIANI, 1942, s/p). Após o Concílio de Trento, o culto à Virgem Mãe de Deus foi bastante divulgado, sendo que sua imagem se encontra presente em quase todos os templos nos escritos de Mamiani a repetição é método utilizado para que o gentio pudesse aprender.
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REFORMAS EDUCACIONAIS E AS ‘LUZES’ EM PORTUGAL* Antonio Cesar de Almeida Santos Diversos estudos procurados relacionar as ‘reformas pombalinas do ensino’ às ideias iluministas e, neste trabalho, pretendemos apontar para a importância dessas reformas para uma discussão acerca da presença das Luzes em Portugal.647 Neste sentido, consideramos que tais reformas estiveram orientadas pelo desejo de transformação da mentalidade dos jovens portugueses, afinado-a aos ‘novos tempos’, que exigiam profissionais com uma formação diversa daquela proporcionada até então.648 As considerações que iremos apresentar estão apoiadas em documentação oficial, na qual foram expostas as concepções e as expectativas dos propositores daquelas reformas.649 Entendemos que esse tipo de documentos, apesar de suas limitações, permite perceber nexos entre as ideias que circulavam no ambiente intelectual europeu da época e a formação que se esperava oferecer para os jovens portugueses.650 Assim, abordamos algumas questões que apontam para o tipo de estudante e, consequentemente, para o ‘profissional’ esperado pelos propositores das reformas educacionais da segunda metade do século XVIII, em Portugal, e também para a questão do método de ensino, buscando relacioná-lo com um dado saber que, defendemos, influenciou diretamente os diversos âmbitos da política pombalina. António de Oliveira, ao tratar do quotidiano universitário em Coimbra, entre os séculos XVI e XVIII, indica que o ato da matrícula e o juramento exigido ligavam o estudante “pela vida fora aos interesses da corporação, como estatutariamente se encontrava tipificado”.651 Mas, quem era aquele que chegava às portas da Universidade? Ou melhor, o que aqueles jovens, transformados em estudantes, esperavam alcançar com seus estudos? E, por outro lado, o que a monarquia portuguesa desejava deles obter? Conforme os “Estatutos Velhos”652, o candidato à matrícula em um dos cursos de direito deveria comprovar apenas o prévio conhecimento do latim. Para o ingresso nos cursos de Teologia ou
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Este texto decorre de pesquisas conduzidas a partir de Plano de Trabalho inscrito no Projeto Integrado de Pesquisa Ilustração e cultura escrita (Portugal e Brasil, 1750-1840), contemplado com recursos do Edital de Ciências Humanas 2012 (Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 18/2012). Universidade Federal do Paraná. Email:
[email protected] 647 Necessário mencionar, CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva; Ed. Universidade de São Paulo, 1978 (originalmente publicado em 1952). Um registro recente deste tipo de abordagem pode ser visto em CARVALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008. Ver ainda ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal : temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. 648 Em relação às ações reformistas no contexto do Iluminismo, ver, entre ouros: OUTRAM, Dorinda. O iluminismo. Lisboa: Actividades Editoriais, 2001 e HOF, Ulrich Im. A Europa no século das Luzes. Lisboa: Editorial Presença, 1995. 649 Entre outros documentos, ver o Alvará de confirmação e os Estatutos da Aula de Comércio, de 19 de maio de 1759, o Alvará régio de 28 de junho de 1759 e as Instruções para os professores, a Lei de criação e os Estatutos do Colégio Real dos Nobres, de 7 de março de 1761, e a Lei de 6 de novembro de 1772. 650 Conforme entendem Mário Júlio de Almeida Costa e Rui de Figueiredo Marcos, “as modificações pombalinas testemunham um sério esforço destinado a implantar no ensino português certas modernidades que faziam carreira além-fronteiras”.COSTA, Mário J. de A.; MARCOS, Rui de F. Reforma pombalina dos estudos jurídicos. In: ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 97-125, p. 125. 651 OLIVEIRA, António de. O quotidiano da academia. In: História da Universidade em Portugal, I volume, tomo II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 617-692, p. 619. 652 Segundo Mário Júlio de Almeida Costa, “[...] os Estatutos Filipinos de 1598, conhecidos por Sétimos Estatutos, depois revistos e confirmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados por D. João IV (1653), permaneceram em vigor até à reforma pombalina. Recebem o nome de Estatutos Velhos, em contraposição aos chamados Estatutos Novos, de 1772”. COSTA, Mário J. de A. O Direito (Cânones e Leis). In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 823-834, p. 825.
201 ISSN 2358-4912 Medicina, o estudante deveria ter concluído curso em Artes.653 Não obstante essas exigências para o ingresso nas faculdades, o que pressupunha a realização de estudos prévios, diversos jovens concluíam os cursos universitários com idades entre 17 e 21 anos, apesar da duração média dos cursos jurídicos, por exemplo, ser de 7,2 anos.654 A propósito, não havia nos “Estatutos Velhos” nenhuma disposição que regulasse a idade mínima de ingresso na Universidade. A escolha dos cursos também era bastante desigual: o maior número de matrículas ficava com o curso de Direito Canônico, seguido pelo curso de Direito Civil; os cursos de Medicina e de Teologia eram os menos frequentados: “Mais precisamente, e reportando-nos a todo o longo período de 1577 a 1772, as proporções são, respectivamente, 72%; 15,3% (o que dá, para o conjunto das duas faculdades jurídicas, 87,3%); 7,1%; e 5,6%”.655 A opção pelas faculdades expressa o valor social atribuído às respectivas carreiras e, no que se refere ao âmbito do Direito, os “juristas letrados” foram ganhando espaço e reconhecimento, entre os séculos XVI e XIX.656 Nos dados acima mencionados, percebe-se um relativo menosprezo pela formação em Medicina, mesmo sendo um curso de menor duração (6 anos). Conforme Fernado Taveira da Fonseca, “Na hierarquia dos saberes cujo ensino se professava nas chamadas faculdades maiores da Universidade, a Medicina ocupava o último lugar, depois da Teologia e dos dois Direitos”. Esta situação decorria, em parte “do seu carácter, quase misto, de ciência (procurando, como tal, a explicação causal dos fenômenos que analisava) e de arte (fornecendo um conjunto de preceitos tendentes à execução bem sucedida de técnicas curativas)”.657 A faculdade de Teologia gozava de uma certa especificidade, sendo “majoritariamente freqüentada por membros das ordens religiosas”, em busca do grau de doutor, “de cariz marcadamente honorífico, embora estatutariamente exigido para os que optavam pela carreira docente universitária”.658 Os cursos de Direito aparecem, portanto, como aqueles que ofereciam – aos olhos dos estudantes e de suas famílias – as melhores oportunidades de ‘empregos’ e de reconhecimento social. Para além desses quatro cursos, também existia, em Coimbra, desde 1653, “uma cadeira de Matemática”.659 As informações acima oferecem alguns traços daquele que chegava às portas da Universidade de Coimbra, no período precedente à Reforma de 1772. Se o estudante esperava empregos e reconhecimento social, o que a monarquia portuguesa desejava do ensino universitário? Conforme os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1653, além da “honra, glória e serviço de Deus nosso Senhor”, esperava-se que na universidade fosse realizado o ensino das “ciências necessárias para bom governo e conservação da República Cristã”.660 José Subtil, assim, vê a Universidade de Coimbra como um agente responsável pela reprodução do poder dominante, na medida em que produzia a “elite dirigente”; seus graduados eram atraídos para ofícios e cargos que asseguravam a presença simbólica do soberano em diversos níveis e espaços da administração régia (juízes de fora, corregedores, provedores, entre outros).661 António de Oliveira
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Estatutos da Universidade de Coimbra confirmados por el Rei nosso Senhor Dom João o IV, no ano de 1653. Coimbra: Oficina de Thomé Cavalho, Impressor da Universidade, 1654, p. 136. [versão digitalizada]. 654 FONSECA, Fernando Taveira da. [Os corpos acadêmicos e os servidores] Universidade Coimbra. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 499-600, p. 555. 655 Idem, p. 537-539. 656 Ver HESPANHA, Antonio Manuel. Os modelos normativos; os paradigmas literários. In: MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal : a Idade Moderna [coordenação de MONTEIRO, Nuno Gonçalo]. Lisboa: Círculo de Leitores; Temas e Debates, 2011, p. 58-70. 657 FONSECA, Fernando Taveira da. A medicina. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 835-873, p. 835. 658 FONSECA, [Os corpos acadêmicos ...], op. cit. , p. 541. 659 Estatutos (1653), p. 144. 660 Estatutos (1653), p. 1. Nas citações dos documentos, optamos pela atualização ortográfica e gramatical, devido à origem diversa das fontes com que trabalhamos, em sua maior parte, impressas. Havendo interesse, as referências permitem o acesso aos documentos citados. Manteve-se, contudo, a ortografia dos textos publicados em Portugal. 661 SUBTIL, José. O protagonismo dos professores e dos graduados. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 943-964, p. 943-944.
202 ISSN 2358-4912 salienta, então, que “não admira, por isso, que o poder régio, à medida que se foi fortalecendo, se impusesse à Universidade como corporação, cerceando-lhe as liberdades colectivas”.662 Se mesmo antes da Reforma de 1772, a Universidade de Coimbra já respondia pela formação de uma “elite dirigente”, quais foram as motivações das reformas empreendidas no reinado de D. José I? Seriam elas prioritariamente educacionais? Tratou-se mesmo de uma tentativa de alterar uma situação na qual, “por motivos metodológicos fundamentais, a ‘ciência’ ministrada na Universidade nada tinha de investigativa e tudo de argumentativa”?663 Ou seja, as “reformas pombalinas” expressaram de fato um “sério esforço destinado a implantar no ensino português certas modernidades que faziam carreira além-fronteiras”?664 Ana Cristina Araújo, confrontando “planos, tratados, cartas e instruções que antecederam” e instituíram as ‘reformas pombalinas’ e documentos produzidos depois dela, entende que os resultados ficaram, “em muitos aspectos, aquém da ambição e das expectativas alimentadas por alguns dos mais conceituados filósofos e teorizadores”, referindo-se especificamente a Luís Antonio Verney, Antonio Soares Barbosa e Antonio Nunes Ribeiro Sanches.665 Sem dúvida, é difícil encontrar a transposição das ideias desses intelectuais para as reformas educacionais portuguesas, da segunda metade do século XVIII. Contudo, também há que se levar em conta os ideais políticos que orientaram as ações administrativas no reinado de D. José I. Ou seja, como reconhece Ana Cristina Araújo, “não se tratava apenas de controlar, funcionalmente, a escola, mas de infundir, por meio de um projecto coerente de educação nacional, a ideia de que a instrução era inseparável do bem comum e da felicidade pública”. Nesse sentido, houve uma tentativa de adequar a educação portuguesa “às exigências secularizadoras e regalistas do Estado”, conformando-a às “orientações dominantes, do ponto de vista filosófico, pedagógico e científico, do século das Luzes”.666 Eram patentes as expectativas em relação a transformações sociais e políticas e, nesse sentido, percebe-se que as reformas do sistema educacional português estiveram diretamente relacionadas ao desejo de modificar a mentalidade de setores da sociedade portuguesa.667 Essa mentalidade reformada se conformaria a um “discurso da ilustração portuguesa” que, conforme apontado por Francisco António Lourenço Vaz, reconhecia na instrução “a chave para formar o cidadão cristão, que seria necessariamente virtuoso, trabalhador e aplicado para obter a riqueza para si e para o Estado”.668 Mas os “Estatutos Velhos” da Universidade de Coimbra já tinham em vista o “cidadão cristão”, preconizando que, junto às ciências, fosse ensinada a “santa doutrina” necessária à conservação de uma “República Cristã”.669 Neste aspecto, o que diferencia um momento do outro? Como apontamos em outros trabalhos,670 no reinado de D. José I, a disposição em formar homens virtuosos e trabalhadores, aplicados em “obter a riqueza para si e para o Estado”, está diretamente relacionada à necessidade da recuperação econômica de Portugal, e as ações para essa recuperação estiveram apoiadas em proposições da aritmética política inglesa, com a qual Sebastião José de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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OLIVEIRA, António de. A Universidade e os poderes. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 897-941, p. 897 e 898. 663 MAGALHÃES, Joaquim Romero. A Universidade e a Inquisição. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 971-988, p. 971. 664 COSTA & MARCOS, op. cit., p. 125. 665 ARAÚJO, A cultura das Luzes..., p. 51-66. 666 Idem, p. 54. 667 Ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para formar homens capazes de “discernimento e de percepção” : reformas educacionais em Portugal (segunda metade do século XVIII). Anais do XIII Encontro Estadual de História ANPUH/PR, Londrina, 2012, p. 392-403. 668 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia: as ideias económicas no discurso da Ilustração portuguesa (1746-1820). Lisboa : Colibri, 2002, p. 74 [destaques no original]. 669 Estatutos (1653), p. 1. 670 Ver, entre outros, SANTOS, Antonio Cesar de Almeida . O mecanismo político pombalino e o povoamento da América portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional, v. 15, n.1, p. 78-107, 2010; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, jan.-jun. 2011; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 205-226.
203 ISSN 2358-4912 Carvalho e Melo671 tomou evidente contato quando de sua estadia em Londres, durante o período compreendido entre os anos de 1738 e 1742. Em Portugal, referências aos princípios da aritmética política inglesa permaneceram mesmo após o reinado de D. José I, como mostram, por exemplo, diversos textos produzidos por Domingos Vandelli672. Este antigo professor da Universidade de Coimbra reformada defendia que a economia, para ser útil aos interesses do reino português, deveria ser regulada “por princípios deduzidos de uma boa aritmética política”, ressaltando que “não se devem seguir sistemas, sem antes examiná-los e confrontá-los com as actuais circunstâncias da nação”.673 Esta proposição de que os “sistemas” deveriam ser confrontados à própria realidade condensa a teoria política de Carvalho e Melo, para quem as especulações deviam ser postas de lado e, no lugar delas, produzir-se um conhecimento que, a partir da observação da realidade, pudesse ser comprovado “por demonstrações de conta, peso e medida”674. Ou seja, conforme William Petty (1623-1687), reconhecido como o principal teórico da aritmética política inglesa, devia-se “usar apenas argumentos baseados nos sentidos e considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração de outros as que dependem das mentes e opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens”.675 No geral, é esta a disposição que norteia todas as propostas do reformismo pombalino, seja na área econômica, ou na educacional: o abandono de noções pré-concebidas (os “sistemas” mencionados por Vandelli) em prol de conhecimentos produzidos a partir de uma observação sistemática da realidade social sobre a qual se objetiva intervir, modificando o que existe.676 Retomemos, então, a discussão que foi proposta mais acima, sobre a formação dos cidadãos necessários para o “bom governo e conservação da República Cristã”: aos olhos de Carvalho e Melo e de seus coligados, a Universidade portuguesa estava preparada para oferecer um ensino mais assentado na investigação do que na mera argumentação? Considerando que a resposta a esta questão seja negativa, parece-nos que o foco da reformas pombalinas na área pedagógica girou em torno do método de estudo, como deixa entrever o texto do Alvará de 28 de junho de 1759, que retirava dos jesuítas as suas escolas. O método que passaria a vigorar era aquele “reduzido aos termos simples, claros e de maior facilidade, que se pratica atualmente pelas nações polidas da Europa”,677 em contraste ao método de ensino utilizado pelos padres da Companhia de Jesus,678 o qual já havia sido criticado, na década de 1730, por Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, que expressava suas reservas ao “sistema abstrato de Aristóteles, ou para melhor dizer dos Escolásticos”.679 Pouco antes da assinatura do Alvará que reformou os Estudos Menores, D. José I havia confirmado os Estatutos da Aula de Comércio, uma “pública e muito importante Escola” na qual seriam ensinados “os princípios necessários a qualquer Negociante perfeito”.680 No geral, o objetivo dessa escola era “a V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782) foi nomeado secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra em 1750; em 1756, passou a ocupar o cargo de secretário de estado dos Negócios do Reino. Recebeu o título de Conde de Oeiras, em 1759, e o de Marquês de Pombal, em 1770. 672 Domingos Vandelli foi professor de História Natural e de Química na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, por cerca de 20 anos (1772-1791). Fez parte, depois, da Academia Real das Ciências. 673 VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas (1789). In: SERRÃO, José Vicente (dir.). Domingos Vandelli: aritmética política, economia e finanças. Lisboa: Banco de Portugal, 1994, p. 143 [nosso destaque]. 674 Carta de 19 de fevereiro de 1742, citada em SILVA DIAS, José Sebastião da. Pombalismo e projecto político. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984, p. 227. 675 Ver PETTY [e] QUESNAY. Obras econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 143. 676 Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José : na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 168. 677 Alvará de 28 de junho de 1759, sobre a reforma dos Estudos Menores. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações : Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 675. [versão digital, disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73; consulta em 12/06/2012]. 678 Ana Cristina Araújo destaca: “no fulcro das novas tendências filosóficas, está o problema do método dos estudos”. ARAÚJO, A cultura das Luzes ..., p. 29 [destaque no original]. 679 PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de um menino nobre. Lisboa: Oficina de Joseph Antonio da Silva, 1734, p. 319. 680 Estatutos da Aula de Comércio, In: SILVA, op. cit., p. 656.
204 ISSN 2358-4912 conservação e aumento do Bem público dos meus Vassalos e do Comércio”.681 Conforme os referidos Estatutos, a Aula, com duração de três anos, estava aberta, preferencialmente, a jovens das famílias de “homens de negócios”; eles deveriam saber “ler, escrever e contar” e ter, ao ingressar, “catorze anos completos”. Essa última exigência foi, para a época, uma novidade. Aos olhos dos elaboradores dos Estatutos da Aula de Comércio, a idade ajudaria a definir um aluno “apto” para o ensino e para os empregos dele decorrentes, pois os estudos não poderiam “suprir o defeito causado pela pouca idade”.682 Os Estatutos do Colégio Real dos Nobres também previam uma idade mínima (e máxima) para ingresso: “os que houverem de ser admitidos no dito Colégio, saberão ler e escrever, não tendo menos de sete anos, nem mais de treze”.683 A limitação de idade, neste caso, além de estar relacionada à aptidão de leitura e escrita dos alunos, aponta para o tipo de ensino que seria ministrado aos jovens fidalgos postos sob a responsabilidade dos dirigentes e professores daquele Colégio: os alunos deveriam conhecer e observar os preceitos de Deus “e da sua Igreja, não bastando que no Colégio floresçam as Belas Letras se com elas não se aprenderem e cultivarem os bons costumes”.684 Os cuidados com “os bons costumes” dos jovens fidalgos estudantes do Colégio dos Nobres estão relacionados ao tipo de formação que se pretendia conferir a eles. Assim, enquanto os estudantes da Aula de Comércio já teriam recebido uma primeira educação escolar (dada a idade mínima de ingresso), na qual se incluíam os preceitos religiosos, os alunos do Colégio dos Nobres, ao contrário, eram crianças e jovens que, não obstante a necessidade de saberem ler e escrever, iriam ser instruídos para bem desempenharem funções no serviço régio: ao mesmo tempo em que tinham aulas de esgrima, dança e equitação, também recebiam uma formação que lhes permitiria o ingresso na universidade.685 Apesar de existirem recomendações acerca do que deveria ser ensiando, o professor da Aula de Comércio não estava preso a um plano de ensino formalizado.686 Ao contrário, os professores do Colégio Real dos Nobres deviam seguir instruções bastante extensas e detalhadas; em especial, o “método pelo qual [se] pretende ensinar” devia ser previamente aprovado. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
[...] que os professores da Lógica, da História, da Matemática, da Arquitetura Militar e Civil, do Desenho, da Física e das Artes, da Cavalaria, Esgrima e Dança formem cada um deles na sua diferente profissão uma Minuta na qual se contenha: primeiramente, uma idéia clara do método pelo qual pretende ensinar; em segundo lugar, um catálogo dos livros por onde intenta que seus respectivos discípulos hajam de estudar; em terceiro e último lugar, outro catálogo que sirva de socorro de estudo àqueles que entre os sobreditos discípulos se acharem capazes de passar das lições das Escolas a exercitarem-se pela sua própria aplicação nas Faculdades, que antes houverem aprendido. Conferindo-se as referidas minutas, depois de assim serem formadas com o Reitor e Professores, que ao mesmo Reitor e Professores parecer convocar para a conferência. E sendo os autos dela remetidos ao Diretor Geral para Me os consultar e Eu resolver sobre eles o que achar que é mais útil ao adiantamento e boa ordem dos Estudos.687
Além destas disciplinas, D. José I, considerando que o “estudo da Matemática e das diferentes partes que a constituem é não só útil, mas indispensavelmente necessário a todos os que aspirarem a servir-me na milícia, ou por mar ou por terra”, estavam previstos “três professores desta proveitosa ciência”.688 No lugar de um mero “ornamento”,689 o ensino e o aprendizado da Matemática devia-se à 681
Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: SILVA, op. cit., p. 655. Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: op. cit., p. 658. 683 Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 778. 684 Idem, p. 775. 685 Embora não exista, nos Estatutos do Colégio dos Nobres, uma indicação expressa sobre a duração dos estudos, entendemos que a permanência dos alunos seria aquela que Laerte Ramos de Carvalho apresenta para as escolas menores jesuíticas: “o curso de gramática e humanidades deveria durar de cinco a seis anos. Completada a iniciação literária, passavam os estudantes para as classes de filosofia, que abrangiam três anos de estudos sobre lógica, física, metafísica, moral e as matemáticas. Totalizavam esses estudos nove anos”. CARVALHO, As reformas pombalinas ..., p. 113. 686 Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: SILVA, op. cit., p. 658. 687 Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 785-786. 688 Idem, p. 782. 682
205 ISSN 2358-4912 sua importância na formação de jovens nobres que, futuramente, estariam encarregados da defesa “da pátria”.690 Os jovens que viessem a concluir seus estudos no Colégio Real dos Nobres, e que recebessem aval do Diretor Geral dos Estudos, teriam direito a efetuar suas matrículas nas faculdades da Universidade de Coimbra, sem outros exames. Lembremos que os Estatutos de 1653 não traziam normas que regulasse a idade de ingresso nas faculdades, verificando-se, mesmo, alguns casos de matrículas bastante precoces. Contudo, conforme registra Fernando Taveira da Fonseca, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
O panorama das condições de acesso à Universidade muda de forma substancial, com os Estatutos de 1772. [...] Antes de mais, pelo estabelecimento de idades mínimas de ingresso – para obviar, como explicitamente se afirma, a que se precipitassem os estudos preparatórios: assim é que ninguém poderia matricular-se em Teologia “sem contar dezoito annos de idade completos, e dahi para cima”; o mesmo se aplicava a Medicina; para os cursos de Direito (Civil e Canônico) a idade mínima seria de dezasseis anos; já para Matemática se podia ingressar com quinze anos e para Filosofia, com catorze.691
Como sabemos, o corolário de toda a reformulação do ensino, no reinado de D. José I, foi a redação dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, elaborados pela Junta de Providência Literária. Os elaboradores dos Estatutos de 1772 defendem que os estudantes “se demorassem nas Escolas Menores” o tempo necessário para a aquisição “dos estudos preparatórios”.692 Nesse sentido, percebe-se, por exemplo, uma atenção específica para com os estudos prévios do “futuro teólogo”. Os interessados em cursar Teologia, precisavam ter uma “boa instrução da Língua Latina, da Retórica, das Disciplinas Filosóficas e muito principalmente da Lógica”, além de estarem “instruídos em todas as partes da Metafísica” e, “cientes na Ética”.693 Para além das questões relativas às condições para o ingresso dos estudantes, os membros da Junta de Providência Literária criticavam duramente o método de estudos até então adotado, acusando-o de estar fundado em “questões sutis, abstratas e inúteis” e em “contendas, disputas e rixas” inócuas.694 Podemos entender que o principal ponto da reforma dos Estatutos residiu em definir o que devia ser ensinado, como e por que. Tal atenção constrasta com a constante dos Estatutos de 1653, que eram totalmente omissos na definição de uma metodologia de ensino, prescrevendo apenas as formalidades dos atos, ou exames, que os estudantes estavam obrigados a realizar.695 Apesar de não considerarmos que as chamadas reformas pombalinas do ensino derivem exclusivamente de um enfrentamento ao método utilizado pelos jesuítas, os responsáveis pela redação dos Estatutos de 1772 estendem-se por diversos parágrafos sobre “o método e ordem” que deveriam ser seguidos, indicando que o “método demonstrativo” (também designado por “Geométrico ou Matemático”) deveria ser “inviolavelmente o que se deva sempre adotar e seguir no ensino da Teologia, de todas as ciências, e de cada uma das partes de que elas se compõem, para poderem as suas lições ser mais frutuosas”.696 Para concluirmos estas reflexões, apontando para a influência das ideias dos aritméticos políticos ingleses nas reformas do ensino, verificamos que, sem dúvida, a intenção dos elaboradores dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra foi a de substituir o ‘aristotelismo escolástico’ dos jesuítas por um método “mais próprio para dar a conhecer as verdades pelas suas causas”,697 uma disposição à qual devemos associar uma máxima de William Petty que veio a ser adotada por Sebastião José de Carvalho
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Estatutos (1653), p. 144. Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 786. 691 FONSECA, Fernando Taveira da. A dimensão pedagógica da reforma de 1772 : alguns aspectos. In: ARAÚJO, O Marques de Pombal..., p. 43-68, p. 46-47. 692 Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da imediata e suprema inspeção de el Rei D. José I. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1772, Livro Primeiro, p. 5. 693 Idem, p. 10 e 5-6. 694 Ver Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra, 1972, p. 97-141. 695 Estatutos (1653), p. 185-186. 696 Estatutos (1772), Livro Terceiro, p. 3. 697 Estatutos (1772), Livro Primeiro, p. 22-23. 690
206 ISSN 2358-4912 e Melo para a formulação de sua política:698 “em vez de usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos intelectuais, tratei de [...] usar apenas argumentos baseados nos sentidos e considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza”.699 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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Ver Códice 686. COLEÇÃO POMBALINA (Biblioteca Nacional de Portugal). “Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do mecanismo político” e “Mecanismo político no qual se oferece à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence ao comércio e a agricultura), cujos princípios se reduzem a termos práticos e mecânicos” [textos autógrafos do marquês de Pombal, sem data, fls. 187-190v. e fls. 191-199 – paginado posteriormente]. 699 PETTY [e] QUESNAY, Obras econômicas..., p. 143.
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CAPITÃES DO SERTÃO: INTERESSES, CONFLITOS E DOMINAÇÃO Antonio José de Oliveira700 Os sertões das Capitanias do Norte só foram ocupados definitivamente por parte dos colonos após as guerras luso-holandesas. Encerrado esse conflito, muitas das decisões tomadas pela Metrópole delinearam os rumos da administração e da economia na Colônia. Ao reestruturar o poder Central, D. João IV optou em colocar à frente das capitanias indivíduos que prestaram bons serviços, muito dos quais egressos dessas guerras. Mestres de Campo, Capitães mores, Sargentos e outros indivíduos de baixa patente se destacaram e ganharam mercês e muitos ocuparam postos importantes na administração dos territórios coloniais, engrossando cada vez mais as fileiras de uma elite privilegiada. A política de distribuição das mercês respondia aos apelos desse grupo que lutou e expulsou junto com boa parte da população os inimigos das terras luso-brasileiras. Dessa forma, a Metrópole estava tentando retribuir os esforços e os gastos financeiros que os mesmos depreenderam para vencer tão cruenta guerra. O requerimento do Capitão Agostinho Cardozo ilustra um pouco isto; Diz o Capitão Agostinho Cardozo filho legitimo de Jorge Cardozo que elle tem servido a vossa Magestade na guerra viva e exercito de Pernambuco(...)consta pella folha corrida do Capitão João de Morim Bentecor a fl¹ que sendo o inimigo ocupado a Villa de Olindae sitiado oforte de Recife(...)lhe sahio odito Capitam com vinte soldados e alguns índios ao encontro donde lhe mataram nove e aprizionaram hum fazendo retirar os mais(...) e por certidão do Capitam Francisco Rabelo fl4 e por outra do Capitam Afonso de Albuquerque fl5-consta que se achou elle supplicante naocaziam emque se avistaram astrincheiras que oinimigo tinha nopontal comartilharia e ronqueira daqualpelejando comvalor matando eferindonelles leha ganharam adita trincheira e elle supplicante consta pellejar comsinal de valor(...) Pede a V.M. a que em remuneração dos dittos serviços,pessoais de doze annos contínuos, de guerra viva e com tanta satisfaçam lhefaça mersê de hum hábio das três ordens, com promessa de hua comenda; e enquato não for provido nella a já outenta mil res de tença; ou penção noutros, eque V.Magde. o ocuppe em 701 seu serviço composto que lhe for servido.
Diante destes feitos muitos adquiriram autoridade, poder e prestígio junto a Coroa. Para o governo de Pernambuco, homens como João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Francisco Barreto, Costa Barros, Fernão de Sousa Coutinho, Jerônimo de Albuquerque, Matias de Albuquerque, dentre outros, se destacaram como importantes Capitães na guerra, bem como Mestres de Campo, e mais tarde responsáveis pela frente de expansão colonial para os sertões. Homens de confiança da Coroa, os três primeiros servem de exemplo para ilustrar um pouco de sua autoridade, poder, mandonismo e dominação. João Fernandes Vieira, Capitão mor, que atuou como Governador da Paraíba, cometeu delitos que foram muito bem registrados pela historiografia, sobretudo contra os nativos. Suas atitudes violentas contra os filhos de Janduí, chefe de uma importante nação indígena, desencadearam em violentos conflitos. Leonardi (1996, p. 53), observa que Mandando encerrar dois filhos de um cacique daquela tribo, tão logo assumiu a ele a Capitania da Paraíba, em 1655, sob a alegação de que os Jandui teriam colaborado com outros mercantilistas holandeses. É a partir desse incidente, aliás, que os Janduí, em represália, começaram a atacar fazendas de gado no sertão e incendiá-las. Uma guerra como essa contra os Janduí, que durou trinta anos, teve como resultado um verdadeiro genocídio. Não há outro termo para qualificar semelhante violência, nem há razão alguma para que a historiografia tente evitá-lo.
700
Doutorando em História Social do Programa de Pós-graduação-Universidade Federal do Ceará-UFC. Bolsista-CAPES. Email:
[email protected] 701 AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 4. Doc. 314. Em 16 de julho de 1642.
208 ISSN 2358-4912 Há denúncias da má administração do também Mestre de Campo Vidal de Negreiros e também Fernandes Vieira quando atuaram na Capitania de Pernambuco. Os mesmos são supostamente acusados de cometerem alguns delitos como abaixo se enuncia:
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Votte se nesse Conselho o decreto q. V.Mgde. foi servido mandar a elle sobre as cartas q. farão assinar por V.Mgde. para Andre Vidal de Negreiros e João Fernandes Vieira(...) aestes Mestres de Campo que Gouvernão os portugueses daquella Capitania de Pernambuco vassalo de V.Mgde.(...) e nestas formas pareceo que era licito q. V.Mgde. como Rey e Snr. Nosso, mandasse acodir as vexações q. aly padecião os Navios q. desvião deste Reyno, e ainda osq. se fazem naquelles povos(...)702
Se as denúncias eram plausíveis ou não, o importante é entender que esses dois indivíduos tinham do soberano confiança inquestionável. Preocupação, confiança/ou suposta proteção, os exemplos desses indivíduos demonstram como aos poucos foram se construindo os laços de lealdade recíproca e de confiança entre Coroa/Vassalos. Importante compreender também que o documento deixa transparecer também os conflitos internos existentes entre os representantes do poder local. Conflitos que passaram a ser mais acirrados após as guerras luso-holandesa, uma vez que, com as reformulações efetuadas pelo novo monarca deixaram a todos na expectativa de conseguirem altos postos no escalão da administração colonial ou em outros territórios pertencentes à Metrópole. Com essa euforia, os esforços para demonstrar os melhores serviços e impressionar o rei não tinham limites, mesmo que, para isso, tivessem que subjugar a tudo e a todos e até denegrir a imagem de seus próprios companheiros. Preocupado, o rei procurou amenizar esses problemas, e alertou para que cada um se preocupasse com seus próprios governos. Vejamos o documento abaixo; (...) procedendo nas ações de mayor importância, com Conselho dos Mestres de Campo e dosque mais práticos, inteligentes forem de guerra, porquanto dividir o governo militar, entre pessoas na mesma Provincia, não servirão demais, que de dar ocasião a invejas, e competências, de que nascem as divisões, e parcialidades, e retarda se a execução das causas, passando se muitas vezes as ordens em contrário e rendendo em dano Público, as paixões e sentimentos particulares, ficando a cada hum atribuyr assy os bons sucessos (...)703
Tentar eliminar ao máximo os conflitos e fazer com que os seus dirigentes se voltassem para suas capitanias e as fizesse atingir os sucessos desejados era a grande preocupação da Metrópole. Preocupações plausíveis, pois alguns Capitães em suas respectivas Capitanias, leia-se a de Itamaracá e de Pernambuco, parece que tomavam decisões sem conhecimento da Metrópole. O documento demonstra essa preocupação. E porque com a expulsão dos Olandezes de Pernambuco edas mais prassas do Estado do Brazil ficou também a Ilha de Itamaraca livre dos Olandezes, equerendo os moradores della tomar ao antigo costume de seu governo de Camara, Juizes e vereadores, e mais ministros, que lhe administrasse justiça o mestre de Campo geral lho impede e que vão aPernambuco tratar deseus requerimentos diante do ouvidor geral comque o pequeno povo daquella Ilha padecem(...)704
A atitude do Capitão da Capitania de Itamaracá elucida as novas diretrizes políticas que passariam a se configurar a partir de então. Os poderes dos Capitães à frente de seus respectivos governos apontam para um mandonismo verticalizado que se traduziu nas atrocidades contra a população branca e pobre, o negro e o índio. Isto acontecia, dentre outros problemas, dado as dimensões dos territórios da Colônia, as quais dificultavam demasiadamente que a legislação Metropolitana atingisse a todas as Capitanias. As diferenças entre as Capitanias e as formas de administração de seus Capitães eram evidentes, sobretudo no trato com a criminalidade. Apesar de haver o Regimento Geral das capitanias, a sensação 702
AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 05. Doc. 363. Em 24 de outubro de 1647. (grifos meus) AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 07. Doc. 466. Em 31 de março de 1654. 704 AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa. 6. Doc. 526. Em 09 de março de 1655. 703
209 ISSN 2358-4912 era de que estava defasado ou não funcionava para coibir e julgar crimes graves. Exemplo mais palpável é o da capitania de Pernambuco. Ali, o governo tinha dificuldades em tratar os crimes que fugiam à alçada de seu regimento. Numa representação do povo (oficiais da Câmara) da referida capitania ao poder central, os mesmos reclamam que não sabem mais como lidar com a crescente violência e pede desesperadamente como proceder.
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Os povos desta Capitania de Pernambuco prostados aos Reaes pés de V.A. representam a mizeria que padecem por cauza denão haver castigos nos delinqüentes com quesão emgrande crescimento os roubos, latrocinio e mortes eviolencias queordinaria exprimentão e suposto plo capitulo 4º do Regimento do Ouvidor geral se da faculdade em alguns cazos para ocastigo, contudo não para há principal Penna ordinária, sendo esta a deque mais necessita; em nome delles pedimos a V.A.seja servido ordens asque no governo desta Capitania se passão justiça e castigos os culpados compenna de morte natural na mesma forma que se sucedera ao Rio de Janeiro,com que se evitarão os grandes crimes que se cometiam, e como neste governo não são menores nem deixa de aver osmesmos ministros para sentenciarem, pedimos a V.A o conseda asim a esta Capitania, pois não há demenos reputação. 705
Se evidencia no documento os apelos da elite a aplicação da justiça e que há também um certo ressentimento dos moradores de Pernambuco de que estavam sendo menosprezados pelas leis Régias, uma vez que na Capitania do Rio de Janeiro existia sua “própria” forma de tratar os delitos mais graves. A distância do centro de poder e a ausência de vigilância, proporcionava essa vacância judicial e possibilitava aos comandantes locais irem preenchendo, gerenciando, controlando e exercendo seus poderes com maior autonomia. Como isso, as ordens emanadas da Metrópole quando aqui chegavam eram “negligenciadas”. Isto forçou ao Conselho Ultramarino se manifestar e propor ao rei que efetuasse reformulações no regimento do Governo Geral dos Estados do Brasil. Na observação do Conselho, (...) e emque a continuação do tempo alterou as cousas demodo que he muyto conveniente aos serviços de V.A emenda los, e reformula los deprezente. E porque destas ordens não dão cumprimento, sendo tantas vezes repetidas (...) os gouvernadores não obedecem, p’la conveniência que achão em não darem parte destas ordens pro e contra, para oque intentão em deserviço de V.A (...)706.
As leis metropolitanas não conseguiam mais contemplar os novos problemas que iam surgindo numa sociedade que se tornava cada vez mais dinâmica e complexa. Por sua vez, os Capitães aproveitavam para utilizar suas próprias formas de resolver os velhos e novos problemas que se apresentavam naquele cotidiano, tornando-se assim quase que absolutos em seus governos. Por essas e outras atitudes é que a Colônia se tornou o espaço do mandonismo. Senhores de Engenho, Capitães mores, dentre outros, ditavam suas “próprias” regras e faziam com que todos compulsoriamente a cumprissem. Na observação de Leonardi (1996, p. 120) foram esses homens ricos de Olinda, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, São Luis ou Belém que fizeram com que a achegada eventual de legislação humanitária, vinda de Portugal, virasse letra morta na América do Sul (...) no contexto do século XVII, os colonos sabotaram por todos os meios a legislação humanitário elaborada na Metrópole.
Em meio a uma gama de índios, degredados, negros e mestiços, os detentores de honras e privilégios foram proeminentes na condução e dominação de um ambiente social em construção. Nessa dinâmica, aos poucos vai se construindo uma das facetas mais degradantes da sociedade colonial: a formação de uma elite que se arrogava em ter o direito de vida e morte sobre seus subordinados. As concessões de privilégios, “provimento de postos e ofícios, sesmarias eram segundo 705
AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 12. Doc. 915. Em 16 de maio de 1672. AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 10. Doc. 909. Em 19 de Agosto de 1670.
706
210 ISSN 2358-4912 Gomes (2009, p. 123), mecanismos fundamentais para a construção da autoridade dos Capitães mores” e de outros elementos da sociedade civil. Com esses incentivos, indivíduos se agregavam a corpos militares e se precipitavam rumo aos sertões, e na certeza de conseguirem benesses não mediram esforços para matar índios, tomar suas terras e desbaratar negros aquilombados. Todavia é praticamente impossível compreender as ações dos agentes da colonização dos sertões das Capitanias do Norte sem que tenhamos a sensibilidade de que houve um amplo e ambicioso planejamento. Território imenso e de difícil penetração, os sertões intimidavam a muitos. As hostilidades dos nativos ditos “Bárbaros”, as secas periódicas e uma fauna desconhecida, requeriam desses Capitães uma organização que envolvesse Coroa, Igreja, e outros agentes interessados. Desta feita, os interessados em novas aventuras e enriquecimento passaram a planejar as diretrizes para ocupação e conquista do restante dos territórios da Colônia. Estrategicamente, Poder Central, os Capitães e a Igreja, começaram a traçar os planos de como deveriam administrar e melhorar a ocupação dos sertões, uma vez que os pontos mais importantes da faixa litorânea já estavam conquistados e assegurados. Numa carta ao rei D. João III, o Bispo de Pernambuco, D. Frei Francisco de Lima, informando a situação da Junta das Missões, propõe alguns pontos para auxiliar nessa conquista e administração. Dentre os muitos pontos um é sobre o sertão. Observemos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Tem V.Mgde. ordenado se Repartam os certoens em Capitães mores, e que se deve de declarar que cada hum no seo districto gouvernará e terá jurisdiçam sobre todos o Índios q. lhe for a sinado, e sobre o exame dos administradores da Aldeas, se deve mandar aos gouvernadores examinem os títulos comque muitos os administrão e faça que seevite todo dano que neste partícula possão senti os mizeraveis índios.707
A intenção da Igreja, mediante a Junta das Missões de Pernambuco era tentar monitorar as ações dos Capitães sobre os índios ditos “mansos” e aldeados. Por outro lado, se entende que a proposta sinaliza cada vez mais para os sertões onde havia muitos “Bárbaros” a serem catequizados. Responsáveis por essas jornada/entradas, os Capitães se precipitaram sobre os sertões e muitos aproveitaram para promover contra seus habitantes massacres sem precedentes. À frente das entradas, Capitães rompiam caatingas, escalavam morros, abriam picadas; padeciam fome e sede, atacavam e eram atacados por índios indômitos. De recompensas, recebiam sesmaria, construíam arraiais, paliçadas, fortificações, casas fortes e se tornavam senhores da localidade. Em outras ocasiões, não conseguindo vencer os nativos pelas armas, se utilizavam de negociações e os persuadiam à cooperar com a empresa colonial. Não dando resultados, de imediato requeriam a junta das Missões para que aprovassem Guerra Justa. Exemplo contundente desse momento foram as disputas que se sucederam numa das áreas do Médio São Francisco, onde existiam ricas minas de salitre e habitavam os índios Mancaru: Este Conselho parece dar conta a V.Mgde de que escreveu o Gouvernador da Bahia e pello queconsta da carta q. lhe escreveo o Gouvernador de Pernambuco se mostra q. neste particular da guerra que mandares fazer aesta nação de Indios Mancarus se procedeo segundo as ordens da V.Mgde pois mandou propor em Junta das Missoeins este negocio naqual seassentara ser justo o rompimento comeste inimigo por nao haverem dado ocazião nas repetidas hostilidades quenos fizerão. Lxª 25 de setembro de 1703. Do Conselho Ultramarino.708
Área bastante convidativa à criação de gado, fixar povoado, e de grandes possibilidades de encontrar muito mais riquezas, naquele momento, as terras do Médio São Francisco era alvo de acirradas disputas. As ambições dos Capitães e todos que o acompanhavam fizeram aquele espaço se tornar bastante conflituoso, tanto envolvendo os índios que se utilizavam daquelas terras para sobreviver, como entre os próprios colonos que pleiteavam as áreas mais ricas para criação de gado e a pequena agricultura. Se nos sertões da Capitania de Pernambuco, muitos Capitães travaram sangrentas batalhas para ocupar, conquistar e se apossar daqueles territórios, nos sertões da Capitania da Bahia não poderia ser 707
AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 19. Doc 1864. Em 14 de janeiro de 1701. AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 20. Doc.1941. em 25 de setembro de 1703.
708
211 ISSN 2358-4912 diferente. Se do lado do Governo de Pernambuco se destacaram Francisco Barreto, Vidal de Negreiros, Fernandes Vieira, entre outros, na Bahia, não devemos compreender a conquistas não só dos sertões baianos, mas das demais capitanias do Norte, sem mencionar o Capitão Garcia d’Ávila, os Guedes de Brito, os Adornos, dentre outros. Vale destacar a atuação de Dias d’Ávila, o qual é unânime na historiografia como grande conquistador e dominador de grandes extensões territoriais nos sertões do nordeste no período colonial. A cada ato importante que realizava em benefício da fazenda Real, Garcia d’Ávila era recompensado com sesmarias e outras mercês. Nesse processo, com “pequenas” sesmaria, algumas cabeças de gado e mão de obra indígena subjugada, aos poucos esse indivíduo foi aumentando seu patrimônio. Sempre que precisava, o governo da capitania da Bahia requisitava seus préstimos. Com a atitude de estar sempre disposto a auxiliar, Garcia d’Ávila estruturou seu poder econômico e político, passando a expandir suas terras na direção dos sertões. Como observa Lenk (2009, p. 54)
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Em 1629, o governador Diogo Luiz de Oliveira chamou uma expedição contra um mocambo situado ao Norte de Salvador. Antes da sua partida em 24 de janeiro, a Câmara procurou Francisco dias d’Ávila, o Capitão da empresa (membro da conhecida família de sertanista baiano), para juntos assentarem sobre o destino dos “negros resgatados”. Pelo acordo o Capitão recebera 9.000 por peça trazida até a cidade.
Na observação de Neves (2011,p. 254), Na transição para o século XVIII, haveria nos sertões da Bahia mais de 500 criatórios. Somente na borda direita do São Francisco encontravam-se 106 fazendas de gado estabelecidas por Antônio Guedes de Brito e arrendatários de suas terras. Na margem esquerda os descendentes de Garcia d’Ávila e seus rendeiros estabeleceram fazendas ente os riachos da Brígida e do Navio em Pernambuco, de onde se para outras províncias.
A família D. d’Ávila e seus aliados, que por dez gerações dominarem o cenário político e econômico da capitania baiana e também grandes porções de terras do interior das Capitanias do Norte, foi um dentre dos demais agrupamentos surgidos dessa sociedade profundamente hierarquizada e militarizada. “Quer chamemos esses poderosos da colônia de nobreza da terra, ou de outra denominação, eles se tornaram a base da governança local, exercendo mando frente à sociedade colonial e representando, não raro, resistência às diretrizes emanada da Coroa”. Pessoa (2007, p. 4) A atuação dos Capitães da capitania da Bahia em seus redutos não foi menos violenta que em outras capitanias. Na conquista daquelas terras, imensos conflitos se sucederam e na maioria deles estava presente essa afamada família. Os conflitos que provocaram maior repercussão foram os ocorridos nos finais do século XVII com os Franciscanos estabelecidos no Médio São Francisco, em especial com o Padre Martinho de Nantes.709 Assim, entre um conflito e outro os agentes da Casa da Torre iam galgando espaço no cenário colonial. Com seus foreiros, alcançou os sertões do Piauí e chegou a fronteira sul da Capitania do Ceará. Distribuindo seus rendeiros pelos sertões e cobrando foros de suas terras, a Casa da Torre enriquecia a passos largos. Muitos desses rendeiros/foreiros eram Capitães e foram importantes na conquista de muitas terras para a Casa da Torre. Teodósio de Oliveira Ledo foi um desses afamados foreiros. Foi o principal conquistador dos sertões do Cariri da Paraíba, Piancó e Piranhas. Após ferrenha luta contra os índios Cariri, conseguiu senhorear-se daquelas terras. Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, Fidalgo da Casa de sua Magestde q. Deos goarde Capitão mor e governador das armas da Capitania da Paraíba do Norte superintendentes das armas, fortificações della, pello ditto Capittão porquanto Francisco de Oliveyra Ledo Capitão mor da Certão do Cariri me enviou a dizer para sua petição que elle foy provido no dito posto nos fins do governo do meu antecessor (...)atente para como elle impetrar essa confirmação. E a entendo eu asino o ditto Francisco de Oliveira Ledo filho de Theodozio de Oliveira Ledo que foy muitos annos Capitão mor naquelle certão, e decorrido delle junto com seu pay, sujeitando o gentil. 709
NANTES, Padre Martinho de. Relação de uma Missão no São Francisco. Tradução e comentário de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, Brasiliana, volume 368, 1979, p. 20.
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ISSN 2358-4912 Enquanto Dias d’Ávila conquistava o Médio São Francisco chegando até as fronteiras da Capitania do Ceará, Antonio Guedes de Brito, da “Casa da Ponte”, fazia suas conquistas em outras áreas daquele sertões no sentido sul. Na observação de Antonil (1711, p. 186) Os herdeiros do Mestre de Campo Antonio Guedes de Brito possuem desde o Morro do Chapéu até a nascença do Rio das Velhas, cento & sessenta legoas. E nestas Terras, partes os donos dellas tem Curraes próprios; & pare são dos que arrendarão sítios dellas, pagando por cada sitio, que ordinariamente he de hua legoa, cada anno dez mil reis de foro.
Nesse ritmo, alargavam-se os espaços do sertão e ficava mais difícil definir fronteiras entre as capitanias. Onde quase tudo estava por se construir a lei do mais forte imperava e era complicado aos governos de suas respectivas capitanias gerenciar esses problemas. Assim, a atuação dos Capitães da Casa da Torre, da Ponte, da Igreja, dos Senhores de Engenhos, bem como de outros agentes envolvidos na conquista dos territórios dos sertões, provocou variadas formas de expropriação. Por se arrogarem de ter sido os pioneiros na conquista de muitos territórios, Capitães mandatários exerciam seus poderes de persuasão em povoados, vilas e cidades. As lutas envolvendo Capitães, Posseiros, Padres e Índios, que cada vez mais foi se aprofundando naqueles finais de século, desencadeou uma das mais sangrentas guerras em solo colonial, a Guerra dos “Bárbaros”. Causa disso foi cada vez mais o avanço das fronteiras coloniais que buscava sempre descobrir, dominar e ocupar muito mais territórios. Referências ANTONIL, J. A. Cultura e Opulência do Brasil por suas droga e minas. Lisboa: 1711. GOMES, José Eudes Arraes Barroso. As Milícias Del Rey: Tropas Militares e Poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: UFF, 2009. p.123 (dissertação) LENK, W. Guerra e Pacto colonial: exército, fiscalidade, e administração colonial da Bahia (1624-1654). São Paulo: Unicamp, 2009, p. 54.(dissertação) LEONARDI, V. Entre Árvores e Esquecimento: História Social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo15. 1996, p.53. Ver também Pedro Puntoni A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC, 2002, p. 124-125. NANTES, P. M. Relação de uma Missão no São Francisco. Tradução e comentário de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, Brasiliana, volume 368, 1979, p. 20. NEVES, F. E. Curraleiro, Crioulo, Peduro: a pecuária como fator da formação socioeconômica do semiárido. In: Erivaldo Fagundes Neves (org). “Sertões da Bahia: Formação Social, Desenvolvimento Econômico, Evolução Política e Diversidade Cultural”. Salvador: Arcadia, 2011.p.254. PESSOA. A. E. S. Família, Propriedade, Tradição e Poder no Nordeste colonial: a casa da Torre de Garcia d’Ávila. Artigo publicado no XXIV Simpósio Nacional de História - ANPHU. 2007. p. 4
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O BASTIÃO DA CONQUISTA: A FORTALEZA DOS REIS MAGOS NO PERÍODO SEISCENTISTA Arthur Gabriel Frazão Bezerra Alves710 No final do século XVI, o rei Felipe I de Portugal (II de Espanha) ordenou o governador geral do Estado do Brasil, que enviasse expedições comandadas por Mascarenhas Homem e Feliciano Coelho, capitães mores de Pernambuco e da Paraíba, respectivamente, para conquistar definitivamente a capitania do Rio Grande. O principal objetivo da campanha era afastar os franceses e conquistar a região em que habitavam diversos grupos indígenas, fazendo desse território a “ponta da lança” para avanços da colonização portuguesa a oeste e noroeste711. Manuel Mascarenhas Homem, capitão-mor da capitania de Pernambuco comandou a expedição. Em sua companhia estava o jesuíta espanhol Gaspar de Samperes, experiente em arquitetura militar. Segundo Olavo de Medeiros Filho, Samperes foi um dos autores do traçado presente na fortaleza dos Reis Magos, fundada na barra do rio Potengi em 6 de janeiro de 1598, razão pela qual recebeu o seu nome712. Para Luis da Câmara Cascudo, Samperes seguiu a forma clássica dos fortes marítimos, com o modelo de polígono estrelado713. Inicialmente sua estrutura foi feita em taipa, ou seja, uma arquitetura vernacular à base de argila (barro) e cascalho.A edificação da fortaleza dos Reis Magos simbolizou o marco da conquista do território antes sob domínio dos potiguares e franceses. Nela abrigava-se um presídio militar e um quartel para soldados, sem nenhum povoamento ao seu redor. Segundo Cascudo, a fortaleza tornara-se a semente de uma cidade futura. A Relação das Praças e Fortes do Brasil, datado de 1609 e escrito por Diogo de Campos Moreno, sargento mor do Estado do Brasil, traz consigo informações valiosas a respeito da situação que se encontrava a fortaleza no início do século XVII. O relatório afirmava que a fortaleza ainda estava em construção, algumas paredes não possuíam sequer 18 palmos de altura, faltavam-lhe os parapeitos e entulhos para se poder lajear, e sobre o lajeado poder andar a artilharia. Com isso se isentariam de cotidianamente ter gastos com hastes de madeira. Diogo Campos ainda ressaltava a necessidade de se terminar a obra, pois “convém terminar a fortaleza e provê-la de moradores, pois, como fica dito, a terra tem com que sustentar os que nela trabalhem” 714. Em 1614, segundo Galvão, foi enviado à fortaleza um engenheiro-mor do Estado, arquiteto Francisco de Farias Mesquita. Retornando este em 1618, apresentou um relatório em sua volta a Pernambuco, mencionando ambas as inspeções, relatando que em 1614 fizera traçados para a fortaleza, e ordenara a continuidade das obras, entretanto, algumas não foram cumpridas. Francisco de Farias havia dado instruções para construção do terrapleno715 com pedra em sossa716, e contrariamente, foi feito de areia da praia e não de lama do mangue, diretamente sobre o arrecife, sem o contra piso de pedra em sossa. Em 1618, a fortaleza possuía diversas estruturas por fazer: a cisterna; um arco no meio do corpo da guarda; casas e alojamentos para os soldados; um pilar no centro do armazém; conclusão do lajeamento da praça alta; uma plataforma ao lado do mar; casa de pólvora; instalações de esgoto; casa de artilharia e a colocação de duas fiadas de laje na praça baixa717. A partir de 1622, existem informações provenientes da visita do provedor-mor da Fazenda, Antonio Barreiros, junto a outras autoridades. Segundo Galvão, o edifício estava concluído no conjunto. Na 710
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Graduando. Orientadora: Carmen Margarida Oliveira Alveal. Email:
[email protected] 711 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 123-124. 712 MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 21-22. 713 CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Achiamé, 1984, p. 23-24. 714 GOLSALVES DE MELO, José Antonio. A Relação das Praças Fortes do Brasil (1609) de Diogo de Campos Moreno, p. 190. Apud: MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 23. 715 Praça de Armas em torno da qual se ergue uma fortificação e suas defesas. 716 Pedra que se coloca em uma construção sem argamassa. 717 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 50.
214 ISSN 2358-4912 Praça de Armas, dentro da fortaleza, ergueu-se a Capela dos Santos Reis Magos e acima dela, a casa de pólvora. Também havia se concluído a casa do capitão, onze casas de sobrado, um armazém de munições e o paiol de mantimentos, tudo coberto por telhas718. Em 1633, os holandeses invadiram o Rio Grande e dominaram a fortaleza dos Reis Magos, que passou a se chamar castelo de Keulen, em homenagem ao comandante Mathias van Keulen, conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais719. O espião Adriano Verdonck, a serviço dos holandeses, relatou em 1630 que a fortaleza dos Reis Magos era a melhor que existia em todo o Brasil. As paredes possuíam cerca de dez polegadas e eram tão resistentes quanto belas. Verdonck já chamava atenção ao motivo pelo qual a fortaleza foi erguida naquela localidade: “Junto ao mesmo forte, para o lado do norte, fica o rio chamado Rio Grande, um muito grande e belo lugar; por esse motivo e porque os franceses e os ingleses ali aportavam frequentemente seus navios”720. Nota-se que as investidas ocorriam primeiramente, naquele que seria o principal símbolo do poder local (mesmo deficiente), pois se subentende que, ao dominá-lo, substancialmente a jurisdição local ficaria sob custódia dos novos invasores. As obras na fortificação prosseguiram sob o domínio holandês. Os neerlandeses fizeram da fortaleza o centro de suas atividades na região, e dessa forma, não poderiam descuidar da sua estrutura. Em 1638, foram chamados dois mestres pedreiros de Recife, João Rodrigues e Antonio Pires, bem com um engenheiro português chamado Cristovão Alvares, e juntos comandaram as restaurações e melhorias da fortificação 721. No entanto, com o abandono da guarnição holandesa presente na capitania do Rio Grande, após a rendição do Recife em 1654, a fortaleza não sofreu ataques722. A edificação ainda não estava concluída quando os portugueses e brasílicos reocuparam a capitania e as obras foram retomadas de forma lenta723. A situação econômica para a retomada das obras na fortaleza estava difícil. O vice rei, Dom Vasco de Mascarenhas, ordenou que os recursos para a construção da fortaleza fossem remanejados para a alimentação das tropas. Segundo o historiador Paulo Possamai, os holandeses exigiram uma pesada indenização para desistir do Brasil, e os portugueses ainda estavam em conflito com os espanhóis que não reconheciam a ascensão da dinastia de Bragança ao trono lusitano. Quando a guerra de Restauração da independência portuguesa (1640-1668) frente à Espanha terminou, a coroa portuguesa estava envolta em dívidas com as nações que o auxiliaram na independência da Espanha. A crise econômica foi agravada pelo grande número de concessões feitas aos estrangeiros no comércio colonial, para garantir o reconhecimento da família Bragança ao trono português e também pelo início da produção de açúcar nas Antilhas, que reduziu o preço internacional do produto, fonte primária de recursos para a coroa724. Esta difícil situação da Coroa portuguesa com a redução dos tributos e os gastos militares com a Guerra de Restauração agravaram a situação militar da colônia. As autoridades régias não possuíam recursos suficientes para administrar os reparos nas fortalezas, os pagamentos dos soldos e a compra de materiais bélicos. Devido aos conflitos entre as autoridades por jurisdição, principalmente entre o governador de Pernambuco e o governador-geral do Estado do Brasil, a situação militar de capitanias periféricas era agravada pelo não recebimento dos recursos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 51. MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 26-28. 720 MEMORIA oferecida ao Senhor Presidente e mais Senhores do Conselho desta cidade de Pernambuco, sobre a situação, lugares, aldeias e comércio da mesma cidade bem como Itamaracá, Paraíba e Rio Grande segundo o que eu, AdriaenVerdonck, posso me recordar. Escrito em 20 de maio de 1630. In: MELLO, José Antonio Gonçalves de. Fontes para a História do Brasil Holandês. Recife: CEPE, 2004. Tomo I: A Economia Açucareira. 721 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 88. 722 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 226. 723 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 133-134. 724 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 246-250. 719
215 ISSN 2358-4912 É importante destacar que depois da expulsão dos holandeses de Pernambuco e das demais capitanias do norte, a relação entre os governadores de Pernambuco com os governadores gerais ficou mais delicada, isso porque durante o processo de restauração Pernambucana, Francisco Barreto de Menezes exerceu o cargo de Mestre de Campo General do Brasil, o que dava a ele plenos poderes sobre as capitanias do norte. Por ser ele também governador de Pernambuco entre os anos de 1654 e 1657, esse tipo de influência que ele possuía sobre as capitanias do norte, que provinha do fato dele exercer o cargo de Mestre de Campo General, terminou sendo confundida pelos seus sucessores no governo de Pernambuco como prerrogativa deste posto, lembrando que eles não possuíam mais o posto de Mestre de Campo General725. Desta forma, o conde de Óbidos, ao assumir o governo geral tentou diminuir a influência de Pernambuco sobre as capitanias menores do norte, pois para ele, “[...]os Correias de Sá no Sul e os governadores de Pernambuco haviam esfacelado a autoridade do governador geral, estado de coisa inaceitável a que D. Afonso VI o encarregara de pôr cobro”726. Essa tentativa de diminuir a influência de Pernambuco sobre as capitanias vizinhas era decorrente do medo de que se Pernambuco tivesse sucesso nessa empreitada, outras capitanias passassem a exigir esse mesmo direito, o que terminaria esfacelando cada vez mais o poder central727. Em 10 de maio de 1664, o vice-rei, conde de Óbidos, escreveu ao Governador de Pernambuco uma solicitação de socorro à capitania do Rio Grande, salientando que já havia ordenado a seu antecessor, Francisco de Brito Freire, que enviasse à dita capitania “socorro a Fortaleza do Rio Grande com a infantaria que lhe parecesse, farinha e algumas coisas mais [...] necessário para o sustento daquela guarnição e reedificação da mesma Fortaleza” 728. A solicitação do conde de Óbidos a Francisco Brito Freire, não foi completamente atendida segundo o capitão mor do Rio Grande, que alegou ter recebido apenas sete soldados, 90 alqueires de farinha e quase nenhum recurso para mantimento das forças. Dessa forma, o vice-rei ordenava a Jerônimo de Mendonça Furtado729. Posteriormente, os oficiais da Câmara de Natal escreveram ao rei em 1665, alertando sobre as péssimas condições que ainda se encontrava a fortaleza dos Reis Magos. Alegavam ainda que dos 12 soldados que existiam apenas seis continuam no serviço, devido à falta de recursos, que os fizeram largar as obrigações. Outra reclamação foi direcionada ao vice-rei, que afirmou não poder ajudá-los, propondo que os dízimos arrecadados na capitania, fossem direcionados para pagamento da guarnição. Os camaristas solicitavam à coroa que sustentasse uma guarnição de oitenta soltados, mais artilheiros e oficiais necessários, além de pólvora e munição. Segundo eles, o investimento em segurança traria mais desenvolvimento à região, e consequentemente mais contribuintes para a coroa730. Dessa forma, os funcionários da Câmara tinham a intenção de mostrar que os investimentos trariam retorno financeiro a Coroa, e que a ajuda do rei era fundamental para o desenvolvimento da capitania que se encontrava pouco povoada, e os dízimos e impostos pagos não eram suficientes para sustentar a guarnição. Valentim Tavares Cabral conferiu aval ao documento enviado pela câmara ao rei, acrescentando uma queixa. Segundo ele, já havia outros pedidos enviados ao vice-rei, conde de Óbitos, solicitando homens e munições, mas nada tinha sido feito, pois o capitão mor da capitania de Pernambuco não atendia as ordens enviadas da Bahia, devido às desavenças existentes entre o conde de Óbidos e Jerônimo de Mendonça Furtado. Segundo Paulo Possamai, o desentendimento não era o único fator da falta de assistência das capitanias periféricas por Pernambuco. As dificuldades estavam ligadas à própria administração de Pernambuco, já que o conde de Óbidos, afirmava que seu antecessor, Francisco Barreto (1657-1663), havia ordenado ao governo de Pernambuco que guarnecesse a fortaleza dos Reis Magos com 80 soldados, mas nenhuma atitude foi tomada nesse sentido731. Além dos problemas com a estrutura física da fortaleza, Valentim Tavares Cabral escreveu em carta direcionada V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p 105-106. 726 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 26. 727 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p. 5-6. 728 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V.9, 170-171 729 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V.9, 170-171 730 AHU-RN, Documentos Avulsos, cx. 1, doc. 7 731 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 226.
216 ISSN 2358-4912 ao rei, alegações de que muitos custos para manutenção do efetivo militar estavam sendo arcados pelo próprio capitão mor, tendo em vista a falta de auxílio por parte do governador de Pernambuco732. O visconde de Barbacena e governador-geral do Estado do Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça, escreveu em 10 de novembro 1671 ao governador de Pernambuco, Fernão de Sousa Coutinho, que os capitães mores da Paraíba e do Rio Grande enviaram uma solicitação de mantimentos militares, pois suas praças estavam quase sem munições e pólvora. Fernão de Sousa, como vizinho mais próximo destas capitanias, deveria ajudá-los da forma que os recursos de seus armazéns permitissem, e que ordenasse ao Provedor da Fazenda Real de Pernambuco que o avisasse dos recursos que seriam levados para as capitanias 733. Segundo Kalina Vanderlei Silva, enviar tropas para as capitanias próximas era obrigação imposta com frequência a Pernambuco. Em 1674, a Coroa ordenou ao governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida, que enviasse à capitania do Rio Grande um engenheiro, um alferes, um sargento, 25 soldados e munição para suprir as necessidades da Fortaleza dos Reis Magos. Ainda segundo Silva, para a câmara de Olinda não se tratava de um simples envio de tropas e mantimentos militares para o Rio Grande. A problemática se estabelecia no sustento dessa guarnição, devido a dificuldade no envio dos recursos734. Com a eclosão da Guerra dos Bárbaros em meados de 1687, ocorreram assaltos a senhores de todo o sertão, incluído os colonos que habitavam a ribeira do rio Ceará-Mirim, a cinco léguas da capital. Várias casas-fortes foram construídas, onde os moradores buscavam refúgio: Cunhaú, Goianinha, Mipibu, Guarairas, Potengi, Utinga. Em decorrência do extremo risco em que se encontravam os moradores de Natal, um dos oficiais da Câmara do Rio Grande foi até a Bahia solicitar socorro, devido a proximidade que os índios chegaram de Natal735. Em 17 de junho de 1687, o então governador-geral do Estado Brasil, Mathias da Cunha escreveu uma carta para o governador de Pernambuco, avisando que a capitania do Rio Grande estava sofrendo ataques do gentio bárbaro, e em um deles, sessenta pessoas (brancas e negras) foram mortas. O capitão mor do Rio Grande alegara que não possuía recursos bélicos e de contingente para defender o povo, mostrando as deficiências presentes no cenário militar desta capitania. Mathias da Cunha segue com sua solicitação, enfatizando a necessidade do socorro o quanto antes, com os soldados e as munições que pudessem ser disponibilizadas, para que os moradores da capitania do Rio Grande não padeçam736. A solução mais viável, diante das suplicas emitidas pelo Senado da Câmara da cidade do Natal por auxilio no enfrentamento do gentio no sertão, foi o envio de tropas compostas por paulistas para a região do conflito, e tais tropas estavam subordinadas ao governo geral, e não as autoridades locais. Analisando tal situação, Carmen Alveal e Tyego Silva, entendem que é possível perceber que o governador-geral preferiu interferir na guerra contra os índios, passando de um problema localizado, principalmente dos governos de Pernambuco e do Rio Grande, para chegar até a capital do Estado do Brasil, Salvador. Os bandeirantes paulistas foram vistos como a melhor solução, devido à fama construída em todo Brasil colonial, por suas praticas eficazes no combate as rebeliões de escravos e em apresar os gentios ariscos 737. Com o sucesso que o terço dos paulistas teve no conflito contra os indígenas, esses mesmos autores chegam a conjecturar que isso deixou as autoridades de Pernambuco preocupadas, pois poderia estar acontecendo um possível aumento da ingerência do governo geral sobre as capitanias do norte 738. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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AHU, Avulsos, RN, cx. 1, doc. 8. COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V. 10, 24 734 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001, p. 179-180) 735 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 124-125. 736 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTORICOS, V. 10, 245 737 ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 238. 738 ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 239. 733
217 ISSN 2358-4912 Em uma carta escrita para o governador de Pernambuco, em 14 de março de 1688, Mathias da Cunha ordenou que os prisioneiros cativos na Guerra dos Bárbaros, fossem direcionados à fortaleza dos Reis Magos. Além disso, o governador-geral ainda solicitava que fossem enviados 80 infantes, “pois é uma lastima que a melhor fortaleza” que Portugal tinha em suas conquistas, tivesse poucos moradores e apenas um artilheiro incapaz739. A Guerra dos Bárbaros certamente não atingiu a cidade do Natal, pois localizava-se principalmente as margens do rio Açu e seus arredores. Entretanto, o medo dos ataques dos gentios se perpetuavam por toda a capitania. Os relatos de ataques no rio do Ceara Mirim, por exemplo, deixavam os oficiais da câmara do Natal em polvorosos. A partir do inicio do conflito, a Coroa viu-se forçada a renovar as ordens para que o governo de Pernambuco enviasse suporte bélico para os soldados que serviam na fortaleza dos Reis Magos. A subordinação da fortaleza do Reis Magos a Pernambuco garantia o sustento da guarnição, mas também era seguida de problemas. Em dois de junho de 1689, os oficiais do Senado da Câmara de Natal escreveram ao rei, pedindo que os soldados fossem recrutados no Rio Grande, pois o índice de deserção por parte soldados de Pernambuco era elevado. Entretanto, solicitavam que os pagamentos dos soldos continuassem a ser arcados por Pernambuco. Em 1701 o Rio Grande foi separado da jurisdição da Bahia e foi anexado a Pernambuco, pois dessa forma para a Coroa, a mobilização contra os gentios seria facilitada por causa da distância740. A fuga dos soldados parecia, para Kalina Vanderlei, a única forma de resistência possível para as ordens da Coroa. O recrutamento militar, mais especificamente os deslocamentos para as capitanias nos arredores de Pernambuco, impostos pela Coroa, eram os motivos mais frequentes para a deserção741. A Carta Régia de 5 de janeiro de 1698 dá a notícia da reiterada intenção de que os soldados recrutados para servir na fortaleza dos Reis Magos fossem naturais da terra, pois aqueles que vinham de Pernambuco costumavam debandar, ficando aquela praça sem guarnição. A súplica foi deferida por Sua Majestade, havendo um questionamento por parte do governador de Pernambuco, alegando que os capitães-mores colocariam seus filhos, criados e escravos nos postos militares. A ordem não foi revogada, entretanto os soldados que fossem servir no Rio Grande, deveriam se submeter a exames de aptidão e serem devidamente registrados em Pernambuco, conforme Carta Régia de 17 de dezembro de 1698742. Analisando os diversos pedidos de ajuda, sejam eles realizados pela Câmara ou pelo Capitão-mor, para a manutenção da Fortaleza dos Reis Magos, é interessante perceber o jogo de poderes envolvidos na relação entre o Rio Grande, Pernambuco e Bahia. Os governadores de Pernambuco, principalmente após a Restauração, quiseram aumentar sua influência sobre as capitanias menores, que seriam consideradas anexas, como no caso de Francisco de Brito Freire, que ao assumir o governo de Pernambuco, defendia que as capitanias menores do norte deveriam responder diretamente à Pernambuco devido a distâncias delas a Bahia, que apenas representaria um gasto desnecessário à Coroa 743. Outro caso que mostra isso, foi quando em 1672 a Câmara de Olinda, através de seus oficiais, envia uma carta a Dom Pedro, argumentando que o Tribunal da Relação existente na Bahia era muito distante das capitanias do norte, por isso, seria mais vantajoso para o funcionamento da justiça se fosse criada uma Relação também em Pernambuco para abarcar as capitanias do norte744. Assim como os governadores de Pernambuco quiseram aumentar os seus espaços de poder, os governadores-gerais também pretendiam garantir a hegemonia de seu poder, não permitindo que ele fosse diminuído devido a participação desses governadores. Tal conflito de interesses gerou alguns problemas entre governadores gerais e os de Pernambuco, como no caso em que André Vidal nomeou o V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V. 10, 263-267 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 229. 741 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001, 254-256. 742 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 141. 743 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 30. 744 ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013, p. 35. 740
218 ISSN 2358-4912 capitão-mor de Itamaracá em 1657. Francisco Barreto, governador geral, enviou uma representação ao rei, alegando que André Vidal estava invadindo sua jurisdição745. É preciso levar em consideração que o contexto desse período pós-restauração foi muito conturbado, tanto politicamente, quanto economicamente. A Coroa portuguesa, na tentativa de ganhar legitimação com a ascensão dadinastia de Bragança, teve grandes gastos com distribuições de mercês, pagamento de uma indenização à Holanda e sem contar com os próprios prejuízos decorrentes do período de conflito seja com a própria Holanda ou com a Espanha. Dessa forma, se pode entender um pouco da resistência tanto do governo geral, quanto dos governadores de Pernambuco em arcar com mais despesas ao auxiliar o Rio Grande. Essa resistência em auxiliar o Rio Grande vai de encontro com a tentativa de ambos, Pernambuco e Bahia, em expandir os seus poderes sobre as capitanias do norte, que como Carmen Alveal analisou a situação da capitania do Rio Grande746, seriam espaços a serem conquistados. O que parece, após as análises feitas até aqui, é que para Pernambuco essas áreas já estavam garantidas, mobilizando-se apenas quando identificava alguma resistência ao seu domínio, como aconteceu no caso das capitanias da Paraíba e Itamaracá. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Referências MOUREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri; LOUREIRO, Marcello José Gomes. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 13-32. ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 235263. POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001. GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, 2000. MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Achiamé, 1984 POMBO, Rocha. História do Estado do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. 2005. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2014. ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997. ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson
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ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, 94-95. 746 ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013, p. 27-44
219 ISSN 2358-4912 da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA DA ILHA DE SANTA CATARINA (1777-1778) Augusto da Silva747 No dia 23 de fevereiro de 1777, o recém nomeado vice-rei, governador e capitão general das Províncias do Rio da Prata, d. Pedro de Cevallos, a frente de uma frota de aproximadamente uma centena de embarcações e cerca de 8.000 homens, desembarcava na Ilha de Santa Catarina, dando início a uma ocupação que perduraria por cerca de um ano e quatro meses (BARBA, 1978: 258).748 Essa ação fazia parte das pretensões da coroa espanhola de domínio sobre os territórios ao norte do Rio da Prata. Pretensão essa abalada no ano anterior face a reconquista dos territórios do Rio Grande de São Pedro pelos portugueses. Não me ocuparei aqui com a série de eventos que antecederam a tomada da ilha por Cevallos e nem tampouco dos fatores políticos e econômicos que explicam essas ações.749 O objetivo deste artigo é de problematizar tanto o discurso das autoridades portuguesas sobre a queda “vergonhosa” da ilha, como também a própria historiografia luso-brasileira sobre esse acontecimento. Minha hipótese de trabalho é de que essa historiografia acabou por reproduzir o discurso das autoridades lusitanas sem questionar devidamente as posições, tempo e lugar de quem pronunciou esse discurso. Um erro corrente na historiografia do século XIX, e mesmo depois, foi de trabalhar com a ideia de impérios coesos e unitários nos séculos XVII e XVIII, transpondo para aquele passado distante a noção de unidade estatal, territorial e mesmo identitária que não existia. Este artigo tem como objetivo problematizar essa noção de unidade, que não concebeu a especificidade e relativa autonomia daquela formação colonial nos planos político, econômico e social. A ocupação espanhola da ilha em 1777 foi, sem dúvida, um marco para a história do império português, não tanto sob o aspecto econômico, pois, os dois maiores rendimentos daquele estabelecimento colonial, o dízimo e a pesca da baleia, eram administrados por particulares que arrematavam os contratos, repassando as rendas antecipadamente para a fazenda real. O mais importante deles, o contrato da pesca da baleia, pouco prejuízo resultou à coroa portuguesa. Em 1765, foi assinado um contrato de 12 anos, ou seja, até o ano de 1777, por 32:000.000 de réis anuais para exploração dessa pescaria em toda a costa do Brasil e renovado, ao mesmo grupo mercantil, provavelmente após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, em 1.10.1777, por mais 12 anos, na quantia de 40:000.000 de réis anuais (ELLIS, 1958: 29-54). O problema maior de ter a ilha de Santa Catarina e seu continente fronteiro sob domínio espanhol é que se colocava em sério risco territórios mais valorizados do ponto de vista econômico como o Rio Grande de São Pedro, São Paulo e até mesmo o sertão mineiro. No aspecto político, essa ocupação deve ser inscrita no conjunto de fatos que sacudiram o império nesse momento: a morte do rei d. José I (24.2.1777), a queda do marquês de Pombal, a celebração do Tratado de Santo Ildefonso (1.10.1777) e a própria substituição do vice-rei do Brasil, o marquês do Lavradio, dois anos depois. O fato, talvez, mais marcante desse evento esteja no plano cultural e simbólico. A rendição da ilha – a “capitulação de Cubatão”, como foi chamada –, sem que a sua guarnição oferecesse o mínimo combate, soou como uma terrível e humilhante derrota na América e no reino. A entrega de uma praça militar, ou de um forte ao inimigo sem que o comandante oferecesse resistência era muito mais que uma desonra, consistia mesmo em crime contra a monarquia, motivo pelo qual alguns militares preferiram desertar a serem submetidos ao Conselho de Guerra. Possivelmente, essa foi a motivação do brigadeiro José Custódio de Sá e Faria. Engenheiro-militar e cartógrafo com mais de 20 anos de serviços prestados à Portugal, Sá e Faria foi o oficial representante a acertar os artigos da capitulação da ilha com Cevallos. Após esse ato optou por abandonar o serviço de seu rei e servir ao de Espanha,
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Universidade Federal de Sergipe. Don Pedro de Cevallos era o chefe da empresa; o comando da esquadra estava a cargo do Marquês de Casa Tilly. 749 Essas e outras informações encontram-se em: (BARBA, 1978; LOBO, 1875; ALDEN, 1968; e MONTEIRO, 1979). 748
221 ISSN 2358-4912 radicando-se na cidade de Buenos Aires, onde viveu até o seu falecimento em 9.1.1792 (SANTILLÁN, 1961: 297). A notícia de terem os portugueses abandonado a ilha de Santa Catarina sem fazer a menor resistência saiu na Gazeta de Madrid e se fez logo patente a toda a Europa. Quem lamentava isso era o Secretário de Estado português Martinho de Melo e Castro em carta ao vice-rei do Brasil Marquês do Lavradio em 22.6.1777. E dizia ele também:
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Esperávamos com impaciência as Relações de V. Exa. e nelas a certeza de termos ao menos salvado a Honra da Nação (...) [mas] acabamos de receber a confirmação da perda daquele importante Estabelecimento, a qual sendo para esta Coroa das maiores consequências, é infinitamente menor que o fatal e irreparável golpe com que os figurados e infelizes Defensores daquela Colônia, esquecidos inteiramente de tudo quanto devem à Pátria em que nascerão, se deixaram preocupar de um Terror pânico, sepultando nas Praias de Santa Catarina toda a sua reputação e honra com eterna ignomínia do Nome Português.750
E não era menor a tristeza do Marquês do Lavradio. Comunicando o acontecido ao governador da Bahia, manifestava o seu profundo pesar diante daquela derrota: Veja V. Ex. qual terá sido a minha dor e a minha consternação. Eu não sei o como me não tem estalado o coração por toda a parte. Esta dor é daquelas que quanto mais se lhe procura o remédio, menos alívio se lhe encontra. Eu conheço que é necessário revestir-me de toda a constância e desafogo, para poder obrar o que devo, para restaurar a honra e glória da nação; porém se Deus me não der forças, eu não poderei resistir.751
O marquês de Pombal sofreu também as consequências dessa derrota militar. Uma das acusações dirigidas contra ele, após ser substituído no ministério, era de que “a Praça de Almeida, e a ilha de Sta. Catarina foram entregues aos castelhanos por ordens particulares” dele.752 Podia-se questionar sobre as condições concretas da guarnição portuguesa que se encontrava na ilha de Santa Catarina753 – do número e qualidade das tropas, dos seus armamentos e embarcações em comparação com a Armada espanhola (cerca de cem embarcações contra pouco mais de dez portuguesas!), das fragilidades do seu sistema defensivo (o desembarque espanhol na ponta das Canasvieiras mostrara que as barras norte e sul não eram as únicas portas de entrada na ilha) etc –, mas não se trata de fazer aqui juízo sobre a atitude dos responsáveis pela capitulação. Refletindo mais sobre os desdobramentos do fato, sabe-se que o governador Pedro Antônio da Gama Freiras, o comandante da guarnição, Antônio Carlos Furtado de Mendonça, e outros oficiais do exército foram levados ao Conselho de Guerra, presos e tiveram seus bens sequestrados, até que, em 14.1.1786, um decreto real mandava que os “referidos autos, sentenças e informações” fossem “recolhidos à Secretaria de Estado da Repartição da Guerra, para nela se guardarem com o maior segredo e recato a fim de que este negócio” ficasse “em perpétuo esquecimento”.754 Infelizmente, o perdão chegava tarde demais para alguns que, a essa altura, já haviam morrido na prisão. Mas a tentativa de apagar da memória acontecimento tão nefasto seria em vão. As autoridades, os memorialistas e, sobretudo, os historiadores tratariam de alimentar no imaginário das gerações 750
Archivo General de la Nación. Campaña del Brasil – Antecedentes Coloniales. Vol. III. Buenos Aires: Kraft, p. 466 e 467. 751 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (ABNRJ), v. 32, 1914, p. 349. Ofício do vice-rei marquês do Lavradio ao governador da Bahia, em que lhe dá parte de ter o general Antônio Carlos Furtado de Mendonça abandonado a ilha de Santa Catarina e várias notícias relativas à esquadra espanhola, em 24.3.1777. 752 Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), PBA, 695, mf. 1635. Em 2.4.1777, Pombal apresentou o documento Apologias que tenho escrito sobre cada uma das calúnias, que a ingratidão, e a inveja espalharam contra mim no grande povo de Lisboa, depois da minha ausência. Ver Décima Quarta Apologia, fl. 177. A Praça de Almeida situa-se na Província de Beira Alta, em Portugal, fronteira com a Espanha. 753 Para uma análise mais aprofundada dessas questões ver: (ALDEN, 1968; PIAZZA, 1978; MOSIMANN, 2003). 754 BNL, PBA, 653, fl. 267.
222 ISSN 2358-4912 subsequentes, a ideia da queda “vergonhosa” da ilha de Santa Catarina em 1777. Segundo José Arthur Boiteux, a tomada da ilha por Cevallos constituía em “página que deslustraria os foros de bravura e heroísmo” da história catarinense (1929: 13). Em 1944, o general Vieira da Rosa proferia uma conferência no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina com o título “A vergonha de 1777”, “não para verberar uma covardia coletiva que não houve, mas para causticar a memória dos chefes que cometeram um crime de lesa-pátria” (1944: 25). E a culpa maior da tragédia recairia sobre o governador Pedro Antônio da Gama Freitas, que foi caracterizado como aquele que “entregou esta ilha aos espanhóis” (MEMÓRIA HISTÓRICA, 1913: 5); ou, como um homem que não obstante “fosse dotado de excelentes qualidades careceu de energia e resolução para obstar o desembarque [deles] na ilha, a qual entregou sem queimar uma escorva” (PAIVA, 2003: 35); ou ainda, como aquele que se esqueceu de lembrar “que era governador da província, quando os espanhóis” se apoderaram dela (COELHO, 1877: 64). Observa-se que essa representação negativa da “queda da Ilha” deixou marcas ainda mais profundas na historiografia e, portanto, na memória social, pois, o ano de 1777 aparece como um ponto de inflexão na história política de Santa Catarina demarcando uma fase anterior de decadência, de governadores inábeis, despóticos ou violentos e uma fase posterior caracterizada por governadores reconstrutores. De fato, houve a desestruturação política, administrativa e militar daquele estabelecimento colonial português. O governo foi desarticulado e grande parte das tropas se desfez; muitos soldados desertaram, regressando aos seus locais de origem, refugiando-se em povoados próximos, ou mesmo fugindo para o sertão adentro. Muitos foram também parar no Rio Grande de São Pedro. José Marcelino de Figueiredo, governador daquele continente, em carta ao vice-rei, dizia que havia recolhido nas imediações de Laguna alguns desertores da ilha e juntado com outros, que já passavam de quatrocentos homens. As tropas que permaneceram fixaram-se nas proximidades do rio Cubatão, no continente, e a elas se agregariam mais 219 praças da cavalaria auxiliar enviado por terra pelo governador de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, para fazer “a mais vigorosa barreira aos inimigos”.755 Além disso, as atividades pesqueiras das duas armações na ilha, a da Piedade e a da Lagoinha, foram interrompidas no tempo da ocupação (pelo menos da administração portuguesa), e alguns lavradores refugiaram-se em povoados do continente. Contudo, é preciso relativizar essa ideia de desorganização total e inutilização de todos os trabalhos feitos até ali naquela colônia. Trata-se de um ponto de vista da monarquia portuguesa, que perdia um estabelecimento colonial chave nos domínios do império na fronteira-sul da América. Qual deve ter sido a percepção e reação dos povoadores à ocupação espanhola? Difícil saber. Podemos, entretanto, com base nalguns indícios refletir sobre isso. Inicialmente, deve-se considerar que, se houve soldados e povoadores que fugiram com a invasão – fato sempre muito destacado pelas autoridades portuguesas e reproduzido pela historiografia –, houve também aqueles que ficaram desenvolvendo suas habituais atividades e até colaborando à subsistência dos novos comandantes da ilha e seu exército. Assim que as tropas espanholas tomaram as fortalezas, já vazias pela debandada do exército português momentos antes para o interior do continente, ocorreu um princípio de anarquia, com saques às casas dos povoadores, como narra o biógrafo de Cevallos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Em vista del abandono hecho de las defensas de las islas y de los saqueos que se habían entregado los negros y criollos, envió Cevallos um cuerpo de ejército y mandó publicar um bando por el que se imponia la pena de muerte a todo soldado marinero o dependiente del Ejército que maltratara, robara o causara cualquier espécie de daño, a los moradores de la Isla (BARBA, 1978: 259).
Temendo todos, logrou o General, por este meio, restabelecer a boa ordem naquele estabelecimento; conseguiu que os povoadores fugitivos se restituíssem às suas casas; que os pescadores e alguns vivandeiros contribuíssem à manutenção do exército e que se devolvessem vários negros que haviam sido conduzidos aos navios de guerra (LOBO, 1875: 69). As guerras costumam trazer destruição, sofrimento e perdas materiais e humanas. Mas, paradoxalmente, não é incomum que tragam, às vezes, desenvolvimento econômico às regiões em 755
Arquivo do Estado de São Paulo. Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, v. 79, p. 80. Carta do governador de São Paulo ao capitão Manuel Gonçalo Leite de Barros, em 9.8.1777.
223 ISSN 2358-4912 litígio. E foi isso que aconteceu com a ilha de Santa Catarina. O palco principal dos conflitos entre portugueses e espanhóis no terceiro quartel do século XVIII não era a ilha (a ação de Cevallos foi sem dúvida ousada, porém sem causar graves confrontos, nem mortes), mas a vila do Rio Grande de São Pedro e parte daquele continente. Nos treze anos de ocupação castelhana daquele território (17631776) a ilha serviu de base estável para as estratégias de defesa e de reconquista do exército português, o que trouxe como resultados o crescimento demográfico (principalmente por causa da transferência de tropas para a ilha) e investimentos da Coroa com o pagamento dos soldos, construção de novas casas e quartéis. Segundo a avaliação do governador Miranda Ribeiro, em 1797, em todo o tempo do governo de Pedro Antônio de Gama Freitas (1775-1777), “se viu esta ilha muito abundante de fornecimentos e de dinheiro” e que, embora não fosse suficiente para satisfazer as dívidas atrasadas, pôde construir alguns edifícios particulares, se aumentou o comércio e, como consequência natural, aumentou a “produção do giro da moeda no país”. 756 E completava: nunca antes havia ocorrido tanto movimento de barcos e gentes no seu porto; nunca antes tinha se visto tanta circulação de mercadorias e dinheiro naquele povoado. Apresento a seguir dois quadros, um demográfico e outro do contrato dos dízimos, que revelam o crescimento social e econômico da capitania de Santa Catarina na segunda metade do século XVIII. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Quadro 1 - Levantamentos populacionais do governo da Ilha de Santa Catarina (1739-1806)
Localidades no continente sob a jurisdição da Ilha de S. Cat.
1739 Ilha de Santa Catarina > 900 Enseada de Brito ? São José ? São Miguel (e Ganchos) ? Vila do Rio de São ? Francisco Sant’Ana (Vila Nova) Vila de Laguna ? Total
1753 4.820 172 503 441 ?
c.1756 4.584 212 533 481 2.299
1796 9.160 1.091 2.091 2.758 4.453
1803 11.144 1.315 2.192 3.475 ?
1805 10.599 1.379 2.656 3.498 5.293
1806 11.016 1.393 2.833 3.339 5.485
312 234 6.482
382 557 9.048
1.109 3.203 23.865
? ? ?
? 5.684 29.109
1.617 4.479 30.162
Fontes: para o ano de 1739 – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, n. 109 a 112, 1948, p. 101. Projeção de José da Silva Paes, em 30.4.1739, quando chega à ilha de Santa Catarina; para 1753 - AHU-SC, cx. 2, doc. 92. “Mapa das Freg.as q. tem a Ilha de S.ta Cathr.a, e seu Contin.te com distinção do n. de uns e outros casais e Comp.as de Ordenança, e n. das almas q. contem, ano de 1753” encaminhado pelo governador José de Melo Manoel ao Conselho Ultramarino, em 30.11.1753; para 1756 - AHU-SC, cx. 1, doc. 67. “Mapa das Freg.as q. tem a Ilha de S.ta Cathr.a, e seu Contin.te...” encaminhado pelo governador José de Melo Manoel para o Conselho Ultramarino; para 1796 – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 245, 1959. Relatório do governador João Alberto de Miranda Ribeiro ao vice-rei conde de Resende, em 17.11.1797. “Resumo geral de toda a população pertencente ao governo da ilha...”; para 1803 - AHU-SC, cx. 8, doc. 454. “Resumo da população em particular dos sete distritos q’. pertencem a vila de Nossa Senhora do Desterro da ilha de Santa Catarina extraído do Mapa geral que deram os comandantes dos mesmos distritos no ano de 1803”; para 1805 - AHU-SC, cx. 9, doc. 501. Mapas encaminhados pelo gov. Luís Maurício da Silveira ao visconde de Anadia, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, em 2.6.1806; para 1806 - AHU-SC, cx. 12, doc. 14. Mapas encaminhados pelo gov. Luís Maurício da Silveira ao visconde de Anadia, em 8.6.1807.
Considerando os contingentes militares de primeira e de segunda linha transferidos para a ilha nas décadas de 1760 e 1770, do ingresso de escravos africanos (evento sobre o qual poucas informações se dispõe), e do crescimento natural da população, pode-se justificar melhor o significativo aumento demográfico da capitania de mais de 160% entre 1756 e 1796. Quanto à produção econômica desse estabelecimento é possível fazer uma estimativa de seu montante ou, pelo menos, uma análise comparativa com o de outros espaços coloniais, tendo como parâmetro o valor arrematado nos contratos do dízimo.
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Arquivo Histórico Ultramarino-Santa Catarina (AHU-SC), cx. 6, doc. 386. Relatório de João Alberto de Miranda Ribeiro à rainha d. Maria I, em 16.11.1797, fl. 09.
224 ISSN 2358-4912 Quadro 2 - Rendimentos anuais dos dízimos na Provedoria da Ilha de Santa Catarina (17561802) Anos 1756 1759 1762 1768757 1772 1780 1786 1789 1795 1802 Dízimos 1:600$ 1:665$ 1:665$ 2:800$ 4:600$ 4:720$ 4:786$ 4:920$ 5:066$ 5:066$ V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Fonte: Para os anos de 1756 a 1772: (OSÓRIO, 2007: 225-232), ANRJ, F. 86, Cod. 106, v. 2, fl. 43 e 62; ANRJ, F. 86, Cod. 109, v. 1, fl. 2; Para os anos de 1780 a 1802, utilizou-se os relatórios de conta corrente dos cofres da Provedoria da Real Fazenda da Ilha de Santa Catarina existentes no ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 03 (1780); v. 9 (1786); v. 12 (1789); v. 13 (1795); e v. 15 (1802).
Multiplicando esses números por dez obtêm-se, portanto – ressalvando todos os desvios que esse cálculo possa oferecer –, as estimativas da produção desse estabelecimento. É interessante observar que a estabilidade no valor dos arremates, apresentando uma curva ligeiramente ascendente, aponta para um negócio seguro e rentável, ou seja, a produção não deve ter sido em nenhum momento subestimada, pois, caso contrário, não se renovariam os contratos por preços superiores. Analisando a evolução dos dízimos, percebe-se, no período de 1756 a 1762, um tímido crescimento da produção, mantendo-se quase que estagnada. Depois, nos dez anos seguintes, registra-se um aumento significativo de cerca de 176% e, no período subsequente, de 1772 a 1802, ela volta a apresentar-se praticamente estacionária. Ao aumento expressivo registrado entre 1762 e 1772 correspondeu também um crescimento da população, já analisado anteriormente. A ocupação espanhola do Rio Grande entre 1763 e 1776, que desorganizou a estrutura produtiva daquela fronteira nesse período, refletiu de maneira positiva para a economia de Santa Catarina. Outro fator a problematizar diz respeito às relações entre as autoridades civis e militares portuguesas com a sociedade colonial: não eram relações de plena harmonia e nem se pode dizer que havia uma identidade entre esses diferentes grupos. Os vínculos institucionais que ligavam o monarca aos súditos no Antigo Regime – as graças e mercês do príncipe com a doação de terras, a nobilitação dos indivíduos, as patentes militares e, sobretudo, a execução da justiça – eram frágeis, ou pelo menos recentes, nessa parte do império. Reciprocamente, frágeis deviam ser também os compromissos de fidelidade dos súditos para com o monarca. Os povoados da ilha de Santa Catarina e do continente fronteiro remontam ao final do século XVII, formados por famílias oriundas – e em sua grande maioria naturais – das pequenas vilas de São Paulo, Santos e São Vicente. Um movimento migratório de caráter muito mais espontâneo do que oficial. Um governo português mais estruturado do ponto de vista político-administrativo só ocorreria, de fato, em meados do século XVIII, quando também se conduziu para aqueles territórios os casais das ilhas, cerca de 7000 pessoas dos arquipélagos de Açores e da Madeira. Como podemos constatar em trabalho anterior foi comum, no terceiro quartel do século XVIII, o confisco arbitrário e, às vezes violento, das produções agrícolas daqueles povoadores, sobretudo da farinha de mandioca, para sustendo das tropas militares. Fato que causava ódio aos civis a esse modo de governar, já que o pagamento desse confisco, quando feito, vinha com muito atraso (SILVA, 2013: 161-168). Outro problema corrente nesse período foi o recrutamento dos lavradores ao corpo militar da ilha. Como ocorria em praticamente toda a América, essas convocações eram temidas por muitos, devido ao regime severo e muitas vezes cruel do disciplinamento militar. Além do que, os soldos, quando pagos, chegavam com atraso de meses ou até de anos. Em carta ao vice-rei Luis de Vasconcelos e Souza de 7 de julho de 1779, o governador da ilha Francisco de Barros Moraes informava que o comandante da vila de Laguna estava há 18 meses sem receber pagamento para sua guarnição e que para a subsistência dos soldados estava constrangendo os pescadores para que fornecessem peixe a eles. Constrangimento esse que, depois de tantos meses de opressão, podia “arrebentar com alguma má consequência”.758 Ocorreu, no entanto, algumas vezes um fato que, ao ser publicizado, provocou ainda maior indignação aos moradores da ilha. Nos momentos de maior crise financeira, quando praticamente se deixara de pagar qualquer soldo aos militares, salário aos funcionários e côngruas aos párocos, 757
Valor da arrematação por 11 meses. ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 1, of. n. 3. O coronel Francisco de Barros Moraes Araújo Teixeira Homem governou a ilha de Santa Catarina de 1779 a 1786. Antes dele, ela foi governada pelo coronel Francisco Antônio da Veiga Cabral da Câmara, que foi quem a recebeu formalmente, em 31.7.1778, do marechal de campo espanhol Guilherme Waughan.
758
225 ISSN 2358-4912 registravam-se entradas de numerário na Provedoria de Santa Catarina, de remessas enviadas do Rio de Janeiro, mas que se destinavam integralmente para o pagamento da guarnição do Rio Grande.759 Ou seja, o vice-rei priorizava a manutenção das tropas na fronteira-sul em detrimento das de Santa Catarina. Em 21 de março de 1783, em outro ofício o governador expõe o problema ao vice-rei:
V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
Quando chegaram os oficiais com o coronel [Francisco João] Roscio, não se descuidaram os desta ilha, sabendo que vinha um pagador com dinheiro, de lhes perguntar se vinha também para esta tropa: conhecendo então pela resposta que não vinha, que lá não havia para o remeter [...] foi e tem sido uma geral consternação; têm falado ou murmurado em particular uns com outros (sem que até ao presente, contudo, seja por modo criminoso) pela quase extrema necessidade em que se acham [...]. Não têm eles que comer, que vender ou empenhar, salvo se for o uniforme e as camisas; nem ache quem lhes fie, porque como a experiência mostra que não têm soldos nem por onde paguem, ninguém lhes quer emprestar [...]: a necessidade vai crescendo de forma que os oficiais se têm metido a pescadores (até agora por modo descente) para terem eles e suas famílias alguma coisa que comer, mas brevemente lhes será necessário fazê-lo por ofício.760
Se, no passado, nos momentos críticos de guerra com os espanhóis, os lavradores foram recrutados para servir no Exército, agora ocorria um movimento inverso, a falta prolongada no pagamento dos soldos obrigava os soldados a fazerem-se lavradores ou pescadores, e tiveram eles, como se pôde ver, a permissão do governador para isso. Nem podia ser diferente. As circunstâncias exigiam mesmo um afrouxamento das regras. Francisco de Barros Moraes, sem se embaraçar com o regulamento, passou a conceder licenças aos soldados e oficiais inferiores, mesmo nos meses em que essas eram proibidas. Procurando sensibilizar ainda mais o vice-rei para as nefastas consequências que poderiam advir daquela situação em que se encontrava a ilha de Santa Catarina, o governador tocou num dos pontos talvez mais delicados na governança das conquistas: a falta de fidelidade dos súditos para com o soberano. Nada podia ser mais agressivo e desonroso para o vice-rei, nesse contexto em que as feridas da invasão de 1777 encontravam-se ainda abertas, do que a ameaça de ter seus vassalos em harmonia com a nação invasora. No mesmo ofício anterior, dizia Francisco de Barros Moraes: quando vim para esta ilha e dentro dos primeiros seis meses, nas ocasiões em que os paisanos me visitavam, se na prática se vinha a falar nos espanhóis (o que nos paisanos era frequente) tudo era gabá-los de boa gente, carregando no ponto de que pagavam tudo prontamente, e por grande preço, que não tomavam coisa alguma, que girava muito dinheiro, e que alguns ilhéus se enriqueceram com o que lhes venderam: eles não diziam mais, porém, via eu, que no fundo do seu coração, amavam o governo espanhol, pela frequência com que dele falavam, e por quê. Se em outras ocasiões se falava nos meus antecessores, e na Fazenda Real, tudo era lastimarem-se que nada ou pouco se pagava, que se tomavam as farinhas aos lavradores, e que se estavam devendo de há muitos anos, motivo porque se não cuidava como devia na sua cultura, que se deviam muitos jornais, muita cal, madeiras, fazendas etc., e que por estas expressões percebia eu neles uma aversão a este modo de governar.
Talvez, mais do que o problema da infidelidade dos súditos, a grande preocupação do governador fosse justamente a redução do seu poder e a dificuldade em administrar naquelas precárias condições. Os governadores tinham também “aversão a este modo de governar”. De qualquer forma, seu interessante relato nos leva a problematizar a dramaticidade da ocupação espanhola da ilha. Alguns povoadores, e também militares, não só permaneceram na ilha – ou regressaram a ela – após a invasão, mas, possivelmente, levaram suas vidas de maneira habitual, desenvolvendo suas atividades profissionais como antes, ou até com maior sucesso no período da ocupação. Já se disse que um acontecimento pode ser irrelevante no momento em que ocorre e se revelar historicamente significativo no futuro ou, de maneira inversa, pode aparecer como impactante aos 759
ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 9, “Conta-corrente dos cofres da Provedoria… janeiro de 1786”; v. 10, ibidem, março de 1787; v. 11, ibidem, julho de 1788; v. 12, ibidem, fevereiro de 1789. 760 ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 6, of. 6. Do governador Francisco de Barros Moraes Araújo Teixeira Homem ao vicerei Luís de Vasconcelos e Sousa, em 21.3.1783.
226 ISSN 2358-4912 contemporâneos e se mostrar anódino no futuro (SCHAFF, 1986: 274). Poderíamos acrescentar ainda que os eventos não provocam o mesmo impacto, a mesma força, nos diferentes níveis sócio-históricos – político, econômico, social e mental. Podem ser decisivos para mudanças em determinada esfera e insignificantes noutras. O evento que analisamos aqui, a tomada da ilha por Cevallos, em fevereiro de 1777, foi dramático no plano político, da monarquia portuguesa, com desdobramentos importantes, pelo menos num futuro breve, como a deposição e prisão dos oficiais do exército envolvidos, e também de ter sido um dos pontos significativos a ser negociado no Tratado de Santo Ildefonso de 1 de outubro de 1777. (Evidentemente que, caso a ilha permanecesse sob o domínio espanhol a história seria diferente e o impacto do evento seria bem maior.) Foi também dramático no plano cultural e simbólico, mas aqui, mais uma vez do ponto de vista das autoridades portuguesas, pois a “queda da ilha”, da maneira como ocorreu, manchou a honra lusitana, nesse tempo em que tais valores eram fundamentais na distinção militar e social. Os memorialistas, cronistas e historiadores, construtores de identidades, tratariam de alimentar na memória social o fato como vergonhoso, demarcando o ano de 1777 como de recomeço, de refundação. Como escreveu o governador João Alberto de Miranda Ribeiro, entrava-se nela “assim como em uma nova Conquista”.761 Entretanto, se pensarmos na história social daquele estabelecimento o evento não deve ter sido tão dramático assim. Tirando o instante de anarquia e de violências provocado pelo lapso de tempo entre a debandada do exército português e o estabelecimento do poder espanhol, a vida daquele povoado retomou sua normalidade. Acostumamo-nos a pensar a história da colonização ibero-americana como de intenso conflito entre os impérios, como se esses impérios fossem entidades perfeitamente constituídas nos planos políticos, territorial e identitários. Se da perspectiva dos Estados monárquicos ibéricos a expansão das conquistas se fazia mais pelo signo da divisão, da demarcação dos limites jurisdicionais de soberania, para os coloniais essa expansão representava a aproximação e o contato com o outro, muitas vezes de maneira amistosa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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761
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ISSN 2358-4912 O OLHAR DE TRÊS LUSO-AFRICANOS NA “GUINÉ DE CABO VERDE”: SUAS VIDAS E EXPERIÊNCIA EM SEUS RELATOS DE VIAGEM (SÉC. XVI E XVII) Beatriz Carvalho dos Santos762 Este trabalho é fruto de uma pesquisa que vem se desenvolvendo no doutorado em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora e que conta com o financiamento da CAPES. O tema da pesquisa é o estudo das relações comerciais na região denominada por “Guiné e Cabo Verde763” nos séculos XVI e XVII. O vetor principal que orienta este trabalho é a compreensão de que as relações comerciais desenvolvidas na região entre os diferentes homens das mais distintas posições - sejam nativos africanos, lançados, mandingas, luso-africanos e estrangeiros – foram determinantes na influência de seus perfis socioculturais. Para este breve artigo irá se enfatizar algumas das conclusões iniciais que já foram possíveis de se fazer sobre os autores dos relatos de viagem que servem como fontes para o trabalho. A região aqui tomada como recorte territorial, a “Guiné do Cabo Verde”, referida nos estudos mais recentes como Senegâmbia, é alvo de grande diversidade de estudos na historiografia atual, especialmente pelo grande leque de possibilidades de enfoques que fornece. Sua configuração populacional longa e gradual através dos séculos de história da África (FAGE, 1995) acabou por gerar um mosaico cultural. A esse respeito Boubacar Barry complementa que: A Senegâmbia, em alguns aspectos, funcionava como uma vasta reserva em que as populações do Sudão e do Sahel habitualmente derramavam seus membros excedentes. Em sua nova casa os imigrantes criaram uma civilização de fluxo constante, em que as identidades étnicas foram principalmente um resultado do isolamento mútuo das comunidades internas causadas pela economia de subsistência764.
A confluência de diferentes povos em mesma região teve como aspecto motor as trocas comerciais, tendo sido desde o início as rotas saarianas que levavam a Guiné os mais diferentes homens. Foi o comércio inclusive que permitiu a chegada do Islã a região, assim como os demais domínios abaixo do Saara. A região, que já apresentava um cenário bastante dinâmico do ponto de vista cultural, após o século XV e a inserção da presença europeia passou a contar com um constante fluxo de trocas culturais, para além das mercadorias que circulavam em mesmo meio. No desenvolver do presente estudo são utilizados os relatos de viagem de três autores caboverdianos que estiveram na região e na qual comerciaram por décadas, sendo eles André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho.765 Suas obras são o “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, que foi redigido no ano de 1594 pelo capitão André Alvares Almada, fruto de suas investidas na costa entre os anos de 1566 e 1583. Esta obra contou com várias versões e edições, sendo a aqui utilizada a de António Luís Ferronha de 1994. O relato de André Donelha intitulado “Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde” foi redigido em 1625, resultante de 762
Beatriz Carvalho dos Santos doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora email:
[email protected] 763 Tal como aponta o historiador português José da Silva Horta, os usos de terminologias distintas para referir à região da Senegâmbia carregavam preceitos do período dos descobrimentos portugueses. “O uso mais restrito de “Guiné” e termos associados que se vulgarizou não estava isento de ambiguidades e estava longe de ser neutro, correspondendo a diferentes e por vezes contrastantes percepções do espaço africano” (HORTA, 2005, p.2). Contudo, a menção a essa grande faixa territorial por tal abrangente nomenclatura, refere-se a um lugar comum que possuía local bem definido no imaginário das navegações do período moderno, sendo mais ou menos compreendida entre os Rios Senegal e Serra Leoa. 764 Tradução livre do trecho: Senegambia, in some respects, functioned like a vast reserve into which populations in the Sudan and the Sahel habitually poured surplus members. In their new home the immigrants created a civilization of constant flux, in which ethnic identities were primarily a result of the mutual isolation of domestic communities caused by the subsistence economy (BARRY,1998, p.35) 765 São estes os autores das fontes centrais em que se baseia esta pesquisa e dissertação. Contudo, há de se esclarecer que também será feito uso de algumas cartas de missionários que estiveram na Guiné, a fim de ilustrar determinados aspectos compartilhados sobre o olhar aos homens da Costa.
229 ISSN 2358-4912 viagens sucessivas na costa africana entre 1573 e 1585, sendo a edição utilizada a de 1977, editada por Avelino Teixeira da Mota. E por último a descrição de Francisco de Lemos Coelho, “Duas Descrições Seiscentistas da Guiné” de 1669 e 1684, versão editada por Damião Peres em 1990. Segundo Avelino Teixeira Mota (MOTA, 1971), tanto André Álvares de Almada quanto André Donelha eram homens pardos. Nascidos nas ilhas de Cabo Verde, sendo o pai de Almada Ciprião Álvares de Almada um nobre e principal da ilha e sua mãe uma parda. Em 1598, Almada teria recebido o hábito da Ordem de Cristo pelos serviços prestados, especialmente na defesa contra os estrangeiros. Almada fez diversas viagens à Guiné por volta de 1570 e escreveu Tratado breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde em 1594. Este, redigiu seu relato destinado ao Rei Felipe II, como forma de chamar a atenção para as potencialidades da região e solicitando a colonização de Serra Leoa. Já Donelha esteve em Serra Leoa na armada de Antônio Velho Tinoco em 1574, no Rio Gâmbia em 1585 e é bastante provável que tenha feito outras viagens à Guiné. Mas só em 1625 escreveu a sua Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. Pode-se notar que o período em que Almada e Donelha estiveram na Guiné é bastante próximo, tendo Donelha retornado anos mais tarde à região, mas suas viagens datam basicamente das mesmas décadas, o que é interessante destacar, pois assim percebe-se que seus relatos se dão sobre as mesmas populações e em períodos similares, embora seus escritos tenham quase três décadas de distanciamento. Foram esses autores pertencentes à elite de Cabo Verde que contou com uma porção de dificuldades comerciais que foram impostas pela coroa a partir de 1472766. Francisco de Lemos Coelho, por sua vez, é o que menos se tem notícia, sabe-se que era comerciante assim como os outros e residente em Santiago, tendo comercializado com os guineenses durante 20 anos. Sua cidade de origem não é conhecida. Seus escritos datam de 1669 e 1684. Sendo este o autor de Duas Descrições Seiscentistas da Guiné. Os autores José da Silva Horta, Paul Hair e Peter Mark concordam em assinalar para o fato de que mesmo de origem desconhecida, a ligação e vivência de Lemos Coelho em Cabo Verde foi bastante significativa. O trabalho de investigação sobre as trajetórias dos autores ainda está em fase de realização junto às demais fontes da pesquisa e como se propõe aqui demonstrar, será crucial para lapidação das presentes reflexões. Dessa sorte, um dos primeiros questionamentos que motivaram esse trabalho foi a indagação a respeito do que reflete a nomenclatura de luso-africanos. A esse respeito o historiador José da Silva Horta assinala que:
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A base da definição de uma identidade étnica luso-africana pelos historiadores citados incluiu o estudo, entre muitos outros, dos textos que nos séculos XVI e XVII foram escritos por oficiais e comerciantes cabo-verdianos (entenda-se, nados e criados em Santiago). Os mais notáveis são Francisco de Andrade e, sobretudo pela extensão dos seus relatos, André Álvares de Almada e André Donelha. Mas também, cabo-verdiano ou não, mas ligado a Cabo Verde, Francisco de Lemos Coelho. A estes outros nomes se virão a acrescentar sendo todos eles pertencentes ao meio mercantil cabo-verdiano-guineense. (HORTA, 2010, p. 57-58)
O uso desta terminologia é bastante comum na historiografia e segundo Horta há uma vertente que concebe como luso-africanos uma “categoria restrita de afro-portugueses descendentes dos "Lançados" e "Tangomaos" vivendo na Guiné” (HORTA, 2010, p. 59). Estes, de acordo com o autor, passaram por um processo de constituição de um grupo específico identificável por um conjunto de características similares como religião, língua e cultura material. Havendo ainda a distinção desses com outros portugueses e cabo-verdianos que também estabeleciam relações comerciais na costa. Outra vertente bastante comum é a adotada pela historiografia anglo-saxônica que nomeia como luso-africanos “todos os luso-afrodescendentes, quer nascidos na Guiné, quer nas ilhas” (HORTA, 2010, p.60). Como 766
A ocupação de Cabo Verde que se iniciou na segunda metade do século XV foi incentivada pela Carta de Privilégios de 1466 que dava inúmeras liberdades comerciais aos seus moradores e prioridade sobre o comércio realizado na Costa. Contudo, devido aos arrendamentos que foram feitos a Fernão Lopes na região costeira, uma nova Carta foi promulgada em 1472 limitando a carta anterior. Tal limitação teve efeitos negativos tanto à coroa portuguesa que viu o aumento gradativo das atividades ilegais costeiras, assim como a propagação do número de lançados, como também aos moradores das ilhas, que começaram a enfrentar a concorrência desses lançados no comércio, assim como a limitação de seus lucros. (CARREIRA, 1983).
230 ISSN 2358-4912 exemplo dessa historiografia tem-se a definição de David Wheat a respeito de quem seriam esses lusoafricanos, que já comporta alguns fatores que serão mais a frente retomados:
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Uniões sexuais entre homens portugueses e mulheres africanas em contextos amplamente diferentes deu origem a várias gerações de crianças racial e culturalmente mestiças, resultando na formação de hibridismos, sociedades luso-africanas em locais como as ilhas de Cabo Verde e São Tomé. Na verdade, esses luso-africanos e seus próprios filhos frequentemente se identificavam como católicos e "portugueses". Ainda ao mesmo tempo, suas relações com as comunidades locais africanas e seu conhecimento sobre a língua, crenças e práticas sociais africanas permitiu-lhes um papel central como intermediários comerciais e culturais entre grupos europeus e africanos. (WHEAT, 2009, p.71)
Há, contudo, um problema com o uso indiscriminado de tal termo, por exemplo, no que diz respeito às ambiguidades passiveis de serem geradas: Este uso fluido torna-se confuso quanto paralelo ao de cabo-verdiano, dado que, por exemplo, um cabo-verdiano não é necessariamente um luso-africano, no sentido de ser mestiço descendente de Portugueses e pode ser um Negro ou mesmo um Branco, desde que já nascido em Cabo Verde (HORTA, p.60).
Dessa forma, fica aparente que a associação única e exclusiva ao local de origem e seus antepassados não é suficiente para caracterizar uma identidade como a defendida pelos historiadores que discutem o tema. David Wheat já assinala para os demais aspectos que compõe a identidade desses homens, suas práticas, vivências e trajetórias influenciavam diretamente na lapidação de seu perfil como homens intermediários entre diferentes regiões. Contudo, em uma breve passagem pelas obras que fazem uso desse termo, não parece haver uma definição compartilhada de quem seriam e as características principais desse grupo de homens assim identificados. Para elucidar as aplicações e formas nas quais o mesmo prefixo foi utilizado de maneira semelhante podemos mencionar casos não necessariamente associados ao continente africano. Como a menção de Luiz Filipe Thomaz aos luso-indianos (THOMAZ, 1994), ou a de Luís Felipe de Alencastro aos lusobrasílicos (ALENCASTRO, 200). Estes, assim como o uso do próprio termo luso-africano, parecem como uma tentativa de entender mundos distintos ou grupos de fronteira. Tais categorias são empregadas como descrição de homens e mulheres intermediários entre sistemas normativos diferentes: sociedades africanas, sociedades europeias e sociedades coloniais no Novo Mundo. Aparece como primeira necessidade diferenciar a noção de quem eram esses homens de alguns outros presentes na região, que possuíam semelhanças pelo fato de serem também portugueses e seus descendentes. Especificamente sobre os homens de Santiago há uma definição do historiador Peter Mark que fornece alguns aspectos para delineamento desse perfil de luso-africanos. Eram homens que se auto definiam como “portugueses” e viviam na Guiné e nas Ilhas de Cabo Verde. Entre outras coisas reuniam aspectos semelhantes na arquitetura de suas construções e pelo fato de serem comerciantes. Também a língua crioula que falavam, que convergia vocábulos do português com uma estrutura gramatical derivada das línguas do oeste atlântico, como resultado de um processo de assimilação cultural (MARK, 2002, p.16). O último aspecto em comum a esses homens era religião, Peter Mark esclarece que embora definidos como cristãos essa religião católica consistia em um amálgama de práticas cristãs, judaicas e africanas. Mesmo raras nas fontes as menções às práticas não ortodoxas desses homens, segundo o autor, as fronteiras culturais entre os luso-africanos e seus vizinhos não era necessariamente bem demarcadas. Uma das mais isoladas comunidades de luso-africanos estava situada nas ilhas de Cabo Verde, ainda para Mark, Donelha e Almada são representantes das complexas relações que prevaleciam entre as ilhas de Cabo Verde e o continente: Essa situação era caracterizada pela migração dupla de indivíduos e pelo ativo processo de interação cultural e troca entre os vários grupos de portugueses e seus parceiros comerciais africanos, assim como um continuo processo de casamentos entre cabo-verdianos, africanos e dos descendentes dos lançados. (MARK, 2002, p. 19)
231 ISSN 2358-4912 Nesse sentido é importante também definir quem eram os lançados, ou tangomaos, rotineiramente mencionados nas fontes. Segundo Peter Mark eram emigrantes de Portugal que se lançavam ao longo da costa e acabavam por se casar com mulheres das comunidades locais, em grande parte eram judeus que procuravam fugir das perseguições religiosas (MARK, 2002, p.13). Antonio Carreira, renomado historiador de Cabo Verde, define que eram os lançados todos os cristãos que se instalavam nos rios e portos africanos sem possuírem licença régia, eram esses “havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, penetrar, avançar pelo sertão a negociar, em contrário às estipulações régias) e desse modo considerados como perdidos para a cristandade e para civilização europeia” (CARREIRA, 2000, p.58) ao passo que “simultânea e paralelamente aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define estes mesmos transgressores: o de tamgomao e suas diferentes formas gráficas” (CARREIRA, 2000, p.59). Espera-se assim demonstrar que figura-se uma diferença entre quem eram os ditos luso-africanos e lançados. Os lançados eram estrangeiros, muitas vezes fugitivos portugueses, que adentraram os grupos étnicos africanos adotando boa parte de suas práticas culturais e em muitos casos até mesmo aderindo as escarificações. Eles se diferenciavam dos luso-africanos e eram mal vistos inclusive por estes últimos. Conforme mencionado anteriormente, o que parece acontecer é que a pouca definição concisa e não muito discutido compartilhamento conceitual do que seriam os luso-africanos acabou por gerar diferentes usos desses conceitos. O que parece influenciar diretamente na escolha por um ou outro termo é a perspectiva de análise da qual parte o observador. Sobre um caso citado no relato de André Donelha a respeito de um negro mandinga de nome Gaspar Vaz, que será a frente citado, há inúmeras interpretações já assinaladas pela historiografia. Tal episódio para Carlos Zeron (ZERON, 1999, p. 26-27) e J. Thornton (THORNTON, 2004, p. 117) que partem de um ponto de vista comercial do eixo afro-atlântico foi descrito como a respeito de um “tangomao”, “indivíduo que, além de intérprete, era um dos intermediários ou mediadores do trato comercial na costa da Guiné” (SANTOS, 2011, p.199). Sobre mesmo caso Alberto da Costa e Silva não fornece uma definição precisa, embora ao falar de Gaspar Vaz mencione este “lançara-se no continente” (COSTA E SILVA, 2002, p.246) dando margem para interpretação de que concebe também o mesmo caso como o de um lançado. Tais confusões parecem todas residirem em dois principais pilares, o primeiro são as poucas referências consistentes a casos particulares de homens e suas trajetórias que permitam traçar e definir seus perfis mais ou menos filiados aos conceitos de luso-africanos, lançados, africanos, portugueses. O segundo e grande razão dessas interpretações múltiplas são as relações comerciais nas quais se inseriam todos esses homens. O comércio era o ingrediente agregador dos interesses e vidas de todos os moradores e estrangeiros na Guiné, independente de suas filiações religiosas, políticas ou econômicas. Nesse sentido, emergiram a presente pesquisa dois desafios. O primeiro é o de lapidar em um conceito esclarecedor que não dê margem para confusões, o que se objetiva chamar de luso-africanos, definindo um perfil que comporte os interesses e atividades dos homens de Cabo Verde. O segundo é compreender em que medida, e comparando obviamente com os outros casos de comerciantes na Guiné, é possível fechar em si um conceito nesse espaço cabo-verdiano-guineense. O que já parece bastante claro é que a terminologia luso-africano comporta uma discussão de construção identitária e que nem de longe pode ser superficial, talvez a menção aos autores como cabo-verdianos apenas aludindo a seu lugar de origem, pela segurança de reduzir a denominação a uma única característica, fosse em certa medida mais adequada. Contudo, de maneira ou de outra pouco revelaria sobre a complexidade do papel exercido por esses homens. Além das questões mencionadas que se fizeram presentes, um questionamento ainda vigora: eram esses autores autoproclamados “portugueses” e que seguiam uma série de pré-disposições para se identificarem com a coroa, e junto a ela solicitarem privilégios, de fato mais próximos das lógicas de súditos da coroa portuguesa – lembrando por exemplo do fato de ser André Almada portador do hábito da Ordem de Cristo -, ou mais afinados as dinâmicas locais. É importante, nesse sentido, destacar o que aponta Jean Boulègue “Os luso-africanos que habitavam ao sul do Gâmbia, assim como os cabo-verdianos que se instalaram temporariamente entre eles, podiam seguir uma estratégia própria, diferente da de Portugal e da dos poderes africanos” (BOULÈGUE, S/D, p.48). É justamente sobre essa possibilidade que reside todo o presente debate conceitual e de construção de identidade. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
232 ISSN 2358-4912 Assim, seriam os vínculos desses homens com a monarquia portuguesa tão fortes a ponto de retirar-lhes da posição de homens de fronteira e de sua identidade maleável? Almada elabora seu relato com o objetivo de apresenta-lo ao Rei Felipe II e atrair atenção à causa dos moradores de Santiago, seu texto é produzido dentro dos padrões para requerer mercê. Pertencia a uma elite de Cabo Verde com condição bastante diferente da dos lançados que viviam na Guiné. Conhecia o modelo convencional e a linguagem política e simbólica régia, seu relato forma-se em função do que pretendia comunicar e visando um público específico. A imagem que deseja transpassar a coroa é a de um perfeito súdito, cristão em combate aos males que dominavam a Guiné. Alguns aspectos de seu relato poderão ser esclarecedores nesse sentido, os silêncios que comportam com relação a algumas atividades comerciais em territórios ilegais, ou mesmo a pouca menção aos lançados e tangomaos com os quais conviviam rotineiramente em meio as transações comerciais que se inseriam. Há de se levar em conta que talvez a importância para a coroa de homens como Almada, Donelha e Lemos Coelho residisse justamente em não serem portugueses, mas sim homens de fronteira, lusoafricanos, que dialogavam com um universo de símbolos, normas e linguagens com fluidez suficiente para fazer frente aos tantos estrangeiros que adentravam a Guiné. Dá-se aqui a importância e valor das relações comerciais para entender esses diferentes atores, seus papéis e funções desempenhadas e como contribuem para compreensão de seus perfis socioculturais. As reflexões para responder esse debate parecem de fato precisarem ser feitas fora das referencias internas dos textos que discutiram apenas a identidade luso-africana ou a filiação regional de caboverdianos. Considerando autores e debates que se aprofundem nas discussões sobre as lógicas do Antigo Regime, o mundo Ultramarino e as próprias questões culturais e antropológicas intrínsecas a essas relações e trajetórias. Para ilustrar alguns desses pontos supracitados destaca-se o trecho a seguir da fonte de André Donelha sobre seu encontro com Gaspar Vaz:
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Era o negro bom alfaiate e botoeiro. Tanto que soube que eu estava no porto, me veio a ver e visitar com grande alvoroço. Abraçou-me, dizendo que não podia crer ser eu o que via, e que Deus me levara lá para ele me fazer alguns serviços. Ao que lhe dei os agradecimentos, dizendo que também folgava muito de o ver, para lhe dar novas de seu senhor e senhora e conhecidos, mas que me pesava de o ver vestido com o camisão de Mandinga e com nóminas dos seus feitiços ao pescoço.
Ao que Donelha prossegue transcrevendo o que diz ser a fala do negro: Eu trago, senhor, este traje porque eu sou o sobrinho do Sandeguil, senhor desta aldeia, o qual os tangomaos chamam duque, por ser a segunda pessoa do rei. Por morte do Sandeguil, meu tio, fico herdeiro de todos os seus bens, e por isso trago os vestidos que vossa Mercê vê, mas na Lei de Mafamede não creio, mas antes me aborrece. Na Lei de Cristo Jesus creio, e para que Vossa Mercê saiba ser verdade o que digo (despiu o camisão, ficou em Jubão e camisa ao nosso modo, e do pescoço tirou um Rosário de Nossa Senhora dizendo) todos os dias me encomendo a Deus e a Virgem Nossa Senhora nesse rosário. E se eu não morrer, e vier a herdar essa casa do meu tio, irei por em Santiago alguns escravos, e achando embarcação hei-me de ir viver nessa ilha e morrer entre cristãos (DONELHA, 1977, p. 148).
Inúmeros são os aspectos que poderiam ser analisados deste encontro, contudo aqui somente irá se dedicar atenção à necessidade que demonstra Gaspar Vaz de justificar a Donelha sua associação ao islã, representado por suas roupas e colares que levava ao pescoço. Tanto o mandinga quanto o viajante apenas discutem e debatem o conflito existente entre a coexistência de signos cristãos e muçulmanos na cultura de Gaspar Vaz. Ao que suas filiações as tradições africanas não parecem em momento algum representar um ponto de discussão. Ao mencionar as tradições sucessórias em que está inserido, fazendo referência a herança dos bens do tio que viria a herdar – e consequentemente referindo-se ao esquema matrilinear – apresenta-se uma das características do perfil híbrido de muitos moradores da Guiné. Em momento algum do relato parece passível de questionamento qualquer filiação de Vaz às tradições africanas, seja esse questionamento oriundo de Donelha ou necessário de justificativa por parte de Vaz. Há uma concordância tácita de que não existe qualquer conflito nessa coexistência.
233 ISSN 2358-4912 Dessa forma, em certa medida há de se concordar com Peter Mark que o que ele denomina de lusoafricanos compor um “grupo-étnico” entre os tantos existentes na Guiné, pois o autor considera que esses autodeclarados “portugueses” foram fruto de um processo de construção identitária. O que os caracterizou segundo Peter Mark não foram um conjunto de características que se opunham a nenhuma outra existente na região, mas sim a grande maleabilidade e dinamismo com que se adaptavam as diferentes circunstâncias diárias. O que parece correto inferir de todo o debate corrente é que a formação dessa identidade dos luso-africanos foi um processo baseado nas experiências vividas no constante contato com o mosaico cultural que era a “Guiné do Cabo Verde”. Além do papel desempenhado por esses autores que era diferente do dos lançados, mas não deixava de possuir estreita relação com os parceiros comerciais da costa da Guiné. As circunstâncias que foram impostas aos autores, pelas razões políticas da coroa aos moradores de Cabo Verde, as saídas encontradas por estes no comércio ilegal e a concorrência com o crescente número de lançados na Guiné, assim como o caso da parceria com os nativos da terra como Gaspar Vaz. Todas essas foram circunstancias ligadas pelo comércio. Todos esses aspectos terão de ser analisados com base na análise das fontes para composição mais detalhada da trajetória desses homens, assim como a observação de seus relatos – inclusive dos silêncios destes – de forma a melhor adotar, ou não, o termo de luso-africanos. Por hora, além da constatação de sua importância como reflexo de uma identidade complexa e dinâmica, conclui-se que foi um caso sui generis, que ainda te muito por mostrar sobre as possíveis maiores afinidades dessa elite cabo-verdiana-guineense e suas intenções mais ou menos parelhas com o observado em demais casos do ultramar dos súditos da coroa portuguesa.
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O USO DAS CARTAS PATENTES NO EXERCÍCIO DA GOVERNANÇA DAS CAPITANIAS DO BRASIL: O CASO DE JERÔNIMO JOSÉ DE MELO E CASTRO, CAPITANIA DA PARAÍBA (1764-1797) Bruno Cezar Santos da Silva767 Um duque tem que construir sua casa de uma maneira que expresse: sou um duque e não um conde. [...] O mesmo vale para todos os aspectos do seu estilo de vida. Ele não pode tolerar que outra pessoa 768 pareça mais um duque do que ele próprio. (Norbert Elias, A sociedade de corte).
Jerônimo José de Melo e Castro era português de nascimento769 e tomou posse do governo da Paraíba em vinte e um de abril de 1764, após setenta e um dias de “uma fastidioza” viagem de travessia ao Atlântico.770 O decreto, outorgando a sua nomeação, fora expedido cerca de um ano antes, mais precisamente, no mês de julho. No documento, constava a determinação de que estava sendo encarregado para o posto de governador da capitania da Paraíba, a ser exercido por período de três anos, ou até quando lhe mandassem sucessor.771 Chegava para administrar uma capitania já subordinada, mas, na sua carta patente apresentavamse diferenciais que, a despeito disso, são dignos de nota. Primeiro, a ele havia sido conferido o título de Coronel de Infantaria e o comando das tropas da circunscrição da Paraíba, denotando que seu cargo continha importantes obrigações militares (da qual, cobrará, exaustivamente, anos depois). Segundo, receberia soldo à semelhança de seus antecessores, nomeadamente, os governadores independentes, no valor de quatro mil cruzados anuais, tendo em vista que, os designados para o posto, após o parecer da anexação, venciam uma quantia bem menor, à semelhança do capitão-mor do Rio Grande: de 400 mil réis. Na função, ficou até maio de 1797, deixando-a, apenas, em razão de seu falecimento. Com a sua morte, tomou posse, a título de emergência, um triunvirato772, que governou de maio de 1797 a março do ano seguinte, até que se enviasse da Corte um nome com predicados compatíveis ao grau de responsabilidade do referido posto e das demandas que se almejavam, no alvorecer de um século que se avizinhava. Administrou a capitania por longos 33 anos, correspondendo a ¾, ou 75%, do período da anexação, e foi o terceiro capitão-mor subordinado a Pernambuco. Antes dele, ocuparam o cargo, o oficial das tropas pernambucanas, José Henrique de Carvalho (1757-1761), vindo por indicação do general-governador daquela capitania, e Francisco Xavier de Miranda Henriques (1761-1764), que, anos antes, havia sido capitão-mor do Rio Grande (do Norte). Para Maximiano Lopes Machado, as gestões destes dois oficiais não foram de grande relevo, asseverando que se viam reduzidos à simples inspetores das tropas da guarnição e limitados a pequenas atribuições de âmbito municipal. Neste sentido, o historiador atribui ao governo de Jerônimo José maior poder de autonomia no que respeitava aos negócios administrativos, ressaltando, até, a reefetivação do soldo de 4 mil cruzados como elemento elucidativo de que possuía mais status e
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Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. Email:
[email protected] ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 83. 769 Uma excelente investigação das origens genealógicas de Jerônimo José de Melo e Castro, incluindo a situação socioeconômica de sua família e os serviços prestados à Coroa por seus ancestrais mais influentes, pode ser encontrada em: CHAVES JÚNIOR, José Inaldo. “As duras cadeias de hum governo subordinado”: História, elites e governabilidade na capitania da Paraíba (c.1755-1799). Dissertação de Mestrado: Universidade Federal Fluminense, 2013. p. 138-140. 770 Carta de Jerónimo José de Melo e Castro, ao rei D. José I, informando que tomou posse no governo da capitania, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1726). 771 Decreto do rei D. José I, nomeando Jerónimo José de Melo e Castro no cargo de governador e coronel da Paraíba, datado de 05 de jul. de 1763 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 22, D. 1701). 772 O triunvirato era composto do Ouvidor Geral da Comarca, o Desembargador Antonio Felipe Soares de Andrade e Brederode; pelo Sargento-mor João Ribeiro Pessoa Lacerda e pelo vereador mais antigo, Luiz Álvares da Nóbrega. Confere: LEAL, José. Itinerário histórico da Paraíba. 2ª ed. João Pessoa: Editora A União, 1989. p. 105. 768
235 ISSN 2358-4912 ingerência que seus antecessores.773 Contudo, teria mesmo apresentado maior capacidade governativa, sobretudo, no que concerne às questões de cunho militar? É o que tentaremos detalhar doravante. Fazendo jus à patente de Coronel e de Superintente das fortificações da Capitania, bem como às deliberações castrenses a que foi incumbido, não fugiu à regra das medidas imediatas a serem tomadas por um capitão-mor, logo que assume uma capitania, e enviou um relatório acurado contendo o estado em que se encontrava a fortaleza do Cabedelo e os apetrechos que nela havia. Expôs as armas capazes e incapazes e, com isso, elaborou lista do que se precisava para completar o trem de guerra, não se esquecendo de fazer menção à necessidade de refinação da pólvora. Da mesma maneira, também versou sobre a situação da Capela da citada fortaleza, carente de ornamentos e de consertos de alvenaria e marcenaria. Por último, alertou para os problemas estratégicos nas três companhias pagas, segundo ele, todas indisciplinadas e sem a prática de exercícios há mais de sete anos e, ainda, há três, sem fardas.774 Ao que parece, Jerônimo José conseguiu exercer certa influência sobre os assuntos militares, nos primeiros anos de seu governo. Sinalizador deste apanágio encontra-se na faculdade que o mesmo possuía de indicar e nomear indivíduos para ocuparem cargos de oficiais nas tropas pagas e auxiliares da capitania, assim como, fizeram seus predecessores, a exemplo de Francisco Xavier de Miranda Henriques que, propôs a nomeação de um capitão-mor para a fortaleza do Cabedelo, após o falecimento de Manoel Gonçalves Ramalho, no ano de 1763, e, antes deste, em 1755, Luiz Antonio de Lemos de Brito que, para o mesmo posto, recomendou e empossou o próprio Manoel Gonçalves Ramalho para a vaga de José de Melo Muniz, também aberta por motivo de óbito.775 Na documentação pesquisada, encontramos algumas ações de Jerônimo José no sentido de conceder e intervir na distribuição de patentes. Uma delas foi em 1765, quando indicou a nomeação de vários cargos atinentes às tropas pagas. Para capitão da fortaleza, sugeriu o nome do Tenente da mesma, Luiz Queixada de Luna; para Sargento-mor da Praça, propôs Marcelino da Silva Maciel, que já o exercia, contudo, ainda sem as patentes reais, e para capitão de uma das companhias da cidade, a Antonio da Silva Frazão, em decorrência da morte de Brás de Mello Moniz.776 Não obstante, o interessante é que chega a lograr êxito, no exercício desta prerrogativa de conferir patentes, uma vez que consegue ver seus indicados serem nomeados. Foi o que aconteceu com Luis Queixada de Luna, que assumiu a função de capitão da fortaleza do Cabedelo, cargo vago havia, pelo menos, três anos, após consulta do Conselho Ultramarino articulada, inclusive, a partir das informações fornecidas por Jerônimo José. Na ocasião, o governador da Paraíba aconselhou seis nomes para o posto, mas, faz nítida apologia ao então tenente, que ganha à concorrência, provavelmente, em função da sua preciosa “ajuda”.777 Outro caso teve abrangência numa das companhias do Terço de auxiliares. Desta feita, em razão da incapacidade física de Cosme Soares Barboza poder continuar no exercício de capitão da companhia da praia de Lucena, dada a sua avançada idade, indicou três nomes para o seu lugar. No entanto, o fez seguindo uma explícita ordem hierárquica, colocando o nome de Francisco Martins Xavier como a primeira opção, por, na sua concepção, “ser abonado, ter sufficente capacidade e assistir na praia de Lucena na forma das ordens de Vossa Magestade”. Em anexo, para enaltecer mais ainda as qualidades V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)
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MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: UFPB, 1977. p. 444. Cf: Carta do governador da Paraíba, coronel Jerónimo José de Melo e Castro, ao rei D. José I, sobre o estado da fortaleza do Cabedelo, os apetrechos que possui e necessita, tanto para refinação da pólvora, quanto para ornamentar a capela da mesma Fortaleza, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1729); Ofício do coronel J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, remetendo as relações das munições existentes e necessárias à fortaleza do Cabedelo, para defesa da capitania, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1730) 775 Carta do governador e capitão-mor da Paraíba, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei D. José I, propondo a nomeação de pessoas para o posto de capitão-comandante da fortaleza do Cabedelo, de 23 de ago. de 1763 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 22, D. 1706); Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão de Infantaria da fortaleza do Cabedelo da Paraíba, de 11 de out. de 1755 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1457). 776 Ofício do governador da Paraíba, coronel Jerónimo José de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, propondo a nomeação de pessoas para diversos cargos militares, datado de 16 de jun. de 1765 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1758); 777 Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão da fortaleza do Cabedelo, de 25 de jan. de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1772). 774
236 ISSN 2358-4912 do aludido militar, apresenta outra carta endossando esta primeira, como pode ser percebido no fragmento abaixo:
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Jeronimo Jozé de Mello e Castro, Cavaleiro professo na Ordem de Christo, moço Fidalgo da Casa de Sua Magestade, Coronel Governador desta Capitania da Paraíba do Norte, e superintendente das Fortificações della pello dito Senhor que Deus guarde. Faço saber aos que esta minha Patente de referendação virem que tendo consideração a Francisco Martins Xavier ser provido por meu antecessor no posto de capitão de Auxiliares do Terço de que hé Mestre de Campo Matias Soares Taveira do districto da Ponte de Lucena, que comprehende quatro Legoas desde a enseada de Santo Antonio até a barra de Miriri que se lhe havia passado por desistência que delle fes Cosme Soares Barboza a que se lhe acceitou por mostrar os muitos annos a que se via reduzido e ser conveniente ao serviço de Sua Magestade proverse o dito posto em pessoa que tivesse expressivos requisitos que se achavão perfeitamente em a pessoa do dito Francisco Martins Xavier por haver servido a Sua Magestade quatorze annos em praça de soldado em huma das companhias do mesmo Terço com cabal satisfação dando inteiro comprimento a tudo o que se lhe encarregou e confiando delle continuará com acertada actividade. Hey por bem de lhe referendar como por esta referendo a sua Patente de Capitão de Auxiliares do dito districto, uzando da faculadade que me permitte o cappitão do meu Regimento [...].778
A recomendação de Jerônimo José teve verdadeira eficácia e o dito capitão, como indicado, conseguiu ser alçado ao posto pretendido. Porém, tudo leva a crer que esta tenha sido uma das últimas nomeações para cargos militares, feitas pelo capitão-mor da Paraíba, haja vista que este privilégio de propor patentes passaria a ser exclusividade dos generais-governadores de Pernambuco. E a investigação nos revelou que o marco definidor desta inflexão foi, inexoravelmente, a carta régia de 22 de março de 1766. Portanto, podemos aduzir que Jerônimo José de Melo e Castro logrou alguma autonomia sobre as questões militares da capitania, apenas, nos dois primeiros anos de seu governo. Com efeito, a partir deste momento, consideramos iniciadas as suas grandes agruras e, isso, em razão do achatamen