Anais do V Encontro Internacional de História Colonial

November 1, 2017 | Autor: Adriano Comissoli | Categoría: History, Colonial America, Historia, História
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Descripción

5º Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX)

19 a 22 de agosto de 2014 Massayó, Comarca das Alagoas

ANAIS ELETRÔNICOS Maceió, Edufal 2014

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

ISSN 2358-4912 Universidade Federal de Algoas Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes Curso de História Grupo de Estudos América Colonial

5º Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina, Séculos XVI ao XIX 19 a 22 de agosto de 2014

ANAIS ELETRÔNICOS

Maceió, Alagoas – Brasil 2014

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COMISSÃO ORGANIZADORA Alex Rolim Machado Antonio Filipe Pereira Caetano Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo Célia Nonata da Silva Dimas Bezerra Marques Gian Carlo de Melo Silva Lanuza Maria Carnaúba Pedrosa COMISSÃO CIENTÍFICA Acácio Jose Lopes Catarino – Universidade Federal da Paraíba Antonio Filipe Pereira Caetano – Universidade Federal de Alagoas Fátima Martins Lopes – Universidade Federal do Rio Grande do Norte George Félix Cabral de Souza – Universidade Federal de Pernambuco Gian Carlo de Melo Silva – Universidade Federal de Alagoas Kalina Vanderlei Silva – Universidade de Pernambuco Maria Emilia Monteiro Porto – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Márcia Eliane Alves de Sousa Mello – Universidade Federal do Amazonas Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz – Universidade Federal do Maranhão Ricardo Pinto de Medeiros – Universidade Federal de Pernambuco Rafael Chambouleyron – Universidade Federal do Pará Suely Creusa Cordeiro de Almeida – Universidade Federal Rural de Pernambuco SECRETARIA DO EVENTO Gian Carlo de Melo Silva – Universidade Federal de Alagoas ANAIS ELETRÔNICOS Antonio Filipe Pereira Caetano – Universidade Federal de Alagoas Créditos da imagem da capa: Praefecturae Paranambucae pars Meridionalis – Gaspar Barleus, c.1700. CATALOGAÇÃO NA FICHA Encontro Internacional de História Colonial: (5: 2014: Maceió, AL). Anais do V Encontro de Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Século XVI ao XIX), Maceió, 19 a 22 de agosto de 2014 [recurso eletrônico], Universidade Federal de Alagoas, Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, Curso de História, Maceió: Ufal, 2014. ISSN: 2358-4912 1.. História; 2. Encontro; 4. Cultura; 5. Escravidão; 6. Poder

CDU: 981(063)

Observação: os assuntos, argumentos, correções e questões tratados nos textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. Além disso, os textos estão organizados em ordem alfabética dos autores.

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ÍNDICE Apresentação.............................................................................................................................................................................. .... 17 Progamação ..................................................................................................................................................................................... 18 AS DIVERSAS FACES DA RECLUSÃO FEMININA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENÇA DE ESCRAVAS E SERVAS NO CONVENTO DA SOLEDADE (SALVADOR, 1753-1805) Adínia Santana Ferreira ..................................................................................................................................................................... 19 A FORMAÇÃO DOS SECRETÁRIOS NA ARTE DE ESCREVER CARTAS: UM MANUAL PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII Adriana Angelita da Conceição .......................................................................................................................................................... 25 HOMENS DE ESPADA E DE PENA: COMANDANTES DE FRONTEIRA E CONTROLE DE CIRCUITOS DE COMUNICAÇÃO NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (1790-1812) Adriano Comissoli ............................................................................................................................................................................... 32 GUERRAS E MISSÕES NO EXTREMO NORDESTE DO BRASIL: A AÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE CONQUISTA Adriel Fontenele Batista ...................................................................................................................................................................... 38 A GUERRA DOS TAMOIOS EM ESCRITOS JESUÍTICOS: A TOMADA DO FORTE COLIGNY Agnes Alencar ..................................................................................................................................................................................... 44 ENTRE A LEI E A REALIDADE: A ADMINISTRAÇÃO DE LUÍS DA CUNHA MENEZES NA CAPITANIA DE GOIÁS (1778-1783) Alan Ricardo Duarte Pereira .............................................................................................................................................................. 51 CURADO E OS FERIDOS DE OLINDA: A CÂMARA ENTRE A CONIVÊNCIA E O CONFLITO Aledson Manoel Silva Dantas ............................................................................................................................................................. 59 ATIVIDADES CIENTÍFICAS NA CAPITANIA DE SÃO PAULO (1796-1823) Alex Gonçalves Varela ........................................................................................................................................................................ 66 O GOVERNO DE ANTÓNIO DE ALBUQUERQUE NO MARANHÃO: ELITES LOCAIS E TRÁFICO DE ESCRAVOS INDÍGENAS (1690-1701) Alexandre de Carvalho Pelegrino ........................................................................................................................................................ 71 PODER LOCAL, ELITE E FAMÍLIA COLONIAL NA VILA DE CIMBRES: NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS OCORRIDAS NOS SERTÕES DE ARAROBÁ DE PERNAMBUCO (1762-1822) Alexandre Bittencourt Leite Marques ................................................................................................................................................. 78 AS CAPITANIAS DE ITAPARICA E TAMARANDIVA E DO PARAGUAÇU: ADMINISTRAÇÃO E PODER NA AMÉRICA PORTUGUESA (1552-1592) Alexandre Gonçalves do Bonfim .......................................................................................................................................................... 86 O PROBLEMA DA FRONTEIRA EQUATORIAL NA ÉPOCA DA MONARQUIA HISPÂNICA (16001640) Alírio Cardoso..................................................................................................................................................................................... 92 O DEGREDO NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA (1680-1777) Aluísio Gomes Lessa ............................................................................................................................................................................ 96

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ISSN 2358-4912 OS PALIMPSESTOS DA LEI E AS POTENCIALIDADES DAS FORMAS E DO CAMPO DE UMA HISTÓRIA DA JUSTIÇA (MINAS GERAIS, SÉCULO XVIII) Álvaro de Araujo Antunes ................................................................................................................................................................. 103 VALE DE LÁGRIMAS: MULHERES RECOLHIDAS NO SERTÃO DE MINAS GERAIS (c.1750-c. 1716) Ana Cristina Pereira Lage ................................................................................................................................................................. 112 AS ESTRATÉGIAS DA FAMÍLIA DE ANTÔNIO FERNANDES D’ELVAS – HOMENS DE NEGÓCIOS, COROA ESPANHOLA E INQUISIÇÃO Ana Hutz ............................................................................................................................................................................................. 119 A CIDADE NA IMAGEM: O PERCURSO DA VILA DE SÃO FRANCISCO-AL NO ACERVO ICONOGRÁFICO DO GRUPO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro ...........................................................................................................................................127 CONFLITOS ENTRE TERRA E MAR: QUERELAS PELA POSSE DE LOCALIDADES PESQUEIRAS NOS SÉCULOS XVII E XVIII NA CAPITANIA DO RIO GRANDE Ana Lunara da Silva Morais ............................................................................................................................................................. 132 JOÃO LOURENÇO, O “PRÍNCIPE ENCOBERTO”, LIBERTADOR DOS CATIVOS. PROFETISMO, ESCRAVIDÃO E TRÂNSITOS CULTURAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (MINAS GERAIS, SÉC. XVIII) Ana Margarida Santos Pereira ......................................................................................................................................................... 140

A FAMÍLIA ESCRAVA EM PEQUENAS UNIDADES PRODUTIVAS: DIFERENTES SIGNIFICADOS E ESTRATÉGIAS PARA SENHORES E CATIVOS – BORDA DO CAMPO – MINAS GERAIS- SÉCULO XVIII E XIX Ana Paula Dutra Bôscaro .................................................................................................................................................................147 MOBILIZAÇÃO DE NEGROS EM SERVIÇOS MILITARES EM MINAS COLONIAL: NOTAS DE PESQUISA Ana Paula Pereira Costa ................................................................................................................................................................... 154 O GADO EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII Anderson Pereira ................................................................................................................................................................................ 161 O “SERVIÇO DAS ARMAS”: PATENTES E MILITARES NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB O A\REINADO JOSEFINO (1750-1777) André Fellipe dos Santos..................................................................................................................................................................... 167 A ATUAÇÃO DO OUVIDOR LUÍS FERREIRA DE ARAÚJO E AZEVEDO NOS SEQUESTROS DOS BENS DE INCONFIDENTES MINEIROS: O CASO DE HIPÓLITA JACINTA TEIXEIRA DE MELO André Figueiredo Rodrigues .............................................................................................................................................................. 174 INSERÇÃO PORTUGUESA NA VILA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE PARANAGUÁ (18001830): O CASO DOS AGRICULTORES André Luiz Cavazzani ........................................................................................................................................................................ 181 RAREFEITA TRAJETÓRIA DO MAMELUCO SIMÃO ROIZ: DAS “TEIAS DE FALSOS ENGANOS” À PRISÃO INQUISITORIAL (1587-1593) Andreza Silva Mattos......................................................................................................................................................................... 187 CONVERSÃO NOS CAMINHOS DE DENTRO: ENCONTROS DOS KIRIRI E JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1660-1699) Ane Luíse Silva Mecenas Santos ...................................................................................................................................................... 193 REFORMAS EDUCACIONAIS E AS ‘LUZES’ EM PORTUGAL Antonio Cesar de Almeida Santos...................................................................................................................................................... 201

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ISSN 2358-4912 CAPITÃES DO SERTÃO: INTERESSES, CONFLITOS E DOMINAÇÃO Antonio José de Oliveira ................................................................................................................................................................... 208 O BASTIÃO DA CONQUISTA: A FORTALEZA DOS REIS MAGOS NO PERÍODO SEISCENTISTA Arthur Gabriel Frazão Bezerra Alves ............................................................................................................................................... 214 REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA DA ILHA DE SANTA CATARINA (1777-1778) Augusto da Silva ................................................................................................................................................................................ 221 O OLHAR DE TRÊS LUSO-AFRICANOS NA “GUINÉ DE CABO VERDE”: SUAS VIDAS E EXPERIÊNCIA EM SEUS RELATOS DE VIAGEM (SÉC. XVI E XVII) Beatriz Carvalho dos Santos............................................................................................................................................................. 229 O USO DAS CARTAS PATENTES NO EXERCÍCIO DA GOVERNANÇA DAS CAPITANIAS DO BRASIL: O CASO DE JERÔNIMO JOSÉ DE MELO E CASTRO, CAPITANIA DA PARAÍBA (1764-1797) Bruno Cezar Santos da Silva ............................................................................................................................................................. 235 A RESTAURAÇÃO NA BAHIA: QUERELAS ENTRE UM BISPO E UM GOVERNADOR NA DÉCADA 1640 Camila Teixeira Amaral ................................................................................................................................................................... 242 ÁFRICA NOS OBJETOS NO MUNDO ATLÂNTICO: OLHARES CRUZADOS SOBRE OS PROCESSOS DE COLECIONISMO-1822-1960 Carlos Jorge Mendes ......................................................................................................................................................................... 248 SANTOS NEGROS NAS AMÉRICAS: RESISTÊNCIA E HIERARQUIAS Caroline dos Santos Guedes .............................................................................................................................................................. 254 A ARQUITETURA DO AÇÚCAR NA DINÂMICA COLONIAL: UM ESTUDO DE TRÊS ANTIGOS ENGENHOS DE ALAGOAS Catarina Agudo................................................................................................................................................................................. 259 AMAZÔNIA PORTUGUESA: AS DEFESAS NO PERÍODO POMBALINO Cristiane Figueiredo Pagano de Mello .............................................................................................................................................. 267 URBANIZAÇÃO EM VILA RICA: ESTUDOS COM TÉCNICAS DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO Christiane Montalvão ....................................................................................................................................................................... 272 PRESCRIÇÕES SOBRE A MORTE NOS ESCRITOS RELIGIOSOS DO BRASIL COLONIAL (SÉCULOS XVII E XVIII) Clara Braz dos Santos........................................................................................................................................................................ 277 FAMÍLIAS PORTUGUESAS, LARES MINEIROS: UMA ANÁLISE DA PRESENÇA DE PORTUGUESES EM COMUNIDADES RURAIS DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII Clara Garcia de Carvalho Silva ........................................................................................................................................................ 283 A NATUREZA DA AMAZÔNIA COLONIAL COMO SUAS “BOTICAS BEM PROVIDAS” EM MEIO AS EPIDEMIAS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Claudia Rocha de Sousa .................................................................................................................................................................... 288 O ANOTADOR DE LIVROS E A BIBLIOTECA APREENDIDA: OS LIVROS DO CONDE DE EGAEM, 1813 Cláudio DeNipoti .............................................................................................................................................................................. 295 A FIXAÇÃO DA IGREJA NO CEARÁ DURANTE O SÉCULO XVIII: ALGUMAS NOTAS Clovis Ramiro Jucá Neto.................................................................................................................................................................... 303

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ISSN 2358-4912 GÊNERO E PODER NA CAPITAL DO VICE-REINADO: MULHERES E VIÚVAS PROPRIETÁRIAS SEGUNDO A RELAÇÃO DO MARQUÊS DE LAVRADIO Cristiane Fernandes Lopes Veiga ....................................................................................................................................................... 311 CAPITANIA DE MATO GROSSO: ÍNDIOS E COLONIZADORES NO SÉCULO XVIII Cristiane Pereira Peres ..................................................................................................................................................................... 322 A PRESENÇA DE NATURALISTAS LUSO-BRASILEIROS NA OBRA PLUTO BRASILIENSES; MEMÓRIAS SOBRE AS RIQUEZAS DO BRASIL EM OURO, DIAMANTES E OUTROS MINERAIS VOLUMES 1 E 2. Daniela Casoni Moscato ...................................................................................................................................................................... 328 AS CHARQUEADAS NA VILA DE SÃO JOÃO DA PARNAÍBA (1759-1830) Dante Cardoso Soares Barbosa ........................................................................................................................................................ 335 ESPAÇOS DE PODERES LOCAIS: A FAMILIATURA DO SANTO OFÍCIO COMO MECANISMO DE PROMOÇÃO SOCIAL AO SENADO DA CÂMARA DO RECIFE COLONIAL Davi Celestino da Silva ...................................................................................................................................................................... 341 TRABALHAR E SER REMUNERADO PELO SANTO OFÍCIO Denise de Carvalho Zottolo ..............................................................................................................................................................348 A CABANAGEM E A LUTA PELA LIBERDADE NO GRÃO-PARÁ (1820-1840) Denise Simões Rodrigues ................................................................................................................................................................... 352 “QUEM TEM FAMÍLIA, AGRADEÇA NOITE E DIA”: REFLEXÕES PRELIMINARES A RESPEITO DA PLURALIDADE POPULACIONAL E DAS RELAÇÕES FAMILIARES DE PORTO ALEGRE (1772 – 1822) Denize Terezinha Leal Freitas .......................................................................................................................................................... 358 NORMAS DO BEM CUIDAR: O TRÁFICO NEGREIRO E O GOVERNO DOS ESCRAVOS NOS TEXTOS DE LETRADOS DA ACADEMIA REAL DE CIÊNCIAS DE LISBOA NO FINAL DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX Diego Andrade Bispo ................................................................................................................................................................... 365 A ARTE A SERVIÇO DA FÉ E DA COROA NA ARQUITETURA DA BELÉM COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COM A NATUREZA LOCAL Domingos Sávio de Castro Oliveira .................................................................................................................................................. 370 FRONTEIRAS COLONIAIS: CONFLITO, JUSTIÇA E ACOMODAÇÃO NA DEMARCAÇÃO DOS LIMITES ENTRE MINAS GERAIS E SÃO PAULO - 1790-1820 Edna Mara Ferreira da Silva ............................................................................................................................................................ 378 PALAVRAS DE ORDEM: ANÁLISE DO VOCABULÁRIO POLÍTICO DE UMA SEDIÇÃO Edna Maria Matos Antonio .............................................................................................................................................................. 385 DAS TERRAS DOADAS, OUVI DIZER...: O AUTO DE REPARTIÇÃO DAS TERRAS DO RIO GRANDE (1600-1614) Elenize Trindade Pereira ................................................................................................................................................................... 391 DINÂMICAS POPULACIONAIS NA FORMAÇÃO DE FAMÍLIAS NAS FREGUESIAS DE RUSSAS E ARACATI, CEARÁ – 1770⁄1830: CASAMENTOS CRISTÃOS E NATURALIDADES DOS NUBENTES Elisgardênia de Oliveira Chaves ....................................................................................................................................................... 398 FAZER-SE ELITE: NOTAS SOBRE OS DONOS DO CRÉDITO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1808 – 1821) Elizabeth Santos de Souza ................................................................................................................................................................ 405

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ISSN 2358-4912 EVERYTHING IS CONTRABAND. A READING OF THE DUTCH GAZETTES DURING THE WAR OF THE SPANISH SUCCESSION (1700-1715). TUDO É CONTRABANDO. UMA LEITURA DAS GAZETTAS HOLANDEZAS DURANTE A GUERRA DA SUCCESSÃO ESPANHOLA (1700-1715) Ernst Pijning ...................................................................................................................................................................................... 412 MEMÓRIAS ENTRE RELATOS: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM ÀS MARGENS DO RIO PARAGUAÇU Evelyne Enoque Cruz ........................................................................................................................................................................ 437 OS “FUNDOS VIVOS DA CONTRAVENÇÃO”: O CONTRABANDO DE ESCRAVOS NA COLÔNIA DE SACRAMENTOS (1740-1771) Fábio Kühn ....................................................................................................................................................................................... 443 HIERARQUIAS SOCIAIS E CONDIÇÕES DE TRABALHO: AS ARTES MECÂNICAS EM MARIANA E AS COBRANÇAS DE OFÍCIO (1745 – 1808) Fabrício Luiz Pereira ....................................................................................................................................................................... 450 CONSIDERANDO OUTROS AGENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AMAZÔNIA PORTUGUESA NO SÉCULO XVII Fernando Roque Fernandes .............................................................................................................................................................. 456 PODERES LOCAIS NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE E NO PARAGUAI: REFLEXÕES SOBRE UMA ABORDAGEM TRANSNACIONAL (SÉC. XVI-XVIII) Fernando V. Aguiar Ribeiro.............................................................................................................................................................. 463 A CAPITANIA DO MARANHÃO E PIAUÍ NA POLÍTICA ILUSTRADA DE D. RODRIGO DE SOUSA COUTINHO (1798-1801) Flávio Pereira Costa Júnior .............................................................................................................................................................. 467 RITOS FESTIVOS, CULTURA POPULAR E REVOLTA EM VILA RICA, MINAS DO OURO Francisco Eduardo de Andrade ......................................................................................................................................................... 473 DE TERRA DE SENHORES A TERRA DE MASCATES: A ELITE DE SANTA CRUZ DO ARACATI E O ACESSO A REFERENCIAIS DE NOBREZA (1748-1804) Gabriel Parente Nogueira ................................................................................................................................................................ 480 A ILEGITIMIDADE DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA: VASCO DE QUIROGA E A INFORMACIÓN EN DERECHO (1535) Geraldo Witeze Junior ....................................................................................................................................................................... 487 OS INDÍGENAS E A LITERATURA: IMAGENS E DISCURSOS DE VIAJANTES E CRONISTAS EM ALAGOAS (SÉCULOS XVI-XIX) Gilberto Geraldo Ferreira ................................................................................................................................................................. 491 AS TROPAS REGULARES DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO CONTEXTO DA GUERRA DOS SETE ANOS Giovane Albino Silva ........................................................................................................................................................................ 496 CÁLICE PROIBIDO: CONTATOS INTERÉTNICOS ENTRE MISSIONÁRIOS CARMELITAS E INDÍGENAS TARAIRIÚ NA CAPITANIA DA PARAÍBA Gláucia de Souza Freire .................................................................................................................................................................... 502 VIEIRA E O CORPO VIVO DA PREGAÇÃO Guilherme Amaral Luz ..................................................................................................................................................................... 509

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ISSN 2358-4912 CONCUBINATOS, VIOLÊNCIA E SOLICITAÇÃO NO COTIDIANO DO CLERO SECULAR DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1750 – 1800) Gustavo Augusto Mendonça dos Santos ............................................................................................................................................ 516 O CARGO DE JUIZ DE FORA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Gustavo Balbueno de Almeida .......................................................................................................................................................... 522 OS IMBRÓGLIOS EM TORNO DE UM PADRE PREGADOR E O REGALISMO DO OUVIDOR DO ESPÍRITO SANTO Gustavo Pereira ................................................................................................................................................................................ 529 A ALFÂNDEGA DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DA ECONOMIA E PODER NO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS (c.1600-c.1700) Helena de Cassia Trindade de Sá ....................................................................................................................................................... 536 DIÁLOGOS, DISPUTAS E CONJUNTURAS NAS ATAS DA CÂMARA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (1646-1654) Helidacy Maria Muniz Corrêa ......................................................................................................................................................... 543 O GOVERNO GERAL DO ESTADO DO BRASIL E A ORGANIZAÇÃO DA INSURREIÇÃO PERNAMBUCANA (1642-1645) Hugo André Flores Fernandes Araújo .............................................................................................................................................. 549 ENTRE CRÉDITOS, DÉBITOS, PEDIDOS E PROCURAÇÕES: LOURENÇO PEREIRA DA COSTA E A ELITE COMERCIAL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO ABASTECIMENTO DAS MINAS DO SÉCULO XVIII Hugo Demétrio Nunes Tavares Bonifácio......................................................................................................................................... 561 OS TESOUREIROS E SELADORES DA ALFÂNDEGA DE SALVADOR: A PRÁTICA SOCIAL DO DESCAMINHO, 1714-1722 Hyllo Nader de Araújo Salles ........................................................................................................................................................ 568 “REGULAMENTO PARA OS MISSIONÁRIOS” EM QUESTÃO: REFLEXÕES CENTRAIS SOBRE A PRÁXIS FRANCISCANA Idelbrando Alves de Lima .................................................................................................................................................................. 573 AS REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS DO MARANHÃO, A PARTIR DO ROTEIRO DE VIAGEM DE FRANCISCO DE PAULA RIBEIRO Ilma Maria de Oliveira Silva ............................................................................................................................................................ 580 A LINGUAGEM DA ARQUITETURA RELIGIOSA EXPRESSA NA ICONOGRAFIA AZULEJAR DOS CONVENTOS FRANCISCANOS NO NORDESTE DO BRASIL COLONIAL Ivan Cavalcanti Filho ........................................................................................................................................................................ 587 ADMINISTRAR CAYENA: ARTICULAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO GOVERNATIVA CONFORME AS PRIMEIRAS ORDENANÇAS Ivete Machado de Miranda Pereira .................................................................................................................................................. 595 A OPERÍSTICA COLONIAL DA SEMANA TEATRALIZADA EM MONTE SANTO - BAHIA Jadilson Pimentel dos Santos ............................................................................................................................................................. 601 PALAVRAS AMATÓRIAS E POESIAS LUXURIOSAS: CONFISSÃO E IMORALIDADE NO MUNDO LUSO-AMERICANO (1640-1750) Jaime Ricardo Gouveia ..................................................................................................................................................................... 608 OS LIVROS DE MANUEL DE CENÁCULO NA REAL BIBLIOTECA PÚBLICA DA CORTE Jamaira Jurich Pillati ........................................................................................................................................................................ 618

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ISSN 2358-4912 ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS E MOBILIDADE SOCIAL EM SANTIAGO DE IGUAPE – 1806-1837 Jamile Serra Coutinho ....................................................................................................................................................................... 622 A ESTERILIDADE DA VINHA E A DISPUTA ENTRE OS CEIFEIROS: OS LIMITES DA CATEQUIZAÇÃO NO RECÔNCAVO COLONIAL – BAHIA 1585-1592 Jamille Oliveira Santos Bastos Cardoso ........................................................................................................................................... 629 A MORTE E AS DOENÇAS NA FREGUESIA DE SANTO AMARO-SERGIPE (1802-1806) Jamilly Bispo Laureano ..................................................................................................................................................................... 637 A ARTE DA CANTARIA ENTRE PORTUGAL E SERGIPE: O CASO DA IGREJA JESUÍTA DO ENGENHO RETIRO (SÉCULO XVIII) Janaina Cardoso de Mello ................................................................................................................................................................. 644 BURLANDO AS REGRAS: A FORMAÇÃO DE UMA ELITE PARDA NO ESPAÇO COLONIAL PERNAMBUCANO (XVIII) Janaína Santos Bezerra ..................................................................................................................................................................... 650 VIDA ESCRAVA NAS MINAS DO ARRAIAL DE SANTA LUZIA DA CAPITANIA DE GOYAZ Jason Hugo de Paula .......................................................................................................................................................................... 656 CULTURA POLÍTICA INDÍGENA E LIDERANÇA TUPI NAS CAPITANIAS DO NORTE: ANTÔNIO PESSOA ARCOVERDE E O COMBATE AO QUILOMBO DE PALMARES (SÉCULO XVII) Jean Paul Gouveia Meira .................................................................................................................................................................. 659 OS ANTUNES SUZANO: UMA ELITE SENHORIAL NA PERIFERIA DA CAPITANIA FLUMINENSE (1797) Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz ..................................................................................................................................................... 665 NO LABIRINTO DAS ESTRATÉGIAS: BAHIA E PERNAMBUCO E A CONSTITUIÇÃO DAS REDES DE COMÉRCIO INTRACAPITANIAS - 1759 A 1787 Jéssica Rocha de Sousa ...................................................................................................................................................................... 672 LUTAS E NEGÓCIOS NO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ: JESUÍTAS, MORADORES E A LIBERDADE DOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA COLONIAL João Aluízio Piranha Dias ................................................................................................................................................................ 678 QUANDO OS NEGROS NÃO SÃO PASSIVOS: A RESISTÊNCIA NEGRA ATRAVÉS DA RELIGIOSIDADE João Antônio Damasceno Moreira ................................................................................................................................................... 684 CLÉRIGOS SERVIDORES DO SANTO OFÍCIO NA AMAZÔNIA SETECENTISTA: COMISSÁRIOS, PADRES E PROPRIETÁRIOS DE TERRA João Antonio Fonseca Lacerda Lima ................................................................................................................................................ 690 UMA RUA CHAMADA DIREITA João Henrique dos Santos .................................................................................................................................................................. 696 A LEGISLAÇÃO E A RELAÇÃO DA COROA PORTUGUESA COM AS REVOLTAS DO ESTADO DO BRASIL (1650-1730) João Henrique Ferreira de Castro ..................................................................................................................................................... 702 ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO E MOBILIDADE SOCIAL DOS NEGROS INSERIDOS NA ESTRUTURA MILITAR COLONIAL. COMARCA DO SERRO FRIO, SÉCULO XVIII Joelmir Cabral Moreira ..................................................................................................................................................................... 707

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ISSN 2358-4912 CARIDADE OU SOBREVIVÊNCIA? FORMAS CRIADORAS DE EXPOSTOS DA FREGUESIA MADRE DEUS DE PORTO ALEGRE (SÉCULO XVIII-XIX) Jonathan Fachini da Silva .................................................................................................................................................................. 714 AS CIDADES HISTÓRICAS E O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NO BRASIL COLONIAL: QUESTÕES E EMBATES José Antônio de Sousa ........................................................................................................................................................................ 721 “URBANIZAR É COMO CIVILIZAR”: ELITES COLONIAIS, GOVERNANÇA E POLÍTICA INDÍGENA NA AMÉRICA PORTUGUESA (PERNAMBUCO E PARAÍBA, SÉCULO XVIII) José Inaldo Chaves Jr. ......................................................................................................................................................................... 727 NEGRO: IMAGEM, MEMÓRIA E DISCURSO NA PROPAGANDA DE PROGRAMAS ASSISTENCIALISTAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA José Robson Gomes de Jesus ............................................................................................................................................................... 736 SACRILÉGIOS E PRÁTICAS HETERODOXAS NO ESPAÇO IBERO-AMERICANO: MISTICISMO RECÔNDITO NAS ÓPERAS DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU Josevânia Souza de Jesus Fonseca ..................................................................................................................................................... 742 A TRADUÇÃO DA NATUREZA FEIA PELO JESUÍTA ASCENSO DE EGO Juliana Barbosa Peres ....................................................................................................................................................................... 749 RELAÇÕES TRANSFRONTEIRIÇAS NO VALE DO RIO BRANCO (1790-1822) Lodewijk Hulsman ............................................................................................................................................................................ 755 O PORTO DO RECIFE E A ALFÂNDEGA DE PERNAMBUCO Luanna MariaVentura dos Santos Oliveira ...................................................................................................................................... 761 O RIO DAS AMAZONAS E O RIO DA PRATA NA CARTOGRAFIA QUINHENTISTA: ESPAÇOS DE FRONTEIRA DA AMÉRICA PORTUGUESA Lucas Montalvão Rabelo ................................................................................................................................................................... 767 CRER E DESCRER: RELAÇÕES ENTRE INCONSTÂNCIA E LIBERDADE INDÍGENA NOS DISCURSOS JESUÍTICOS Ludmila Gomides Freitas .................................................................................................................................................................. 775 A CAPITANIA DE SERGIPE DEL REI NO SÉCULO XVII E A DINASTIA DE BRAGANÇA Luís Siqueira ...................................................................................................................................................................................... 781 NEGOCIANTE JOÃO RODRIGUES DE MIRANDA: ALIANÇAS E EMBATES NO MARANHÃO VINTISTA Luisa Cutrim ..................................................................................................................................................................................... 786 A PRÁTICA DA MÚSICA E SUAS FRONTEIRAS: A ARTE LIBERAL ENTRE A ESCRAVIDÃO E O TRABALHO MECÂNICO NAS MARGENS DO ATLÂNTICO (SÉCULOS XVII – XIX) Luiz Domingos do Nascimento Neto ................................................................................................................................................. 793 A RECEPÇÃO DO CURSUS CONIMBRICENSIS NO BRASIL COLONIAL; A ÉTICA DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS E A LIBERDADE DOS ÍNDIOS Luiz Fernando Medeiros Rodrigues ................................................................................................................................................... 801 SAMBA DE RODA: TRAÇOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA TABUA GRANDE NO MUNICÍPIO DE GUANAMBI-BA Maiza Messias Gomes ....................................................................................................................................................................... 809 NOVO MUNDO: ESCRITOS E MEDIAÇÕES Manoela Freire Correia ..................................................................................................................................................................... 816

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ISSN 2358-4912 PODER E SOCIEDADE NA ÁSIA PORTUGUESA NA ÉPOCA MODERNA: OS CLÃS COSTA E HORNAY EM TIMOR Manuel Lobato .................................................................................................................................................................................. 823 ATRITOS E CONFLITOS: PROVIMENTOS DE OFÍCIOS E SESMARIAS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (1712-1715) Marcos Arthur Viana da Fonseca ...................................................................................................................................................... 831 AS METAMORFOSES DE UM IMPÉRIO: PORTUGAL-BRASIL DA DINASTIA DE BRAGANÇA AO IMPÉRIO HÍBRIDO COLONIAL Marcos Aurélio de Paula Pereira ...................................................................................................................................................... 838 RECONHECIMENTO E HERESIA: A ANTINOMIA FEMININA NAS PRÁTICAS MÁGICORELIGIOSAS A PARTIR DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À AMÉRICA PORTUGUESA (1591-1595) Marcus Vinicius Reis ........................................................................................................................................................................ 844 ESTRATÉGIAS DE TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO NA FREGUESIA DE JACAREPAGUÁ (SÉCULO XVIII) Mareana Barbosa Gonçalves Mathias da Silva ................................................................................................................................. 851 CAPELAS COM PLANTA CENTRALIZADA: UMA SINGULAR ARQUITETURA DOS SÉCULOS XVII E XVIII NO NORDESTE DO BRASIL Maria Berthilde Moura Filha ............................................................................................................................................................ 857 FRONTEIRAS POLÍTICAS NO INTERIOR DA FRONTEIRA OESTE BRASILEIRA: CUIABÁ E VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Maria do Socorro Castro Soares ...................................................................................................................................................... 864 O ROL DE CULPADOS E A PRÁTICA DA JUSTIÇA: DELITOS, DEVASSAS E QUERELAS NA VILA DO RIBEIRÃO DO CARMO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Maria Gabriela Souza de Oliveira .................................................................................................................................................... 870 ENTRE ARRAIAIS E ALDEAMENTOS: OS MILITARES NO SERTÃO DE PIRANHAS E PIANCÓ DA CAPITANIA DA PARAÍBA EM FINS DO SÉCULO XVII E INÍCIO DO SÉCULO XIII Maria Simone Morais Soares ............................................................................................................................................................ 877 O CAMINHO DAS CARTAS: REFORMAS POSTAIS E ESTRATÉGIAS DE ENVIO DE CORRESPONDÊNCIAS NO EPISTOLÁRIO DE LUIS JOAQUIM DOS SANTOS MARROCOS (1811-1821) Mayra Calandrini Guapindaia ......................................................................................................................................................... 884 OS MODOS DE ALIMENTAR NO BRASIL COLONIAL: UM ESTUDO DOS REGISTROS HOLANDESES SEISCENTISTAS Melissa Mota Alcides ........................................................................................................................................................................ 892 A POLÍTICA INDÍGENA DOS HABSBURGOS ESPANHÓIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1580-1611) Miguel Luciano Bispo dos Santos ...................................................................................................................................................... 899 CAPITANIA DE MATO GROSSO NO SÉCULO XVIII: O SERTÃO ENTRE AUTORIDADES, MEDOS, DOENÇAS E HOSPITAIS Miksileide Pereira ............................................................................................................................................................................. 905 EM MEIO AO SAGRADO, A FUGA DO PECADO: OS SENTIMENTOS ENVOLTOS NOS CASAMENTOS NO BRASIL COLONIAL Mona Mirelly Viana Bandim .............................................................................................................................................................. 911

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ISSN 2358-4912 DIREITO E PUNIÇÃO NO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE OS REGIMENTOS INQUISITORIAIS E AS ORDENAÇÕES FILIPINAS Monique Marques Nogueira Lima ..................................................................................................................................................... 917 HEREGES JUDAIZANTES: UMA FAMÍLIA DE CRISTÃOS-NOVOS FLUMINENSES NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO Monique Silva de Oliveira ................................................................................................................................................................. 924 DAS NEGOCIAÇÕES E CONFLITOS ENTRE PODER CENTRAL E LOCAIS: TRAMAS POLÍTICAS DE UM VIGÁRIO NAS CAPITANIAS DA PARAHYBA E PERNAMBUCO NOS SETECENTOS (1764-1785) Muriel Oliveira Diniz ....................................................................................................................................................................... 929 O ESTADO DO MARANHÃO E O UNIVERSALISMO VIEIRIANO NA CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO DOS BRAGANÇAS Nathalia Moreira Lima Pereira ....................................................................................................................................................... 936 ORGANIZAÇÃO MILITAR: INSTITUIÇÃO EDUCATIVA E CULTURAL NA CAPITANIA DO MATO GROSSO Nileide Souza Dourado ..................................................................................................................................................................... 942 EM BUSCA DA FÉ: VIVÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E DEVOÇÃO DOS TERCEIROS CARMELITAS EM MINAS GERAIS Nívea Maria Leite Mendonça ........................................................................................................................................................... 949 AS CATEGORIAS EMPÍRICAS DE DISTINÇÃO SOCIAL NO SERTÃO DA BAHIA DO SÉCULO XIX Ocerlan Ferreira Santos .................................................................................................................................................................... 955 RIBEIRA DO MOSSORÓ, UM ESPAÇO A SER CONQUISTADO: CONQUISTA E POVOAMENTO DO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO INICIO DO SÉCULO XVIII Patrícia de Oliveira Dias .................................................................................................................................................................. 963 INQUISIÇÃO E RELIGIOSIDADE NA BAHIA COLONIAL (SÉCULO XVIII): A PRÁTICA RELIGIOSA DO ESCRAVO MATHEUS PEREIRA MACHADO Priscila Natividade de Jesus .............................................................................................................................................................. 970 UM BRACARENSE NA VILA DE SÃO JOÃO DEL REI: A ATUAÇÃO DE FRANCISCO DE LIMA CERQUEIRA NA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS Patricia Urias ................................................................................................................................................................................... 976 OS COMPORTAMENTOS À MARGEM DA LEI: A ESFERA FAZENDÁRIA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO NO SÉCULO XVIII Paula Andrea Dombkowitsch Arpini ................................................................................................................................................ 981 O COTIDIANO NA FROTA ESPANHOLA COMANDADA POR D. NICOLÁS GERALDÍN (1737) Paulo César Possamai ...................................................................................................................................................................... 988 UM PESO E DUAS MEDIDAS: VISÕES SOBRE A MESA DA INSPEÇÃO DO TABACO E AÇÚCAR DE PERNAMBUCO Paulo Fillipy de Souza Conti ............................................................................................................................................................ 994 LIBERDADES PARA RECONSTRUIR: ISENÇÃO FISCAL E MORATÓRIA PARA A ECONOMIA AÇUCAREIRA PERNAMBUCANA PÓS-RESTAURAÇÃO (SÉCULOS XVII E XVIII) Pedro Botelho Rocha ....................................................................................................................................................................... 1000 REPENSANDO A FRONTEIRA NA CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO AGRÁRIO ARTIGUISTA Pedro Vicente Stefanello Medeiros .................................................................................................................................................. 1007

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ISSN 2358-4912 A OCUPAÇÃO DO SUL MARANHENSE Philipe Luiz Trindade de Azevedo .................................................................................................................................................... 1013 A ESTRADA PROIBIDA DA BAHIA: ENTRE O CAMINHO E OS DESCAMINHOS (1694 – 1716) Pollyanna Precioso Neves ................................................................................................................................................................ 1019 BLASFÊMIAS E PROPOSIÇÕES: A “LIBERTINAGEM” DE CONSCIÊNCIA NO SETECENTOS MINEIRO Rafael José de Sousa ........................................................................................................................................................................ 1025 REDES DE PODER E DISPUTAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS NA ATUAÇÃO DO DESEMBARGADOR CHRISTOVÃO SOARES REIMÃO: JUSTIÇA E ORDEM SOCIAL NA CAPITANIA DO SIARÁ GRANDE (1703-1717) Rafael Ricarte da Silva ..................................................................................................................................................................... 1031 HOMENS LIVRES DE COR NA EXPANSÃO DA FRONTEIRA LUSITANA NA RIBEIRA DO ACARAÚ (1682-1720) Raimundo Nonato Rodrigues de Souza ........................................................................................................................................... 1038 ENTRE O CATOLICISMO E O CALVINISMO: A APOSTASIA DE ECLESIÁSTICOS NO BRASIL HOLANDÊS Regina de Carvalho Ribeiro ............................................................................................................................................................ 1045 A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO: UM ESTUDO POPULACIONAL (1681-1714) Renata Assunção da Costa .............................................................................................................................................................. 1052 MÃOS À OBRA: CONSTRUTORES E ARTISTAS DURANTE A EXPANSÃO URBANA DA VILA DO RECIFE NO SETECENTOS Renata Bezerra de Freitas Barbosa ................................................................................................................................................. 1058 O DIREITO DE ALMOTAÇARIA NA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (VILA DE NOSSA SENHORA DO RIO PARDO – 1811/ C. 1830) Ricardo Schmachtenberg ................................................................................................................................................................. 1064 O MESTIÇO MORAL NOS ESCRITOS DE CAPISTRANO DE ABREU Ricardo Souza ................................................................................................................................................................................. 1070 DESEJOS E ESCOLHAS: SOLICITAÇÕES DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB A POLÍTICA DO DIRETÓRIO POMBALINO Ristephany Kelly da Silva Leite ....................................................................................................................................................... 1076 “MAS, E OS CARMELITAS?” LEVANTAMENTO ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DA ORDEM DO CARMO E DA SUA ARQUITETURA COLONIAL NO BRASIL Roberta Bacellar Orazem ................................................................................................................................................................ 1083 A SEGUNDA ESCOLÁSTICA NO MODO DE GOVERNAR DA MONARQUIA ESPANHOLA NAS ÍNDIAS: FRANCISCO DE VITORIA E AS LEYES NUEVAS EM MEADOS DO SÉCULO XVI Rodrigo Henrique Ferreira da Silva ................................................................................................................................................ 1089 A POLITIZAÇÃO DA SUBSISTÊNCIA EM FINS DO SÉCULO XVIII – FRANÇA E BAHIA Rodrigo Oliveira Fonseca ................................................................................................................................................................ 1095 OS ESTUDOS DE ARQUITETURA DE FRANCISCO DE HOLANDA Rogéria Olimpio dos Santos ............................................................................................................................................................. 1103

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ISSN 2358-4912 CORREIOS EXTRAVIADOS ENTRE LISBOA E AS MINAS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DOS ASSISTENTES DO CORREIO-MOR NO IMPÉRIO PORTUGUÊS (SÉCULOS XVI-XVIII) Romulo Valle Salvino......................................................................................................................................................................................................................................... 1109 TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS: FREGUESIA DO GENTIO (CAETITÉ) E A VILLA DE MONTE ALTO NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (1870 – 1888) Rosângela Figueiredo Miranda ......................................................................................................................................................... 1115 TEXTOS, IMAGENS E A CRIAÇÃO DE UM SIGNO CHAMADO VILA Roseline Vanessa Oliveira Machado ................................................................................................................................................ 1122 ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO: OMAGUA E JESUÍTAS E O DISCURSO ESPANHOL NO SÉCULO XVIII Rosemeire Oliveira Souza ................................................................................................................................................................ 1128 UMA SOCIEDADE PARA REFORMAR: A ATUAÇÃO DE D. FREI ALEIXO DE MENEZES, OESA, NA ÍNDIA (1595-1612) Rozely Menezes Vigas Oliveira ........................................................................................................................................................ 1135 PECULIARIDADES ECLESIÁSTICAS NO GRÃO-PARÁ: O MOMENTO DA TRANSIÇÃO DA DIOCESE DE FREI JOÃO DE SÃO JOSÉ QUEIRÓS PARA GERALDO JOSÉ DE ABRANCHES Sarah dos Santos Araújo .................................................................................................................................................................. 1142 LA “GUERRA DE LA OREJA DE JENKINS”: HISTORIAS ENTRELAZADAS EN CONTEXTOS AMERICANOS: 1739-1748 Sebastián Gomez .............................................................................................................................................................................. 1149 PODER, AMOR E ESCRAVIDÃO: A ESCRITA DAS RELAÇÕES SOCIAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA Sílvia Rachi ...................................................................................................................................................................................... 1164 A FRONTEIRA BRASIL-GUIANA FRANCESA DO TRATADO DE UTRECHT À NEUTRALIZAÇÃO DE 1841: SIGNIFICAÇÃO DE UMA FRONTEIRA COLONIAL NA AMAZÔNIA Stéphane Granger .............................................................................................................................................................................. 1171 EXERCÍCIO E IMPLEMENTAÇÃO DA JUSTIÇA NAS VILAS E POVOAÇÕES NA COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO NEGRO Stephanie Lopes do Vale .................................................................................................................................................................... 1177 COLONIZAÇÃO E REGIÃO: PERNAMBUCO, O NORTE DO ESTADO DO BRASIL E O COMÉRCIO ATLÂNTICO (c. 1711 a c. 1783) Thiago Alves Dias ............................................................................................................................................................................ 1185 A ESCRITA DA HISTÓRIA INDIANA POR MEIO DA CRÔNICA FRANCISCANA Thiago Bastos de Souza ..................................................................................................................................................................... 1191 A TRAJETÓRIA DO TENENTE JOAQUIM LINO RANGEL: UM EXPOSTO DA FREGUESIA DA CIDADE DO NATAL – CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE (FINAL DO SÉCULO XVIII E INICIO SÉCULO XIX) Thiago do Nascimento Torres de Paula ........................................................................................................................................... 1199 DUARTE DA SILVA, O BANQUEIRO DO REI Thiago Groh .................................................................................................................................................................................... 1206 APONTAMENTOS SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS SECRETÁRIOS DO GOVERNO Thiago Rodrigues da Silva ............................................................................................................................................................... 1210

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ISSN 2358-4912 “VIRTUOSOS E MUITO AMADOS DE TODO AQUELE POVO E DOS ÍNDIOS”: JESUÍTAS, ÍNDIOS, OFICIAIS E AUTORIDADES RÉGIAS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO (1624-1654) Uiá Freire Dias dos Santos .............................................................................................................................................................. 1218

EM BUSCA DE PRIVILÉGIOS: NOTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO PADRE MANOEL DE ALBUQUERQUE FRAGOSO NO TERMO DO CUIABÁ NO SÉCULO XVIII Vanda da Silva ................................................................................................................................................................................. 1227 DA ARTE DE GOVERNAR COM OS SANTOS NA MONARQUIA PORTUGUESA (C.1680- C.1760): O EXEMPLO DO RIO DE JANEIRO Vinicius Miranda Cardoso .............................................................................................................................................................. 1234 A ATUAÇÃO DOS DIRETORES DE POVOAÇÕES DURANTE A POLÍTICA DO DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS (1757-1798): A BUSCA POR UMA ANÁLISE DE CARÁTER HISTÓRICO DE SUAS INFRAÇÕES A LEI Vinícius Zúniga Melo ...................................................................................................................................................................... 1244 JESUÍTAS, NATUREZA E FARMÁCIA: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA PARA A COMPREENSÃO DA DINÂMICA COLONIAL (SÉCULOS XVI–XVIII) Viviane Machado Caminha São Bento ............................................................................................................................................. 1251 AS FORÇAS MILITARES DE UMA CAPITANIA SUBALTERNA NA AMÉRICA PORTUGUESA: O CASO DA CAPITANIA DE SERGIPE D’EL REI (1750-1800) Wanderlei de Oliveira Menezes ........................................................................................................................................................ 1257 DINÂMICAS DO PODER LOCAL: AS CÂMARAS DO RIO DE JANEIRO E SALVADOR EM UMA CONJUNTURA DE TRANSFERÊNCIA DE PODERES (1679-1766) William de Andrade Funchal .......................................................................................................................................................... 1264

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APRESENTAÇÃO Criado em 2006, na Capitania da Paraíba, o Encontro Nordestino de História Colonial tinha como pressuposto discutir as temáticas concernentes à experiência colonial em suas mais diversas localidades americanas e, por que não dizer, africanas e asiáticas na Época Moderna. Realizado a cada dois anos, em 2008, o mesmo já estava na Capitania do Rio Grande Norte, local onde se tornou Internacional por sua vasta abrangência de temáticas e, sobretudo, pela grande participação de pesquisadores e professores de outros países. Tal feito não só consolidou no território nacional a atividade de extensão, como tornou-se um ponto de parada obrigatória de toda nau estrangeira que visava atracar nos estudos coloniais da modernidade. De lá para cá, o EIHC já passou pelas capitanias de Pernambuco e pelo antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, mas especificamente na Capitania do Pará. Divulgando pesquisas, trocando experiências, promovendo debates científicos e, mais do que isso, consolidando os estudos sobre o mundo colonial, este evento, em 2014, retorna à Capitania de Pernambuco! No entanto, por conta de sua vastidão, a localidade escolhida para este momento era aquela denominada de “as parte do sul” ou, a partir de 1712, a Comarca das Alagoas. A criação desta nova jurisdição somente atestava a especificidade e a diferença que as localidades do “sul da Capitania de Pernambuco” tinham em relação às Vilas de Olinda e Recife. Assim, dentro da comarca três vilas se destacam: a Vila de São Francisco de Penedo, considerada pelos agentes coloniais a mais “selvagem”; a Vila de Porto Calvo, com características similares ao mundo açucareiro da sede da capitania; e a Vila de Santa Maria Magdalena Alagoas do Sul, considerada importante por sua centralidade e pelos portos do Francês e Jaraguá escoarem a produção local. Fora justamente nesta última vila que se sediou a “cabeça da Comarca”, hegemonizando o território e nomeando o que, em 1817, após a insurreição pernambucana, se convencionou chamar de Capitania/Província das Alagoas. Se foi traíra naquele momento à causa dos insubordinados pernambucanos, pouco importa! O que se destaca, naquele episódio, é a concretização da demarcação de um espaço diferenciado dentro da capitania, com vida própria, com atividades camaristas específicas, com uma economia consolidada e com súditos portugueses que não se afinavam mais com a sede da Capitania de Pernambuco! Enfim, é neste espaço reconhecidamente lembrado pelo banquete feito pelos índios caétes ao Bispo Fernandes Sardinha, pelo celebre personagem de Calabar no período flamengo e pelos habitantes Mocambos de Palmares que ocorrerá o V ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL. Por conta disso, a temática proposta não podia ser diferente: CULTURA, ESCRAVIDÃO E PODER NA EXPANSÃO ULTRAMARINA (SÉCULOS XVI AO XIX). Com 2 conferências, 9 mesas redondas, 14 simpósios temáticos e 10 minicursos, o encontro se vislumbra como o maior de sua história. Por tudo isso, as páginas destes Anais Eletrônicos que se seguem apontam o crescimento da produção na área colonial e a consolidação de um nicho de pesquisa que só tende a demonstrar a grandeza da pesquisa história no Brasil e demais áreas ultramarinas. Maceió, Agosto de 2014 Antonio Filipe Pereira Caetano Gian Carlo de Melo Silva

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PROGRAMAÇÃO 19 de agosto de 2014 09:00-12:00 – Credenciamento 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Conferência de Abertura: Maria Beatriz Nizza da Silva

20 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Jantar de adesão

21 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos 19:00-21:00 – Lançamento de Livros

22 de agosto de 2014 09:00-10:30 – Minicursos 10:30-12:00 – Mesas Redondas 12:00-14:00 – Almoço 14:00-18:00 – Simpósios Temáticos/Banners/Reunião Administrativa 19:00-21:00 – Conferência de Encerramento: Stuart B. Schwartz

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AS DIVERSAS FACES DA RECLUSÃO FEMININA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENÇA DE ESCRAVAS E SERVAS NO CONVENTO DA SOLEDADE (SALVADOR, 1753-1805) Adínia Santana Ferreira1 A presença de escravos e escravas nos conventos de Salvador foi um aspecto que causou muita preocupação aos arcebispos, particularmente a Manuel de Santa Ignez2. Este estava encarregado da difícil missão de reformar as casas de reclusão soterapolitanas segundo a visão do Concílio de Trento, que não via com bons olhos a presença de escravos e escravas nas instituições religiosas de reclusão, femininas e masculinas, já que estimulava o vício da ociosidade e inviabilizava o voto de pobreza.3 Nesse sentido, aquele arcebispo se empenhou em delimitar taxativamente a diminuição do número de escravos nessas casas, começando pelo de Santa Clara do Desterro, justamente porque era o que apresentava um grande número de escravas. Para determinar tão polêmica decisão, o prelado procurou inicialmente verificar se havia, por parte das reclusas e educandas, licença do papa, para que elas pudessem manter cativos e cativas, pois tal autorização era critério indispensável para tal luxo. Além disso, providenciou o levantamento dos custos com alimentação e vestuário de cada uma. Depois desse diagnóstico, o arrogado arcebispo expediu a referida determinação de que se mandasse sair do Desterro diversas escravas, sob o argumento legítimo do número excessivo de cativos e cativas ali abrigados. Não adotou a mesma medida para os conventos da Soledade, Lapa e Mercês, porque estas casas possuíam um número relativamente pequeno de escravos e servas, na quantidade suficiente para atender às necessidades das reclusas4. Como principal representante da Igreja em Salvador, o arcebispo tinha poderes para decisão que desagradava à comunidade do Desterro e às famílias das reclusas. Contudo, prudentemente, não exagerou na dose, mantendo o mesmo número escravos e servas nos outros três conventos. No Convento da Soledade havia a autorização para a presença de servas e escravas, com a exigência de que fossem donzelas, mulheres honestas. Elas deveriam dormir em celas separadas das religiosas e trajar hábitos de tecido simples, sem muitos enfeites5. A função que servas e escravas desempenhavam na instituição era praticamente a mesma, sendo que as primeiras tinham direito à instrução enquanto as segundas, não. Aquelas eram normalmente forras, mas prestavam serviço no convento por várias razões, como gratidão, devoção, abrigo ou alimentação. Além dessas forras, havia também servas livres, mestiças ou brancas, mulheres e jovens pobres que ofereciam seus serviços pelos motivos já citados6. As religiosas que desempenhavam as funções de mestras, ministravam aulas para as servas nos espaços vagos entre as aulas que davam às professas e educandas. Tal atividade deveria ser encarada pelas servas como uma obrigação, uma exigência para a permanência no convento, uma regra a ser cumprida. Assim, se não comparecessem no local indicado quando os sinos tocassem, estavam, tal como as educandas, sujeitas às punições previstas. A escolarização das servas era objeto de determinação expressa no estatuto e compreendia o ensino da (...) doutrina cristã e para tudo mais que para seu bem espiritual necessitem e ainda para a política civil, lhes nomeará a madre superiora por semanas ou meses como melhor lhes parecer. A mestra as convocará pelo toque de uma sineta na hora que for mais desocupada, não faltando com o castigo as 7 que sem justa causa faltarem (...) 1

Mestre em História Social pela Universidade de Brasília. Manoel de Santa Inez, que pertenceu à ordem dos carmelitas descalços, foi arcebispo de Salvador de 1770 até 1771. 3 NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: As enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Bahia: Conselho Estadual de Cultura, 1994, p.172. 4 Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 5 Idem, Ibidem. 6 NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião. Op. cit. p. 173. 7 Estatuto do Convento da Soledade, op. cit., parágrafo IV. 2

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ISSN 2358-4912 Como escravos e escravas eram, naquela sociedade, consideradas “peças” e não seres humanos, propriedades de alguém e, como tais, proibidos de freqüentar escolas pelas leis do Império Português, também no convento da Soledade o acesso ao ensino lhes estava proibido. Além dessa visível diferenciação, entre escravos/as, livres e forros/as, existiam ainda outras, mais sutis, mas não menos perversas. Assim, geralmente aos escravos estavam reservados os serviços mais pesados no convento e em suas propriedades agrícolas, já que eram cativos da comunidade. Entre servas e escravas existiam aquelas que prestavam serviço à comunidade e aquelas que atendiam às recolhidas. O estatuto do Convento permitia a presença de servas da comunidade, mas proibia a de servas particulares, isto é, dedicadas exclusivamente a uma recolhida, educanda ou religiosa. Conforme os termos daquele instrumento normativo, no que concernia às servas comuns, (...)vulgarmente chamadas da comunidade usando dos poderes que em carta nos concede o S. Padre Benedito XIV, consignamos a respeito da cada dez freiras quatro servas da comunidade e, sucedendo-se pelas educandas serem muitas que não bastem se lhe poderá permitir para cada dez 8 educandas duas servas mais (...)

Este mesmo estatuto determinava que para cada dez freiras deveria haver quatro escravas da comunidade e para cada dez educandas, duas escravas ou servas. Nos livros de registro do convento não encontramos nenhuma nota que informasse sobre a quantidade ou nomes das servas. Contudo, nas listas sobre a população dos conventos, pedidas pelos arcebispos, nós finalmente encontramos alguns registros que, por sua vez, são muito vagos. Em 1753, localizamos 13 servas da comunidade no convento e nenhuma serva particular, assim identificadas: Maria da Anunciação, Joana, Rosa, Verônica, Francisca, Maria, Dolores, Joana Maria, Maria José, Maria das Dores (doada por Inês Zuzarte), Dorotéia (doada por Maria Francisca), Catarina (doada por Lourença de Jesus ) e Maria de Jesus, forra9. No referido período, existiam 39 reclusas e 8 educandas10, quantitativo que daria à casa o direito de possuir cerca de 15/16 escravas para as reclusas e entre uma a duas escravas ou servas para as educandas. Nessa relação, sintonizada com o número de escravas/servas permitido pelo estatuto, reconhecemos que, pelo menos em 1753, aquele estava sendo cumprido. Todavia, em 1775, a situação do Convento da Soledade quanto ao número de escravas e servas apresentava-se diferente. Notamos que o estatuto não estava sendo mais cumprido, haja vista a insistência do arcebispo em determinar que se restringisse o número de escravos e de escravas no convento da Soledade, bem como nos outros três, todos eles com um quantitativo que excedia o previsto, como se pode depreender do quadro a seguir:

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idem, Ibidem. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 10 Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d 9

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Religiosas professas

Educandas seculares

Recolhidas seculares

Total de religiosas, educandas e recolhidas

Hospedes e agregadas

Total de religiosas, educandas, recolhidas, hospedes e agregadas

Escravos da comunidade

Escravas da comunidade

Escravas particulares

Total de servas forras, escravos e escravas

Total da população

Soledade

38

8

1

47

2

49

2 4

7

___

35

66

115

Mercês

48

9

___

57

1

58

15

2

3

71

91

149

Lapa

19

____

___

19

1

20

6

4

19

29

49

Desterro

81

7

17

105

____

105

8

___

338

Total Geral

186

24

18

228

4

232

4 0 8 5

21

22

___ _ 29 0 39 6

44 3 756

Servas forras

CONVENTO

População dos conventos femininos de Salvador: religiosas, educandas, hóspedes, servas e forras, escravos da comunidade e particulares (1775)

524

FONTE: Mapa Geral dos conventos da Bahia. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 47, Documento, 8814, 03/07/1775.

Verifica-se, pelo referido quadro, a existência de um total de 524 escravas e servas, sendo 85 servas forras, 396 escravas particulares e 43 escravos/as da comunidade, para uma população de 232 recolhidas, distribuídas entre 24 educandas, 186 reclusas professas, 18 recolhidas seculares e 4 hóspedes agregadas. Ou seja, havia mais de duas servas/ escravos para cada uma das integrantes das três comunidades como um todo. Nesse conjunto, destaca-se o Convento do Desterro que contava, considerando-se a sua população de 105 recolhidas (81 religiosas professas, 7 educandas seculares e 17 recolhidas seculares), com um número excessivo de servas/escravas e escravos: 338. Ou seja, existiam ali 3 a 4 serviçais para cada uma das recolhidas, sendo que o número de 290 escravas particulares afrontava a legislação episcopal que proibia sua existência, ressalvando-se os casos em que havia licença papal. Se era esse o caso, o convento continuava “transgredindo a lei”, pois desrespeitava o número previsto de 4 escravas da comunidade para cada 10 freiras e 2 escravas/servas para cada 10 educandas. Embora não existisse ali nenhuma escrava da comunidade , haviam 290 escravas particulares, mais 40 servas forras para atender a 81 religiosas professas, 17 recolhidas seculares e 7 educandas seculares. Também o Convento da Lapa destacava-se dos demais, mas pela reduzida população: 49 pessoas, entre religiosas professas (19), hóspede agregada (1), nenhuma educanda, 6 servas forras, 4 escravos da comunidade, 19 escravas da comunidade e nenhuma escrava particular. A relação entre reclusas professas e escravas da comunidade estava porém acima do permitido: 19 escravas para 19 religiosas; ou seja, uma escrava para cada religiosa. Isso sem contar com a presença de 6 servas forras que certamente atendiam ás religiosas, já que não havia no convento nenhuma educanda secular e nenhuma recolhida secular. Enfim, os dados apontam para formas próprias de administração de serviços e de recursos humanos que, em alguns aspectos, atendiam às prescrições estatutárias, já em outros derespeitavam-na, mesmo que sob o risco das admoestações e punições das autoridades.

23 ISSN 2358-4912 Num balanço geral, percebe-se que o número de religiosas, educandas, recolhidas e hospedes era bem menor que o de escravas, escravos, servas forras e escravas particulares das quatro instituições: 332 para 524 escravos/as e servas. No Convento da Soledade, com a população de 115 pessoas, o primeiro grupo representava 43% do total, enquanto o segundo 57%. Isso nos leva a concluir, em consonância com a avaliação de Riolando Azzi, que apesar das autoridades eclesiásticas envidarem esforços para evitar a presença de escravos nos conventos, “não conseguiam controlar os abusos, favorecidos pelos longos e freqüentes períodos de sede vacante nas dioceses da colônia”.11 Acrescentamos, ainda, que tais abusos permaneceram porque respaldados em prática que tinha tradição, prestígio e legitimidade social: possuir escravos, ser proprietário de alguém que executava o serviço para seu dono/a, era costume arraigado e naturalizado naquela sociedade em razão da instituição da escravidão. Significativamente, embora não existissem escravas da comunidade no Convento da Soledade, existiam, porém, 35 particulares e 7 escravos da comunidade para atender a 49 pessoas livres e recolhidas. Acrescente-se ainda 24 servas forras que atendiam a 8 educandas e 1 recolhida secular, além de responder pelos serviços domésticos gerais e comuns do cotidiano da casa. Os escravos da comunidade, embora em número reduzido (7), quando comparado ao das escravas particulares (35), desempenhavam as tarefas mais pesadas, que exigiam maior esforço físico, trabalhando no convento ou nas fazendas e propriedades pertencentes à instituição. Os gastos com alimentação, moradia e vestuário com estes escravos e forras eram custeados pelo próprio convento, mais apropriadamente pelo próprio trabalho daqueles. Não encontramos registro sobre a compra de escravos ou escravas, mas sobre doações que vinham que como parte do dote de algumas religiosas ou educandas12. As escravas particulares acompanhavam algumas meninas, jovens ou mulheres por ocasião do ingresso na instituição ou ali ingressavam quando aquelas já se encontravam recolhidas, sendo “peças” pertencentes às famílias ou compradas especialmente para servir à religiosa no claustro. As despesas com essas escravas particulares eram arcadas pelas suas proprietárias. Além dos inúmeros inconvenientes da existência de escravas/os particulares numa instituição religiosa que pregava e exigia a renúncia aos bens materiais, à ostentação, ao luxo e conforto, acrescente-se que tal presença gerava “diferenças entre os membros de uma mesma comunidade, transferindo para dentro do convento a estrutura da sociedade global composta por escravos, indivíduos livres sem escravos e senhores”13. A presença dessas escravas assegurava a continuidade, em alguns aspectos, do tipo de vida que a reclusa levava antes de ingressar no convento e que, em tese, deveria romper, uma vez que se recolheu em uma instituição religiosa centrada no isolamento, contemplação, mortificações e nos votos de pobreza, humildade e obediência. Engendrava-se, paradoxalmente, uma rotina no cotidiano da casa, marcada pela reafirmação desses votos, com as recolhidas dedicando-se às orações, meditação, preparação para o exame de confissão, penitências, isolamento e também pela sua negação, com suas escravas incumbindo-se de lavar e passar suas roupas, ajudá-las a se vestir, preparar seu banho, penteá-las preparar suas refeições, com um cardápio de suas preferências. Não é, pois, de se estranhar a atitude dos clérigos em relação à presença de escravos/as no convento, bastante rígida nos seus primórdios, e cada vez mais tolerante no decorrer do tempo. Precisamente na passagem do século XVIII para o XIX, observamos uma total condescendência por parte daqueles religiosos, forçados provavelmente pelas circunstâncias que falavam mais alto: a existência da escravidão no país e de uma cultura profundamente vincada por tal instituição, que respondeu pela naturalização da prática em que pessoas livres e proprietárias eram servidas por pessoas escravas. Com efeito, encontramos nos registros referentes ao período de 1803 a 1805, oito breves autorizando religiosas a adquirir uma segunda serva, como podemos visualizar no quadro a seguir: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 49. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. 13 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia- Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio/ Brasília: Edunb, 1995, p. 175. 12

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ISSN 2358-4912 Pedidos de aquisição de servas: Convento da Soledade (1803 a 1805) ANO

AUTORA DO PEDIDO

1803

Eustáquia Maria de Santa Ana

1803

Úrsula da Virgens Fontoura

1803

Maria Gertrudes de São José

1803

Joaquina Perpétua do Coração de Jesus

1804

Anastácia Joaquina de São José

1804

Ana Constância das Virgens Belas

1804

Maria do Carmo e Queiroz

1805

Emereciana Lucina Rosa

FONTE: Breves sobre o pedido de segunda serva para religiosas do Convento da Soledade.Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (ACMS). Tombo Anterior: 159-Br5-4, 5, 6, 7, 35, 36, 37 e 40. Tombo de Mudança: Estante 1, Caixa, 2, 1803-1805.

Os dados apontam para um movimento de reforço à presença de escravas particulares e servas no Convento da Soledade. Contrariamente ao pretendido pelas autoridades eclesiásticas, a presença daquelas serviçais foi se tornando uma prática comum, sendo a condição financeira da reclusa indicativo do número de escravas ou servas particulares de que poderia dispor na casa. Observa-se, assim, que escravos, escravas e servas representaram, neste período, uma significativa parcela da população da casa de reclusão, evidenciando como a escravidão era algo profundamente enraizado na mentalidade colonial. Como se tratava de uma instituição religiosa, parece que ali eram incentivadas práticas da tradição cristã, no caso de doença ou morte das escravas e servas. É o que determina um dos artigos do estatuto: Ordenamos à madre que pela alma de cada serva que falecer lhe mande dizer uma missa de corpo presente. E parecendo lhe que é limitado o sufrágio a vista do muito e bom serviço que fez a este convento lhe poderá dizer até outras três a cada uma das religiosas noviças educandas e mais servas 14 lhe rezarão pela alma dentro em três dias um terço do Rosário (...)

Nesse sentido, o convento talvez fosse um espaço onde a “política de domínio”15 a que se refere Slenes, tenha sido praticada com mais êxito e constância. Processa-se ali uma permanente relação de trocas entre mulheres livres proprietárias e mulheres escravas, propriedades, cada uma das partes defendendo o agenciando seus interesses. No que concernia às escravas e escravos, um bom desempenho nos serviços para negociar, em melhores termos, sua condição. Daí desempenhar bem suas tarefas, usufruir da confiança de sua proprietária para permanecer no convento e ali desfrutar de um conforto relativamente maior: alimentando-se e vestindo-se de forma razoável. Acrescente-se ainda o investimento feito por aqueles com vistas a poder contar com a possibilidade de uma atitude mais carinhosa, caridosa e humana de suas senhoras, além da garantia de uma “missa de corpo presente” quando falecesse. No que tange às suas proprietárias, as recolhidas, a garantia de serviços bem prestados, sem muito desgaste na função de comando e supervisão, além da fidelidade de suas escravas 14

Estatuto do Convento da Soledade, op. cit. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. (org.) História da vida privada no Brasil- Império: a corte e a modernidade-Volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 236.

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25 ISSN 2358-4912 e amas, assegurada pelo interesse de permanecer no convento e pela possibilidade de uma alforria no futuro. O convento era, portanto, um espaço que abrigava a presença de escravos, sem acarretar grandes tensões, explícitas entre proprietárias e escravas/servas, provavelmente porque as relações entre estas pareciam estar mais suavizadas pela “política de domínio”, bem como pelo clima de religiosidade que, inegavelmente, presidia o cotidiano da população livre e escrava do convento.

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Referências Breves sobre o pedido de segunda serva para religiosas do Convento da Soledade. Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador (ACMS). Tombo Anterior: 159-Br5-4, 5, 6, 7, 35, 36, 37 e 40. Tombo de Mudança: Estante 1, Caixa, 2, 1803-1805. Estatuto do Convento da Soledade, parágrafo IV. Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d. Lista de todas as recolhidas e educandas, servas e escravas do Convento de N. S. da Soledade. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia, Caixa 4, Documento 500, 27/03/1753. Livro de Ingresso e de profissões das Noviças do Convento da Soledade. Biblioteca Nacional-RJ /Seção de Manuscritos, 22, 2, 37; s./d. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: Mulheres da colônia- Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de Janeiro: José Olímpio/ Brasília: Edunb, 1995. AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil: enfoques históricos. São Paulo: Paulinas, 1983. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: As enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890). Bahia: Conselho Estadual de Cultura, 1994. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. (org.) História da vida privada no Brasil- Império: a corte e a modernidade-Volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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ISSN 2358-4912

A FORMAÇÃO DOS SECRETÁRIOS NA ARTE DE ESCREVER CARTAS: UM MANUAL PORTUGUÊS NO SÉCULO XVIII Adriana Angelita da Conceição16 Os mais consideráveis acontecimentos do início da idade moderna envolvem o que podemos definir como múltiplas mobilidades, ao se considerar a relevância das navegações e suas implicações políticas, econômicas, sociais e culturais. O pesquisador Anthony John R. Russell-Wood fez destes deslocamentos o tema unificador de uma consistente pesquisa sobre um mundo em movimento, analisando a mobilidade dos portugueses entre a África, a Ásia e a América – e destes continentes entre si e com Portugal. A análise de Russell-Wood consistiu na problematização de múltiplas relações que envolveram explorações, descobertas, mercadorias, dispersão de doenças, difusão de plantas e animais, troca de ideias e culturas, migrações forçadas e muita circulação de pessoas.17 Sendo que estas relações foram estabelecidas, sobretudo, por redes de comunicação que mobilizaram a troca de informações e notícias – movimentadas por papeis manuscritos e impressos que circularam por terra e mar. Deste modo, estas redes foram os alicerces dos governos a distância e uma prática foi pertinente neste mundo em movimento: a escrita de cartas. Para um tratadista do século XVII a carta fazia “volar los pensamientos de una á otra parte del Mundo”18. Com as mobilidades proporcionadas pelas navegações, os governos passaram a funcionar a distância, assim, a carta de circulação pública representou a estruturação de práticas governativas, acompanhada de outros documentos. Segundo o historiador Antonio Castillo Gomez, estudioso da cultura escrita, “En la governación del reino las cartas se mostraban, pues, como piezas fundamentales de la maquinaria burocrática”.19Além disso, deve-se considerar que com a sedentarização das cortes sucedeu-se alterações nos governos monárquicos, ao dependerem, consideravelmente, da escrita e de funcionários ligados a este saber, o que viabilizou o aumento da importância de uma figura inteiramente ligada aos papeis, o secretário. Assim, o governo monárquico, na idade moderna, é incompreensível apartado do papel. O historiador Jonh Elliot afirmou que os indivíduos envolvidos com as monarquias, sobretudo nos contextos ultramarinos, viram-se ligados por cadeias de papel ao governo central da Espanha – o que também aconteceu em Portugal. Segundo Elliot, três instrumentos tornaram-se fundamentais para atender aos desafios da distância, diante da amplitude do império espanhol: a pena, a tinta e o papel20. A proposta deste texto será analisar a publicação, no século XVIII, de um compêndio destinado aos secretários portugueses, com indicações das melhores maneiras de compor uma carta e o que se esperava da postura e prática deste funcionário. Além disso, serão propostas algumas questões de pesquisa para se problematizar a relação entre o governo e a escrita. Mas, antes de analisar o manual e estas questões, far-se-á algumas considerações referentes às publicações deste tipo de obras no mundo ibérico, especialmente na Espanha, onde a produção foi abundante. A vinculação do governo ao papel requereu cuidados, importando não apenas a disposição gráfica da palavra, mas também os arranjos discursivos. Neste sentido, de acordo com o historiador Fernando Bouza “la figura del secretario resultará crucial en la cada vez mayor escriturización del despacho de gobierno”21 – o que manifesta a preocupação com a formação dos funcionários reais que atuariam neste novo contexto repleto de papeis. Deste modo, torna-se imprescindível considerar o reinado de Filipe II (1580-1598) como promotor desta burocratização da monarquia, sendo-lhe atribuído o epíteto de rei 16

Pós-Doc UNICAMP-FAPESP. RUSSELL-WOOD, Anthony Jonh R. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: Difel, 1998. p. 17. 18 CASTILLEJO, Juan Pérez de Valenzuela. Nuevo estilo y formulario de escribir cartas misivas y responder a ellas (…) [cópia Manuscrita], 1747. p. 2v. 19 GÓMEZ, Antonio Castillo. “Hablen cartas y callen barbas”. Escritura y sociedad en el siglo de oro. Historiar: Revista Cuadrimestral de Historia. Alcalá de Henares, n. 4, 2000. p. 121. 20 ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. América Latina Colonial. vol. I. São Paulo/Brasília: EDUSP/Fundação Alexandre Gusmão, 1998. p. 287. 21 BOUZA, Fernano. Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid, Marcial Pons, 2001. p. 265. 17

27 ISSN 2358-4912 papeleiro. Com Filipe II as consultas escritas tornaram-se prioritárias em detrimento das orais e foi-se promovendo a “publicación de una literatura didáctica orientada al adiestramiento de los oficiales de la Corona en el ejercicio de la escritura y en otras disciplinas”.22 A abertura da tratadística de secretários na Espanha, segundo Carmen Sánchez, é atribuída a obra de Gabriel Pérez del Barrio Angulo, Dirección de secretarios de señores y las materias, cuydados y obligaciones que les tocan (…)23, publicada em 1613. A segunda edição, em 1622, teve o título Secretario y consegero de señores y ministros (…)24 vindo acompanhada de centenas de exemplos de cartas. Pérez del Barrio tinha larga experiência no ofício de secretaria, pois foi secretário do marquês de los Vélez. Para Fernando Bouza, com a escrita do manual, Barrio buscou enfrentar um dos desafios do ofício: o “maneio de papeles”.25 Pois, ao secretário cabia o cuidado com os papeis de seu senhor, além da responsabilidade da escrita epistolar. Estas publicações e outras semelhantes foram inspiradas nos manuais de escrita de cartas do século XVI, como os de Juan de Icíar, Nuevo estilo de escrevir cartas mensageras sobre diversas matérias e o de Antonio de Torquemada, Manual de escribientes. Ademais, a definição de obras específicas de secretários indica uma consciência de ofício profissional, na qual, de acordo com Sánchez, os “secretários pudieran reclamar una posición privilegiada dentro la Corte, sus derechos, la consideración y estima de la que se habían hecho merecedores” – delineando a relação entre o governo e o papel. Em Portugal a publicação de Corte na Aldeia e Noites de Inverno, composta por Francisco Rodrigues Lobo em 1619, com tradução para o castelhano em 1623, representa uma das primeiras obras modernas em português na qual o tema da escrita foi pormenorizado, embora não fosse um compêndio e discutisse outras questões como a situação lusa de não possuir uma corte, já que o rei estava na Espanha. O texto é estruturado através de 16 diálogos estabelecidos com base na conversação de cinco personagens principais. O tema crucial dos diálogos concentra-se nos modos e limitações das conversações em ambiente cortesão, sendo que em determinados diálogos, a discussão desdobrou-se sobre o que estaria mais adequado ao cortesão: escrever ou falar, incluindo questionamentos direcionados à prática epistolar. Mesmo que Corte na Aldeia não seja um manual de escrita de cartas ou para secretários, o tema epistolar mereceu ponderações. Ainda no século XVII outra obra relacionada à escrita de cartas e dedicada aos secretários foi lançada na Espanha. Juan Fernandes de Abarca publicou o Discurso de las partes y calidades con que se forma un buen secretario em 1618.26 Fernandes de Abarca problematizou a prática epistolar de modo exaustivo e atento, além de indicar uma “vocación pedagógica que le impulsaba a aunar en su obra teoría y prática”27, como destacou Sánchez – apontando uma pertinência daquele momento, a imbricação entre a prática e a teoria epistolar, diferente do século anterior, no qual os manuais estavam mais preocupados teoricamente com a escrita de cartas do que com seu uso prático. O compêndio de Abarca, que embora português, publicou em castelhano, indica as relações da união ibérica no que diz respeito ao mundo dos livros. Pois, Fernandes de Abarca preferiu a língua espanhola e não a lusa para divulgar seus apontamentos. Diferente de Lobo que dedicou diálogos a defender a língua materna naquele contexto de dois reinos e um rei. O secretário no ambiente da governabilidade imperial possuía o que se pode definir como domínio do discurso escrito e, consequentemente, de todos os segredos, assim, era visto como o principal servente de um senhor. O secretário compartilhava do universo escrito do governo, exercido em nome do rei, no V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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SÁNCHEZ, Carmen S. Secretarios de papel: los manuales epistolares en la España moderna (s. XVI-XVII). In: GOMEZ, Antonio Castillo; BLAS, Verónica Sierra (dirs.) Cinco Siglos de Cartas: Historia y prácticas epistolares en las épocas moderna y contemporânea. Huelva : Universidad de Huelva, 2014. p. 79. 23 Dirección de secretarios de señores y las materias, cuydados y obligaciones que les tocan, con las virtudes de que se han de preciar, estilo y orden del despacho y expediente, manejo de papeles de ministros, formularios de cartas,(…), y otras curiosidades que se declaran en la primera hoja, Madrid, Alonso Martín de Balboa, 1613. 24 Secretario y consegero de señores y ministros: cargos, materias, cuydados, obligaciones, y curioso agricultor de quanto el gobierno, y la pluma piden para cumplir con ellas, Madrid, Francisco García de Arroyo, 1639. 25 BOUZA, F. Corre manuscrito… op. cit. p. 242-243. 26 ABARCA, Juan Fernandes. Discurso de las partes y calidades con que se forma un buen secretario, con una recopilación del número que hay de cartas misivas para su exercicio, Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1618. 27 SÁNCHEZ, C. Los manuales… op. cit. p. 67.

28 ISSN 2358-4912 caso ultramarino, aludindo a necessidade de uma relação de poder e confiança entre senhor e secretário. A pesquisadora Elena del Rio Parra estudou as obras do dramaturgo Lope de Vega, que além dessa função também atuou como secretário em diferentes casas nobiliárquicas da Espanha. Com isso, Lope de Veja tematizou a prática de secretariar entre seus personagens. Neste sentido, as análises de Parra indicam que um dos poderes do secretário concentrava na capacidade de “modificar las acciones y actitudes” de seu senhor, por isso, a relação entre ambos merecia atenção e dedicação.28 Na coletânea O homem Barroco dirigida por Rosario Villari o texto de Salvatore Nigro, destinado a indicar questões sobre o secretário analisa este ofício como perpassado pelas habilidades da filosofia e com certo poder heróico, pois, também exercia papel na formação dos príncipes. Para Nigro, do século XVI ao XVIII, o secretário se configura como uma inteligência auxiliar, especificamente em uma sociedade baseada em relações lineares, entre camadas altas e baixas. Assim, o secretário era visto como “um raio da grandeza do Príncipe, a cujo serviço colocava saberes particulares”.29 Diante destas qualificações requeridas ao secretário, a mais pertinente estava ligada ao silêncio, – “o ofício baseava-se no segredo e no secretismo” 30 – qualidade que aparece em toda a tratadística de secretário da idade moderna. No dicionário setecentista de Rafael Bluteau consta que o secretário é aquele que “tem por officio escrever cartas de hum Cavalheyro, Principe & ou que toma, & guarda os segredos do seu senhor, para os declarar, & significar quando convèm. Guarda o secretario o segredo quando os calla”.31 Assim, a significação de secretário se imbrica entre o que escreve cartas e o que guarda segredos. Na sequência, Bluteau indicou um exemplo de Pyrrho, o rei de Epirotas, que “confessava que seu Secretario Cyneas com a penna, & a língua lhe ganhara mais Cidades, que todos os seus Capitães com a espada”. Estes exemplos mostram a relação íntima e importante do secretário com os governos, pois passava por sua pena fundamentalmente todas as questões que envolviam os processos governativos. O Secretario Portuguez Compendiosamente Instruido no modo de Escrever Cartas, de Francisco José Freire, editado pela primeira vez em 1745, consagrou-se como a mais relevante publicação em português na qual o tema da prática de secretariar e da escrita epistolar foi abordado.32 Freire nasceu em Lisboa no ano de 1719 e faleceu aos 53 anos. Realizou estudos de humanidades no Colégio Santo Antão, inaciano, e na Casa de São Caetano, de clérigos Theatinos. Foi “gentil-homem em casa do cardeal patriarcha de Lisboa, D. Thomás d’Almeida”33 – figura influente em Portugal. O fato de Freire ter sido secretário do patriarca de Lisboa reforça o que foi destacado anteriormente, ou seja, que a maior parte dos escritores de tratados atuaram no ofício de secretaria. Além disso, dedicou a obra ao patriarca, o que já alude as redes de sociabilidades nas quais circulava e buscava se manter – escreveu Freire: “sempre em mim era acto necessario consagrar a V. Eminencia este Livro (…)” pois, era Almeida uma “altissima Dignidade Cardinalicia; e sagradamente coróado primeiro Principe da Mitra Patriarcal de Lisboa”.34 Freire escreveu dezenas de obras, de circulação impressa e manuscrita, entretanto, O Secretario Portuguez foi a de maior repercussão no ambiente livreiro de Portugal, em função das inúmeras reedições ao longo dos séculos XVIII e XIX – embora também tenha sido criticada, logo após a primeira edição, pelo padre oratoriano Luís Antônio Verney. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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PARRA, Elena del Rio (Brown University). La figura del secretario en la obra dramática de Lope de Vega. www.ucm.es/info/espetaculo/numero13/secretos.html. Acesso em março de 2008. 29 NIGRO, Salvatore S. El secretario. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença, 1994. p. 84. 30 NIGRO, S. El secretario op. cti. p. 85. 31 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, rchitectonico (…). Coimbra, 1712 – 1728. p. 537. Dicionário digitalizado e disponível em www.ieb.usp.br. Acesso em junho de 2014. 32 O secretario portuguez compendiosamente instruido no modo de escrever cartas. Por meyo de huma instrucçam. Preliminar, regras de Secretaria, Formulario de tratamentos, e hum grande numero de Cartas em todas as especies, que tem mais uso. Escrito e consagrado ao Eminentissimo, e Reverendissimo Senhor CARDEAL PATRIARCA, Primeiro de Lisboa, Do Conselho de Estado, e Capellaõ Mor. Por seu Criado Francisco Joze Freire. Lisboa, Na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca. Anno MDCCXLV. 33 Diccionario Bibliographico Portuguez. Estudo de Innocêncio Francisco da Silva. Aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Tomo 2º. Lisboa, imprensa Nacional, 1849. 34 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 3.

29 ISSN 2358-4912 Francisco José Freire, ao iniciar o compêndio, escreveu que se inspirou no escrito do italiano Isidoro Nardi.35 Porém, mais do que se inspirar, traduziu vários trechos e os incorporou, especialmente, na introdução. Contudo, segundo José da Silva Simões, Nardi se baseou e copiou partes da obra francesa Le Secrétaire à la Mode de Juan Puget de la Serra.36 O mesmo fez o espanhol Juan Páez de Valenzuela com a obra de Juan Fernandes de Abarca. Estes apontamentos evidenciam a presença de um certo tipo de rede de leituras, de releituras, de cópias e de traduções no espaço latino, no que diz respeito a tratadística epistolar. A principal intenção de Freire era instruir os jovens portugueses no exercício da escrita epistolar através de uma obra em língua materna, para que não precisassem recorrer aos estrangeiros – as intenções de Freire estavam relacionadas às mudanças portuguesas no ensino, transcorridas, principalmente, na segunda metade do século XVIII.37 A preocupação de Freire com o ensino de novos secretários se imbricava com o que o historiador Santiago Martinez Hernánez indicou como a oportunidade social que o domínio da escrita ofereceu para muitos indivíduos na idade moderna. Hernández apontou que muitas famílias de letrados foram se perpetuando nos ofícios da administração real, ao ponto de “erigirse en auténticas dinastías de secretarios, contadores y oficiales que, con el tiempo, acabaron siendo ennoblecidos por la Corona”.38 A primeira parte do compêndio é uma carta ao leitor, chamada de Satisfação necessária, na qual Freire indicou o motivo da publicação, que seria “o zelo, e amor da Patria, virtude engrandecida por muitos e praticada por poucos”.39 A mocidade portuguesa foi criticada por Freire, pois se dedicava mais a espada do que ao aprendizado das letras, o que gerava em alguns jovens a ausência de habilidade com a prática de escrita de cartas. Entretanto, essa falta de manejo com a pena também se relacionava à ausência de manuais de secretário em português, conforme destacou Freire. Situação que não ocorria na Espanha, na Itália ou na França, por exemplo, para citar apenas as línguas latinas. Deste modo, Freire indicou a intenção de ser útil aos principiantes na arte epistolar, sugerindo que se dedicassem a estudar as instruções e as advertências, e pouca atenção dessem aos exemplos de cartas, pois eram suas. Na mesma época, em outras partes da Europa, já eram comuns as publicações de coletâneas de cartas, como exemplo de trato epistolar. Neste sentido, Freire apontou que existiam importantes cartas portuguesas que podiam vir à luz, o que não ocorria pela modéstia dos autores ou pela “ambiciosa conservasaõ de seus parentes”.40 A segunda parte do compêndio denominada Instrução Preliminar apresentou indicações específicas do ofício de secretário. No entanto, Freire advertiu que muito pouco confiava em suas instruções, necessitando o secretário ser “dotado de hum vivo engenho”.41 O secretário deveria conhecer as línguas latinas e muitíssimo bem o português, além de estudar outras obras sobre cartas. Para o autor, a maior dificuldade que o secretário encontraria estava relacionada ao exórdio. Assim, sugeriu que o principiante considerasse que todas as cartas – menos as de narração e de descrição – se dividiam em quatro partes: “no primeiro se narra o facto; no segundo se roga a que se agradeça, ou respectivamente se daõ os agradecimentos; no terceiro se offerece o prestimo; e no quarto se desejaõ felicidades”.42 Deste modo, para o uso abundante de termos e de proposições no início da carta, bastaria que o secretário estivesse atento a “quatro cousas; isto he o principio à quo, o termo ad quem, a instrumental, e a causal”43 – sendo estas questões uma constante entre os manuais epistolares no século XVI e XVII. O V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Isidoro Nardi. Il secretario principiante ed istruito. Diviso in due Parti de Lettere in questa Terza Impressione. Roma, MDCCX. (3º edição) 36 SIMÕES, José da Silva. Sintaticização, Discursivização e Semantização das orações de gerúndio no português brasileiro. São Paulo, 2007. Tese de Doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas. USP. FFLCH, DLCV. p. 174. 37 Para saber mais sobre as mudanças educacionais consultar, por exemplo, o que escreveu Ana Rosa Cloclet da Silva e Kenneth Maxwell. Conferir bibliografia. 38 HERNÁNDEZ, Santiago Martinez. Memória aristocrática y cultura letrada: usos de la escritura nobiliária en la Corte de los Austrias. In.: BOUZA, Fernando. (org) Cultura Escrita & Sociedad. n°. 03, 2006. Astúrias: Ediciones Trea, 2006. p. 71. 39 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 4. 40 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 4v. 41 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10. 42 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10v. 43 FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 10v.

30 ISSN 2358-4912 princípio à quo estava relacionado a qualidade da pessoa que escrevia a carta, o ad quem se relacionava ao destinatário, o instrumental eram os termos que podiam melhor acompanhar os princípios à quo e ad quem, e o causal significava o uso de certos verbos que podiam revestir a observância dos princípios à quo e ad quem. Com estas ponderações, Freire mostrou o quanto era importante observar as palavras escolhidas, em particular os pronomes de tratamento, para que se evitasse qualquer tipo de desentendimento entre o senhor e seus destinatários. Depois deste ensinamento, ponderou uma delicada questão, indicando que suas instruções apenas abriam espaço ao “engenho do Secretario principiante”, para que pudesse usar suas ideias, “porque depois de estar prático nos quatro modos sobreditos, poderá desta Causal extrahir com facilidade muitos, e novos principios para a sua carta, formando hum periodo mais unido”.44 Além de instruções para o início da carta e de indicações de expressões destinadas a introduzir determinados assuntos, Freire mostrou que o encerramento também requeria cuidados, de acordo com o grau de amizade e ordem hierárquica estabelecidas entre remetente e destinatário. As instruções foram concluídas com a apresentação de três regras que o secretário deveria seguir: respeito ao amo que serve, a pessoa a quem se escreve e ao assunto da carta. Estas regras se desdobravam em 10 princípios, divididos em qualidades e defeitos. Assim, as Perfeiçoens do secretario, consistiam em segredo, erudição, generalidade, reflexão e eloquência. Já os vícios eram a demora, a prolixidade, a aspereza, a ignorância e a escuridade. Freire escreveu pequenos textos explicativos para cada perfeição e vício. O historiador Tiago Miranda observou que a divisão entre perfeições e vícios, apresentadas por Freire, foram copiadas de Isidoro Nardi: Segretezza, Erudizione, Generalità, Riflessione, Eloquenza, Tardità, Ampliezza, Rigidezza, Ignoranza e Oscurità.45 O compêndio também trouxe exemplos de cartas acompanhados por Livros de Advertencia – pequenos textos que discorreram sobre cada tipo de carta, indicando o que deveria ser evitado e o que fazer parte. As cartas foram apresentadas junto da divisão de gêneros: Demonstrativo, Judicial e Deliberativo – fragmentação pertencente à tradição retórica e a estruturação da nova epistolografia, começada no início do século XVI e atribuída a Erasmo de Rotterdam. Os três gêneros compreendiam 12 tipos principais de carta e suas subdivisões.46 Além disso, ainda existiam três tipos de cartas que não se enquadravam nos gêneros, mas que receberam observações e exemplos eram as cartas de gênero misto, as discursivas e as de satírica e desprezo.47 O compêndio de Freire representou um marco na produção livresca de Portugal, diante das reedições e das questões que sugere ao indicar, por exemplo, a ausência deste tipo de produção entre os portugueses. Caberia, como realizou Carmem Sánchez para a Espanha, uma análise dos inventários de livrarias e bibliotecas particulares em Portugal após 1745 para que se pudesse ter um panorama da recepção da obra e entre quais grupos sociais estava presente. Embora saiba-se que um público específico – oficiais de secretaria, secretários, burocratas – fosse o destinatário deste tipo de publicação. Em relação à repercussão nos espaços privados, esta questão fica mais problemática, já que o estilo dos mais de 500 exemplos de cartas sugeridos por Freire não percorrem os meandros da individualidade, como tinha que ser, considerando não se tratar de uma questão para as sociabilidades da idade moderna – a ideia de individualidade desponta no transcorrer do século XIX, com cartas que se inspiram no universo íntimo da vida cotidiana. A historiografia espanhola, nos últimos 20 anos, vem publicando uma expressiva quantidade de estudos que analisam a importância da tratadística epistolar e do universo escrito no exercício do governo monárquico moderno. Neste sentido, verifica-se a necessidade do aumento de estudos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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FREIRE, F. O Secretario Portuguez… f 12. MIRANDA, Tiago C. P. Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Batella (Org.). Prezado Senhor, Prezada Senhora: estudos sobre as cartas. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 46. 46 Cartas de gênero Demonstrativo: Parabéns, Oferecimento, Agradecimento, Aviso e Louvor. Gênero Judicial: Desculpa e de Justificação e Queixas. Gênero Deliberativo: Pêsames, Recomendações, Boas Festas, Consolação, Exortação e Conselho. Como exemplo de subdivisã para cartas de Boas Festas: para bispos e cardeais, para pessoas particulares, resposta às cartas de Boas Festas de cardeais, resposta às cartas de Boas Festas de bispos, para cavaleiros e para pessoas particulares. 47 Ainda fez parte do compêndio um Formulario de Tratamentos muy necessario ao Secretario portuguez, que serviria de base à seleção do devido tratamento e um Formulario de Sobrescritos. 45

31 ISSN 2358-4912 voltados às análises da escrita e sua relação com o governo do império ultramarino português. Atualmente, identifica-se poucas reflexões sobre a cultura escrita do império português, embora sejam estudos de inegável qualidade acadêmica. Mas, faltam análises que se proponham a estudar a escrita, com o aporte teórico e metodológico da história social da cultura escrita, ponderando: produção, recepção, circulação e, sobretudo, a conservação dos documentos. Este texto apenas apresenta algumas questões que fazem parte de uma pesquisa maior e em desenvolvimento que se propõe a problematizar a intrínseca relação entre o governo e a escrita. Eis algumas ponderações: quem foram os secretários dos principais governadores-gerais e vice-reis da América portuguesa? Se possuíam, qual era a formação destes secretários? Como se deram as práticas de produção e conservação da correspondência destes administradores? Como podemos problematizar a posse particular da documentação produzida pelos administradores ultramarinos, já que a maior deles, ao regressar ao reino, levava os documentos em suas bagagens? Por que e como muitos destes documentos, levados nas bagagens pessoais, ingressaram nos acervos de instituições públicas de guarda documental? Será que uma análise da presença e envolvimento dos secretários – como sujeitos diretamente ligados à produção e conservação da escrita – não remeteria questões ainda desconsideradas no exercício do governo ultramarino? Será que o estudo destes oficiais e suas práticas não indicaria problematizações quanto à conservação documental, começada durante a produção da escrita? Estudos referentes à organização, formação e estabelecimento do Arquivo de Simancas indicam disputas entre relações de memória e esquecimento sendo estabelecidas deste o século XVI, como mostrou o historiador Fernando Bouza. Deste modo, será que uma análise da escrita que considere quem assinou o documento mas também quem participou da produção não proporia questões ainda não tematizadas sobre a cultura escrita luso-brasileira no espaço do governo? Para quem estuda a documentação setecentista da capitania de São Paulo, especialmente, a administração do governador-geral Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, morgado de Mateus, e os primeiros meses do governo de seu substituto, Martim Lopes Lobo de Saldanha, com frequência encontra a assinatura de Tomás Pinto da Silva, que foi secretário da capitania. Se a presença deste oficial é pertinente em expressiva quantidade de documentos ligados à capitania de São Paulo, porque pouco se sabe sobre ele, sendo que passou por suas mãos basicamente toda a papelada de mais de uma década de governo. Além disso, Tomás Pinto da Silva, com ordens de D. José I, foi encaminhado ao Rio de Janeiro para que fosse secretário do vice-rei 2º marquês do Lavradio. Entretanto, a notícia não agradou o vice-rei que escreveu ao marquês de Pombal desqualificando Tomás Pinto da Silva. A Pombal, Lavradio afirmou que preferia os secretários que o acompanhavam deste a Bahia, quando foi governador daquela capitania. Será que relações de poder e saber estavam comprometidas entre Lavradio e Silva, já que tinha sido secretário do morgado de Mateus, com quem o vice-rei teve alguns desentendimentos? Infelizmente este texto não oferece muitas respostas. Mas, isso também pode significar o quanto ainda temos por pesquisar sobre a cultura escrita do império ultramarino, considerando a produção, recepção, circulação e conservação dos documentos produzidos durante o período colonial lusobrasileiro. Salvatore Nigro, estudando a figura do secretário, apontou que “Ninguém retratava o secretário. Não era possível fazê-lo. Corpo, gestos, vestuário e pronuncio empurravam-no para a sombra, para a inevidência, o conformismo, o anonimato; e para uma opção de solidão”.48 Será que estes preceitos foram tão obedecidos pelos secretários que pouco se sabe sobre eles? Ou será que se negligencia suas atuações, o que os levaria ao anonimato? V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências49 ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula (org.). O império por Escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009. ARAÚJO, Ana Cristina. A correspondência: regras epistolares e práticas de escrita. In: NETO, Margarida Sobral (coord.). As comunicações na Idade Moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005. 48 49

NIGRO, Salvatore S. El secretario. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença, 1994. p. 86. As referências dos manuais de secretário e outros compêndios apenas aparecem nas notas de rodapé.

32 ISSN 2358-4912 BOUZA, Fernando. Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid, Marcial Pons, 2001. __________. Comunicação, conhecimento e memória na Espanha dos séculos XVI e XVII. Cultura (14). Lisboa: CHAM/CHC, Universidade Nova de Lisboa, 2002. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, rchitectonico (…). Coimbra, 1712 – 1728. Dicionário digitalizado e disponível em www.ieb.usp.br. Acesso em junho de 2014. (obra de referência) CHARTIER, Roger. La correspondance: les usages de la lettre au XIXe siècle. Paris: Arthème Fayard, 1991. CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. “Aqui se abre hum largo theatro ao engenho do Secretário principiante”. A escrita de cartas segundo Francisco José Freire (Portugal – séc. XVIII). História Revista. Goiânia: v 15, nº. 1, jan-jun. 2010. Diccionario Bibliographico Portuguez. Estudo de Innocêncio Francisco da Silva. Aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Tomo 2º. Lisboa, imprensa Nacional, 1849. (obra de referência) CURTO, Diogo Ramada. Cultura Imperial e Projetos Coloniais (séculos XV a XVIII). Campinas: Editora da Unicamp, 2009 ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. América Latina Colonial. vol. I. São Paulo/Brasília: EDUSP/Fundação Alexandre Gusmão, 1998. GÓMEZ, Antonio Castillo. “Hablen cartas y callen barbas”. Escritura y sociedad en el siglo de oro. Historiar: Revista Cuadrimestral de Historia. Alcalá de Henares, n. 4, 2000. __________. Entre la pluma y la pared: una historia social de la escritura en los siglos de oro. Madrid: Akal, 2006. GOMEZ, Antonio Castillo; BLAS, Verónica Sierra (dirs.) Cinco Siglos de Cartas: Historia y prácticas epistolares en las épocas moderna y contemporânea. Huelva : Universidad de Huelva, 2014. HERNÁNDEZ, Santiago Martinez. Memória aristocrática y cultura letrada: usos de la escritura nobiliária en la Corte de los Austrias. In.: BOUZA, Fernando. (org) Cultura Escrita & Sociedad. n°. 03, 2006. Astúrias: Ediciones Trea, 2006. MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MIRANDA, Tiago C. P. Reis. A arte de escrever cartas: para a história da epistolografia portuguesa no século XVIII. In: GALVÃO, Walnice Nogueira; GOTLIB, Nádia Batella (Org.). Prezado Senhor, Prezada Senhora: estudos sobre as cartas. São Paulo: Companhia das letras, 2000 NIGRO, Salvatore S. El secretario. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Lisboa: Presença, 1994. PARRA, Elena del Rio (Brown University). La figura del secretario en la obra dramática de Lope de Vega. Disponível em: www.ucm.es/info/especulo/numero13/secretos ROCHA, Andrée Crabbé. A epistolografia em Portugal. Coimbra: Livraria Almedina, 1965. SÁNCHEZ, Carlos A. González. Homo viator, homo scriberis. Cultura gráfica, información y gobierno en la expansión atlántica (siglos XV-XVII). Madrid: Marcial Pons, 2007. SÁNCHEZ, Carmen S. Secretarios de papel: los manuales epistolares en la España moderna (s. XVIXVII). In: GOMEZ, Antonio Castillo; BLAS, Verónica Sierra (dirs.) Cinco Siglos de Cartas: Historia y prácticas epistolares en las épocas moderna y contemporânea. Huelva : Universidad de Huelva, 2014. RUSSELL-WOOD, Anthony Jonh R. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (14151808). Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: Difel, 1998. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. A formação do homem-público no Portugal setecentista (1750-1777). Revista Intellectus, ano 02, vol. II, 2003. SIMÕES, José da Silva. Sintaticização, Discursivização e Semantização das orações de gerúndio no português brasileiro. São Paulo, 2007. Tese de Doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas. USP. FFLCH, DLCV. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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HOMENS DE ESPADA E DE PENA: COMANDANTES DE FRONTEIRA E CONTROLE DE CIRCUITOS DE COMUNICAÇÃO NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (1790-1812)50 Adriano Comissoli Esta comunicação analisa o papel dos comandantes militares da capitania do Rio Grande de São Pedro dentro da rede de inteligência estabelecida para vigiar e espionar seus vizinhos espanhóis na bacia do rio da Prata em inícios do século XIX. Eles formavam o nodo de um circuito de comunicação que conectava espiões e batedores destinados a obter notícias em cidades hispano-americanas, às altas autoridades da monarquia portuguesa, responsáveis por determinar sua agenda geopolítica. Cabialhes designar os espiões, bem como selecionar e sintetizar as informações alcançadas por meio de correspondência e de relatos orais. Este trabalho integra o projeto de pesquisa “Pelas notícias que me trouxeram os espias que tenho no campo espanhol: espiões, redes de informação e guerra na fronteira platina (séc. XVIII e XIX)”, em desenvolvimento. Até o momento efetuou-se o levantamento dos maços de número 1 a 8 (1790 a 1804) do fundo Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e da correspondência do governador Paulo José da Silva Gama, publicada em 2008.51 A consulta do se estenderá até o maço 33, alcançando o ano de 1812, com o fim da intervenção portuguesa sobre a Banda Oriental. Já foram identificados 130 documentos que tratam da vigilância lusitana na região platina. Dado o modo de arquivamento estes documentos compõem-se de número variável de cartas. Comunicação política é um tema bastante amplo, ainda mais em se tratando do “império de papel” português, como o apelidou António Manuel Hespanha.52 A alcunha se deve não à fragilidade do construto político, mas ao fato de que, em considerável medida, o mesmo era governado pelo fluxo constante de cartas que se dirigiam de Lisboa para as possessões em diversas ilhas e continentes e destes para a Corte. A correspondência e, por meio dela, a escrita eram atividades cruciais na administração de espaços tão distantes, mas que se mostravam interligados. Sobre o tema, felizmente, temos contado contribuições importantes como as de Bicalho, de Frazão, de Santos e do projeto coletivo coordenado por Fragoso.53 Todos estes esforços demonstram como a ida e vinda de papéis construíam uma governabilidade. Contribuo considerando a comunicação política junto ao fenômeno da fronteira platina, pois possibilita uma perspectiva particular devido à existência de uma bem elaborada rede de informações que buscava coletar e repassar informações desde as possessões espanholas. Trocando em miúdos, falo de espionagem, cuja obtenção de informações se divide em dois tipos. O primeiro consiste em utilizar patrulhas e batedores avançados que, circulando pela região da campanha entre a capitania do Rio Grande de São Pedro e a Banda Oriental, procuram pela movimentação de tropas espanholas e localização de criminosos fugitivos. O segundo método é o dos espias localizados em cidades hispânicas com a finalidade de manter as autoridades portuguesas devidamente atualizadas tanto de iniciativas militares quanto dos humores políticos, elemento essencial nos agitados anos das duas primeiras décadas do século XIX. O vocábulo espia significa claramente espião, pois é descrito pelo dicionário de Raphael Bluteau como “O que anda desconhecido entre os inimigos, para descobrir os 50

Esta investigação contou com apoio Auxílio Recém-Doutor da FAPERGS. MIRANDA, Márcia Eckert & MARTINS, Liana Bach (coord). Capitania de São Pedro do Rio Grande: correspondência do Governador Paulo José da Silva Gama 1808. Porto Alegre: CORAG, 2008. 52 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. 53 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FRAZÃO, Gabriel Almeida. Amizade no papel: Antônio Vieira e suas relações de sociabilidade. Niterói: Dissertação de mestrado/PPGH-UFF, 2006. SANTOS, Marília Nogueira dos. Escrevendo cartas, governando o império: a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no governo-geral do Brasil (1691-1693). Niterói: Dissertação de mestrado/PPGH-UFF, 2007. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (2009). Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII, Tempo, v. 14, n.27, pp. 36-50. 51

34 ISSN 2358-4912 seus intentos, & para dar aviso aos seus”.54 Hoje minha atenção se volta aos comandantes com quem tais informantes trocavam mensagens orais e escritas. Embora o Rio Grande de São Pedro, no extremo sul da América lusa, formasse um único espaço de fronteira com os domínios espanhóis do vice-reino do rio da Prata seus administradores entendiam que o mesmo era composto por subdivisões. Repartiam a região em dois pólos: a fronteira do Rio Grande e a do Rio Pardo. Cada uma delas tinha por centro de comando as povoações de mesmo nome. A primeira localizava-se na área mais ao sul da capitania, onde em 1737 fora fundado seu primeiro presídio militar. Até 1763 – ano da invasão espanhola – Rio Grande servira de centro administrativo e capital. A segunda geria a porção ocidental. Rio Pardo fora o núcleo populacional luso mais a oeste na região até 1801, quando a incorporação dos sete povos missioneiros da margem esquerda do rio Uruguai adicionou um vasto território. Das duas localidades partira a maior parte das correspondências localizadas até o momento e que esgotam o intervalo 1790-1804. A maior parte das missivas, portanto, fora redigida justamente pelos comandantes de fronteiras e direcionadas ao governador da capitania ou ao seu ajudante de ordens. Os dois comandantes de fronteira desempenharam o papel de nodos da rede, aglutinando as notícias que lhes chegavam de diferentes canais: bilhetes e cartas de seus subordinados, relatos orais de batedores, questionamento de viajantes e informes diversos. Todos os canais eram válidos para manter-se a par do que ocorria no sul da América, no Rio de Janeiro e mesmo na Europa. Manuel Marques de Souza nascera no Rio Grande de São Pedro em 1743, filho de imigrantes do Reino. Pertencia à primeira geração de sua família nascida na América. Em carta ao príncipe Dom João, em 1801, logo após obter uma vitória militar sobre o quartel espanhol de Serro Largo, declarou haver iniciado seus serviços militares em 1769 (aos 26 anos) sentando praça de “Tenente dos Voluntários escolhidos com soldo”.55 Sua participação nas fileiras seguiu até o fim de sua vida em 1822, quando desfrutava a mais alta patente das tropas regulares, a de tenente-general. Neste longo intervalo o oficial –que nunca fora soldado – participou das inúmeras operações bélicas que opuseram vassalos de Portugal e de Espanha no quinhão meridional da América. A partir de 1777, quando se estabeleceu a paz de Santo Ildefonso, ele passou ao posto Comandante da Fronteira do Rio Grande. Na mesma altura fora nomeado para comandar a Fronteira do Rio Pardo o tenente-coronel Patrício José Correia da Câmara. Ele nascera a bordo de um navio que transportava seus pais ao Reino, sendo batizado na freguesia de Santo Elói em Lisboa. A exemplo de Marques de Souza, também gozou de longevidade, falecendo em 1827 com quase noventa anos de idade e como seu contemporâneo deu início a um importante tronco familiar sul rio-grandense, o qual frequentemente destinou seus integrantes masculinos à vida militar. Patrício sentou praça ainda em Portugal, tendo servido no Estado da Índia antes de ser remanejado ao do Brasil. Aderiu à causa da emancipação brasileira em1822 e quatro anos depois foi elevado à Visconde de Pelotas com grandeza. Antes das distinções, contudo, Correia da Câmara e Marques de Souza foram comandantes militares. E, a julgar pelas cartas que trocavam, amigos (“Meu Antigo Amigo e Senhor do meu coração”).56 Nascidos em boas famílias iniciaram suas experiências nas tropas já nas colocações de oficiais. Os homens bem nascidos que se dirigiam à vida militar não ingressavam como praças e soldados, a qualidade social atribuída a seu nascimento lhes garantia a inserção em postos de comando, fazendo com que as forças regulares reprisassem a hierarquia da sociedade. Era virtualmente impossível que um praça humilde galgasse posições até o alto oficialato. Ser um oficial militar significava bastante na sociedade sul rio-grandense porque significava bastante na monarquia portuguesa. Certamente não se aproximava de um verdadeiro título de nobreza, mas reconhecia a distinção social de seu portador. É indício desta a prática de integrar a patente militar ao nome do sujeito, como uma espécie de título. A constatação vale não apenas em documentos de ordem militar, mas nos mais diversos registros produzidos como menções da Câmara municipal, inventários post-mortem e registros eclesiásticos. Esse panorama levou Saint-Hilaire a escrever em seu diário que no extremo sul “os homens apenas são considerados pelas suas patentes militares, e os funcionários civis e os juízes não gozam da menor consideração”, destacando o papel de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez e Latino (...),Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de JESUS, 1712. AHU-RS. Requerimento de 19 de maio de 1802. 56 AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 38. 55

35 ISSN 2358-4912 árbitro de conflitos que cabia aos oficiais.57 Embora a desconsideração dos juízes pareça questionável as patentes militares desempenhavam seu papel na gestão cotidiana da sociedade lusa, mantendo-o posteriormente na brasileira. Os oficiais militares do Rio Grande eram em grande número. De fato, eram em número demasiado. Tiago Gil percebeu que havia capitães que não dispunham de homens para comandar, mas que ostentavam a patente com altivez. Segundo ele nas companhias de Milícias e de Ordenanças do distrito de São Francisco de Paula, em 1824, só havia o capitão, sendo a segunda considerada “imaginária”, devido à falta de homens. “Ou seja: capitães havia, e por todas as partes, mesmo sem ter quem comandar”.58 Desenvolvi esta ideia com a ajuda de dois mapas das forças militares. O mapa das tropas de 1ª linha indica um corpo de 1.088 homens para o ano de 1805, sendo que 174 destes postos estavam vagos. Portanto, o efetivo contava 914, dos quais 47 compunham ao alto oficialato (alferes, tenentes, capitães, tenentes-coronéis, coronéis, brigadeiros e marechais), ou seja, uma proporção de um oficial para cada 18,4 praças. No mapa da cavalaria miliciana para o mesmo ano os oficiais estavam em um para cada 34 subordinados.59 É recorrente na literatura histórica a apresentação de serviços ao rei de Portugal por parte dos oficiais das tropas regulares. Em casos como o do Rio Grande de São Pedro estes se tornavam uma lista longa, pois devido aos inúmeros confrontos com os espanhóis as oportunidades de destacar-se com bravura no real serviço se multiplicavam. Manuel Marques de Souza, por exemplo, contava participações na guerra de retomada da vila de Rio Grande em 1776, na anexação dos povos missioneiros em 1801, na intervenção sobre a banda Oriental em 1811-12 e nas ações de contenção às forças de José Gervásio Artigas, que encerraram-se em 1820. Patrício José Corrêa da Câmara dispunha de folha de serviços semelhante, acrescentando seus anos na Índia. Para minha análise considero que a anexação do território missioneiro em 1801 foi não apenas uma ofensiva militar, mas igualmente uma ação de infiltração. Mediante contatos prévios os portugueses apoiaram a revolta de caciques guaranis insatisfeitos com a administração espanhola das reduções. Essas tratativas permitiram um entendimento que propiciou o sucesso das armas de Sua Majestade Fidelíssima e as hostilidades se desenvolveram dentro do panorama da chamada Guerras das Laranjas, que mais uma vez opôs Portugal e Espanha. Para Guihermino César o bom desempenho na operação americana deveu-se “antes de tudo à ação premonitória do comandante da fronteira de Rio Pardo, o citado Ten.-Cel. [Patrício José Correia da] Câmara. Graças à sua compreensão e hábeis providências, incorporaram-se” aqueles terrenos.60 Ação premonitória é um termo demasiado forte. Prefiro considerar que Correia da Câmara estava a par das possibilidades oferecidas pelo agressivo panorama sul americano e europeu. A troca de correspondência que teve com o amigo Marques de Souza demonstra exatamente isto. Ambos tiveram compreensão do momento e tomaram hábeis providências, mas interessa-me entender como estas foram socialmente possíveis. A compreensão obtida por estes agentes históricos requeria inteirar-se do que ocorria e esta condição demandava obter informações precisas e atualizadas. Da mesma forma, implicava selecionar e sintetizar os relatos que chegavam de diferentes fontes. Não localizei menções aos espias e bombeiros portugueses antes de 1801, mas surgem no decorrer das operações bélicas deste ano. Uma carta de Marques de Souza, já no final da guerra, a Correia da Câmara, em 11 de dezembro, anuncia a possibilidade de uma investida espanhola, o que sabia pela

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parte que me dá o meu Tenente-Coronel, tanto do Exército inimigo ir retrogrando [sic.] a marcha, como não terem os bombeiros avistado pelas Coxilhas do Jaceguai a partida do Quintana, o qual

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SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 64. 58 GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho. Tropeiro e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Rio de Janeiro: Tese de doutorado PPGHIS UFRJ, 2009, p. 222. 59 COMISSOLI, Adriano. Ajudado por homens que lhe obedecem de boa vontade: considerações sobre laços de confiança entre comandantes e comandados nas forças militares luso-brasileiras no início do oitocentos. In. MUGGE, Miquéias e COMISSOLI, Adriano (org.). Homens e armas: recrutamento militar no Brasil – século XIX . São Leopoldo: Oikos, 2011. 60 CÉSAR, Guilhermino. CÉSAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período Colonial. História. Porto Alegre: Globo, 1970, p. 216.

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ISSN 2358-4912 asseguram ir muito falto de Cavalhada. Penso que o seu destino será fazer frente à Fronteira do Rio 61 Pardo para não perderem mais terreno e que talvez já tenham a notícia da Paz, como creio

Marques de Souza atentara aos movimentos inimigos anteriormente. Em 14 de novembro escrevera ao brigadeiro e governador interino Francisco João Roscio: “posso dar a V.S. uma conta exata do nº de Tropa alistadas que tem os Espanhóis em Buenos Aires, Distrito da Colônia, Montevidéu, e Maldonado, cujo alistamento excede a 5.000 praças; e não conto os Santafesinos, Cordoveses, Paraguaios e de onde tem baixado muita gente”.62 Uma informação tão segura e precisa era resultado da troca de mensagens com os informantes que viviam nas cidades citadas e com os vigias que adentravam os campos vizinhos. Os informantes são geralmente mencionados quando os comandantes de fronteira escrevem ao governador informando notícias que deles receberam. Podiam se tratar de cartas de oficiais, bilhetes, relatos orais de batedores ou correspondência de sujeitos que habitavam nas cidades espanholas. Em certos casos ocorria de enviarem periódicos para dar crédito ao que noticiavam. Outros expedientes eram utilizados pelos comandantes para apurar o que se passava. Sendo Rio Grande uma localidade portuária Marques de Souza ordenava que se interrogassem os capitães e a tripulação de embarcações que chegassem ao porto e em certa ocasião não se furtou a recorrer às relações particulares: “do Rio de Janeiro chegou a minha vizinha com dez dias de viagem; houveram diferentes notícias; as quais ainda recebo por peta e precisam quarentena".63 O cuidado com a veracidade das notícias é um item particularmente caro ao sistema de informações português e os comandantes não desdenhavam a necessidade de diferenciar notícias seguras de outras que requeriam confirmação. Em ofício ao brigadeiro Roscio, datado de janeiro de 1803, o sargento-mor Joaquim Félix da Fonseca, comandante de uma das guardas da região de Missões, demonstra que não era fácil separar o joio do trigo quando se tratava de notícias oriundas de diversas fontes. Ao relatar que os espanhóis se concentravam “nesta fronteira”, a do Rio Pardo, ele recomendava precaução ainda que não houvesse manifestações hostis. Ainda que eu não tenha podido descobrir indícios alguns, pelos quais se possa julgar com probabilidade terem os Espanhóis intenções sinistras, e demonstrativas de algum próximo rompimento, não deixo, contudo, de observar, que eles agora estão mais impertinentes, e que dificultam mais a comunicação, a qual dantes admitiam mais franqueza. Não obstante eles não têm até agora reforçado, nem aumentado as guarnições dos Passos do Uruguai antes pelo contrário, as mesmas guarnições se tem diminuído pela deserção de gente, que guarnecia os ditos Passos, em consequência do que os mesmos Espanhóis tem dito várias vezes, que esperavam nova Tropa que estava em marcha para mudar estas guarnições. Esta, porém, e outras semelhantes asserções não se podem acreditar com segurança, nem tão pouco, notícias que lhes dão poucos verossímeis, muitas 64 vezes contraditórias .

Como se depreende do trecho final era preciso estar vigilante não apenas para a obtenção de notícias como para o teor das mesmas; os relatos desencontrados e opostos surgiam com frequência. A incerteza da credibilidade de uma notícia, contudo, não a fazia ser descartada. Em carta a Patrício José Correia da Câmara o mesmo Fonseca comenta que “A eficácia nos avisos e comunicação recíproca das novidades, e a indispensável prontidão em se concorrer a qualquer ponto, aonde se avise ser preciso, julgo ser o meio mais consequente que a defesa desta Fronteira”.65 Ao Ajudante de Ordens do governador, José Inácio da Silva, Fonseca escrevia na mesma época informando que a fronteira estava tranquila, mas que “tive, não obstante, os dias passados, algumas notícias dadas por um Espanhol, que esteve neste Povo, e afirmou, que em toda a Povoação de B. Aires, em Paraguai, Correntes, Galeguay [sic.], havia muitos preparativos de guerra”. Ele mostrou-se cético, demonstrando que a triagem de informações era atravessada pela avaliação dos oficiais encarregadas de juntá-las, já que “Parecem incombináveis as referidas notícias com o estado de tranquilidade, e inalteração da Fronteira”. 61

AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 38. AHRS, Autoridades Militares, maço 1, doc. 27. 63 AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 15. 64 AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 10. 65 Idem. 62

37 ISSN 2358-4912 Contudo, a estimativa de novo conflito buscava ser cuidadosa, pesando prós e contras, pois “apesar desta incoerência, acho que não devem desprezar-se as ditas notícias, nem tão pouco a voz vaga e quase geral de que as intenções dos Espanhóis são de reconquistar estes Povos”.66 A preocupação em oferecer diferentes versões e acrescentar às mesmas a sua leitura não era algo de pouca repercussão no que se refere à obtenção de informações. Joaquim Félix da Fonseca escrevia a três importantes figuras da capitania: o comandante de uma de suas fronteiras, o ajudante de ordens do governador e este próprio, ainda que interino. Os dois primeiros, reunindo ainda outras informações as repassavam ao último, responsável por emitir um parecer o mais detalhado e cuidadoso ao vice-rei no Rio de Janeiro que repassaria o mesmo à Corte. Portanto, o cuidado em apurar a veracidade dos vários e contraditórios relatos levava os oficiais militares a escutar mesmo os simples rumores e as notícias vagas. Em carta também de 1803, Patrício José Correia da Câmara comunicava-se com o governador interino Roscio, lembrando recomendações que ambos receberam do falecido governador anterior, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Patrício recordava foram alertadosa para "não desprezar todos os meios de poder adquirir quaisquer notícias da parte dos Espanhóis para com elas se combinar a seriedade dos acontecimentos, e cujas notícias ou verdadeiras ou ainda adulteradas deviam seguir à sua Presença".67 Esta passagem oferece indícios importantes. Primeiro, que a prática de espionagem e a rede de informações existia em 1801, data da morte de Sebastião Xavier, e provavelmente antes. É provável que o sistema tenha sido responsável por estabelecer o contato com os caciques guaranis que propiciaram a entrada dos portugueses na região das missões. Segundo, as notícias não deviam ser desprezadas a despeito das dúvidas sobre sua veracidade. Todas deviam ser enviadas ao governador. Terceiro, a responsabilidade de compilar as informações cabia ao último, que as recebia de diferentes fontes e, portanto, estava em posição privilegiada de contrastar os relatórios. Não raro os comandantes Correia da Câmara e Marques de Souza comentavam em suas correspondências ao governador que este teria condições de separar as verdadeiras notícias das equivocadas ao unir os pontos de vista oriundos de Rio Pardo e de Rio Grande, aos quais somente ele tinha acesso. Conclui-se o escalonamento do circuito de comunicação, o qual seguia, compreensivelmente, a hierarquia política da capitania. A rede portuguesa de informação passava por diversos pontos, havendo momentos de coleta e repasse e momentos de compilação e síntese, bem como de avaliação. Os comandantes de fronteira participavam de um destes momentos, mas eram auxiliados por outros oficiais, como Joaquim Félix da Fonseca. A correspondência entre Manuel Marques de Souza e o sargento-mor Vasco Pinto Bandeira, bastante recorrente, permite conhecer mais do processo de obtenção de conhecimento sobre o que ocorria na região de fronteira. No dia 6 de dezembro de 1804 Vasco conta que se encontrava pronto a despachar uma patrulha quando chegou “o nosso Muniz a dizer-me que o Tenente-Coronel [espanhol] já saiu e traz oito peças de Artilharia cujo calibre ignora; e que isto soube por carta que veio no Correio”.68 A ignorância sobre o destino da partida espanhola punha os oficiais em polvorosa. O mencionado Muniz (cuja identificação não é mais completa) serviu neste caso de mensageiro e é interessante notar que fora informado pelo correio, por carta. De quem e de onde, desconheço. Vasco, por sua vez, ponderou e pôs-se alarmado: "Estas invariáveis notícias me fazem cada vez estar mais cuidadoso e inquieto, e principalmente sendo ditas por este que sempre me tem falado a verdade. Agora mesmo o despacho a ir encontrar essa gente e com a sua visita certificar-se do que trazem e o nº da gente”. O “nosso” Muniz era, para Vasco, confiável por sempre falar a verdade, o que indica que agia como olheiro com alguma frequência. As notícias seriam, portanto, críveis. Mas mais detalhes eram necessários e o informante fora enviado a apura-los até por que “O homem que mandei a Montevidéu até agora não aparece pode ser ter lhe acontecido alguma coisa que o embaraçasse a voltar, e por esse motivo não tenha vindo com a notícia como esperava”. Finalmente, Vasco solicitou ao comandante Marques de Souza passagem à povoação espanhola de Serro Largo para “certificar-me da verdade destas notícias, e ainda até ontem fui convidado pelo Comandante para que lá fosse”.69 Em 27 do mesmo mês Vasco anunciava que passava pela guarda portuguesa de Serrito a partir da qual "às 9 horas do dia logo passei ao outro lado [os domínios espanhóis] entrando a dar princípio de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 13. AHRS, Autoridades Militares, maço 3, doc. 35. 68 AHRS, Autoridades Militares, maço 7, doc. 130. 69 Idem. 67

38 ISSN 2358-4912 adquirir algumas notícias, encontrei um Espanhol estancieiro da costa do Rio Negro”. Depois consultou “um contrabandista que diz saíra de Montevidéu a doze dias” e “agora espero do Serro Largo para onde mandei dois sujeitos por diferentes caminhos; que conforme a notícia que trouxerem” Vasco se dirigiria àquela localidade a convite do comandante espanhol. Como se percebe mais uma vez, toda a fonte de informação era válida, não importa sua origem. Estancieiros espanhóis, contrabandistas, sujeitos enviados na frente da partida e homens encarregados de buscar notícias em Montevidéu implicam na diversificação de caminhos da informação e na complexa ação de agrega-la de forma eficiente e verossímil. Valendo-se de meios diversos o sargento-mor português alcançou novidades sobre as movimentações espanholas que alguns dias antes o preocuparam, sendo “daqui (...) as notícias que pude alcançar agora”.70 O comandante Manuel Marques de Souza juntando as várias notícias repassou-as ao governador da capitania. A mobilização espanhola terminou por ser uma expedição punitiva aos índios charrua e minuano, a fim de coibir o roubo de gado. Contudo, seu volume fez as forças portuguesas se colocarem em prontidão, o que demonstra que cada ação na fronteira era acompanhada de reação tão rápida quanto possível. Estas percepções colocam matizes mais vivos à ideia de paz tensa vivida no território do sul da América no período. Quantos aos comandantes e outros oficiais eles tinham por incumbência uma tarefa tão importante quanto o combate efetivo: a redação de cartas que permitiam a administração e vigilância sobre a região de fronteira. Coletando e repassando informes abasteciam, por meio do fluxo de correspondências do “império de papel”, as altas esferas em Lisboa, que desenhavam os planos portugueses para a região do rio da Prata. As penas destes oficiais militares se mostravam mais fortes que suas espadas, na medida em que as primeiras eram responsáveis por determinar quando as segundas seriam desembainhadas.

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AHRS, Autoridades Militares, maço 4, doc. 130A.

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GUERRAS E MISSÕES NO EXTREMO NORDESTE DO BRASIL: A AÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE CONQUISTA Adriel Fontenele Batista O artigo que o leitor tem em mãos está voltado para a compreensão de um dos aspectos relacionados à experiência histórica dos jesuítas no evento de conquista do rio Paraíba, então ocorrido entre o ano de 1584 e 1587. A como fonte principal desse estudo é o documento que hoje conhecemos como Sumário das Armadas, que foi produzido ao longo do período de guerras por padres jesuítas que participaram ativamente de vários eventos relacionados à conquista daquela região. Neste artigo tratamos de uma das dimensões discursivas do evento de conquista, que foi a construção de um sentido para os eventos narrados pelos jesuítas em relação a um passado recente de guerras na região do rio Paraíba – passado no qual os autores não estavam incluídos - e um presente em que a missão jesuítica da Paraíba, apesar da sua participação efetiva nas guerras de conquista daquele tempo, se via ameaçada. Passemos a isso.71 Conforme apontou Regina Célia Gonçalves, os conflitos entre os portugueses e as populações indígenas na região norte da capitania de Itamaracá estão implicados num conjunto de outros eventos que antecedem mesmo as guerras descritas diretamente no Sumário das Armadas. Segundo a autora, os antecedentes das guerras de conquista na região ao norte da capitania de Itamaracá e possivelmente já na região do rio Paraíba, remontam à década de 1560, quando os índios Potiguara teriam rompido as relações de colaboração que mantinham até então com os portugueses na região.72 Tal consideração encontra respaldo no primeiro capítulo do Sumário, onde que se pode ler : “os negros petiguares (o maior em número, e como já disse, o mais guerreiro gentio do Brasil) de vinte anos a esta parte corriam todas as fronteiras de Tamaracá”73. De acordo com a narrativa dos jesuítas, as expedições militares oficiais e particulares que antecediam a efetiva conquista não haviam surtido nenhum efeito positivo, como se pode ler no trecho que toca brevemente as ações de Antônio Rodrigues Bacellar, à época capitão da ilha de Itamaracá, que teria dado guerra aos índios da região do rio Paraíba: “estas e as outras [guerras] nunca serviram de mais que os fazer [aos índios] destros, ensinando os a pelejar”.74 O tempo que antecede as guerras oficiais na região é, portanto, composto pelos jesuítas como um quadro de abandono, desordem e degradação, preparando a entrada das autoridades coloniais e da própria Companhia de Jesus naquela história. Era sobre uma capitania de Itamaracá marcada pelo perigo, pelos prejuízos e em franco despovoamento que ocorria a ação desenfreada da “gente miúda” que, “sem mantimentos, nus como selvagens e sujeitos a todas as perseguições e misérias do mundo, se metem os homens duzentas, trezentas e quinhentas léguas pelo sertão dentro, servindo ao diabo”75. Embora a descrição jesuítica da terra aponte para suas qualidades excepcionais (especialmente no que concerne ao aproveitamento do pau-brasil e o cultivo da cana), o “antes” da conquista é descrito como um tempo de desordem política, de degeneração moral dos homens e de ruína da própria sociedade no âmbito local. A cena inicial da conquista tem, portanto, como pano de fundo, uma sociedade definhando por dentro e por fora sob o estado de guerra permanente contra os índios, com pouca ordem e nenhuma virtude em uma terra em que a natureza era essencialmente má e que piorava a má índole das gentes: [os índios] são muito falsos e inclinados a enganos e aleives e é tão próprio e natural isso do clima, e terra do Brasil, que logo se pega e tem já pegado a quase todos os brancos naturais do Brasil, antes a 71

Grande parte da discussão presente nesse artigo já foi publicada em: BATISTA. A. F. O Sumário das Armadas: guerras, missões e estratégias discursivas na conquista do rio Paraíba. EDUFRN, 2003. 72 Ver o tópico O pau de tinta e o cativeiro ou os antecedentes da conquista, em: GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na capitania da Paraíba -1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007.p. 49-64. 73 Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983, p. 29. 74 Ibidem. 75 Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983; FURNE, 1983, p. 30.

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ISSN 2358-4912 todos, que a ruim semente que lhe a principio, lançaram do limoeiro de Lisboa e das outras cadeias do reino, piorou ainda mais esta natureza ruim. E assim se deve fazer pouco fundamento dos ditos 76 do Brasil, como não forem de pessoas mui qualificadas na virtude.

Em relação à estrutura do documento, o “antes da conquista” abarca os três primeiros capítulos. O primeiro produz um ponto de partida para a sucessão de eventos que levam à conquista e mistura as especificidades da geografia local e diferentes descrições sobre os índios da região com informações gerais a respeito da colônia e do estado de danação em que os homens e as capitanias se encontravam inicialmente. O segundo e o terceiro capítulo tratam do tempo em que ocorreram as primeiras expedições oficiais e particulares à região do rio Paraíba, mas ainda sob o signo da desordem.77 A primeira expedição, tal como descrita, ocorreu no ano de 1574 e foi comandada pelo ouvidor geral Fernão da Silva, por mandado do governador geral Luiz de Brito. De acordo com os jesuítas, essa armada oficial e pioneira havia saído da Bahia com um triplo objetivo: castigar o gentio Potiguara, expulsar os franceses da região e escolher um lugar junto ao rio para fundar povoação. Não há muitas informações acerca dessa expedição; o relato é breve e termina com uma descrição que se pode dizer irônica, retratando um oficial da importância do ouvidor geral Fernão da Silva, que fora à região para castigar os índios, correndo deles: “a voltar pela praia que não houve vagar para nada.”78 No mesmo capítulo aparece a armada sob o comendo do governador Luiz de Brito de Almeida, em setembro de 1575, que seria a maior já preparada até aquele momento. Segundo a narrativa, essa armada havia partido “com toda gente que pode ajuntar, levando toda a nobreza da cidade, oficiais da justiça e fazenda, com todos os petrechos e mantimentos necessários, enfim com o maior aparato de capitães e soldados e recado das mais coisas que lhe a ele foi possível ajuntar”.79 Contudo, à grandiosidade da empresa corresponde uma proporcional descrição de fracasso e prejuízo, pois, conforme se pode ler no mesmo capítulo, a armada havia tomado ventos contrários ao cabo de alguns dias e voltado à Bahia sem sequer aportar em Pernambuco ou na região do rio Paraíba. A narrativa volta-se, portanto, para a fazenda real gasta na armada, “desfeita em ar, sem mais lembrança do Parahiba”. A última expedição descrita ainda no segundo capítulo teria acontecido no ano de 1578, encomendada pelo governador Lourenço da Veiga, na qual haviam tomado parte o ouvidor geral Cosme Rangel de Macedo e o provedor mor da fazenda Cristóvão de Barros. Segundo a narrativa, esses esforços também não teriam surtido efeito, com que os “maiores” ficaram recolhidos à ilha de Itamaracá, “avisando-o sempre, e procurando fazer jornada, mas não houve efeito”. No final desse capítulo, a narrativa apresenta um pequeno remate80, que é a chave de interpretação das virtudes cardinais do discurso jesuítico sobre a conquista da Paraíba: 76

Ibidem; capítulo 1, folha 19; FURNE, 1983, p. 27. Os limites entre a oficialidade e não oficialidade das expedições de conquista narradas no Sumário são tênues, pois todas foram ordenadas por um monarca: inicialmente por D. Sebastião, depois pelo Cardeal D. Henrique (à época, rei de Portugal e sucessor de D. Sebastião) e, depois de 1580, por Felipe II de Espanha. Todavia, como veremos adiante, o lugar social do expedicionário, oficial ou civil, acaba sendo relevante para o reconhecimento ou a negação das mercês relativas à conquista. Conforme se lê no Sumário, as “expedições oficiais” são as comandadas diretamente por oficiais da Coroa; as não oficiais, por sua vez, eram as comandadas por particulares que, mesmo estando no cumprimento de ordens reais, representam a concessão régia de um privilégio a um civil. 78 A principal personagem da história contada pelos jesuítas era Martim Leitão, que detinha a patente de ouvidor geral no tempo em que o Sumário era escrito. Isso nos leva a considerar que a informação sobre a suposta debandada desonrosa do ouvidor geral Fernão da Silva não é despretensiosa e participa da construção da imagem do ouvidor geral Martim Leitão como herói que havia, supostamente, superado a todos do passado de guerras na região. Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 2, folha 24; FURNE, 1983, p. 33. 79 Ibidem. 80 Assim como a tópica exordial, a tópica do remate também fazia parte do arsenal de estratégias retóricas de que dispunha um homem instruído no século XVI. No remate, a escrita retoma os principais pontos já apresentados no início, geralmente apelando para a comoção do leitor. Segundo Robert Curtius, a função do remate na Idade Média era basicamente didática, era a informação para o leitor (que geralmente lia para um público) de que o texto chegava ao fim. O remate era aplicado diretamente ao final do texto escrito, mas, quando esse texto era formado por capítulos, poderia ser utilizado em determinadas zonas que encerram um conjunto de orações, formando etapas cumpridas pela escrita. Ver: A tópica, em: CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, São Paulo, Hucitec: Edusp, 1996. p. 121-156. 77

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ISSN 2358-4912 [...] e parece que Nosso Senhor a tinha guardado [a conquista] para o tempo, em o qual havia de haver quem a procurasse de toda a força de coração, e se concluísse, e escusasse o muito cabedal e excessivos gastos, que os oficiais de fazenda de Sua Majestade nesta empresa sempre fizeram, e 81 davam em despesa, para ostentação e seus intentos mais que para alcançar efeito.

O tempo da conquista (que somente se inicia no capítulo 4) já aparece anunciado no trecho acima: seria um tempo novo, delimitado antes pelo destino (Nosso Senhor), para um herói espetacularmente virtuoso que comandava a empresa de conquista, um homem que se faz representar nesse discurso como destinado a realizar a empresa de conquista com toda força, coração82 e com zelo nas coisas da fazenda de El Rey. A força necessária e o espírito valoroso aparecem nessa última parte do texto como as virtudes de um herói conquistador que ainda não fora mencionado diretamente, mas que acaba sendo desvelado ao longo do discurso jesuítico.83 O fracasso84 das primeiras guerras é, portanto, resultante da ausência da virtude entre os homens que haviam tentado realizar a conquista da região antes do ouvidor geral Martim Leitão, homens supostamente incapazes de realizar uma conquista daquela grandeza, devido a suas fraquezas morais e espirituais. Delimita-se, nesse ponto, a passagem para o capítulo que trata das duas tentativas de conquista comandadas por Frutuoso Barbosa, no ano de 157985 e 1582. Na primeira expedição de Frutuoso Barbosa, ainda durante o reinado de D. Henrique, a empresa era particular, movimentada pela promessa da patente de governador por dez anos logo que fosse garantida a povoação e fundada a nova capitania. Segundo se pode apreender da narrativa dos jesuítas, essa era uma expedição que tinha tanto o financiamento da Coroa portuguesa quanto o investimento de cabedal do próprio concessionário. Na segunda tentativa, no tempo do rei Felipe II, Frutuoso Barbosa parece já não ter recursos próprios para a expedição, daí que os custos foram por conta da fazenda real. Seja como for, as expedições comandadas por Frutuoso Barbosa eram de iniciativa particular, com autorização e financiamento da Coroa, mas ainda assim comandadas por um civil em busca de mercês régias. Foi, muito possivelmente, por esse fato que a autoridade de Barbosa enquanto conquistador acabou sendo, repetidas vezes, contestada pelos oficiais da Coroa envolvidos na empresa. De fato, segundo se lê no quarto capítulo do Sumário, Frutuoso Barbosa não foi declarado capitão do forte de São Felipe e São Thiago (primeira praça de guerra da região do rio Paraíba) como queria, porque o general Diogo Flores de Valdez,

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Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 2, folha 25; FURNE, 1983, p. 33. 82 O “coração” é uma alegoria literária, uma metáfora da interioridade que é habitada pelo espírito. Para usarmos um termo de Fernando de La Flor: “ uma das moradas da alma” concebidas no pensamento e na literatura religiosa do século XVI. Ver: DE LA FLOR, Fernado R. Las sedes del alma: La figuracion del espacio interior en la literatura y en la arte. In: ____. La península metafísica: arte, literatura y pensamiento en la Espana de la Contrareforma. Madri: Editora Biblioteca nova, 1999, p. 201-237. 83 O tipo heroico não aparece ainda diretamente nos capítulos do documento. Entretanto, fora dos capítulos o nome de Martim Leitão já aparece nos quatro sonetos que emolduram (moldura como parte da obra, não à parte dela) o Sumário das Armadas. Nas peças, todas de caráter encomiástico, Martim Leitão é comparado aos grandes generais da história e da literatura do Ocidente. Exploraremos alguns trechos dos sonetos mais adiante. 84 O fracasso é um ponto de vista que se pode apreender no discurso dos jesuítas e é esse ponto de vista que está sendo explorado no nosso estudo. Essas primeiras expedições devem ter contribuído para a construção de informações úteis sobre a região e sobre os próprios índios e seus modos de guerrear, informações que devem ter sido aplicadas nas guerras seguintes. Retomando aqui uma ideia que nos foi apresentada informalmente por Gonçalves, um know-how ou “tradição de guerra e de conquista” deve ter-se formado entre os homens daquela sociedade desde as guerras contra os índios Kaeté de Pernambuco e continuada e reforçada nas guerras do rio Paraíba. 85 Vale lembrar que a data da expedição é mencionada com incerteza pelos jesuítas. Ela pode ter ocorrido, na verdade, no ano de 1580. Seja como for, o que é relevante para nossa argumentação é que as expedições de Frutuoso Barbosa aconteceram no período de transição da Coroa portuguesa para a formação da União Ibérica sob o reinado de Felipe II de Espanha.

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ISSN 2358-4912 [...] ao vê-lo ir na armada, como pessoa privada, com pouca conta e respeito,por outras razões que Ihe-pare-ceram, e suas provisões dizerem que El Rey o fazia capitão quando ele a conquistasse (o que ele não fizera) lhas não guardou; remetendo ao exército português elegesse cabeça para os portugueses.

Tornando à lógica estrutural do discurso jesuítico, vale observar que as virtudes cardinais do evento de conquista já haviam sido apresentadas no segundo capítulo, fazendo com que, no terceiro, ou seja, na narrativa sobre a expedição de Frutuoso Barbosa, o leitor do Sumário se deparasse justamente com a ausência dessas virtudes. Notemos que a forma como se descreve a primeira expedição comandada por Barbosa não deixa dúvidas de que os jesuítas não o tinham em boa conta, e a vilanização da sua imagem toma corpo no decorrer da narrativa: “com muitos resgates, munições, petrechos e coisas do armazém necessárias assim à conquista” e que “devia de montar um mui grande pedaço, com que vendo se infunado86 e cheio de senhoria, e subido a tal estado se vazou todo por ali se esquecendo da obrigação que trazia”. Seguindo a mesma lógica, a segunda expedição de Frutuoso Barbosa começa com a lembrança da suposta falta cometida por ele na primeira. De acordo com os jesuítas, Frutuoso Barbosa chegava novamente a Pernambuco, “por mandado de El Rey D. Philippe nosso senhor, já com menos arrogância se consertou com os da Villa de Olinda”. A narrativa recai, nesse excerto, sobre a falta de habilidade e de vontade de Frutuoso Barbosa para conduzir a empresa de conquista do rio Paraíba. Em alguns trechos, aparecem supostos erros de manobras táticas durante a marcha de guerra, a falta de comando e a “desordem tamanha”, que teriam levado muitos homens à morte, inclusive um filho do próprio Frutuoso Barbosa. Os jesuítas não deixam de dar sua opinião sobre a causa do fracasso, remetendo-a, mais uma vez, à falta de virtude daquele pretenso conquistador: [...] e não sei como feito, pelos inconvenientes e impossibilidades que a tudo achava Frutuoso Barbosa. Fugiram a maior pressa que o medo a cada um ensinou por verem, da banda do além, junto, muito gentio petiguar. Mandando dali o galeão com aviso a Sua Majestade do que passava, desesperado já Frutuoso Barbosa de sua vaidade, veio a lograr um novo casamento, que à sombra 87 da governação, de caminho em Pernambuco havia conseguido [...]

Vale relembrar aqui que a representação negativa da figura de Frutuoso Barbosa tem fundamento no momento de tensões políticas do período compreendido entre os anos de 1587 e 1588, que marcava a mudança do governo de João Tavares (1585-1588) para o governo de Frutuoso Barbosa (1588-1591). Sendo este contrário aos jesuítas88 e já tendo assumido (ou em vias de assumir) o governo da capitania logo após a demissão do ouvidor geral Martim Leitão, o posicionamento político dos jesuítas haveria, sem dúvida, de aparecer no Sumário. As representações negativas sobre a figura de Frutuoso Barbosa, tal como produzidas pelos jesuítas, fazem dele uma personagem ligada aos antecedentes da conquista, e não ao tempo da empresa comandada pelo ouvidor geral Martim Leitão. A partir do capítulo 4, dois elementos caracterizam uma ruptura radical com os fracassos, com as faltas e com o passado que os jesuítas constroem habilidosamente para a capitania da Paraíba. O primeiro desses elementos é a narração dos eventos que passa a ser feita sob a auctoritas de testemunhas oculares, introduzindo os jesuítas diretamente na história que contam. O segundo é a presença de um herói conquistador, representando a retomada das expedições de caráter oficial sob o comando de um homem representado como tendo as verdadeiras e necessárias virtudes para aquela empresa. 86

Algo como: envaidecido, soberbo. Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo 3, folha 32; FURNE, 1983, p. 37. 88 Não se pode dizer que o simples fato de Frutuoso Barbosa ter optado por trazer franciscanos (e não jesuítas) nas suas expedições de conquista represente uma posição contrária dele em relação aos missionários da Companhia. É, contudo, com a consideração desse fato, juntamente com a forma de representação escrita dos jesuítas sobre essa personagem no Sumário, com a denúncia de Frutuoso Barbosa ao rei, relatando sobre os desentendimentos ocorridos entre jesuítas e franciscanos em 1589 (franciscanos que o próprio Frutuoso Barbosa havia convocado no início do seu governo), e com os ataques políticos de João Tavares (ele mesmo um aliado dos jesuítas) a Frutuoso Barbosa no ano de 1589 que podemos considerá-lo dessa maneira. 87

43 ISSN 2358-4912 Na narração da primeira expedição militar comandada pelo ouvidor geral Martim Leitão, o nome de Frutuoso Barbosa ainda aparece mencionado entre as tropas, mas sempre como um empecilho real às boas e importantes iniciativas de Martim Leitão. De fato, toda citação de Frutuoso Barbosa aparece acompanhada de referências às más qualidades já imputadas a ele no capítulo anterior, qualidades que os jesuítas não cansam de relembrar a cada passagem, além de construírem outras no decorrer da narrativa: soberbo, vaidoso, desinteressado, imprevidente, impaciente e medroso.89 Outra forma de vilanização e de denúncia dos jesuítas a Frutuoso Barbosa, relativamente menos explícita, é a narração de eventos nos quais ele aparece rejeitando as determinações do comando das tropas, fazendo com que aquelas que seriam suas atribuições acabassem sendo executas por outros milicianos. Encontram-se exemplos dessa forma de denúncia indireta no capítulo 11: “instou muito o general [Martim Leitão] com Frutuoso Barbosa, para que quisesse ir duas léguas acima [...] e por autos, que se disso fizeram, desistiu de tudo, dizendo não estaria mais uma hora no Parahiba [...] e por não perder tempo mandou ao capitão João Paes”. Também no capítulo 13: “elegeram ao capitão Simão Falcão, que pareceu pessoa para isso, por Frutuoso Barbosa em nenhuma maneira querer aceitar esta empresa [...] com estar a tudo presente, do que Simão Falcão foi logo avisado”.90 Entre o quarto e o vigésimo terceiro capítulo do Sumário, aparecem relatadas todas as ações do ouvidor geral Martim Leitão, abarcando o tempo das três jornadas militares que partiram de Olinda para a região do rio Paraíba sob seu comando.91 Essa zona do texto, de acordo com a lógica do discurso jesuítico, representa o verdadeiro tempo da conquista: um tempo de vitórias sobre os inimigos e de efetivos avanços na fronteira bélica para além da margem norte do rio. O discurso jesuítico propõe, portanto, um conflito moral entre dois diferentes tempos, cada um representado por um tipo ideal de homem.92 Sob essa perspectiva, Frutuoso Barbosa representaria o passado, a falta de virtudes e os fracassos já mencionados nos antecedentes da conquista. O tempo da conquista, por sua vez, é representado pelo ouvidor geral Martim Leitão, um tempo de virtudes marcado por três vitoriosas jornadas militares, nas quais os próprios narradores haviam tomado parte. Seria um tempo também de dificuldade e empecilhos, mas caracterizado pela virtude e pela honradez daquele herói conquistador, qualidades que se refletiriam na própria conquista do espaço fronteiro e na fundação daquela capitania. Dessa forma, o capítulo 24, que é o final do Sumário das Armadas, representa o resultado dessas jornadas conquistadoras: a última cena da conquista como a imagem edificante de uma nova capitania sendo construída com o esforço de todos e, principalmente, com o sacrifício do ouvidor geral que, segundo os jesuítas, o fazia na construção da capitania “como que a fizera para si e seus filhos”. Vale a pena recuperar uma pequena parte da descrição jesuítica acerca da nova capitania: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Com isto acabarei aqui as guerras do Parahiba com seu dono e peço a Deus daqui em diante suceda assim ao mais assim ao conquistador como ao Parahiba, que já hoje tem cinqüenta moradores 89

Essas referências negativas à figura de Frutuoso Barbosa aparecem distribuídas em vários capítulos: soberbo, vaidoso e desinteressado no terceiro capítulo; imprevidente, impaciente e medroso no sexto, sobretudo na descrição dos momentos de ataque dos índios ao forte de São Felipe e São Thiago, em que se lê: “Frutuoso Barbosa, que não tinha paciência com estas escaramuças e com requerimentos de medo as estorvava, quanto podia, de dentro de sua casa que tinha no meio do forte”. 90 É interessante notar que os jesuítas não mencionam se Frutuoso Barbosa havia desistido da empresa de conquista ou de estar na praça de guerra. O episódio relatado no capítulo 13 é uma reunião de conselho sobre a empresa de conquista, realizada no Colégio dos jesuítas da Vila de Olinda; a presença de Barbosa no conselho já mostra que ele não havia desistido da empresa de conquista. Seja como for, ele só é mencionado pelos jesuítas até a dita reunião, na qual Frutuoso Barbosa havia recusado participar de uma nova expedição à região do rio Paraíba. A partir daí, Frutuoso Barbosa já não aparece no Sumário das Armadas. 91 Martim Leitão não participou da expedição comandada por Diogo Flores de Valdez, a mesma que acabou fundando o forte de São Felipe e São Thiago entre maio e junho de 1584. Entretanto, os jesuítas não poupam tinta para inscrevê-lo em todos os eventos políticos e aparatos necessários para essa expedição. 92 Para Hayden White, parafraseando Hegel, os “dramas da vida real” são enredados na escrita histórica a partir de três tipos de homens ideais, grandes, pequenos e depravados, correspondentes na escrita épica a heróis, homens medianos e criminosos. Ver: WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Lourêncio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992. Em relação aos tipos heroicos, ver o tópico Heróis e Soberanos, em: CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. p. 223-240.

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ISSN 2358-4912 casados portugueses e outros tantos solteiros, postos lá a custas de Martim Leitão, como também o foram os fortes que fez, porque com tudo isso não se gastou um real da fazenda de Sua Majestade [...] por que o que podemos sem falta afirmar que Martim Leitão deixou a capitania do Parahiba conquistada, com fortaleza e guarnição, e acompanhada e povoada de tanto número de gentio [...] e 93 assim mais segura que todas as capitanias do Brasil [...]

Escrevendo sobre o passado com vistas no seu próprio presente, a cena representada na narrativa do capítulo final é marcada por uma ausência sentida e uma presença indesejada pelos missionários jesuítas. A ausência era a do ouvidor geral Martim Leitão, que em fevereiro de 1587 havia deixado não apenas a capitania da Paraíba para se recolher em Pernambuco, mas também o cargo de ouvidor geral do Brasil. Segundo a narrativa, a dispensa do ouvidor geral Martim Leitão era uma injustiça motivada por inveja dos inimigos e pelas “más pagas do reino” a um homem que, de acordo com os jesuítas, até os índios “chorando diziam que não queriam outro ouvidor”.94 A ausência do ouvidor geral fazia da capitania conquistada, desenvolvendo-se em relativa segurança, uma imagem edificante, sem dúvida, mas instável, ameaçada pela ausência daquele herói conquistador. A cena final da conquista é, portanto, um apelo à comoção do leitor e uma petição disfarçada retoricamente, uma tentativa de mudar a realidade que, tal como representada no discurso jesuítico, era uma ameaça aos índios e à segurança de tudo o que haviam conquistado até ali. A presença indesejada, naquele contexto, era a de Frutuoso Barbosa, que havia feito uma série de requerimentos à corte de Felipe II para receber a patente de governador da capitania e havia obtido êxito em 1588. O que se passa de forma interdita no capítulo final do Sumário das Armadas é, de fato, que a própria missão jesuítica naquela capitania estava ameaçada sem a proteção do ouvidor geral Martim Leitão e com Frutuoso Barbosa chegando ao governo da capitania. Em suma, aquela personagem que os jesuítas haviam remetido ao passado da conquista tornara-se uma ameaça real ao presente e ao futuro das missões jesuíticas na Paraíba, uma ameaça que acabou se confirmando no governo de Frutuoso Barbosa com denúncias e dificuldades impostas aos jesuítas da Paraíba com a expulsão episódica que sofreram em 1591, já no governo de Feliciano Coelho.

Referências Sumário das armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba scrito e feito por mandado do mui reverendo padre em cristo cristovao de Gouvêa visitador da Companhia de Iesu de toda a província do Brasil. Cópia do códice manuscrito, depositado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...].In: História da conquista da Paraíba. Paraíba: Editora Universitária/FURNE, 1983. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, São Paulo, Hucitec: Edusp, 1996 DE LA FLOR, Fernado R. Las sedes del alma: La figuracion del espacio interior en la literatura y en la arte. In: ____. La península metafísica: arte, literatura y pensamiento en la Espana de la Contrareforma. Madri: Editora Biblioteca nova, 1999 GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na capitania da Paraíba -1585-1630. Bauru, SP: Edusc, 2007. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas SP: Editora da Unicamp, 2006. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de José Lourêncio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992.

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Sumário das Armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Parahiba [...]. Capítulo final, folha 148; FURNE, 1983, p. 100. 94 Ibidem.

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A GUERRA DOS TAMOIOS EM ESCRITOS JESUÍTICOS: A TOMADA DO FORTE COLIGNY Agnes Alencar95 Eventos envolvendo franceses, tamoios, portugueses e tupiniquins na região do que hoje conhecemos como Rio de Janeiro tiveram data incerta de seu início no século XVI, sendo comumente atribuído o início a 1556 e, tradicionalmente, 1560 como um marco do conflito devido à derrubada do Forte Coligny, o baluarte francês criado por Villegagnon na baía de Guanabara. Estes acontecimentos por sua vez já vem sendo delineados anos antes. Em 1548, em carta a D. João III96, Luis de Góis, um colono da América portuguesa, alerta ao monarca que os franceses se aproximam cada vez mais do território português. Em 1551 é seu filho, Pedro de Góis, que redige missiva ao monarca97 a fim de narrar o encontro com navios franceses na Baia do Cabo Frio e roga ao monarca pelo povoamento das terras brasílicas em nome da proteção do território Português. A comitiva de Villegagnon desembarcou em São Vicente em 1555. Segundo Maria Fernanda Bicalho, “o projeto de fundação da França Antártica tinha o apoio de Henrique II, Rei de França, de Gaspar de Coligny, Almirante da Marinha Real, do Duque de Guise, cardeal de Lorena, e de comerciantes e armadores franceses”, a empreitada tinha como um de seus principais objetivos “garantir à França uma parcela do mercado de especiarias monopolizado pelos portugueses”98. As inimizades entre franceses e portugueses se fizeram desde os primeiros momentos da chegada dos portugueses ao territorio americano. Em missiva enviada a Calvino, Villegagnon expressa parte desta dificuldade quando escreve sobre "proximidade desleal dos portugueses". E prossegue dizendo que "êstes, apesar de não terem podido proteger a região em que nos instalamos, suportam muito mal a nossa intromissão aqui e nos perseguem com ódio insano"99. Manuel da Nóbrega e José de Anchieta foram jesuítas que acompanharam de perto as contendas entre franceses e portugueses, registrando-as em suas cartas. Mencionam, em diversos momentos, que a presença francesa é problemática por causa da influência que hereges passam a ter sob os indígenas que eles também desejam catequizar e, em nome de seus propósitos evangelizadores, ambos tomam parte nas negociações de paz do conflito. Duas destas cartas100 escritas pouco depois da tomada do Forte Coligny que narram os eventos do embate serão os documentos principais para pensarmos os conflitos e a posição jesuíta frente aos personagens nele envolvidos. Dentro da lógica jesuítica de ação no mundo, as cartas ocupam um papel central, como atestam as diversas pesquisas sobre a função da escrita epistolar nas práticas jesuíticas101. Há trabalhos 95

Mestranda do programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista CAPES. 96 Carta de Luís de Góis a D. João III, dando conta dos perigos que corria o Brasil com a presença dos corsários franceses, que já chegavam a Baia do Rio de Janeiro” In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no Século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Nacional das Comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro 1965 97 "Carta de Pedro de Góis a D. João III, com notícias do Brasil e referindo o combate que teve com um galeão francês, encontrado na Baía do Cabo Frio" In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Naciona das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. 98 BICALHO, Maria Fernanda. “A França Antártica, o corso, a conquista e a ‘peçonha luterana’”. In: História. São Paulo, 27(1), 2008. 99 Segundo Paul Gaffarrel em seu Histoire du Bresil Français, o original desta carta se encontraria em Genebra. Há um tradução publicada no volume 57 da Revista de História, publicada em 1964, que é a que utilizo neste momento. Cf. VILLEGAGNON, Nicolas D. “Carta de Villegagnon a Calvino, 1557” in: Revista de Historia, 57, 1964. 100 ANCHIETA, José de. “Carta de José de Anchieta ao Padre Geral, 1560” In: Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. NÓBREGA, Manuel da. “Carta ao Cardeal Infante D. Henrique, 1560” In: Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 101 Cf. HANSEN, João Adolfo. “O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil: Nóbrega: 1549-1558” In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 38, p. 87-119, 1995. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.

46 ISSN 2358-4912 preocupados com o tipo de escrita da Companhia - sobre sua retórica, seus componentes didáticos, sobre a especificidade de seu gênero literário, entre outros – e outros atentos às temáticas que seus conteúdos permitem investigar tais como a escravidão, as sociabilidades coloniais ou as representações de indígenas que são encontradas nestas missivas. Cabe aqui dialogar com algumas dessas análises, entre elas a de José Eisenberg, que localiza estas cartas como uma “instituição” desenvolvida pelos jesuítas nos primeiros anos da Ordem religiosa, sendo “centrada na redação periódica de correspondência, através da qual os irmãos prestavam contas e pediam ajuda para suas atividades de campo”, ou seja, uma instituição comunicativa para a validação de sua missão. Einsenberg marca ainda que “do período de 1549 a 1610, mais de seiscentas cartas foram enviadas, das missões no Brasil para Portugal e para o resto da Europa”, estabelecendo uma rede que tinha por média o envio “de dez cartas por ano, escritas por mais de cem missionários.”102 Há ainda outros autores, como Charlote Casteunal-L'Estoile, que expuseram as diversas funcionalidades que as cartas assumiam dentro da Companhia.103 Para além de estabelecerem a mencionada rede de informação, permitindo conhecimento e controle dos eventos em seus diversos campos missionários, as cartas agiam sobre a sensibilidade e crença dos inacianos como 'consolação', estando carregadas do sentimento de unidade da Ordem. Para José Eisenberg esta instituição epistolar seria a espinha dorsal da Companhia de Jesus no século XVI e alerta que mesmo os silêncios e omissões nas cartas possuem significado, devendo ser lidos como indícios do pensamento jesuítico naquele momento. O que precisava ser dito e o que precisava ser ocultado compõem a atividade jesuítica. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Embora a redação de cartas não fosse necessariamente a principal atividade dos jesuítas no Brasil, ela era de extrema importância. As cartas eram escritas com muito cuidado, algumas delas excedendo quarenta páginas manuscritas. Para os missionários, aquela era a única via de comunicação com pessoas que tinham algum interesse em suas atividades pastorais. As cartas que chegavam da Europa, por sua vez, não raro causavam comoção entre os jesuítas do Brasil; assim também longos períodos sem notícias eram causa de desconsolo e frustração entre os irmãos. A chegada de uma carta jesuítica era seguida de sua leitura em voz alta para todos os irmãos. Essas sessões de leitura constituíam ocasiões especiais na vida dos missionários 104 na colônia, às vezes durando toda a madrugada.

As cartas funcionavam como um elemento de coesão da Ordem, pois experiências particulares de missionários na China, no Brasil ou na Índia, se tornavam experiências coletivas, integrando o horizonte de expectativas de toda a Companhia. As cartas eram lidas, muitas vezes copiadas, censuradas e distribuídas em diversos colégios ou áreas de missão; para serem, enfim, lidas em voz alta como parte da integração e da formação da Companhia. A leitura compartilhada alegrava pelo sucesso de uma missão e compadecia das agruras vividas por cada jesuíta, tornando coletivas as experiências individuais. "Através dos Relatos edificantes, os jesuítas do Brasil também tentavam convencer possíveis missionários a se engajarem na empreitada ultramarina”.105 A reflexão de Fernando Lodoño106 juntamente com análise de Eisenberg, permitem perceber as cartas jesuíticas como parte da construção de uma imagem da Ordem e de seus membros na Europa, elemento importante em época de conflitos religiosos. FLORÊNCIO. Thiago de Abreu. A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação de mestrado, PUC-Rio, Departamento de História, 2007. VILLAS BÔAS, Luciana . “Arte da memória e escrita dos primeiros jesuítas no Brasil”. In: Revista Camoniana. Vol. 1, Nº 1. Viçosa, JUN/DEZ 2010. Disponível em: http://www.revistacamoniana.ufv.br/arearestrita/arquivos_internos/artigos/Artigo_Luciana_Villas_Boas__diagra mado.pdf (último acesso em 31 de Março de 2013). EISENBERG, José. As missões Jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 102 EISENBERG, José. Op. Cit. P. 48 103 CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil - 15801620. São Paulo: Edusc, 2006. 104 EISENBERG, José. Op. Cit. P. 49 105 EISENBERG, José. Op. Cit. P 55 106 LODOÑO, Fernando Torres. “Escrevendo cartas: jesuítas, escrita e missão no século XVI” In: Revista Brasileira de História. V. 22, Nº 43. São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v22n43/10908.pdf (Último acesso em 31 de março de 2013)

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ISSN 2358-4912 Sob a influência do padre Ignácio a Companhia, desde os primeiros anos, utilizou a escrita como forma predominante de comunicação, ação e registro. Já foi mencionado que no início os jesuítas estavam dispersos pela Itália, Irlanda, Portugal, Espanha, França e depois Ásia. Assim, o objetivo fundamental de qualquer carta era a união dos ânimos em torno da procura da vontade de Deus. Ignácio de Loyola, como primeiro superior geral, teve muito claro que havia de produzir uma 107 imagem da Companhia através das letras .

Eisenberg, Castelnau-L’Estoile e Lodoño ajudam a construir um significado para as missivas dentro da lógica jesuítica, o que nos permite começar a compreender o papel das cartas de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta não como gestos isolados ou como parte de uma coletânea em um livro, na sua posterior edição. Suas reflexões permitem inseri-las na experiência jesuítica na América Portuguesa como parte da estratégia de controle da Companhia, integrando os missionários à unidade maior da Ordem e como parte do exercício constante de todos os jesuítas em prol de sua salvação. A carta de Nóbrega é endereçada ao Cardeal Infante D. Henrique, irmão de D. João III, e naquele momento, arcebispo de Évora. Nóbrega escreve pouco depois da destruição do Forte Coligny, em 1560, em resposta ao pedido do próprio D. Henrique, que estava desejoso de obter notícias do que acontecera. O jesuíta passa, então, a narrar diversos acontecimentos; dificuldades na conversão dos gentios, as contradições que ele via na conduta dos cristãos que preferiam que os índios se comessem e se furtassem uns aos outros para conseguir mão de obra - já que nesses termos era permitido o uso da mão de obra indígena - e como isso atrasava o trabalho catequético. Logo no início da carta, Nóbrega louva a atuação de Mem de Sá, uma vez que “depois da vinda deste governador” a conversão do gentio “cresceu tanto que for falta de operários muitos deixamos de fazer muito fructo, e todavia com esses poucos que somos, se fizeram quatro egrejas em povoações grandes”108. O jesuíta explica ainda que o motivo desse crescimento é justamente porque “pôde vencer Men de Sá a contradição de todos os Christãos desta terra, que era quererem que os indios se comessem, porque nisso punham a segurança da terra, e quererem que os indios se furtassem uns aos outros, para elles terem escravos”109. A missiva de Anchieta por sua vez é destinada ao Padre Geral, escrita no mesmo ano que a de Nóbrega, 1560. O jesuíta relata logo no início da missiva que devido a ausência de navios que pudessem levar as cartas, tentará dar conta do que aconteceu entre os anos de 1558 - quando enviou a última carta - e o ano de 1560. Esta é por sua vez uma longa carta que versa sobre os temas mais diversos do exercício missionário da Companhia. Anchieta também enfatiza a resistência dos indígenas a catequese como Nóbrega e fala das dificuldades encontradas. Sobre a tomada do forte, último assunto tratado na missiva, Anchieta começa por mencionar brevemente a ajuda que saiu de S. Vicente dizendo que "daqui saiu socorro em navios e canoas, e nós outros demos o costumado socorro das orações(...)". O forte, de acordo com a descrição de Anchieta, "era fortaleza mui forte, assim pela natureza e situação do lugar, toda cercada de penhas, que se não se podia entrar senão por subida estreita". Nóbrega por sua vez dá alguns detalhes em sua carta referentes a estratégia de Mem de Sá provavelmente graças a sua proximidade com a zona de batalha estes detalhes são possíveis. Narrando as ações de Mem de Sá escreve: "D'alli nos partimos ao Rio de Janeiro, e assentou-se no conselho que dariam de supito no Rio de noite, para tomarem os Francezes despercebidos; e mandou o Governador a um que sabia bem aquelle Rio, que fosse andiante guiando a armada"110. Sobre este guia Nóbrega não dá maiores detalhes, sua missiva não nos deixa perceber se era um colono já familiarizado com o território, se era algum francês que estava lutando ao lado dos portugueses, ou se era um indígena dos muitos que se tinham aliado aos portugueses. A Missiva de Mem de Sá para Regente D. Catarina narrando os eventos nada menciona sobre o guia111. 107

LODOÑO, Fernando Torres. Op. Cit. P. 17 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 220 109 NÓBREGA, Manuel da. Op Cit. P. 221 110 NÓBREGA, Manuel da. Op Cit. P. 223 111 “Carta de Mem de Sá à Regente D. Catarina, sobre a conquista da ilha de Villegagnon, 1560” In: SERRÃO, Joaquim. O Rio de Janeiro no século XVI. Lisboa: Edição da Comissão Naciona das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, 1965. 108

48 ISSN 2358-4912 Em sua narrativa dos eventos Nóbrega escreve que havia dentro da fortaleza mais de sessenta franceses e mais de oitocentos índios. Enquanto isso Mem de Sáo escreve que dentro da fortaleza haviam setenta e quatro franceses e alguns escravos e andando em terra havia “muito mais de mil homes do gentio da terra, tudo gente escolhida e taõ bons espingardeiros quanto os francezes”112. A antropóloga Christina Osward faz em sua tese de doutorado um cruzamento entre as fontes portuguesas e francesas e analisa estes números tão contraditórios. A autora explica que segundo os relatos franceses uma parte considerável dos franceses já havia deixado a fortaleza de Villegagnon, o próprio já havia retornado a França em busca de novos subsídios para a sua empreitada, e o que havia era um forte muito mal guardado113. Quanto a vitória dos portugueses ambos acreditam que a fuga dos franceses se deu pela intervenção divina. Anchieta descreve que "fugiram os franceses, desamparando a torre, recolhendo-se as povoações dos bárbaros em canôas, de maneira que é de crer que fugiram mais com o espanto que lhes pôs o senhor que com as forças humanas"114. A narrativa de Nóbrega coloca como uma maravilha Divina que “depois de combatida dous dias, não se podendo entrar e não tendo já os nossos pólvora (...) sabendo que na fortaleza estavam passante de sessenta francezes de peleja e mais de oitocentos indios e que eram já mortos dos nossos dez ou douze homens com bombardas e espingardas” diante desse cenário desfavorável o jesuíta continua para contar o milagre dizendo que “mostrou então nosso Senhor sua misericordia, e deu tão grande medo nos francezes e nos indios que com elles estavam, que se acolheram da fortaleza e fugiram todos, deixando o que tinham sem poder levar”.115 A retomada do território português invadido pelos franceses é uma vitória divina também por ser em um momento em que os calvinistas franceses representam um elemento herético e nocivo. Pensando este aspecto da vitória portuguesa quero neste momento destacar algumas das preocupações de Nóbrega e Anchieta diante da aliança entre franceses e os indígenas. Estas estão ligadas sobretudo o fato de estarem os indígenas aliados a um grupo de hereges, uma vez que escreve Nóbrega que estes “Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de Calvino, que está em Genebra” mas não apenas isso, continua Nóbrega, “segundo soube delles mesmos e pelos livros que lhes acharam muitos, e vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gentio”116. Anchieta, ao discorrer sobre o que fora encontrado no forte quando de sua tomada por Mem de Sá destaca que foram encontradas "grande copias de cousas de guerras e mantimentos, mas cruz alguma, imagem de Santo, ou sinal algum de catolica doutrina se não achou, mas grande multidão de livros hereticos (...)"117 De certa maneira, a preocupação dos inacianos é bastante legítima, uma vez que para Villegagnon a principal agenda exposta a Calvino era justamente o alargamento da fé protestante118. Nóbrega diz ainda a D. Henrique que estes hereges chegaram a enviar alguns dos meninos dos gentios para aprender essas heresias com o próprio Calvino. Os objetivos distintos da Coroa e dos religiosos por vezes se alinham em interesses comuns, sobretudo em um momento da ocupação portuguesa no qual por vezes colonizar e cristinizar se tornam movimentos conjuntos ou correlatos. Enquanto a ameaça proselitista protestante não apenas assusta os jesuítas, bem como atrapalha o seu trabalho de catequização, a presença francesa na costa da América Portuguesa se tornara um problema crescente ao longo dos anos. Quanto a participação dos indígenas no conflito ao lado dos portugueses, pouco foi dito pelos inacianos. Sabemos dessas alianças e Mem de Sá os menciona quando escreve para D. Catarina sobre a ferocidade dos indígenas aliados aos franceses em comparação aos seus aliados “os mais desarmados e com pouca vontade de pelejar”119. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

112

Idem, p. 43 Conferir em especial o quarto capítulo da tese no qual a autora se detém nos relatos da guerra. OSWARD, Christina. Entre os tupinambá: a gesta dos franceses na guanabara. Tese de Doutorado. Departamento de Antropologia Social, UFRJ – Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2009. 114 ANCHIETA, José; Op. Cit. P. 170 115 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 225 116 NÓBREGA, Manuel da. Op. Cit. P. 226 117 ANCHIETA, José; Op. Cit. P. 170 118 VILLEGAGNON, Nicolas D. Op. Cit. 119 “Carta de Mem de Sá à Regente D. Catarina, sobre a conquista da ilha de Villegagnon, 1560”, Op. Cit. P. 43 113

49 ISSN 2358-4912 As missivas de Nóbrega e Anchieta nos colocam em contato com figuras indígenas facilmente influenciáveis, que se aproximam das crenças dos que estão mais perto. Evidência de que estes inacianos ignoram ao menos em parte a complexidade das relações construídas entre os indígenas, bem como o sentido da guerra para essas sociedades ameríndias. A guerra faz parte do processo de construção de identidades destas sociedades indígenas, construção que se dá pelo contraste com o inimigo. De maneira pragmática a Guerra marcava o tempo, a transição para a vida adulta no caso dos homens. As alianças por sua vez não eram tão rígidas ou fechadas, como demonstra Carlos Fausto, em texto publicado em 1992, uma vez que “as aldeias, unidas uma a uma formavam um conunto ‘multicomunitário’, capaz de se expandir e se contrair conforme os jogos de aliança e de guerra”. O antropólogo escreve ainda que “os limites dessas unidades não são palpáveis, nem definitivos: um dia poder-se ia estar de um lado e no dia seguinte do outro”120. Diante disto cabe sim desconfiar das alianças forjadas pelos ameríndios tanto com franceses como com portugueses. Diferentemente do que acreditavam os inacianos, os indígenas não estavam cegos pela força demoníaca que os calvinistas exerciam sob eles, pois suas escolhas passavam por filtros mais complexos e por uma relação primordial desconhecida dos europeus: os índios aliavam-se com franceses e portugueses pelo fato de cada um deles ter se aliado com seus inimigos indígenas121. Os indígenas viam nesse enfrentamento entre franceses e lusos uma oportunidade de manter e continuar a sua própria guerra. A missiva de Nóbrega não leva em consideração estes movimentos, ele imagina que sem a presença francesa os índios serão facilmente submetidos ao credo católico, uma vez que são ainda um papel em branco122, no qual pode-se escrever o que bem desejar, sejam católicos ou protestantes os autores das inscrições. Enquanto os interesses dos padres da Companhia se aliavam aos da Coroa, cristianizar e colonizar homens e espaços, podemos imaginar que os interesses dos grupos indígenas se alinhavam aos dos próprios europeus, portugueses ou franceses, a continuidade de uma dinâmica de guerras e alianças mais antiga que a chegada dos colonos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etmologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 384 121 Sobre este aspecto da Guerra dos Tamois cf. SZTUTMAN, Renato. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Notícias de uma certa confederação Tamoio” In: Mana, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, Oct. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v16n2/07.pdf (último acesso em 03 de Junho de 2013) 122 Essa ideia é trabalhada por Tiago Florêncio em sua dissertação de mestrado na qual ele analisa o pensamento de Jean de Lery em comparação ao de Manuel da Nóbrega. Cf. FLORÊNCIO, Thiago de Abreu e Lima. A busca da salvação entre a escrita e o corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação de mestrado, PUC-Rio, Departamento de História, 2007

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ENTRE A LEI E A REALIDADE: A ADMINISTRAÇÃO DE LUÍS DA CUNHA MENEZES NA CAPITANIA DE GOIÁS (1778-1783) Alan Ricardo Duarte Pereira123 Introdução As Cartas Chilenas, escrita pelo ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga, acabou notabilizando uma figura importante na Capitania de Minas Gerais, o Fanfarrão Minésio ou, mais exatamente, o governador Luís da Cunha Meneses. Antes de ir para a Capitania de Minas Gerais no final de outubro de 1783, Luís da Cunha Meneses administrou de 1779 a 1783, a Capitania de Goiás que apresentava, nesse período, certa instabilidade e convivia, diuturnamente, com problemas na área administrativa, fiscal, militar, entre outros. Para tanto, o presente trabalho tem como objetivo fulcral analisar, de forma panorâmica e propedêutica, a atuação política – práxis política – de Luís da Cunha Meneses na Capitania de Goiás destacando-se, entre outros aspectos: a tentativa de reanimar a mineração, a situação militar com a reorganização das companhias e a criação de outras; reestruturação urbanística e pacificação de tribos indígenas. Em geral, ao discutir a figura de Luís da Cunha Meneses e sua atuação político-administrativa, inevitavelmente, aparecem críticas e controversas de seu governo. Na Capitania de Goiás foi acusado, entre outros aspectos, pelos ouvidores da capitania, vigários e membros da câmara. Todavia, em Minas Gerais seu governo não somente recebeu críticas internas ou de órgãos da Coroa, mas os conflitos ganharam visibilidade com a escrita das Cartas Chilenas do ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga. Esse documento escrito no final do século XVIII constitui, sem dúvida, uma obra fundamental que expressa, simultaneamente, convenções literárias – sobretudo do Arcadismo e do Barroco – e a retratação de uma época. Em resumo, o texto é escrito por Critilo (representando Tomás António de Gonzaga) de Santiago no Chile (Minas Gerais) e enviado a Doroteu na Espanha. Assim, o principal assunto do texto era o governo de um déspota local chamado Fanfarrão Minesio. Os dois interlocutores comentavam de seus passados em Vila Rica na Capitania de Minas Gerais frente ao governo de Luís da Cunha Meneses. Desse modo, é necessário analisar, mesmo que brevemente, a retratação da figura de Luís da Cunha Meneses para compreender, mais profundamente, como sua atuação na Capitania de Goiás permitiu, doravante, acumular experiências, conhecer o espaço e o contexto das Minas. As Cartas Chilenas e a administração de Luís da Cunha Meneses na Capitania Minas Gerais e Goiás Os estudos de Cartas Chilenas circunscrevem, quase sempre, aos aspectos formais e estilísticos. Por outro lado, a historiografia sobre o tema aponta, de forma demasiada, os conflitos entre o governador Luís da Cunha Meneses e o ouvidor Tomás António Gonzaga como resultado de interesses pessoais. No entanto, ao estudar esse documento de caráter literário e histórico não se aprofunda, com maior meticulosidade, a razão das críticas que levaram Gonzaga a escrever – mesmo que tais críticas fossem, sobremaneira, implícitas – sobre a administração de Luís da Cunha Meneses. A imagem construída deste governo, segundo a maioria dos estudos, acaba cristalizando (somente) conceitos negativos referente à figura de Luís da Cunha Meneses e, talvez, disseminando uma concepção errônea da sociedade mineira – ou seja, marcada pela corrupção e abuso de autoridade124. Ademais, não se trata de 123

Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista do CNPq. Para Lapa (1957 e 1958), o que prevalece em Cartas Chilenas é simplesmente a imagem negativa de Meneses. O apêndice documental que o autor conseguiu reunir atesta, uma vez mais, os abusos do governo de Meneses. De tal forma que a conclusão de Rodrigues, ao estudar os documentos da época, recaiu, basicamente, em dizer que “(...) Luís da Cunha Meneses foi em Goiás, o mesmo ditador insensato que Minas Gerais sofreu (...). ( JÚNIOR, 1995, p.08)”. Ao lado dessa perspectiva, é interessante elencar, no debate historiográfico, o trabalho de Joaci Pereira Furtado (1997) intitulado Uma República de Leitores: história e memória na recepção das Cartas Chilenas (1845-

124

52 ISSN 2358-4912 desconstruir, de maneira completa e sem fundamento, a imagem que Gonzaga fez da administração de Meneses, mas entender, nesse contexto, o cruzamento de interesses pessoas e uma realidade que inexoravelmente exigiu, por conseguinte, atitudes não escritas em leis. Nesse sentido, como estudar as Cartas Chilenas sem cair em reducionismos e superficialismos e, ao mesmo tempo, levar em consideração os aspectos literários e históricos? Trata-se, obviamente, de uma questão complexa e importa, mais ainda, de não descurar determinados aspectos e promover a eternização de outros fatores. Para tanto, é importante averiguar, nas Cartas Chilenas, uma questãochave: o contexto da sociedade colonial e, outrossim, a especificidade de cada capitania125. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1989), que objetivou analisar, detalhadamente, a influência das Cartas Chilenas e, respectivamente, as interpretações que os estudiosos elaboraram para esse documento. Segundo Joaci (1997), as Cartas foram estudadas a partir de dois procedimentos correlatos: primeiramente, o estudo da vida de Gonzaga (uma biografia do autor) e, em segundo plano, o contexto antecessor ao da Inconfidência Mineira. Esses procedimentos de estudos poderiam ser distribuídos, além disso, em três períodos. De 1845 a 1880 insere um momento que as Cartas foram estudadas com base numa leitura romântica. Em consequência, o objetivo fundamental dessa leitura foi, então, extrair aspectos da nacionalidade brasileira. Em outras palavras, tratou-se de conhecer esse documento para observar o nascimento de uma consciência nacional e, portanto, como a sociedade se comportava frente à Coroa portuguesa em um contexto de crescente crise do poder lusitano. Ao lado disso, o segundo momento de leitura das Cartas se restringiu ao período de 1880 e 1950. Para tanto, os historiadores e estudiosos, ao estarem imbuídos de uma perspectiva positivista, não buscavam somente características estéticas do texto, mas, sobretudo, a capacidade de estudar as Cartas como reflexo do real. Ou seja, compreendê-las como um documento histórico e, assim, extrair os fatos. O último momento de 1950 até os dias atuais representa, segundo o autor, uma maneira de estudar as Cartas em sua especificidade como texto poético. Nesse tipo de estudo procura-se, então, reduzir o caráter revolucionário que, segundo a historiografia, influenciou, decisivamente, o acontecimento da Inconfidência Mineira. Trata-se, em resumo, de “(...) um duplo crivo relativista, de natureza tanto subjetivista quanto classista, que faz com que elas ganhem um aspecto mais acentuado de programa partidário-pedagógico, em detrimento de sua caracterização como documento revolucionário-nativista. Tal mudança é vista, por Joaci, como índice de progresso intelectual na interlocução das Cartas, e, ainda mais, quando se especifica uma decorrência que lhe parece fundamental: nos novos estudos, admite-se a menor subordinação dos seus versos aos supostos fatos, e, desse modo, a maior liberdade significativa de seus próprios signos poéticos. (PÉCORA, 1998, p.154)”. 125 Deve-se acrescentar, nesse sentido, os avanços da historiografia brasileira no estudo do Brasil Colônia. A historiografia brasileira (e, igualmente, portuguesa) vem demonstrando nos últimos estudos voltados para o Brasil Colonial, que, esquivando-se de uma visão simplista de sociedade fundamentada no comércio e escravismo, acrescentou, grosso modo, que no Brasil estabeleceram-se, naquela época, práticas administrativas e sociais além do previsto pela coroa portuguesa. Ademais, se no debate historiográfico do Brasil Colônia, surgiram obras que de certa forma elaboraram uma dicotomização entre a relação Brasil e Portugal (com frequência, Portugal era tido como a metrópole desenvolvida em discrepância do Brasil colônia dependente em todos os sentidos); por outro lado, e mais atualmente, os historiados. que estudam com afinco e profundidade o período colonial, demonstram que nos domínios ultramarinos desenvolveram, por sua vez, práticas administrativas complexas e, nem sempre a estrutura social aqui implantada seguiu, conforme a tradição portuguesa, as mesmas formas. Desse modo, as abordagens centram-se, sem dúvida, a partir de parâmetros externos, ou, dito de outra forma, uma visão externalista da sociedade colonial. Por outro lado, a partir da década de 70 (e o segundo livro didático é o resultado da incorporação desses postulados interpretativos) têm buscado desconsiderar, como procedimento de análise, os fatores externos e propõem estudar esse período a partir de determinações internas. Ciro Flamarion Cardoso foi, em geral, o primeiro historiador a propor, com efeito, a perspectiva de estudar as sociedades coloniais priorizando, então, suas especificidades. Jacob Gorender , por sua vez, ao se basear em Cardoso desenvolve o conceito de sistema escravista colonial – embora esses autores apresentem, ademais, uma necessidade de estudar o Brasil Colonial numa visão interna, encontram-se, no bojo de cada interpretação, os pressupostos de antigos historiadores, como Novais, Celso Furtado e Caio Padro Júnior. O historiador João Luis Fragoso – ao lado de outros, como, por exemplo, Maria Fernando Bicalho e Fátima Gouvêa – explicam a sociedade colonial a partir de sua lógica interna. Para isso, o respectivo autor, fundamenta suas pesquisas para o Vale do Paraíba Fluminense e aponta para o surgimento de elites locais ( PEREIRA, 2014, p.42)”. Ver: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados In: Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v.1, p. 129-202. SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750); in: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla M.

53 ISSN 2358-4912 O ouvidor Gonzaga lançou, de maneira áspera e contundente, o que poderíamos considerar, no plano administrativo e político, o seguinte aviso aos governadores e ministros do Brasil “Lê, diverte-te e não queiras fazer juízos temerário sobre a pessoa de Fanfarrão. Há muitos fanfarrões no mundo, e talvez que tu sejas também um deles, (...). (GONZAGA, 1996, p.90)”. Embora estivesse referindo-se a figura do governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, a respectiva assertiva demonstra, em maior ou menor grau, um aspecto geral da administração no Brasil Colonial e específico, qual seja: o fato que o (s) conflito (s) entre um ouvidor e governador não era (m) um caso isolado e acabou tornandose, com o passar do tempo, uma prática generalizada. Assim, o debate entre esses indivíduos e outras instâncias da administração era, no Brasil, constante e afigurava-se, ademais, um campo eivado de discrepâncias e complexidades. De maneira mais elementar, segundo Aparício “Esta contenda entre Fanfarrão Minésio e o Ouvidor de Vila Rica representava, antes de mais, a luta entre a realidade e a lei. (APARÍCIO, 1998, p.270)”. Nessa vertente mais geral, percebe-se, então, que Gonzaga tinha como pressuposto a lei e os dispositivos legais da Coroa e, em razão de disso, acusava Luís da Cunha Meneses de governar a Capitania de Minas Gerais arbitrariamente ou de maneira corrupta. Por outro lado, ao levar em consideração o contexto que Luís da Cunha Meneses presenciava – tanto na Capitania de Goiás como Minas Gerais – suas ações estavam pautadas, sobretudo, pela realidade de cada capitania. Todavia, embora seus interesses estivessem em consonância com as determinações legais da Coroa portuguesa, a realidade das capitanias levou-o, por conseguinte, a adotar medidas que extrapolassem leis e instâncias administrativas. No plano específico, o conflito entre ouvidor e governador era, igualmente, resultado de interesses pessoas. Segundo Critilo,

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Por isso Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a virtude estragar de um vasto império. Indigno, indigno chefe! Tu não buscas o publico interesse. Tu só queres mostrar ao sábio augusto um falso zelo, poupando, ao mesmo tempo, os devedores, os grossos devedores que repartem contigo os cabedais, que são do reino. (GONZAGA, 1996, p. 259-269,).

Assim, é fundamental reconhecer – além dos aspectos gerais do Brasil Colonial que aparecem no documento – as Cartas Chilenas nasceram, antes, como uma crítica personalidade e direcionada à figura de Luís da Cunha Meneses. Nesse sentido, é um documento movido de interesses pessoais do ouvidor de Vila Rica que objetivou, de todas as formas, não somente criticar a figura Meneses, mas, especialmente, tornar visível para a Coroa e outras instâncias administrativas, as arbitrariedades deste governador126. No final do século XVII e início do XVIII, após a descoberta de ouro Minas Gerais em 1690 e Cuiabá em 1718 – até então povoada majoritariamente por índios – tornou-se, imediatamente, foco de maiores interesses por parte da Coroa portuguesa às regiões auríferas no que diz respeito à proteção das minas e o povoamento desta região. Nesse contexto, a Capitania de Goiás foi, sem dúvida, C.Conquistadores e negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra e a cultura política do Antigo Regime. Revista Almanack braziliense n: 2º, novembro de 2005._____ A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo – História Social, 2003. PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Por que ficamos diferentes? O ensino do Brasil Colonial nos livros didáticos? In: Revista Espaço Acadêmico, n.157º, julho, 2014. Disponível em : http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/22679/13132 . Acesso em : 24 de Julho . 126 Portanto, deve-se compreender que “Apesar do seu compromisso com e a metrópole, o ouvidor de Vila Rica foi também porta-voz da plutocracia mineira que se via, à época, afastada do poder pelo governador, que não hesitava em favorecer os grupos mais desfavorecidos em detrimento daquele. No entanto, apesar de não ser parte integrante da plutocracia mineira, tinha ligações fortes e bastante próximas. Pensamos que está é um premissa que importa colocar em evidência. É bom não esquecermos que o ouvidor chegou a Minas pouco tempo antes do governador Cunha Meneses, e que estava de partida para a Baía. Escritas da elite para a elite, as Cartas Chilenas denotam, elementos mineiros, o que acentua alguns traços de afinidade do autor com aquele povo, mas que não provam em nosso entender ligações definitivas, visto que o ouvidor não era plutocrata, mas sim burocrata proveniente do Reino. Mais do que critica global ao sistema, que esconde atrás de si disputas pessoais, com argumentos institucionais. (APARÍCIO, 1998, p.271-272).

54 ISSN 2358-4912 resultado direto das expedições de bandeirantes oriundos, sobretudo, da Capitania de São Paulo e Bahia . A justificava para essas bandeiras pautou-se, ademais, no pressuposto que “Se em Minas e em Mato Grosso tinha sido encontrado tanto ouro, argumentavam eles, em Goiás, território situado entre esses dois, devia também existir. (PALACÍN e MORAES, 2008, p.20)” 127. Desse modo, em 1722 o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o filho128, saiu da Capitania de São Paulo com uma expedição de 500 pessoas129. Decorridos 3 anos, 3 meses e 18 dias, segundo os relatos coevos, Bartolomeu e sua companhia encontrou ouro nas cabeceiras do Rio Vermelho. Todavia, somente em 1725 voltaram a São Paulo disseminando a notícia de ter encontrado ouro nas cercanias de um rio. Assim, depois dessa primeira bandeira organizou, uma vez mais, outra expedição saindo de São Paulo para iniciar, a partir de então, a ocupação das minas130.

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Portanto, a existência de minas nesta região atraiu, quase de forma absoluta, a atenção da Coroa portuguesa, especialmente em razão da localização de Goiás, pois (...) era evidente que a capitania de Goiás gozava de situação muito peculiar devido à localização privilegiada de sua única vila no setecentos, Vila Boa de Goiás, situada a 16 graus e 10 minutos de latitude sul, um pouco a oeste do Meridiano de Tordesilhas. Um detalhe, que, sem sombra de dúvidas, significava um olhar diferenciado dos governantes portugueses para garantir as minas do Cuiabá, que estariam em terras espanholas. Por conseguinte, era necessário consolidar uma sociedade local e instalar uma nobreza da terra, o que implicava em ocupar cargos na câmara municipal , atuar na conquista, na defesa e dilatação das fronteiras, integrar as ordenanças, possuir hábitos nas ordens de Cristo, de Avis e de Santiago. (MORAES, 2010, p.78). Ver: MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: FUNAPE, 2012. _____.Em terra de cego, caolho tem vida da rei: as emigrações no setecentos para o Sertão dos Guayazes. Notas de Pesquisa.In: Revista UFG. Julho 2011. Ano XIII nº 10. Disponível em: http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/Revista%20UFG%20Julho%20%202011/arquivos_pdf/cristina_de_cassia_pereira_moraes.pdf. Acesso em: 06 de Julho de 2013 128 A expressão “o filho” é utilizada para diferenciar, ademais, o Bartolomeu Bueno “pai” que, por volta de 1682, já tinha encontrado ouro na região de Goiás. Assim, caberia ao seu filho retornar pelo mesmo trajeto e encontrar o ouro. 129 “O Rei concedeu a licença, mandando que o governador desse um regimento à bandeira. Todos os gastos da expedição corriam por conta dos organizadores, que, em troca, receberiam vantagens nas novas minas que descobrissem e os principais cargos políticos na região. A bandeira era uma expedição organizada militarmente, e também uma espécie de sociedade comercial. Cada um dos participantes entrava com uma parcela de capital, que consistia ordinariamente em certo número de escravos. Os principais financiadores dessa descida foram João Leite da Silva Ortiz, genro do próprio Anhanguera e proprietário das lavras em Minas, e João de Abreu, irmão de Ortiz. Muitos dos participantes também entravam com certo número de escravos, com o alferes Braga, que depois deixou uma narrativa de viagem da bandeira. Eram mais ou menos 150 os membros da bandeira, mas o número total, incluindo os escravos, índios e alguns pretos, chegava quase a 500. (PALACÍN e MORAES, 2008, p.21)”. 130 Durante o século XVIII, o povoamento de Goiás deu-se, num primeiro momento, com a exploração de minas e a fundação, em 1726, do Arraial de Sant’Ana governada por Bartolomeu Bueno da Silva que recebeu, em razão dos descobrimento das minas, o título de capitão-mor até o período de 1734 quando, infelizmente, perde os privilégios recebido pela Coroa portuguesa. Em 1736, o Arraial de Sant’Ana foi elevado a categoria de Vila – então chamada Via Boa –, porém, efetivamente erigida em 1739 ao lado do Rio Vermelho e, finalmente e somente, em 1744 foi criada a Capitania de Goiás. Historiograficamente, os estudos que explicam o povoamento de Goiás e, consequentemente, a fixação – permanente ou efêmera – da população pautou-se, durante muito tempo (especialmente na década de 90) nos pressupostos elaborados por Henri Pirenne e Max Weber. Segundo essa linha de pensamento, o processo de ocupação foi/é (assim como também a formação da sociedade) resultado direto do ouro que proporcionou, em grande escala, a migração de indivíduos e a construção de arraiais e vilas. No entanto, como demonstrou Moraes (2012, p.26) “(...) pensamos que esse tipo de historiografia, ao supervalorizar as atividades econômicas, negligenciou consideravelmente a história social como um todo”. Para a respectiva autora, o enraizamento ocorreu, na verdade, através da vivência religiosa como forma de sociabilidade, ou seja, as Irmandades e Confrarias transformar-se-iam num elemento capaz de, não somente executar plenamente as funções de cunho religiosas, mas, sobretudo, aglutinar (e, portanto, enraizar) os habitantes que chegavam à Vila Boa com o desejo ávido de riqueza. Por conseguinte, o que foi definido por Caio Padro Júnior como sentido da colonização no livro Formação do Brasil Contemporâneo implica dizer – mas numa lógica diferenciada que preconiza não somente o caráter meramente econômico/comercial e escravista– o projeto de colonização da América Portuguesa abriu, então, um campo incomensurável de prestações de serviços que, ao serem executados, permitiu, na Capitania de Goiás e outras, o estabelecimento de nobres – acompanhando, por sua vez, de privilégios nobilitantes.

55 ISSN 2358-4912 Nesse contexto, qual seria a trajetória de Luís da Cunha Meneses antes de chegar a Capitania de Goiás no final do século XVIII? No processo de Habilitação a Ordem de Cristo, pode-se encontrar algumas informações biográficas de Luís da Cunha Meneses. Nasceu a 16 de Maio de 1742 em Lisboa131 proveniente de uma importante família portuguesa e descente direito de D. João II. (CANEADO, 1945; FREIE, 1973). Seus pais foram José Félix da Cunha Meneses e D. Constança Xavier de Meneses132 e avós, D. Luís de Meneses – marquês de Louriçal e Conde de Ericeira – e D. Ana Xaviver de Rohan. Seu pai desempenhou funções importantes na área militar, como, por exemplo, foi 8º alcaide-mor de Tavira e possuidor de uma diversidade de comendas da Ordem de Santiago e, em 1750, veador da Rainha D. Maria Ana de Áustria. Nesse contexto, Cunha Meneses iniciou sua atividade militar com 17 anos ao assentar Praça no Regimento de Setúbal em 1759 e, posteriormente, a nomeação para capitão na respectiva infantaria. Em meado de janeiro de 1777 é conferido a Luís da Cunha Meneses o governo de Goiás e, do mesmo modo, em fevereiro recebeu o Hábito da Ordem de Cristo com uma tença anual de 12 000 réis. Para tanto, desembarcou em Salvador em agosto de 1778 e chegou a Vila Boa de Goiás em 16 de Outubro do mesmo ano. Durante sua viagem, Meneses escreveu um relato informando, em detalhes, a sua viagem pelo sertão.133 Ao chegar a Goiás enviou um comunicado a Martinho de Melo e Castro da sua chegada e tratou de resolver imediatamente os problemas econômicos e administrativos que assolavam a Capitania de Goiás. Ao lado disso, recebeu em Lisboa de Martinho de Melo e Castro uma cópia da Instrução de seu antecessor, José de Almeida Vasconcelos, e, igualmente, o relatório final do respectivo governador. Os dois documentos permitiram, por sua vez, uma visão panorâmica da Capitania de Goiás. A instrução estava dividida em quatro artes: primeiro, realizava um mapeamento dos problemas da capitania que levaram, com o tempo, ao estado de crise. Em segundo, um rol de soluções para os problemas apontados. Nesse ponto, a preocupação fundamental era citar os problemas para, através da experiência administrativa e política, suprimir, de vez, as dificuldades encontradas em Goiás. Em terceiro, debatia sobre a civilização dos índios e, por fim, o documento tratava de informar a organização dos corpos militares. Nesse contexto, a presença de Luís da Cunha Meneses em Goiás destacou-se, entre outros aspectos: primeiramente pelas tentativas de reanimar a mineração na zona do Rio Maranhão. Com a ajuda do sargento-mor Tomás de Sousa buscou, em 1732, mudar o leito do rio, no entanto, em razão da insalubridade do local e os custos onerosos não conseguiu finalizar esse projeto. Ademais, a atuação de Cunha Meneses efetivou, principalmente, com a organização de o aparelho militar. Em razão de sua formação militar utilizou essa instância, nas duas Capitanias, como um instrumento de governação134. Em Goiás, a preocupação com o aspecto militar era, em primeiro lugar, com o fornecimento de mantimentos e provisões e, em segundo, sua atenção pautou-se na formação de novos corpos militares e a reorganização dos que existiam (em especial os postos militares de 2º minha, milícias ou terço auxiliares e de 3º linha, as ordenanças). Todavia, foi acusado por muitos de criar regimentos sem necessidade, mas, ao observar o contexto da Capitania de Goiás e o clima de insegurança que pairava em decorrência da ameaça indígena, compreende-se, afinal, que a reestruturação dos corpos militares era fundamental para a segurança da Capitania de Goiás. Asseverava que, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

(...) mais do que muitas das outras dos referidos armamentos, e mais petrexos de guerra, para a sua natural defença; porque suposto seja a mais central e mais confinante com os domínios de outra 131

As informações genealógicas de Luís da Cunha Meneses podem ser encontradas na Habilitação à Ordem de Cristo em 4 de fevereiro de 1777. Ver: Arquivos Nacionais –Torre do Tombo, Habilitações da Ordem de Cristo, Letra L-Maço 10, Doc.15. 132 Ademais, segundo Aparício (1998), cita que D. Constança de Xavier de Meneses era neta de D. Francisco Xavier de Meneses, quarto conde de Ericireira, responsável por introduzir, em Portugal, o movimento iluminista. 133 Ver: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Secção de Manuscritos, Cod. 13.04.10, nº 27. 134 Assim, pode-se perceber o interesse pela organização militar de Cunha Meneses ao chegar em Salvador na Baía “ A sua grande povação He composta, e comandada por hu corpo militar que a guarnese de que He chefe hu capitão, e comadante de hu Regimento de Infantaria Auxiliar com seu magnífico uniforme emcarnado, canhois, e vestia azul, cuberto de grandes cazas de ouro, outro de cavalaria tão bem auxiliar uniformemete fardado de amarelo, canhão, forro, e vista azul alamares de prata, e seus capacetes com ar tão arogante, militar que faria imulação as tropas regulares, se concorressem nas suas manobras. ( Secção de Manuscritos, cod.13.04.10, nº27)”.

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ISSN 2358-4912 Coroa, sempre pela sua natural cituação, está sofrendo uma hostilissima guerra; não só as muitas nações silvestres; mas ainda a um grande numero de pretos callambolas aquilombados (...)

(AHU_ACL_CU_008, Cx. 4, D. 16). Tratava-se, a partir dessa perspectiva, de um tarefa árdua de militarizar as companhias e, com isso, conseguir apoio humano para sua administração que, desde Goiás, foi perpassada por conflitos e críticas. Em outras palavras, Cunhas Meneses não somente utilizou dos corpos militares para a proteção da Capitania – que, afinal, estava prevista em lei – mas, aproveitando desse aparato, objetivou, estrategicamente, angariar um braço político para seu governo. Por conseguinte, a função do aparelho militar residia, basicamente, na capacidade de manter a ordem em espaços de instabilidades e, no contexto das Capitanias em que a extração do ouro era a principal a atividade, a vigilância sistemática dos espaços frente ao contra-bandos. Portanto, o fato de utilizar as forças militares como instrumento de ação política trouxe, ao mesmo tempo, benefícios para sua governo e tornou-se, sem dúvida, uma peça fundamental. Entretanto, segundo Aparício, foi “(...)um dos seus pontos fracos, pois a complexidade dos interesses individuais sobrepunham com frequência aos coletivos e do bem comum. (APARÍCIO, 1998, p.193)”. No relatório enviado para Lisboa, é possível perceber, pormenorizadamente, a composição das forças militares em Goiás, Quadro 1. Forças militares de Goiás em 1779

Postos Superiores Soldados Totais Total Geral

Companhia de Dragões ( 1º Linha)

Companhia de Pedestres

Regimento de Cavalaria Auxiliar (14 companhias)

Companhias de Ordenanças ( 18 companhias)

Companhias dos Pardos Forros (8 companhias)

11

04

100

222

88

60 71

83 87

480 580

1882 2104

703 791

3633

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Cartografia Manuscrita, Goiás. Anexo do ofício remetido por Luís da Cunha Meneses a Martinho de Melo e Castro a 9 de julho de 1779.

Ao lado do elemento militar, a administração de Luís da Cunha Meneses ganhou, de fato, envergadura com a edificação da aldeia D. Maria I em 16 de julho de 1781 e, consequentemente, a pacificação da tribo Caiapó. Posteriormente, a edificação desta aldeia tornou, para seu governo, uma coroa de glória. No processo de aldeamento e submissão dos índios contou com a ajuda de José Luís Pereira que conhecia essa tribo indígena e organizou uma expedição com 50 homens (e alguns “línguas” responsáveis por efetivar a comunicação). Decorrido quase seis meses da partida voltaram, então, com 36 índios caiapós. O primeiro contato dos índios com Cunha Meneses foi pacífico e, de imediato, tratou de conversar com o índio mais velho avisando, portanto, que se parassem os ataques aos habitantes da Capitania de Goiás protegeria, sob todas as formas, à tribo. Desse modo, após esse primeiro contato e ao voltarem para a tribo, Luís da Cunha Meneses decidiu – em companhia dos índios – um local para instalar a referida tribo. Com 14 léguas da capitania e nas cercanias do rio Fartura criou-se, em meados de julho de 1781, a aldeia D. Maria com 687 índios Caiapós. A planta do aldeamento dividia-o em zonas, como, por exemplo: zona agrícola destinada à plantação de frutas; habitação, com 6 edifícios para 420 casais e zona de armazenamento para o sal. No respectivo aldeamento foi instalado, além do cemitério, uma igreja intitulada N. Sra. da Glória. Assim, a preocupação de Meneses era coadunar, em harmonia, os elementos europeus com a cultura indígena135. Afinal, qual era o objetivo do aldeamento para o contexto da Capitania de Goiás? Em geral, quando Luís da Cunha Meneses esteve nas duas Capitanias (Minas e Goiás), o instrumental legal que

135

“(...) a direcção com que estabeleci a referida aldeia, e o adiantamento da sua construção, que me parece ter sido proporcionada e acomodada ao natural de huns habitantes, que nasseram, e sempre viverão o matto gozando de hum ar livre (...). (AHU_ACL_CU_008, Cx. 4, D. 16)”.

57 ISSN 2358-4912 sistematizava as idéias concernentes aos indígenas era, tão somente, o Diretório136 pombalino. Tal documento aceitava a concepção dos jesuítas que deveria conceder liberdade aos indígenas, como também civilizá-los através da educação. Por outro lado, o documento afirmava a idéia que os índios poderiam servir, com efeito, aos trabalhos da Coroa. Igualmente, ao substituir a participação dos jesuítas pelos diretórios leigos obrigava a incentivar, nesse sentido, a agricultura, casamentos mistos e costumes europeus. Desse modo, o objetivo não recaiu somente na evangelização dos índios como forma de apaziguar, nas capitanias e regiões importantes, os conflitos. Mais do que isso, o fundamental era integrá-los no processo de colonização para, então, consolidar a expansão ultramarina. A atitude de Luís da Cunha Meneses frente aos indígenas mostrou-se, naquele período, inovador. A Capitania de Goiás, desde as primeiras bandeiras, já presenciava o conflitos com as tribos indígenas que assolavam os habitantes. A tribo Caiapó prejudicava a mineração nas imediações dos rios Pilões e Claro, portanto, a pacificação era fundamental. Para tanto, Cunha Meneses estava convencido que era necessário dominar as tribos indígenas pela força, todavia, sua atuação tornou-se inovadora, pois, de maneira estratégica, compreendeu que somente a força não poderia resolver os conflitos. Infere-se da documentação, portanto, que seu principal instrumento foi, indubitavelmente, a persuasão. De tal forma que ao escrever para o irmão, Tristão da Cunha Meneses, informava de três objetivos fundamentais referentes aos indígenas: catequização, civilização e A rentabilização econômica. Para Cunha Meneses esse três objetivos, em uníssono, poderiam

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Nesta ordem em que estão postos, creio se poderá a vir a tirar mais alguma utilidade, além das referidas, e que tem conseguido os que têm morrido e os que se acham existentes, por todos terem recebido as verdadeiras Luzes e Conhecimentos, com a graça do Baptismo.

(AHU_ACL_CU_008, Cx. 2, D. 18). Considerações finais Ao estudar a atuação de Luís da Cunha Meneses na Capitania de Minas Gerais e, igualmente, na Capitania de Goiás, em geral, é recorrente atribuir a esse governador uma imagem demasiada tirânica, despótica, autoritária, entre outros aspectos. Com a escrita das Cartas Chilenas pelo ouvidor de Vila Rica, Tomás António Gonzaga, consagrou, no meio literário e histórico, a figura de Cunha Meneses. Entrentanto, ao olharmos, com acuidade, a atuação política do referido governador compreende-se, afinal, que era necessário coadunar os aspectos legais ao contexto de cada capitania. Ou seja, tratava mais do que aplicar a lei, mas adequá-la, harmonicamente, a realidade. Assim, se de um lado a figura de Cunhas Meneses é construída sob o lastro da arbitrariedade, por lado, esse aspecto demonstra, de maneira mais elementar, que para efetivar uma administração foi preciso conhecer não somente a lei, mas, antes, a realidade de cada capitania. Referências Arquivo Histórico Ultramarino -Códices do Conselho Ultramarino: 242,243, 244, 264, 340, 458, 610, 611, 617, 1232, 1515 e 1516 -Documentos Avulsos de Goiás: 2, 4, 6, 7, 11, 17, 21, 25, 28 e 29 -Secção de Cartografia Manuscrita de Goiás: 875, 876, 877 e 878. Arquivo Nacional – Torre do Tombo Chancelaria de D. Maria I : livro 46 e 85 -Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I : livro 1 e 32 -Habilitações da Ordem de Cristo -Registro Geral de Mercês, D. José I: livro 29 -Registro Geral de Mercês, Registro de Certidões: livro 1, 27 e 29. -Registros Paroquiais, Casamentos, Lisboa: livro 12, Caixa 14

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Ver: Directório que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não Mandar o Contrário. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758.

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ISSN 2358-4912 Bibliografia ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados In: Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v.1, p. 129-202. APARÍCIO, João Paulo da Silva Aparício. Governar no Brasil Colonial: a administração de Luís da Cunha Meneses nas capitanias de Goiás ( 1778-1783) e de Minas Gerais ( 1783-1788). Dissertação de Mestrado. Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Letras, 1998. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A Cidade e o Império: O Rio de Janeiro na dinâmica Colonial Portuguesa. Séculos XVII e XVIII. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo – História Social, 2003. _____. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra e a cultura política do Antigo Regime. Revista Almanack braziliense n: 2º, novembro de 2005. Directório que se Deve Observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não Mandar o Contrário. Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, 1758. ÉCORA, Alcir. Documentação histórica e literatura. In: Revista da USP, São Paulo, n. 40 p. 150-157, dezembro/fevereiro, de 1998. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla M. C.Conquistadores e negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GONZAGA, Tomás Antonio. Cartas Chilenas. São Paulo: Cia das Letras, 1996. JÚNIOR, Afonson Penna. Introdução. In: LAPA, Manuel Rodrigues. As Cartas Chilenas, um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. LAPA, Manuel Rodrigues. As Cartas Chilenas, um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. _____. Obras Completas de Tomás António Gonzaga. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. MORAES, Cristina de Cássia Pereira. Do corpo místico de Cristo: irmandades e confrarias na capitania de Goiás (1736-1808). Goiânia: FUNAPE, 2012. _____.Em terra de cego, caolho tem vida da rei: as emigrações no setecentos para o Sertão dos Guayazes. Notas de Pesquisa. In: Revista UFG. Julho 2011. Ano XIII nº 10. Disponível em: http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/Revista%20UFG%20Julho%20%202011/arquivos_pdf/cristina_de_cassia_pereira_moraes.pdf. Acesso em: 06 de Julho de 2013. PADRO, Caio Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977. PALACIN, Luis. GARCIA, Ledonias Franco. AMADO, Janaina. História de Goiás em Documentos I. Colônia. Goiânia: Ed. UFG, 1995. PALACÍN, Luís. MORAES, Maria Augusta de Sant’ Anna Moraes. História de Goiás (1722-1975. Goiânia: Ed. da UCG, Ed. Vieira, 2008. PALACIN, Luis. O século do ouro em Goiás. Goiânia: Editora Oriente, 1972 PEREIRA, Alan Ricardo Duarte. Por que ficamos diferentes? O ensino do Brasil Colonial nos livros didáticos? In: Revista Espaço Acadêmico, n.157º, julho, 2014. Disponível em : http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/22679/13132 . Acesso em : 24 de Julho . SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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CURADO E OS FERIDOS DE OLINDA: A CÂMARA ENTRE A CONIVÊNCIA E O CONFLITO Aledson Manoel Silva Dantas* Pois é certo que todos aqueles que governam adquirem inimigos e maus afetos137 A câmara de Olinda, em 1676, acusou Antônio Curado Vidal de causar a “inquietação” da “nobreza” das capitanias de Pernambuco e Paraíba, assassinando até os próprios familiares e expropriando terras por meio da violência. A instituição municipal alegava, ainda, que o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida estava em conluio com Vidal, adotando uma postura conivente com a violência na capitania. No ano seguinte, porém, a câmara de Olinda lamentava o fim do mandato do Governador, relatando o seu zelo com a justiça e seu compromisso com a “quietação” dos povos. Por meio da análise desse conflito e, principalmente, de sua resolução, buscar-se-á analisar elementos da cultura política dos grupos que disputavam a hegemonia na capitania de Pernambuco. Os oficiais da câmara de Olinda, em 1676, fizeram uma representação ao Conselho Ultramarino na qual se queixavam dos transtornos que Antônio Curado Vidal causava aos moradores das capitanias de Pernambuco e Paraíba. Diziam que a “inquietação” que entre a “nobreza daquelas capitanias” era resultado das estratégias espúrias de enriquecimento que Vidal praticava, fazendo “todo o gênero de maldade”. A câmara de Olinda acusava, ainda, o governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida de ser cúmplice de Antônio Curado, contribuindo para a desunião dos moradores daquelas duas capitanias e fomentando o ódio e os conflitos que existiam na região. A situação, de acordo com os oficiais, era tão tensa que previam a deflagração de uma “guerra civil”, caso não houvesse algum tipo de punição para os criminosos138. Um ano depois, a situação mudou. A câmara de Olinda lamentava o fim do governo de D. Pedro de Almeida, e afirmava que neste período os “poderosos” não foram favorecidos e que a capitania de Pernambuco passou por um tempo de grande “sossego e quietação” 139. Por que mudou tanto o quadro exposto pela câmara de Olinda em 1676 e 1677? É possível que tenha havido um acordo entre o governador, os oficiais da câmara de Olinda e Antônio Curado Vidal, evidenciando uma forma de negociação comum aos grupos políticos, violenta de início, mas que culmina em uma reconfiguração das relações entre os que disputam o poder. Ao final, pode-se dizer que não houve grandes mudanças, apesar dos apelos da Câmara de Olinda feitos à Coroa portuguesa, pelos quais se afirmava que uma “guerra civil” era iminente140. Antônio Curado Vidal permaneceu com o cargo de Mestre de Campo, além de ter permanecido um grande proprietário de terras. É provável que as ações de Antônio Curado Vidal tivessem como objetivo o acúmulo de riqueza. Por meio da força, Vidal teria conseguido suas terras, aumentando e o seu cabedal. Existem menções sobre terras que lhe pertenciam em registros de datas de sesmarias. No total, cinco sesmarias citam Antônio Curado Vidal como confrontante: quatro em Pernambuco e uma na Paraíba141. Ao examinar as suas ligações familiares, nota-se o fato de ser sobrinho de André Vidal de Negreiros, figura importante no contexto do Atlântico Sul. Assim como o tio, Antônio Curado Vidal era mestre de campo e, como afirmava seu filho, Antônio Vidal Curado, teria libertado a capitania da Paraíba do “inimigo holandês”142. Significa que era pertencente a uma família que tradicionalmente prestava serviços à Coroa. *

Graduado pela UFRN, membro do Laboratório de Experimentação em História Social, trabalho feito com orientação da professora Carmen Alveal. 137 João Falcão de Souza, Conselheiros do Conselho Ultramarino. In: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 47. 138 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064. 139 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 10, Doc. 915. 140 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064 141 As sesmarias PB 0027, PE 135, PE 0357, PE 0382 e PE 0390 fazem menção às terras que teriam pertencido a Antônio Curado Vidal. Apesar disso, ainda não há registro de nenhuma sesmaria que lhe tenha sido doada. Disponível em Sesmaria do Império Luso-brasileiro: 142 Sesmaria PB 0027. Disponível em Sesmaria do Império Luso-brasileiro:

60 ISSN 2358-4912 Vidal era um indivíduo bem relacionado. Conseguiu a patente de mestre de campo por meio de uma indicação feita pelo seu tio, André Vidal de Negreiros, intermediada por D. Pedro de Almeida, governador de Pernambuco, e endossada pelo Governador Geral, em 1675, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça. Vê-se, nesse caso, um elemento da cultura da sociedade do período analisado. Além da distribuição de favores baseada em valores pessoais, existia a busca pela manutenção do status da família em que o sujeito está inserido. O governador geral, em carta remetida a ao Governador Dom Pedro de Almeida, expôs que os serviços de Antônio Curado Vidal não eram suficientes para ser nomeado mestre de campo, e que não eram válidos os “merecimentos” que Negreiros apontou. Afonso Furtado de Castro afirmou que

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querendo [...] dar a Vossa Senhoria este gosto, e fazer a André Vidal de Negreiros que também me escreve apertadamente sobre este negócio aquela lisonja, [...] me acho sem a fé de ofícios, e sem as certidões [...] e ocasiões [militares] em que se achou para nela se relatarem os fundamentos e 143 justificação com que eu o provejo .

O favorecimento a Antônio Curado Vidal fica mais evidente, quando o governador geral afirma que essa nomeação poderia causar-lhe problemas, pois não respeitava o costume das anteriores, para as quais foram indicadas pessoas com mais serviços. Afonso Furtado de Castro chega a chamar o pedido de Negreiros de “fineza”144. Este ambiente que poderia ser classificado como um cenário de corrupção explícito tem sido interpretado de outra forma na historiografia sobre o império português. Uma grande importância tem sido atribuída para as relações de reciprocidade, ou de troca, presentes nesta sociedade do século XVII, e vista como uma dos elementos balizadores das interações entre os diferentes grupos sociais. Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha chamaram este tipo de configuração de economia do dom145, uma forma de organização social que obedecia a uma lógica clientelar146. A trajetória seguida por Antônio Curado Vidal reflete, levando-se em consideração as influências da sociedade sobre o indivíduo, o lugar social que ocupa, ou seu status. Ao refletir sobre esta questão, a partir do conceito de habitus147, apreende-se que existe uma expectativa de comportamento, e que está relacionada com o grupo no qual o indivíduo se insere. O que significa afirmar que, de uma maneira não automática ou determinada, Antônio Curado Vidal assumiu uma posição que lhe era esperada ao adotar práticas que eram próprias de sua posição: ser um militar de alta patente, senhor de terras, possuir algum cargo administrativo, agregar ao patrimônio familiar bens materiais e imateriais, como hábitos de ordens militares, utilizar a força quando preciso e desfrutar dos benefícios que determinada relação interpessoal possa oferecer. Tem-se, dessa forma, os traços mais gerais que caracterizam Antônio Curado Vidal e as relações que mantinha. Analisar-se-á, agora, as acusações feitas a ele e suas implicações no contexto na qual estão inseridas. A partir dos pontos que serão levantados, será possível refletir sobre o que a câmara de

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Coleção Documentos Históricos, vol. 10, p. 151-152. Carta para o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida sobre o posto de Mestre de Campo daquela capitania. 144 Coleção Documentos Históricos, vol. 10, p. 151-152. Carta para o Governador de Pernambuco D. Pedro de Almeida sobre o posto de Mestre de Campo daquela capitania. 145 HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (Org.). História de Portugal: Antigo Regime, v. 4. Lisboa: Estampa, 1993. 146 GOUVEA, M. de Fátima S.; FRAZÃO, Gabriel A.; SANTOS, Marília N. dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português 1688-1735. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n.8, jan-jun 2004, p. 97. 147 Pierre Bourdieu, em O campo econômico, define habitus como a mediação entre uma “posição no espaço social e as práticas, as preferências”, como “uma disposição geral diante do mundo”. Em Razões práticas sobre a teoria da ação, Bourdieu afirma que os “habitus são os princípios geradores de práticas distintas e distintivas” e “estabelecem as diferenças entre o que é bom e mau” para determinado grupo. Para este artigo, pensa-se este conceito dentro do universo mental de grupos que se declaravam como da “governança” e, portanto, aptos para exercerem cargos de mando. BOURDIEU, Pierre. O campo econômico: a dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação. 11ed. Campinas: Papirus, 2011.

61 ISSN 2358-4912 Olinda pretendia quando buscava a “quietação” dos povos, suas estratégias para a manutenção de sua importância e qual era a sua definição do governador ideal para a capitania de Pernambuco. Vidal foi acusado, em 1676, de ter mandado matar a sua madrasta e mais dois parentes dela, o seu cunhado, Miguel Rodrigues Valcacer, e seu genro, Luís Pereira. O assassinato de parentes rituais homens e mesmo o de sua madrasta seria uma maneira de diminuir a divisão da riqueza da família ou de garantir um quinhão maior na repartição que ocorria nos casamentos. Fora do círculo familiar, de acordo com a acusação, Vidal mandou cortar um membro de um mulato carameleiro chamado João, de sua propriedade, e capou com suas próprias mãos um mulato de nome José. Os assassinos contratados por Antônio Curado Vidal eram indivíduos que tinham algo a ganhar com o mestre de campo, todos de uma condição social inferior: o fogueteiro João Gomes, o mulato Antônio João, um mulato de seu tio nomeado Domingos “tapa brica” e um crioulo chamado Luís, foram acusados de ter matado o capitão Martim Paco; Antônio Carvalho, por fim, ficou encarregado de matar a Amaro Cordeiro e foi agraciado com o posto de alferes148. A lista de acusadores de Antônio Curado Vidal é longa e nela estão contidos nomes importantes da administração municipal e militares: o capitão Francisco Pereira Guimarães, o alferes Francisco Fernandes Reja, o capitão Manuel da Costa Gadelha, o capitão Bartolomeu Cabral de Vasconcelos, João Gomes de Melo149, Miguel Rodrigues, Manuel Gonçalves Correa, Álvaro Barbalho de Lira (ver tabela 2), Diogo Figueira, o capitão de infantaria Zenóbio Acioli Vasconcelos (ver tabela 2), João Alves de Carvalho, Miguel Álvares, Tomé Soares, Miguel do Vale e Domingos Dias Soeiro. Analisando-se as tabelas 1 e 2, vê-se que há uma mudança de nomes em relação aos dois anos. Há somente a permanência de Gaspar de Sousa Uchoa. Poder-se-ia afirmar que a diferença do discurso da câmara de Olinda em relação ao governador de Pernambuco é resultado de permuta dos seus oficiais. Não obstante, é preciso ressaltar a presença de dois acusadores de Antônio Curado Vidal e de D. Pedro de Almeida. Isso reforça a hipótese de uma negociação entre as partes. Tem-se, portanto, uma briga de iguais. E isso reflete o caráter faccioso das elites de Pernambuco que se afasta da divisão clássica entre nobreza da terra e mascates, presente na historiografia de Pernambuco150. Existia, também, uma divisão entre a própria elite olindense, que vivia seus momentos de “inquietação”. Nesse ambiente de grandes tensões, a figura do governador aparece como um facilitador por excelência para a resolução dos conflitos. Antes de aprofundar esta questão, entretanto, convém entender o que era a elite de Olinda na segunda metade do século XVII e início do XVIII. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1064. Oficial da câmara de Olinda em 1664: AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 742; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 753. 150 As rivalidades existentes entre senhores de engenho e mercadores eram as mais evidentes da capitania. Pode ser percebida facilmente pela leitura da documentação. Sobre esse assunto, Charles Boxer, em A idade do ouro no Brasil, faz um contraponto entre os conflitos de Pernambuco e as disputas entre paulistas e emboabas, nas regiões das minas. Para o autor, nesses dois casos, havia uma clara distinção entre insiders e outsiders, ou reinóis e “naturais da terra”. As tensões entre mascates e senhores de engenho fazem uma dos capítulos mais importantes da historiografia de Pernambuco. Para uma contextualização mais aprofundada sobre este tema: Cf. BOXER, C. R. The Golden age of Brazil, 1695-1750: Growing pains of a colonial society. 3ed. California: University of California Press, 1969; MELLO, Mário. A Guerra dos Mascates como afirmação nacionalista. Recife: CEPE, 2012; entre outros trabalhos: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 149

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ISSN 2358-4912 Tabela 01 – Oficiais da Câmara de Olinda em outubro de 1676 OFICIAIS OCUPAÇÃO Gaspar de Sousa Uchoa Capitão, mestre de campo, provedor da santa casa de misericórdia, em 1660, e senhor de terras. Luís Barbalho de Vasconcelos Sim mais informações João Cavalcanti de Albuquerque151 Sim mais informações Nuno Camelo Capitão Matias de Sá Sem mais informações 152 [Manuel Leitão de Vasconcelos] Sem mais informações Fontes: AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 15, Doc. 1561, AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 20, Doc. 1906; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1060.

Tabela 02 – Oficiais da Câmara de Olinda em 1677 OFICIAIS Mai Ago Dez OCUPAÇÃO Zenóbio de Acioli Vasconcelos X X Coronel, mestre de campo. Gaspar de Sousa Uchoa X X X Capitão, mestre de campo, provedor da santa casa de misericórdia, em 1660, e senhor de terras. Manuel da Silva Pinto X X X Senhor de terras. Manuel Carneiro da Cunha X X Coronel de Ordenanças, provedor da santa casa de misericórdia, em 1697. Álvaro Barbalho de Lira X X Sem mais informações. Gaspar da Costa Casado X X Capitão Fontes: AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 15, Doc. 1561; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1071; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1087; AHU-PE, Papéis Avulsos Cx. 11, Doc. 1098; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 2, p. 101, 253-254; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 16661700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 4, p. 43, 70. 325; COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 5, p. 29.

A maior referência para os estudos desse período é Evaldo Cabral de Mello. Em A Fronda dos Mazombos, este autor analisa os conflitos entre a câmara de Olinda, autoridades régias e os comerciantes da praça mercantil do Recife. A nobreza da terra de Olinda, também identificada de açucarocracia por Mello, demonstra possuir um sentimento de exclusividade em relação ao acesso dos cargos camarários. Além disso, foram os responsáveis diretos pela deposição de dois governadores: Jerônimo de Mendonça Furtado, em 1666, e Sebastião de Castro Caldas, em 1710, depois de uma tentativa de assassinato, deflagrando a Guerra dos Mascates153. As questões mais latentes estavam relacionadas ao endividamento dos senhores de engenho e à sua respectiva cobrança por parte dos credores, muitas vezes protegidos pelos governadores. Uma questão bastante cara ao grupo que hegemonizava os cargos da câmara de Olinda, na segunda metade do século XVII, era a reconstrução da antiga vila, que foi incendiada pelos holandeses. A intenção de reerguer Olinda iniciou-se logo após a expulsão dos holandeses. O governador André Vidal de Negreiros foi um dos que se empenharam em conseguir, além da reconstrução a vila, transferir a sede administrativa de Recife para Olinda. Ainda em 1709, apesar dos esforços de alguns de 151

De Acordo com Pereira da Costa, era juiz ordinário. COSTA, F. A. Pereira. Anais Pernambucanos: 1666-1700. 2ed. Recife: FUNDARPE, 1983. v. 4, p. 280. 152 Não há certeza em relação a este nome, tendo em vista o estado da documentação. 153 MELLO, Evaldo C. de, op. cit.

63 ISSN 2358-4912 seus antigos moradores, a então Cidade de Olinda permanecia quase desabitada. O governador Sebastião de Castro Caldas, no mesmo ano, afirmava que

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não só deixaram os moradores de reedificar as suas casas por falta de cabedais, e por estarem habituados a viverem nas suas fazendas com mais comodidade e liberdade, mas impossibilitaram a seus sucessores para o não poderem fazer em nenhum tempo, por quanto trataram de vender as pedras das suas casas para as cercas, e obras dos conventos e para vir para o Recife para as casas que nele fabricavam, e nesta forma foram diminuído de tal sorte a dita Cidade que em ruas inteiras nem alicerces lhe deixaram, e de tal sorte que ninguém sabe os chãos que lhe pertencem por se não 154 acharem demarcadas, e todas cobertas de mato .

A falta de recursos para a reconstrução de Olinda provocou uma dispersão dos oficiais de sua câmara, que tiveram que se dividirem entre a vila, e depois cidade, e as suas fazendas e engenhos, mais distantes do litoral. Significa que Olinda não possuía a mesma dinâmica social do período anterior à invasão por parte dos holandeses. O acréscimo do status da localidade e a hegemonia política de Olinda contrastam com uma involução urbana, em uma flagrante contradição. Isso revela a preponderância da política em relação à economia, perceptível na medida em que os senhores de engenho, em geral, possuíam uma posição privilegiada em relação aos comerciantes, não obstante o seu poder econômico. O grupo de Olinda, assim, mantinha-se no poder por meio do uso da coerção aos governadores e do exclusivismo, conferido pela proteção que a legislação proporcionava: com a limitação do acesso aos cargos camarários155 e com a proibição do confisco de engenhos e escravos para o pagamento de dívidas. Esses ciumentos e furiosos vassalos tinham que ser controlados. Essa era uma das principais tarefas dos governadores escalados para a capitania de Pernambuco: administrar as tensões existentes entre os produtores de açúcar, feridos pelo estado em que se encontrava Olinda, e os comerciantes fornecedores de crédito, ansiosos pela emancipação do Recife. Havia, também, conflitos dentro da açucarocracia, refletindo-se em um quadro menos homogêneo deste grupo. Quais eram, então, as qualidades necessárias para controlar as tensões em Pernambuco? Para os oficiais da câmara de Olinda, existia a necessidade da manutenção da hegemonia de sua cidade com a presença constante do governador. Em 1661, Francisco de Brito Freire assumia o governo da capitania de Pernambuco, passando a realizar o seu expediente no Recife. Descontentes, os oficiais da câmara reclamarão ao Rei afirmando que era “lastimosa coisa considerar se despovoar o melhor lugar que Vossa Majestade tem em o estado do Brasil”. Diziam, também, que os governadores seguintes deveriam seguir o exemplo de André Vidal de Negreiros quando esteve à frente da capitania. Outro ponto importante reclamado pelos oficiais é a presença do ouvidor, elemento importante, assim como o governador, para a manutenção da justiça156. Por vezes, em uma eventual alteração dos ânimos, o governador era visto pela câmara como a figura que promoveria a “quietação”. Em 1677, quando o conselho municipal muda o discurso de avaliação em relação ao governador D. Pedro de Almeida, foi afirmado que ele não teria agido “com ódios, ou afeições”, sem permitir que os poderosos oprimissem os pobres. O governo seguiu-se, foi afirmado, “com tanta suavidade, [...] que ficam estas capitanias sentindo muito a sua falta, pelo grande sossego, e quietação que no seu tempo lograrão”157. Pelo exposto no ano anterior, quando diziam que D. Pedro de Almeida era conivente com as “maldades” que aconteciam, tem-se um quadro totalmente inverso. Não se sabe o que teria provocado essa mudança de postura, tendo em vista que, em 1677, havia oficiais que eram os acusadores de Antônio Curado Vidal e do governador. O que parece ser algo aparentemente certo é um acerto de contas entre as partes. O governador era vista, nesta sociedade, como aquele que incorporava uma das principais atribuições do rei. Dentro da concepção corporativa e jurisdicionalista da sociedade, admite-se que esta seria como “um organismo, cujo bem estar geral depende do desempenho autônomo das funções 154

AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 23, Doc. 2115. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 156 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 632. 157 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064. 155

64 ISSN 2358-4912 dos vários órgãos ou membros”. A “cabeça” desse corpo social deveria cuidar em manter a harmonia entre todos os corpos sociais, “atribuindo a cada um o lugar que lhe é próprio”158. Nuno Gonçalo Monteiro afirma que “o fim último do ‘bom governo’ era a justiça’, entendida como dar a cada um o seu lugar”. A justiça, vista dessa forma, seria a “primeira” atividade do poder159. Manter a harmonia e, consequentemente, a justiça era algo difícil na capitania de Pernambuco, tendo em vistas as inimizades existentes na capitania, e que eram conhecidas pelo Conselho Ultramarino. Em 1709, este havia solicitado para o governador Sebastião de Castro e Caldas para que lhes informasse sobre o porquê de o governador estar administrando a justiça em Olinda, e não no Recife. Caldas respondeu relatando, de maneira detalhada, o momento em que viviam os habitantes de Olinda e Recife. O governador afirmou os “moradores da governança” viviam em seus engenhos e fazendas

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com sofisticarias, [...] apontando meios inúteis para o fim que pretendem [manutenção da hegemonia de Olinda], e prejudicais a boa ordem e administração de justiça, o que já fazem por opinião, e hombridade; encaminhada por ódio à vingança dos moradores do recife, por que se não dá 160 igual entre os arrais de Portugal e Castela, nem entre outras nações onde o costuma haver .

Diante destas palavras, é possível perceber as dificuldades pela quais passavam os governadores de Pernambuco, tendo que conviver com súditos que se odiavam e que disputavam a hegemonia política na capitania. O grupo de Olinda, em especial, exigia um tratamento diferenciado e a concessão de privilégios no trato dos assuntos da governança, como a exclusão dos mercadores nas eleições para oficiais da câmara. Por outro lado, esses indivíduos viviam em uma espécie de “disputa interna”, por vezes resultado de disputas por terras, exacerbando os discursos em relação à situação política da capitania. Isso é perceptível no uso de palavras como “guerra civil”, detona um momento tenso e de acirramento dos ânimos. Não se pode considerar essa expressão como exagerada. Afinal, o conflito, armado ou não, surge como uma das possibilidades de ação dos grupos, no momento em que sentem que há um desequilíbrio entre os rumos da política local e seus interesses. Ressalta-se que a câmara de Olinda, assim como outras do Império português, foi pródiga em expulsar governadores, como Jerônimo de Mendonça Furtado, em 1666161. Soma-se a isso o sentimento exclusivista da nobreza de terra de Pernambuco. Segundo Evaldo Cabral de Mello, este grupo julgava merecer “um tratamento preferencial, um estatuto jurídico privilegiado” que o colocou em oposição aos mercadores, “legitimando sua hegemonia sobre os demais estratos sociais da capitania”162. Isso, não excluiu, não obstante, a existência de graves agitações dentro deste próprio grupo. A chave para o entendimento do conflito analisado é a ideia de quietação/inquietação, traduzida pelo como a manutenção de uma ordem, da harmonia entre os grupos sociais. Esta ideia surge a partir da geração das tensões nos desdobramentos das disputas políticas. No caso analisado, percebeu-se que o governador seria a figura mais importante na resolução dos conflitos, sendo esta uma de suas maiores atribuições, percebida e cobrada pelos agentes do poder local. O governador de Pernambuco tinha que conviver com múltiplas tensões, além da mais perceptível e estudada: a entre senhores de engenho e mercadores. Percebeu-se, também, o caráter faccioso dos grupos de Olinda, que queriam uma maior atenção do governador para os seus interesses. Ao final, os problemas gerados pelas ações de Antônio Curado Vidal foram, provavelmente, absorvidos e lentamente esquecidos, até que não houvesse mais por que revirar tais assuntos. Ao final, as negociações já haviam sido concretizadas.

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HESPANHA, António M. História das instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 208-209. 159 MONTEIRO, Nuno. G. Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do período joanino. Análise social. Lisboa, vol. XXXV (157), 2001, p. 962. 160 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, Doc. 1064 161 CF. MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 162 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 127.

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ATIVIDADES CIENTÍFICAS NA CAPITANIA DE SÃO PAULO (1796-1823) Alex Gonçalves Varela163 Temos como objetivo analisar a atividade científica praticada por naturalistas ilustrados na Capitania de São Paulo, através de suas memórias científicas, discutindo a contribuição dessas atividades para o processo de institucionalização das ciências naturais na América Portuguesa. Pretendemos fazer uma reflexão no campo da história das ciências ilustradas (séculos XVIII e XIX). Para a realização de tal investigação selecionamos três ilustrados: José Bonifácio de Andrada e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrade, e João Manso Pereira. Um ponto em comum une as suas respectivas trajetórias de vida: o estudo das potencialidades do mundo natural da América Portuguesa, mais especificamente da Capitania de São Paulo. Suas produções científicas são notáveis, porém ainda pouco estudadas. Compreendem memórias científicas produzidas nas Academias de que foram sócios e artigos publicados em diversos periódicos científicos, além de relatórios, roteiros e memórias das viagens científicas de que participaram. Portanto, o propósito em manter o envolvimento com estudos acerca da história das ciências no período da ilustração encontra nos três estudiosos mencionados campo apropriado e perspectivas fecundas de trabalho. O estudo das memórias dos naturalistas João Manso Pereira, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e José Bonifácio de Andrada e Silva serviu como um importante elemento de comprovação da existência de práticas científicas na América de colonização portuguesa. A importância da análise contextualizada de tais memórias residiu no fato de se poder observar a atividade científica como ela era realmente praticada pelos ilustrados coloniais, a concepção de ciência que partilhavam, suas posturas metodológicas e sua proximidade ou afastamento das modernas teorias científicas, entre outras questões. Portanto, as memórias aqui analisadas constituíram-se como a “pedra preciosa” para refutar a tese de que a América Portuguesa caracterizou-se por um grande vazio de práticas científicas no período compreendido entre o final do Setecentos e o início do Oitocentos. A região da América Portuguesa em que os três naturalistas mencionados atuaram foi a Capitania de São Paulo. Ao estudarmos esse espaço colonial observamos uma série de esforços para que as práticas científicas fossem ali institucionalizadas164, uma vez que tal região ocupou um lugar central no projeto reformista político-científico de D. Rodrigo, que visava modernizar a administração do Império português para assim manter a sua sobrevivência e da própria monarquia portuguesa. No projeto reformista político-científico de D. Rodrigo, as “produções naturais” da colônia deveriam ser pesquisadas e estudadas cientificamente, pois elas eram vistas pelos dirigentes lusos como fontes geradoras de riquezas. Para a tarefa de mapeamento, levantamento e investigação dos recursos naturais coloniais, a Coroa portuguesa deu início a um processo de contratação dos estudiosos portugueses, quer reinóis, quer coloniais. Esses naturalistas a serviço da Coroa teriam um papel fundamental no âmbito do projeto do todo-poderoso “ministro da Viradeira”, uma vez que eles fariam conhecer aos dirigentes lusos a imensa variedade e diversidade da riqueza natural colonial. Portanto, os homens de Estado e os da ciência estavam unidos numa única missão: o projeto de modernização do Império português. A Coroa portuguesa contratou naturalistas com o objetivo primordial de averiguar a presença de ferro e salitre na Capitania de São Paulo. O primeiro a ser contratado foi o químico João Manso Pereira, que se revelou um caso notável de autodidatismo num indivíduo que jamais saiu da América Portuguesa para ir realizar estudos superiores em Portugal ou qualquer outro país europeu, ao contrário de Martim Francisco e, particularmente, José Bonifácio, que se distinguiu por uma brilhante carreira intelectual com os refinamentos de uma educação superior europeia. João Manso publicou diversas memórias sobre temas os mais variados possíveis, deixando transparecer o enciclopedismo típico dos estudiosos da época, assim como se revelou uma homem prático ao produzir inúmeras invenções com o objetivo de torna-las úteis à sociedade em que vivia. 163

Professor do Departamento de História da UERJ. Shozo Motoyama. Ciência em São Paulo: um Esboço Histórico. In: História da Cidade de São Paulo. v. 1: a Cidade Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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67 ISSN 2358-4912 Tais características também se faziam presentes nas memórias de Martim Francisco e José Bonifácio, evidenciando assim o quanto estavam integrados ao clima de opinião da Ilustração. João Manso foi um naturalista preocupado com a difusão de inovações técnicas pela sociedade colonial. Maior exemplo disso foi a sua proposta de reforma dos alambiques, com a qual buscou convencer os senhores de engenhos coloniais da pouca eficiência dos alambiques existentes nos engenhos da América Portuguesa, apresentando soluções técnicas para melhorar o seu desempenho. Essa preocupação com a difusão de novidades técnicas pela Capitania de São Paulo o filiava, assim como a Martim Francisco, ao grupo de naturalistas que gravitavam ao redor do Frei Conceição Veloso na Tipografia do Arco do Cego, local onde eram produzidas traduções e edições técnico-científicas que visavam promover a modernização e o desenvolvimento de uma série de atividades. Tais publicações deveriam ser espalhadas pela colônia com o intuito de difundir as novidades técnicocientíficas que visavam promover a modernização e o desenvolvimento de uma série de atividades. Tais publicações deveriam ser espalhadas pela colônia com o intuito de difundir as novidades técnicocientíficas da época. Tal postura revela o engajamento dos Ilustrados coloniais com o projeto de modernização do Império Português encabeçado por D. Rodrigo. Os principais trabalhos de João Manso foram realizados no campo da química. Em várias passagens de suas dissertações mostrou estar conectado às principais ideias desse campo científico, sobretudo às propostas e conceitos defendidos pela “revolução química” de Lavoisier, como a utilização do conceito de calórico e o elogio e uso da nomenclatura química estabelecida pelo estudioso francês. Porém, como também procedeu Martim Francisco em uma de suas memórias, Manso ainda se reportava aos autores da química pré-Lavoisier, deixando assim registrada em seu trabalho a presença de duas diferentes tradições químicas. Tal fato reflete o período de transição então vivido por esse campo do conhecimento, e não o atraso do pensamento do autor em relação à ciência tal como ela era prática na época. Quanto ao projeto de uma instalação de uma fábrica de ferro na Capitania, João Manso não teve o mesmo sucesso – nesse projeto, o autoditatismo foi, sem dúvida, o principal obstáculo. Isso porque o estudioso não teve a possibilidade de frequentar as principais escolas de mineração da época, como Bergakademie, em Freiberg, e ter o conhecimento das principais técnicas de mineração aplicadas até então para a extração dos materiais minerais e para a construção de estabelecimentos siderúrgicos. A esse fato devem-se acrescentar as dificuldades relativas à natureza do material mineral da região de Araçoiaba. Quanto ao projeto de produção de salitre, o naturalista se empenhou no processo de construção de nitreiras artificiais para tentar obter o material e, numa visão fantasiosa, acreditou ser possível obtê-lo por meio da putrefação de cadáveres. Para o lugar de João Manso, o qual não teve êxito nos projetos dos quais se encarregou, a Coroa portuguesa contratou o naturalista Martim Francisco Ribeiro de Andrada, nomeado para o cargo de Diretor Geral das Minas de Ouro, Prata e Ferro da Capitania de São Paulo, ao realizar inúmeras viagens mineralógicas pelo seu território, mapeando, pesquisando e catalogando não apenas os materiais minerais presentes em seu solo, como também as suas produções vegetais. As memórias mineralógicas, fruto das viagens realizadas por Martim no interior da Capitania, serviram como importante testemunho para a análise da sua prática científica. Em tais dissertações, observa-se que o viajante-naturalista seguia o conjunto das práticas científicas mineralógicas tal como elas eram praticadas no período, seja pelos termos científicos que ele utilizava como pela metodologia de trabalho que partilhava – ou seja, descrição, identificação e classificação dos minerais em seu local de ocorrência -, deixando transparecer o caráter geográfico que dava ao seu trabalho. Outra característica da sua prática científica foi a ênfase do naturalista na observação das regularidades permanentes, integrando-se a uma tradição de estudos que tinha em Buffon um dos seus grandes representantes. A observação e a descrição das regularidades permanentes enquanto consequência de processos são muito presentes em seus trabalhos. Ainda que as reflexões teóricas não tenham ocupado de forma predominante as páginas de suas produções científicas, Martim não deixou de se preocupar com tais questões. Em uma de suas memórias apareceu o posicionamento do autor numa das chamadas “controvérsias geológicas” que existiram no período, a que versava sobre a origem da basalto, argumentando não ser ele um produto vulcânico, como afirmavam os vulcanistas, mas de origem sedimentar (química).

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68 ISSN 2358-4912 A quantidade de minerais identificados por Martim em seu trabalho na Direção das Minas vinha ao encontro de uma política estatal que tinha como objetivo a produção mineral. Daí, o seu empenho em examinar as ocorrências de diversos minerais como o ouro, a prata, o ferro, entre outros. Nos relatórios de viagens de Martim prevaleceu o tom descritivo, estando eles inseridos no projeto universalizante da História Natural. A descrição dos minerais e das plantas, ainda que fosse o seu objeto de interesse de primeira ordem, se juntava a descrições de outra natureza como o estado de cada localidade da capitania paulista, as informações sobre o número de habitantes, as produções agrícolas, os costumes, as atividades de trabalho, a indumentária e os prédios, entre outros aspectos. A presença desse tom descritivo era uma das características da história natural do setecentos, cabendo ao historiador natural observar e coletar dados. Nos textos de Martim, a visão utilitária da ciência se fez presente. Para o autor, a ciência deveria ser aplicada para o bem público e para proporcionar benesses para a humanidade. A ciência seria a fonte capaz de solucionar os problemas existentes na sociedade da Capitania de São Paulo. Tal visão de ciência também se fazia presente nos textos de João e nos de José Bonifácio, assim como nos textos dos demais naturalistas ilustrados que trabalhavam a serviço da Coroa portuguesa naquele momento. A ida ao campo foi uma das características marcantes da prática científica de Martim Francisco, traço este que também se fazia presente nas memórias dos demais naturalistas. A necessidade de se averiguarem as produções naturais necessárias para o desenvolvimento do Reino levou os naturalistas a se lançarem pelas diversas regiões da América Portuguesa. No caso de Martim e José Bonifácio, os minerais se constituíram como os materiais mais estudados e analisados, sempre descritos no local de sua ocorrência. Quanto ao projeto de instalação da fábrica de ferro no Morro de Araçoiaba, Martim logo que assumiu a chefia da Direção das Minas buscou indicar o local mais adequado para ser erguido o estabelecimento e redigiu informações sobre a localização espacial do mineral de ferro encontrado na região. Todavia, essa instalação não foi imediata, tendo ocorrido somente após a vinda da Corte para a América Portuguesa. O naturalista também enfrentou alguns problemas para a realização de sua prática científica no momento em que realizava as viagens científicas pelo interior da Capitania, fato registrado em seus diários. O péssimo estado das estradas foi uma reclamação constante, uma vez que dificultava o acesso e atrapalhava o deslocamento de uma região para outra. Outra dificuldade foi a contenda entre o naturalista e o governador da Capitania, fato que não foi apanágio da relação entre esses dois personagens, mas dos vários naturalistas que trabalharam no espaço colonial. No ano de 1819, José Bonifácio retornou ao Brasil, depois de permanecer na Europa por mais de três décadas. Quando por aqui chegou, o Rio de Janeiro já havia se tornado a nova sede da Corte Portuguesa, ou melhor, a capital do Império luso-brasileiro. A abertura dos portos pôs fim à condição de dependência colonial e a posterior elevação a Reino colocou o “Brasil” em condições de igualdade com a nação portuguesa. Uma das primeiras atividades que José Bonifácio realizou em sua terra natal foi a viagem mineralógica pela Capitania de São Paulo em companhia do irmão Martim Francisco. O relatório dessa viagem apresentou temas que até então não haviam aparecido nas memórias elaboradas exclusivamente pelo último naturalista. A presença de Bonifácio trouxe algumas reflexões que ele vinha desenvolvendo ao longo de suas viagens científicas pelo território luso no âmbito da Intendência Geral das Minas e Metais do Reino. Entre esses temas apareciam a valorização da agricultura como fonte de riquezas, a utilização do sistema de classificação dos minerais do geognosta Abraham Gottlob Werner, a preocupação coma preservação das matas e arvoredos em virtude da importância dessas produções vegetais como fonte de combustível para os fornos e forjas das fundições de ferro e engenhos, e a prática de estudar e analisar as minerações antigas para servir de guia para as novas descobertas mineralógicas. As memórias científicas produzidas por João Manso, Martim Francisco e José Bonifácio tiveram um papel de extrema relevância para a constituição de redes de informação que ajudariam o governo luso a conhecer de forma mais detalhada a Capitania de São Paulo e tomar as medidas necessárias para introduzir as reformas necessárias para a sua modernização. Tais memórias informavam sobre o estado de cada localidade, o número de habitantes, as produções naturais minerais e vegetais que continham, as atividades comerciais e agrícolas que desenvolviam e os costumes dos seus habitantes, entre outros aspectos. Além disso, no caso mais específico de Martim e Bonifácio, tais memórias em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

69 ISSN 2358-4912 sentido prospectivo traçavam políticas de terras, migratórias, indigenistas, anti-escravistas, mineralógicas, botânicas e metalúrgicas. Além da viagem mineralógica, José Bonifácio preocupou-se com a elaboração de projetos científicos que contribuíssem para a implantação do conjunto das necessidades da história natural no território do “Reino do Brasil”. Tanto que propôs a criação de uma Universidade, de Sociedades Econômicas, de um estabelecimento da administração das Minas, de Escolas Práticas de Metalurgia e de uma Academia de Agricultura, além da organização de expedições científicas, entre outras instituições de importância fundamental para a formação de uma elite capaz de promover a modernização da sociedade brasileira. No ano de 1821, Bonifácio e Martim Francisco iniciaram as suas respectivas trajetórias de vida no campo da política enquanto estadistas e parlamentares, ao integrarem a Junta Provisória de São Paulo. A partir desse momento, os estudos mineralógicos deixaram de ocupar o lugar central na trajetória de vida dos dois naturalistas, uma vez que a preocupação principal passou a ser aquela voltada para a formulação de um projeto político para o país que começava a surgir. Contudo, em seus textos políticos, destacando-se principalmente os de José Bonifácio, observamos a utilização de metáforas científicas – como a ideia de amalgamação e a ideia de de que a s reformas sociais deveriam ser operadas conforme o ritmo lento e gradual das mudanças que ocorriam no mundo da natureza, conforme afirmava o naturalista sueco Carl von Linneu, entre outras -, que deixavam transparecer a importância que a história natural, sobretudo a mineralogia, teve em sua formação. Tal fato nos leva a afirmar que as faces de naturalista e de político (estadista e parlamentar) na trajetória de vida dos dois personagens são indissociáveis, característica esta presente nos ilustrados do século XVIII. Com o convite feito por D. Pedro a José Bonifácio para ser o seu principal ministro, a intromissão deste nos assuntos políticos do país ocorreu de forma definitiva. Junto com Bonifácio, viria o irmão Martim Francisco, que passava a ocupar a pasta da Fazenda, constituindo assim o gabinete dos Andradas, responsável pela elaboração de um projeto político que buscava construir uma nação civilizada nas Américas. No âmbito da pasta da Fazenda, Martim redigiu o texto “Memória sobre a estatística ou análise dos verdadeiros princípios desta ciência e sua aplicação à riqueza, artes e poder do Brasil” no qual elaborou o projeto de um levantamento estatístico do Brasil, para que assim pudesse contabilizar os diversos elementos que compunham o país, conhecer as especificidades de cada localidade e tomar as medidas necessárias para a aplicação de reformas que possibilitassem o seu desenvolvimento econômico. José Bonifácio centrou o seu projeto político para o Brasil em três temas centrais: o desenvolvimento das ciências, a reforma das sesmarias e da agricultura, e a inclusão dos habitantes do novo país, eliminando as profundas diferenças que os unia, incluindo aí a escravidão. A eliminação da sociedade escravista viria a ser o objetivo primordial de Bonifácio para a construção de uma nova sociedade, de acordo com os padrões modernos europeus. Imbuído dos ideais do reformismo ilustrado europeu e defensor de um modelo centralizado de monarquia, Bonifácio propôs um projeto civilizador que encerrava uma proposta de inclusão dos vários setores sociais, embora de forma subordinada à elite brasileira. Para a realização de tal projeto, era necessária a manutenção da unidade de todo o território da colônia portuguesa da América com a implementação de reformas sociais profundas, como a gradual extinção da escravidão e o processo de civilização dos índios. Somente assim poderiam amalgamar-se os elementos que representavam a heterogeneidade da população brasileira constituída por brancos, índios, mulatos, pretos livres e escravos, entre outros, e torna-la uma e indivisa e, portanto, moderna e civilizada. O passo seguinte dessa nação imaginada por Bonifácio seria a criação de uma nova “raça”, com um conjunto de características culturais comuns, que servisse de substrato para a nova identidade nacional. E, para ele, a alternativa proposta era a mestiçagem, que deveria ajudar no processo de homogeinização da nação e ao mesmo tempo civilizar os índios e os negros, por meio da mistura sanguínea, mas também cultural, com os brancos. Daí, o estadista propor a vinda de imigrantes de vários grupos sanguíneos para o Brasil, como os alemães e os chineses, entre outros, deixando assim registrado que futuro do país estava na mistura de todos os grupos. Os três personagens estudados revelam a riqueza do pensamento ilustrado no Brasil da virada do século XVIII para o XIX. Em suas respectivas trajetórias de vida, a ciência e a política sempre caminharam lado a lado. Em primeiro lugar, porque estavam engajados no projeto reformista políticoV Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

70 ISSN 2358-4912 científico de modernização do Império português liderado por D. Rodrigo. A ciência foi o elemento que lhes forneceu o referencial metodológico para mapearem e pesquisarem as “produções naturais” do Reino e da colônia com o intuito de descobrir novas fontes de recursos econômicos que pudessem promover o desenvolvimento e a modernização da nação portuguesa e das partes que compunham o seu Império Atlântico, sobretudo o Brasil. Em segundo lugar, ao serem chamados para atuar como estadistas e parlamentares, no caso específico de José Bonifácio e Martim Francisco, passaram a formular os projetos políticos para a jovem nação brasileira e os meios possíveis para inseri-la no concerto das nações civilizadas. Do Império Luso-americano ao Império do Brasil, foram homens extremamente atualizados com o pensamento europeu e buscaram aplicar e experimentar novos conhecimentos à sua comunidade local.

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Referências MOTOYAMA, Shozo. Ciência em São Paulo: um Esboço Histórico. In: História da Cidade de São Paulo. v. 1: a Cidade Colonial. São Paulo: Paz e Terra, 2004. VARELA, Alex Gonçalves. Atividades Científicas na “bela e Bárbara” Capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009.

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O GOVERNO DE ANTÓNIO DE ALBUQUERQUE NO MARANHÃO: ELITES LOCAIS E TRÁFICO DE ESCRAVOS INDÍGENAS (1690-1701) Alexandre de Carvalho Pelegrino165 Este artigo pretende discutir o governo de António de Albuquerque Coelho de Carvalho no Maranhão (1690-1701). Lá sua família possuía duas capitanias donatárias (Cametá e Cumã), o que, de certa forma, colocava os interesses deste servidor da monarquia portuguesa muito além da rotina administrativa. Ainda nos anos de 1630, a capitania do Cametá foi doada para Feliciano Coelho de Carvalho, filho do então governador Francisco Coelho de Carvalho, que, por sua vez, era avô de António de Albuquerque. Já a segunda foi doada para António Coelho de Carvalho, irmão de Francisco Coelho de Carvalho. Quem herdou esta parcela importante do patrimônio da família foi justamente o pai de António de Albuquerque, também chamado António de Albuquerque, e que foi governador do Estado do Maranhão entre 1667 e 1671166. Optei por dividir o texto em duas partes. Num primeiro momento discutirei a trajetória ascendente de António de Albuquerque, o moço. Sua longa experiência militar nos sertões do Estado do Maranhão transformou António de Albuquerque num governador muito bem quisto pelas elites locais camarárias (principalmente Belém e São Luís). O relacionamento entre essas elites e o governador é justamente o tema da segunda parte. Acredito que esta relação amistosa devia-se, sobretudo, a conjuntura de “sertões abertos” vivida na década de 1690. Graças aos longos anos vivendo entre os moradores, António de Albuquerque foi capaz de perceber que, numa sociedade carente de mão de obra, a boa distribuição do trabalho indígena, forma dominante das estratégias de povoamento daquela época, era condição essencial para o sucesso da colonização. A trajetória de António de Albuquerque: António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o moço, teve o azar de não ser o filho primogênito167. Tinha ainda outros dois irmãos: Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho, o filho primeiro, e Feliciano de Albuquerque Coelho. Como era típico das famílias nobres no antigo regime, o primeiro varão era o herdeiro natural de todo o patrimônio da casa. Restava aos outros rebentos duas opções: a carreira eclesiástica ou as armas. Feliciano de Albuquerque Coelho escolheu, ou foi obrigado a escolher, a primeira opção. Enquanto para António restaram as aventuras militares no ultramar. A história dele mostraria que esta estratégia de manutenção do patrimônio e ascensão social não poderia ter sido mais acertada. Quando ainda era muito jovem, em 1666, recebeu a notícia de que seu pai havia sido nomeado o novo governador do Estado do Maranhão. Pela primeira vez pisaria na América. António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o velho, decidiu levar também o seu filho primogênito. Este fato é conferível a partir do pedido feito para ele receber a mercê do hábito da Ordem de Cristo168. A mesa da consciência e ordens, responsável por julgar os pedidos, recusou a súplica da família, pois além de Francisco ser muito jovem, contrariando os estatutos da ordem, que previam a idade mínima de 18 anos, o suplicante estava de partida para o Maranhão, o que dificultaria as provanças. Não durou muito a primeira passagem de António no Maranhão, já que o governo de seu pai não foi dos mais calmos e após o término do triênio não tardou a voltar para Portugal, levando consigo seus dois filhos. 165

Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) sob orientação do Professor Dr. Ronald Raminelli. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 166 A união das duas capitanias sob administração de uma mesma pessoa só foi possível pelo casamento entre António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o velho, e sua prima d. Inês Coelho de Carvalho, filha de António Coelho de Carvalho e “herdeira” da capitania do Cumã. Chamarei o pai de “o velho” e o filho de “o moço”. 167 Existe uma pequena biografia de António de Albuquerque, ver: LEITE, Aurelino. Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho: capitão-general de São Paulo e Minas do Ouro no Brasil. Lisboa: Agencia Geral das Colônias, 1994. Porém, esta obra é concentrada na sua atuação no Rio de Janeiro e nas Minas, além de conter algumas imprecisões. 168 ANTT. Habilitações da Ordem de Cristo. Letra F. Maço 34. Doc. 94.

72 ISSN 2358-4912 Ainda nesta primeira jornada teve o privilégio de receber educação dos padres jesuítas. Segundo a crônica de João Felipe Bettendorff, foi ele mesmo quem iniciou os dois jovens nos estudos:

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Fiz logo da sacristia, ainda por acabar, classe, e ajuntaram-se ali belos moços para meus discípulos, entre eles os dois filhos do senhor governador António de Albuquerque Coelho de Carvalho, a saber: Francisco, o mais velho, e António, que hoje nos governa, o mais moço, que por aquele tempo teria os seus 13 anos. Iam estudando todos com furor e grande aproveitamento, porque alguns deles já 169 tinham começado a traduzir Quinto Cúrcio.

Em sua segunda partida para o Maranhão foi acompanhar o governador Inácio Coelho da Silva (1678). Seu primeiro posto ocupado foi o de capitão-mor da capitania do Cametá, nomeado pelo próprio pai, donatário dela. Antes disso, já havia mostrado suas qualidades militares em pelejas nos sertões: “principalmente na guerra que se foi dar aos tapuias de corso que invadiram o rio Itapecuru em que se houve com particular trabalho e risco de vida passando duas vezes as capitanias do GrãoPará e Gurupá...”170 Enquanto ele foi capitão-mor do Cametá, esforçou-se na tentativa de resolver os problemas que a capitania enfrentava. Dada a rala população do Estado do Maranhão só existiam duas possibilidades para o “aumento” das capitanias donatárias: ou se transportava população de outros locais, notadamente dos Açores, ou desciam-se os índios dos sertões. Foi na segunda opção que António mirou. O sucesso das iniciativas de António de Albuquerque, o moço, foi recompensado pelo rei com a prorrogação de quatro anos do prazo para povoar a capitania, que já contava com quinze moradores e muitos índios. A carreira de António de Albuquerque foi posta a prova nos tensos anos de 1680. Nessa época, a carência de mão de obra indígena - consequência direta da nova lei de liberdade aos índios promulgada no dia 1 de abril de 1680 - aliada às constantes falhas da companhia de comércio em abastecer as cidades de São Luís e Belém deixavam as elites locais inquietas. O tempo fechou de uma vez em 1684, quando os moradores revoltaram-se contra o estanco, contra o governador e clamavam justiça ao rei171. Francisco de Sá e Meneses, governador na época, pediu para António de Albuquerque, dado o seu prestígio e bom relacionamento com habitantes de São Luís, ir pessoalmente tentar acalmar os ânimos172. No entanto, o fracasso em negociar com os moradores de São Luís nem de longe abalou a carreira ascendente de António, que, em 1685, foi nomeado capitão-mor do Pará173. Por esses anos chegou ao Maranhão o novo governador, Gomes Freire de Andrade, responsável pela pacificação da revolta e punição exemplar dos culpados, até com energia exagerada é verdade, mandando enforcar Manuel Bequimão e Jorge Sampaio de Carvalho, mas, afinal de contas, era necessário mostrar o poder real e evitar novas sublevações. Gomes Freire também empenhou-se em expandir a influência da coroa nos sertões do Maranhão. Neste contexto, um militar como António de Albuquerque tinha um enorme valor: sendo mandado ao cabo do norte a introduzir os missionários da companhia e desenhar os sítios mais convenientes do sertão para se fazerem as fortalezas que servissem para guarda deles o fazer com efeito atropelando muitas dificuldades e em algumas experimentar evidentes perigos de sua 169

BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, p. 316. 170 ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5, f. 305v. 171 Para uma rápida análise das duas principais revoltas coloniais ocorridas no Maranhão no século XVII (1661 e 1684), ver: CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicando clamores’: Queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII).” Projeto História, São Paulo, n. 33, p. 159-178, dez. 2006. 172 João Francisco Lisboa narra o episódio desta forma. Ver: LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 432. Existem alguns trabalhos sobre Alcântara que direta ou indiretamente abordam a trajetória de António de Albuquerque. Ver: VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara no seu passado econômico, social e político. São Luís: AML/ALUMAR, 1999. LIMA, Carlos de. Vida, paixão e morte da cidade de Alcântara – Maranhão. São Paulo: Plano Editorial SECMA, 1997/1998. 173 Neste cargo, gozava de ampla autonomia, inclusive financeira, visto que o rei destinava um montante anual para a sua atuação. O rei confiou a António de Albuquerque a composição das defesas, principalmente as fortificações, nas fronteiras do Estado do Maranhão.

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ISSN 2358-4912 vida pondo de paz o gentio por onde passava gastando muito com ele de sua fazenda nas drogas de 174 que o proveu obrando em tudo com zelo valor e prudência

Sua vasta experiência nos sertões foi essencial, também, para conter os avanços dos franceses, que sempre criaram muitos problemas no cabo do norte175. Para tanto, construiu fortalezas, fez alianças com indígenas e puniu aqueles que se aliavam aos inimigos da coroa portuguesa: e penetrando o sertão do Cumaú domesticar o gentio dele dando principio a uma fortaleza junto a qual se fez uma populosa aldeia, e se resolver a navegar o rio das Amazonas visitando as novas fortalezas e onde experimentou muitos incômodos com dispêndio de sua fazenda e risco de vida no 176 discurso de 5 meses que gastou nesta jornada dando por ordem de Vossa Majestade...

Sua intimidade com os sertões era algo incomum para um homem do seu extrato social. Por isso, seus serviços eram muito apreciados na corte, já que dava “exemplo a todos com o sofrimento do áspero das marchas havendo-se nelas como qualquer soldado sem se excetuar no trato e no trabalho aos mais, e só no despender sua fazenda ser particular...”177 O próprio padre João Felipe Bettendorff atesta a singularidade da carreira de António de Albuquerque. Segundo o religioso, após Rui Vaz de Siqueira, governador do Estado do Maranhão entre 1662 e 1667, somente os Albuquerques aventuraram-se em locais tão distantes da segurança oferecida pelas cidades de São Luís e Belém: Imitou-o depois nas visitas das Capitanias, António de Albuquerque Coelho de Carvalho [o velho], que chegou a visitar o Gurupá, não havendo depois outro governador que até lá chegasse, detendo-se comumente todos entre os limites do Maranhão e Grão-Pará, tirando seu filho, que hoje nos 178 governa, que chegou até o rio Negro, pelo ano 1695.

Ao final do governo de Artur de Sá e Meneses (1689), sucessor de Gomes Freire de Andrade, António de Albuquerque Coelho de Carvalho foi escolhido pelo rei para o cargo mais alto do Estado do Maranhão. A decisão régia foi exaltada pelos oficiais da câmara de São Luís: digo de que tem tomado posse com geral aplauso e aceitação de todos os vassalos de Vossa Majestade moradores neste seu Estado, por havermos concebido de sua prudência, zelo, e outras boas partes grandes esperanças assim nos conveniências do real serviço de Vossa Majestade como na aplicação ao remédio de nossas misérias, já quase insuportáveis que por bem lhe constarem e donde procedem e como podem melhor só levar-se lhe será menos dificultoso remediá-las, havendo criado-se entre nós e vivido muitos anos sendo a causa principal deste nosso conceito a grande piedade que reconhecemos assiste na lembrança de Vossa Majestade para conosco da qual e de sua 179 grandeza procederá toda nossa melhora...

A questão importante que devemos colocar é: em que consistia os “remédios” para a pobreza dos moradores? A câmara municipal era onde estava representada a elite local das Américas. Assim como 174

ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5, f. 305v. Existem alguns documentos onde podemos perceber que, assim como os portugueses, os franceses também partiam em direção aos sertões para participar do tráfico de escravos indígenas. Ainda estou tentando entender como estas guerras influenciavam nos fluxos de escravos indígenas. 176 ANTT. Registro Geral de Mercês. D. Pedro II. Livro 5. A acirrada disputa pelas alianças com os grupos indígenas nas fronteiras explica-se pela enorme importância que eles tinham nas guerras. Quem conseguisse lutar com mais índios ao lado provavelmente sairia vencedor. Sabedores disto, os portugueses sempre empenharam-se em comercializar ferramentas de metal (anzóis, enxadas, pás, armas de fogo etc) com os índios. O próprio rei escrevia que: “Sendo um deles se convém ter contentes e propícios os índios do cabo do norte socorrendo-os gratuitamente com ferramentas e outras drogas, ou ao menos dando essas pelos mesmos preços em que as tirão aos franceses.” IHGB, 1699, 11, 27 (Arq. 1.2.24) 177 Idem. 178 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, p. 250. 179 APEM. Livro de Copiador de Carta (1689-1720). 1690, julho, 28. 175

74 ISSN 2358-4912 no Brasil, no Maranhão eles eram proprietários de terras, engenhos e currais de gado180. Deste modo, interessavam-se bastante por uma eficaz distribuição da mão de obra, especialmente a custos baixos. Então, qual era a forma mais eficaz de aplacar as misérias vividas no Maranhão? Tentarei responder esta questão na segunda parte. O governo de António de Albuquerque no Maranhão teve vida longa, aproximadamente dez anos. Pelos anos de 1699, António passou a escrever ao rei dizendo que estava doente e que necessitava retornar ao reino. O monarca cede aos pedidos do seu vassalo e autoriza seu regresso em 1701. Com seu retorno para Portugal era importante conseguir um casamento, afinal alguém deveria dar continuidade ao nome da família e administrar o extenso patrimônio. Casou-se, então, com d. Luísa de Mendonça. Juntos tiveram o filho herdeiro de António de Albuquerque, Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho181. Entretanto, o seu afastamento do campo de batalha foi temporário. Poucos anos depois do seu retorno a Lisboa já estava novamente em ação na guerra de Sucessão ao trono espanhol. Sua boa atuação lhe rendeu, posteriormente, a nomeação para o governo do Rio de Janeiro (1709). Naquela altura a guerra dos emboabas, grave conflito entorno da administração das minas descobertas no interior da América portuguesa, havia estourado182. Devido à sua capacidade de negociação, António de Albuquerque conseguiu pacificar e colocar sob a administração da coroa lusitana território tão importante. Seu último posto ultramarino foi o governo de Angola em 1721, sendo que lhe restava pouco tempo de vida. Em 1724, António de Albuquerque morreu em Luanda. Assim, podemos concluir que a ascensão social da família foi bastante contundente. Se lembrarmos que Francisco Coelho de Carvalho, avô de António de Albuquerque, o moço, casou-se com Brites de Albuquerque, filha de senhores de engenho em Pernambuco, e compararmos com o casamento conseguido para Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho com dona Teresa de Lencastre, filha de um visconde, a diferença não é pequena183. Se António de Albuquerque, o moço, teve de se embrenhar nos sertões da América para acumular serviços e pleitear mercês ao rei, seu filho pode gozar de uma vida no reino, ocupando cargos de prestígio, gastando os rendimentos das comendas e administrando as capitanias donatárias da família à distância, através de intermediários. O último episódio da família relacionado com suas capitanias é exatamente o da sua extinção, que não podemos nem definir como trágico, pois eles foram indenizados graciosamente por d. José I. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As relações entre António de Albuquerque e as elites locais: O tráfico de escravos indígenas direcionado para São Luís durante os tempos de António de Albuquerque Nos primeiros anos do governo de António de Albuquerque localizei, na documentação produzida pela câmara municipal de São Luís, dados detalhados sobre as “repartições” de escravos indígenas

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XIMENDES, Carlos Alberto. Sob a mira da câmara: Viver e Trabalhar na cidade de São Luís (1644-1692). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2010. FEIO, David. Salomão Silva. O nó da rede de “apaniguados”: oficiais das câmaras e poder político no Estado do Maranhão (primeira metade do século XVIII). Dissertação de Mestrado. Belém. Universidade Federal do Pará (UFPA), 2013. 181 O casamento de seu filho foi arranjado com d. Teresa de Lencastre, filha de Diogo Correia de Sá, visconde de Asseca. 182 “A nomeação para o cargo de governador-geral da capitania do Rio de Janeiro coincidiu com um novo reordenamento estratégico da zona mineradora na geopolítica do Império português. A larga experiência de Albuquerque nos negócios coloniais fazia dele a pessoa mais apta a enfrentar as dificuldades advindas da implantação de governo político numa região dominada pelos poderosos e potentados locais, onde os seus conhecimentos militares certamente seriam decisivos. E foi com esta disposição enérgica e firme que ele tomou para si a missão de subir às Minas e pacificar os revoltosos: mal desembarcado no Rio de Janeiro, tratou logo de aviar uma expedição para lá, convencido de que era mais prudente viajar disfarçado, em vestes simples e modestas, sem o luzimento do aparato do cargo que ocupava.” ROMEIRO, Adriana. “A construção de um mito: António de Albuquerque e o levante emboada.” Tempo, 2009, p. 118. 183 É verdade que o título de visconde estava na base da nobreza titulada. Todavia, representava um reconhecimento muito maior da monarquia do que a autodenominação de “nobreza da terra” feita pelas elites locais na América Portuguesa.

75 ISSN 2358-4912 promovidas pelas elites locais184. No “Livro de Registros Gerais 1689-1746” estão computadas as “peças” que desembarcavam na urbe e eram posteriormente compradas pelas elites. As informações são detalhadas entre os anos de 1689 e 1694, pois a partir daí o documento apresenta uma lacuna, somente retomando os registros em 1702185. Na sequência da lei dos resgates de 1688 tivemos várias guerras contra grupos indígenas nas fronteiras do Estado do Maranhão186. Foi justamente neste período que assumiu o governo António de Albuquerque Coelho de Carvalho, o moço. Ora as guerras direcionavam-se para os sertões do rio Itapecuru e Mearim, região de expansão ligada à pecuária, mas que gerava não muitos escravos. Ora elas iam em direção aos sertões do Cabo do Norte, rio Amazonas e Negro, ligadas aos conflitos com franceses, espanhóis, extrativismo, além, é claro, do tráfico indígena. Eram desses locais que saíam a maior parte dos escravos indígenas. Estas redes de comércio ligando os sertões amazônicos e as cidades de São Luís e Belém mostram uma situação muito mais complexa do que a simples constatação de que o Estado do Maranhão era pobre e não se desenvolvia plenamente graças a ausência de escravos africanos187. Segundo o documento citado, até 1704 desembarcaram 308 escravos indígenas, comprados por 103 pessoas, o que dá uma média de 2,99 escravos por pessoa188. Deste número total 42% eram homens e 58% eram mulheres189. A média de idade dos escravos fica na casa dos 19,6 anos. Além disso, os “direitos” pagos pelos moradores a fazenda real entre 1689 e 1694, respondem pelo valor, nada desprezível, de 1,138,400 réis. Prossigo com os dados que comprovam a boa distribuição do trabalho indígena nos primeiros anos da década de 1690 a partir do livro “Inventário de bens do Conselho. Entregas e Recebimentos dos procuradores” da câmara de São Luís. Na minha pesquisa acredito que os índios eram a principal riqueza do Estado do Maranhão, pois sem eles não haveria trabalho, e, consequentemente, a produção estaria seriamente comprometida. Além disso, a análise das contas da câmara municipal nos permite chegar à conclusão de que a sistematização progressiva orquestrada pela coroa portuguesa em torno do trabalho indígena gerava receitas igualmente indispensáveis para a colonização.190. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Colocamos a palavra repartição entre aspas por tratar-se do termo utilizado na fonte. Estes índios eram aqueles comprados nas tropas de resgate. Os índios eram chamados de “peças” ou mesmo “negros. Não encontrei nenhuma referência ao famoso termo “negro da terra”. 185 Esta lacuna está relacionada claramente ao estancamento das expedições de resgate e a epidemia de varíola que assolou o Estado do Maranhão a partir de 1694. Com a brusca queda demográfica decorrente das doenças e a falta de reposição dos plantéis de escravos a partir das tropas, a elite local, representada na câmara municipal, passou a reclamar constantemente ao rei por novas remessas de escravos africanos e/ou o envio de tropas aos sertões Assim, ao contrário do que propõe Luiz Felipe de Alencastro, as quedas demográficas na população indígena estavam longe de inibir o tráfico ameríndio, funcionavam justamente com o efeito oposto: o decréscimo no número de índios estimulava a busca por escravos nos sertões. Esta crítica as ideia de Luiz Felipe de Alencastro foram feitas pela historiadora Camila Loureiro Dias. DIAS, Camila Loureiro. “O livro das canoas – uma descrição”. Texto apresentado no IV Encontro Internacional de História Colonial, Belém, 3 a 6 de setembro de 2012. Cada vez mais, ao longo dos anos de 1690, quem controlava a distribuição do trabalho indígena era a Junta das Missões (1686). 186 Por exemplo, a guerra contra as “amanejús” ainda no governo de Artur de Sá e Meneses, que gerou boas rendas para a fazenda real. As guerras no início da década de 1690 nos sertões do Itapecuru e Mearim contra os índios “cahicahizes”. As várias guerras nos sertões do rio amazonas e cabo do norte promovidas por Hilário de Sousa de Azevedo, algumas “justas”, outras “injustas”. 187 Visão produzida por boa parte da historiografia e combatida por Rafael Chambouleyron. 188 O documento inteiro computa chegadas de escravos na praça de São Luís até 1746, porém com imensas lacunas e sem os mesmos detalhes dos anos iniciais. A montagem da tabela completa ainda está sendo feita. Até agora fizemos somente até 1704, que de certa forma está ligada a conjuntura do governo de António de Albuquerque. 189 Algo que não aparece nos dados analisados de forma mais quantitativa e que é bastante interessante: acredito que o tráfico indígena, pelo menos para este curto período analisado, possuía um forte traço familiar. Era comum a compra de famílias, por exemplo, um índio e uma índia com uma criança de colo. Qual a importância disso? Qual o impacto disto nas formas de dominação da população escrava? 190 Até o momento só consegui processar os dados relativos às receitas. Estou trabalhando nas despesas. A qualificação delas vai permitir entender os padrões de gastos de uma câmara municipal localizada na periferia do império colonial português.

76 ISSN 2358-4912 Neste texto, me limitarei aos resultados mais relevantes. Em primeiro lugar, devo destacar que as receitas da câmara municipal de São Luís não são elevadas, em boa parte dos anos ficaram entre 100$000 réis a 200$000 réis. Em segundo lugar, identifiquei seis fontes de receitas principais: as rendas das terras do conselho; as imposições aos engenhos; o direito sobre a passagem dos barcos que iam para Tapuitapera (Alcântara); o contrato das carnes (arrematado para marchantes); a atividade jurídica dos oficiais camarários (aplicação de multas e coimas) e, por fim, os escravos vendidos em praça pública. Os escravos vendidos pela câmara de São Luís, muitas vezes sob concessão do governador António de Albuquerque, incrementavam substancialmente as receitas. Normalmente o dinheiro das “peças” vendidas era aplicado nas obras públicas (notadamente a reforma da câmara municipal). O governador também auxiliava as elites locais através da aplicação do dinheiro arrecadado na venda de escravos para a manutenção e/ou construção de fortalezas. Um exemplo muito claro disto foi na fortaleza da ponta de João Dias, instalação militar fundamental para a defesa da praça de São Luís191. Afinal, sem segurança não poderia existir produção agrícola. A experiência, vivência e conhecimento da terra eram alguns dos pontos alegados pelos oficiais das câmaras tanto de São Luís quanto de Belém para pedir ao rei a permanência de António de Albuquerque no poder. Conhecedor da forma como se praticava a guerra nos sertões da América portuguesa, bem relacionado com os índios, inclusive tendo um filho mestiço no Cametá e capaz de falar línguas indígenas, António era visto como um intermediário ideal nas relações entre o rei e os moradores do Estado do Maranhão192. Todavia, como mostramos no parágrafo anterior, as relações também tinham a sua parte material mais imediata. Em 1693, quando António de Albuquerque deveria deixar o cargo, os oficiais pediram ao rei a sua permanência, vale ressaltar que no ano anterior a câmara de São Luís havia registrado a sua maior receitas em pelo menos 15 anos193. Portanto, é possível concluir que tanto a experiência nos sertões quanto a conjuntura favorável explicam o bom governo de António de Albuquerque no Maranhão. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicando clamores’: Queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII).” Projeto História, São Paulo, n. 33, p. 159-178, dez. 2006. DIAS, Camila Loureiro. “O livro das canoas – uma descrição”. Texto apresentado no IV Encontro Internacional de História Colonial, Belém, 3 a 6 de setembro de 2012. FEIO, David. Salomão Silva. O nó da rede de “apaniguados”: oficiais das câmaras e poder político no Estado do Maranhão (primeira metade do século XVIII). Dissertação de Mestrado. Belém. Universidade Federal do Pará (UFPA), 2013. LEITE, Aurelino. Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho: capitão-general de São Paulo e Minas do Ouro no Brasil. Lisboa: Agencia Geral das Colônias, 1994. LIMA, Carlos de. Vida, paixão e morte da cidade de Alcântara – Maranhão. São Paulo: Plano Editorial SECMA, 1997/1998. LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis: Vozes, 1972. 191

BETTENDORFF, João Felipe. Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. Brasília: Edições do Senado Federal – volume 115, 2010, pp. 18-19. 192 Em algumas cartas de António de Albuquerque podemos vê-lo advogando a favor das elites camarárias. António de Albuquerque era visto pelas elites como o único capaz de oferecer os “remédios” para a pobreza dos moradores. 193 Não era unanimidade a permanência de António de Albuquerque no cargo de governador. Gomes Freire de Andrade, ex-governador do Maranhão, colocava-se contra a decisão. Alegava que António de Albuquerque era vassalo íntegro, que não se valia das redes de contrabando, e, portanto, não tinha mais condições financeiras de continuar exercendo um posto numa paragem tão distante.

77 ISSN 2358-4912 VIVEIROS, Jerônimo de. Alcântara no seu passado econômico, social e político. São Luís: AML/ALUMAR, 1999. XIMENDES, Carlos Alberto. Sob a mira da câmara: Viver e Trabalhar na cidade de São Luís (1644-1692). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2010. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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PODER LOCAL, ELITE E FAMÍLIA COLONIAL NA VILA DE CIMBRES: NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS OCORRIDAS NOS SERTÕES DE ARAROBÁ DE PERNAMBUCO (1762-1822) Alexandre Bittencourt Leite Marques194

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira vem cada vez mais realizando estudos acerca do relacionamento entre os poderes locais e a Coroa portuguesa. Variadas são as fontes de pesquisa (petições, provisões, editais) disponíveis que trazem indícios entre as negociações envolvendo os diversos nichos de poder local da América portuguesa e a administração central da Coroa.195 Os documentos também fornecem pistas sobre as disputas entre famílias da elite pelo poder local.196 Na América e em quase todas as demais áreas do Império português, o poder local era representado principalmente por intermédio das Câmaras municipais e das Ordenanças. As Câmaras eram formadas por oficiais eleitos no município e depois ratificados pela administração central da Coroa. Os oficiais das Câmaras tinham como atribuições o cuidado com o bem público, cabendo a eles assuntos ligados ao cotidiano da comunidade como, por exemplo, administração, justiça, saúde. Já os oficialatos das Ordenanças eram formados a partir das nomeações de capitães e demais mandatários. Dessa forma, ao ratificar os oficiais eleitos para as Câmaras, e ao nomear homens para as Ordenanças, o rei de Portugal e seu governo interferiam na administração de um município. Na medida em que a Coroa concedia certa autonomia aos conselhos e garantia as normas locais e hierarquia social, ela assegurava também a possibilidade de lidar com as diferentes realidades municipais. Por outro lado, esses nichos de poder eram motivos de interesse das elites locais, pois proporcionavam a seus ocupantes, além de mandonismo e status social, a possibilidade de negociar diretamente com o poder central de Portugal às mais variadas questões. Nesse sentido, as Câmaras e as ordenanças serviam de instrumentos de interlocução entre pessoas de municípios inseridos nas vastidões territoriais da América portuguesa e o centro do Império português.197 194

Universidade de Pernambuco – UPE/CNPq, Instituto Superior de Ensino de Pesqueira - ISEP. [email protected] 195 Em relação às negociações envolvendo a vila de Cimbres, o Governo de Pernambuco e a Metrópole portuguesa, nos basearemos no conceito de “autoridades negociadas” desenvolvido por Jack P. Greene, no qual consiste na percepção de que havia flexibilidade de negociações entre a os representantes das Coroas da Europa moderna e as colônias europeias na América. A partir dos poderes locais os colonos conseguiam negociar as políticas e práticas da Coroa no intuito de atingir seus interesses particulares. Sobre a utilização desse conceito, ver GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). Na Trama das Redes: Política e Negócios no Império portugês, séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Já em relação ao conceito de centro, adotaremos o mesmo utilizado por Helidacy Corrêa “no qual a zona central de poder não é exclusivamente um fenômeno localizado no espaço (...) Nesse sentido, o centro é tomado como espaço de ação. Refere-se a estrutura das atividades, funções e pessoas inseridas em uma rede de instituições”. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara de São Luis e a política da monarquia pluricontinental do Maranhão. In: FRAGOSO; SAMPAIO. (Org.) Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. 196 Existe uma ampla e complexa discussão a respeito do conceito de “família”. No presente trabalho, adotaremos o conceito antropológico-social utilizado por Tanya Maria Pires Brandão, que conceitua a “família” como um “vínculo de parentesco, estabelecido a partir dos laços de sangue e de casamento”. Tomando como amostra a Capitânia do Piauí, Brandão também analisa que o caráter elitista da família colonial da América portuguesa se dá através das condições econômico-financeiras suficientes para deixar bens materiais a seus descendentes. BRANDÃO Tanya Maria Pires. A elite colonial piauiense: família e poder. – 2.ed. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. p. 117 e 122. 197 A respeito do funcionamento das Câmaras e das ordenanças, ver BICALHO, Maria Fernanda Batista. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA. (Org.) O antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. op.

79 ISSN 2358-4912 Apresentamos aqui um trabalho que procura compreender as disputas entre membros de famílias da elite pelos nichos de poder da Vila de Cimbres, bem como entender as negociações realizadas entre esses poderes locais da dita vila, o governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa, na passagem do século XVIII para o XIX. A possibilidade de realizar um estudo da “cultura política dos tempos modernos” envolvendo as autoridades de uma distante paragem da América e o centro do Império português é, portanto, a finalidade desta pesquisa.198 O recorte espacial compreende o termo (município) de Cimbres e sua vila. Outrora um povoado chamado de Ararobá, e depois Monte Alegre, a vila foi erguida em um antigo aldeamento indígena organizado por religiosos e possuía seus limites jurídico-administrativos estendidos por um vasto território então chamado de sertões de Ararobá, localizado no interior da Capitania de Pernambuco. Já o recorte temporal da pesquisa tem como baliza cronológica o ano de 1762, data em que Cimbres é elevada a categoria de vila através de um Edital, até 1821, ano da morte de um dos principais chefes locais e homens de negócios dos sertões de Ararobá de Pernambuco, o capitão mor Antonio dos Santos Coelho da Silva.199 Utilizamos como fontes da pesquisa diversos tipos de documentos oficiais como cartas, petições, edital, alvarás, provisões trocados entre a Câmara Municipal da vila de Cimbres, o Governo da Capitania de Pernambuco e a Coroa portuguesa. Tais documentos coloniais fazem parte do Livro da Criação da Vila de Cimbres, do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) e do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Além disso, usamos também inventários post-mortem localizados no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP) e biografias escritas sobre personalidades dos sertões de Pernambuco, desenvolvidas pelo Centro de Estudos de Historia Municipal de Pernambuco (CEHM).200 Quando devidamente analisados, todo esse conjunto de fontes podem fornecer indícios das relações familiares, disputas e negociações envolvendo os membros da elite local de Cimbres, o Governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa. A partir do início do século XIX , a Vila de Cimbres se viu envolvida em um episódio que repercutiu do Governo da Capitania de Pernambuco até o centro do Império português: a disputa entre parentes de uma das famílias mais ricas e poderosas da região após a morte de seu patriarca. O ano era 1821, quando veio a falecer o Capitão mor de Ararobá, Antonio dos Santos Coelho da Silva. Logo após o seu óbito, emergiu no seio da família a desconfiança e a disputa entre os genros do dito homem pelo seu título de capitão mor e pelo prestígio e interlocução que este posto ocupava na sociedade colonial. Segundo pesquisas biográficas feitas por José de Almeida Maciel e Luis Wilson, o então capitão havia nascido no século XVIII, em Porto (Portugal), e depois se mudou para a colônia brasileira onde se tornou dono de uma das maiores fortunas do interior de Pernambuco, chegando a ocupar a presidência do Senado da Câmara de Cimbres. Casado com D. Teresa de Jesus Leite (filha de Inácia Maria Leite com o Capitão Antonio Alves Passos, então proprietários de uma fazenda de gado nos sertões pernambucano), Santos Coelho e sua esposa tiveram seis filhas, dentre elas: 1) Clara Coelho V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

cit., p. 189-222. COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op cit., p. 241-260. SOUZA, George Cabral de. A gente da governança do recife colonial: perfil de uma elite local na América portuguesa (1710-1822). In: In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op cit., p. 51-86. 198 Maria de Fátima Gouvêa e Marília Nogueira dos Santos utilizam o termo “cultura política nos tempos modernos” como algo que pauta a “dinâmica das sociedades de corte, na pessoa do rei enquanto cabeça capaz de articular o corpo social como um todo, na mistura entre o ‘público’ e o ‘privado’, bem como uma indissociação entre o político, o econômico e social.” GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SANTOS, Marília Nogueira dos. Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVIII e XVIII. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política do passado: historiografia e ensino de historia. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 199 Escolha do local da vila de Cimbres – Edital para feitura nele declarada. FIAM/CEHM. Livro da criação da vila de Cimbres (1762 – 1867). - Recife: Cepe, 1985. 295 p. (Coleção Documentos Históricos Municipais). p. 40. 200 Em relação ao Livro da criação da vila de Cimbres, ele é uma compilação de vários tipos de documentos manuscritos - petições, ofícios, cartas, etc - que foram produzidos no período de 1762 – 1867. No ano de 1985, cópias impressas do Livro passaram a integrar a coleção Documentos Históricos Municipais, publicada pelo Centro de Histórias Municipais.

80 ISSN 2358-4912 Leite dos Santos, que casou com o Sargento mor (e depois Capitão mor) Manuel José de Siqueira, filho do mestre de Campo da Ribeira do Moxotó, o português Pantaleão de Siqueira Barbosa, proprietário de inúmeras fazendas de gado fundadas em extensas sesmarias. 2) Teresa de Jesus, que casou com o Tenente Coronel Domingos de Souza Leão. 3) Ana Vitória, que casou com o Juiz (e depois) Capitão mor Francisco Xavier Paes de Melo Barreto, também considerado homem de alta linhagem.201 Ao verificar as descrições feitas por Wilson e Almeida, e compará-las com nossas pesquisas realizadas nos inventários post-mortem da antiga Comarca do Sertão e em outros documentos como petições e provisões, foi possível perceber alguns aspectos sobre a família de Santos Coelho, no que tange a casamentos, bens materiais, negócios e a ocupação de cargos públicos e uso destes para fins particulares. Em relação ao matrimônio, todos os casamentos das filhas do Capitão Antonio dos Santos Coelho tinham algo em comum: o fato dos esposos serem homens de destaque na região, pois possuíam títulos, cargos, propriedades, negócios rentáveis e também pertenciam a famílias de prestígio nos sertões de Pernambuco. Em outras palavras, o velho Capitão fez questão de unir suas rebentas a pessoas que faziam parte também de outras famílias da elite local, exatamente como ocorreu entre ele e sua esposa há décadas atrás. Por outro lado, os genros de Santos Coelho também possuíam variados interesses em aderir a família de um homem com inestimável prestígio social, político e econômico na Capitania.202 Sendo assim, essa família se organizava horizontalmente entorno do Capitão, através do casamento das filhas deste com homens de outras famílias que, conscientemente, se juntavam ao grupo, criando laços parentescos equidistantes uns dos outros. Percebe-se com isso que o matrimônio tinha muita importância na sociedade colonial, pois de acordo com Leila Mezan Algranti, “o casamento sacramentado conferia status e segurança aos colonos, tornando-o desejável tanto pelos homens como pelas mulheres”.203 Nesse sentido, certos casamentos traziam alianças, benefícios econômicos, acrescimento social e material para as famílias envolvidas. É o exemplo do que percebemos no inventário post-mortem de uma das filhas de Antonio dos Santos Coelho (a Clara), onde o inventariante e esposo da falecida, Manuel José de Siqueira, além de ser possuidor da patente de Sargento mor, também mantinha junto a sua mulher uma quantidade significativa de bens que iam desde títulos de ouro e prata, passando por mais de 160 escravos, animais e móveis da casa, até chegar em lavras de terras e diversas propriedades. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Ao casar suas filhas com homens de outras famílias da elite local, Santos Coelho não só expandiu os laços de alianças familiares, como garantiu para todas as envolvidas um fortalecimento de status social e de bens materiais. Entretanto, o que talvez o velho capitão não esperasse fosse uma disputa entranhada, violenta e mortífera que ocorreria entre dois dos seus genros após seu falecimento. Segundo Almeida Maciel e Luis Wilson, após a morte de Santos Coelho, em 1821, logo surgiu uma disputa escarnecida que se arrastaria por alguns anos entre dois dos seus genros: o Sargento mor Manuel José de Siqueira e Francisco Xavier Paes de Melo Barreto para ver quem herdaria o título de Capitão mor de Ararobá. O primeiro encomendou uma emboscada para o segundo, mas os tiros atingiram o alvo errado, matando assim, em 1830, Ana Vitória, esposa do Francisco Xavier e cunhada do próprio mandante do crime. Meses depois, Xavier doente veio a falecer. Já o outro concunhado dos 201

Cf. MACIEL, José de Almeida. Pesqueira e o antigo termo de Cimbres. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1980; e WILSON, Luiz. Roteiro de Velhos e Grandes Sertanejos. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1978. 202 O prestígio, riqueza e influencia de Santos Coelho era conhecido até em Portugal, pois em 1807 o governador de Pernambuco enviou um documento relatando, dentre outras coisas, que o dito capitão “ter servido a Vossa Alteza Real com o donativo de Seiscentas e doze arrobas de algodão, valendo estas segundo preços correntes, três Contos, novecentos e oitenta e cinco mil, quinhentos e sessenta reis (...) sendo aquele donativo um dos maiores que me foram oferecidos, e quem deu o mais poderoso cultivador de algodão desta capitania”. AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. 203 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In Fernando A. Novais; Laura de Mello e Souza. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 87. 204 IAHGP. Inventário post-mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

81 ISSN 2358-4912 rivais, Domingos de Souza Leão, percebendo o clima de disputa gerado ao longo dos anos, mudara-se antes, com sua família, dos sertões de Ararobá para o Engenho Caraúna, em Jaboatão. Por fim, Manuel José de Siqueira, diz-se que de desgosto (ou de remorso) pela morte da cunhada D. Ana Vitoria, morreu em outubro do ano seguinte, em1831.205 Ao ler essa história da desavença, logo surgiram algumas reflexões: se Manuel morreu mesmo arrependido do que fez, difícil dizer, pois até os pesquisadores não tiveram convicção sobre essa afirmação. O fato é que por trás dessa história de assassinato entre membros da família de Antonio dos Santos Coelho da Silva está a disputa envolvendo dois homens da elite local por um posto, nesse caso, o de capitão mor, e de todo um status social, interlocuções e benefícios particulares que o detentor deste título poderia obter. Durante o período colonial, existiram algumas disputas entre diferentes membros da elite local por cargos camarários ou por patentes de Ordenanças. Um dos motivos, além do status social, era a capacidade de interlocução que esses cargos ou patentes proporcionavam ao detentor junto a Coroa portuguesa, pois aquele que exercia o poder local, de um jeito ou de outro, sempre estava em contato com os representantes da metrópole portuguesa. Uma vez ocupando esses cargos de influência, os postulantes tinham a possibilidade de realizar negociações dos diversos interesses, seja público, ou até mesmo particular junto a Coroa. O próprio Antonio dos Santos Coelho da Silva, anos antes de sua morte, fez uso de sua posição na sociedade local como capitão mor para obter algum tipo de privilégio junto a Alteza Real. É o que demonstra o seguinte despacho para sua petição no ano de 1804:

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(...)havendo infinitos lugares despovoados e perigosos de cometimentos, muito principalmente para o suplicante pela razão das indispensáveis arrecadações e remessas dos reais donativos para a fronta da Fazenda, por cujo princípio obteve pela ouvidoria provisão para o uso de armas ofensivas e defensivas durante o contrato, mas esta provisão não se faz cumprida por se entender que a ouvidoria jamais podia concedê-la sem que o suplicante represente a S. A. R. provisão para continuar com o uso de pistolas e de acompanhar-se de um criado armado com bacamarte não só pelo tempo de contrato, mas em qualquer outro, pelo razão de também ter servido a Sua Alteza Real em diferentes ofícios desse lugar nos quais criou alguns inimigos, contudo não tem chegado esta provisão o suplicante é amigo das leis e não pretende o uso das armas proibidas que por cômodo e 206 para a defesa de sua vida e dos reais donativos que a miúdo conduz para esta praça.

No caso acima se nota que, como reforço para continuar com o porte de armas dele e de seu capanga, “não só pelo tempo de contrato, mas em qualquer outro”, e em áreas fora da vila de Cimbres (nos “infinitos lugares despovoados” do sertão), o capitão fez questão de lembrar a importância das ditas armas para a defesa dos donativos reais contra os perigos do Ararobá e para a defesa de sua própria vida, haja vista que por fazer variadas atividades em nome da Coroa, terminou por acumular alguns inimigos. Nesse sentido, Santos Coelho se beneficiou da posição de prestígio que seu cargo ocupava, para poder realizar negociações em seu próprio benefício com a Coroa portuguesa, neste caso específico, a utilização de armas proibidas em lugares fora da vila e por tempo indeterminado. Na mesma situação se encontrava também um dos genros do Capitão Santos Coelho, o sargento mor Manuel José de Siqueira, que entre 1811 e 1812 solicitou e recebeu autorização da Coroa portuguesa para usar armas de defesas, como também para armar homens forros que o deveriam acompanhar tanto em diligências oficiais, quanto em seus negócios particulares: Que em razão do seu posto de várias diligencias do Real Serviço, prisões de facínoras e execução de outras reais ordens, como também em consequência do manejo de seus negócios, sendo um dos maiores fazendeiros daquela vila, lhe era forçoso transitar muitas vezes por caminhos desertos, expostos aos ataques dos malfeitores, pelo que me pedia lhe concedesse faculdade para poder usar de armas de defesas, assim como os forros que houvessem de acompanhá-lo em todas as mencionadas ações de diligências do Real Serviço e nas do seu negócio. Hei por bem à vista do seu requerimento e 205

Sobre maiores detalhes da disputa que terminou em morte ver: MACIEL, op. cit. p., 161-194; e WILSON, op.cit. p. 1151-1160. 206 Cópia de petição, despacho e mais documentos do capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva, 30 de outubro de 1804. FIAM/CEHM, op. cit., p. 178.

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ISSN 2358-4912 dos documentos que apresentou, conceder ao suplicante o uso de armas de defesas na forma de sugestão, que Vossa Mercê lhe permita e aos ditos forros que o acompanham nas ações das 207 mencionadas diligências e viagens.

Nessa provisão, percebe-se novamente que um homem se apropriava da posição de prestígio que seu posto lhe conferia para ter contato e negociar com a Coroa interesses de questão públicas e particulares também. Esse porte de armas permitiria, assim, a realização de viagens mais seguras contra os ataques de “malfeitores” por essas paragens. Manuel José de Siqueira tem mesclados assim dois papéis: Homem de negócios e de terras e oficial do Rei encarregado de diligências judiciais. Ou seja, a própria solicitação do sargento-mor para armar forros que o deveriam acompanhar em diligências oficiais e de seus negócios particulares tornava visível as práticas cotidianas que mesclavam as estruturas oficiais com estruturas de poder privadas nos sertões da Capitania de Pernambuco. O pedido de solicitação para andar com armas proibidas em lugares distantes da vila de Cimbres dá indícios de ser uma constante entre o Capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva e seus genros, pois outro homem casado com uma de suas filhas, Domingos de Souza Leão, também conseguiu uma autorização junto a Coroa portuguesa para isso. É o que está declarado na seguinte provisão régia, feita nos anos de 1811 e 1812: Faço saber aos que esta provisão virem, que atendendo a representar-me Domingos de Souza Leão que em razão de ser administrador dos engenhos Gurjau de Baixo e Carauna, sitos na freguesia de Santo Amaro de Jaboatão, Capitania de Pernambuco, onde também possuía uma fábrica de algodão no sertão do Brejo da Madre de Deus, por cujos caminhos sendo muitas vezes necessários atravessar e pelos quais conduzindo as suas fazendas com risco de vida, me pedia por isso lhe concedesse provisão para poder usar de armas proibidas e de pistolas nos coldres, e visto o seu requerimento e o mais que me foi presente, hei por bem que o suplicante possa tão somente usar de 208 armas defesas na forma da lei para o efeito nesta declarado(...)

Diferente do seu sogro e do seu genro, Domingos de Souza Leão não pediu a autorização do uso de armas proibidas também para seus homens, se contentando somente em ter a liberação destas para si mesmo. Entretanto, com essa solicitação da necessidade de andar armado por caminhos que vão da Freguesia de Jaboatão, situada no Litoral, até o Brejo da Madre de Deus, localizado no sertão da Capitania de Pernambuco, Souza Leão repete o discurso usado pelos outros dois parentes e membros da elite local, afirmando que essas armas eram para uso particular, na medida em que corria “risco de vida” ao transitar pelos caminhos que levavam a seus negócios particulares, neste caso, aos engenhos e a fábrica de algodão. Ainda sobre Souza Leão, outro documento, feito em 1816, descreve: “Parecer do Desembargador Antonio José Barroso de Miranda, ouvidor da Comarca do Sertão, sobre a representação de Domingos de Souza Leão, genro do Capitão mor, contra os índios da vila de ‘Simbres’ e o seu pároco”.209 Nesse caso, o parecer consta com nome de Souza Leão atrelado ao seu sogro, o capitão mor. O fato de aparecer ao lado de Santos Coelho certamente tinha o intuito de reforçar a representação feita por Leão. Daí se percebe a importância de se ter um cargo camarário ou de se ter uma patente de ordenança, haja vista que eles podiam ter tanta influencia para aquele que os possuía, quanto para aqueles que estavam próximos do seu detentor. Em relação a ocupação de cargos camarários e de posse de patentes, era comum haver casos no Império português de um membro manter as duas coisas ao mesmo tempo.210 O próprio capitão Santos 207

Dom João por graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, em África de Guiné, faço saber aos que essa provisão virem que atender a representar-me Manuel José de Serqueira, sargento mor das ordenanças da vila de Cimbres, capitania de Pernambuco, 13 de novembro de 1811. FIAM/CEHM, op. cit., p. 231. 208 Registro de uma provisão régia que alcançou Domingos de Souza Leão, para uso de pistolas e armas proibidas. FIAM/CEHM. op. cit., p. 230. 209 ANTT, Cota atual: projecto reencontro, M.F 75. 210 Segundo Adriano Comissoli e Tiago Gil: “Câmara funcionava em estreita proximidade com as tropas de Ordenanças, uma vez que há uma grande coincidência de nomes entre os ocupantes das duas instituições. Essa

83 ISSN 2358-4912 Coelho era um exemplo disso, pois verificamos nas correspondências de 1807, entre o Governo de Pernambuco e a Coroa portuguesa, uma declaração do governador a respeito dos muitos documentos que comprovam os serviços prestados pelo capitão à Alteza Real:

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Mostra me ter servido na vila de Cimbres (...) desta Capitania, de Almotacé, procurador, juiz ordinário e dos órfãos, de provedor comissário dos defuntos e ausentes, desempenhando com satisfação pública de seus deveres (...) ratifica aqueles mesmo serviços e mostra sinais que fora 211 capitão de duas Companhias de Cavalaria Auxiliar.

A mesma coisa acontece com Francisco Xavier Paes de Melo Barreto, outro genro de Santos Coelho, onde analisamos que em um inventário post-mortem da comarca de Cimbres, do ano de 1822, ele aparece como Juiz de Órfãos e Capitão mor da vila: “Inventário que mandou proceder o Juíz de Órfãos e Capitão Mor Francisco Chavier Paes de Mello Barreto, dos bens que ficaram por falecimento de João José de Mello”.212 Comparando os trechos das documentações acima, se percebe que tanto sogro quanto genro chegaram a acumular cargos silmultâneos na Câmara e na Ordenanças de Cimbres, o que demonstra que o que ocorria nos sertões de Ararobá de Pernambuco não fugia da tendencia do que acontecia nas demais regiões do império português. E foi justamente esse acúmulo de cargos nas instancias judicial e militar adquiridos por Francisco Xavier, após a morte do seu sogro, que possivelmente gerou o descontentamento do outro membro da família, o sargento mor Manoel José de Siqueira. A tal ponto do último provocar um assassinato dentro da propria família, pois como visto no inventário acima, em 1822, Xavier já aparecia com a patente adquirida de capitão mor, ou seja, um ano após o falecimento do velho capitão Santos Coelho. Nesse sentido, o perfil de membros da família do capitão Antonio dos Santos Coelhos nos ajudou a compreender as disputas e negociações de indivíduos da elite local que deram vida as instituições da vila de Cimbres, na América portuguesa. Ao mesmo tempo em que contribuíam para o funcionamento dessas instituições de poder no ultramar, essas pessoas também se utilizavam delas em prol de seus interesses particulares, na medida em que a ocupação de cargos camarários e de postos militares permitia uma maior interlocução com a Coroa portuguesa, facilitando, por muitas vezes, meios para elevação de prestígio, de status social e de negócios econômicos dos súditos do rei.

Referências AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In Fernando A. Novais; Laura de Mello e Souza. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ANTT, Cota atual: projecto reencontro, M.F 75. BICALHO, Maria Fernanda Batista. As Câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). O antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. – Teresina: Editora da UFPI, 1999. 142. característica foi bastante comum em diversos conselhos lusitanos, tanto da Europa quanto da América, da Ásia e da África”. COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental... op. cit, p. 247. 211 AHU_ACL_CU_015, cx 269, D. 17881. 212 IAHGP. Inventário post-mortem de João José de Melo, 1822. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 62.

84 ISSN 2358-4912 COMISSOLI, Adriano; GIL, Tiago. Camaristas e potentados no extremo da Conquista, Rio Grande de São Pedro, 1710-1810. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: a Câmara de São Luis e a política da monarquia pluricontinental do Maranhão. In: FRAGOSO; SAMPAIO. (Org.) Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVIXVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. FIAM/CEHM. Cópia de petição, despacho e mais documentos do capitão Antonio dos Santos Coelho da Silva, 1804. FIAM/CEHM. Documentos Históricos Municipais: Livro da criação da vila de Cimbres (1762 – 1867). Leitura paleográfica por Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e Costa. Colaboração do Departamento de História da UFPE. Introdução de Potiguar Matos. Notas de Gilvan de Almeida Maciel. - Recife: Cepe, 1985. 295 p. (Coleção Documentos Históricos Municipais). FIAM/CEHM. Provisão que virem atender a representar-me Manuel José de Serqueira, sargento mor das ordenanças da vila de Cimbres, capitania de Pernambuco, 1811. FIAM/CEHM. Registro de uma provisão régia que alcançou Domingos de Souza Leão, para uso de pistolas e armas proibidas. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; SANTOS, Marília Nogueira dos. Cultura política na dinâmica das redes imperiais portuguesas, séculos XVIII e XVIII. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca. Cultura política do passado: historiografia e ensino de historia. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GREENE, Jack P. Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (org.). Na Trama das Redes: Política e Negócios no Império portugês, séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. IAHGP. Inventário post-mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107. IAHGP. Inventário post-mortem de João José de Melo, 1822. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 62. MACIEL, José de Almeida. Pesqueira e o antigo termo de Cimbres. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1980. SOUZA, George Cabral de. A gente da governança do recife colonial: perfil de uma elite local na América portuguesa (1710-1822). In: In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. (Org.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. WILSON, Luiz. Roteiro de Velhos e Grandes Sertanejos. – Recife: Biblioteca Pernambucana de História Municipal/ Centro de Estudos de História Municipal, 1978. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AS CAPITANIAS DE ITAPARICA E TAMARANDIVA E DO PARAGUAÇU: ADMINISTRAÇÃO E PODER NA AMÉRICA PORTUGUESA (1552-1592) Alexandre Gonçalves do Bonfim213 Introdução As primeiras capitanias hereditárias foram doadas no Brasil na década de 1530. Após estas, entre as décadas de 1550 e 1560 novas donatarias foram constituídas na América portuguesa. Essas capitanias foram Itaparica e Tamarandiva, instituída em 1556 e Paraguaçu instituída em 1565. As duas concessões estavam localizadas no Recôncavo (Baía de Todos os Santos) sendo o território de Itaparica e Tamarandiva formado pelas ilhas que dão nome a donataria214 e Paraguaçu formada por uma extensa faixa de terra entre os rios Jaguaripe e Paraguaçu, correndo dez léguas sertão adentro215. Todavia o processo de concessão das duas apresentou algumas especificidades frente as donatarias doadas na década de 1530. Primeiramente, elas foram doadas após a instalação do Governo Geral no Brasil, sendo as primeiras instituídas após a chegada de Tomé de Souza a Bahia. Além disso, soma-se o fato que os territórios das duas donatarias foram doados, inicialmente, sob a condição de sesmaria. Depois, atendendo ao pedido de confirmação das terras feito pelos dois donatários, a Coroa confirmou as terras aos mesmos donos, sob a condição de capitania216. Quanto aos donatários, destaque para o senhor de Itaparica e Tamarandiva, Dom António de Ataíde, o Conde de Castanheira, que era, no momento das doações, Vedor da Fazenda e principal Conselheiro do Rei Dom João III. Enquanto o capitão de Paraguaçu, Dom Álvaro da Costa era filho de Dom Duarte da Costa, governador do Brasil, entre 1553 e 1557. Ou seja, os dois donatários em questão era indivíduos ligados ao governo da Coroa. Indicar essas singularidades é importante, pois estas serão os guias para o exercício de entender como as duas capitanias aqui estudadas se inseriam no contexto maior de consolidação das estruturas administrativas no Brasil no século XVI. As donatarias se constituíram em um momento que outros elementos da colonização como o poder concelhio, religiosos e outros colonos já estavam postos na Bahia. Assim, esse trabalho também tem como objetivo levantar questões acerca do relacionamento dessas donatarias como os outros elementos da colonização acima apontados. A administração do Brasil quinhentista Portugal constituiu suas primeiras possessões além-mar no século XV. Desde então a Coroa lusa lançou mão de diferentes soluções político-administrativas. Não havia um dispositivo padrão, mas diferentes formas para manutenção de suas posses que eram escolhidas de acordo com as especificidades de cada território. Essa característica da colonização do Antigo Regime português é chamada por António Manuel Hespanha e Maria Catarina dos Santos de pluralismo administrativo217. Esse pluralismo pode ser constatado no Brasil quinhentista já que diferentes soluções políticoadministrativas foram escolhidas para conservação do território nos primeiros 50 anos de colonização da América portuguesa.

213 Licenciado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Atualmente é mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sob a orientação da Prof. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). [email protected] 214 GARCEZ, Angelina. A sesmaria de Itaparica. In: Anais do V Congresso de História da Bahia. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia; Fundação Gregório de Mattos, 2001, p.75. 215 Doação da Capitania de Paraguaçu de Dom Álvaro da Costa. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1929, p. 226. 216 GARCEZ. Op. Cit. p. 76. 217 HESPANHA, António. SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Império Oceânico. In: MATTOSO, José. História de Portugal v.4 (O Antigo Regime). Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 351-364.

86 ISSN 2358-4912 Nos primeiros trinta anos, a ação colonizadora de Portugal no Brasil se resumia as feitorias. Essas construções tinham a função de armazenar e comerciar as mercadorias, mas também acumulavam o papel de pontos estratégicos para defesa da costa. As feitorias não foram suficientes para repelir a ação de embarcações de outras nações europeias. Dessa maneira, a Coroa teve que pensar em outra forma de manter o Brasil sob seu domínio. A adoção do sistema de capitanias hereditárias em 1532, tendo como principal incentivador Dom António de Ataíde, se mostrou a mais indicada para a situação. As donatarias consistiam em um sistema no qual o rei, soberano de todas as terras conquistadas, doava a seus súditos o domínio político de uma determinada base territorial. No entanto os capitães donatários não tinham o domínio direto de todo o território da donataria, sendo obrigados a doar a maior parte dela sob a forma de sesmarias (como veremos mais abaixo, a única exceção a essa regra era a capitania de Itaparica e Tamarandiva). Ainda tinham o direito de administrar a justiça do território de sua capitania e algumas obrigações como montar um aparato administrativo que respeitasse à ordem jurídica da Coroa, propagar a fé católica e incentivar o aproveitamento econômico das terras sob seu domínio. Os tributos do rendimento da capitania eram recolhidos pelo donatário que tinha direito a uma parte do arrecadado218. Entretanto a maioria dos donatários não investiu em suas capitanias, dificultando a ocupação satisfatória da terra como desejava a Coroa 219. Soma-se a isso a resistência indígena a colonização portuguesa para entender o porquê que as donatarias não foram totalmente eficazes para uma ocupação satisfatória do Brasil. Aliás, a morte do donatário da capitania da Baía de Todos os Santos, Francisco Pereira Coutinho, provocado por tupinambás moradores da ilha de Itaparica tornou-se um estopim para que a Coroa tomasse uma nova medida para salvaguardar a colonização do Brasil220. Assim, o governo geral foi adotado para a consolidação de uma instituição central para administração na colônia221. Porém as capitanias não deixariam de existir tanto que as capitanias alvo desse estudo foram criadas após o estabelecimento do Governo Geral. Aliás, a instituição central do governo geral tinha como objetivo, também, fornecer ajuda aos capitães donatários em dificuldade222. Em 1549 Tomé de Souza trazia de Portugal o “Regimento” que além de confirmar sua posição como governador geral, estipulava algumas prioridades. Entre elas, a construção da cidade sede do governo geral, Salvador223. O regimento também indica que o governo geral devia incentivar a distribuição de sesmarias aos colonos interessados em aproveitar as terras economicamente – sendo a cana de açúcar a cultura mais incentivada – além do combate aos chamados “índios bravios”. O texto tinha especial atenção ao gentio tupinambá, que provocava sérios problemas a colonização portuguesa principalmente na região da Baía de Todos, sendo que a morte de Coutinho é só mais um exemplo224. É nesse contexto de progressiva normalização administrativa da América Portuguesa é que são instituídas as capitanias aqui estudadas. Elencar as singularidades da constituição de Itaparica e Tamarandiva e Paraguaçu permite levantar algumas discussões sobre a política e administração da América Portuguesa bem como entender com essas duas donatarias se encaixavam nesse contexto.

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SALDANHA, António Vasconcelos. As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001.p. 17-23. 219 Somente Duarte Coelho de Pernambuco e Martim Afonso de Souza de São Vicente mobilizaram frotas e seus séquitos do reino para a capitania, além de gastos militares e financeiros no intuito de combater índios bravios, escravizando estes e ocupando suas terras. GALLO, Alberto. Aventuras y desventuras del gobierno señorial en Brasil. In: CARMAGNANI, Marcello (org.). Para una historia de America, v. II. Los nudos I. México: Fondo de Cultura Económica, s/d, p. 198-265, p. 207. 220 PARAÍSO, Maria Hilda Barqueiro. Revoltas indígenas, a criação do governo geral e o regimento de 1548. In: Clio – Revista de pesquisa histórica. Pernambuco: UFPE, n° 29.1, 2011. 221 SILVA; AMARAL, 1919, p. 267. 222 O governador geral, ainda, era um cargo importante dentro da ordem administrativa do Antigo Regime português, sendo a indicação de Tomé de Souza mais uma maneira de beneficiar COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil: Ofício, regimentos, governação e trajetórias. 1° ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2009, p. 67. 223 Regimento que levou Thomé de Souza, Governador do Brazil. In: SILVA, Ignácio Accioli Cerqueira e; AMARAL, Braz (coment.). Memórias Históricas e políticas da Bahia, vol.1. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1919, p. 263. 224 Regimento que levou Thomé de Souza, Governador do Brazil. In: SILVA; ACCIOLI. Loc. Cit.

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ISSN 2358-4912 A instituição das capitanias de Itaparica e Tamarandiva e do Paraguaçu Capitania de Itaparica e Tamarandiva Já com o governo geral instituído, Tomé de Souza retribuiu ao seu primo, Dom António de Ataíde, o favor da indicação ao Governo Geral com a carta de sesmaria que concedia ao conselheiro do Rei as ilhas Itaparica e Tamarandiva, além da “Ribeira que se chama Rio Vermelho que está do lado do leste da cidade de Salvador com uma legoa por costa de mar para leste e para dita Ribeira [...] duas legoas de terra para o Certão e do dito Rio para contra essa Cidade” 225. Essa doação foi contestada pela Câmara de Salvador226. Todavia, Gabriel Soares de Sousa, escrevendo o seu “Tratado Descritivo do Brasil” de 1587, afirma que a situação da jurisdição da ilha ainda era indefinida trinta anos depois da doação de 1549.227 A contrariedade da doação da sesmaria pode estar no fato que este documento obriga o beneficiado a morar em suas terras para aproveitá-las economicamente, algo que não ocorreu, já que o Conde de Castanheira não se mudou para o Brasil228. Em 1556, a Coroa confirmou as ilhas para o Conde de Castanheira. Todavia, o rei confirmou as ilhas como capitanias através de uma carta de doação e de um foral229. Com isso, as ilhas de Itaparica e Tamarandiva foram desmembradas da Capitania Real da Baía, com a Câmara de Salvador perdendo qualquer jurisdição sobre elas. No entanto, como dito acima, Gabriel Soares de Souza indica como que no momento que ele escrevia o “Tratado” a contenda entre a Câmara e o donatário já durava mais de trinta anos. Isso significava que o embate continuou após a conversão das ilhas de sesmaria à capitania, apontando para um conflito entre dois corpos dentro da sociedade que se formava no Brasil nos moldes da monárquica corporativa230. Esses dois corpos seriam o poder camarário na figura da Câmara de Salvador e o poder senhorial na figura do Donatário de Itaparica e Tamarandiva, o Conde de Castanheira. Infelizmente é difícil encontrar dados relativos à Câmara de Salvador no século XVI. Afonso Ruy aponta que esses documentos foram destruídos devido a Invasão Holandesa de 1624. Essa documentação poderia nos fornecer importantes dados sobre quem fazia parte da Câmara naquele momento, quais eram os interesses dos membros da Câmara com relação às ilhas, entre outras informações relevantes. A Coroa portuguesa, naquele momento prezava pela ocupação do território, portanto a mudança das ilhas de Itaparica e Tamarandiva ao status de capitania permitiria que as ilhas fossem divididas em diversas sesmarias, o que facilitaria a ocupação da mesma. Contudo, aqui está outro problema. A capitania em questão foi doada ao morgado instituído pela mãe do Conde de Castanheira, Dona Violante de Távora. O morgado era uma instituição portuguesa que consistia na agregação dos bens de uma determinada família em posse de uma pessoa, geralmente o primogênito do casal instituidor, no intuito de não provocar a dispersão desses bens231. A sesmaria só poderia ser constituída através de um dispositivo jurídico específico. A fragmentação da capitania em sesmaria dividiria a donataria em 225

GARCEZ. Op. Cit. p. 74. RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial. Brasil c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009, p. 260. 227 SOUZA, Gabriel Soares. VARNHAGEN, Francisco (org.). Tratado Descritivo do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Laemmert, 1851, p. 142. 228 Afonso Ruy também aponta a não vinda de Dom António de Ataíde ao Brasil como um dos motivos do embargo da Câmara. RUY, Affonso. História da Câmara da cidade de Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953, p. 20. 229 A carta de doação e o foral são os documentos constitutivos de uma capitania. Enquanto a carta de doação garantia a transferência da capitania ao donatário, além de estabelecer o limite da terra doada, os forais estabeleciam quais os direitos que os donatários teriam, além das obrigações com relação a sua donataria. Para uma análise detalhada dos dispositivos legislativos da carta de doação e dos forais, ver: SALDANHA, 2000, Op. Cit. p. 68-79. 230 HESPANHA, António. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João Ribeiro; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163188. 231 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Herança no Brasil colonial: os bens vinculados. Revista de Ciências Históricas da Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto, Volume V (Separata), 1990, p. 291-319. 226

88 ISSN 2358-4912 diversos bens diferentes que seriam doados a diferentes pessoas, fora da família do dono da capitania, o que iria de encontro à instituição do morgado. Por isso a capitania de Itaparica se configurava como a única capitania em que não havia a possibilidade de doação de sesmaria232. Porém essa situação não impossibilitava o aproveitamento das terras, assim como a manutenção de indivíduos já instalados nas ilhas. As terras da capitania de Itaparica e Tamarandiva poderiam ser ocupadas por outros sujeitos através do aforamento233. No século XVI, diversas pessoas já morando dentro das ilhas234, alguns ligados ao donatário como João Fidalgo, loco-tenente de Dom António de Ataíde235. Este possuía uma ilheta em Itaparica, assim como Gomes Pacheco, procurador do Conde de Castanheira que era proprietário de um curral na ilha236. A capitania de Itaparica e Tamarandiva ainda teve como forma de organização administrativa territorial no primeiro século da colonização a “freguesia”. Esta era uma unidade territorial eclesiástica que consistia no domínio jurisdicional de uma paróquia. A freguesia acabava sendo uma das mais úteis formas de organização do território do Império. Os moradores da região da freguesia eram assistidos pelas paróquias através dos sacramentos, garantindo a religião para os indivíduos, perpetuando assim, a ordem sociocultural portuguesa em seu Império Ultramarino237. Em Itaparica foi constituída, no século XVI, a freguesia de Bom Jesus da Vera Cruz de Itaparica que, junto com a instalação de uma missão jesuítica instalada na ilha em 1560 pelo Padre Luís de Gram junto com os tupinambás, demarcava a presença da Igreja na capitania238. A freguesia, portanto, era mais um elemento da estrutura administrativa régia que influenciava na ocupação do espaço da capitania de Itaparica e Tamarandiva, sendo mais uma contribuição para a concretização da colonização da América Portuguesa. Ao pontuar a constituição da capitania, percebe-se que em nenhum momento a donataria iria de encontro aos objetivos da Coroa pautados no regimento de 1548. A donataria incentivava a ocupação de terra de indivíduos, bem como a ação da Igreja. Quanto a esta, ela seria fundamental para “pacificação” dos índios da ilha através de uma missão jesuítica. Com isso, percebe-se que a capitania de Dom António de Ataíde, um dos poucos grandes do Reino com posse no Brasil, seria um elemento que contribuía para a administração do Brasil no século XVI. Além disso, a ocupação da donataria poderia ser útil para o Conde já que o mesmo era um incentivador das Conquistas no Ultramar e dos rendimentos que estas poderiam oferecer239. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Capitania do Paraguaçu Em 1557, o filho do governador geral Dom Duarte da Costa, Dom Álvaro da Costa recebeu de seu pai uma grande sesmaria entre os rios Jaguaripe e Paraguaçu. Dom Álvaro foi um dos líderes no combate às revoltas indígenas ocorridas no Recôncavo. Porém, em 1558, Dom Álvaro da Costa volta, junto com seu pai, para Portugal, o que impossibilitaria qualquer investimento de sua parte nas terras

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Doação de Dom Antonio de Athaide Conde da Castanheira das Ilhas de Taparica, e Tamarandiva. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: TypographiaMonroe, 1929, p. 333. 233 O aforamento era concessão do domínio útil de uma parcela da terra, mediante o pagamento de um tributo estipulado pelo possuidor, algo que também era previsto na doação de sesmaria. ABREU, Maurício de A. “A apropriação do Território no Brasil Colonial”. In: CASTRO, Iná Elias; CORRÊA, Roberto L. GOMES, Paulo César (org.) Explorações Geográficas. Bertrand Brasil, RJ, 1997, p.197-245. 234 As informações sobre os moradores de Itaparica e Tamarandiva foram encontradas em documentos da Primeira Visitação do Santo Ofício no Brasil digitalizadas pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e disponíveis online neste link: 235 O loco-tenente era a figura que representava o donatário quando esse não estava presente na capitania, delegando todas as faculdades jurídico-administrativas do capitão. SALDANHA, Op. Cit. 162-181. 236 RICUPERO. Op. Cit. p. 261. 237 HESPANHA, SANTOS. In: MATTOSO, Op. Cit. p. 351-366. 238 OSÓRIO, Ubaldo. A ilha de Itaparica. História e tradição. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979, 37. 239 Práticas comerciais e financeiras e reestruturação econômica em considerações de D. António de Ataíde, Conselheiro e Vedor da Fazenda de D. João III. in D. João III e o Império. Lisboa, CHAM, UNL/ CEPCEP, UCP, 2004, p. 501-512.

89 ISSN 2358-4912 recém-obtidas no prazo de cinco anos, conforme estava estipulado na carta de sesmaria240. Assim, em Portugal, no ano de 1562, Dom Álvaro da Costa, vai até o Rei Dom Sebastião I pedindo a confirmação da capitania que foi obtida. Novamente, em 1565, Dom Álvaro vai ao Rei para pedir a ratificação de suas posses. Dessa vez, o Rei confirmou as terras do Paraguaçu, mas com o status de capitania, Desse momento em diante, o filho de Dom Duarte da Costa era capitão donatário do Paraguaçu. Diferente da capitania de Dom António de Ataíde, a doação de Paraguaçu previa a doação de sesmarias. Entre os anos de 1565 e 1575, verificou-se mais de uma dezena de concessões sesmariais dentro da capitania de Dom Álvaro da Costa, sendo que na maioria dos casos previa-se que o agraciado com as terras desenvolvessem a criação de gado241. As doações eram feitas pelos loco-tenentes do donatário. O primeiro loco-tenente foi Fernão Vaz da Costa, primo de Dom Álvaro e tesoureiro “das terras do Brasil” entre os anos de 1550 e 1560242. Após a morte de Fernão Vaz da Costa, Pedro Carreiro, antigo criado da família Costa ganhou a função locotentente243. Além do cargo, estes últimos se apossaram de sesmarias dentro da capitania. O primeiro falecido entre 1567 e 1568244, possuía uma ilha de uma légua na barra do Jaguaripe, enquanto o segundo obteve uma sesmaria em 1578, próximo ao rio Jaguaripe. A ocupação desses cargos e os usufrutos que eles ofereciam atestam como a lógica clientelar, característico do Antigo Regime, agia na escolha das pessoas para o usufruto dos bens provindos da administração colonial245. Pedro Carreiro foi responsável por diversas doações de sesmarias na capitania do Paraguaçu. Estão, entre essas sesmarias, as que foram concedidas aos descendentes de Diogo Álvares Correira, o Caramuru, náufrago no Brasil desde 1509 e que se casou com a índia denominada Catarina Paraguaçu, filha de Itaparica, chefe tupinambá246. Gracia Álvares, filha de Diogo Álvares Caramuru, casada com Antão Gil recebeu uma sesmaria de Pero Carreiro em 1574247. Antonio Paiva, casado com Felipa Álvares descendente de Diogo Álvares, recebeu uma sesmaria de frente a Itaparica. Dessa maneira, vemos que a capitania do Paraguaçu além de responder pela necessidade de ocupação territorial, atendia, também, indivíduos que de alguma maneira influenciava na colonização portuguesa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusão As capitanias de Itaparica e Tamarandiva e do Paraguaçu tornaram-se as primeiras constituídas após estabelecimento do Governo Geral. À distância, os donatários contavam com a ajuda de seus loco-tenentes que geriam os interesses daqueles dentro das capitanias. Assim, as capitanias em questão se constituíram, na segunda metade do século XVI, como elementos que contribuíam para o Governo Geral com a distribuição de terras a colonos. Tanto em Itaparica e Tamarandiva como em Paraguaçu se observou a presença de lavradores, criadores de gado e até donos de engenho248, indicando como as capitanias poderiam ser um espaço onde colonos poderiam desenvolver suas atividades, permitindo assim o desenvolvimento socioeconômico da colonização portuguesa na região. Apesar disso, o donatário de Itaparica teve que enfrentar a oposição da Câmara de Salvador, ainda quando as ilhas estavam sob a condição de sesmaria. A conversão em capitania se mostrou uma boa solução encontrada pelo Rei, pois retiraria qualquer jurisdição da Câmara nas terras. Porém, infelizmente, a falta de documentação não permitiu maiores esclarecimentos sobre o motivo da 240

Doação da Capitania de Paraguaçu de Dom Álvaro da Costa. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIII. Série XI. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1929, p. 235. 241 NUNES, Antonietta Aguiar. Reminiscências da capitania de Paraguaçu: memória histórica de Jaguaripe nos séculos XVI e XVIII. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Salvador, n. 92, jan-dez/1996, p. 267-286. 242 Traslado da 1° Provisão de El-Rei Nosso Senhor do Ordenado, que tem o Vigário Geral. In: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Volume XXXV. Rio de Janeiro, 1937, p. 331. .243 NUNES. Op. Cit. p. 267-286. 244 NUNES. Loc. Cit. 245 RICUPERO. Op. Cit. p. 13-33. 246 Carta d’El Rei a Caramuru. In: OSÓRIO. Op. Cit. p. 21. 247 FREIRE, Felisbello. História Territorial do Brasil, v. 1 (Bahia, Sergipe e Espírito Santo). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1998 (edição fac-similar), p. 18; NUNES, 1996, Op. Cit. p. 267-286. 248 NUNES. Op. Cit.

90 ISSN 2358-4912 contenda. Enfim, permitindo ocupar as terras e a inserção do poder eclesiástico, como se observou em Itaparica com a missão jesuítica e com a freguesia de Vera Cruz, as capitanias alvo desse estudo se mostravam duas estruturas úteis para a administração colonial e para a manutenção da colonização portuguesa no Brasil quinhentista.

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O PROBLEMA DA FRONTEIRA EQUATORIAL NA ÉPOCA DA MONARQUIA HISPÂNICA (1600-1640) Alírio Cardoso249 Este texto pretende explorar um aspecto que vem chamando a atenção dos pesquisadores nos últimos anos sobre a União Ibérica (1580-1614), a percepção que tinham os portugueses que viviam no ultramar sobre a situação de vassalagem com relação à Castela, especialmente nas áreas de fronteira. Como se sabe, a união dinástica havia sido ensaiada durante gerações de matrimônios entre as Casas Reais de Portugal e Espanha. Durante sessenta anos Portugal e Espanha permitiram com este acerto político-dinástico-militar o controle de imensas áreas ultramarinas na América, África e Ásia. Paradoxalmente, este foi o período em que a estabilidade da Monarquia Hispânica também passou por uma grave crise, período fértil em rebeliões, nos Países Baixos, mais tarde em Portugal e na Catalunha, depois, a ameaça da concorrência inglesa, francesa e neerlandesa nos oceanos Índico e Atlântico. Este foi um período de intensa atividade diplomática, e uma atenção especial sobre as regiões fronteiriças, sobretudo por conta da política exterior do duque de Lerma.250 Nesse sentido, estava claro que a Pax Hispanica, período de resfriamento da campanha bélica espanhola nos Países Baixos, não ganhou o mesmo sentido nas conquistas americanas. Pesquisas mais recentes têm demonstrado que, por exemplo, nas Índias castelhanas, esta guerra era bem mais ativa e sistemática.251 Assim, nas terras de ultramar passa a ser cada vez mais evidente a mobilização de tropas, de modo a manter a unidade política das imensas regiões, e responder à ameaça dos concorrentes oceânicos. Nos últimos anos, os estudos sobre a Monarquia Hispânica têm mudado seu foco, prestando a devida atenção a processos transoceânicos, a partir da intersecção entre os diversos territórios espanhóis. De modo geral, estes novos estudos vêm tentando avaliar o impacto global da Monarquia para além da própria Europa.252 Nesse sentido, muitos destes estudos passam a propor outra interpretação acerca da organização geopolítica do “império”, buscando compreender o reforço da identidade entre as partes e a consciência sobre a flexibilização das fronteiras, quer sejam políticas, econômicas ou culturais253. Como consequência, ao longo das últimas décadas do século XVI, a circulação de prata, escravos, madeira, açúcar tornava as relações comerciais entre as duas partes, Espanha e Portugal, cada vez mais simbiótica, favorecendo a livre associação entre homens de negócios dos dois lados do Atlântico.254 A integração de Portugal à Monarquia Hispânica, nesse sentido, é também uma 249

Universidade Federal do Maranhão. [email protected] GARCÍA GARCÍA, José Bernardo. La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma. Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 27-81. 251 Sobre o tema, ver: DÍAZ BLANCO, José Manuel. Razón de Estado y buen Gobierno. La Guerra Defensiva y el imperialismo español en tiempos de Felipe III. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2010, pp. 28-29. 252 VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), declive imperial y adaptación. Louvain: Leuven University Press, 2001; SCHAUB, Jean-Frédéric. La Francia española. Las raíces hispanas del absolutismo francés. Madrid: Marcial Pons, 2004; CARDIM, Pedro. “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”. Hispania, vol. LXIV, nº 216 (janeiro-abril, 2004), pp. 117-156; MARQUES, Guida. “L’Invention du Bresil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union iberique (1580-1640)”. Paris: Tese de doutorado apresentada a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009; VENTURA, Graça M.. A união ibérica e o mundo atlântico. Lisboa: Colibri, 1997; RUSSELL-WOOD, A.J.R. “Centers and Peripheries in the Luso-Brazilian World, 1500-1808”. In: DANIELS, Christine; KENNEDY, Michael V. Negotiated Impires: centre and peripheries in the Americas, 1500-1820. Nova York: Routledge, 2002, pp. 105142; MOLHO, Anthony; CURTO, Diogo Ramada. “Les réseaux Marchands à l’époque moderne”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 3 (maio-junho, 2003), pp. 569-579. GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004. 253 CARDIM, Pedro; RUIZ IBÁÑEZ, José Javier; SABATINI, Gaetano. “Introduzione”. In: SABATINI, Gaetano (Ed.). Comprendere le Monarchie Iberiche. Risorse Materiali e rappresentazioni del potere. Roma: Viella, 2010, pp. 15-34. 254 SCHWARTZ, Stuart B. “Prata, açúcar e escravos: de como o império resgatou Portugal”. Tempo, vol. 12, nº 24 (2008), pp. 201-223; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Le versant brésilien de l’Atlantique-sud. 1550-1850”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 2 (março-abril, 2006), pp. 339-385. Sobre a dinâmica dos fluxos inter250

92 ISSN 2358-4912 expressão da enorme circulação mundial de pessoas, conhecimentos e mercadorias, ensejada pela dinamização dos circuitos oceânicos a partir do século XV, processo que alguns chamaram de “mundialização”, “ocidentalização” ou até mesmo “globalização”.255 Assim, numa perspectiva bastante pragmática, diversos comerciantes portugueses atentavam para as enormes vantagens de uma relação tão próxima com os territórios espanhóis no Atlântico, cujo benefício mais claro seria o acesso ao mercado da prata hispano-americana.256 É bom lembrar que, no período da união monárquica, esta interação já ocorria, por exemplo, entre os mercados do Rio de Janeiro e de Buenos Aires que se relacionavam de maneira simbiótica, interdependentes de prata, escravos e grãos, com a participação ativa de ricos imigrantes portugueses na cidade castelhana257. A noção de fronteira que utilizamos aqui parece muito mais próxima da definição de Covarrubias, como “raya” ou “limite” compartilhado entre dois reinos, de onde deriva termos como “frontero”, “frontal”, “frontispício”.258 Essa definição nos parece mais apropriada, no caso da documentação sobre o antigo Maranhão, que a noção de “confim” utilizado por Raphael Bluteau em seu Vocabulário Português e Latino. O Maranhão, como veremos, é identificado como uma entidade geográfica muito mais próxima, “frontal”, portanto, ao Peru. Ao contrário do que foi sugerido algumas vezes pela historiografia, o Maranhão não faz parte do Atlântico Sul. Esta região, no contexto dos regimes de navegação do século XVII, era fronteira entre a América portuguesa e as Índias castelhanas na parte meridional do Atlântico Norte. Região que chamaremos aqui de Atlântico equinocial.259 Ao fim do século XVI, essa fronteira era quase que completamente desconhecida, o que gerou uma série de especulações acerca de possíveis conexões com as Índias castelhanas.260 O contexto geopolítico da união hispano-lusa contribuiu para uma reflexão aberta sobre alguns destes limites espaciais. Entre o final do século XVI e o início do século XVII, as cartas, crônicas, e memoriais costumavam identificar estas terras a partir de comparações com o território espanhol. Estas fontes permitem entender uma realidade estranha aos dias de hoje: o Maranhão preservava uma distância física com relação ao Estado do Brasil, e não participava naturalmente dos seus circuitos de navegação. Eram regiões distantes entre si e cujo vínculo comercial era dificultoso em vários níveis. A palavra “Maranhão”, antes da conquista hispano-lusa (1615), utilizado largamente na cartografia da época, tinha outro significado. Era assim conhecida a fronteira entre as terras espanholas e portuguesas na América. A palavra, com esse significado, já aparece em documentos da primeira metade do século XVI. Na época de Filipe II, de Castela, esse território era praticamente uma área de transição (não de trânsito). Não era considerada exatamente “Brasil”, apesar de estar ligada politicamente ao Estado do Brasil, mas não chegava a ser entendida, de outra forma, como parte das

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

regionais, ver: COSTA, Leonor Freire. “Entre o açucar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs). Nas rotas do Império. Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória/Lisboa: Edufes/ IICT, 2006, pp. 97-134. 255 GRUZINSKI. Serge. Les quatres parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004; PUTNAM, Lara. “To study the fragments/whole: microhistory and Atlantic world”. The Journal of Modern History, vol. 39, nº 3 (verão de 2006), pp. 615-630. Sobre a relação entre as conquista oceânicas e o conceito de globalização, ver: GINZBURG, Carlo. “Memoria e Globalizzazione”. Quaderni Storici, nº 120, año XL, fasc. 3 (Dezembro, 2005), pp. 657-669. 256 Ver, por exemplo: AGS, Secretarias Provinciales, 1476, flºs 156-159. 257 Sobre o comércio entre o Rio de Janeiro e o rio da Prata, nas Secreatarias Provinciales do Archivo General de Simancas, ver: SP, 1476. Sobre o tema, ver entre outros: CANABRAVA, Alice Piffer. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1984; TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal. Trabajo, negócios e intereses en la plaza naviera y comercial. Bahía Blanca: Editorial de la Universidad Nacional del Sur, 2004. 258 COVARRUBIAS OROZCO, Sebastian de. Tesoro de la lengua Castellana o Española, Editorial castalia/Nueva Biblioteca de erudición y crítica, 1995 [1611], p. 561. 259 A expressão foi utilizada pelo Doutor Rafael Chambouleyron (UFPA). 260 Sobre o tema, ver: REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, Belém, Secult, vol. 1, 1993; ver também: RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. “El control de territorio. Misiones en la demarcación de fronteras amazónicas”. Boletín Americanista, año LVIII, nº 58, (2008), pp. 115-131; ROUX, Jean Claude. “De los limites a la frontera: los malentendidos de la geopolítica amazónica”. Revista de Indias, vol. LXI, nº 223 (SetembroDezembro, 2001), pp. 513-539.

93 ISSN 2358-4912 Índias de Castela. Portanto, o “Maranhão” corresponderia (mais ou menos) aos atuais Estados brasileiros de Pará, Amazonas, Acre, Amapá, Tocantins, Piaui, Maranhão.261 Além disso, eventualmente a Capitania do Ceará fazia parte desta macrorregião. No que diz respeito à união monárquica, quase todo esse território está localizado a Oeste do meridiano de Tordesilhas262. A cartografia que dedicava-se a representações do rio Amazonas jamais foi privilégio de portugueses ou espanhóis. Nesse sentido, os declarados limites entre os principais rios da região (Marañón, Negro, Orinoco), e as supostas ligações entre Maranhão, Peru e Caribe interessaram, ao longo dos séculos XVI e XVII, um considerável grupo de cronistas, cartógrafos e navegantes de outras nações, a exemplo de Raleigh, Bry, Hondius, Schangen, Jansson, e Arnoldus Fiorentinus van Langeren. Estas possibilidades de integração física obviamente ensejavam especulações sobre integrações comerciais. Para Anthony Pagden, a ideia de uma integração mais efetiva para além dos aspectos fiscais e bélicos sempre esteve presente entre certos setores letrados da Monarquia Hispânica.263 Então, mesmo que os Monarcas espanhóis não tivessem uma política específica para integração de seu vasto império, este era um panorama presente nos escritos e expectativas de seus vassalos, incluindo os próprios portugueses. A conquista da Amazônia, em 1615, havia dado um exemplo disso. Nela houve um processo de adesão voluntária orientado tanto para a necessidade expulsão dos franceses, da prevenção contra os holandeses, mas que também estava claramente interessado no desenvolvimento de um mercado inter-regional cuja referência não deixava de ser a comparação entre os processos de conquista no Peru, Caribe e Brasil264. Muitas das representações da época sobre a fronteira amazônica, ou equatorial, tinham como base duas percepções bem fundadas num certo imaginário sobre a região. Em primeiro lugar, a ideia muito difundida, a partir da primeira metade do século XVII, segundo a qual a região poderia integrar geograficamente Brasil e o Vice-Reinado do Peru; em segundo lugar, a noção de que estas terras abrigavam uma grande quantidade de riquezas não desveladas, incluindo metais preciosos, mas também uma infinidade de gêneros naturais que poderiam ser extraídos das florestas e comercializados nos mercados europeus. Nesse sentido, a fronteira equatorial, identificada principalmente com o território do antigo Estado do Maranhão, reproduzia expectativas presente em outras regiões do velho Brasil ou mesmo das Índias. Por fim, apesar da enorme importância dos relatos quinhentistas e seiscentistas, muitos destes eram desprovidos de uma dimensão empírica, incorrendo em diversas generalizações. Isto começa a mudar exatamente no período filipino, momento em que surgiriam crônicas mais fidedignas, interessadas na apreciação mais objetiva acerca destas fronteiras. Apesar das distâncias entre o Maranhão e o Brasil, paradoxalmente, as políticas filipinas ajudaram a integrar melhor as duas partes isoladas da América Portuguesa. Durante todo o período em que vigorou a união monárquica chegavam aos Conselhos espanhóis quantidades de crônicas, cartas, pareceres e pequenos informes cujo tema principal era a possibilidade de integração entre os as partes espanhola e portuguesa da América. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Le versant brésilien de l’Atlantique-sud. 1550-1850”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 2 (março-abril, 2006), pp. 339-385. BOXER, Charles. João de Barros. Portuguese humanist and historian of Asia. New Delhi: Concept Publishing Company, 1980. CANABRAVA, Alice Piffer. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). São Paulo: Editora Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1984. CARDIM, Pedro. “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”. Hispania, vol. LXIV, nº 216 (janeiro-abril, 2004), pp. 117-156. 261

REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Amazônia e a integridade do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 18. REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, p. 12. 263 PAGDEN, Anthony. El imperialismo español y la imaginación política. Estudios sobre teoría social y política europea e hispanoamericana (1513-1830). Barcelona: Planeta, 1991, p. 94. 264 Ver: CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. 262

94 ISSN 2358-4912 CARDIM, Pedro; RUIZ IBÁÑEZ, José Javier; SABATINI, Gaetano. “Introduzione”. In: SABATINI, Gaetano (Ed.). Comprendere le Monarchie Iberiche. Risorse Materiali e rappresentazioni del potere. Roma: Viella, 2010, pp. 15-34. CARDOSO, Alírio. “A Conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626)”. São Paulo: Revista Brasileira de História, v. 31, nº 61 (2011), pp. 317-338. CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. COSTA, Leonor Freire. “Entre o açucar e o ouro: permanência e mudança na organização dos fluxos (séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo; JUCÁ, Antônio Carlos; CAMPOS, Adriana (orgs). Nas rotas do Império. Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Vitória/Lisboa: Edufes/ IICT, 2006, pp. 97-134. COVARRUBIAS OROZCO, Sebastian de. Tesoro de la lengua Castellana o Española, Editorial castalia/Nueva Biblioteca de erudición y crítica, 1995 [1611]. DÍAZ BLANCO, José Manuel. Razón de Estado y buen Gobierno. La Guerra Defensiva y el imperialismo español en tiempos de Felipe III. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2010, pp. 28-29. GARCÍA GARCÍA, José Bernardo. La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma. Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 27-81. GINZBURG, Carlo. “Memoria e Globalizzazione”. Quaderni Storici, nº 120, año XL, fasc. 3 (Dezembro, 2005), pp. 657-669. GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialization. Paris: Éditions de Martinière, 2004. MARQUES, Guida. “L’Invention du Bresil entre deux monarchies. Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union iberique (1580-1640)”. Paris: Tese de doutorado apresentada a Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009. MOLHO, Anthony; CURTO, Diogo Ramada. “Les réseaux Marchands à l’époque moderne”. Annales. Histories, Sciences Sociales, nº 3 (maio-junho, 2003), pp. 569-579. PAGDEN, Anthony. El imperialismo español y la imaginación política. Estudios sobre teoría social y política europea e hispanoamericana (1513-1830). Barcelona: Planeta, 1991 PUTNAM, Lara. “To study the fragments/whole: microhistory and Atlantic world”. The Journal of Modern History, vol. 39, nº 3 (verão de 2006), pp. 615-630. REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Amazônia e a integridade do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001. REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, Belém, Secult, vol. 1, 1993. ROUX, Jean Claude. “De los limites a la frontera: los malentendidos de la geopolítica amazónica”. Revista de Indias, vol. LXI, nº 223 (Setembro-Dezembro, 2001), pp. 513-539. RUIZ-PEINADO ALONSO, José Luis. “El control de territorio. Misiones en la demarcación de fronteras amazónicas”. Boletín Americanista, año LVIII, nº 58, (2008), pp. 115-131. RUSSELL-WOOD, A.J.R. “Centers and Peripheries in the Luso-Brazilian World, 1500-1808”. In: DANIELS, Christine; KENNEDY, Michael V. Negotiated Impires: centre and peripheries in the Americas, 15001820. Nova York: Routledge, 2002, pp. 105-142. SCHAUB, Jean-Frédéric. La Francia española. Las raíces hispanas del absolutismo francés. Madrid: Marcial Pons, 2004. SCHWARTZ, Stuart B. “Prata, açúcar e escravos: de como o império resgatou Portugal”. Tempo, vol. 12, nº 24 (2008), pp. 201-223. TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal. Trabajo, negócios e intereses en la plaza naviera y comercial. Bahía Blanca: Editorial de la Universidad Nacional del Sur, 2004. VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Ásia (1580-1680), declive imperial y adaptación. Louvain: Leuven University Press, 2001. VENTURA, Graça M. (Org.). A união ibérica e o mundo atlântico. Lisboa: Colibri, 1997. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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O DEGREDO NO EXTREMO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA (1680-1777) Aluísio Gomes Lessa265 Este texto traz alguns apontamentos relativos a uma pesquisa ainda em desenvolvimento sobre o degredo no extremo sul da América Portuguesa, e tem como objetivo apresentar algumas possibilidades (e limitações) de investigação sobre o tema a partir das fontes e bibliografia disponíveis. O recorte aqui proposto inclui a Colônia do Sacramento, o Rio Grande de São Pedro e a Ilha de Santa Catarina durante a maior parte do século XVIII, em um contexto de intensas disputas entre as Coroas ibéricas pela região, que exigiram a movimentação de importantes contingentes populacionais – incluindo muitos degredados –para sua defesa e ocupação. Assim, o ponto de partida deste estudo é dado pela primeira fundação da Colônia do Sacramento em 1680, se estendendo até o Tratado de Santo Ildefonso em 1777, que pôs fim ao período mais acirrado de disputas entre espanhóis e portugueses naquele espaço. O sistema de degredo praticado por diferentes países da Europa moderna, entre eles Portugal e seu império ultramarino, adquiriu uma dupla função ao longo de sua existência: se por um lado signifcava uma forma de punição, por outro representava uma oportunidada para a Coroa obter o contingente populacional necessário para conquistar, povoar e defender suas possessões coloniais. Especificamente no caso lusitano, o degredo foi inicialmente praticado através do envio de prisioneiros para as galés, onde executavam trabalhos navais, e para os coutos, cidades dentro de Portugal que recebiam condenados ao exílio interno. A partir da expansão marítima do século XV novas modalidades passaram a se juntar às duas iniciais, quando então se constituiu um sistema de degredo imperial. À medida que os territórios ultramarinos iam sendo conquistados, logo passavam a receber condenados ao degredo e, dessa forma, integrar o sistema266. No inicio da colonização da America Portuguesa o percentual de degredados entre a população de origem europeia parece ter sido muito significativo, levando-se em conta as muitas referências bibliográficas existentes sobre o Brasil que o consideram uma terra de degredados 267. No entanto, as tentativas de quantificação mais precisas sobre o número total de degredados esbarram no fato de que o degredo era uma pena amplamente aplicada, por diferentes instâncias de poder em diferentes partes do império, além de ser aplicada tanto pela justiça secular quanto pela eclesiástica. Mesmo assim, alguns números podem ser conhecidos. Coates apresenta a estimativa de que ao longo de sua história cerca de cinquenta mil pessoas de todas as partes do império teriam passado pelo sistema de degredo português268. Para a América Portuguesa do século XVIII os números mais precisos são da Amazônia, fronteira setentrional dos territórios lusitanos no continente e local que mais recebeu degredados no período. Simei Torres aponta que entre 1750 e 1800 os Estados do Grão-Pará e Maranhão receberam um total de 721 degredados269. Para o período final do século, entre 1784 e 1800 Janaína Amado calcula que somente os condenados em Portugal ao degredo externo para toda a América Portuguesa totalizaram 1.182 pessoas270. Já para o extremo sul da América Portuguesa, até o momento, não há estimativas precisas, mas sabe-se que a região recebeu um número muito expressivo de condendos ao degredo, uma vez que tanto a Ilha de Santa Catarina foi o segundo local preferido para o envio de

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação do Prof. Dr. Fábio Kühn. Bolsista do CNPq. Contato: [email protected] 266 COATES, Timothy J. Convicts and orphans: forced and state-sponsored colonizers in the Portuguese Empire, 1550-1755. Stanford: Stanford University Press, 2001. pp.43-50. 267 TOMA, Maristela. Imagens do degredo: história, legislação e imaginário (a pena de degredo nas Ordenações Filipinas). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002, pp. 13-48. 268 COATES, op.cit., p.183 269 TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis. Degredados na Amazônia Portuguesa (1750-1800). Mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: 2006, p.96. 270 AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol, VI (suplemento), 2000, p. 827.

96 ISSN 2358-4912 degredados no Brasil durante o século XVIII, atrás apenas da região amazônica271, enquanto a Colônia do Sacramento se constituiu como um importante centro de degredo do mesmo período272. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Punição dos Degredados O degredo foi uma pena amplamente aplicada, que punia desde os pequenos delitos até os crimes de maior gravidade. Para compreender as especificidades desta punição é preciso considerar as particularidades da noção de criminalidade do Antigo Regime, que penalizava até mesmo as menores faltas, que posteriormente deixariam de ter caráter punitivo. A atenção a esse aspecto é necessária, uma vez que muitas observações negativas sobre os degredados presentes na historiografia não observaram tais singularidades, apresentando esses homens e mulheres como criminosos perigosos e nocivos à colonização. Em seu livro quinto, as ordenações filipinas (1603) apresentam mais de duzentos e cinquenta tipos de crimes que poderiam ser punidos com o degredo, entre os quais é possível distinguir três níveis de gravidade. Havia os delitos menores, que poderiam resultar em degredo interno ou poucos anos de degredo externo. Os delitos graves, como blasfêmia, assassinato, injúria, sequestro, estupro e feitiçaria, que poderiam levar as penas de maior duração. Por fim, havia os delitos imperdoáveis, que incluiam quatro crimes: heresia, lesa-majestade, falsificação e sodomia 273. Além disto, as ordenações também tratam de como as punições seriam aplicadas e definem como principal impedimento aos condenados o retorno ao local de onde foram expulsos durante o tempo estipulado de degredo, estando eles livres para retornar assim que a pena fosse cumprida274. Utilização dos Degredados A presença de degredados no extremo sul da América Portuguesa se desenvolveu em meio a um contexto de expansão meridional lusitana, iniciado a partir do fim da União Dinástica em 1640 e foi promovido tanto por empreendimentos privados quanto por aqueles dirigidos pela Coroa, orientada pelo princípio diplomático do Uti Possidetis. Assim, povoadores saídos das vilas de São Paulo, Santos e São Vicente rumo ao sul fundaram os povoados de Paranaguá (em torno de 1646), São Francisco do Sul (por volta de 1658), Laguna (final do século XVIII), Nossa Senhora do Desterro (por volta de 1675) e Curitiba (1693)275. Neste mesmo período ocorre a primeira fundação da Colônia do Sacramento (1680), às margens do Rio da Prata, em uma expedição essencialmente patrocinada por comerciantes do Rio de Janeiro – que tinham interesse no lucrativo contrabando da prata potosina – mas também de acordo com os planos da Coroa em ampliar seus domínios pela região. Por fim, a expansão meridional deste período também incluiu o Rio Grande de São Pedro, que inicialmente atraiu paulistas e lagunistas interessados nas reservas de gado dos Campos de Viamão (a partir da década de 1730) e cuja ocupação prosseguiu com a fundação de Rio Grande (1737). Segundo Luis Ferrand de Almeida, "num tempo em que toda a gente disponível era pouca para a colonização de áreas vastíssimas, não se admira que se recorresse muitas vezes aos próprios criminosos, dos quais se procurava assim tirar alguma utilidade social. A Colônia do Sacramento não escapou ao destino de tantas praças longínquas"276. Esta presença de degredados relatada pelo autor também diz muito sobre o Rio Grande de São Pedro e Ilha de Santa Catarina e as formas como eles foram utilizados pela Coroa nas três regiões podem ser verificados em diferentes momentos da expansão meridional lusitana. Uma destas ocasiões foi o momento da exploração inicial das terras sulinas, uma vez que nas entradas dos paulistas rumo aos sertões era prática contar com o auxilio dos condenados ao degredo, como se observa em instruções reais relativas à busca por metais precisoso em 271

Ibid. ALMEIDA, Luis Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973, p. 66-7. 273 COATES, op.cit., pp.24-25. 274 Ordenações Filipinas, Livro V, Título 141. 275 KÜHN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Administração Na América Portuguesa:A Expansão Das Fronteiras Meridionais Do Império (1680-1808). Revista de História, São Paulo, n. 169, julho/dezembro 2013, p. 65-66. 276 ALMEIDA, op.cit., 67-68. 272

97 ISSN 2358-4912 Paranaguá, onde se orienta que se aproveite de criminosos para a obtenção de informações relativas às minas a serem descobertas, em troca de perdão de seus crimes277. O mesmo se verifica no momento inicial de ocupação da Colônia do Sacramento, quando se estabelece que, para povoar a praça, além de casais do Reino, fossem também utilizados degredados e vagabundos da cidade do Rio de Janeiro278. Uma segunda ocasião em que se verifica a presença de degredados na região é a defesa do extremo sul, fronteira entre os domínios portugueses e espanhóis na América e palco de inúmeros conflitos entre as coroas ibéricas ao longo do século XVIII, o que exigiu constante deslocamento de forças militares. Estas, em decorrência da dificuldade das autoridades coloniais em obter voluntariamente membros para a formação de suas tropas, eram constituídas em grande parte de elementos considerados indesejáveis, entre os quais estavam os degredados. Além de soldados, a defesa da região também envolveu a construção de fortalezes desde o litoral do Rio de Janeiro até a Colônia do Sacramento, incluindo as da Barra do Rio Grande e as da Ilha de Santa Catarina, edificações que normalmente contavam com degredados entre os seus construtores279. Por fim, as punições impostas aos soldados que se afastassem das normas também fazia com que o extremo sul não apenas recebesse condenados, mas também realizasse condenações ao degredo, como atestam, por exemplo, as inúmeras penas de degredo para as galés aplicadas em Rio Grande280. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

EM BUSCA DE TRAJETÓRIAS DE DEGREDADOS NO EXTREMO SUL I. Condenados em defesa da fronteira meridional Laura de Melo e Souza apresenta o extremo sul da América Portuguesa como "o grande sorvedouro de desclassifiacados por todo o século XVIII devido à questão fronteiriça da Colônia do Sacramento e, por algum tempo, dos Sete Povos das Missões"281. Os condenados ao degredo que foram enviados para defender a região não eram somente os integrantes das forças militares coloniais, como é o caso de Gregório Gomes Henriques, engenheiro militar português que foi enviado do Rio de Janeiro, onde exercia seu ofício, para a Colônia do Sacramento em 1701. O motivo de sua condenação não é conhecido, mas sabe-se que anteriormente ele havia sido preso no Rio de Janeiro por conta de um de seus trabalhos ter desagradado o governador, o que, no entanto, não impediu que ele continuasse a ensinar artlharia na aula militar da cidade e a dirigir obras de fortificação282. De forma semelhante, o degredo não impediu Gregório de seguir trabalhando, sendo mencionado em uma carta do rei D. Pedro II sobre a defesa daquela praça: “trateis logo de a fortificar em tal forma que fique com a defesa que se necessita, fazendo-se lhe aquelas obras que parece ao engenheiro Gregório Gomes Henriques, que aí se acha”283. A continuidade do exercíco de seu ofício era bastante proveitosa para a Coroa, porque ele não era meramente um condenado ocioso que poderia ser aproveitado onde a população era escassa, mas principalmente porque pessoas com formação especializada como a sua eram muito requisitadas devido à falta de profissionais qualificados na colônia, possibilitando inclusive que os degredados que

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MELLO E SOUZA, Laura de. Os desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p.109. 278 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento (1680-1777). Porto Alegre: Livraria do Globo, 1937, Volume I, p.108. 279 FERNANDES, Suelme Evangelista. De um Império a Outro: a construção e os conflitos no Real Forte do Príncipe da Beira (1776-1792). In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História, Guerra e Paz. Londrina, ANPUH, 2005, p.5. 280 ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 1977. v. I, pp. 92-94, 126, 138-9 281 MELLO E SOUZA, op.cit., 118-119. 282 CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista – A Vida e a Construção da Cidade da Invasão Francesa até a Chegada a Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004, p. 249. 283 Arquivo Histórico Ultramarino (de agora em diante, AHU), Conselho Ultramarino, 224, fl. 10v in: ALMEIDA, op.cit., 408-9.

98 ISSN 2358-4912 tivessem esse perfil pudessem receber um tratamento privilegado, como atesta a continuidade de sua carreira nas fortificações de Salvador, após o cumprimento de sua pena em Colônia284. Outro caso de um degredado que esteve envolvido na defesa da fronteira meridional foi Salvador Brochado de Mendonça, que cumpriu pena de degredo entre 1733 e 1738, o que significa que seu delito foi considerado leve. Salvador foi enviado para a Colônia do Sacramento como soldado, no entanto, de forma diferente do que parece ter ocorrido com a maior parte dos condenados, que só passaram a executar essa função em decorrência de sua pena de degredo, ele já servia como soldado na guarnição do Rio de Janeiro antes de lá ser expulso. Mesmo ainda durante o cumprimento de sua pena, o soldado foi promovido a cabo de esquadra e continuou a ascender na hieraquia militar após o término de sua pena, entre 1739 e 1753, prosseguindo na Colônia do Sacramento mesmo estando livre para deixar a praça e retornar ao Rio de Janeiro, passando para sargento supra, depois para sargento do número e em seguida alferes, desta vez não em Colônia mas na Ilha de Santa Catarina, e finalmente retornando a Sacramento como tenente285. A trajetória de Salvador Brochado demonstra que nem sempre o degredo significou uma interrupção definitiva na vida dos condenados, já que sua expulsão penal do Rio de Janeiro e envio forçado à Colônia do Sacramento parece ter se transformado em uma oportunidade de construção de uma carreira militar e de seu estabelecimento definitivo naquela praça, conforme se verifica por sua continuidade na região (ainda que brevemente interrompida pelo período de cerca de ano em foi alferes na Ilha de Santa Catarina), mesmo depois de estar livre para retornar ao Rio de Janeiro e lá prosseguir com sua vida. Além disto, ele parece ter conseguido reunir alguns recursos, já que consta na lista de moradores da praça de 1749 que ele possuía um escravo286, além de receber das autoridades o reconhecimento pelos serviços que prestou, sendo elogiado por sua participação “em toda a guerra daquela Praça, principiando a mostrar seu préstimo e zelo com que servia na reedificação dos baluartes e muralhas desta, trabalhando pessoalmente e fazendo trabalhar aos [de]mais...”287. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

II. Condenados pela Igreja Em "Os excluídos do Reino" Geraldo Pieroni realizou um amplo estudo sobre as condenações ao degredo realizado pelos tribunais do Santo Ofício de Lisboa, Évora e Coimbra ao abordar o degredo como o resultado da política de controle e coerção realizada pela inquisição portuguesa. Embora a maioria das condenações ao degredo tenham sido realizadas por tribunais seculares, os números de degredados por tribunais eclesiásticos não são desprezíveis. Entre 1550 e 1720 a Inquisição enviou para o Brasil quinhentos e noventa condenados288. Porém, tal como ocorre com o número de degredados pela justiça secular, também no caso da Igreja este não pode ser tomado como a quantidade total de condenados julgados por tribunais eclesiásticos, que também na América Portuguesa realizaram suas condenações ao degredo. Ao estudar a presença da inquisição no Rio Grande de São Pedro e na Colônia do Sacramento, Lucas Monteiro identificou alguns processos inquisitoriais que resultaram em condenção ao degredo, como os casos de Noutel Seco e Manuel Cristovão, moradores da Colônia do Sacramento acusados de desrespeitar o sacramento do matrimônio ao testemunhar a favor de um bígamo. Os dois acabaram recebendo a sentença de degredo para a Costa do Marfim em 1692289. Para o extremo sul há também o caso de um auto de denúncia realizado pelo pároco da freguesia de Viamão, José Carlos da Silva, contra Joana Gracia Maciel cuja sentença, em 1757, determinou que ela fosse "expulsa para fora desta freguesia com pena de não tornar a ela e quando por algum incidente re[gressar] fiz saber ao que julgo seja presa em ferros e remetida pelo escrivão meirinho ao porto dos 284

RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p.108. 285 AHU, Colônia do Sacramento e Rio da Prata, 463; AHU, RJ, 2279; Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol, 23 (1929), p. 522. 286 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (de agora em diante, ANRJ), códice 94, vol. 1, fl.40v. 287 AHU, RJ, 2279. 288 PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. Brasília/SP: UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2000, p.279. 289 MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2011, pp. 169-171.

99 ISSN 2358-4912 casais". Seu caso, por tanto, pode ser encaixado naqueles tipos de degredo em que não há um local definido para o cumprimento da pena (em que pese haver a indicação no processo que ela acabou sendo enviada para Rio Pardo), tendo mais peso nesse tipo de a expulsão penal em si e não tanto o reaproveitamento de uma mão de obra ociosa. A denúncia contra Joana foi motivada ''pelo escândalo público com que vive e desonesto procedimento'', tendo uma das testemunhas apontada que ela andava concubinada com toda a vizinhança e outra confirmando que ela maltratava uma de suas índias administradas. Outro aspecto interessante para a análise deste documento é que uma das testemunhas apontou "que era público em toda esta vizinhança que a dita denunciada tratava tão mal, de pancadas, mortas de fome e nuas, mas que até a uma delas por nome Susana lhe meteu um tição de fogo por entre as pernas, por cuja razão o Capelão que exercia nesta freguesia, Manuel Luís Vergueiro [...] a dita índia e a degradou para São Paulo por evitar para que a dita denunciada não matasse a dita índia"290. A análise deste trecho é reveladora ao apontar que o degredo não necessariamente seria aplicado apenas como uma punição por algum delito, ao menos não para os indígenas, mas também poderia ser aplicado em outras circunstâncias, como a de uma índia administrada maltratada. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

III. Condenados em Circulação pelo Mundo Atlântico As comutações foram parte essencial do sistema de degredo no Império Português, uma vez que ela dava flexibilidade às condenações e dessa forma permitia que a mão de obra disponível representada pelos condenados pudesse ser utiizada pelas autoridades quando houvesse mudanças na demanda por pessoas para defender e ocupar as diferentes partes do império291. Um caso em que a trajetória de um degredado foi marcada pelas mudanças no local de cumprimento da pena é o de Gabriel Theodoro de Sá, português que em 1744 foi degredado por toda a vida para Angola, o que aponta para a grande gravidade do delito que levara à sua condenação. Em Angola foi novamente condenado, desta vez após furtar as firmas de ministros do Tribunal da Relação, recebendo uma pena de açoitamento. O próximo local em que Gabriel aparece na documentação já é a Colônia do Sacramento, em 1751, o que aponta para a possibilidade de sua pena de degredo perpétuo em Angola ter sido comutada para algum lugar da América Portuguesa. Em Colônia ele aparece descrito pelas autoridades como um rábula, e sua atuação como uma espécie de advogado parece se relacionar a muitos dos delitos associados a ele na documentação292. A documentação, especialmente as fontes paroquiais, também apontam para a possibilidade de inserção dos degredados nas sociedades para onde eram enviados. Os registros de batismo, por exemplo, registram o nome de Gabriel Theodoro de Sá por ocasião do batismo de nove escravos entre 1756 e 1773, que eram filhos de quatro escavas suas293, dando um indício de suas posses. Ao mesmo tempo os batismos também mostram que ele construiu uma familia na Colônia do Sacramento, casando-se com Inácia da Silva, com quem teve ao menos seis filhos, nascidos ente 1751 e 1758. Os padrinhos de seus filhos também revelam indícios de sua inserção social, indicando com quem estabelecia relações e auxiliando também a pensar em que tipo de atividades ele poderia estar envolvido. Joaquina, sua filha mais velha, foi apadrinhada por Manuel Botelho de Lacerda, mestre de campo e juiz da Alfândega, enquanto Luís e José tiveram como padrinho o governador de Colônia, Luis Garcia de Bivar294. No entanto, mesmo inserido na Colônia do Sacramento, Gabriel viu-se novamente obrigado a circular pelo Império Português, quando tem negado um pedido para continuar a residir na praça. Este pedido possibilita observar tanto que ele não cumpria mais a pena de degredo quanto o fato de que aparentemente sua pena, originalmente de degredo perpétuo para Angola, ao ser comutada para o Brasil fora reduzida em anos, tornando-se uma pena com um tempo final estipulado295. Ao ser expulso, acompanhado de sua mulher, Gabriel esteve na Ilha de Santa Catarina, onde continuou a cometer delitos, apresentando uma provisão falsa que dizia que havia sido dispensado dos estudos em 290

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA), Juízo Eclesiástico, Processo 7 – Joana Gracia Maciel, fl. 6v e 12. 291 TOMA, op.cit,. p.25. 292 AHU, CS, 513. 293 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (de agora em diante ACMRJ), 4º Livro de Batismos de Escravos da Colônia do Sacramento. 294 ACMRJ, Livros de Batismos de Colônia do Sacramento. 295 ANRJ, Códice 94, Vol. 5, fl. 78v.

100 ISSN 2358-4912 Coimbra e se formado bacharel para poder advogar em qualquer parte 296. Após seis anos de ausência, Gabriel volta a aparecer nos registros de Colônia em 1766, quando parece ter prosseguido com suas atividades, voltando a aparecer como proprietário de escravos nos já citados registros de batismo. É interessante observar que em sua história de muitas indas e vindas Gabriel conseguiu dar continuidade de suas práticas ilícitas e o conhecimento destas pelas autoridades não o impediram de prosseguir com sua trajetória de vida nas diferentes partes do Império Português para onde ele foi. Embora muitos detalhes sobre a vida de Gabriel sejam desconhecidos, este caso demonstra o potencial que o cruzamento entre fontes de diferente tipo, como as administrativas, judiciais e eclesiásticas têm para preencher algumas lacunas importantes para o estudo do degredo, auxiliando a pensar o que acontecia com os condenados ao degredo durante e após o cumprimento de suas penas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusão Os apontamentos apresentados ao longo deste texto procuraram analisar o degredo não apenas em termos institucionais, observando também qual poderia ser o impacto desta condenação nas trejetórias de vida dos degredados. Para isto, na tentativa de ir além de descrições genéricas feitas pelas autoridades sobre massas de degredados deslocados pelo território para socorrer alguma região em dificuldade, foram buscados alguns casos específicos de degredados que pudessem auxiliar a compreender melhor o sistema de degredo no império português. Assim, por meio das tentativas de reconstrução de trajetórias de vida de degredados, ainda que de forma lacunar, é possível construir uma visão mais complexa sobre quem eram esses condenados, o que poderia ocorrer com eles durante o período em que cumpriam suas penas e quais as possiblidades que existiam para que eles pudessem se inserir na sociedade das localidades que os recebiam. Referências ALMEIDA, Luis Ferrand de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973. AMADO, Janaína. Viajantes involuntários: degredados portugueses para a Amazônia colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol, VI (suplemento), 2000. ANAIS do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, 1977, v. I. RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. COATES, Timothy J. Convicts and orphans: forced and state-sponsored colonizers in the Portuguese Empire, 15501755. Stanford: Stanford University Press, 2001. FERNANDES, Suelme Evangelista. De um Império a Outro: a construção e os conflitos no Real Forte do Príncipe da Beira (1776-1792). In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História, Guerra e Paz. Londrina, ANPUH, 2005. KÜHN, Fábio; COMISSOLI, Adriano. Administração Na América Portuguesa: A Expansão Das Fronteiras Meridionais Do Império (1680-1808). Revista de História, São Paulo, n. 169, julho/dezembro 2013. MELLO E SOUZA, Laura de. Os desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa. Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2011. ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livro V. Organização de Sílvia Hunold Lara. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia. Brasília/SP: UnB/ Imprensa Oficial do Estado, 2000. RIBEIRO, Dulcyene Maria. A formação dos engenheiros militares: Azevedo Fortes, matemática e ensino da engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 296

AHU, CS, 1767.

101 ISSN 2358-4912 TOMA, Maristela. Imagens do degredo: história, legislação e imaginário (a pena de degredo nas Ordenações Filipinas). Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 2002. TORRES, Simei Maria de Souza. O cárcere dos indesejáveis. Degredados na Amazônia Portuguesa (17501800). Mestrado em História Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: 2006. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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OS PALIMPSESTOS DA LEI E AS POTENCIALIDADES DAS FORMAS E DO CAMPO DE UMA HISTÓRIA DA JUSTIÇA (MINAS GERAIS, SÉCULO XVIII) Álvaro de Araujo Antunes297 Enquanto a administração e o direito são campos consolidados e bem visitados na história, o mesmo parece não ocorrer com a Justiça, apesar da contribuição valiosa de autores como Paolo Prodi, Bartolomé Clavero, Antonio Manuel Hespanha, Silvia Hunold Lara, Joseli Maria Nunes Mendonça e Arno e Maria José Wheling, entre outros.298 O fato é que, no mais das vezes, a Justiça é considerada, de forma muito automática e deletéria, um dos braços da administração ou do direito.299 Qualquer tentativa de mudar esse quadro e delimitar um campo de investigação da justiça depende da fixação de fronteiras, entendendo-as como aquilo que separa e que também permite o contato e a conexão. Afinal, os domínios da historiografia não são puros e muito menos se fecham sobre si.300 A história do direito e da administração precedem a da justiça e com ela se comunicam.301 Na busca por maior especificidade com o intuito de delimitar um campo de pesquisa, valeria retomar os conceitos e sentidos de justiça considerando não apenas o corrente na literatura especializada da época, mas também o que se evidenciava nas práticas mais cotidianas dos auditórios e fora deles. Contra esta proposta, poder-se-ia alegar uma especialização excessiva de áreas já consagradas, repisando a conhecida discussão sobre uma “história em migalhas”.302 O argumento pode até ser procedente se considerada uma limitada acepção da justiça como a oficial e adstrita ao Estado e às suas estruturas administrativas. O mesmo argumento deixa de valer ao se ampliar a definição, as formas e as áreas de execução da justiça. Diante dessa abrangência, a proposta de uma história da justiça não implica fragmentação, mas sim a delimitação de uma ampla linha de investigação, nisso há, obviamente, implicações para uma apreciação plural da história e da história da justiça.303 Com a finalidade de delimitar o campo de uma história da justiça, parte-se de três pressupostos que contribuem para seu delineamento.304 O primeiro está em considerar que a justiça não é, em

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Professor Adjunto III do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. PRODI, Paolo. Uma história da justiça. Do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre consciência e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005; HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; WHELING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004; LARA, Silvia Hunold, MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. (org.) Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, CLAVERO, Bartolomé. Historia Del derecho: derecho común. Salamanca: Universidad, 1994. 299 Aliás, para Hebert Hart, mesmo no campo das teorias escolásticas, o direito, em especial o natural, era considerado um ramo da moral ou da justiça. HART, Hebert L.A. O conceito de Direito. 5.ed.Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p.18. 300 “Apesar de falarmos freqüentemente em uma ‘História Econômica’, em uma ‘Historia Política’, em uma ‘História Cultural’, e assim por diante, a verdade é que não existem fatos que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. Todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas”. BARROS, José d’Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p.15. 301 Para uma discussão mais extensa da proposta ver: ANTUNES, Álvaro de Araujo. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da História da justiça na América portuguesa. Revista de História, São Paulo, n.169, 2013. 302 A referência a obra de Dosse não é despropositada, pois recoloca, diante das pretensões universalistas de uma “história do todo”, a questão das perdas e ganhos de uma história fragmentada e especializada. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Edusc, 2003. 303 Ao invés de uma perspectiva fragmentária, se aposta em uma história escrita no plural dedicada à análise de seguimentos da história global. Sobre os prós e contras de uma “história em migalhas” ver: REIS, José Carlos. História e teoria. Historicismo, modernidade, temporalidades e verdade. 3.ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. 304 CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 298

103 ISSN 2358-4912 absoluto, um resultado exclusivo da administração ou dos direitos reconhecidos pelo Estado.305 O segundo pressuposto entende que a justiça, com base na sua conceituação, é uma potência, uma vontade ou virtude que só adquire sentido e reconhecimento na sua execução, quando posta em ação. O terceiro decorre desse último princípio: a justiça se expressa em atos singulares, enquanto o direito exprime a força de intenções gerais.306 Em ambos os casos, contudo, justiça e direito são entendidos como técnicas e veículos de dominação e de conflitos polimorfos.307 Os três pressupostos citados serão abordados recorrendo-se a casos exemplares que foram extraídos da documentação judicial produzida em Mariana, Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII. A escolha desse tipo documental não é despropositada, mas sim coerente com o espírito de uma história da justiça como a que aqui se propõem e que será indicada, brevemente, no final dessa comunicação. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Primeiro pressuposto: a justiça não é resultado exclusivo da administração ou dos direitos reconhecidos pelo Estado Na segunda metade do século XVIII e início do século XIX, o “campo jurídico” – lugar de “concorrência pelo monopólio de dizer o Direito” – se dilatava e se retraía ao sabor de forças complementares ou concorrentes da sociedade e da Coroa.308 Esta, apesar dos esforços de centralização política, não lograria hegemonia e teria um domínio limitado de diversas áreas, incluindo a da administração oficial da justiça. Outras Justiças se impunham nos meandros e margens da ordem oficial. São exemplos conhecidos o direito e a justiça dos “rústicos” – expressão valorativa utilizada pelos letrados para caracterizar normas e práticas dos povos isolados e ignorantes das formalidades jurídicas e da vida civil. Vez ou outra, as ações judiciais dão mostra do acesso da população considerada rústica à Justiça oficial, executada nos auditórios das vilas e cidades. Em uma das ações que defendeu no ano de 1794, o Dr.José Pereira Ribeiro, advogado em Mariana, justificou sua demora em dar resposta a um embargo, alegando que seu constituinte “é morador em grande distância desta cidade, rústico e ignorante dos termos de direito, motivo porque não acudiu em tempo a dar informações para o despacho”.309 O advogado retomava uma imagem, construída pelos eruditos, que conferia ao rústico um estatuto jurídico diferenciado. In rústico est preasumptio ignorantia. Tocava-lhes o direito natural, mas não o direito oficial, pois “todas as formalidades escritas eram estranhas a cultura jurídica tradicional”.310 Estratégia do advogado ou não, o fato é que o argumento só teria força se tivesse algum lastro na realidade. Nas Minas, os rústicos era população vária, imensa e espalhada. Os homens que viviam nas brenhas e sertões teriam pouco contato com a lei escrita, bem como restrições para a aquisição do saber letrado e até mesmo das leis da civilidade.311 Importava mais a sobrevivência, de onde um imperativo da força e da resistência. 305

Segundo Hespanha, uma visão apropriada da justiça deve: 1) considerar os mecanismos não oficiais e não judiciais da justiça; 2) não supervalorizar a justiça da corte em detrimento da periférica; 3) atentar para as tecnologias disciplinares, “diferentes da lei, da justiça (numa palavra, da ‘coerção’) na instituição da disciplina social”. HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: historia e prospectiva de um paradigma”. In. Idem. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.9. 306 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p.7. 307 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.32. 308 BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.226 et segs. 309 “Como se dizia nos pleitos, ‘não se deve imputar negligência a um ignorante’”. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Espelho de Cem Faces; o universo relacional de um advogado setecentista.São Paulo: Editora Annablume/PPGH/UFMG, 2004, p.185. e Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) – 2 Oficio, Códice 192, Auto 4813. 310 HESPANHA, Antonio Manuel. As fronteiras do poder: o mundo dos rústicos. Revista Seqüencia. Santa Catarina, n.51, dez, 2005, p.72. 311 GOUVEIA, Antônio Camões. Estratégias de interiorização da disciplina. In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.433.

104 ISSN 2358-4912 A justiça dos rústicos seguia um código próprio e constituía uma ordem que, em determinadas ocasiões, poderia ser um útil argumento nos processos oficiais, como no caso apresentado acima, em outras, configuraria uma força ofensiva.312 Nestes casos, a concorrência pelo monopólio de dizer o Direito, tornar-se-ia mais notável, explodindo em violência e revolta. Normalmente, o estopim para esses levantes era um sentimento de injustiça, de uma promessa não cumprida, de partilhas desiguais, retribuições não recebidas, direitos ignorados. Seriam esses os sentimentos que motivariam os levantes que buscariam restabelecer, por força, o equilíbrio na balança da justiça. Apesar de toda a vigilância, nas cidades e vilas, nichos do poder público, pairava o perigo da ação de grupos violentos e, por vezes, armados.313 Conta Marcos Magalhães de Aguiar que em Congonhas do Campo, Minas Gerais, um grupo de pessoas armadas se antepôs aos funcionários da Justiça e libertou, das mãos dos juízes de vintena, a Alexandre de Souza. Os amotinados que libertaram ao dito Alexandre diziam que “não tinham medo da Justiça, antes queriam morrer do que deixá-lo levar preso”.314 Possivelmente, nessa mesma localidade, Alexandre de Souza esteve envolvido em um levante de pessoas armadas com pistolas, clavinas, foices e outros instrumentos contundentes, que se rebelaram contra uma decisão do magistrado de reintegrar umas terras de onde extraíam ouro. O motim ou assuada, com a participação de mais de 100 pessoas, se levantara ao clamor de “viva o povo” e “viva el rei”. A exortação era uma demonstração de uma força paralela e contrária a do Estado, mas também de uma noção de Justiça vinculada à concepção de “bem comum”, que não feria a prerrogativa do rei enquanto soberano justo, ainda que afrontassem diretamente seus funcionários.315 Um conflito no qual se debatiam noções de Direito e de Justiça divergentes, mas que, por vezes, poderiam se assentar sobre uma mesma autoridade e princípios. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Segundo pressuposto: a justiça é uma potência, uma vontade ou virtude que só adquire sentido e reconhecimento na sua execução, quando posta em ação É conhecido o papel que o direito e a justiça, desde a Idade Média, adquiriram para legitimar a existência do rei, do imperador.316 Para Senellart, o governo justo não constituía um limite do poder régio, mas o fundamentava.317 A mesma perspectiva, bem próxima dos teóricos da Razão de Estado, pode ser identificada no dicionário de Joaquim José Caetano Pereira e Souza, para quem a justiça, mais do que a expressão do poder régio, era, efetivamente, “o fundamento do trono”.318 Tratava-se de uma prática legitimadora e instituinte, portanto. No tradicional resgate histórico das monarquias e no 312

A serventia do direito dos rústicos é notada na transformação de esquemas lingüísticos dominados no nível prático e oral, para uma gramática formalizada, mediante um trabalho de codificação escrita. Mais do que um simples ajuste formal, tratava-se de uma mudança em nível ontológico, pois, segundo António Manuel Hespanha, o direito dos rústicos tem na fluidez da oralidade uma das suas características fundamentais. Entretanto, é graças a esse processo de codificação e apropriação que é possível resgatar os contornos desse direito dos rústicos em uma dimensão histórica. HESPANHA, Antonio Manuel. As fronteiras do poder: o mundo dos rústicos, p. 58 et segs. 313 Nesse sentido, conforme observa Marcos Magalhães Aguiar, o bairro de Antônio Dias era considerado, em depoimento da época, como sendo um “sítio aonde não vai Justiça, em que só vivem pessoas facinorosas e destemidas, havendo muitos (sic) poucos que não sejam desta qualidade”. AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas: uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p.96 314 AGUIAR. Negras Minas:uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial, p. 91-92. 315 Definia-se por assuada o agrupamento de 10 pessoas ou mais, todas estranhas e não familiares, para promover o mal ou dano a alguém. Se fossem familiares ou escravos, o número subia para 15. Quanto o caso em questão, observa Marcos Magalhães que “o motor do delito [...] estava na definição do aproveitamento público – pelo menos no período inicial – das propriedades em litígio”. AGUIAR. Negras Minas:uma história da diáspora africanas no Brasil Colonial, p. 93. 316 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France, p.31. 317 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimem medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed.34, 2006, p.69. 318 SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de um Diccionario jurídico, theorético e pratico, remissivo às Leis compiladas e extravagantes. Obra posthuma. Lisboa: TypographiaRollandiana, 1825. Tomo 2, p.166. Cf. BOTERO, João. Da razão de estado. Tradução de Raffaela Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992, p.19.

105 ISSN 2358-4912 âmbito da teoria do direito, o rei foi alçado, paulatinamente, à condição de viga mestra do edifício jurídico, na mesma medida em que se fazia da justiça seu alicerce e sua face mais visível.319 Conforme José Subtil, “todas as fontes doutrinais da primeira época moderna nos falam da Justiça como a primeira atribuição do rei”.320 Tal perspectiva doutrinal penetrou no solo mais ordinário dos auditórios da justiça. Existe um processo conservado no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana que permite distinguir com nitidez a associação da justiça à imagem de D. Maria I. Trata-se de um agravo apresentado à ouvidoria da Comarca de Vila Rica referente a um processo, aberto em agosto de 1797, contra Luiz Teixeira Miranda, seus filhos e escravos. Os agravantes haviam apresentado uma carta de seguro ao Juiz Ordinário de Mariana, o que lhes facultariam a responder em liberdade o processo aberto para apurar a agressão que teria sofrido João Machado Ribeiro. O juiz ordinário e Capitão Mor José da Silva Pontes, todavia, indeferiu o pedido, alegando que os réus tinham “outro crime de que não estavam seguros”, qual seja o de portarem armas curtas e facas de ponta.321 Por conta desse agravante, o juiz determinou que fossem recolhidos à enxovia, como determinavam as leis. O Dr. Antônio da Silva e Souza, advogado de Miranda e de seus filhos e escravos, alegou como defesa que a devassa aberta para apurar o crime não respeitou os prazos estabelecidos por lei, que as testemunhas foram subornadas e que o juiz tinha interesses na condenação dos réus.322 O advogado enfrentava o juiz ordinário considerando-o “menos bem aconselhado e fazendo-se ignorante de todos os procedimentos [...] sem assessor e professor de Direito”. Pela falta de alguém para instruí-lo, o juiz ordinário teria “praticado nulamente e ainda sem jurisdição para criminar os agravantes”. 323 Mas não seria apenas a imputada ignorância do juiz ordinário o motor para sua sentença. Para o Dr.Antônio da Silva e Souza, o juiz ordinário agira “em ódio e vingança contra os agravantes para sua total ruína e perdição, muito a satisfação de seus inimigos capitais que concorreram de mão comum valendo-se do representante”. Em um estilo repleto de interjeições e exclamações, Silva e Souza concluía acerca da atuação do juiz: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Eis aqui as injustiças e desordens que escandalosamente e com falta de jurisdição e transgressão das leis do reino e extravagantes providenciais se praticaram pelo juiz a qual contra os agravantes que só Vossa Majestade poderá providenciar como verdadeira justiça e legisladora.324

O ataque do advogado ao juiz prossegue entremeando exortações dirigidas à Rainha D. Maria I, caracterizada pelo advogado como a “Justiça animada na terra”. O agravo é dirigido diretamente à rainha, a quem o advogado implorava uma atitude: a “administração da verdadeira justiça que é Vossa Magestade a Própria e animada na terra e em todo o reino”. A figura da rainha como justiça animada, que se repete em diversos momentos na articulada do advogado é significativa. Ela revela forma clara o segundo pressuposto que apresentamos no início dessa comunicação. A justiça é uma potência, reside no ânimo como virtude ou atributo, mas só expressa pela ação. 319

Cabia ao rei fazer o bem, isto é, fazer a Justiça, pois “sem rei e sem Justiça tudo são roubos e latrocínios”. FERREIRA, Manoel Lopes. Prática Criminal expandida na forma da Praxe..., Manuscrito, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, Caixa 507. 320 SUBTIL, José. “Os poderes do Centro”. In: MATOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.157; Sobre a associação simbólica do rei com a justiça, ver ainda: CARDIM, Pedro. Cortes e cultura política no Portugal do antigo regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998, p.76. 321 A “carta de seguro” era uma forma legal de se assegurar a vida daquele que a requeria contra eventuais vinganças , uma vez que nesta carta estava expressa a proteção do Rei ao portador. A carta podia ser passada àqueles que negavam o crime ou que alegavam legítima defesa e, em certas condições, asseguravam aos réus responder o processo em liberdade. ORDENAÇÕES Filipinas. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, 3.v, p.1302. 322 Conforme explicita o próprio Silva e Souza, o prazo para se dar abertura de devassa ex-Ofício era oito dias após o ocorrido e deveria ser concluída em trinta dias. Carmem Silvia Lemos, tratando com as devassas, observou que esse prazo era freqüentemente ultrapassado. LEMOS, Carmem Silva. A justiça local: os juizes ordinários e as devassas da comarca de Vila Rica (1750-1808). Belo Horizonte, 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, p.101. 323 ASCM – 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224. 324 ASCM – 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224.

106 ISSN 2358-4912 Contudo, como uma virtude, a justiça não era uma propriedade exclusiva do rei, embora fosse dele esperada.325 Justo era todo aquele que agia com justiça, com retidão, direito. A Justiça era uma virtude, uma potência que só se exterioriza na conduta do indivíduo em meio à sociedade.326 Sendo assim associada à sociedade, a noção de justiça seria variável conforme as contingências e valores locais e temporais. Diante dessa transitoriedade e particularismo, o direito oficial buscava transcender, criando normas que tinham a pretensão de universalidade, sem nunca lograr vencer a força do tempo que o tornava velho, inadequado, lançado ao desuso.

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Terceiro pressuposto: a justiça se expressa em atos singulares, enquanto o direito exprime a força de intenções gerais Durante muito tempo, os estudos sobre a justiça no Brasil e em Portugal demonstraram um apego ao discurso explícito das fontes, notadamente, das leis. Para evidenciar esse aspecto, não é preciso retomar em detalhes a produção historiográfica acerca da história da administração e, por extensão, da justiça. É sabida, por exemplo, a influência das interpretações, como a de Raimundo Faoro, que subordinaram a realidade às leis, fieis à crença de que o Brasil foi construído com decretos e alvarás.327 Outros estudos, como os de Caio Prado Junior, contudo, reproduziriam a incompatibilidade entre, por um lado, as exigências institucionais dos modelos de organização jurídica e judicial, e, por outro lado, a especificidades de situações vividas. A consciência dessa pluralidade de condições, nas quais confluem poderes e normas oficiais e não oficiais, permite relativizar as concepções que entendem a Colônia e Minas Gerais como decalque da ordem ou como a imagem do caos. Tratava-se, antes sim, de uma efusão pulsante de forças, muito mais vivas do que as imagens congeladas da noção de ordem e desordem podem revelar. Nos processos judiciais nota-se um universo de práticas de justiça paralelas com o qual se deparava instituições oficiais na concorrência para se ocupar o campo jurídico, na luta pelo poder de dizer o direito. Os casos de vingança, corriqueiros nas Minas, podem ser entendidos como formas outras de se fazer justiça. Paul Ricouer considera a vingança uma maneira de executar a justiça pelas próprias mãos, respondendo com violência a violência sofrida, em um espiral infinito de sofrimento que impede “a justa distância entre os antagonistas”. Para o autor, a justiça oficial, praticada por um intermediário imparcial, serviria para romper com esse processo de agressão, distanciando as partes em contenda e substituindo a violência pela palavra.328 Já para Foucault, essa imparcialidade é uma quimera e a palavra não seria mais do que outro meio para se exercer a violência. A violência, mesmo que a dulcificada pelo discurso judicial, faz parte da justiça.329 Ações violentas poderiam ser entendidas como um ato de justiça – ainda que esta fosse considerada pouco virtuosa, na perspectiva do direito oficial – quando inspiradas por noções como a de honra ou regradas por um sistema de condutas habituais, costumeiras. A violência servia tanto de limite para ações que fugiam às normas de convivência, como também era uma forma de sanar a ofensa recebida.330 Mostra disso pode ser encontrada na ação movida contra Rafael, o escravo do tenente Bernardo Gonçalves Chaves. Segundo informações dos autos, era por volta de duas da tarde quando, na “rua pública” do arraial de Antônio Pereira, Rafael encontrou com Domingos Carvalho Ribeiro e lhe atirou 325

Acerca da justiça como fundamento da monarquia, Botero conta que Demétrio, rei da Macedônia, ao negar, por falta de tempo, o pedido de uma mulher por justiça, teria ouvido “pois deixa também de ser rei”. BOTERO, João. Da razão de estado, p.19. 326 KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad. João Baptista Machado. 2 ed. Coimbra: Armênio Amado editor, 1979. p.3. 327 FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10.ed. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000, p.187. e SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: poder e miséria no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p.92. 328 RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.11. 329 FOUCAULT, Michel Foucault. “Conferência 1” In. FOUCAULT, Michel Foucault. A verdade das formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral Melo Machado e Edurado Jardim Moraes. Rio de Janeiro: Graal, 2002. 330 Citando Émile Durkheim, Marco Antônio Silveira observa que “nos só nos vingamos do que nos fez mal e o que nos fez mal é sempre um perigo. O instinto da vingança é, em suma, apenas o instinto de conservação exasperado pelo perigo”. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1997, p.149.

107 ISSN 2358-4912 uma panela de barro “na sua cara e rosto”. Não bastassem os cortes produzidos pela agressão, a panela estava cheia de “triaga de gente muito fedorenta [...] muito mal adubada”. O “indigesto delito” deixou Domingos Carvalho Ribeiro “muito mal asseado e todo coberto da dita triaga desde a cabeça até os pés contanto desaforo e atrevimento que depois do R. cometer o dito delito, ainda disse algumas palavradas (sic)”.331 O ocorrido deixou o advogado do autor, indignado pela petulância de um escravo que, em lugar público, atingira um homem livre na “cara e rosto [do autor], parte a mais nobre e distinta do corpo humano”. O “porco fato”, conforme adjetivava Silva e Souza, teria sido encomendado pelo tenente Bernardo Gonçalves Chaves, senhor do escravo Rafael. A defesa, nas mãos do Dr.João de Souza Barradas, alegava que o escravo agira por conta própria, por saber que seu senhor havia sido ofendido por Domingos Carvalho Ribeiro, “pessoa de baixa esfera”, com “várias palavras menos decentes” ferindo a honra de seu senhor. O caso teve ainda alguns desdobramentos que não cabe aqui detalhar. O que se quer fixar é que o tenente se sentia ofendido e que seu escravo, por conta própria ou não, buscou reparar a ofensa atingindo o autor do processo em sua honra, decompondo-o publicamente como uma forma de repor o quantum de honra que havia sido tirado de seu senhor. O caso da triaga indica que em Minas Gerais a sociedade concebia meios próprios para reparar a perda, ou melhor, a subtração de um “capital simbólico”, um quantum de honra perdido. A injúria e a violência eram a linguagem usada por todas as camadas sociais e ganhava forma pela ação de se fazer justiça pelas próprias mãos. Fosse ela oficial ou não, violenta ou não, a justiça se expressa exclusivamente pela ação, de onde sua singularidade contrastante com a dimensão mais generalizante do direito. Direito e justiça são conceitos aproximados, porém guardam sutilezas relevantes, algumas delas constituídas ao longo do tempo. Michel Villey, atento as diferenças, traça um longo estudo sobre as variações da fórmula gregoromana acerca de direito (dikaion) e justiça (dikaiosunê). Segundo Villey, Dikaion, o direito, é a justiça objetiva, fora do ser, real. Já Dikaios é a “justiça em mim”, subjetiva, expressão individual e virtuosa da justiça (dikaiosunê).332 A justiça, enquanto virtude, como parte integrante do homem justo, manifestase individualmente, mas reflete em toda a cidade, em toda a república, por conta da sua natureza relacional. Grosso modo, Villey, baseado em Aristóteles, considera que o direito e a justiça têm o papel de “atribuir a cada um o que é seu” (suum cuique tribuere). Ambos têm uma dimensão relacional, portanto, e visam à vida em sociedade, ao bem do outro. O Direito (jus) visa regular esse espaço social dividindo as coisas “proporcionalmente” entre as pessoas, estabelecendo uma ordem ideal, direita. Uma ordem que, em razão da influência da cultura sacra judaico-cristã, reduz o direito à lei e aproxima a justiça divina da misericórdia.333 Também para Hobbes o direito é considerado um conjunto de leis, não mais as do Torá, dos Dez Mandamentos, mas as leis postas pelo Estado.334 Seja humano ou divino, moral ou legal, o direito, ou melhor, os direitos se impõem, em última análise, pela força e têm propensão à universalidade. Direitos no plural, mas, nem por isso, menos gerais. Exemplo disso é o direito natural, infundido por Deus a todos. A mesma generalidade pode ser encontrada no direito das gentes, comum e, talvez em menor medida, no positivo e costumeiro. Para além da sua universilidade, o direito teria a função de permitir ou vetar, por meio de “uma coleção de leis homogêneas”.335 Nas palavras de Rousseau, as quais representam uma das perspectivas ilustradas do setecentos, “o objeto das leis é V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ACSM - 2 Ofício, Códice 207, Auto 5167. VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 69 et segs. 333 VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito, p.113. 334 Uma perspectiva similar pode ser identificada no pensamento de Kant para quem o direito é “o conjunto de condições que possibilitam a coexistência das liberdades individuais”. VILLEY, Michel. Filosofia do direito; definição e fins do direito; os meios do direito, p.143- 45. 335 “Esta palavra ‘direito’ tem várias significações. Toma-se por aquela faculdade natural que cada um tem para poder obrar ou não obrar”. GONZAGA, Tomás Antônio Gonzaga. Tratado de direito natural. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, p.120. 332

108 ISSN 2358-4912 sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas e jamais como um indivíduo ou como ação particular”.336 Em qualquer dos sentidos atribuídos, o direito se exprime pela universalidade, pela força da sanção e da permissão. 337 Desta forma, a história e a filosofia do direito parecem ter mais a revelar sobre as formas e as forças de sanção instituídas do que sobre a execução das mesmas: o exercício da justiça. A justiça congrega a ação, e, ao fazê-lo, abre espaço para as práticas múltiplas, para os jogos de força e para as singulares. Nesse sentido, o poder – assim como a justiça, na acepção apresentada – pode ser apreendido como relação, ao contrário do que evidencia uma parcela dos pensadores seiscentistas e setecentistas que o entendia como uma essência emanada do rei, do povo ou de Deus. Com esse deslocamento, coloca-se no cerne da análise de uma história da justiça, para além do aspecto da virtude, a questão da relação de forças. Em suma, o approach sobre as formas do direito tende a se desdobrar em estruturalismos, enquanto que o enfoque sobre a justiça, ao resgatar as relações de força na prática ordinária da sociedade e dos auditórios, revela singularidades perceptíveis quando se apreende a justiça como uma ação. Assim entendida, a história da Justiça exige uma compreensão dos aspectos formais das leis, da jurisprudência, da dogmática, das estruturas e dos agentes administrativos, mas, sobretudo, do seu exercício efetivo na sociedade, naquilo que existe de próprio nos jogos das forças.338 A justiça envolve mais do que as formas regulares e legítimas de poder, em seu centro ou periferia, permitindo conhecêlo nas margens, para além das regras de direito, “na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício”, eventualmente na sua faceta rústica e violenta, por vezes, esmaecidas, mais ainda assim inscritas, nos palimpsestos da justiça.339 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências

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ROUSSEAU, Jean –Jacques. Do contrato social; Ensaios sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1984, p.54, vol.1. 337 Nas palavras de Antonio Manuel Hespanha, que cabe bem para a discussão aqui esboçada: “fica por se questionar tudo quanto se encontra antes e depois do acto legislativo, os problemas da legitimidade da lei e da correspectiva consciência do dever de obedecer são remetidos para o filósofo do direito; a questão da adequação ou justeza da lei, para o político; enquanto que nem sequer são normalmente colocadas as interrogações acerca das funções (históricas) da lei, das suas relações com outras “tecnologias disciplinares” (para utilizar a fórmula de M. Foucault), ou dos factores sociais, culturais e políticos que condicionam a sua eficácia”. HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: historia e prospectiva de um paradigma”. In:Idem. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva, p.11. 338 “Quero logo insistir, para reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, p.8. 339 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. p.32 e 33. HESPANHA, Antônio Manuel. Da iustitia a disciplina textos, poder e política pena no Antigo Regime. In: HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

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Documentos

Impressos: FERREIRA, Manoel Lopes. Prática Criminal expandida na forma da Praxe..., Manuscrito, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, Caixa 507. GONZAGA, Tomás Antônio Gonzaga. Tratado de direito natural. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957, p.120. ORDENAÇÕES Filipinas. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, 3.v.

110 ISSN 2358-4912 ROUSSEAU, Jean –Jacques. Do contrato social; Ensaios sobre a origem das línguas; Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1984 SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de um Diccionario jurídico, theorético e pratico, remissivo às Leis compiladas e extravagantes. Obra posthuma. Lisboa: TypographiaRollandiana, 1825. Tomo 2, p.166. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Manuscritos: Arquivo da Casa Setecentista de Mariana 2 Ofício, Códice 209, Auto 5224. 2 Ofício, Códice 207, Auto 5167. 2 Oficio, Códice 192, Auto 4813.

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VALE DE LÁGRIMAS: MULHERES RECOLHIDAS NO SERTÃO DE MINAS GERAIS (c.1750-c. 1716) Ana Cristina Pereira Lage340 Conhecida inicialmente como Casa de Oração do Vale de Lágrimas, a instituição surgiu por volta de 1750, próxima à Vila de Minas Novas, na região norte de Minas Gerais. Posteriormente, em 1780, quando a instituição foi transferida para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, foi denominada como Recolhimento de São João da Chapada e ainda como Recolhimento de Sant’Anna da Chapada. A Vila de Minas Novas, fundada em 1730 como Arraial de Nossa Senhora de Bom Sucesso do Fanado, foi desanexada politicamente da Capitania da Bahia em 1757, quando passou para a subscrição da Comarca do Serro Frio na Capitania de Minas Gerais. Eclesiasticamente continuou vinculada ao Arcebispado da Bahia até 1853. Esta particularidade da região acarreta a busca de documentos em arquivos diversos, tanto mineiros, quanto baianos. Segundo José Joaquim da Rocha (1897), em 1788 a Vila de Minas Novas vivia da exploração de ouro e de diamantes. Nos anos de pouca chuva, a população sofria pela falta de alimentos e do baixo abastecimento da região. O clima era quente e seco e toda a água provinha do Rio Araçuaí. A margem deste rio foi escolhida para a instalação do Recolhimento do Vale de Lágrimas por volta de 1750. A instituição aqui analisada foi fundada pelo padre Manoel dos Santos que, após ser atingido por um raio e sobrevivido, prometeu angariar esmolas e estabelecer um recolhimento feminino no sertão da capitania mineira. Sua fundação esteve ligada a uma visão sobrenatural de um eclesiástico, muito comum nos relatos de fundação de outras instituições do mesmo tipo. Após o acontecimento, o padre então “[...] applicou os seus bens todos á construcção d’esse edifício”341 A Casa de Oração do Vale de Lágrimas, nome que remete às desgraças humanas após o pecado capital, além dos sofrimentos que seriam pagos por meio de orações no plano terreno, estabeleceu-se enquanto Recolhimento, instituição vista inicialmente como espaço de devoção e vida contemplativa, diferenciando-se dos conventos da época pela ausência dos votos por parte das recolhidas. No dicionário de Rafael Bluteau, a palavra recolhimento aparece caracterizada como: “casa de religião ou retiro do mundo, sem votos religiosos.”342 A fundação deste tipo de instituição era mais facilitada pelo fato de ser exigida somente uma licença episcopal para o seu funcionamento, enquanto os conventos necessitavam de uma ordem papal e a aceitação da instalação por parte de uma determinada ordem religiosa. Assim, as recolhidas necessitaram apenas da autorização de D. Jozé Botelho de Mattos, arcebispo da Bahia. Alguns documentos apontam para o fato de que o Recolhimento funcionou por um longo período sem autorização e também pelo desconhecimento de sua existência pelas autoridades baianas. Porém, já em um documento datado de 1754, o Arcebispo da Bahia D. Jozé Botelho de Mattos, faz referências à autorização da instituição e, ainda, informa o recebimento de diversos outros documentos de autoridades da região e até da regente da Casa de Oração, os quais indicavam a situação de funcionamento da casa mantida pelas “mulheres recolhidas no sertão”. O Arcebispo também apresenta as suas preocupações pessoais com o local da instalação e o encaminhamento de subsídios para a sua manutenção. 343 No século XVIII, o sertão caracteriza-se como “(...) o interior, o coração das terras. Opõe-se a marítimo e costa.” 344 O termo definia então a fronteira entre o conhecido e habitado (o litoral) e o desconhecido e pouco habitado (interior). No espaço desconhecido do interior, estabelecia-se a Casa 340

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. [email protected] PIZARRO e ARAÚJO, 1822, p.191. 342 BLUTEAU, v.4, 1712, p. 297. 343 D. Jozé Botelho de Mattos. Officio do Arcebispo da Bahia, para Diogo de Mendonça Corte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instrucções a este respeito. 1754. In: SILVA, 1937, p.335. 344 BLUTEAU, v.4, 1712, p. 395. 341

112 ISSN 2358-4912 de Oração do Vale de Lágrimas, que era assim descrita por D. Jozé Botelho de Mattos: “Está sito este Recolhimento na parte mais remota deste Arcebispado, apartado 4 legoas da mais vizinha povoação, e em lugar solitário, montuoso e tanto que me seguram causa horror.”345 No espaço solitário estabelecia-se um grupo de mulheres sem votos religiosos e de várias origens, as quais poderiam solicitar a saída quando desejassem. Verifica-se que havia uma complexidade e diversidade dos tipos de reclusas devido à ausência de estabelecimentos específicos para suprir às necessidades das mulheres da região norte das Minas setecentista. Assim, o recolhimento aqui analisado recebia meninas e mulheres adultas, órfãs, pensionistas, devotas, algumas que se estabeleciam temporariamente para guardar a honra enquanto os maridos e pais estavam ausentes da Colônia ou embrenhados no sertão em busca de ouro, e ainda como esconderijo daquelas consideradas como desonradas pela sociedade da época. Recebeu diversas mulheres, solteiras, casadas ou viúvas para que se dedicassem à Oração e à instrução necessária para uma determinada formação religiosa. 346 Para a compreensão da abertura do Recolhimento, deve-se considerar as proibições para a abertura de conventos nas terras mineiras.347 A dificuldade em alcançar a regulação oficial do poder político pelas instituições femininas passava por diversas questões. Em um primeiro momento é possível identificar a necessidade de canalizar a população feminina na Capitania de Minas Gerais para o casamento e o povoamento do território, tornando o incentivo ou a proibição da abertura dos conventos e recolhimentos assuntos centrais das preocupações demográficas da Colônia portuguesa na América.348 Era muito difícil casar nas Minas setecentistas, uma vez que os brancos livres tinham dificuldade em encontrar mulheres que pudessem desposar e o Estado português via nas uniões legitimas uma forma de controlar a população desordeira. Por outro lado, deve-se atentar para o fato que alguns pais preferiam encaminhar as suas filhas para conventos portugueses ou de outras capitanias em vez de casá-las com homens que estavam abaixo de sua condição social e, além disso, consideravam que a presença de uma filha em uma instituição religiosa acarretaria também dotá-la de algum conhecimento devocional e alcançar dádivas religiosas para a família. Deve-se então entender as características principais dos dois únicos recolhimentos femininos existentes em Minas Gerais neste período: o Recolhimento de Macaúbas e a Casa de Oração do Vale de Lágrimas. Ambos surgiram principalmente da devoção popular e depois solicitaram a permissão de funcionamento aos bispados ou arcebispados e à administração portuguesa. Constituíam-se como um lugar misto de devoção, educação e ainda recebiam meninas e mulheres tanto por motivos práticos, quanto religiosos. Para o caso mineiro, salienta-se a ruralidade das instituições, as dificuldades em serem reconhecidas pelo sistema administrativo colonial, como ainda a necessidade de demonstrar a religiosidade e os vínculos com fundadores devotos às causas religiosas. 349 Somente em 1780, quando o Recolhimento do Vale de Lágrimas transferiu-se para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, foi que este passou a estabelecer-se em ambiente urbano. A Casa da Oração, como era considerada inicialmente a instituição aqui analisada, ainda tinha a particularidade de receber mulheres que circulavam no sertão. Toda a documentação analisada até este momento aponta para as irregularidades e dificuldades da vida no sertão e das recolhidas, o que possibilita uma reflexão acerca das necessidades específicas para a reclusão das mulheres no Vale de Lágrimas, que se protegiam ao formar um grupo, especialmente enquanto os seus pais ou maridos embrenhavam-se pelo sertão em busca de ouro, instituindo então um local onde exerciam os seus instintos devocionais. Pode-se apontar que este é o caso da primeira regente da instituição, D. Isabel Maria, além de sua irmã Quitéria com relação ao seu pai:

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Bastantes annos há, que de palavra e por letra tenho recebido e tomado varias informações sobre hum recolhimento de mulheres de que he fundadora e governante huma D. Isabel Maria, filha do Mestre de Campo da Conquista João da Sylva Guimarães, que há muitos annos, que ajuízo por mais 345

D. Jozé Botelho de Mattos. Op. Cit. In: SILVA, 1937, p. p.336. ALGRANTI, 1999 347 Segundo Thaís Nívia de Lima e Fonseca (2010), a proibição de entrada do clero regular e de seculares sem paróquia em Minas Gerais foi determinada pela Carta Régia de 9 de junho de 1711 348 D. João V. Sobre fazer casar os moradores das minas e outras partes. Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei - 1721 – 1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1979, p. 26. 349 AZZI, e REZENDE, 1983. 346

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ISSN 2358-4912 de vinte, que com alguns homens brancos e escravos vive entranhado naquelles sertões, sem comercio de outras creaturas nacionaes, mantendo-se do que trabalha e de algumas porções de ouro, que os Governadores deste Estado lhe tem mandado dar para descobrimento que lhes representa e segura 350 muito capaz para o que tem dom especial.

Em uma região inóspita, com tantas dificuldades para o estabelecimento regular de pessoas, um grupo de mulheres agrupava-se para orar e guardar-se dos problemas externos à instituição. Assim foi o caso das primeiras recolhidas. Alguns documentos apontam para a pobreza do recolhimento: “[...] É de maneira destituído de rendas, que as recolhidas vivem de esmolas.”351 A sobrevivência da instituição por meio de esmolas está presente em quase toda a documentação consultada, inclusive nos relatos de Saint-Hilaire, quando visitou a região em 1817. 352 A Casa de Oração pertencia às mulheres que lá habitavam, sem muita opulência e com cômodos suficientes para abrigá-las. Havia também uma capela anexa, com dois Côros para a celebração do Ofício Divino. Viviam de esmolas, além de alguns trabalhos manuais feitos pelas recolhidas e do trabalho de escravos que eram doados para a instituição. Embora já aceitas pelo poder eclesiástico, foi somente em 1779 que as recolhidas solicitaram a confirmação Real para o funcionamento da instituição. 353 Segundo documento de 1780, as Recolhidas foram transferidas do Vale de Lágrimas para o próximo Arraial de Santa Cruz da Chapada por causa das diversas inundações do rio Araçuaí no primeiro terreno.354 Outro documento relata a saída das recolhidas da Casa próxima de Minas Novas e parece que o processo não foi tão simples assim, uma vez que o sertão ermo e os problemas de acesso aparecem para justificar a transferência. A Casa ficava entre dois rios (Araçuaí e Fanado), aos pés de um morro e tornava-se inabitável nos momentos de cheias dos rios: Dizem a Regente e mais Recolhidas em outro tempo na Caza chamada o Valle de Lagrimas, erecta pelo Padre Manoel dos Santos e hoje assistentas no Arrayal da Chapada, que na referida Casa do Valle de Lagrimas por ficar entre o rio Arassuahy e o Fanado fabricada sobre as próprias ripas daquelle em campo ermo a muy fúnebre, e debaixo de hum monte experimentarão as Supplicantes gravíssimas necessidades, tanto corporaes, como espirituaes, por que no tempo das águas, exedente dos referidos dous rios ficava impedida a conducta dos mantimentos, e dos Padres que as confessassem, e alem disso por conta da habitação naquele lugar adquirirão as Supplicantes muitas e graves moléstias, que hoje padecem sem remédio, como tudo se mostra dos documentos juntos; ate que as Supplicantes vendo-se assim consternadas aflictas, e doentes e o que mais he flagelladas do dito Padre erector, e director das Supplicantes. por motivos que por prudência casão, ainda que bem notórios; evacuarão a referida Casa do Valle de Lagrimas, com corpo unido buscarão o Arrayal da Chapada, e nelle se achao congregadas e recolhidas na Caza particular de hum bemfeitor, que movido de piedade lhe largou, conservando as Suppes. aquelle bom nome e reputação que sempre 355 tiverao.

Devido às enchentes do rio Araçuaí e por estarem estabelecidas em uma região de difícil acesso, as recolhidas passavam por necessidades espirituais, devido à falta de confessores e, ainda, necessidades físicas, uma vez que o alimento não chegava às suas terras. Assim, várias mulheres ficaram doentes. Transferiram-se então para Santa Cruz da Chapada, uma vila próxima, onde conseguiram uma habitação temporária. O requerimento acima consiste em diversos depoimentos de homens notórios

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D. João Botelho de Mattos. Op.cit., p. 335) VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descripção geographica, physica e política da Capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1901, p. 853 352 SAINT-HILAIRE, 1830 353 ROCHA, op. Cit., 1897, p.183. 354 ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro, 1897 355 REQUERIMENTO da regente e mais irmãs do Recolhimento do arraial da Chapada no termo de Minas Novas, solicitando confirmação no sentido de erigirem capela dedicada a Santa Ana. 1780. Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 116. Doc. 9194 351

114 ISSN 2358-4912 da região e da Comarca do Serro Frio que atestam a seriedade da obra das recolhidas, além de solicitar a abertura de uma nova casa em uma região mais habitável: o Arraial de Santa Cruz da Chapada. O médico Antônio Xavier Ribeiro, diagnosticou que todas as recolhidas possuíam doenças crônicas incuráveis, pois estavam raquíticas, asmáticas e com “fluxos de sangue pela boca”. Eram doenças “ (...) todas adequeridas na sua morada chamada Vale de Lagrimas, por ser esta cituação mto humida entre matos sem aquelle refrigério mexeu com que se salubriram os corpos, incomunicavel, pesimo e inhabitavel.”356 A mudança para o Arraial de Santa Cruz tornava-se imprescindível para as curas necessárias às recolhidas, tanto espirituais quanto temporais. O mesmo documento atesta as virtudes dessas mulheres, além dos direcionamentos educativos esperados na Casa, como indica Antonio José de Araújo:

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O viver das sobreditas recolhidas, he com muita virtude, e costumes exemplarissimos, causando pelas suas virtudes, não so admiração, mas também grande contentamento, como he publico e notório; não so nesta Comarca, como em toda a Capitania e lugares mais distantes; e por essa cauza sempre forao estimadas por todos os Excelentissimos Senhores Governadores; e o mesmo pelos senhores Corregedores desta Comarca, e ultimamente por mim. He huma Casa de Oração Seccullar, sem votto algum, utillissima aos pouso deste paiz; por que ali mandão alguns Pays de famílias ensinar suas filhas; tendo as Recolhidas por alguns annos. E dali costumao sahir, não so provectas em Artes Liberaes; mas também no Santo amor, eterno de Deus: também parece útil o dito Recolhimento para em casos semilhantes aos supra referidos, aliviar algum danno de desordem mayor. He o que posso informar a V. Merce com pura verdade; segundo o que me informarão, feitas as indagaçoens, que semilhante matéria pedia. Villa do Bom Sucesso de Minas Novas de junho 23 de 357 1780 .

Pelo documento acima pode-se detectar que eram mulheres estimadas pela sociedade mineira, especialmente pelas autoridades. Ainda não foi possível encontrar a documentação que autoriza a instalação no Arraial de Santa Cruz da Chapada, mas sabe-se que as recolhidas conseguiram o seu intento, pois uma documentação do mesmo ano de 1780, já aponta a presença das mulheres em sua nova morada. Pode-se considerar que, neste momento, ocorreu uma melhoria econômica da instituição, pois então possuíam 36 escravos de ambos os sexos, que plantavam milho, feijão e arroz em três fazendas. Em outras duas fazendas criavam gado, embora as suas terras não eram propícias para a mineração. Havia ainda o pagamento de anuidades pelos pais que recolhiam as suas filhas e diversas doações, o que garantia a autosuficiência do local. O Recolhimento possuía então no seu interior 12 escravas donzelas para assistir às recolhidas. Contavam com 35 Recolhidas, sendo 33 donzelas e 02 casadas. Estas últimas foram encaminhadas para evitar maiores danos e prejuízos para a honra familiar.358 Pelo perfil do público que abrigava no recolhimento neste período, pode-se inferir sobre a necessidade de aceitar ainda uma diversificação em seu interior, não só de moças, mas também mulheres casadas para guardar a honra. Além disso, possuíam um número considerável de escravas para assistir às necessidades das recolhidas e terras que podiam produzir alimentos suficientes para a casa. Com a mudança para o Arraial de Santa Cruz da Chapada, passaram a utilizar a denominação de recolhimento e substituíram o Vale de Lágrimas pela proteção de Santa Ana. D. João Botelho de Mattos já fazia menção a estes indícios, uma vez que as recolhidas no Vale de Lágrimas portavam um hábito como a mãe de Nossa Senhora e construíram uma capela anexa em devoção a esta santa no terreno inicial.359 A capela erguida na nova casa também recebeu o mesmo nome. A devoção à mãe de Nossa Senhora estava muito presente nas Minas setecentistas, especialmente em terras mineradoras, uma vez que esta é considerada a padroeira dos mineradores360. 356

REQUERIMENTO da regente e mais irmãs. Id. Ibid. REQUERIMENTO da Regente e demais irmãs. Id. Ibidem. 358 ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Op. Cit., 1897 359 D.João Botelho de Mattos, op.cit., p.335. 360 Sant’Anna tornou-se padroeira de mineradores – tradição já corrente na Espanha – e de “moedeiros”. Assim como as minas, Anna escondia ouro em seu ventre: Maria Imaculada. A analogia teve ressonância no mundo rural das Minas Gerais, alvo das esperanças que colonizadores nutriam há séculos. (MELLO e SOUZA, 2002, p. 238) 357

115 ISSN 2358-4912 Em uma região de sertão, onde as mulheres recolhidas possuíam laços com mineradores, as suas orações eram direcionadas à Santa protetora também de seus parentes. Torna-se ainda importante salientar o papel fundamental da Santa na educação de sua filha Maria, o que se destaca nas obras barrocas na sua retratação enquanto Sant’Ana Mestra. Esta última, a santa representada com um livro aberto e com uma menina atenta ao seu lado, demonstra o papel das mães enquanto educadoras de suas filhas. A santa torna-se “[...] onipresente no catolicismo setecentista das Minas. Mais do que um instrumento do saber, o livro é um canal de comunicação, destinado a Maria e aberto também ao fiel que contempla a imagem.”361 Entende-se que a relação de sant’Anna com a educação reflete no estabelecimento do recolhimento feminino que se coloca sob a sua proteção e institui-se enquanto espaço de educação. Na visão católica, a educação inclui todas as experiências pelas quais se desenvolve a inteligência, se adquire o conhecimento e se forma o caráter. Em um sentido mais estreito, é o trabalho feito por certas agências e instituições. Considerando as especificidades espaciais e temporais, as famílias, escolas, conventos e recolhimentos tornam-se ambientes propícios para desenvolver a inteligência, o conhecimento e a formação do caráter. Nesse sentido, o caráter que se pretende no ambiente educativo católico compreende principalmente a devoção a Deus. A documentação consultada nesta pesquisa aponta algumas pistas para analisar a instrução das recolhidas e ainda a capacidade de letramento que era exigido das mesmas. Na instituição aqui analisada, encontra-se indícios documentais de letramento tanto para a celebração do Ofício Divino, quanto para a formação nas Artes Liberais. Com relação ao Ofício Divino, o dever de rezar, dado aos religiosos, aponta para a observância e leitura de determinadas orações em horários específicos, sendo que, geralmente, os textos vinham em latim e estavam contidos nos livros designados como breviários. Com relação ao Recolhimento da Chapada, não foi possível ainda encontrar indicações das leituras feitas pelas mulheres recolhidas, mas alguns documentos dão pistas para o letramento religioso, especialmente por intermédio de uma educação escrita, pois “(...) dali costumão sahir não só provectas em artes liberaes, mas tambem no Santo amor, e temor a Deos.”362 Segundo Bluteau, as artes liberais compreendiam gramática, retórica, lógica, aritmética, música, arquitetura e astrologia.363 Provavelmente a formação das recolhidas na Chapada não compreendia todas as propostas das Artes Liberais, mas na opinião do autor das informações acerca da instituição, a formação compreendia, além das artes liberais, uma formação devocional. Um documento aponta o domínio da escrita pela Regente e das demais recolhidas na Chapada. O atestado de boa conduta do Sr. Bernardo José de Almeida, datado de 1781 e escrito pela Regente do recolhimento, Catarina Escolástica do Lado, foi assinado por esta e por trinta e uma recolhidas.364 Os nomes em homenagem aos santos das recolhidas, especialmente à Sant’Anna, apontam para uma tendência comum nos recolhimentos e conventos, cuja proteção era necessária para a habitação em um local tão distante dos grandes centros habitáveis. A data do fechamento da instituição é imprecisa, mas encontram-se vestígios do seu funcionamento em 1817, como aponta o viajante Auguste de Saint-Hilaire (1830), quando passou por Santa Cruz da Chapada. Segundo este, as poucas mulheres da comunidade eram já idosas e não aparecia ninguém para substituí-las. As suas impressões sobre a economia local apontam para um decréscimo na produção do ouro e o investimento em plantações de algodão, arroz e hortaliças. A V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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MELLO e SOUZA, Id.ibid. p. 243 ABRANCHEZ, op.cit., p. 357 363 BLUTEAU, v.1, 1712, p. 573 364 Regente Catharina Escolastica do Lado; Quiteria Felicyana; Gertrudes Anna da Conceiçam; Joaquina Maria dos Anjos; Leonora Anna da Trindade; Rita de S. Thereza; Bernarda de Jezus Maria; Escolastica Maria de Xpto; Anna Perpetua de Sto. Antonio ; Tereza de Jezus; Anna da Gloria; Ricarda do Espirito Santo ; Rita do Paraizo; Maria da Purificação; Maria da Cruz de Jezus; Quiteria de Sta Anna; Maria Querubina de S. Jose; Francisca Xavier de Jesus Maria; Anna Lourenza das Chagas; Maria do Rozario; Jacinta Maria de S. Jose; Joanna do Amor de Deos; Antonia da Conceição; Rita de Deos; Ignacia de Jesus Maria; Joanna de S. Lucas; Laurianna da Exaltação; Anna Maria do Carmo; Joanna do Espirito Santo; Anna da Mercez; Clara Maria Baptista; Maria Serafim dos Anjos. (Atestado passado pelas Irmãs da Casa de Oração e Recolhimento de Santa Ana a Bernardo José de Almeida sobre os serviços prestados gratuitamente a casa. Secretaria do Governo da Capitania. Seção Colonial. SG. CX.11. Doc.21. 16/08/1781. APM) 362

116 ISSN 2358-4912 população local não passava de 600 pessoas, sendo na maioria mulatos. No breve relato sobre o recolhimento, aponta caminhos de transformações em seu cotidiano, especialmente quanto ao estabelecimento de uma regra para o direcionamento das ações das recolhidas. Neste momento, as recolhidas eram chamadas por freiras pela comunidade local, portavam o hábito das carmelitas e agora seguiam a regra de Santa Teresa. Este trabalho pretendeu discutir alguns indícios acerca da História do Recolhimento do Vale de Lágrimas ou de Sant’Ana da Chapada no período do seu funcionamento. As fontes encontradas até o presente momento apontam para a presença de práticas de letramento na instituição, mas também propiciam um olhar para as transformações ocorridas no seu interior tanto no momento da sua mudança de localidade, quanto nas suas orientações. As mulheres recolhidas no sertão mineiro modificaram não só o nome da instituição, mas também as orientações praticadas em seu cotidiano. Nos relatos do seu último visitante que registrou a passagem na casa, este nem sequer cita Sant’Anna e salienta muito mais o lado de aproximação das mulheres recolhidas com uma regra instituída e a aceitação dessas mulheres enquanto freiras pela sociedade local. Como ocorreu esta transformação e a instituição da regra das carmelitas, ou ainda quais obras eram lidas pelas recolhidas, são questionamentos que só serão elucidados com a busca de novas fontes que poderão preencher as lacunas desta pesquisa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ABRANCHEZ, Joaquim Manoel de Seixas. Informações sobre o Recolhimento do Arrayal da Chapada, Termo de Minas Novas (1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto: Imprensa Oficial de Minas Gerais, V. 02, 1897. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia – condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. Atestado passado pelas Irmãs da Casa de Oração e Recolhimento de Santa Ana a Bernardo José de Almeida sobre os serviços prestados gratuitamente a casa. Secretaria do Governo da Capitania. Seção Colonial. SG. CX.11. Doc.21. 16/08/1761. Arquivo Público Mineiro. AZZI, Riolando e REZENDE, Maria Valéria. A vida religiosa feminina no Brasil colonial. In: AZZI, Riolando (org.). A vida religiosa no Brasil. Enfoques históricos. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das artes da Companhia de Jesu, 1712. Disponível em: www.brasiliana.usp.br . acesso em 15 de junho de 2013. Carta de D. Lourenço de Almeida a D. João V. In: Registro de Alvarás, cartas, ordens e cartas régias do governo ao Rei. 1721-1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. v.31. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1980, p.241. D. João V. Sobre fazer casar os moradores das minas e outras partes. Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei - 1721 – 1731. Revista do Arquivo Público Mineiro. V. 30, Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979, p. 26. D. Jozé Botelho de Mattos. Officio do Arcebispo da Bahia, para Diogo de Mendonça Corte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instrucções a este respeito. 1754. In: SILVA, Cel. Ignacio Accioli de Cerqueira. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Vol. V. Bahia: Imprensa Oficial, 1937. pp.335-336. FONSECA, Thaís Nívia de Lima. “Segundo a qualidade de suas pessoas e fazenda”: estratégias educativas na sociedade mineira colonial. Revista Varia História. Belo Horizonte: vol.22, no. 35, jan/jun 2006. MELLO e SOUZA, Maria Beatriz de. Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia de Santa’Anna. In: Topoi, Rio de Janeiro, 2002, pp.223-250. PIZARRO e ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas à jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Parte II,Tomo VIII. Rio de Janeiro: Typografia de Silva Porto. 1822. Requerimento da regente e mais irmãs do Recolhimento do arraial da Chapada no termo de Minas Novas, solicitando confirmação no sentido de erigirem capela dedicada a Santa Ana. 1780. Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 116. Doc. 9194

117 ISSN 2358-4912 ROCHA, José Joaquim da. Memoria histórica da Capitania de Minas Geraes. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, Imprensa oficial de Minas Gerais. 1897, Ano 2, vol.3. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes. Tomo 2. Paris: Grimbert et Dorez, 1830. VASCONCELLOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descripção geographica, physica e política da Capitania de Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro. Inprensa Oficial. Belo Horizonte, 06,3-4, 1901. pp. 761-853 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AS ESTRATÉGIAS DA FAMÍLIA DE ANTÔNIO FERNANDES D’ELVAS – HOMENS DE NEGÓCIOS, COROA ESPANHOLA E INQUISIÇÃO365 Ana Hutz366 A tríade: cristãos novos, Coroa espanhola e Inquisição (1580-1640) O relacionamento entre a Coroa espanhola e os comerciantes portugueses, notadamente cristãos novos, foi sendo construído desde o início da União entre Espanha e Portugal. Esse relacionamento se fortaleceu sobremaneira durante o reinado de Filipe III, no qual os cristãos novos portugueses tornaram-se os responsáveis pelo arrendamento de numerosos contratos da Coroa espanhola. Nesse período, ocorrem ainda renovações relevantes nos circuitos mercantis de parte importante do mundo. Por fim, no reinado de Filipe IV, os cristãos novos se tornaram os grandes prestamistas da Coroa espanhola, desbancando os banqueiros genoveses. Longe de significar somente uma mudança de nacionalidade dos banqueiros, tal mudança significou a integração de um espaço cada vez mais importante no comércio internacional, o Atlântico, cujas riquezas que proporcionava seriam fundamentais para a construção das mudanças econômicas em operação nos circuitos europeus. Se no que tange ao mundo dos negócios a relação entre cristãos novos e Coroa foi mais ou menos linear, o mesmo não se pode dizer dos outros fatores que impactavam a vida dos conversos. A política filipina frente a esse grupo foi muito menos unívoca do que pode parecer. Uma parte desse problema pode ser explicada pelo entrelaçamento da Coroa com a Inquisição, instituição dual, que apesar de sua relativa independência, também pertencia à Coroa, na medida em que era o rei a nomear o Inquisidor geral, por exemplo. As dificuldades impostas pela realidade da perseguição inquisitorial e pelo incremento das instituições que seguiam os estatutos de limpeza de sangue, impeliam os cristãos novos a se organizarem politicamente pleiteando, junto ao rei e eventualmente até mesmo junto ao papa, melhores condições de vida para o conjunto dos cristãos novos. Os pedidos mais frequentes durante a União Ibérica eram o fim da proibição de casamentos entre cristãos novos e velhos, o fim da proibição no acesso aos mais diversos cargos públicos, a reforma da Inquisição em Portugal, considerada mais rigorosa com os cristãos novos do que a espanhola durante o período por se utilizar de testemunhos singulares para a condenação dos reús, a permissão de saída do reino e, por fim, o perdão geral para os pecados de toda a gente da nação. Nesse artigo apresentamos as pesquisas que desenvolvemos sobre Antônio Fernandes d’Elvas, sua família, suas conexões familiares, seus negócios e seu relacionamento com a Coroa e com a Inquisição. Como queremos demonstrar, sua história é muito representativa da tríade composta por cristãos novos, Coroa espanhola e Inquisição. A família de Antônio Fernandes d’Elvas Antônio Fernandes d’Elvas pertencia a uma tradicional família de conversos portugueses conectada com a família de importantes homens de negócios cristãos novos. Essas conexões eram dadas, de maneira geral, pelo casamento, uma importante estratégia de negócios durante o Antigo Regime. Um bom exemplo dessa estratégia foi a união entre a família d’Elvas com a família Solis. Antônio Fernandes d’Elvas uniu-se a Elena Rodrigues Solis, filha do rico comerciante Jorge Rodrigues Solis, com quem Antônio viria a ter diversos negócios e parcerias. Outro exemplo merecedor de nossa atenção é a relação fortemente endogâmica entre as famílias Fernandes d’Elvas, Mendes de Brito e Gomes Solis. Luiza d’Elvas, filha dos mencionados Antônio Fernandes d’Elvas e Elena Rodrigues Solis casou-se com Francisco Dias Mendes de Brito, da poderosa família dos Mendes de Brito. Jorge Fernandes d’Elvas, filho de Antônio Fernandes d’Elvas era 365

Doutoranda em História Econômica pelo Departamento de História da USP. [email protected]. Nesse artigo apresentamos os resultados parciais da tese que estamos desenvolvendo junto ao Programa de História Econômica da USP 366 Bolsista de doutorado pela CAPES com Bolsa Sanduíche na Universidade de Yale pela mesma agência de fomento.

119 ISSN 2358-4912 casado com Violante de Brito, filha de Duarte Gomes de Solis, banqueiro muito influente de Filipe IV, autor de um trabalho sobre economia e comércio relevante na época.367 Esse último, por sua vez, casou-se com uma das filhas de Heitor Mendes Dias de Brito, o Rico. Um dos filhos de Heitor Mendes casou-se, por sua vez, com outra filha de Duarte Gomes de Solis.368 A fidalguia é encontrada nessas três famílias portuguesas antes de elas se ligarem pelo casamento. Embora não tenha sido possível encontrar a data da conversão para o cristianismo de cada uma delas, percebe-se que a família dos Mendes de Brito já era fidalga antes mesmo da conversão forçada, ainda em 1473.369 Isso nos oferece um indício de que sua conversão tenha se dado menos pela força e mais devido às oportunidades que, dadas às circunstâncias sociais e políticas, a conversão envolvia. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Principais negócios da família Desde a descoberta de uma rota marítima para a Ásia por Vasco da Gama antes mesmo do alvorecer do século XVI, os portugueses se empenharam, não sem dificuldades, em se apropriar do excedente gerado pelo comércio de especiarias e outras mercadorias asiáticas apreciadas nas praças europeias. Conquistaram, pouco a pouco, localidades que se tornariam muito importantes na rota do Cabo, como Goa, por exemplo. A chamada “Carreira da Índia” ligava a Europa e a Ásia através do comércio. Esse por sua vez, era feito por agentes privados, que carregavam seus navios com a permissão da Coroa portuguesa que se utilizava da Casa da Índia para regular a organização desses negócios. Quando Filipe II da Espanha assumiu o trono de Portugal, contudo, o Império português na Ásia já estava em decadência há algumas décadas.370 Essa decadência se relacionava à perda do monopólio real tanto na Carreira da Índia, como no comércio realizado internamente na Ásia, que também havia sido dominado pelos portugueses. Relacionava-se ainda à rebelião dos Países Baixos e à perda da hegemonia da Antuérpia, principal mercado das especiarias e dominado pela comunidade portuguesa que lá comercializava e residia.371 Impossibilitados de impedir a retomada o comércio privado de comerciantes locais e tendo enormes dificuldades em reestabelecer uma nova praça para receber as especiarias à altura de Antuérpia, os portugueses continuaram, na medida do possível, com a exploração dessa rota cada dia menos lucrativa. Não bastassem os fatores já mencionados, a exploração da Carreira da Índia parecia ainda menos vantajosa frente às possibilidades que o comércio americano começara a proporcionar. No que tange aos cristãos novos portugueses, o comércio asiático, em especial o comércio da pimenta, foi o grande responsável por alavancar a riqueza de algumas famílias que se tornariam, nas décadas subsequentes, conhecidas e importantes no mundo dos negócios.372 James Boyajian chega a afirmar que “(...) with the pepper contract regime of the carreira da Índia in the Habsburg period – Ximenes d’Aragão, Gomes dElvas, Mendes de Brito, Coronel, Rodrigues d’Évora e Veiga, Rodrigues Solis, and Angel – emerged from obscurity into historical Record at this time.”373 Até o final do século XVI, por exemplo, vemos o comerciante Jorge Rodrigues Solis, sogro de Antônio Fernandes d’Elvas, figurando como um dos mais

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M.J. DA COSTA FELGUEIRAS GAYO, A. DE AZEVEDO MEIRELLES e D. DE ARAÚJO AFFONSO, Nobiliário de famílias de Portugal: arvores de Costados. Oficinas gráficas "Pax", 1941. 368 Fernanda OLIVAL, 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', in ed. Maria José Pimenta Ferro Tavares. Poder e Sociedade (actas de Jornadas Interdisciplinares). Lisboa: Universidade Aberta, 1998, pp. 113. 369 A.C. DA COSTA, Corografia portuguesa, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal: com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem : varões illustres, genealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoes. Na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706. 370 Para esse e outros assuntos relacionados à presença portuguesa na Ásia consultar: Bernardo Gomes de BRITO e C. R. BOXER, The tragic history of the sea, 1589-1622; narratives of the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen São Thomé (1589), Santo Alberto (1593), São João Baptista (1622), and the journeys of the survivors in South East Africa. Cambridge,: Published by the Hakluyt Society at the University Press, 1959.,Sanjay SUBRAHMANYAM, O império asiático português, 1500-1700 : uma história política e econômica. Lisboa: DIFEL, 1995. 371 James C. BOYAJIAN, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993. 372 AGS - Contadúria Mayor de Cuentas - 3a. Época - legajo 707 - Núm - Ano de 1605. 373 James C. Boyajian, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640, pp.14.

120 ISSN 2358-4912 proeminentes e frequentes participantes nos contratos da pimenta.374 Como vimos, grande parte dessas famílias já estavam relacionadas entre si, sobretudo via matrimônio, e outras tantas alianças viriam a ser formadas da mesma forma na primeira metade do século XVII. O comércio asiático era controlado pela Coroa, mas executado por agentes privados. Os chamados contratadores utilizavam uma rede de distribuidores e correspondentes espalhados pelas praças europeias de Hamburgo, Amsterdam, Livorno e Veneza, por exemplo. A importância de uma rede de confiança, fortalecida por relações familiares se faz notar quando analisamos os nomes dos distribuidores. Novamente encontramos Antônio Fernandes d’Elvas, já claramente atuando em conjunto com seu sogro que era, como vimos, contratador.375 De um modo geral, a lucratividade do negócio da pimenta caía a cada ano,376 pressionada pela concorrência dos comerciantes, pelas crescentes dificuldades na viagem Lisboa-Goa, sendo o ataque de corsários especialmente nocivo, pelo envolvimento espanhol em conflitos com a Inglaterra e com os Países Baixos e por fim, pela concorrência da economia atlântica. Esse processo foi paulatino; o colapso total do sistema asiático aconteceria somente após 1640.377 Os cristãos novos portugueses mais do que acompanharam esse processo, protagonistas que foram na mudança de eixo do capital privado. Tanto Jorge Rodrigues Solis como Antônio Fernandes d’Elvas mantiveram-se nos negócios da pimenta até cerca de 1610, quando seus nomes começam a desaparecer dos contratos asiáticos, com exceção do fornecimento de naus, que Solis fora forçado a tomar, como veremos a seguir. A partir de 1610, ambos passam a figurar nos contratos atlânticos e nos contratos das feitorias de escravos africanos. Outros cristãos novos ligados à família mais ampla de d’Elvas continuaram nos negócios da pimenta, como Manuel Gomes d’Elvas e Heitor Mendes de Brito.378 Isso nos faz crer, entretanto, que no início do século XVII, o principal parceiro comercial de Antônio Fernandes d’Elvas era de fato seu sogro, Solis, pois o capital de ambos movimentavase de forma muito coerente na mesma direção. No início da União das Coroas, o domínio ibérico nas possessões americanas era relativamente recente, mas a exploração colonial já começava a ter as características que marcariam o Antigo Sistema Colonial da era mercantilista. Tratamos aqui, é evidente, do processo de domínio metropolitano que se deu nas Américas espanhola e portuguesa e que se distingue do processo que predominou na Ásia. É nas Américas que a colonização atingiu sua expressão máxima: ocupação, povoamento e exploração. 379 Do ponto de vista dos agentes desse sistema, notadamente os cristãos novos portugueses, é possível afirmar que esse estavam envolvidos em praticamente qualquer negócio que envolvesse o comércio ultramarino no período estudado. Não ficaram de fora, portanto, de um dos mais lucrativos empreendimentos da época: o tráfico de escravos. As principais regiões “fornecedoras” dos escravos africanos eram Guiné-Cabo Verde e Congo-Angola, sendo que a segunda região tornou-se a mais importante entre as fornecedoras a partir de 1580. O comércio era regulado inicialmente através de licenças expedidas pela Coroa espanhola, que autorizava o traficante a comprar escravos nas feitorias africanas e vendê-los nos mercados fornecedores.380 Era o sistema de licenças também que regulava o fornecimento de mão de obra escrava para a América espanhola. Esse sistema vigorou até 1595, quando a Coroa espanhola o abandonou definitivamente e o trocou pelo regime de asientos, sistema mais seguro e vantajoso para a Coroa e para os negociantes. Um asiento nada mais era do que um contrato realizado entre a Coroa e um ou mais comerciantes. Tratava-se de um contrato leiloado pela Coroa espanhola que conferia ao mercador o monopólio do fornecimento para uma ou mais localidades específicas. Nesse contrato o mercador se comprometia a fornecer uma quantidade de escravos mínima e máxima. Trata-se, portanto, de uma espécie de terceirização do tráfico de escravos que trazia o benefício do monopólio para o asientista e o benefício do fornecimento e do pagamento do asiento para a Coroa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Ibid.pp. 19. Livro do lançamento e serviço que a cidade de Lisboa fez a El-Rei nosso senhor no anno de 1565: documentos para a história da cidade de Lisboa. Lisboa: 1947. apud. Ibid.pp. 19-23. 376 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 7 - 8v , fl 14 - 14v,fl 16v ,fl 26v,fl 29 - Ano de 1618. 377 James C. Boyajian, Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640, pp.241. 378 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 32v - 35v - Ano de 1618. Ver também: ibid.pp. 95. 379 Fernando A. NOVAIS, Aproximações : estudos de história e historiografia. São Paulo, SP: CosacNaify, 2005. 380 Luiz Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2000. 375

121 ISSN 2358-4912 Os cristãos novos portugueses foram praticamente os monopolistas no tráfico de escravos para as Américas espanhola e portuguesa entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII. Esse monopólio não se dava exclusivamente entre os asientistas ou entre os detentores das licenças, mas perpassava por outros agentes. O tráfico de escravos funcionava utilizando-se de uma ampla rede de comerciantes, indo desde o detentor do direito de explorar o tráfico, o contratador, ou asientista, conforme o caso, passando pelos responsáveis por comprar os escravos, os comerciantes locais na costa africana, passando ainda pelos mestres dos navios e demais agentes que transportariam as mercadorias até as praças onde seriam vendidas nas Américas e, por fim, pelos negociantes locais nas Américas, alguns bastante poderosos, que compravam os escravos e os revendiam localmente. Entre os principais negócios de Antônio Fernandes d’Elvas e de seu sogro Jorge Rodrigues Solis encontrava-se o lucrativo tráfico de escravos. Antônio Fernandes d’Elvas foi considerado o maior traficante de escravos de seu tempo basicamente porque possuía negócios nas duas pontas do tráfico de escravos, na costa Africana e na América.381 O negociante certamente sabia que o acesso às fontes africanas é que lhe permitiria o acesso à ponta americana do negócio. Isso explicaria o afinco com que procurava ampliar sua presença na costa africana. Entre 1615 e 1623, data provável de sua morte ele foi o contratador de Guiné e entre 1616 e 1623 detinha o contrato em Angola. Elvas foi o primeiro mercador a arrematar ambos os contratos quase simultaneamente. A respeito do ineditismo de um mercador ser monopolista dos contratos Luiz Felipe de Alencastro afirma, e nós concordamos, que isso “(...) configura um movimento de capitais portugueses refluindo do Índico para o Atlântico, após a ofensiva anglo-holandesa no Oriente, o fim do ciclo da pimenta e a crise no Estado da Índia.” 382 Isso é corroborado pela própria saída, ou tentativa de saída, tanto de Antônio Fernandes d’Elvas como de seu sogro, Jorge Rodrigues Solis, dos contratos da pimenta, mais ou menos no mesmo período. A esse propósito, convém ressaltar que a associação entre Antônio Fernandes d’Elvas e seu sogro ficava clara também no que tange ao tráfico de escravos. Jorge Rodrigues Solis teria arrematado o contrato das Ilhas de São Tomé383 em 1618, mas esse contrato teria sido revogado no mesmo ano, pois a Junta de Fazenda entendeu que, sendo ele sogro de Anônio Fernandes d’Elvas, na prática é como se os dois fossem donos de todos os contratos na costa africana, o que poderia gerar “inconvenientes”.384 Ainda assim, os contratos de Guiné e Angola lhe ajudaram a garantir o asiento para as Índias de Castela no mesmo período, ou seja, entre 1615 e 1623. Antônio Fernandes d’Elvas possuía ainda o contrato de fornecimento de escravos para o Brasil385. Outros parentes de Elvas e Solis participaram ativamente de seus negócios no trato de escravos. Seu cunhado, Jerônimo era seu feitor em Cabo Verde e Angola, seu outro cunhado, Francisco Gomes Solis era feitor do contrato de Portugal e seu filho, Jorge Fernandes dElvas foi seu feitor em Cartagena. Disso fica claro que Antônio Fernandes d’Elvas empregava seus parentes para as atividades mais importantes de seu contrato.386 Para conseguir o asiento para a América espanhola, Elvas teve que pagar 120 mil ducados anualmente à Coroa espanhola. Esse asiento, por sua vez, lhe deu direito a vender no mínimo 3.500 e no máximo 5.000 escravos anualmente. Essa venda poderia se dar de forma direta ou através da venda de licenças a outros traficantes, método extremamente lucrativo utilizado por todos os asientistas. O asiento tomado por Antônio Fernandes d’Elvas foi provavelmente o primeiro firmado para a América espanhola a dar lucro para seu respectivo asientista. Isso se deveu ao fato de que ele inaugurou um novo momento na história dos contratos portugueses, após o período inicial, em que os contratos não puderam ser devidamente cumpridos e um período de administração direta pela Coroa que foi ainda pior em termos de fornecimento de escravos. Assim, o asiento de d’Elvas teria sido o primeiro cumprido adequadamente o

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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José Gonçalves SALVADOR, Os magnatas do tráfico negreiro : séculos XVI e XVII. São Paulo: Livraria Pioneira Editora : Editora da Universidade de São Paulo, 1981, Hugh THOMAS, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870. New York: Simon & Schuster, 1997, Enriqueta VILA VILAR, Hispanoamérica y el comercio de esclavos. Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos, 1977, Ana HUTZ, 'Os cristãos novos portugueses no tráfico de escravos para a América Espanhola (1580-1640) ' (Dissertação de mestrado, Unicamp, 2008). 382 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, pp.101-02. 383 Que depois cairia em mãos holandesas. 384 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 159v - 160 - Ano de 1618. 385 AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 - fl 4 - Ano de 1618. 386 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII, pp.101.

122 ISSN 2358-4912 que significa que o negociante conseguiu vender e lucrar com as licenças de escravos a que tinha direito e que os escravos chegaram devidamente aos portos de Cartagena, Buenos Aires e Vera Cruz. Paradoxalmente, foi justamente o sucesso do asiento de Antônio Fernandes d’Elvas o responsável pela declaração de falência de seu contrato. A explicação para isso não é tão simples nem tampouco consensual entre os historiadores. Hugh Thomas interpreta que o sucesso de d’Elvas “(…) excited extraordinary jealousy for him, and not only among the sevillanos. Accused of cheating the king, he defended himself inadequately, and sent to prison where he died.”387 Enriqueta Vila Vilar nota, entretanto, que o período do asiento de d’Elvas teve consequências espetaculares. “Durante los años de 1617, 1618 y 1619 llegaron a Indias más esclavos que en ninguna otra época y el control del tráfico se hace realmente imposible. Solo existía una solución para cortar los abusos: declarar el asiento en quiebra.”388 Ou seja, junto com todos os escravos legalmente trazidos pelo contrato de d’Elvas, intensificava-se o contrabando que tanto incomodava as autoridades metropolitanas. A prisão de Antônio Fernandes d’Elvas nos parece, portanto, relacionada ao elevado índice de contrabando de seu período e às frequentes reclamações a esse respeito por parte das autoridades ultramarinas, como a Casa de la Contratación, mas deve também ser colocada dentro de um contexto mais amplo. O período final do contrato do asiento de d’Elvas corresponde à chegada de Filipe IV ao poder e de seu valido, o conde-duque de Olivares, ainda mais simpático à ajuda dos homens de negócios cristãos novos em um período de turbulência financeira pela qual a Coroa vinha passando. Trata-se de um período bastante turbulento no qual se punha em xeque com mais vigor a própria dominação filipina sobre Portugal. Assim, por paradoxal que pareça, pouco tempo antes de ter seu asiento declarado falido, o mesmo Antônio Fernandes d’Elvas era chamado pelo conde-duque de Olivares, junto com outros cristãos novos de bastante cabedal como Manuel Veiga d’Évora e Thomás Ximenes d’ Aragão, a frequentar a corte de Filipe IV. 389 Logo após seu asiento ter sido declarado falido, Antônio Fernandes d’Elvas teria falecido de uma doença infecciosa.390 Sua mulher, Elena Rodrigues Solis foi a responsável por seus negócios utilizando-se para isso do auxílio de pessoas de sua confiança e dos procuradores e feitores do falecido marido. Devido à falência, Elena teve muitas dificuldades em mandar cobrar dívidas que estavam no nome do marido e, no entanto, teve que liquidar, ou seja, pagar diversas dívidas para seus credores. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O perdão geral de 1605 Com a chegada de Filipe III ao trono espanhol um pequeno grupo de iminentes cristãos novos frequentou a Corte com o objetivo de negociar um perdão geral para os homens da nação. Essas negociações duraram de 1598 a 1605; Em troca de uma determinada quantia, que acabou sendo fixada em 1.700.000 ducados, acrescidos das comissões dos ministros que negociaram do lado da Corte, os cristãos novos de todo o reino, incluindo as colônias no além-mar, obteriam um perdão pelos pecados passados e aqueles que estivessem presos nos cárceres do Santo Ofício seriam soltos. As negociações foram bastante lentas e homens importantes e bem relacionados com a Corte se revezaram na tentativa de angariar o breve papal que perdoaria os da nação. Entre os envolvidos nas negociações dois nomes saltam aos olhos: Heitor Mendes, que teria organizado em Portugal uma espécie de comissão de cristãos novos abastados para dar início às conversas com a Corte em 1598 e Jorge Rodrigues Solis, o sogro de Antônio Fernandes d’Elvas, que juntamente com Rodrigo de Andrade, outro negociante de prestígi,o teria chegado à Corte em 1600 para continuar a negociação iniciada em 1598. Jorge Rodrigues Solis não conseguiu finalizar o acerto do perdão geral; como se sabe esse só seria dado cinco anos depois. Durante seu envolvimento com os ministros de Filipe III, notadamente Pedro de Franqueza, braço direito do valido do rei, o duque de Lerma, acabou caindo numa espécie de armadilha tendo sido obrigada a tomar um contrato pouco rentável de fornecimento de naus para as Índias.

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Hugh Thomas, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870, pp.165. Enriqueta Vila Vilar, Hispanoamérica y el comercio de esclavos, pp.50. 389 James C. BOYAJIAN, Portuguese bankers at the court of Spain, 1626-1650. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983. 390 AGI – Indiferente General, 2976. apud. Enriqueta Vila Vilar, Hispanoamérica y el comercio de esclavos, pp.112. 388

123 ISSN 2358-4912 As negociações do perdão geral são um tema complexo que tem sido alvo da historiografia mais recente.391 Mencionamos aqui o episódio porque eles nos parece um claro exemplo de como os cristãos novos se organizavam politicamente enquanto grupo. Esses cristãos novos não representaram a totalidade dos homens da nação, como se depreende das reclamações feitas por outros conversos durante a execução do breve papal.392 Contudo, a organização existia e foi mobilizada em momentos como o da chegada de Filipe IIII ao trono e novamente com a chegada de Filipe IV. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Perseguição inquisitorial e negócios A família de Antônio Fernandes d’Elvas e as famílias relacionadas a ela procuraram durante várias décadas alcançar a fidalguia. Essa construção se iniciou precocemente, com o primeiro foro de fidalgo de que temos notícias ainda no século XV com os Mendes de Brito, como já mencionamos, e também com os Fernandes d’Elvas, que já era fidalgo no tempo de D. Manuel.393 O foro de fidalgo precocemente conquistado era, contudo, insuficiente frente às pressões de uma sociedade que prezava pela pureza de sangue. Em 1623, por exemplo, Francisco Dias Mendes de Brito, filho de Heitor Mendes, preocupado, e com razão, com o falatório acerca das origens cristãs novas de sua família, pediu a realização de autos de justificação de nobreza para si e seus antecessores. Isso foi feito mencionando-se basicamente as riquezas da família, suas propriedades, seus criados e posses, bem como o fato de que o sobrenome da família constava em muitos livros de Sua Majestade. Além disso, o Inquisidor geral, D. Fernão Martins Mascarenhas, lhe forneceu certidão abonatória na qual afirmava que Heitor Mendes de Brito estava isento das leis exigidas contra os cristãos novos. Certidões desse tipo foram emitidas em outras localidades onde a família tinha negócios, notadamente em Ceuta394 A preocupação de Francisco Dias Mendes de Brito com as origens cristãs novas da família expressou-se ainda no fato de que ao fundar um morgadio para a família em 1624, optou por excluir parentes conhecidos e afamados por serem cristãos novos.395 A atitude de Francisco Dias Mendes de Brito parece contrastar com a atitude de seu pai que anos antes se envolvera nos pedidos de perdão geral de 1605. Mas, os tempos eram outros e o ódio contra dos cristãos novos recrudescera em meados na década de 1620. Parte da família, contudo, não pensava como Francisco e deve ser por essa razão que se observa seu irmão Nuno Dias Mendes, envolvido nas negociações de um malfadado perdão geral com o Conde-Duque de Olivares entre 1626 e 1627. A família de fato não passaria isenta da perseguição inquisitorial quando a situação começara a piorar para os cristãos novos portugueses. Nos anos de glória da família, na década de 1630, quando o relacionamento com a Coroa atingira seu ápice, temos o registro do processo de alguns membros menos importantes da família. No período imediatamente posterior à Restauração portuguesa, temos o processo de um mercador de maior estatura, neto de Heitor Mendes e também chamado Francisco Dias Mendes de Brito. A prisão de um homem rico e poderoso como Francisco Dias Mendes de Brito, que ocorreu ainda durante a Guerra de Restauração portuguesa não se tratou de um fato isolado e precisa ser contextualizada. De fato, a perseguição aos ricos homens de negócio portugueses se concentrou entre 1630 e 1680.396 Em 1632, por exemplo, João Nunes Saraiva, um dos grandes banqueiros de Filipe IV, foi preso nos cárceres da Inquisição onde ficou por cinco anos. A situação dos cristãos novos que viviam na Espanha piorara muito após 1640, e em especial após 1643, quando o grande protetor dos portugueses, Olivares, foi brutalmente afastado do governo. Não por acaso, na década de 1650, período em que Francisco Dias foi preso, caíram

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O assunto foi tratado ao menos em dois excelentes trabalhos recentes: Ana Isabel LÓPEZ-SALAZAR CODES, Inquisición portuguesa y monarquía hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: Colibri, 2010. e Juan I. PULIDO SERRANO, 'Las negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607)', in Sefarad, vol. 66, 2006. 392 AGS, SP, Libro 1466, f.224 v. 393 ANTT. Chancelaria de Filipe I. Livro 9, folha 258 e 460, Livro 13. folha 3388, Livro 15, folha 183, Livro 21, folha 1338, Livro ii, folha 309, Chancelaria de Filipe II, Livro 15, folha 239. 394 Fernanda Olival 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', 116-19. 395 Ibid.pp. 118. 396 Henry Arthur Francis KAMEN, The Spanish Inquisition : a historical revision. New Haven, Conn. ; London: Yale University Press, 1998.

124 ISSN 2358-4912 também outros comerciantes e banqueiros importantes, como Montesinos, Blandon e El Pelado.397Todos tiveram que pagar multa ao Santo Ofício, algo que não era uma prática tão comum assim. Em nossa opinião, trata-se de um exemplo definitivo do uso critérios não religiosos na perseguição à heresia judaica pela Inquisição. O terror da onda de perseguições que fez com que famílias inteiras partissem da Espanha nos anos de 1650, também fez parte da família Mendes de Brito. No processo de Francisco Dias, por exemplo, consta o testemunho de Miguel Dias Jorge, 20 anos, oficial de livros de homens de negócios. Segundo ele, sua família era próxima da família de Francisco e ambos seriam observantes da Lei de Moisés. Ainda de acordo com ele, ao ver seus parentes sendo levados pelos oficiais do Santo Ofício, sua mãe foi à casa de Francisco e pediu ajuda para fugir com seus filhos, com medo de que fossem todos presos. Francisco prometeu que ia ajudá-la no dia seguinte pela manhã, mas não houve tempo, pois toda a família teria sido presa naquele mesmo dia.398 Como em outras famílias de cristãos novos, também era frequente nessa que um ou mais filhos fossem não só bons católicos para os padrões da época, mas inclusive que alguns fossem enviados ao seminário ou, no caso das mulheres, ao convento. Tratava-se de um sinal de pureza que podia salvaguardar a família em caso de dúvidas sobre a sinceridade de sua fé. Uma das filhas de Antonio Fernandes d’Elvas e Elena Rodrigues Solis, Branca Antonia, era assídua frequentadora da igreja das carmelitas, por exemplo399 Do outro lado do oceano, porém, mais especificamente em Cartagena de Índias, Francisco Rodrigues Solis, cunhado e feitor de Antonio Fernandes d’Elvas, seria processado pela Inquisição em 1636, anos após a morte de Antonio, que se deu em 1623. Francisco foi a Cartagena a pedido de sua irmã, Elena, com o objetivo de liquidar os negócios que o falecido marido possuía no local. Acabou permanecendo ali e atuando como comerciante, sobretudo no tráfico de escravos. A prisão de Francisco Rodrigues Solis ocorreu no contexto da Grande Cumplicidade ocorrida no Tribunal de Cartagena, que prendeu ricos portugueses como Blas de Paz Pinto, Luis Fernandes Suárez, João Rodrigues de Mesa e o próprio Francisco Rodrigues Solis, e confiscou a enorme quantia de 155 mil pesos de uma só vez, quantia que representava quase a metade do que o Tribunal confiscara nos 30 anos anteriores a esse episódio.400 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusões Famílias como a de Antônio Fernandes d’Elvas, de origem cristã nova, mas já há muito tempo desconectadas com suas raízes judaicas, compuseram uma relevante parte dos homens de negócios portugueses que atuaram não só em Portugal e Espanha, mas na Ásia e nas Américas portuguesa e espanhola. Esses homens e mulheres eram, contudo, identificados com o elemento judaizante e, como tal, sua estratégias de negócios agiam no sentido de espalhar seu capital por todo o mundo conhecido, naquilo que hoje chamamos de redes de comércio e, suas estratégias de nobilitação agiam no sentido de escamotear as origens judaicas de suas famílias. Novos estudos como esse que ora se apresenta devem ajudar a reflexão acerca da atuação dos cristãos novos enquanto grupo e do próprio funcionamento das sociedades do Antigo Regime. Referências

Archivo General de Simancas: AGS - Contadúria Mayor de Cuentas - 3a. Época AGS - Secretarias provinciales - Portugal - libro 1516 Archivo General de Indias AGI – Indiferente General, 2976. Archivo Historico Nacional 397

Ibid.pp. 294. AHN - Inquisición - Toledo - legajo 142 - Exp 6 - - Ano de 1653 – 1657. fl. 14 399 Frei Joseph Pereira de SANTANNA, Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular observancia nestes Reynos de Portugal, Algarve e seus Domínios. 1745. 400 José Toribio MEDINA, Historia del tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Cartagena de las Indias. Santiago de Chile: Imp. Elzeviriana, 1899. 398

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ISSN 2358-4912 AHN - Inquisición - Toledo - legajo 142 Arquivo Nacional da Torre do Tombo ANTT. Chancelaria de Filipe I. Livro 9, Livro 13, Livro 15, Livro 21, Livro ii, Chancelaria de Filipe II, Livro 15. Bibliografia ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O trato dos viventes : formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2000. BOYAJIAN, James C., Portuguese bankers at the court of Spain, 1626-1650. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983. BOYAJIAN, James C., Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993. BRITO, Bernardo Gomes de e BOXER, C. R., The tragic history of the sea, 1589-1622; narratives of the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen São Thomé (1589), Santo Alberto (1593), São João Baptista (1622), and the journeys of the survivors in South East Africa. Cambridge,: Published by the Hakluyt Society at the University Press, 1959. DA COSTA, A.C., Corografia portuguesa, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal: com as noticias das fundações das cidades, villas, & lugares, que contem : varões illustres, genealogias das familias nobres, fundações de conventos, catalogos dos bispos, antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoes. Na officina de Valentim da Costa Deslandes, 1706. DA COSTA FELGUEIRAS GAYO, M.J., DE AZEVEDO MEIRELLES, A., et al., Nobiliário de famílias de Portugal: arvores de Costados. Oficinas gráficas "Pax", 1941. HUTZ, Ana, 'Os cristãos novos portugueses no tráfico de escravos para a América Espanhola (1580-1640) ', (Campinas, 2008). KAMEN, Henry Arthur Francis, The Spanish Inquisition : a historical revision. New Haven, Conn. ; London: Yale University Press, 1998. LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel, Inquisición portuguesa y monarquía hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: Colibri, 2010. MEDINA, José Toribio, Historia del tribunal del Santo Oficio de la Inquisición de Cartagena de las Indias. Santiago de Chile: Imp. Elzeviriana, 1899. NOVAIS, Fernando A., Aproximações : estudos de história e historiografia. São Paulo, SP: CosacNaify, 2005. OLIVAL, Fernanda, 'A família de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente', in Poder e Sociedade (actas de Jornadas Interdisciplinares), ed. FERRO TAVARES, M.J.P. (Lisboa, 1998). PULIDO SERRANO, Juan I., 'Las negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607)', in Sefarad (2006). SALVADOR, José Gonçalves, Os magnatas do tráfico negreiro : séculos XVI e XVII. São Paulo: Livraria Pioneira Editora : Editora da Universidade de São Paulo, 1981. SANTANNA, Frei Joseph Pereira de, Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular observancia nestes Reynos de Portugal, Algarve e seus Domínios. 1745. SUBRAHMANYAM, Sanjay, O império asiático português, 1500-1700 : uma história política e econômica. Lisboa: DIFEL, 1995. THOMAS, Hugh, The slave trade : the story of the Atlantic slave trade, 1440-1870. New York: Simon & Schuster, 1997. VILA VILAR, Enriqueta, Hispanoamérica y el comercio de esclavos. Sevilla: Escuela de Estudios HispanoAmericanos, 1977.

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ISSN 2358-4912 A CIDADE NA IMAGEM: O PERCURSO DA VILA DE SÃO FRANCISCO-AL NO ACERVO ICONOGRÁFICO DO GRUPO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro401 As Imagens dos Estudos da Paisagem Adotar a imagem como ferramenta para o estudo da paisagem não implica apenas em usá-la como base para a identificação das marcas edificadas e das expressões do sítio. É encarar também como aspectos a serem considerados nos estudos a propriedade desses produtos de carregarem uma série de intenções norteadas pelo processo de sua produção. Nessa perspectiva, este artigo trata de uma experiência do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, sediado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFAL, que desde 1998 vem trabalhando com o tema da história urbana priorizando a análise iconográfica em suas ações metodológicas. Já realizou um conjunto expressivo de projetos relacionados a cidades brasileiras situadas no Nordeste do Brasil, colocando como questão principal o entendimento de como surgiram e se transformaram seus núcleos de mais densa base temporal. Em princípio, tomou-se como recorte geográfico cidades situadas nos Estados da Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, tendo com intuito final compreender o que revelam os mapas e vistas sobre o desenho urbano destas localidades, buscando contribuir no entendimento do processo ocupacional do território brasileiro. Deste horizonte geográfico macro, algumas cidades foram selecionadas sobre os quais se mostraram mais generosos o material cartográfico e as evidências materiais identificadas in loco. Dentre elas: Penedo, Porto Calvo, Marechal Deodoro, em Alagoas; Cabo de Santo Agostinho, Olinda e Igarassu, em Pernambuco. Os dados coletados ao longo dos estudos geraram um expressivo conjunto composto por imagens de época, mapas cadastrais e aerofotogramétricos, fotos digitais e material audiovisual, que hoje integram o banco de dados imagético do Grupo. No que tange à iconografia histórica, há um acento nas fontes seiscentistas. Cabe lembrar que, neste século, o Nordeste foi contemplado com a produção de um material cartográfico de excepcional qualidade que foi denominado “cartografia do açúcar” por ter sido gerado devido ao apelo econômico desta atividade. São mapas portugueses, mas também os gerados pela presença holandesa no Brasil. Sabe-se o papel que os Países Baixos tiveram na Europa nesta época, no campo da investigação científica e artística, confluindo para uma produção cartográfica, bibliográfica e artística, que dará razão a este período ser conhecido como a “Idade de Ouro” dos Países Baixo. Conseqüentemente, a presença no Brasil da WIC (Companhia das Índias Ocidentais) e do conde João Maurício de Nassau com sua comitiva, fizeram com que, de alguma forma, o Nordeste do Brasil fosse incluído nesta produção. Circunstância que hoje possibilita estudos baseados em fontes que ecoam a uma distância de mais trezentos anos. Fig.1. Intervenção sobre mapas de George Marcgrave que retratam a Capitania de Pernambuco, integrando o livro de Gaspar Barléus (1637), com a marcação das localidades acima referidas.

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Graduanda em Arquitetura e Urbanismo da UFAL; bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem.

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FONTE: Arquivo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem

Esse material, buscado em arquivos nacionais e internacionais, tem alimentado o banco de imagens da pesquisa e permitido a sobreposição de mapas e vistas, trazendo resultados significativos para a história das cidades nordestinas. A pesquisa vale-se também de vistas aéreas, que são buscadas para além das disponibilizadas pelo Google Earth, que são contrastadas com outros materiais imagéticos. A todos estes, se acumula a produção continuada de novos mapas e desenhos gráficos pela equipe, requerendo um minucioso trabalho através de programas computacionais como CorelDraw, Adobe Illustrator, Adobe Photoshop, AutoCAD, GarageBand, Sony Vegas e Adobe Premiere. Cerca de 100 mil imagens compõem os arquivos do Grupo, o que fez com que se tornassem, eles mesmos, um objeto não só de organização, mas de investigação, tendo em vista a necessidade de operacionalização rumo à produção de conteúdos digitais e materiais voltados para divulgação científica do conhecimento. 402É nessa perspectiva que se apresenta este artigo, enquanto resultado de um estudo vinculado ao projeto financiado pelo CNPq intitulado Imagens em rede para estudos da paisagem, que tem dentre seus objetivos subsidiar a discussão acerca do desafio contemporâneo, no âmbito da pesquisa, de uniformização da imagem para uso documental.403

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SILVIA, M. Angélica da. et al. A tarefa de arquivar: Os desafios na organização dos materiais imagéticos do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, p. 01. 403 Com esse projeto de pesquisa, a equipe pretende dar suporte para a sua socialização considerando os trabalhos já consolidados do RELARQ, da qual o grupo já atua como parceiro juntamente com Programas de Pós-Graduação da UFMG e UFSC. Através de uma matriz de formatação documental, a Rede tem dentre seus objetivos a iniciativa inédita de construir um catálogo on-line que possa ser compartilhado por diversas instituições numa abrangência Latino-Americana, o que já vem sendo feito através da disponibilização do acervo do Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcelos da UFMG.

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ISSN 2358-4912 Um Estudo das Imagens em Penedo Para a realização dos estudos acerca dos registros imagéticos da cidade de Penedo foiconsiderado uma série de projetos de pesquisa desenvolvidos enquanto atividades do Grupo que geraram cerca de 5(cinco) milimagens reunidas e elaboradas durante 14 anos de investigações.O primeiro deles, que se apresentou sob o título de Estudos da Paisagem, financiado pelo CNPq (1999), teve como foco inicial a observação dos edifícios de caráter religioso que integravam o conjunto edificado do núcleo mais antigo da cidade. A idéia era a de compreender como as igrejas interferiram na composição do tecido urbano de origem colonial, estendendo a análise à configuração de seu arruado. O estudo acerca da relação entre edifícios e caminhos aos poucos foi suscitando questionamentos acerca do Forte Maurício de Nassau, construído durante a invasão holandesa ao Brasil, pois, a primeira capela da então Vila de São Francisco fora instalada dentro dos limites da fortificação, hoje inexistente. Dentre fotografias de igrejas e do arruado, vistas aéreas e infográficos, cerca de 100 imagens foram geradas nesse projeto, que registram o processo e o resultado de identificação do primeiro conjunto edificado de Penedo e de reconhecimento da gênese de seu desenho urbano. Fig. 2. Na sequência: infográfico realizado com base no mapa JohannesVingboons (1666); infográfico realizado com base no mosaico fotográfico da CODEVASF, indicando os caminhos direcionamentos semelhantes entre os séculos XVII e atuais, bem como a localização da Igreja Matriz (1) e da Igreja do Rosário (2); e foto da Igreja Matriz em 1999.

FONTE: Arquivo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem

Os resultados sobre a influência da fortificação sobre o traçado da cidade motivaram a realização de estudos acerca do tema do sistema defensivo das vilas e cidades de origem colonial e o embate entre a iconografia histórica e imagens atuais de Penedo indicou sinais do local onde estariaconstruído o Forte Maurício. Assim, em 2005, o Grupo de Pesquisa realizou trabalhosconjuntamente com o Laboratório de Arqueologia da UFPE, quando foi possível exercitar a interdisciplinaridade na tentativa de abordaralternânciasdas análises geoarqueológica e cartográfica, antiga e atual, na busca de uma reconstituição de uma paisagem. Durante a execução do projeto trabalhou-se com 3158 imagens, sendo elas, iconografia história, fotos aéreas, mapas e fotografias. Estas últimas somam um conjunto de cerca de 2000 são produzidas pelo Grupo. Estas, Por estarem também associadas a uma equipe de arqueologia, foram mais direcionadas para prospecção e restauração das edificações que se situam na antiga localização do forte com ênfase em seus materiais e detalhes sem abster-se dos arruados, das edificações religiosas e da natureza.Inseridoem alguns destes temas está a rocheira, onde não pôde deixar de captar olhares atentos de todas as câmeras por ser o local onde teria existido um dos baluartes do Forte Maurício, e ainda, por o rochedo margeando o rio ser um ponto que provavelmente se manteve inalterado ao longo dos séculos, o que amplia as chances de apreensão e averiguação de vestígios históricos.

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ISSN 2358-4912 Fig. 03: Na sequência: Rocheira vista do Rio São Francisco; Rocheira; Estudo de Prospecção

FONTE: Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem – FAU/UFAL, 2005

A intimidade com o lugar, construída com o desenvolvimento das investigações, fez o Grupo ampliar o olhar acerca da paisagem para além de seus aspectos materiais. Não apenas a dinâmica da cidade motivou essa ampliação, como também a própria aproximação com a iconografia. Mapas, vistas, desenhos gráficos, pinturas, quando examinados em detalhe, trazem à tona uma série de dados dos mais variados gênero: de revelações sobre espécies da flora e fauna às atividades relacionadas à tecnologia construtiva. Nos dias de hoje, ainda é possível encontrar na paisagem nordestina sinais de uma série de práticas que continuam vivas no quotidiano mostrando que o tempo presente é a soma de vários tempos. Neste aspecto, o Grupo de Pesquisa realizou vários projetos voltados ao Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, financiados pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nos quais foi possível averiguar a eficiência destas fontes. Em 2010 o iniciou-se a execução do levantamento de práticas relativas ao patrimônio imaterial de Penedo, tomando-se como eixo condutor as práticas e saberem vinculados ao Rio São Francisco, selecionando-se a pesca, a feira e as festividades religiosas. Fig.3: Na sequência: Festa de Bom Jesus dosNavegantes, festividade popular e religiosa realizada em Penedo-AL; Barracas da feira de rua; artesanato local representando o pescador

FONTE: Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem – FAU/UFAL, 2005.

Com esse material imagético coletado e produzido, integrantes do grupo atualmente colocam-se frente ao desafio de catalogá-lode maneira a contribuir para a socialização desse ganho notório de conhecimento cultural acerca do lugar. Para tanto, vem sendo utilizado o programa disponibilizado pela Rede Latino-Americana de Acervos de Arquitetura e Urbanismo (RELARQ) que permite implementar a organização arquivística, associando uma série de informações a cada imagem, tais como titulo, endereço, procedência, série, subsérie e temática além de permitir uma descrição detalhada dos elementos representados na mesma, facilitando sua posterior identificação no banco de dados.

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ISSN 2358-4912 Um Processo de Construção da Imagem Nesse estudo sobre o conjunto imagético construído pelo grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem acerca do núcleo de origem colonial da cidade de Penedo, o registro visual da cidade sofreu várias interferências de caráter operacional e subjetivo. No primeiro caso, pode-se citar os financiamentos recebidos para o desenvolvimento de determinadas abordagens de investigação, direcionando e justificando, assim, focos e abrangências da produção iconográfica. Assim como o progressivo incremento da tecnologia de produção imagética acessada pelo Grupo, a qual abrange desde programas computacionais até equipamentos de projeção, captação e armazenamento de imagem que obviamente influenciaram os processos e produtos de elaboração dos registros visuais. Se no inicio as fotografias realizadas com as máquinas analógicas, permitiam um progressivo acumular de imagens, hoje, com os recursos digitais, elas se produzem de forma acelerada, ao mesmo tempo em que flexibilizam as possibilidades de registro, permitindo sua pré-visualização. No âmbito da subjetividade, nesse processo empírico de investigação, um filtro, que inicialmente teria a função de identificar ruas e edifícios, foi revelando gestos, movimentos de coisas e pessoas, o que desestabilizou a ideia mais próxima do senso comum que vê a arquitetura enquanto matéria estática. Além disto, ampliou a noção de paisagem, mostrando, por exemplo, que as suas marcas nem sempre são tão visíveis a ponto de serem reconhecidas como memória urbana. Por vezes trata-se de um trecho de rua, de marcas na toponímia, ou uma vegetação que tem vencido o tempo, detalhes que apenas um estudo mais aprofundado revela o seu significado. Assim, o estudo desse percurso investigativo revelou que a importância das descobertas não está apenas em abordar o desaparecimento das marcas da memória urbana, mas, por vezes, desconhecimento das mesmas. O material produzido, pois, pelo Grupo retrata uma trajetória de pensamento. Durante esse tempo de estudos da paisagem, vários foram os olhares sobre as localidades. Olhares matizados pela subjetividade de pesquisadores em vários níveis de amadurecimento (BIC, PIBIC, mestrandos e doutorandos) que acompanharam o estado da arte sobre os principais temas motivadores do Grupo (iconografia, paisagem, história urbanística e patrimônio) e que, consequentemente, direcionaram o registro sobre eles. A própria paisagem de Penedo segue seus percursos, em seus ritmos, sugerindo, durante os últimos 15 anos de estudos, formas de serem observadas. Portanto, o que se pode notar, a partir da experiência de observação das imagens de Penedo, é que há um expressivo caráter documental nesse acervo imagético em termos quantitativos e, especialmente, tipológicos cujos trabalhos de organização e sistematização do banco de imagens em muitos contribuiriam para a construção de uma rede de disponibilização documental, considerando os registros visuais como paisagens planificadas. E, nesse jogo de percepção do tempo e do espaço, a própria paisagem de Penedo que teve seus tempos congelados pelo registro visual, configura-se como objeto de investigação, na medida em que tais documentos permitem o embate entre temporalidades.

Referências ALBUQUERQUE, Marcos. Et al. Reconhecimento arqueológico em Penedo. IPHAN, 2005. CASTRIOTA, L.B.Imagens do moderno: a preservação do acervo do Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos, 2005. CASTRIOTA, L.B.Tecnologia digital e acessibilidade: a Rede Latino-americana de Acervos de Arquitetura e Urbanismo, 2007. IPHAN.Manual do Inventário Nacional de Referências Culturais, 2000. MACHADO, R. V. O. Pernambuco no papel. Tese de doutorado – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. MUNIZ, B. M. RELATÓRIO FINAL: TÍTULO DO PROJETO DE PESQUISA ESTUDOS DA PAISAGEM. PIBIC, 2001. MUNIZ, B. M. RELATÓRIO FINAL: A IGREJA E O FORTE: DIÁLOGOS ENTRE URBANISMO E ARQUITETURA NA CIDADE DE PENEDO. PIBIC, 2002. SILVIA, M. Angélica da. et al. O olhar holandês e o novo mundo. EDUFAL, 2011.

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CONFLITOS ENTRE TERRA E MAR: QUERELAS PELA POSSE DE LOCALIDADES PESQUEIRAS NOS SÉCULOS XVII E XVIII NA CAPITANIA DO RIO GRANDE Ana Lunara da Silva Morais404 A atividade da pesca esteve presente desde os primórdios da criação da capitania do Rio Grande. A atividade pode ser verificada no Auto de Repartição de Terras do Rio Grande, documento no qual se averiguou a doação e o uso de todas as sesmarias que haviam sido concedidas na capitania do Rio Grande entre 1600 a 1614.405 Das 186 datas de sesmaria doadas entre 1600 e 1614 na capitania, 18 apontavam a pesca como atividade. A quantidade de sesmarias referente à atividade pesqueira na primeira e na segunda década do seiscentos demonstra como a atividade era corriqueira e importante na capitania. Verificou-se que alguns indivíduos possuíam mais de uma sesmaria nas quais se realizavam pescarias, como João Lostão Navarro406, Domingos Martins, e José do Porto, o que pode indicar que tal atividade não fosse voltada apenas para a subsistência dos mesmos e de suas famílias, ou que se especializavam nesta atividade para o abastecimento de outras capitanias. João Lostão Navarro era possuidor de oito sesmarias na costa leste da capitania do Rio Grande concedidas entre 1601 e 1608, referente ao Auto de Repartição de Terras do Rio Grande. As pescarias de Navarro eram comercializadas com indivíduos de Pernambuco, que por vezes navegavam até seu porto para buscar os pescados, como consta no relato do indígena Caspar Paraoupaba, da capitania do Ceará, para o mercador holandês Kilian Van Resemlaer, em 1628.407 A atividade pesqueira na capitania do Rio Grande continuou durante o período de dominação holandesa (1631-1654). Segundo o viajante e cronista holandês Joan Nieuhof, na lagoa de Guaraíras, havia uma grande quantidade de peixes. Nieuhof afirmou que na cidade de Nova Amsterdam, correspondente a Natal, possuía poucos moradores, os quais viviam das pescarias, e da produção de farinha e tabaco. O pescado do Rio Grande, juntamente com a farinha teriam tornado-se a principal fonte de abastecimento para as praças holandesas na Paraíba e outras localidades durante os confrontos com portugueses.408 Acredita-se que um dos responsáveis pelas pescarias que abasteciam as praças holandesas foi João Lostão Navarro, pois no mapa de George Marcgrave da capitania do Rio Grande, elaborado em 1643, constam cinco casas referentes aos sítios de João Lostão Navarro, localizadas nas margens e na foz sul do rio Trairi, nas proximidades da atual cidade de Nísia Floresta, e distância cerca de 40 Km da cidade do Natal.409 A existência dos sítios de pesca no mapa de 1643 evidencia a continuidade da atividade pesqueira na capitania do Rio Grande, sobretudo, por parte de Navarro. Mesmo verificando-se a atividade pesqueira desde o início da colonização da capitania, é a partir da segunda metade do século XVII, que se conseguiu perceber por meio dos documentos disponíveis um volume maior de conflitos referente à atividade da pesca. Há correspondências diretas tanto de moradores como de autoridades da capitania com o Conselho Ultramarino sobre o assunto. Há registros do Senado da Câmara de Natal sobre a regulamentação da atividade pesqueira, como o imposto a ser cobrado das embarcações, redes, e regulamentações sobre a forma e o valor que o peixe deveria ser vendido. Também se encontrou as querelas referentes à prática de tais regulamentações e 404

Mestranda pelo Programa de Pós-graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Integrante da Rede de Laboratórios de Experimentação em História Social (UFRN, UFRJ, UnB) – RLEHS, e colaboradora da Plataforma SILB – Sesmarias do Império Luso-Brasileiro. 405 Translado do Auto de Terras do Rio Grande. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGRN, n° 1 e 2, p. 5-131, 1909, v.7. 406 Era original da Baixa Navarra, território incorporado à França em 1589. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. Natal: Departamento estadual de Imprensa, 1997. p. 49-50. 407 GERRITSZ, Hessel. Jornaux et Nouvelles, etc. p. 172 Apud MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. p. 50. 408 NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1981. p. 86-89. 409 MARCGRAVE, George. Praefecturae de Paraiba Et Rio Grande. Amsterdam, 1662. Disponível em . Acessado em 30 de agosto de 2013.

132 ISSN 2358-4912 de disputa pela localidade onde a atividade pesqueira parece ter sido mais rentável na capitania do Rio Grande. Dessa forma, este artigo objetivou apresentar e analisar algumas querelas, as quais se considerou relevante não apenas para a compreensão da atividade na capitania, mas também para as formas de usufruto da terra na capitania. Desde 1679, há registro de possíveis discórdias entre moradores da capitania ou mesmo entre moradores e indivíduos residentes de outras capitanias que realizavam pescarias no Rio Grande. No dito ano, consta um termo de vereação no qual se relatou a queixa de moradores que acusaram algumas pessoas que estavam alojadas no rio das Guaraíras com redes que tapavam os rios e impediam que o peixe subisse para a lagoa de mesmo nome, e com isso impediam a pesca nesta última. Os oficiais da Câmara de Natal perante as queixas determinaram que quem cometesse tais acusações deveria ser multado e obrigado a pagar 6$000 réis de condenação, sendo dois mil para quem acusasse e quatro mil para as despesas do Senado da Câmara. Além disso, os mesmos oficiais ordenaram passar edital dando notícia a respeito.410 Na comarca de Alagoas do Sul, capitania de Pernambuco, também se verificou algumas disputas referentes às áreas pesqueiras. Desde 1655, havia sido proibida pelos oficiais da Câmara da dita comarca o uso de redes de pesca de malha fina, pois as mesmas prejudicariam a reprodução e passagem do peixe entre rios e lagoas/mar, sendo cobrada uma multa no valor de cem cruzados pela Câmara. 411 As querelas derivadas entre moradores (dos quais alguns se utilizavam das redes prejudicando outros pescadores; e alguns denunciavam aqueles que se utilizavam das redes) e oficiais sobre a proibição do uso das redes de pesca prolongaram-se entre meados do século XVII até meados do século XVIII. A lagoa de Guaraíras, cujo nome permanece até hoje, foi descrita desde os primeiros relatos sobre a capitania do Rio Grande, como no que foi elaborado por padres da Companhia de Jesus em 1607, os quais relataram que nas proximidades do rio Jacu, havia três lagoas que se destacavam por seu tamanho e por sua abundância de peixe: Guaraíras, Papeba, Papari.412 A lagoa de Guaraíras, segundo mapa de 1643, elaborado por George Marcgrave, desaguava em uma outra lagoa chamada Papeba, cujo despejo formava um rio, o Trairi, que desaguava no oceano Atlântico. A lagoa de Guaraíras por sua grande extensão, abundância em peixes e por sua localização privilegiada, na costa litorânea sul da capitania, parecia ser uma localidade muito frequentada para o exercício da pesca. Não foi possível identificar os nomes dos envolvidos nesta querela por meio da documentação disponível. Pode-se supor, entretanto, que o grande número de indivíduos que lá pescavam, fosse para a subsistência e/ou para a comercialização do peixe, possivelmente entraram em conflito ao perceber que outros sujeitos tentaram beneficiar-se da pesca, colocando as redes em um ponto estratégico, na passagem do rio para a lagoa, acumulando um grande número de peixes, e em contrapartida, impedindo a passagem dos peixes para a lagoa de Guaraíras, como consta na queixa, diminuindo a quantidade de pescado para os demais pescadores. Para a capitania de Pernambuco, é sabido que, em 1725, alguns indivíduos, reconhecidos como “poderosos da terra”, possivelmente ligados à açucarocracia413, foram responsáveis pelo envenenamento de alguns rios na dita capitania, prejudicando a pesca e o abastecimento da mesma.414 Acredita-se que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 30v. 01/10/1679. CUERVO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Pescaria e bem comum: pesca e poder local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (séculos XVII e XVIII). In: CAETANO, Antonio Filipe (Org.). Alagoas colonial: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012. 412 Relação das cousas do Rio Grande, do sítio e disposição da terra (1607) ARSI - Archivum Romanum Societatis Iesu. 15, p. 439-440. Apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tombos I, II e III. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 557-559. 413 A construção do status dos senhores de engenho foi analisada por. Segundo Evaldo Cabral de Mello, na segunda metade do século XVII, com as guerras de restauração, os senhores de engenho e lavradores construirão seu status, açucarocracia, articulando o discurso do nativismo pernambucano, argumentando as consecutivas conquistas da capitania: contra os índios no século XVI; e expulsão dos holandeses no século XVII. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: editora 34, 2003. p. 159. 414 CARTA do físico Dionísio de Amaral de Vasconcelos ao rei [D. João V] sobre o envenenamento dos rios feito pelos poderosos da terra, os prejuízos para a pesca e o abastecimento da capitania de Pernambuco. 5/09/1725. AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 39, D. 2977. 411

133 ISSN 2358-4912 este envenenamento esteja atrelado ainda aos vestígios políticos da Guerra dos Mascates, conflito político e econômico entre senhores de engenho e mercadores ocorrido entre 1710 e 1711.415 No início do século XVIII, o crescimento de Recife aspirava uma maior autonomia política, visto seu crescimento comercial, implicando na necessidade de criação de uma Câmara, visto que se encontrava sob a jurisdição de Olinda desde a Restauração (1654). Esta disputa política também estava associada à discórdia entre os senhores de engenhos e mercadores, devido à crise do açúcar na segunda metade do século XVII416, na qual os senhores de engenho efetuaram empréstimos junto aos mercadores, endividando-os. Assim, supõe-se que o envenenamento de rios na capitania de Pernambuco tenha sido uma tentativa dos representantes da açucarocracia em prejudicar os mercadores de Recife. Na capitania do Rio Grande verificou-se outras querelas pela posse de localidades pesqueiras. Entretanto, o único conflito referente à atividade pesqueira que foi relatado pela historiografia norterio-grandense417 trata-se do direito de uso de terras no litoral norte na capitania do Rio Grande, entre o Porto de Touros418 e a capitania do Ceará, no lugar chamado Salinas.419 Havia sido concedida uma sesmaria na localidade acima referida, equivalente a grande parte da costa norte da capitania do Rio Grande, a Francisco de Almeida Vena e aos seus cunhados e sobrinhos.420 Os indivíduos que receberam os títulos de sesmarias passaram a impedir que outros moradores realizassem pescarias ou recolhessem sal na terra que lhes foram concedidas. Possivelmente, os indivíduos prejudicados, aqueles que foram impedidos de continuar usufruindo da terra, recorreram à Câmara para que se tomasse uma solução. Nos termos de vereação de 4 de novembro de 1680, consta que os oficiais da Câmara acordaram em escrever ao Governador Geral da Bahia, Roque da Costa Barreto (1678-1682) para informar dos danos que a sesmaria causaria aos demais moradores.421 É sabido que os oficiais da Câmara do Natal, por meio de uma correspondência datada de 20 de novembro de 1680, solicitaram a revogação da sesmaria em questão ao Governador Geral, o qual teria respondido em 18 de fevereiro de 1681.422 Na resposta, o Governador Geral informou que tomaria uma resolução mediante uma petição dos mesmos oficiais da Câmara do Natal. O trâmite burocrático parece ter se resolvido, e o parecer do Governador Geral validou o pedido dos oficiais da Câmara, revogando a sesmaria concedida nas Salinas, liberando-a para a pesca e recolhimento de sal, tendo a Câmara de Natal, em termo de vereação de 1682, divulgado o edital de liberação das Salinas.423 Segundo o jurista Paolo Grossi, propriedade é, sobretudo, mentalidade.424 Para o autor, há diferentes modelos de propriedade, pois a mesma é relativa à mentalidade da sociedade de

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MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. p. 143-148. Ibid. p. 203. 417 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2° ed . Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984. p. 377; POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. p. 30-31; LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3° ed. EDUFRN: Natal, 2008. Coleção História Potiguar. p. 132. 418 O Porto de Touro, ou Toures, segundo os mapas dos holandeses George Marcgrave e Claes Jansz Visscher localizava-se entre o rio Pirangi e a atual praia de Cotovelo, cerca de 20 quilômetros ao sul da cidade do Natal. MARCGRAVE, George. Praefecturae de Paraiba Et Rio Grande. Amsterdam, 1662; VISSCHER, Claes Jansz. Het Noorder van Brasilien, dar in vertoont werden de voornaemfle zeehavenen, als Parayba, Phernambuco, Bahia de todos os Santos ende meer andere. Amsterdam, 1651. 419 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 35v. 04/11/1680. O lugar chamado Salinas localizava-se na costa norte da capitania do Rio Grande, cerca de 170 quilômetros da cidade do Natal. 420 Não se encontrou esta sesmaria no fundo de sesmarias presente no IHGRN. Acredita-se que a mesma tenha sido retirada dos livros originais devido a sua posterior invalidade. 421 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 35v. 04/11/1680. 422 Carta para os oficias da Câmara da capitania do Rio Grande sobre a data que se deu a Francisco de Almeida Vena. 18 de fevereiro de 1681. Documentos Históricos, códice 9, fls. 89. 423 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 43v. 03/03/1682. 424 Cabe apontar que a mentalidade referida não possui vinculações com a História das mentalidades originária na França na década de 1960, nem de suas variantes. A mentalidade referida trata-se de “mentalidade possessória”, expressão utilizada inicialmente pelo historiador Marc Bloch pensando na propriedade individual, moderna, como resultado histórico. O termo “mentalidade possessória” posteriormente foi utilizado pelo jurista Paolo Grossi. BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos século XVII e XVIII. São Paulo: EDUSC, 2001. GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 416

134 ISSN 2358-4912 determinado período, e das interpretações diferentes dos sujeitos desta mesma sociedade.425 Grossi nos atenta para a necessidade de compreender as ações de cada instituição e/ou indivíduo por meio de sua mentalidade, estando esta articulada ao seu contexto histórico, aos seus costumes e padrões morais, os quais norteariam a mentalidade possessória. Nesta perspectiva, na qual propriedade implica em diferentes mentalidades, pode-se perceber um conflito referente às diferentes mentalidades possessórias sobre o uso da terra das Salinas. Francisco de Almeida Vena, o qual possuía barcos e redes de pescarias426, juntamente com seus cunhados e sobrinhos, por meio da solicitação da sesmaria passaram a dominar a área e a impedir que demais moradores usufruíssem das terras para a pesca e para o recolhimento de sal. A mentalidade possessória da família de Francisco de Almeida Vena fundamentou-se pelo meio burocrático legislativo do Império português, o qual assegurava por meio da sesmaria o domínio útil das terras solicitadas. No entanto, esta mentalidade diferia-se dos demais moradores da região que costumeiramente realizavam há muitos anos pescarias e recolhiam sal, fundamentando-se, portanto, no costume o seu direito à terra. João Maia da Gama, Governador do Maranhão entre 1722 a 1728, em seus relatos sobre a capitania do Rio Grande, quando de sua passagem pela mesma no ano de 1729, destacou as muitas pescarias realizadas no litoral e apontou conflitos existentes pelas localidades pesqueiras, possivelmente referenciando-se a querela ocorrida na Salinas. Segundo o mesmo:

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Destas pescarias se tem senhoreado os sesmeiros, ou donos das terras a elas contiguas não consentindo que pessoa alguma use das tais redes nas praias que chamam suas sem lhe pagarem de arrendamento em cada verão ou ano 40 mil réis, 20, 16, ou 10, conforme a opinião dos interesses em que esta cada uma das ditas paragens ou pescarias, e como estas todas são na costa do mar, e rios que entram para dentro da terra parece não podem pertencer aos tais donatários, somente lhe poderia pertencer o lugar aonde se situa uma limitada casa de palha que se perde nas tais terras, e sítios que sô servem para aquele verão em que se pesca, as quais casas ficam na margem do mar, e lugar aonde chega a maré, quatro ou seis braças, pelo que querem muitos dos moradores que se não paguem as tais rendas das pescarias mas que sô sejam livres para todas as pessoas que puderem por redes por ser este o negocio mais frequentado daquela capitania e com que se socorre muita gente pobre, e que quando devam pagar renda, deve ser esta a fazenda real de Vossa Majestade por ser 427 senhor das praias e rio, e serem aqueles sítios realengos.

Gama apontou que havia indivíduos que monopolizavam o uso das terras propicias a pesca na capitania, e que cobravam arrendamentos das ditas terras, mesmo que delas se utilizassem pouquíssimas braças de terra para a construção de pequenas casas de palha que deveriam servir apenas de apoio durante as pescarias. Gama ainda destacou que muitos dos pescadores que necessitavam das terras realengas para a atividade pesqueira eram pobres, o que evidencia que a atividade era praticada para a subsistência e/ou para venda local, e não apenas para a venda para outras capitanias.428 Segundo Bicalho, a posse de terras litorâneas na cidade do Rio de Janeiro no setecentos também causou conflitos entre seus moradores, oficiais da Câmara, e autoridades régias. Bicalho apontou que a Câmara era responsável pela administração das terras pertencentes à mesma, ou seja, a área concelhia, que incluía os espaços públicos de uso comum: as ribeiras, as praias e os rossios. Entretanto, o provedor da Fazenda Real Francisco Cordovil de Serqueira e Mello, bem como o Governador da capitania do Rio de Janeiro, Luiz Vahia Monteiro, alegaram que os oficiais da Câmara haviam aumentado o seu domínio da terra concelhia, gerando um conflito pela jurisdição de algumas áreas marítimas no Rio de Janeiro.429

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GROSSI. Paolo. Historia da propriedade e outros ensaios. p. 30. Carta para os oficias da Câmara da capitania do Rio Grande sobre a data que se deu a Francisco de Almeida Vena. 18 de fevereiro de 1681. Documentos Históricos, códice 9, fls. 89. 427 GAMA, João Maia da. Um herói esquecido. República portuguesa Ministério dos colonos, 1944. Coleção pelo império N° 100. II. p. 103. 428 Ibid. 429 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 331. 426

135 ISSN 2358-4912 As terras litorâneas do Rio de Janeiro eram consideradas pela Câmara de uso comum a todos, visão esta corroborada pela ordem régia de 10 de dezembro de 1726, a qual proibiu a edificação em praias e o avanço delas em direção ao mar, por serem as terras consideradas de bem público.430 Entretanto, muitas das terras litorâneas do Rio de Janeiro eram consideradas propriedades de indivíduos que justificaram suas posses por meio de compra ou herança, sendo o Governador Luiz Vahia Monteiro convivente nestes casos devido ao fato de ter monopolizado as licitações e as repassado para quem achasse que merecesse, e, portanto, permitido que estes indivíduos passassem a deter o domínio de uso das praias, proibindo frequentemente o acesso de pescadores.431 Percebe-se, por meio dos casos explanados, que a Câmara possuía a preocupação de garantir as terras referentes ao bem público para o uso comunitário dos moradores. Cabe apontar que garantir as terras para os moradores que dela utilizavam-se, também significava o aumento da renda da Câmara, fosse pela cobrança de aforamentos, enfiteuses, laudêmios, dos dízimos, além de multas e outras atribuições. Assim, as posturas dos oficiais da Câmara não deve ser compreendida como ações livres de interesse. Além disso, manter muitos pescadores em áreas sob a jurisdição da Câmara favorecia o controle das atividades destes, o que poderia favorecer a alguns indivíduos da Câmara que estavam envolvidos com a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande, como era o caso de: Bento Ferreira Mouzinho, escrivão no Senado da Câmara de Natal entre 1718 e 1732, e possuidor de pescarias nas proximidades de Guaraíras;432 e de Antônio Lopes Lisboa, procurador da Câmara da cidade do Natal de 1675 a 1676, almotacé em 1676, escrivão de 1679 a 1688, e vereador de 1693 a 1697433, e possuidor de terras e pescarias no Pirangi.434 Na segunda década do setecentos, verificou-se um outro conflito pelo uso de terras onde a atividade pesqueira era propícia, na praia da Redinha, nas proximidades da cidade do Natal. Em agosto de 1715, Joana de Freitas, viúva do capitão Manuel Correia Pestana, solicitou ao rei D. João V, uma provisão para que capitães, cujos nomes não foram indicados pela viúva, do Rio Grande e seus sucessores não utilizassem suas terras para realizar pescarias.435 Segundo a viúva, a terra pertencia a seu falecido marido, e que este teria ofertado a terra há alguns capitães da capitania, para que realizassem pescarias por meio de terceiros. Alguns capitães aceitaram a tal oferta, mas, outros não, fazendo estes últimos que não aceitaram a oferta o pagamento pela pesca. A viúva solicitou ao rei Dom João V que tais usuários da terra, ou seja, os capitães e suas respectivas famílias, deixassem de pescar nas mesmas para seu sustento, permitindo a pesca apenas para aqueles indivíduos que comercializavam com Pernambuco.436 O interesse da viúva em assegurar suas posses na Redinha foi um esforço iniciado por seu falecido marido, Manuel Correa Pestana, poucos meses antes de sua morte, em abril de 1715. Nessa data, Manuel Pestana solicitou para si as terras da Redinha à Câmara de Natal, as quais foram demarcadas em 22 de julho de 1715, sendo meia légua em quadra, incluindo os sítios de pesca. Manuel Pestana justificou que há muitos anos habitava as ditas terras, realizando pescarias na mesma, e que também a possuía por herança de seu pai, o Sargento-mor Manuel da Silva Vieira437, o qual teria solicitado a dita V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Ibid. p. 331-333. Ibid. 432 Ver nota de rodapé número 31 sobre Bento Ferreira Mouzinho. 433 LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 434 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Naufrágios no litoral potiguar. Natal: Uruassu, 1988. p. 35 435 REQUERIMENTO de Joana de Freitas, viúva do capitão Manuel Correia Pestana, ao rei D. João V, pedindo provisão para que o capitão-mor do rio grande do norte e seus sucessores não se intrometam na pescaria que faz na sua propriedade na praia da redinha, 23/08/1715. AHU-RN, Papeis Avulsos, Cx. 01, D. 80. 436 Ibid. Acredita-se na possibilidade de haver um alvará ou ordem Régia que regulamente a obrigação das Capitanias do Norte em propiciar a pesca para o abastecimento da capitania de Pernambuco. Contudo, não se acredita em um beneficiamento da capitania de Pernambuco, visto que em 1689, os oficiais da Câmara acordaram que os moradores da Capitania pagariam 2$000 réis por cada rede de pesca utilizada, e os que não fossem, pagariam 5$000 réis, caso contrário pagaria a multa de 6$000 réis, o que evidencia um protecionismo a atividade pesqueira do Rio Grande até o ano de 1701, quando a mesma anexou-se à Pernambuco, havendo uma padronização dos impostos. IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 86. 02/06/1689. 437 Manuel da Silva Vieira foi Juiz Ordinário da Câmara da Cidade do Natal entre os anos de 1974 a 1679, e de 1694 a 1696. LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 431

136 ISSN 2358-4912 terra por meio de sesmaria em três de agosto de 1676, desde então pagando mil réis de foro anual à Câmara.438 Este caso exemplifica como as áreas propícias à pesca geraram conflito na capitania do Rio Grande, sobretudo, pelas diferentes mentalidades possessórias dos sujeitos envolvidos no conflito. Neste caso, o Capitão Manuel Correa Pestana e sua esposa Joana de Freitas estavam insatisfeitos com o fato de outros indivíduos realizarem pescarias em suas terras na praia da Redinha. Contudo, como os mesmos haviam afirmado anteriormente, foram eles próprios que permitiram que alguns capitães utilizassemse da dita terra. Embora seja sabido, que a terra na Redinha tenha sido “ofertada” por Manuel Pestana para capitães da capitania, não se pode verificar se esta oferta era referente ao arrendamento da terra, ou se era apenas um favor. Acredita-se na possibilidade do casal ter se beneficiado da terra disponibilizando-as para outros indivíduos em busca de uma possível troca de favores.439 Contudo, quando esta disponibilização da terra não mais era necessária ou mesmo não mais rendia os benefícios esperados, Manuel Correa Pestana tentou impedir o uso da mesma por outrem, bem como o fez sua esposa Joana de Freitas posteriormente. Na América portuguesa, conforme os povoados tornavam-se mais importantes erigiam-se vilas ou cidades, e a Coroa portuguesa instituía seus órgãos administrativos, as Câmaras, as quais recebiam um patrimônio, geralmente de uma légua em quadra, ou seja, 6,6 Km2, denominado área concelhia.440 As sesmarias concedidas dentro do concelho de uma Câmara, eram chamadas de sesmarias de “chão” ou urbana, e estavam subordinada à Câmara, devendo os moradores solicitarem a doação da terra, demarcarem e ainda pagarem o foro anual pelo uso da terra.441 Em algumas localidades, como apontam os estudos da historiadora Maria Fernanda Bicalho para a cidade do Rio de Janeiro no século XVIII, a arrecadação do foro e a cobrança de laudêmio representavam as maiores fontes de recurso da Câmara, e também implicava em alguns conflitos.442 Para a capitania do Rio Grande, verificou-se querelas referente a posses de terras subordinadas à Câmara. Em um termo de vereação de dezembro de 1692, os oficiais da Câmara ordenaram a cobrança do foro das terras da jurisdição da Câmara443, bem como dos impostos referentes às pescarias, e que os mesmos fossem pagos até o último dia do ano, e quem não o fizesse teria seus bens penhorados. Ainda neste termo de vereação, os oficiais da Câmara acordaram notificar Baltazar Antunes de Aguiar, que apresentasse sua petição de aforamento que tinha de suas terras dentro do prazo de dois dias, caso contrário a Câmara arrendaria a terra a outros indivíduos que se interessassem.444 Ao que parece Baltazar Antunes de Aguiar apresentou sua petição à Câmara e continuou de posse da terra onde realizava pescarias, pois três anos depois desta solicitação da Câmara, o sesmeiro foi novamente chamado a atenção. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU-RN, Papeis Avulsos, Cx. 01, D. 80. As ligações existentes entre diferentes famílias da América portuguesa, visando à formação de uma clientela, de laços de amizades e de vínculos políticos ou familiares, que poderiam gerar benefícios para si, foi conceituada por Antônio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, como redes clientelares. Associado às redes, os autores também lançaram o conceito de economia do dom, que concerne à manutenção das relações políticas por meio das reciprocidades nas trocas de favores entre as redes estabelecidas. HESPANHA, Antônio Manuel. XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1993. v. 4. p. 340. 440 TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens: a secularização do uso, da forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009. p.394-395. 441 O pagamento dos foros anuais auxiliava nas receitas locais, sendo solicitado muitas vezes o aumento do termo das mesmas, para aumentar a arrecadação. ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. p. 151. 442 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império. p. 202. 443 A cidade de Natal foi fundada em 1599, e embora não se saiba ao certo o ano de criação da Câmara, acredita-se que a mesma tenha sido instituída logo em seguida da fundação de Natal, pois se verificou pelo Auto de Repartição de Terras do Rio Grande, o registro da concessão de uma terra feita pelo Capitão-mor Jerônimo de Albuquerque ao concelho ou concelhia em 1605, referente à sesmaria de número 76. Translado do Auto de Terras do Rio Grande. Revista do IHGRN, n° 1 e 2, p. 5-131, 1909, v.7 TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens. p. 394-396. 444 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 105-105v. 02/02/1692. 439

137 ISSN 2358-4912 Desta segunda vez, a Câmara notificou que o foro para as terras da costa litorânea da capitania, dentro da jurisdição da Câmara de Natal, deveriam pagar 2$000 réis, e que tais terras não deveriam ser arrendadas a terceiros, pois caso assim alguém o fizesse teria de pagar o aforamento por si e pelo arrendatário. Neste termo, os oficiais da Câmara notificaram a Baltazar Antunes de Aguiar, que por ter comprado a terra que habitava a Paulo da Costa Barros445, encontrava-se irregular perante a Câmara, pois este último não poderia ter vendido a terra visto que pertencia à Câmara. Mediante a situação, a Câmara negociou com Baltazar Antunes de Aguiar, o pagamento do foro de meia pataca anualmente para formalizar a posse da terra pelo último.446 Como demostrou-se, as áreas propicias para a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande foram alvo de disputa entre seus moradores e de autoridades da capitania, os quais por meios diferentes interessaram-se em garantir o seu acesso à terra, e por vezes proibir o usufruto das pescarias por outrem. Este breve ensaio sobre a atividade pesqueira na capitania do Rio Grande atenta a detalhes que possibilitam compreender as ações de indivíduos moradores da capitania do Rio Grande em disputas por localidades onde a atividade pesqueira era propicia. O conhecimento destas querelas nos faz refletir sobre uma maior complexidade da história dos indivíduos moradores da capitania do Rio Grande, bem como na sua particularidade referente à cultura pesqueira. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th18th Century. 2007. fls 387. Tese (Doutorado em História) – Johns Hopkins University, Baltimore, 2007. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BLOCH, Marc. A terra e seus homens: agricultura e vida rural nos século XVII e XVIII. São Paulo: EDUSC, 2001. CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2° ed . Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984. CUERVO, Arthur Almeida Santos de Carvalho. Pescaria e bem comum: pesca e poder local em Porto Calvo e Alagoas do Sul (séculos XVII e XVIII). In: CAETANO, Antonio Filipe (Org.). Alagoas colonial: construindo economias, tecendo redes de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012. GAMA, João Maia da. Um herói esquecido. República portuguesa Ministério dos colonos, 1944. Coleção pelo império N° 100. II. GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. HESPANHA, Antônio Manuel. XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Edital Estampa, 1993. v. 4. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tombos I, II e III. São Paulo: Edições Loyola, 2004. LOPES, Fatima Martins. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3° ed. EDUFRN: Natal, 2008. Coleção História Potiguar. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Aconteceu na capitania do Rio Grande. Natal: Departamento estadual de Imprensa, 1997. ______. Naufrágios no litoral potiguar. Natal: Uruassu, 1988. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: editora 34, 2003. 445

Não se encontrou nenhuma sesmaria de Paulo da Costa Barros na capitania do Rio Grande, apenas uma na capitania do Ceará, datada de 1681. Plataforma SILB. Referência: CE 0016. A Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro) é uma base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa no mundo atlântico. Acesso em 10 de out de 2013: disponível em: . 446 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro 1674-1698, fls. 122-122v. 01/03/1695.

138 ISSN 2358-4912 NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1981. p. 86-89. POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da cidade de Deus à cidade dos homens: a secularização do uso, da forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009.

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JOÃO LOURENÇO, O “PRÍNCIPE ENCOBERTO”, LIBERTADOR DOS CATIVOS. PROFETISMO, ESCRAVIDÃO E TRÂNSITOS CULTURAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (MINAS GERAIS, SÉC. XVIII) Ana Margarida Santos Pereira* Em meados do séc. XVIII, foi preso em Minas Gerais um homem branco, de origem portuguesa, acusado pela justiça secular de perturbar a ordem estabelecida, promovendo um levantamento de escravos no Serro do Frio. Posteriormente, foi denunciado à Inquisição e, depois de vários anos no cárcere, declarado como louco. A nossa comunicação segue a trajectória do estranho forasteiro que se apresentou como mendigo para, depois, revelar que era um príncipe com a missão de libertar os escravos do Brasil. O que profetizava? Como se explica a inquietação por ele causada? Qual o seu acolhimento junto da população de origem africana? Ao responder a estas questões, procuraremos mostrar que o caso por nós estudado desafia a ideia, geralmente aceite, de que o milenarismo não teria tido penetração entre os africanos e seus descendentes no Brasil, fornecendo novos dados para o estudo das relações interétnicas na América portuguesa. A prisão Por volta de 1742, chegou à Vila do Príncipe,447 na Comarca do Serro do Frio, em Minas Gerais, um homem branco que atendia pelo nome de António da Silva. Vestido de forma simples, “em trajes de mendicante”,448 e ostentando uma longa barba, que desde logo lhe valeu a alcunha de “O Barbas”, ocupava-se em fazer vias-sacras e ia de porta em porta a pedir aos habitantes que orassem pelas almas do Purgatório, não aceitando outra esmola senão a comida para o seu sustento diário. Durante algum tempo, viveu em casa de João Gonçalves, ferreiro, “aonde ensinava a ler algunns rapazes”. Essa atividade seria, porém, bruscamente interrompida pela prisão do forasteiro, ocorrida após a divulgação de notícias segundo as quais António da Silva iria encabeçar “hua soblevação de negros” que teria lugar na região, havendo já ali preparativos nesse sentido. A eminência de uma revolta de escravos preocupava, naturalmente, os proprietários locais, que teriam procurado neutralizar o perigo, exigindo a intervenção das autoridades para garantir a preservação dos interesses do grupo e a manutenção da ordem instituída. Na ação, foram presos António da Silva e Mariana da Assunção, preta de nação Xambá, escrava de Manuel Lopo Pereira, sob a qual recaía a acusação de ser sua cúmplice. A ordem de prisão foi expedida pelo ouvidor-geral da Comarca e, uma vez cumprida, deu-se início à audição de testemunhas, com interrogatórios a cargo de António Camelo Alcoforado, que então desempenhava as funções de juiz ordinário. A partir daí, a história, cujos contornos eram, à partida, curiosos, tomou um rumo inesperado, revelando pormenores que fazem dela um caso sem paralelo no Brasil colonial. Infelizmente, a devassa levada a cabo pela justiça civil não foi, até hoje, localizada mas, no decurso dos interrogatórios, António da Silva foi também acusado de heresia, dizendo-se que teria proferido “muitas palavras mal soantes, e contrarias á nossa santa Fe”. Uma tal acusação exigia que dela fosse notificado o Tribunal do Santo Ofício, sob cuja alçada recaíam os casos de heresia. Não havendo ali um comissário que pudesse receber a denúncia e encaminhá-la para Lisboa, deu-se conhecimento do caso à justiça eclesiástica que, na sequência, abriu um inquérito próprio para apuramento dos fatos. A audição de testemunhas – nove ao todo – teve lugar nos dias 19 e 20 de dezembro de 1744, em sessões conduzidas pelo padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos, vigário da vara no Serro do Frio, *

Pesquisa financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Portugal, por intermédio do Programa POCTI – Formar e Qualificar, Medida 1.1. A autora escreve segundo o padrão do Português Europeu. 447 A vila, criada em 1714, foi elevada à categoria de cidade em 1838, com a denominação de Serro, que ainda hoje mantém. 448 Exceto indicação em contrário, as citações aqui apresentadas foram colhidas em: ANTT, TSO, IL, Maços, n.º 58, doc. não numer., fl. 269-328v.

140 ISSN 2358-4912 com a assistência do padre João Caldeira de Mendonça, que procedeu ao registo dos depoimentos. As informações apuradas no âmbito do inquérito corroboraram a denúncia, patenteando, assim, a gravidade do caso. Dando cumprimento às disposições em vigor, o vigário da vara informou, portanto, os inquisidores, enviando-lhes o auto de testemunhas e uma carta, na qual informava ter contactado as autoridades civis para assegurar que os presos seriam mantidos atrás das grades até à chegada de notícias de Lisboa. Após a análise dos depoimentos, os inquisidores decidiram-se pela continuidade do caso, ordenando a realização de um novo inquérito para audição judicial das testemunhas, com o objetivo de estabelecer a veracidade dos factos e averiguar a capacidade do denunciado, ou seja, a sua sanidade mental e a existência de circunstâncias ou fatores que eventualmente pudessem toldar-lhe o entendimento. O padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos foi, uma vez mais, o responsável pelos interrogatórios, que tiveram lugar entre setembro e outubro de 1746; o padre Luís da Rocha Azevedo registou os depoimentos das testemunhas, agora em número de 15. A maioria delas pertencia à elite local: eram mineiros e proprietários de terras, alguns dos quais tinham contribuído, de forma direta, para a prisão de António da Silva. Além destes, foram ainda ouvidas Mariana da Assunção, a sua alegada cúmplice, e Clara, preta de nação Courá, escrava de António Ferreira da Silva. O inquérito terminou com o interrogatório do denunciado, que negou de forma veemente todas as acusações das quais era imputado; as suas explicações não seriam, porém, suficientes para persuadir o responsável pelas investigações que, antes pelo contrário, viu nelas a confirmação das suas suspeitas. Em carta enviada aos inquisidores, o padre Miguel Carvalho afirmava mesmo que António da Silva era “bastantemente sagaz e prespectivo”, o que lhe permitiria adaptar o discurso conforme o interlocutor, declarando-se, ele próprio, persuadido que “O Barbas” tinha “suas allucinações do Demonio”, em virtude das quais cometia os “absurdos” dos quais fora acusado. A decisão do Tribunal de Lisboa, dada a conhecer em 09 de março de 1753, ou seja, quase sete anos após a realização do inquérito judicial, não iria, porém, ao encontro da opinião expressa pelo padre Miguel Carvalho; ao invés, tomava como provado que o denunciado “padecia loucura”. Assim sendo, deveria ser imediatamente libertado, se porventura ainda estivesse preso, e os seus bens, confiscados por ordem do padre Miguel Carvalho, restituídos. O antigo vigário da vara, que o retivera no cárcere sem para isso ter ordem do Tribunal, foi, aliás, severamente repreendido e, além disso, recebeu ainda uma advertência formal dos inquisidores: se voltasse a proceder da mesma forma, não ficaria sem punição.449 No entanto, se hoje conhecemos a extraordinária figura de António da Silva e alguns aspectos da sua não menos extraordinária passagem por Minas Gerais, é principalmente graças aos dois autos de testemunhas que, na década de 1740, foram enviados para Lisboa pelo padre Miguel Carvalho de Almeida e Matos.450 Vejamos, agora, as acusações das quais foi alvo para, assim, percebermos as razões V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Em resposta à carta enviada de Lisboa, o padre Miguel Carvalho justificou-se dizendo que agira como agira “tanto para que o juizo seccular nam entrasse em mais procedimentos como tambem para que o mesmo prezo, vendo sse na sua liberdade nam continuasse em mayores erros, entre [aqueles] povos rusticos”. Ainda assim, pedia humildemente perdão por ter excedido as suas competências, movimentando-se à margem das instruções do Tribunal. Sobre a atuação do Santo Ofício em defesa das suas prerrogativas, contra os abusos levados a cabo pelas autoridades eclesiásticas sediadas no Brasil, ver: PEREIRA, A. M. S. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas Capitanias do Sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. 1. ed. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006. P. 63-76. 450 Além dos dois autos por nós localizados na Torre do Tombo, existem ainda, no arquivo da Inquisição de Lisboa, outros documentos sobre o mesmo caso, também por nós identificados: em 27 de março de 1753 o Tribunal recebeu uma ordem emanada do Conselho Geral do Santo Ofício, em que se pedia aos inquisidores para informarem “logo” sobre o conteúdo de um requerimento enviado no ano anterior pelo denunciado, no qual dava conta das “gravissimas necessidades” que nos últimos sete anos padecera no cárcere, “por ser pessoa pobrissima, e que so vivia das esmolas que hos fieis lhe davão andando pedindo por diversas partes das Minas, antes da sua prisão, e nesta se [alimentava] ainda de esmolas, mas por ser a terra pouco populosa, e os moradores da mesma menos abundantes de charidade, e cabedaes; [faltavão] aquellas, e [perecia] quasi muitas vezes á fome o supplicante”. Às dificuldades de ordem material, somava-se ainda a sua convicção de não haver cometido qualquer falta merecedora de castigo por parte da Inquisição. Além disso, suspeitava que o Tribunal não fora informado da sua prisão: caso contrário, teria sido, entretanto, enviado para Lisboa, a fim de ser processado. Solicitava, portanto, que se indagasse e se, de facto, assim fosse, o mandassem soltar. A resposta dos

141 ISSN 2358-4912 que conduziram à sua prisão, elucidando esta questão, à partida, intrigante: como e por que motivos um homem tão piedoso como ele aparentava ser se tornou incômodo ao ponto de mobilizar uma parte da população local e as próprias autoridades, tanto civis como eclesiásticas, para garantirem a sua permanência no cárcere, onde ficaria encerrado, pelo menos, durante nove anos?

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As acusações Os depoimentos das testemunhas ouvidas no decurso dos interrogatórios permitem dividir as culpas apresentadas contra António da Silva em dois grupos: o primeiro diz respeito às blasfémias e proposições heréticas que, alegadamente, teria proferido. Neste aspecto, o seu caso era semelhante a muitos outros, cujo conhecimento chegou até nós e dos quais existem registos para a época: os comentários jocosos de que eram alvo as pessoas da Santíssima Trindade, os santos ou a Igreja e os seus representantes, os insultos a eles dirigidos, as dúvidas em relação a questões de doutrina, formuladas em termos pouco ou nada convencionais, tudo isso dava conta de perplexidades comuns ao homem moderno, quer quanto ao papel da Igreja como intermediária entre o Homem e o divino, quer quanto ao Catolicismo, ele próprio, por muitos tido como insuficiente para responder aos seus anseios e apaziguar as inquietações geradas pelas mudanças do tempo.451 Os textos sagrados, cuja autoridade se mantivera até então intocável, perderam, a pouco e pouco, o seu estatuto, ao mesmo tempo que se assistia à afirmação do homem e das suas potencialidades. A difusão do livro e das práticas de leitura, a que então se assistia, promoveu igualmente a “apropriação inventiva de textos e símbolos considerados sagrados”, em busca de respostas que permitissem lidar com uma realidade, sob muitos aspectos, angustiante e que, apesar das conquistas alcançadas nos séculos anteriores, persistia em escapar ao controlo dos homens. Daí até à heresia seria, por vezes, só um pequeno passo.452 Algumas das afirmações cuja autoria foi atribuída a António da Silva ilustram, quanto a nós, de forma eloquente o que acaba de ser dito. Assim, por exemplo: questionava a oração do Pai Nosso, na passagem em que se diz “não nos deixeis cair em tentação”, perguntando “porque razam Deos Senhor Nosso sendo poderoso nos havia de deichar cahir”, e, a este propósito, teria mesmo chegado a dizer que Ele “não governava bem”, porque dera aos homens o livre-arbítrio e, com ele, a possibilidade de pecarem. Os aspectos exteriores da vivência religiosa eram-lhe especialmente detestáveis: sobre as relíquias dos santos, dizia que as de cá “não erão verdadeyras” e a frequência da igreja parecia-lhe dispensável, “porquanto tinha hum livro que bastava estar lendo por elle e postos de joelhos aquelle tempo, pouco mais, ou menos, que o sacerdote gastava no altar meditando, o que se podia fazer ao pê de hum pâo escondido e assim satisfazer ao preceito da missa”. Pior: no decurso do seu depoimento, Mariana da Assunção contou que se recusara a ter relações sexuais com ele por medo do Inferno e que, ao ouvir a sua justificação, António da Silva lhe dissera que “isso se não comfessava, e que não havia Inferno, e que as pessoas, quando morrião tornavão se a gerar nas mulheres, para tornar a nascer”. Noutra ocasião, disse que “Christo Senhor Nosso não hera o que salvava, mas sim o Padre Eterno”; mais tarde, já na prisão, dizia que “Deos não [hera] outra couza mais, do que hum homem, como qualquer dos outros homenns” e, agastado com a própria sorte, acrescentava que “não [havia] Deos verdadeyro, mas antes, que [hera] mentirozo, porquanto se [diziam], que [dava] a cada hua das pessoas hum anjo da goarda este havia de ser para o goardar de todo o mal, e como as não [goardava], que elle [hera] o que [tinha] a culpa, e [devia] ser o castigado, e não elle dito Antonio da Sylva”. Estas e outras afirmações de teor análogo, igualmente relatadas pelas testemunhas, eram naturalmente graves – umas menos, no caso das blasfémias; outras mais, no que se referia às proposições heréticas, que questionavam os próprios fundamentos sobre os quais assentava a doutrina cristã – e, como tal, passíveis de serem denunciadas à justiça eclesiástica ou até, mesmo, levadas ao conhecimento dos inquisidores. Num meio pequeno, em que todos se conheciam e as notícias inquisidores, com data de 29 de março, dava conta da decisão comunicada pelo despacho de dia 09 mas o Conselho Geral mandou que se repetisse de imediato a ordem de soltura. São estas as últimas notícias que temos de António da Silva. ANTT, TSO, IL, Ordens do Conselho Geral, liv. 157, fl. 102-106. 451 Cf. DELUMEAU, J. (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989; e MUCHEMBLED, R. Popular culture and elite culture in France: 1400-1750. 1. ed. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 1985. 452 VILLALTA, L. C. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado) – Departamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 1999. P. 416-456.

142 ISSN 2358-4912 circulavam de forma célere, é fácil supor que dariam lugar a rumores, provocando o escândalo geral da população, ainda mais tratando-se de um forasteiro e, por isso mesmo, duplamente suspeito. No entanto, dificilmente poderiam justificar que os poderes locais se mobilizassem para neutralizá-lo, mantendo-o longe dos olhares públicos e privado do convívio com os seus mais próximos durante vários anos. A reação das autoridades foi, antes de mais, determinada por outro tipo de acusações, relacionadas com os contactos mantidos por António da Silva com alguns elementos de origem africana, designadamente escravos, e a sua atuação junto deste segmento da população. Isso mesmo foi confirmado por algumas testemunhas, como Sebastião Lopes Afonso, natural de Fiães do Rio, no termo de Montalegre, estalajadeiro, o qual fora uma das pessoas encarregues de cumprir a ordem emitida pelo ouvidor-geral da comarca e, como tal, participara na captura. A decisão de mandar prender “O Barbas”, garantia, fora determinada pelo fato de haver na vila “hua grande revoluçam entre os moradores della por respeito de se dizer que [...] tinha feito hum ajuntamento de negros para dar de repente [nela]”. A originalidade do caso reside precisamente nos destinatários eleitos pelo protagonista para alvo do seu discurso: a população negra e, em particular, os escravos. O teor das suas propostas aproxima-o de outras figuras carismáticas que irromperam na mesma época em Portugal e no Brasil, onde há registo de surtos messiânico-milenaristas até aos nossos dias, mas o facto de dirigirse especificamente à população de origem africana conferiu às referidas propostas um carácter único, fazendo deste um caso impar para o período colonial brasileiro.453 As declarações produzidas por Mariana da Assunção, a sua alegada cúmplice; Alexandre Correia, preto crioulo, 31 anos, escravo de João Cardoso da Silva, em cuja loja trabalhava como alfaiate; Manuel Mendes Raso, mineiro e proprietário de roças, natural de Macieira de Cambra; e António Pires Carneiro, que vivia da sua roça, genro do anterior, permitem reconstituir, nos seus traços gerais, o discurso de António da Silva e o projecto místico, de caráter messiânico, cuja concretização o teria guiado até ali. Os elementos comuns a este tipo de narrativa encontram-se, todos eles, presentes: um líder, cuja identidade permanecia envolta em incertezas; uma missão, transmitida diretamente pela divindade, que tinha, em última análise, como objetivo reformar a ordem vigente, instituindo uma sociedade mais justa, em que a dicotomia senhores-escravos seria definitivamente abolida; uma mensagem de esperança, especificamente dirigida aos mais despossuídos e, por isso, também mais receptivos a esse tipo de discurso; e um meio para alcançar os objetivos propostos. Apresentando-se como um líder dotado de virtudes carismáticas, em comunicação direta com o divino, António da Silva atraiu até si diversos seguidores, reunindo em pouco tempo à sua volta um grupo mais ou menos numeroso formado, na sua quase totalidade, por escravos. Alguns destes relataram ter tido visões em que a mãe da Virgem ou uma criança identificada com sendo o Menino Jesus lhes pediam para transmitir uma mensagem ao “pobre das barbas”, a quem deveriam dizer que “já era tempo”, indícios estes que revelariam quer a autoridade do forasteiro, quer a natureza transcendente da sua missão. E se dúvidas houvesse, António Carimá, preto forro, adivinhador, encarregou-se de desfazê-las, declarando que António da Silva “era princepe e que havia sahir [daquela] terra com coroa, e que isso mesmo significavão huas estrellas que apparecião na madrugada com rabos e brassos”. Embora reclamasse para si o papel de profeta, dizendo-se imbuído de funções sobrenaturais, António da Silva procurava também identificar-se com aqueles a quem se dirigia, captando, assim, as suas simpatias: em tom de segredo, dizia-lhes que era filho natural de D. João V e que este quisera nomeá-lo para lhe suceder, “porem que o princepe Dom Jozeph e seus inimigos o querião matar, por cuja cauza se abzentara disfarsado havia quatro annos mandado por Deos e seus anjos”. Fruto de relação com uma mulher de baixa categoria, perseguido pelo próprio irmão – o herdeiro oficial da Coroa – e obrigado a assumir uma identidade falsa para sobreviver, movia-se pois, tal como os seus interlocutores, nas franjas da sociedade, vendo-se ainda, como muitos deles, atirado para os confins do território brasileiro. O seu esforço de identificação com os cativos levá-lo-ia, de resto, mais longe, porque, além de dizer que conversava na igreja com uma imagem de Nossa Senhora da Purificação, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Ver HERMANN, J. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; e QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. 1. ed. São Paulo: Dominus, 1965.

143 ISSN 2358-4912 pertencente a uma irmandade de pardos, chegou a apresentar-se como “João Lourenço Negro”, asseverando ser esse o seu nome verdadeiro. Para capitalizar a seu favor o descontentamento dos escravos, António da Silva/João Lourenço criou de si uma imagem austera e despojada. Apesar de ser, como dizia, um príncipe, vivia das esmolas que lhe davam, aceitando apenas o estritamente necessário para o seu sustento, não abusava do álcool e nem sequer consta que tivesse amantes.454 A sua conduta era, assim, em tudo distinta da que se observava em muitos colonos, incluindo os senhores, frequentemente censurados, pela Igreja e não só, por constituírem um mau exemplo para os seus escravos. O carisma pessoal do forasteiro e o apelo irresistível da sua mensagem teriam eliminado qualquer desconfiança que esses escravos pudessem sentir e até, mesmo, o seu próprio medo, congregando momentaneamente naquela figura de longas barbas as aspirações de um grupo para quem a liberdade era, em muitos casos, apenas um sonho. No entanto, o modo como tudo deveria acontecer parecia um tanto ou quanto equívoco. Senão, vejamos: numa reunião que teve lugar na roça de Manuel Lobo Pereira, em que estiveram presentes diversos escravos, António da Silva revelou-lhes solenemente a sua identidade, anunciando ter sido enviado por Deus e pelo rei, seu pai, “a restaurar os pretos e mulatos dos captiveyros e tira llos do poder de seus senhores para hir com elles restaurar a Caza Sancta”. Inquirido sobre como o faria, respondeu que levava consigo um papel para ser afixado à porta da igreja, “e que depois de publicado, como elle vinha mandado do Padre Eterno e de el rey que logo todos os senhores lhe havia (sic) entregar seus escravos”.455 No entanto, as evidências indicam que a estratégia do “Príncipe Encoberto” era mais complexa do que davam a entender as suas palavras, passando mesmo pela revolta armada: Mariana da Assunção declarou perante o vigário da vara que “vindo ella testemunha de caza de seu senhor para a igreja a houvir missa emcontrou no Morro na Forca, dez ou honze negros com alguas armas, e preguntando lhe (sic) ella testemunha que ajuntamento era aquelle (...) lhe dicerão os ditos negros, que o pobre das barbas que estava na villa era filho do nosso rey, e que vinha mandado por Deos a esta terra para se levantar com os pretos contra os brancos, e ficarem forros os dittos pretos, e irem pela gentilidade pregando e levantando igrejas restaurar a Caza Sancta e descobrir as prophecias que estavam incubertas”. Manuel Mendes Raso ouviu-lhe dizer que “no sitio delle mesmo testemunha era o campo de Jozapha e que todos brancos e negros sedo havião de ser todos huns, e que não havia de haver captivos”; dizia também que naquele mesmo lugar estava a cadeira do Padre Eterno e que a lenha que lá se via era para atear o fogo “por honde todos havião passar”.456 As dúvidas aparentemente manifestadas por diversos escravos em relação ao sucesso da iniciativa e o receio do que pudesse suceder-lhes, em caso de fracasso; a intensificação dos rumores, aliás confirmados por um dos que tinham assistido à reunião a que atrás fizemos referência; e o nervosismo dos proprietários perante a eminência de uma revolta, acabariam, no entanto, por frustrar os planos do “príncipe” e “profeta” que, sem dificuldade, foi preso e, durante vários anos, permaneceu a braços com a Justiça. Ironicamente, os escravos a quem prometera a liberdade foram, depois, os mesmos que o incriminaram, para se livrarem eles próprios do castigo. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O protagonista Quando foi interrogado pelo padre Miguel Carvalho, o prisioneiro identificou-se como António da Silva, filho legítimo de Ana Maria e de Manuel da Silva, dois “pobres de ganha vida” que moravam em Santo António do Tojal, nos arrabaldes de Lisboa, onde, segundo afirmava, nascera e fora batizado. 454

Manuel da Silveira Camacho, natural de São Roque do Pico, nos Açores, cirurgião, declarou, ele próprio, que “em algum tempo tivera sua emclinação ao dito Antonio da Sylva, por ver, que este era devoto das almas, e andava com hum timão de baeta sobre as carnes, sem querer acceitar esmolas de ouro, nem roupas, nem outra couza algua que varias pessoas lhe offerecião”. 455 Este papel seria a “bula” encontrada por Manuel Lobo Pereira na posse da sua escrava e pelo mesmo entregue ao padre Miguel Carvalho. Nela, “João Lourenço Principe Emcuberto” anunciava, entre outras coisas, que viajara para o Brasil com o intuito de “todo o povo pàrdo, indios, e negros, a [si] juntar sem nimguem os poder cativar, para todo o mourismo, neste tempo desbaratar, e os lugàres santos a portuguezes christàos entregar”. 456 FOUILLOX, D.; et. al. Dicionário cultural da Bíblia. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996. P. 152: “Significando Josafat «Deus julga», o nome simbólico de Vale de Josafat designa o lugar imaginário onde Deus exerce o poder de julgar os povos”, ou seja, é o cenário onde terá lugar o Juízo Final.

144 ISSN 2358-4912 Ainda pequeno, fugira de casa dos pais, dirigindo-se para a capital, “aonde asistio em varias cazas servindo a quem lhe dava algua couza”, e, depois, como aguadeiro. Mais tarde, insatisfeito com a sua própria sorte, resolveu embarcar para a América, empregando-se na galera Santo António e Almas, o que lhe permitira custear a viagem. Esteve no Rio de Janeiro mas, a certa altura, “achou huns homens de caminho com quem se aranchou, e passou com elles para as Minas”. Aí chegado, passou a mendigar o seu sustento de porta em porta, primeiro na comarca do Rio das Mortes e, depois, no Serro do Frio, onde acabaria por ser preso. Seria esta a sua verdadeira história? Quem era, afinal, o “profeta” das Gerais? Provavelmente, nunca saberemos. Na Vila do Príncipe, as opiniões dividiam-se: uns tinham-no como louco, relatando episódios que atestariam a sua falta de juízo, mas outros havia para quem o misterioso forasteiro era, acima de tudo, dissimulado e também muito sagaz, numa palavra, um homem “velhaco”. O padre Miguel Carvalho estava convencido que teria tido uma “criacam muito diverssa” daquela a que no seu depoimento fazia menção, outros asseguravam que tivera algum tipo de instrução formal e outros ainda desconfiavam que era ou já fora membro da Igreja. Exactamente no mesmo ano em que António da Silva foi preso no Brasil, morria em Lisboa Pedro de Rates Henequim, condenado à fogueira por ter pretendido coroar o infante D. Manuel (irmão de D. João V) como imperador da América meridional, onde seria erigido o Quinto Império do mundo, separado de Portugal.457 Porém, ao contrário deste, cujas propostas eram inspiradas nos ensinamentos do padre António Vieira, o “profeta” do Serro do Frio não aludiu em nenhuma ocasião ao Quinto Império mas apenas à possibilidade de vir a haver dois reis, um em Portugal e o outro nas Minas. Eco distante das propostas de Henequim? Frutos, ambas, de um ambiente cultural específico, em que à conceção linear da História, característica do mundo judaico-cristão, poderíamos opor uma concepção cíclica, mais próxima da escatologia indígena? Na verdade, ao prometer a redenção terrena, António da Silva aproximava-se também de Vieira e, por seu intermédio, do próprio pensamento judaico. A intenção de combater os “infiéis” e reconquistar a Terra Santa, que ficaria sob o domínio português, são, aliás, outros tantos indícios que remetem para o autor da Clavis Prophetarum, sugerindo uma vez mais que o “Príncipe Encoberto” poderia ser, na verdade, um jesuíta heterodoxo ou, pelo menos, alguém cuja educação tivera lugar num colégio da Companhia. Seja como for, o que parece não oferecer dúvidas é que António da Silva foi, antes de mais, um homem de fronteira, cuja trajetória desafiou os limites da época, pondo em causa algumas das suas dicotomias – colonizador/colonizado, branco/negro, livre/escravo, cultura letrada/cultura popular, ortodoxia/heterodoxia, sanidade/loucura, etc. – e, com elas, os princípios sobre os quais assentava, em grande medida, a sociedade colonial. O seu projeto religioso não excluía, aliás, a concretização de objetivos de natureza política, nos quais podemos identificar a existência de interesses locais, que se opunham aos da metrópole. Um ser múltiplo e contraditório. Ou seja, um homem em sintonia com o seu tempo. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências DELUMEAU, J. (Org.). Injures et blasphemes. 1. ed. Paris: Imago, 1989. FOUILLOX, D.; et. al. Dicionário cultural da Bíblia. 1. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1996. GOMES, P. F. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (16801744). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. HERMANN, J. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MUCHEMBLED, R. Popular culture and elite culture in France: 1400-1750. 1. ed. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 1985. PEREIRA, A. M. S. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas capitanias do sul, de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. 1. ed. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006. QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo. 1. ed. São Paulo: Dominus, 1965. 457

GOMES, P. F. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; e ROMEIRO, A. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

145 ISSN 2358-4912 ROMEIRO, A. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. VILLALTA, L. C. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado) – Departamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 1999.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A FAMÍLIA ESCRAVA EM PEQUENAS UNIDADES PRODUTIVAS: DIFERENTES SIGNIFICADOS E ESTRATÉGIAS PARA SENHORES E CATIVOS – BORDA DO CAMPO – MINAS GERAIS- SÉCULO XVIII E XIX Ana Paula Dutra Bôscaro∗ Introdução O presente trabalho apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa ainda em desenvolvimento, cujo principal objetivo consiste na compreensão da presença, importância e significado da família escrava nos pequenos plantéis do Alto do Termo da Borda do Campo, Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais. Esta região fazia parte da fronteira dos grandes núcleos mineradores do século XVIII, uma área periférica, composta por pequenas propriedades, com atividades voltadas inicialmente para a mineração associadas às atividades vinculadas ao abastecimento interno. Na área mais alta do Termo da Borda do Campo, região próxima a Barbacena, estava localizado o Alto do Termo da Borda do Campo, uma localidade composta por seis povoados, Nossa Senhora da Conceição do Ibitipoca, Santa Rita do Ibitipoca, Ribeirão de Alberto Dias, Ibertioga, Santana do Garambéu e São Domingos da Bocaina. Esta localidade caracterizava-se por ser mais afastada dos grandes centros de revenda de produtos locais, com terras menos férteis e presença de serras íngremes, que acabavam por dificultar a fixação de agrupamentos humanos no local. 458 Nossa pesquisa centra-se, portanto, neste espaço composto por pequenas roças, com predomínio daquelas propriedades sem nenhum ou com até 3 cativos em sua composição social, com ausência de um espaço político e inicialmente caracterizado pela baixa demografia. Embora o Alto do Termo da Borda do Campo fosse constituído, primordialmente, por pequenas propriedades, vale ressaltar que neste cenário de extrema miséria, houve também espaço para o estabelecimento de grandes propriedades e de homens e mulheres mais abastados. 459 Todavia, como o intuito desta pesquisa consiste na compreensão da presença, importância e significado das famílias cativas em pequenas propriedades, selecionamos como objeto de estudo aqueles domicílios nos quais foram verificados a presença de até 3 mancípios. Desta forma, além de nos possibilitar perceber de que forma estavam estabelecidas estas pequenas propriedades na referida localidade, na primeira metade do século XIX, a análise da Lista Nominativa para o ano de 1831, permitiu também levantar dados sobre a origem, sexo, idade e estado civil dos cativos que compunham as escravarias dos seis povoados, informações que muito contribuíram para a compreensão do perfil das famílias escravas encontradas. Buscamos demonstrar o significado e a importância que a família assumiu para os mancípios presentes no local, bem como entender se estas foram usadas como uma estratégia de manutenção, sobrevivência e ascensão destes domicílios e proprietários. O estudo inicial destas pequenas escravarias nos permitiu deduzir quais as estratégias adotadas por estes senhores e demonstrar também como se dava a reposição da mão-de-obra cativa nestas pequenas propriedades. A composição social e a reposição da mão-de-obra cativa nas pequenas escravarias do Alto do Termo da Borda do Campo Através da Lista Nominativa para o ano de 1831, percebemos que a presença de cativos africanos foi bastante significativa na localidade. Foram avaliados 114 fogos e constatado um total de 213 cativos. Destes mancípios, 100 foram arrolados como africanos, 96 como crioulos, 11 listados como ∗

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – MG. OLIVEIRA, M. R. Avô imigrante, pai lavrador, neto cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p. 625-644, 2011. 459 Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 458

147 ISSN 2358-4912 pardos e 6 como mestiços. Os africanos representaram neste contexto, 47% da população mancípia presente nos seis povoados por nós analisados, um número bastante expressivo para uma localidade extremamente periférica, com predomínio dos domicílios sem nenhum ou até três cativos, e habitada primordialmente por pequenos lavradores livres e pobres. No que se refere ao sexo destes cativos, em relação aos mancípios africanos, constatamos a predominância do sexo masculino com 70 indivíduos homens e apenas 30 mulheres. Já os crioulos apresentaram um maior equilíbrio sexual, perfazendo um total de 46 homens e 50 mulheres. Dentre os 11 escravos designados como pardos, 8 eram homens e 3 eram mulheres, e no que concerne aos mestiços, 4 eram mulheres e 2 eram homens. Os dados por nós obtidos corroboram com as pesquisas de José Flávio Motta, Clotilde Paiva e Tarcísio Botelho, ao constatarem que as razões de masculinidade entre escravos oriundos da África eram recorrentes, uma vez que havia uma nítida preferencia pela importação de indivíduos do sexo masculino, mais aptos ao trabalho que mulheres e crianças. No que concerne ao maior equilíbrio sexual encontrado para os cativos nativos, estes autores afirmaram ser esta a indicação primordial de que a reprodução natural provavelmente ocorrera nestas pequenas propriedades. 460 Os dados referentes à faixa etária e número de crianças escravas presentes na localidade confirmam os resultados acima expostos. Por meio da lista de 1831 foi-nos possível perceber que a maior parte dos mancípios nascidos no Brasil enquadrava-se na faixa etária de 11 á 20 anos. Já a os cativos africanos, em sua maioria, apresentaram idades variáveis entre 21 e 49 anos, ou seja, 63% dos africanos que compunham as pequenas escravaria do Alto do Termo Da Borda do Campo encontrava-se em idade produtiva, uma vez que esta idade poderia variar entre os 15 e 44 anos. Estes escravos em idade produtiva eram considerados mais aptos ao trabalho do que africanos idosos, mulheres e crianças, possuindo consequentemente, um preço aquisitivo mais elevado no mercado. Desta forma, como afirmou Marcia Mendes Motta, a sua posse por parte da população mais pobre era muito precária, restando a estes pequenos proprietários a compra de mancípios africanos em idade mais avançada, bem como de mulheres e crianças, por serem escravos de preços mais acessíveis.

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Todavia, os dados por nós obtidos nos possibilitou encontrar resultados diferentes dos supracitados, uma vez que foi computado um maior percentual de africanos homens na faixa etária de 21 á 49 anos de idade. No que concerne a presença de crianças escravas na localidade (aqui classificadas como aqueles cativos com até 10 anos de idade), foi-nos possível constatar que estes pequenos proprietários não pareciam investir na compra de crianças africanas, pois dos 27 cativos inocentes presentes na localidade, apenas 4 foram designados como africanos, 18 como crioulos, 4 como pardos e 1 como mestiço, ou seja, 85,2% das crianças presentes nos seis povoados por nós analisados eram nativas do Brasil. O pequeno número de crianças africanas demonstra que estes indivíduos buscavam aplicar seus investimentos, principalmente, na compra de africanos homens em idade produtiva, e não na aquisição de crianças, mulheres e idosos por serem cativos de menor valor monetário. A significativa presença de crianças nascidas na localidade, até a idade de 10 anos, revelaram que a reprodução natural pode ter sido utilizada como mecanismo de reposição de parte da força de trabalho, ainda que encontremos parcela majoritária de africanos nas faixas etárias produtivas, indicando também uma provável recorrência ao tráfico. Desta forma, podemos inferir que a reposição do corpo mancípio nas pequenas escravarias do Alto do Termo da Borda do Campo, na primeira metade do século XIX, se deu por duas formas distintas: através da reprodução natural dos escravos e pela aquisição de cativos via tráfico, o que nos permitiu comprovar que o acesso ao tráfico de escravos foi uma possibilidade viável tanto para os grandes, quanto para certa parcela dos pequenos produtores locais. 460

MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: FAFESP. Annablume, 1999; PAIVA, Clotilde Andrade & BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e espaço no século XIX mineiro: algumas evidências de dinâmicas diferenciadas. In: Anais do VII Seminário Sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995. 461 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários escravistas em uma região policultora (1808-1888). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1989.

148 ISSN 2358-4912 As famílias cativas em pequenas propriedades: significado e estratégia para senhores e cativos

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A análise da composição social das pequenas escravarias por nós analisadas permitiu-nos perceber, que a reposição da mão-de-obra cativa no Alto do Termo da Borda do Campo se deu tanto por meio da reprodução natural, quanto pelo acesso destes chefes de domicílios ao tráfico de escravos, demonstrando desta forma, que estas duas possibilidades podem não ter sido excludentes, mas sim complementares. Para Manolo Florentino e José Roberto Góes, o tráfico de escravos, e consequentemente a constante chegada de novos africanos nos plantéis, teria provocado muito mais uma dissensão do que a união dos mesmos, resultando não só na predominância de casamentos endogâmicos, como também no isolamento destes africanos recém-chegados. Outra característica proveniente do tráfico de escravos era o elevado índice de masculinidade entre os africanos adquiridos no mercado, fator que acabava por dificultar as uniões, uma vez que o percentual de mulheres africanas era sempre muito inferior ao dos homens.462 Sabe-se hoje que o tráfico de escravos, por mais que pudesse interferir na união dos mancípios, não regulava a formação de famílias cativas.463 Todavia, grande parte dos trabalhos que se dedicam a estudar a constituição de famílias escravas tende a analisar as grandes plantations exportadoras, uma vez que estas dispunham de maiores escravarias, havendo, portanto, uma chance mais elevada de se encontrar casais cativos.464 A Lista Nominativa de 1831 nos permitiu demonstrar que embora as famílias cativas fossem mais representativas nas médias e grandes propriedades, não deixaram, no entanto, de estarem presentes também nos pequenos plantéis. Assim, dos 213 escravos analisados, 170 foram designados como solteiros, 18 como casados, 24 intitulados como “sem informação”, e apenas 1 como listado como viúvo. Vale destacar, contudo, que os números de escravos casados e solteiros presentes na região, não podem ser entendidos como uma representação completamente fidedigna da realidade, uma vez que esbarram nas limitações impostas pelas fontes. Embora muitos senhores incentivassem as uniões entre seus cativos, pouquíssimas eram oficialmente sacramentadas pela Igreja Católica. Segundo Sheila de Castro Faria, no século XIX os constantes entraves burocráticos à realização dos matrimônios entre mancípios levaram a uma perda de interesse dos escravos pelas formas católicas de união matrimonial.465 Os trâmites para a realização de casamentos de escravos eram os mesmos da população livre, sendo necessária a apresentação de alguns documentos, testemunhas e também a realização de alguns rituais, exigências que acabavam por dificultar, e muito, o acesso dos cativos ao matrimônio legal.466 No entanto, mesmo quando as uniões matrimoniais nos moldes cristãos não se tornavam efetivas, os escravos buscavam constantemente outros meios para formulação de laços familiares, como por exemplo, a realização de uniões consensuais.467 Este parece ter sido o caso dos cativos que compunham a reduzida escravaria de Tomás da Silva Braga, proprietário casado, de 44 anos, residente no povoado de Nossa Senhora da Conceição do Ibitipoca. Nesta pequena propriedade residia o crioulo Miguel de 49 anos, intitulado como solteiro, a

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FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 463 MACHADO, Cacilda ; FLORENTINO, M. G. Famílias e Mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de afastamento do mercado de cativos (Século XIX). Afro-Asia (UFBA), Salvador, n.24, 2000. 464 Neste sentido ver: SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 465 CASTRO, Faria, Sheila de. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 466 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 467 SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

149 ISSN 2358-4912 africana Joana de 27, também listada como solteira, e a pequena Delfina, crioula de 2 anos, referenciada como “sem informação”.468 Situação semelhante pôde ser observada também no domicílio de José Vital Neves, proprietário casado, de 40 anos, residente no mesmo povoado. Este pequeno proprietário tinha posse sobre o africano João de 18 anos e sobre a crioula Inocência de 22 anos, ambos intitulados como solteiros. Fazia parte da composição de sua reduzida escravaria, também o inocente Manoel, crioulo de 1 ano de idade, designado como “sem informação”.469 Constatamos assim, que o maior problema na análise da Lista Nominativa, bem como na maior parte dos documentos que buscam entender e reconstruir os laços familiares que foram estabelecidos pelos escravos, tanto crioulos quanto africanos, reside no fato de que o estado conjugal destes cativos era feito levando-se em consideração única e exclusivamente o reconhecimento das uniões perante a Igreja. Todavia, cabe ressaltar que estas uniões consensuais, embora não sancionadas legalmente pela Igreja Católica, menos ainda expostas nas fontes documentais da época, podiam ser igualmente estáveis e duradouras. Ao contabilizarmos separadamente o estado civil dos 96 crioulos, 100 africanos, 11 pardos e 6 mestiços, nos deparamos com um total de 15 africanos designados como casados, e apenas 3 crioulos com o mesmo estado civil. Nenhum dos pardos ou mestiços avaliados apresentou o estado civil de casado, sendo todos eles designados como solteiros ou “sem informação”. A tabela abaixo nos permite uma melhor visualização dos números acima expostos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Cativos Casados Solteiros Sem informação Viúvos Total

Tabela 1: Escravos: Estado Civil – Porcentagem Alto do Termo da Borda do Campo – 1831 Crioulos % Africanos % Pardos % 3 3,2 15 15 --78 81,4 81 81 6 54,5 15 15,4 3 3 5 45,5 0 1 1 -96 100 100 100 11 100

Mestiços -5 1 -6

% -83,3 16,7 -100

Fonte: Listas Nominativas de 1831/ CEDEPLAR

Podemos perceber que os africanos foram os que mais reconheceram seus relacionamentos perante a Igreja Católica. Destes 15 africanos contabilizados como casados, 9 eram homens e 6 eram mulheres. Dentre os 9 africanos homens casados, 4 tinham idade superior a 50 anos de idade, e os outros 5 encontravam-se em idade produtiva com idades variáveis entre 20 á 34 anos. Já entre as africanas, somente uma contava com idade superior a 50 anos, as outras 5 tinham idades variáveis entre 20 à 46 anos. Os 3 crioulos designados como casados eram mulheres que contavam com a idade média de 17,3 anos. Importante ressaltar que nenhum homem crioulo, nos seis povoados por nós analisados apresentou este estado civil, sendo todos designados como solteiros ou “sem informação”. O maior percentual de africanos casados fez-se refletir na composição social das famílias escravas encontradas na localidade. Optamos por considerar somente as uniões legalmente oficializadas, não computando, portanto, as uniões consensuais encontradas. Desta forma, foram constatados 5 casamentos endógamos de africanos e 3 casamentos mistos entre crioulos e cativos oriundos da África. Estes resultados obtidos para Alto do Termo da Borda do Campo se aproximam da hipótese de Robert Slenes, de que as preferencias endógamas conviveram constantemente com a aceitação das práticas exógamas.470 Esta afirmação se torna ainda mais evidente quando se destaca a ausência de matrimônios endógamos entre os crioulos, uma vez que os 3 cativos nacionais arrolados como casados formaram uniões mistas com africanos. 468

Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 469 Fonte: Listas Nominativas de 1831 disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em: 15/05/2014. 470 SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

150 ISSN 2358-4912 Acreditamos que a própria demografia do tráfico na localidade possa explicar, em parte, os dados acima expostos, contudo, devemos levar em consideração que a diferença numérica entre africanos e crioulos era ínfima, uma vez que os mancípios africanos e crioulos representaram 47% e 45% da população cativa local respectivamente. Outro fator que nos chamou atenção durante a análise, foi o equilíbrio sexual existente entre os cativos crioulos (46 homens e 50 mulheres), havendo, portanto, a possibilidade de se formarem uniões endógamas também entre estes mancípios. Tais fatores nos leva á alguns questionamentos: Qual a importância da constituição de uma família para estes recémchegados? A construção de laços de parentesco teria o mesmo significado tanto para os crioulos quanto para os africanos? Em hipótese e corroborando da argumentação de João Fragoso, acredita-se que após serem desenraizados de forma violenta pelo tráfico escravo atlântico, estes africanos tinham pressa em constituir laços de sociabilidade na nova terra, buscando parceiros que lhes permitissem a constituição de uma família e, portanto, uma maior integração nos plantéis. 471 O casamento e a consequente formação de famílias cativas, além de permitir uma maior socialização entre os escravos, era também uma forma de se obter alguns benefícios. Em Campinas, ser casado significou, entre outras coisas, ter uma residência própria, maior autonomia, proteção e liberdade, além da possibilidade de manter no fogo de suas casas a memória dos seus antepassados. Desta forma, mais do que representar um espaço próprio para se morar, este recinto constituiu-se em um elemento cultural importante para a formação de identidades no cativeiro. 472 Estes pequenos privilégios advindos do matrimônio e da constituição familiar entre os cativos, eram de extrema importância tanto para os africanos quanto para os crioulos, que viam nestas concessões uma maneira de melhorar e suportar as difíceis condições de vida no cativeiro. Demonstrada a importância e significado da constituição dos laços parentais para os cativos, restanos analisar os significados que estas famílias adquiriram para os pequenos proprietários presentes na localidade, bem como tentar compreender se estes as utilizavam como uma estratégia de ampliação e manutenção de suas propriedades, ou ainda como uma forma de ascensão social. Acreditamos ser minimamente reducionista considerar a formação de famílias cativas e o possível nascimento de crianças sob o julgo da escravidão, unicamente como uma “estratégia senhorial” para manutenção, ampliação ou mesmo ascensão destes pequenos proprietários e seus domicílios. Todavia, deve-se ressaltar que nos seis povoados que compunham o Alto do Termo da Borda do Campo, contabilizamos um total de 114 fogos com a presença de até 3 cativos. Tais dados nos permitiu inferir que em algum momento, ao longo da vida destes pobres lavradores, a compra de escravos foilhes acessível, possibilitando até mesmo aos mais pobres, inclusive aos pardos, que tivessem acumulado algum pecúlio, a aquisição de 1 ou mais cativos, inclusive de africanos. A posse de um ou mais cativos representou para estes homens e mulheres livres e pobres não somente o complemento do trabalho familiar, mas antes, uma forma de distinção social. Corroborando com a hipótese de A.J.Russell-Wood ao afirmar que pode ter havido coincidência entre as aspirações dos senhores de escravos e dos próprios cativos, uma vez que ambos se beneficiavam com a formação das famílias escravas473, acreditamos que a aquisição de escravos e a possível constituição de famílias cativas, foram vistas por estes pequenos proprietários como uma das maneiras de afirmarem seu prestígio e distinção naquela sociedade. Muito possivelmente, a formação destas famílias escravas, e o consequente nascimento de crianças fruto destas uniões sancionadas ou não, representaram para os senhores a ampliação de sua posse e riqueza. Aventamos a hipótese de que os pequenos proprietários do Alto do Termo da Borda do Campo, por serem indivíduos extremamente pobres, dependentes principalmente da acumulação de excedentes para a compra de seus escravos, viam na formação das famílias cativas, bem como na reprodução natural de suas reduzidas escravarias, uma maneira de ampliar sua posse e ascender socialmente. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Fatima, Maria, de. (Org). O Brasil Colonial 1720-1821. Vol, 3. 1° Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 472 SLENES, 1999, p. 49. 473 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

151 ISSN 2358-4912 A nosso ver, a constituição de famílias cativas, sobretudo, nas pequenas propriedades foi um componente que entrou positivamente nos cálculos econômicos destes pequenos proprietários, adotando muitas vezes, a reprodução natural como uma das formas de manutenção ou ampliação do plantel. Como foi demonstrado, mesmo se tratando de um contingente populacional muito miserável, percebemos que os chefes de domicílios por nós analisados, tinham nítida preferencia pela aquisição de africanos homens e em idade produtiva. Desta forma, levando-se em consideração tal preferencia, partimos da hipótese de que até mesmo estes pequenos proprietários que recorriam ao tráfico não desprezavam sua importância para manutenção das famílias escravas, uma vez que pressupomos ser o ingresso de novos africanos no cativeiro, sobretudo em idade produtiva, fundamental para o crescimento dos matrimônios nos povoados. Por fim, vale destacar que consideramos ser a família cativa fruto tanto dos interesses de proprietários quanto dos próprios mancípios que compunham as escravarias, pois para que a família cativa pudesse ser estabelecida, não bastava à vontade e desejo dos escravos, mas também a existência de meios propícios para a constituição e efetivação destes laços.

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Considerações finais O presente trabalho buscou apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa ainda em desenvolvimento. Através da análise da Lista Nominativa para o ano de 1831, foi-nos possível levantar alguns dados ainda introdutórios, bem como formular algumas questões, ponto de partida para futuras reflexões e análises. Os dados obtidos deverão ainda ser cruzados com os com os registros paroquiais de batismos e inventários post-mortem destes homens e mulheres livres e pobres, para que assim, futuramente, possamos dialogar melhor acerca da importância, significado e estratégias que as famílias cativas assumiram para estes cativos e pequenos proprietários. Por fim, vale advertir que a escolha da Lista Nominativa como fonte documental representa um corte no tempo, ou seja, os dados se referem, especificamente, as características desses povoados para o ano de 1831, não podendo ser estes resultados considerados válidos para os anos anteriores ou subsequentes a esta data. Referências FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790 - 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Fatima, Maria, de. (Org). O Brasil Colonial 1720-1821. Vol, 3. 1° Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. MACHADO, Cacilda; FLORENTINO, M. G. Famílias e Mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de afastamento do mercado de cativos (Século XIX). Afro-Asia (UFBA), Salvador, n.24, 2000. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (18011829). São Paulo: FAFESP. Annablume, 1999. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Pelas “bandas d’além”: fronteira fechada e arrendatários escravistas em uma região policultora (1808-1888). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1989. OLIVEIRA, M. R. Avô imigrante, pai lavrador, neto cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX). Varia História (UFMG. Impresso), v. 27, p. 625-644, 2011. PAIVA, Clotilde Andrade & BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. População e espaço no século XIX mineiro: algumas evidências de dinâmicas diferenciadas. In: Anais do VII Seminário Sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995. RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

152 ISSN 2358-4912 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SLENS, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava-Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Listas Nominativas de 1831 - disponibilizadas pelo CEDEPLAR através do site: https://ti.eng.ufmg.br/pop30/principal.php?popline=listasNominativasOriginais. Acessado em 15/05/2014.

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MOBILIZAÇÃO DE NEGROS EM SERVIÇOS MILITARES EM MINAS COLONIAL: NOTAS DE PESQUISA Ana Paula Pereira Costa474 O texto visa elucidar algumas notas iniciais de uma pesquisa em desenvolvimento na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Diamantina, intitulada: “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”475. O objetivo maior da investigação tem sido analisar as vantagens e os conflitos em torno da mobilização de negros (escravos ou não) para atuar no universo militar colonial, formal e informal, mais especificamente da comarca mineira de Serro Frio no século XVIII. Esta região, composta pelos Termos de Vila do Príncipe e Tejuco, teve sua origem ligada às atividades de exploração do ouro e de pedras preciosas. No início do século XVIII foi descoberto ouro nas cabeceiras do Rio Jequitinhonha e seus afluentes. Por conseguinte grandes levas de pessoas se dirigiram para o local formando povoados. Dentre esses temos o surgimento daquele que depois ficou conhecido como Vila do Príncipe (atual cidade do Serro) e do Tejuco (atual Diamantina). Em 1729 foi anunciada a descoberta de diamantes nas rochas e no leito dos rios da região do Vale do Jequitinhonha. O comunicado chegou a Portugal em 1729, expedido pelo governador da capitania, D. Lourenço de Almeida. Com o anúncio oficial da descoberta, a coroa tratou de pôr ordem na casa: organizou a exploração dos diamantes e, claro, a cobrança dos respectivos impostos. O aumento da produção trouxe rápida prosperidade à população da localidade, notadamente ao Arraial do Tejuco que crescia vertiginosamente476. Divulgadas as riquezas das duas localidades citadas, ambas tornaram-se o centro de convergência dos exploradores e comerciantes, atraídos pelo ouro e, sobretudo, pelos diamantes. Para elas deslocaram-se principalmente paulistas, portugueses e negros, ao lado de outros estrangeiros em número menor. Nas palavras de Couto (1954) “O ouro passou a ser satélite do diamante. A terra desvirginada mostra, no seu leito recamado de ouro, a pedra que fascina e encanta. Enche-se o distrito diamantino de aventureiros, beleguins e tropas”477. Faremos no trabalho ora apresentado alguns apontamentos acerca da visão que autoridades régias, membros da elite local e a população mais ampla da referida região tinham acerca da mobilização dos negros (escravos e forros) para atuar seja em “milícias particulares” usadas por homens da elite em diligências de prestação de serviços à Coroa portuguesa, seja em tropas ligadas a estrutura militar lusitana (companhias auxiliares de infantaria; companhias de ordenanças de pé; corpos de pedestres e corpos de homens-do-mato) usadas em variados serviços de manutenção da ordem pública. Ressaltaremos a construção de um discurso sobre o uso dos negros em tais atividades, a criminalidade, o armamento, a necessidade e os problemas advindos com esta prática durante o século XVIII na comarca de Serro Frio. Em um artigo publicado em 2003 a historiadora Sílvia Lara chamou atenção para a existência de dois movimentos historiográficos revisionistas surgidos no Brasil quase simultaneamente – a partir da década de 1980 – que, apesar de tratarem de temas complementares, (o estudo da escravidão africana e 474

Professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri/UFVJM COSTA, Ana Paula Pereira. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Projeto de pesquisa apresentado ao programa institucional de iniciação científica e tecnológica – PIBIC/CNPq. Diamantina: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, 2013. 476 Ver: FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde. São Paulo: Annablume, 1996. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ver também: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976 [1862-68]. 477 COUTO, S. R. Vultos e fatos de Diamantina. Edição revista e ampliada. Belo Horizonte, Armazém de Ideias, 2002 [1954]. In: LOPES, Fabrício A. MILAGRES, Alcione R. & PIUZANA, Danielle. Viajantes e Naturalistas do século XIX: A reconstrução do antigo Distrito Diamantino na Literatura de Viagem. Caderno de Geografia. V.21, n.36, 2011. p. 68. 475

154 ISSN 2358-4912 seus descendentes no Brasil e a análise da sociedade colonial) permaneceram restritos a seus eixos específicos478. O primeiro conjunto historiográfico questionou o enfoque estritamente macroeconômico e a ênfase no caráter violento e inexorável da escravidão a fim de romper com estudos que se apoiassem numa ótica senhorial que era, inevitavelmente, excludente. Novas pesquisas passaram a valorizar a experiência escrava analisando os valores e as ações dos mesmos como elementos importantes para a compreensão da própria escravidão e de suas transformações. Já o segundo movimento repensou a natureza das conexões metrópole/colônia, refutando a ideia de que suas relações se pautariam em dualidades e contradições de interesses meramente econômicos. Um foco maior sobre a política foi realizado e a partir de um diálogo com uma historiografia notadamente portuguesa, que revitalizou a ótica da sociedade de Antigo Regime, novas abordagens sobre as relações de poder no mundo colonial surgiram. Pesquisas sobre os modos de governar e sobre o funcionamento de diversas instituições que agregavam e davam consistência as redes hierarquias que ligavam horizontal e verticalmente a sociedade colonial foram se desenvolvendo em conexão com estudos realizados para outras partes do império português (África e Ásia, sobretudo)479. De lá para cá, alguns historiadores brasileiros tem procurado conectar essas historiografias, conforme sugestão de Sílvia Lara, num esforço para complexificar e sofisticar as análises desses dois campos. No debate que foi se articulando, três pontos que têm sido cada vez mais referência e parte da preocupação dos historiadores são a presença estrutural da população negra no mundo colonial “brasileiro”, inserida mediante a escravidão africana, os mecanismos da dominação escravista e o surgimento de um grande contingente de libertos e livres nesta colônia oriundos da escravidão, alforria e mestiçagem480. Desta forma, a presença estrutural dos escravos, livres e libertos na América portuguesa, ainda que analisada de formas e a partir de formulações conceituais diversas tem sido apontada como o diferencial mais importante pelos autores que, desde então, lidaram com o tema. No entanto, se o centro da resposta continua a ser a presença massiva desses grupos e o modo como tornaram-se um elemento estrutural na colônia, trata-se também, em segundo lugar, de entender como podiam estar integrados à rede hierárquica que ordenava as relações sociais nas conquistas ultramarinas481. Neste sentido, novas investigações tem procurado analisar como a escravidão e os negros (escravos ou não) foram incorporados à teia hierárquica que ordenava a sociedade colonial “brasileira” e codificava as relações sociais no Antigo Regime482, permeada pelos valores de honra, prestígio, distinção, desigualdade e hierarquização. Dentre os mecanismos de hierarquização e alcance de distinções sociais para a parcela da população negra que existia na América portuguesa durante o período colonial, há muito se vem destacando a importância da esfera militar. Luís Geraldo Silva, ao abordar o período da guerra de restauração pernambucana contra o domínio holandês, travada entre 1645 e 1654, ressalta que nesse momento foram criadas as milícias de homens de cor na América portuguesa483. Reconquistados Pernambuco e as demais capitanias do Norte em 1654, em boa medida graças aos esforços dos colonos brancos e dos negros e índios a eles subalternos, os terços de homens de cor foram ali mantidos e depois, ao longo do século XVIII, se disseminaram por

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LARA, Sílvia. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América. In: FERLINI, Vera L. & BICALHO, Maria F. (Orgs.). Modos de governar. São Paulo: Alameda, 2005. p. 33. 479 Idem. p. 25, 31-32. 480 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Campinas: Unicamp, 2004. Tese de Livre-Docência, p. 16-17. Para exemplos dos estudos mencionados que fazem as respectivas revisões historiográficas ver: In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos Oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 481 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Op. cit. p. 17. 482 Idem. p. 18. 483 SILVA, Luiz Geraldo. Sobre a “etnia crioula”: o Terço dos Henriques e seus critérios de exclusão na América portuguesa do século XVIII. In: GONÇALVES, Andréa Lisly; CHAVES, Cláudia M. Graças & VENÂNCIO, Renato Pinto (Orgs.). Administrando Impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. p. 71.

155 ISSN 2358-4912 praticamente todas as capitanias da colônia brasileira. O engajamento dos negros (libertos e cativos) para lutar na guerra de restauração era feito mediante promessas de liberdade484. Ainda sobre essa situação e contexto Hebe Mattos destaca que não são poucas as referências que revelam os ganhos dos soldados das companhias em luta em Pernambuco (inclusive os das tropas negras) com os escravos capturados do inimigo pelas tropas portuguesas, que via de regra, eram vendidos para a Bahia e seu valor repartido entre os soldados, como recompensa485. Por fim, temos o estudo de Francis Albert Cotta que analisou a trajetórias de militares negros e mestiços patenteados que conseguiram alcançar relativa mobilidade social numa sociedade escravista através de sua atuação e inserção no universo militar das Minas setecentista. Para este autor a posse de uma patente militar dava aos negros, mestiços e pardos lugares de destaque na sociedade mineira do século XVIII, pois propiciava a esses homens considerável poder ao comandarem grandes contingentes de soldados e ao lhes fornecerem oportunidades de aderirem aos valores tidos como ideais pela sociedade católica portuguesa tais como o casamento, a formação de uma família e a posse de escravos486. Na América lusa havia diferentes formas de se incorporar os negros escravizados, forros ou livres no âmbito militar. Tais homens podiam, por exemplo, serem utilizados de uma forma privada, como uma espécie de guarda pessoal constituída informalmente, isto é, sem a conotação militar que se associa às tropas de negros montadas recorrentemente durante todo o período colonial em caso de necessidade, sendo a mais famosa conhecida como “terço dos Henriques”. Para o caso de Minas Gerais os inúmeros relatos dos indivíduos que se aventuraram nas trilhas dos sertões mineiros em busca de títulos, sesmarias, patentes e cargos políticos, no intuito de conseguirem poder ou prestígio e, assim, tornarem-se potentados locais, denotam bem esta situação. Em tais relatos deixam claro que viam nas conquistas a serem realizadas, feitas às custas de suas vidas, fazendas e escravos armados, oportunidades para adquirir riqueza, poder e status. Com efeito, acompanhados de seus negros armados (nesses casos quase sempre escravos), muitos potentados das Minas, sobretudo em seus anos iniciais de formação, atuaram sistematicamente em combate a levantes e conflitos, internos e externos, em povoamento de novos territórios a fim de angariar mercês e reconhecimento social487. Mais do que a participação dos colonos na conquista do território colonial o que afirmações como estas devem explicitar é a importância adquirida pelos escravos para os seus senhores. Vale lembrar que a prática de armar seus próprios escravos, seja para lutar em guerras, seja para entrar em confrontos diversos, era difundida em quase todas as sociedades escravistas e também o foi no Brasil colonial488. Alguns autores ressaltam mesmo que pegar em armas para, eventualmente, lutar V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Idem. MATTOS, Hebe. Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina & NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos do Império. Niterói: EdUFF, 2006. p 32-34 486 COTTA, Francis A. Negros e mestiços na milícias da América portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. p. 108-112. 487 Na verdade esta realidade se fez presente em várias partes da América Portuguesa. Além de Minas Gerais, para o Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e Goiás, são inúmeros os relatos que apontam as constantes intromissões daqueles que se arrogavam o título de principais da terra na conquista, defesa e povoamento da colônia, o que na maioria das vezes era feito à custa de seu sangue, vida, fazenda e escravos. Neste sentido ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, cap. 12. Ver também: FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa”. Revista Tempo, volume 15, Niterói, 2003, p. 11- 35. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Ed. 34, 2003. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: 1600-1900. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, partes 1 e 2. KARASCH, Mary. The Periphery of the periphery? Vila Boa de Goiás, 1780-183. In: DANIELS, Christine & KENNEDY, Michael V. (Orgs.). Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 15001820. New York & London: Routledge, 2003, p. 143-169. 488 Para mais exemplos ver: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times to the modern age. Yale University Press: New Have & London, 2006. CAPELA, José. Donas, Senhores e Escravos. Porto: Edições Afrontamento, 1995. BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro. Uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. PAIVA, Eduardo França. De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no 485

156 ISSN 2358-4912 em diversos tipos de conflitos ao lado de seus senhores era considerada uma extensão dos serviços usualmente prestados pelos cativos. Presos às redes clientelares, eles encarregavam-se de executar as ordens do senhor, que em retribuição podia, por exemplo, solucionar querelas e agravos, tomar para si as suas causas e enfrentar os seus inimigos489. Em outras palavras, além da posse das patentes militares e da ocupação de postos na governança e demais cargos administrativos, a posse de numerosa escravaria ou de aliados que pudesse dispor a serviço de El Rey era também importante na definição de um indivíduo como poderoso no contexto colonial e, logo, com prerrogativa de mando, desde que o senhor de tal escravaria estivesse em condição de armá-los à sua custa, poder desviá-los de suas atividades principais para a realização de outras diligências e que tenha estabelecido com tais agentes uma via de reciprocidade (desigual)490. Cabe sublinhar que não desconsideramos a existência do uso de coerção e força sobre a parcela da população negra escravizada. Tão pouco ao adotarmos a ideia de reciprocidades entre os atores na construção das redes de relação desconsideramos o conflito e as tensões inerentes a tais interações. Pelo contrário, ao falarmos em tais termos pensamos e necessariamente consideramos que elas eram desiguais e que reforçavam hierarquias491. Do ponto de vista do escravo o uso de reciprocidades além de proporcionar ganhos concretos e melhoras nas suas condições de vida, revela o papel ativo dos escravos no processo de produção e reprodução de uma sociedade escravista, pois entende-se que os comportamentos cativos baseados nesses elementos não seriam expressão da adesão passiva ao ideário senhorial. Em alguns casos as reciprocidades talvez tenham sido os meios mais acessíveis para que pudessem reiterar sua humanidade e tornar a si próprios participantes da construção de suas histórias492. Além do uso dos negros como milícia particular, outra maneira pela qual se podia associá-los ao âmbito bélico era atrelá-los à estrutura formal da organização militar lusitana, e nesses casos não necessariamente se encontravam somente escravos, mas forro e livres. Esta se constituía a partir de três tipos de forças: os corpos regulares (conhecidos também por tropa paga ou de linha), as milícias ou corpos de auxiliares e as ordenanças ou corpos irregulares493. Mas haviam outras formas de organização mais específicas que subdividiam as forças de acordo com as hierarquias sociais. No caso dos negros poderiam ser agrupados, basicamente, em quatro espécies de milícias: as companhias auxiliares de infantaria; as companhias de ordenanças de pé; os corpos de pedestres e os corpos de homens-do-mato494. De acordo com Francis Cotta, em Minas Gerais colonial as companhias auxiliares de infantaria de pretos, e também de pardos libertos, podiam atuar tanto na destruição de quilombos e repressão aos índios, quanto na defesa das fronteiras marítimas e terrestres em auxílio às tropas regulares. Nas companhias de ordenanças de pé dos pretos libertos, e dos homens pardos, as principais missões também estavam relacionadas aos confrontos com os quilombolas e índios bravos. Atuavam assim localmente para preservar a tranquilidade e o sossego públicos. De forma semelhante aos corpos auxiliares, não recebiam soldos, armamentos ou equipamentos. Por seu turno, o corpo de pedestres era formado por negros, pardos libertos e por escravos. Eles “entravam nos matos, descendo córregos por despenhadeiros impraticáveis”495. Pela vasta experiência eram requisitados como guias nas expedições militares. Tinham seus soldos e jornais pagos pela fazenda real e eram comandados por capitães pardos. Por fim, os homens pardos, negros libertos e escravos também se inseriam nos corpos de

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início do século XVIII. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F. Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. 489 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 84 e 87. 490 FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII”. Op. cit. passim. 491 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 20. 492 Idem. p. 22. 493 COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (17351777). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação de Mestrado. p. 17. 494 COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado. p. 207. 495 Idem. p. 208.

157 ISSN 2358-4912 homens-do-mato. Eles não recebiam soldos, fardamentos, equipamentos, armamentos ou alimentação da fazenda real. Eram recompensados através das tomadias pagas pelos proprietários dos escravos fugidos496. Todas essas forças foram institucionalizadas nas Minas a partir dos primeiros anos dos setecentos e foram vistas de maneiras distintas pelas diversas autoridades portuguesas e pela população, o que também pode ser dito acerca do armamento particular de escravos. Em relação as tropas de homens de cor os documentos que serão listados a seguir expressam bem a ideia de “utilidade” que a mobilização dos negros, escravos, livres ou libertos passou a ter para ordenar o território mineiro. O primeiro trata de um requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo ao rei a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. Segundo o relato:

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Pedem para que V. Mage haja por bem de sua real grandeza os mande aly regimentar no mesmo modo tratamento, honras que gozão os homens pretos de Pernambuco, Bahia e Sam Thome com

companhias necessárias na villas e arraes para os velarem, socorrerem e investigarem rondando aquelas terras, cerras, estradas, campanhas, rios e matas para melhor conclusão e serventia do real serviço, pelos descaminhos que aly se dão ouro e diamantes e outros mais bens do povo e prejuízo grave que dão os foragidos, ciganos e contrabandistas a real fazenda e aos moradores daquelas povoações se faz crível e verossímil (...) E outro sim para ajuda de custo, pólvora, xumbo e alimentos pela longitude de dias e noites que gastão por aqueles montes e veredas e embrenhas na examinação dos delinquentes para os cercar, prender e destroir e porem as estradas e lugares livres daqueles insultosos lhes dê saques livres e tomadias que não forem diamantes, ouro ou outros 497 moveis pertencentes a real fazenda (...)

No segundo documento temos uma carta de 1753 do governador das Minas, José Antônio Freire de Andrade, informando a Diogo de Mendonça Corte-Real acerca dos roubos e outras violência cometidas pelos negros que andavam fugidos no Arraial do Tejuco na qual também temos identificado a utilidade dos homens de cor, escravos no caso, para a manutenção da ordem na região: No dia nove de outubro do anno passado me chegou hua carta do comandante dos Dragoens, que se acha destacado no serro frio Simão da Cunha Pereira, nella me dava conta do desaforo em que se tinhão posto os negros que andavão fugidos as casa de seus senhores com os mullatos, mistiços e carijós que se lhe tinhão agregado roubando os corregos dos diamantes marchey no dia quinze deste continente trazendo comigo os poucos Dragoens que restavam das patrulhas, que impedem a extração do ouro, logo que aqui cheguei reforçei a dos córregos sendo de pouca utilidade porque a poucos dias hu lote de negros, mulatos e carijós me atacarão hua patrulha de dez soldados Dragoens e does pedestres, sendo que os não podia prender ou afugentar da demarcação com as tropas pagas e que as ordenanças eram de ma qualidade para andarem a pe nos córregos escrevi ao capitão Felizberto Caldeira Brant contratador dos diamantes (...) para que este mandasse

por promptos dos homens que tras costiando o seu contracto cento e cincoenta e com este numero e com os Dragoens e pedestres em dia vinte de dezembro dando hu assalto nos córregos se prenderão dezoito e sendo informado de que naquella noite havião passado a ponte do rio Jequitinhonha para fora da demarcação alguas partidas de negros, mulatos e carijós sem demora mandei sobre eles e pondo se em resistência matarão algus e prenderão outros e os que restavão das tropas se escaparão na montanha. Continuei em mandar seguir os que tinha noticia 498 sahiao para o certão aonde se prenderão algus (...)

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Idem. Arquivo Histórico Ultramarino-MG/Cx: 69; Doc: 5. Data 07/01/A1756. Requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo ao rei a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. Em anexo: 1 aviso. Grifo meu. 498 Arquivo Histórico Ultramarino-MG/Cx: 61; Doc: 3. Data 09/01/1753. Carta de 1753 do governador de Minas, José Antônio Freire de Andrade, informando a Diogo de Mendonça Corte-Real acerca dos roubos e outras violência cometidas pelos negros que andavam fugidos. Em anexo: carta (cópia). Grifo meu. 497

158 ISSN 2358-4912 Percebe-se nos dois documentos que a atuação de negros, escravos, forros ou livres em tropas de serviços militares responsáveis por tarefas de grande perigo, controle dos descaminhos, proteção contra ataques de criminosos, negros fugidos era recorrente nas Minas. Conforme destaca Francis Albert Cotta, a atribuição de entrar nos matos, em lugares intrincados e de difícil acesso acabou recaindo sobre os africanos e seus descendentes, cativos ou libertos. Eles patrulhavam as estradas em busca de aquilombados, índios bravos, facinorosos e assaltantes que atacam as vilas e arraiais. Eram os mais aptos a identificar rastros e vestígios de passagem de pessoas499. No entanto, recentemente alguns estudos apontaram que em Minas Gerais colonial essa questão do armamento dos negros, tanto formal, isto é, para montagem de tropas milicianas ou de ordenanças de negros escravizados, forros ou livres; quanto informalmente, ou seja, nos casos em que eram utilizados para defesa pessoal ou em diligências em prol da Coroa feitas por potentados locais, não deixou de fomentar discussões, dúvidas e polêmicas quanto à medida certa de seu emprego500. Se o uso constante de negros armados nas duas formas de organização citadas – formal e informal – em campanhas militares, para conter motins, para desmantelar quilombos, para defesa pessoal de homens poderosos, denota que tal prática era algo corriqueiro para os habitantes da capitania mineira, conforme explicitado nos documentos acima; toda uma legislação que defendia o uso moderado das armas pelos negros, bem como a proibição de armar escravos na capitania indica que apesar de corriqueiro isso era algo que preocupava as autoridades coloniais. Não por acaso, tentativas de regulamentação do porte de armas não foram poucas. Entretanto, esse é um ponto ainda pouco trabalhado pela historiografia, sobretudo para a região abarcada pela presente pesquisa, haja vista que só muito recentemente no âmbito da história militar, e colonial, os pesquisadores passaram a se interessar em compreender o comportamento e as instituições militares em seus contextos social, político, econômico e cultural501. Ao longo do Setecentos vários bandos, ordens e cartas régias foram emitidos proibindo aos negros, cativos, forros e livres o uso de todo tipo de armas, particularmente as de fogo, embora sem muito sucesso502. De fato, as leis constituíam letra morta no contexto social da colônia, pois o descumprimento a essas regras era frequente. Segundo Liana Reis essa característica seria consequência das redes relacionais estabelecidas entre os colonos, na medida em que viabilizavam o acesso e o uso das armas. Um exemplo seria a relação estabelecida entre quilombolas e determinados grupos sociais, especialmente os donos de tabernas e vendas. Muitos comerciantes acobertavam a fuga dos cativos e forneciam a eles mercadorias, que incluíam armas e pólvora. Esse posicionamento garantia o acesso dos quilombolas aos gêneros necessários à sua sobrevivência e ao mesmo tempo se constituía em uma fonte de lucro para os homens de negócio. Além disso, segundo a autora, essa relação marcaria a opção da sociedade em estabelecer uma convivência com aqueles que fugiam do cativeiro503. Como se vê se, por um lado, a relação, proximidade ou possibilidade da parcela negra da população em ter acesso a armas e ao universo bélico contribuíam para criar um clima de tensão e conflito na localidade através das fugas, formação de quilombos, rebeliões, crimes e ameaças cometidas. Por outro lado, apesar dos riscos e preocupações, a necessidade colocada pelo contexto denota que os senhores e as autoridade régias precisavam munir os negros (cativos, forros e livres) de facas, facões, paus e até mesmo armas de fogo para que realizassem diversos tipos de trabalhos. Podemos sublinhar o V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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COTTA, Francis A. Negros e mestiços na milícias da América portuguesa. Op. cit. p. 65. PAIVA, Eduardo França. De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII. Op. cit. REIS, Liana Maria. “Minas Armadas: Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira setecentista”. Varia História. Revista de História do Departamento da UFMG, n.o 31, 2004. COSTA, Ana Paula Pereira. “Potentados locais e seu braço armado: as vantagens e dificuldades advindas do armamento de escravos na conquista das Minas”. Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 18-32. 501 MOREIRA, Luiz Guilherme S.; LOUREIRO, Marcello José G. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. p. 16. 502 REIS, Liana Maria. Criminalidade escrava nas Minas Gerais Setecentistas. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2008. Vol. 1. p. 478. 503 REIS, Liana Maria. “Minas Armadas: Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira setecentista”. Op. cit. p.196. 500

159 ISSN 2358-4912 imprescindível reforço e socorro que propiciavam às forças pertencentes à estrutura militar mais formal para atuação em serviços de defesa e ordenamento social e o auxílio que prestavam às autoridades metropolitanas para realização de serviços cruciais para o exercício da governabilidade régia em território ultramarino, conforme visto nos documentos mencionados. Além disso, cabe destacar a proteção que forneciam às elites em um cenário hostil e belicoso. Ou seja, em várias situações os senhores e as autoridade régias permitiam e estimulavam aos negros (escravos, forros e livres) a usarem armas e a se atrelarem ao universo militar colonial, porque isso se fazia necessário numa conjuntura em que a possibilidade de mobilizar homens para lutar era fator crucial para a definição do poder das elites locais, para a sobrevivência, para o sucesso das diligências de manutenção da ordem e, consequentemente, para a sustentação dos interesses régios no além-mar.

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ISSN 2358-4912 O GADO EM SERGIPE NO SÉCULO XVIII Anderson Pereira504 Introdução “O gado em Sergipe no século XVIII” é um estudo que propõe compreender o gado como elemento da riqueza em um período de transição econômica na Capitania de Sergipe. As principais fontes utilizadas foram os cronistas, as cartas régias e os inventários post-mortem da Comarca de São Cristóvão/SE. No entanto, as fontes para a história da pecuária em Sergipe se encontram dispersas e sem sistematização, dificultando o pesquisador visualizar o complexo sistema econômico que envolve o gado. O trabalho se justifica por várias razões. Uma carece na historiografia sergipana de estudos que aprofundem a análise socioeconômica sobre o gado como elemento da riqueza. Outra justificativa seria que na conjuntura econômica de Sergipe a pecuária possibilitou os curraleiros e a fazenda real acumularem riquezas. Por fim, foi à importância econômica da atividade criatória para a Capitania de Sergipe e a Metrópole. Os principais referenciais teóricos são os trabalhos de Fernando Novais e José Roberto do Amaral Lapa. Os conceitos básicos empregados são “sistema colonial” proposto por F. Novais, e “mercado interno” sugerido por J. R. do Amaral Lapa. A noção de “sistema colonial” proposta por Fernando Novais permite apreender a dinâmica e a estrutura do sistema colonial Português e é também uma ferramenta de análise do funcionamento da economia do gado em Sergipe. Seguindo Novaes, o surgimento e o funcionamento do sistema colonial se justificariam pelo acumulo primitivo de capital através do comércio dos produtos agrícolas coloniais e da venda para as Colônias dos produtos manufaturados da Metrópole.505 Assim, para o autor o sistema colonial seria o conjunto de mecanismos (processos econômicos e normas de política econômica) através dos quais a Metrópole promove a acumulação capitalista. Os mecanismos de funcionamento do "Antigo Sistema Colonial do mercantilismo" são: o monopólio comercial, o escravismo e o tráfico negreiro. O funcionamento do sistema se daria pela estrutura socioeconômica que se organizava nas colônias, a produção escravista e a concentração de renda nos grupos dominantes. A Colônia tinha por objetivo fornecer artigos que a metrópole necessitava e oferecer mercado para os manufaturados da metrópole. Desta forma, a colonização do Novo Mundo se deu nos quadros do Antigo Sistema Colonial, isto é, o sistema colonial do Antigo Regime.506 Fernando Novais nos chama a atenção para o fato de nem todas as manifestações da colonização portuguesa do Brasil expressar diretamente esse mecanismo, mas os mecanismos do sistema colonial mercantilista constituem o componente básico do conjunto, a partir do qual deve, pois ser analisado.507 Pensar a economia do gado em Sergipe Colonial a partir do conceito de “sistema colonial” proposto por Novais permite ver também o caráter mercantil da colonização. Com isso, a inserção da colonização de Sergipe no quadro do comércio europeu, ainda seria um canal de acumulação primitiva do capital mercantil no centro do sistema. Outro importante conceito para o entendimento da pecuária é o de “mercado interno”. Tal conceito proposto por José Roberto do Amaral Lapa contribuiu ao relativizarmos o pacto colonial. Esse autor privilegia o mercado interno numa perspectiva dinâmica e integrativa à colônia. Ele define o “mercado interno” como sendo um ou mais sistemas de trocas formados ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, 504

Licenciado em História, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, e doutorando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista FAPESB com o projeto Os afortunados da Colônia: riqueza, acumulação e distinção em São Cristóvão/SE (1760-1820), orientado pela professora Drª. Maria José Rapassi Mascarenhas. E-mail: [email protected] 505 Cf. Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. p.16. 506 Fernando Novais, loc. cit., p.260. 507 Fernando Novais, op. cit., p.261.

161 ISSN 2358-4912 este mercado possui oscilações internas, relacionadas direta ou indiretamente com os mercados externos.508 Logo, a mercantilização da economia de subsistência e o abastecimento teriam um espaço próprio na economia colonial. A economia do gado na Capitania de Sergipe no século XVIII funcionou de acordo com os processos econômicos e normas de política econômica específica gerenciada pela Metrópole. A pecuária era voltada para o abastecimento do mercado interno. Muito embora, “a construção deste mercado interno é concomitante com o mercado intercolonial e se faz cumprindo ou reagindo às imposições do capitalismo internacional que rege o mercado mundial”.509 Portanto, ao considerar a existência de um mercado interno importante na Capitania de Sergipe, capaz de fazer com que regiões inteiras se voltassem para o abastecimento e permitisse um grupo detentor dos meios de produção o acúmulo de riqueza, esta riqueza em alguns momentos foi superior àquela oriunda dos produtos destinados ao mercado externo. O gado em Sergipe no século XVIII foi uma das medidas da riqueza possuída pelos seus proprietários. Ter gado constituía um importante diferencial entre as famílias. Pois, a riqueza ainda estava associada à posse de gado.

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As funções econômicas da pecuária sergipana intra e extracapitania No século XVIII, os currais já estavam espalhados por quase todo o território de Sergipe, predominantemente no pediplano sertanejo.510 O curral servia para recolher o gado. Provavelmente os grandes cercados estavam localizados as margens dos Rios Piauí, Vaza-Barris, Sergipe, e São Francisco. Os currais de médio porte estavam localizados nos tabuleiros costeiros. Existia uma zona de criação que cobria grande parte do pediplano sertanejo e tabuleiros costeiros. Já os pequenos estavam próximos à planície litorânea. Possivelmente os de tamanho médio era a grande maioria.511 A localização dos principais currais quase no centro do território e próximos às vilas facilitava a distribuição de carne e couro para toda a Capitania. Os currais neste período estavam em áreas não aproveitadas para a produção da cana de açúcar, algodão e fumo. O valor das terras destinadas à criação de gado estava condicionado ao tipo de solo, ao clima, a disponibilidade de água, ao tamanho da terra e a atividade econômica desenvolvida. As zonas da pecuária extrapolavam o território de Sergipe, assim por mais que houvesse uma demarcação administrativa as pastagens, fazendas, sítios e currais poderiam ultrapassar estes limites. Isto significa dizer que a principal zona de criação neste momento seria a do Rio São Francisco. Possivelmente nesta área se criava bois, vacas e cavalos para suprir as demandas da Colônia. As zonas dos Rios Piauí e Vaza-Barris estariam ocupadas com gado para o consumo interno e externo. E as dos Rios Sergipe e Japaratuba estariam ocupadas pelo gado de quintal512. Dados ainda imprecisos faz supor que em Sergipe oitocentista existia em média de 150 a 200 currais espalhados pelo território. A pecuária extensiva apresentou certa variedade de tipos de fazendas de gado, desde as mais próximas do litoral às mais distantes do mercado, submetidas também a diferenças de clima e vegetação.513 As fazendas não tinham fronteiras e o gado era criado solto. Uma estância de gado se constituía em geral com três léguas de terra, dispostas ao longo de curso d’água, por uma de largura, sendo meia para cada margem. Na pecuária sergipana havia três

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Cf. José Roberto do Amaral Lapa, O Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 45. Ibid., p. 49. 510 Para a localização geográfica dos currais tomei como base a obra de Adelci Figueiredo Santos e José Augusto Andrade intitulada Nova Geografia de Sergipe publicada pela Secretaria de Estado da Educação e do Desporto e Lazer, em Aracaju nos anos de 1998. 511 Com base nos inventários post mortem de São Cristóvão e cronistas classifiquei os currais de acordo com a quantidade do rebanho, assim um curral de grande porte possuía em média acima de 200 reses, um curral de médio porte tinha 200 a 50 reses, e de pequeno porte abaixo de 50 reses. 512 Ele seria o gado criado próximo às fazendas de cana de açúcar para a alimentação da população local e utilizado como força motriz. 513 Cf. Maria Yedda Leite Linhares, Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal et l’Europe Atlantique, le Brésil et l’Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, vol. XXXIV, Lisboa, Paris, Dez., 1995. p.5. 509

162 ISSN 2358-4912 tipos de propriedades: sítio514, fazenda e curral. As instalações de uma fazenda são sumárias: currais e casas de vivenda, tudo de construção tosca.515 Em geral, os objetos existentes nos currais eram: arames, arreios, cordas, estribeiras, escovas, ferraduras, freios, tesouras, e selas. O gado era diferenciado pela ferra que possuía. Ele era ferrado com dois tipos diferentes. Um para indicar o lugar onde estava localizada a fazenda de criar, e o outro para indicar o proprietário da rês. O gado vacum era do tipo: vacas leiteiras, parideiras, bois capados, de entrega, manso, novilhos, e bezerros; o tipo cavalar era constituído de cavalos mansos, bestas, éguas parideiras, e poldros. Para o século XVIII, a estimativa do rebanho sergipano era de aproximadamente 15.000 reses.516 Este seria considerado de tamanho médio em comparação com outras capitanias respeitando a sua distribuição na área do território. O tamanho do rebanho variava de acordo com as condições de criação, clima, e demanda do mercado interno colonial. As maiores manadas estavam localizadas as margens do Rio São Francisco. O gado mais nobre/corte estava às margens do Rio Piauí e Vaza-Barris. O tamanho do rebanho de corte era pequeno, mas garantia o abastecimento extracapitania com a boa qualidade da carne. As ordens religiosas católicas presentes em Sergipe tais como: jesuítas, capuchinhos, carmelitas, beneditinos e franciscanos se tornaram grandes detentores de terras, gados e engenhos.517 Por exemplo: a ordem de Nossa Senhora do Carmo tinha 14 currais de gado vacum e cavalar no sertão do Palmar, freguesia do Lagarto e 14 currais de gado vacum no Rio de S. Francisco, freguesia da Villa Nova, 1 fazenda na Praia de Santa Maria com 60 cabeças de gado.518 Os principais curraleiros da zona do Rio Vaza-Barris no século XVIII eram Francisca de Barros Pantojá; Francisco Rodrigues Ferreira; Gonçalo Gomes Lobato; João Bernardo de Macedo; Jose Cardozo de Santa Anna e Cardula Maria de Sam Joze; Jose de Souza de Menezes; Joze Figueiredo Prado; Manoel Caetano do Lago; Manoel Joze de Vasconcelos e Figueiredo; Manoel Joze Nunes Coelho de Vasconcellos; Maria Caetana; Paulo Ribeiro e sua mulher Maria de Oliveira; Teodósia Fagundes Pereira.519 No século XVIII, o gado era uma fonte de alimentação importante para os colonos, além de serem empregados como força motriz (nos engenhos, no preparo das lavouras) e meio de transporte (de ferramentas, mercadorias, e pessoas). Os rebanhos sergipanos, além de abastecerem Bahia e Pernambuco, constituíram-se na retaguarda econômica dos engenhos, suprindo suas necessidades de carne e animais para tração e transporte.520 Muitos eram os produtos extraídos do gado, destacava-se a carne como um dos principais alimentos da colônia e o couro largamente utilizado para exportação. Ao mesmo tempo em que alarga o território colonial, a pecuária traz mudanças mais profundas na sociedade luso-brasílica.521 A primeira função econômica da pecuária sergipana foi garantir o abastecimento do mercado interno colonial com carne. Os rebanhos de gado da Capitania de Sergipe tinham que percorrer vários quilômetros através dos caminhos e estradas coloniais para atingir seu mercado consumidor principal: a Praça de Salvador. Em geral, as boiadas que não desciam à Salvador imediatamente na semana em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Denominação usual das terras arrendadas no Sertão. Em Sergipe Colonial era bastante comum o termo sítio de gado. 515 Ibid., p. 187. 516 Dados extraídos de: Sebastião da Rocha Pitta, Historia da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Academia Real, 1730.; Antônio de Santa Maria Jaboatão, Novo Orbe Seráfico Brasílico: crônica dos frades menores da província do Brasil. (1761). Livro I, II e III. Rio de Janeiro: IHGB, 1858-62.; e André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real, 1711. 517 Felisbelo Freire, História de Sergipe. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. 518 AMU, Lisboa. Doc. 6698. Séc. XVIII. Relação dos Mosteiros, Hospícios e Rezidencias da Província de N. S. do Carmo da Bahia e Pernambuco, do numero dos seus Religiosos e das rendas de cada um delles, segundo a conta, que deram os seus respectivos Priores e Vigários Priores. 519 Arquivo do Judiciário de Sergipe. SCR/C.1º OF – Inventários Cx. 01, 02, 03. Inventários post-mortem da Comarca de São Cristóvão. 520 Cf. Maria Thetis Nunes, Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.104. 521 Cf. Luiz F. Alencastro, O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 341.

163 ISSN 2358-4912 que ali chegavam ficavam pastando em fazendas e engenhos da região.522 Nos primeiros “Livros de Registro de Entrada de Gado”523 de Salvador algumas zonas de criação em Sergipe aparecem, entre elas: Rio São Francisco, Rio Real, Lagarto, Porto da Folha, Vaza-Barris e Itabaiana. A carne bovina supria as necessidades na falta da carne de baleia e bacalhau. Ela atendia a demanda alimentar dos colonos de Salvador e Recife, e militares que transitavam por Sergipe em campanha. Em muitos casos se retirava o gado dos currais para a alimentação dos soldados. O objetivo de se criar gado na Capitania era abastecer com carne os mercados da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Uma segunda foi colaborar para a dinâmica do complexo circuito mercantil. Como atividade extensiva na Capitania, no momento da venda do rebanho fazia-se a reunião do rebanho e em tropas caminhavam em direção aos currais próximos às cidades. O gado era vendido por cabeça/arrobas e seu preço variava de acordo com a raça, a qualidade (porte ou leiteiro), a condição física, e o valor da carne no mercado. O mercado extracapitania se desenvolvia entre Bahia-Sergipe, Pernambuco-Sergipe, e Sergipe-Minas. Já o mercado intracapitania se desenvolvia entre São Cristóvão-Litoral, Lagarto-Campos-Itabaiana, Sertão do São Francisco-Ilhas do São Francisco/AL. Desta maneira, o mercado da carne bovina dependia da demanda dos engenhos e das cidades. O mercado do couro dependia da demanda da produção do fumo e das feiras livres. Os currais portáteis foram importantes para estrumar as terras em que se pretendia semear o tabaco. Caracteristicamente a pecuária constituía-se em um sistema cujos mecanismos de comercialização não se encontravam sob seu controle.524 Nas exportações sergipanas, o gado tem parcela destacada, não só o boi em pé como couros secos, sola e cavalos para a cavalaria.525 Além do gado em pé, fornece o sertão a carne seca. É preciso lembrar ainda os subprodutos, couros salgados, curtidos, solas e vaquetas.526 O comércio e o consumo de carne relativamente avultado são propulsores de uma das principais atividades da colônia: a pecuária.527 As boiadas criadas em Sergipe eram um complemento indispensável à economia açucareira.528 O gado por ser um setor de monopólio real colaborava para a dinâmica do complexo circuito mercantil quando ele era um produto em substituição a outro nas exportações. Uma terceira função foi ser o um dos capitais para a expansão da economia açucareira. O gado tornou-se a principal riqueza durante todo o século XVII se estendendo até a segunda metade do século XVIII em Sergipe Colonial. Ainda no oitocento, o cultivo da cana-de-açúcar começou a se expandir em Sergipe, e foi à atividade econômica que logo enriqueceu e destacou o Vale de Cotinguiba superando o comércio de gado. Com a decadência da pecuária, muitos criadores migraram para a produção de açúcar. Assim, possivelmente, a renda gerada pela pecuária com a venda dos sítios, fazendas, e currais; pelo comércio da carne, e exportação de couros foi aplicada na expansão da economia açucareira. Se junta a este capital a concessão de crédito dado pela Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão e Salvador, e ordens religiosas e irmandades, o capital do tabaco, e investimentos e créditos vindos da Bahia, Alagoas e Pernambuco. Apesar de perder espaço nas exportações da Capitania, a pecuária se manteve como atividade econômica importante durante a expansão do açúcar, algodão e fumo durante este período colonial. Uma quarta foi acumular e concentrar riqueza nas mãos de um pequeno grupo. No século XVIII, a pecuária já não era a principal forma de acumular riqueza, mas a carne e couro eram importantes produtos de exportação de São Cristóvão. Na atividade criatória quem realmente acumulou riqueza foram os donos ou feitores dos currais, os mercadores, os curraleiros/criadores de gado, os marchantes, os transportadores de rebanhos e os donos de manufaturas de couro. A forma como se realiza a acumulação de capital dentro da economia criatória induzia a uma permanente expansão, sempre que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Cf. Juliana da Silva Henrique, Os “Livros de Registro de Entrada de Gado” da Feira de Capoame (1784-1811). IV Conferência Internacional de História Econômica & VI Encontro de Pós-Graduação em História Econômica. São Paulo: ABPHE, 2012. 523 Arquivo Histórico Municipal de Salvador. Fundo: Câmara, Seção:Tesouro, Sub-seção: Matadouro, Itens 172. Livros de Registro de Entrada de Gado de 1784-1811. 524 Cf. Francisco Carlos Teixeira da Silva, Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p.146. 525 Cf. Maria Thetis Nunes, Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 35. 526 Cf. Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Editora. Brasiliense, 23" edição, 1994.p.191. 527 Ibid., p.182. 528 Cf. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., p.340.

164 ISSN 2358-4912 houvesse terras para ocupar, independentemente das condições de procura.529 Em contraposição aos mestiços e escravos libertos, vaqueiros e feitores pobres. O gado era comercializado internamente na Capitania e oferecia um mercado local fiel nas feiras livres. Ainda no século XVIII, em Laranjeiras/Sergipe, centro açucareiro, reunia uma imensa feira de gado, abastecendo os engenhos da capitania, enquanto a feira de Porto da Folha concentrava, à beira-rio, os artigos do Sertão.530 Este mercado possibilitou variar e sustentar os rebanhos até quase o fim do período imperial. A demanda por vaca, boi, cavalos e bestas em Sergipe advinha do setor açucareiro das principais regiões produtoras, das feiras dos centros urbanos da região, do fabrico de produtos alimentícios e do couro. O gado foi também uma mercadoria moeda. Ele era usado como moeda para fazer trocas, e pagar dívidas. Assim, aqueles poucos que permaneceram na pecuária acumularam e concentraram riqueza. Outra foi aumentar a riqueza pública através da tributação sobre o gado. Os impostos cobrados sobre os produtos da pecuária eram uma fonte de receita importante para a fazenda real da Capitania e da Coroa. Os principais eram: a finta, o dízimo sobre o gado, os direitos sobre animais, partido ao curraleiro criador, donativo imposto nos criadores de gado, e a taxa sobre bestas novas. Além de taxas alfandegárias cobradas sobre os couros curtidos, queijo e manteiga. Havia tributos cobrados nas travessias do gado nas barcas pelas passagens dos rios. Com tantos impostos era grande a sonegação de reses por parte dos curraleiros nos censos e inventários. “A expansão do gado, ocupando extensas áreas do sertão brasileiro, fomentando o comércio inter-regional, e a exportação do couro, mostram a sua importância na formação da riqueza colonial e de particulares”.531 Em 1782, a criação de gado já se apresentava decadente. É tão mau o método de criar, que os gados andam misturados os de um com os de outros donos, e só se distinguem pela marca do ferro, e sinal das orelhas.532 Nas palavras de Antônio Sousa, “antigamente criavam-se muitos gados nas grandes campinas, que tem pela beira-costa, e com tanta abundância, que se exportava algum para o Rio de Janeiro; porém não só se não exporta mais, compram muitas boiadas, e cavalhadas aos Mineiros que anualmente descem, porque aquelas campinas provando antigamente bem para a criação de gados, tanto vacum , como cavalar , hoje tem desmerecido por muitos motivos: 1º pela pequena qualidade dos gados; 2° pela escassez do leite nas vacas, e pouca manteiga, ou nata no mesmo leite; e pelo pouco sebo nos animais; 3° por darem as vacas por muito tempo de mamar aos bezerros, e falharem muitas parições; antigamente se contavam maravilhas não só dos pastos, corno dos animais, e suas produções”.533 Além das secas e da concorrência com outros centros da pecuária, estas foram em conjunto às causas da decadência da pecuária em Sergipe. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusão Por que o gado é um elemento da riqueza? Porque ele foi uma das medidas da riqueza possuída pelos colonoos. Já que ter rês constituía um importante diferencial entre as famílias. E ainda a riqueza estava associada à posse de gado. Mesmo com a economia em transição da pecuária para o açúcar, o gado era extremamente presente e mantinha-se como uma referência em muitas atividades produtivas. A aquisição de rês representava um objetivo a atingir: manter a tradição, o poder e o status. Nesta sociedade, o gado tinha um papel central no raciocínio dos colonos. O tamanho da manada representava uma riqueza simbólica e um elemento fundamental para o estabelecimento do estatuto dos curraleiros e por extensão, dos membros da família. O estatuto de um indivíduo nesta sociedade é definido pelo trinômio: gado, terra, e escravos como símbolo de riqueza e prestígio. O gado constituiu uma riqueza e era uma forma de conservar e reproduzir a vida material, social e cultural. A pecuária em Sergipe no século XVIII era caracterizada por: reses de boa qualidade, criadas em currais de médio porte, e muitas estâncias de criação. Criava-se o gado com mão de obra ora escrava, ora livre. O principal destino do gado era o abastecimento do mercado interno colonial. Na Capitania 529

Cf. Celso Furtado, Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. p.62. Cf. Francisco Carlos Teixeira da Silva, Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p.145. 531 Francisco Carlos Teixeira da Silva, op. cit., p.132. 532 Cf. Antônio Muniz de Sousa, Viagens e observações de hum brasileiro...Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1834. p.41 533 Antônio Muniz de Sousa, op. cit., p.124-125. 530

165 ISSN 2358-4912 de Sergipe, um indivíduo rico era aquele que possuía gado, terra, e escravos. O gado como elemento da riqueza significava um importante meio de mobilidade na hierarquia social. Se a riqueza é a situação que se refere à abundância na posse de gado e terra e se aplica à condição de alguém ter em abundância um determinado bem de valor. Esta riqueza implica um acordo social sobre o direito de propriedade. Logo, a riqueza está relacionado à estratificação social e a condição de grupo, poder e status. Nesta sociedade, aquele que não gerava riqueza e não consumia determinados produtos de luxo estava à margem da sociedade e do estilo de vida padrão. A posse e o nível de poder de compra hierarquizavam as relações sociais. Um bem para ser considerado como riqueza, precisava ser útil e sua utilidade era percebida quando se satisfazia as necessidades e desejos do indivíduo. Assim, o valor do gado como riqueza está condicionada ao seu uso, sua função, e seu papel junto aos indivíduos, e este valor é medido pelo seu caráter socioeconômico. Concluímos que mesmo com a riqueza transitando do gado para o açúcar, possuir gado ainda era um sinal de poder econômico e reconhecimento social.

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Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real, 1711. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1967. HENRIQUE, Juliana da Silva. Os “Livros de Registro de Entrada de Gado” da Feira de Capoame (17841811). IV Conferência Internacional de História Econômica & VI Encontro de Pós-Graduação em História Econômica. São Paulo: ABPHE, 2012. JABOATÃO, Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico: crônica dos frades menores da província do Brasil. (1761). Livro I, II e III. Rio de Janeiro: IHGB, 1858-62. LAPA, José Roberto do Amaral. O Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982. LINHARES, Maria Yedda Leite. Pecuária, Alimentos e Sistemas Agrários no Brasil (Séculos XVII e XVIII). Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Le Portugal et l’Europe Atlantique, le Brésil et l’Amérique Latine. Mélanges offerts à Fréderic Mauro, vol. XXXIV, Lisboa, Paris, Dez., 1995. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. NUNES, Maria Thetis. Sergipe colonial I. São Cristóvão: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. PITTA, Sebastião da Rocha. Historia da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Academia Real, 1730. PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Editora. Brasiliense, 23" edição, 1994. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e Formação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8. SOUSA, Antônio Muniz de. Viagens e observações de hum brasileiro...Rio de Janeiro: Typographia Americana, 1834.

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O “SERVIÇO DAS ARMAS”: PATENTES E MILITARES NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB O A\REINADO JOSEFINO (1750-1777) André Fellipe dos Santos534 Considerações iniciais A confirmação das patentes militares, concedidas pelos capitães-mores no período colonial, era necessária, pois com ela era possível o solicitante galgar uma carreira no serviço das armas e na burocracia da Coroa portuguesa aquele mundo de Antigo Regime. O que se observa na documentação referente à Capitania do Rio Grande do Norte é que os militares que atuavam nessa região solicitavam uma confirmação régia, reforçando, portanto, a submissão à Coroa e busca de seus objetivos de ascensão social. Este artigo tem por objetivo analisar, a partir do estudo de cartas patentes e dos requerimentos de confirmação das mesmas, a configuração militar na Capitania do Rio Grande, observando os cargos distribuídos, bem como aonde essas patentes se concentravam; observando também é a estruturação desse documento, bem como a possibilidade de uma construção de perfil e trajetória dos “homens d’armas” estudados. Trata-se de militares, pelas observações feitas, que pertencem a grupos de ordenança. Os documentos utilizados estão localizados nos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU-RN), no período do reinado de D. José (1751-1777). Deve-se levar em consideração que nessa temporalidade (posterior à “Guerra dos Bárbaros”), a Capitania do Rio Grande já se encontrava num certo nível de estabilidade em relação aos conflitos com os indígenas. As tropas militares no contexto da Capitania do Rio Grande do Norte Para manter o controle sobre a população de suas conquistas ultramarinas, a Coroa portuguesa desempenhou uma série de procedimentos que visavam à proteção contra invasões estrangeiras, a defesa contra os indígenas rebeldes, o estabelecimento da ordem na colônia que, nesse sentido, teve nos organismos militares um dos responsáveis para assegurar as pretensões da Coroa portuguesa no “Brasil colônia”. O “Serviço das Armas”, portanto, esteve ligado a um sistema que serviu de base para sustentação da monarquia portuguesa com mercês, privilégios, isenções, desde a gestação da sociedade colonial535. Observa-se que as organizações militares adquiriam características diferentes em cada uma das partes do ultramar português, no que diz respeito à estruturação e composição dessas.536 As tropas de ordenança, por exemplo, que serviram durante o período colonial são apenas uma parte da estruturação militar portuguesa. No decorrer da História Militar, John Keegan classifica que há seis tipos principais em que os homens podem se organizar militarmente: o guerreiro, o mercenário, o escravo, a tropa regular, a milícia, e o recruta537. Tratando-se da organização militar no contexto das Capitanias do Norte no Estado do Brasil , em especial na zona açucareira, nota-se a presença de três tropas que predominavam, a saber:

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Graduando em História, UFRN, Orientador: Lígio José de Oliveira Maia, [email protected] GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 58. 536 Idem. p. 60. 537 KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo. Companhia das Letras. 1995. Apud SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, p. 13. 535

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ISSN 2358-4912 Pela tropa de linha, ou regular, que corresponde ao exército profissional e burocrático português; pelas milícias, o conjunto de tropas auxiliares de reserva, gratuitas, de serviço voluntário; e pelas 538 ordenanças, o agrupamento dos homens restantes em idade militar de cada freguesia .

As tropas regulares ou simplesmente “tropas pagas” tinham um caráter de atuação permanente, profissional e pagas. Segundo Silva, essas tropas concentravam-se em especial em centros urbanos, em povoações cuja influência política era maior, além de guarnecerem fortalezas. Trata-se de uma tropa na qual o recrutamento era obrigatório. O perfil dos homens que compunham esse grupo militar era de solteiros e das mais baixas camadas sociais: vadios539 e criminosos, oficiais sem emprego ou sem renda. O ingresso a essas tropas se dava de maneira subversiva sobre as camadas inferiores. Em relação à manutenção dessas tropas Gomes informa que: Diante da impossibilidade ou indisposição da Coroa e das câmaras em arcar com as despesas de manutenção das tropas regulares, o investimento na mobilização e manutenção de efetivos pagos ficou restrito a regiões estratégicas e momentos de declarada tensão. Com a comunicação da descoberta do ouro na região das Minas Gerais na década de 1690, por exemplo, foram criadas companhias de Dragões de Cavalaria, formadas por soldados recrutados em Portugal, para reforçar o controle régio sobre a região e diminuir o poder e participação dos terços de milícias e 540 ordenanças comandados pelos poderosos locais .

Essa “impossibilidade” ou “indisposição”, como colocou Gomes, fez com que outros componentes desse organismo militar tivessem maior representatividade nas capitanias do Norte. As Milícias e as tropas de ordenança diferenciam-se das tropas regulares por serem de caráter local, ou seja, eram grupos locais que se organizam militarmente. As milícias aparecem como um conjunto de tropas auxiliares, gratuitas e de serviço voluntário. As tropas milicianas concentram-se, sobretudo, nas principais vilas da zona açucareira e também nas vilas sertanejas, a partir do século XVIII541. A composição dessas tropas se dava de forma bastante seletiva, eram homens que, de maneira geral, ocupavam uma mesma qualidade étnica e social. A participação nessas tropas era condicionada a renda suficiente, por parte do ingressante, para manter-se com armamentos e fardamentos, além do sustento dos demais integrantes dessas tropas, visto que elas não eram remuneradas. A presença desses homens considerados respeitados, abonados, trouxe às milícias um prestígio e status social para quem dela participasse. Essas milícias consistiam em terços e companhias de infantaria e cavalaria. A característica volátil dessas milícias permitia que elas, assim como as tropas regulares, participassem de ações em outros locais, deslocando-se do seu local de origem. Essas eram inclusive solicitadas pela Coroa para prestação de serviços, como aparece no ofício do governador da Capitania de Pernambuco, em 1775 ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, sobre o envio de um batalhão de Henriques e outro de pardos, para ser entregue ao vice-rei do Estado do Brasil542. Já em relação às ordenanças, observa-se que a criação desses corpos em Portugal deve-se à tentativa de reformar a antiga organização militar medieval. Esses encontraram resistência frente à população

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SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003, p. 142. 539 Silva define os vadios como aqueles que são excluídos dos meios de produção. Dentro da estrutura social canavieira são descritos como vagabundos, gente sem patrão ou ofício, constituído muitas vezes por escravos libertos ou brancos inválidos. Os vadios constituem um grupo considerado improdutivo, desligado de qualquer atividade, tornando-se marginais perante a sociedade. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.p. 15-18. 540 GOMES, José Eudes. Op. cit., p.107 541 SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit. p. 143 542 AHU – Pernambuco , Papéis Avulsos, Caixa 120, Doc. 9177.

168 ISSN 2358-4912 masculina portuguesa, pois sua maneira de arregimentá-los rompia com a tradição medieval “de que a obrigação de comparecimento a esse tipo de serviço só se justificava em caso de invasão do reino”543. As ordenanças foram organizações que se formaram localmente. Deveriam ser organizadas em terços, companhias e esquadras. Um terço era composto por aproximadamente 2500 homens. Esses eram divididos em 10 companhias que por sua vez eram formadas por 10 esquadras que possuíam 25 homens cada. Cada terço era comandado por um capitão-mor de ordenança. A eleição desses por parte da câmara só ocorria em caso de ausência de senhores da terra, ou se esses senhores não morassem na terra, ou ainda se o rei não nomeasse ninguém para o posto. Cada capitão-mor de ordenança escolhia os seus oficiais auxiliares (sargento-mor, alferes)544. Sobre as eleições desses cargos oficiais, Costa aponta que deveriam ser obrigatoriamente preenchidos por “pessoas principais da terra”, respeitando assim a organização hierárquica lusitana545. No Rio Grande observa-se nas cartas patentes expressões referentes aos oficiais como homens abonados, afazendados, homem nobre ou de conhecida nobreza, das principais famílias, reforçando, portanto, o prestígio por quem o exercia e de quem detinha esses cargos. Com isso, nota-se na criação das tropas de ordenanças um caráter de reformulação, a fim de atender as necessidades militares da Coroa de forma mais organizada, disciplinada, e sem deixar que esta não tivesse o controle sobre esta organização. As cartas patentes, e as requisições de sua confirmação reforçam esse controle, além de nos mostrar uma parte do perfil dos oficiais de ordenança.

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As cartas patentes e o panorama militar no Rio Grande do Norte Dentro da análise das patentes é preciso definir de que tipo de tropas aparece nos documentos. Alguns aspectos levam a crer que são de ordenança: em primeiro lugar, essas tropas não são pagas. Em algumas dessas cartas existem a expressão “não haverá soldo algum da Real Fazenda”, ou seja, não há despesas com esses oficiais. Outro aspecto é o próprio termo “ordenança” que aparece em suas patentes (sargento-mor de infantaria das ordenanças, coronel do regimento de infantaria das ordenanças). Assim, abordar-se-ão tais cargos enquanto composto por oficialatos de ordenanças. Raphael Bluteau define a carta patente como um documento em “que o superior declarava que dava licença ao seu súdito” para “exercitar algum ofício”546. O superior, no caso das patentes analisadas, é o capitão-mor da Capitania do Rio Grande. Trata-se de documentos padronizados, onde se pode observar algumas informações referentes ao perfil e trajetória dos escolhidos. No trecho a seguir, da carta patente de Francisco da Costa Vasconcellos observamos esses aspectos anteriormente citados: João Coutinho de Bargança, Cappitão Mor da Cidade do Natal Cappitania do Rio Grande do Norte, a cujo cargo está o Governo della, por S.[Sua] Mag.e[Majestade] Fidelliçima que Deus Goarde &tc [etc]. Faço saber, aos que esta minha carta patente virem, que porquanto se acha vago o posto de Coronel de Cavalaria do Regimento desta [...] e com effeyto nomearão entre os quais foy hum delles, Françisco da Costa de Vasconçellos, Capitão do mesmo Regimento, huma das principais pessoas desta Cappitania, e dos mais afazendados della; por tal, e por me constar por documentos, que me aprezentou, haver servido nas tropas pagas da Cidade da Parahiba de Soldado da mesma, e nesta e no dito Regimento actualmente tem exercido de Capitão de huma das Companhias delle, das honze que este se compoem, e no Sennado da Camara desta Cidade ocupado os melhores lugares della, como sejão, o de Juis ordinr.º[ordinário], e outros mais que me consta ter servido com muyta satisfação, e Zello do Real Serviço, sempre com louvável procedimento, e melhor obediência em tudo quanto por mim, pellos meus antecessores, e seus offiçiaes mayores, lhe tem sido emcarregado

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Para maiores informações sobre o contexto do surgimento das ordenanças ver: GOMES, José Eudes. Op. cit., p. 75 -77. 544 GOMES, José Eudes. Op. cit. p 77. 545 COSTA, Fernando Dores. Insubmissão: aversão e inconformidade sociais perante os constrangimentos do estilo militar em Portugal no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade de Nova Lisboa, Lisboa, 2005 Apud GOMES, José Eudes. Op. cit. p. 78 546 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. [vol.6]. Coimbra:, 1712.

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ISSN 2358-4912 pertençente ao serviço e por esperar delle que daqui em diante, se haverá da mesma maneira, em 547 muyto como deve a boa confiança que faço ao servisso de Sua pessoa.”(grifos meus) .

A análise dessas cartas patentes permite-nos recolher informações relevantes. Abril escreve que o estudo dessas patentes nos ajuda a “perceber a importância de uma trajetória administrativa em colônias: dos caminhos que um indivíduo constrói ao longo do ofício em que está encarregado”548. Como dito anteriormente, o responsável pela distribuição dos cargos militares era o capitão-mor. Segundo o Regimento dos Capitães-Mores [1570] a “eleição dos Capitães das Companhias, Alferes, Sargentos e mais Oficiais delas, se fará em Câmara pelos Oficiais dela e pessoas que costumam andar na Governança dos tais lugares”; na Câmara ainda ocorria o juramento dos Santos Evangelhos desses oficiais.549 Outra informação importante presente nas patentes é o que diz respeito ao ‘beneficiado’, podendo assim traçar um pouco do perfil dos oficiais indicados, as trajetórias desses indivíduos e quem eram e aonde serviram. No geral, eram homens já reconhecidos e influentes na sociedade, sendo eles “das principais pessoas desta capitania”, afazendados ou abonados, e que já possuíam algum status, reconhecimento e prestígio nas ribeiras aonde atuavam. Eles já possuíam alguma experiência militar, tal como registra a carta patente anterior que concedia o posto de Coronel de Cavalaria a Francisco da Costa de Vasconcelos; como menciona o documento, antes de receber a mercê no dito posto consta “haver servido nas tropas pagas da Cidade da Parahiba de Soldado da mesma, e nesta e no dito Regimento actualmente tem exercido de Capitão de huma das Companhias”550. O exemplo da patente do coronel Francisco ainda apresenta um ponto relevante no conteúdo desses documentos, e que contou como um dos requisitos que qualificaram o dito oficial para assumir o tal cargo; o mesmo era um dos homens que compunha o Senado da Câmara da Paraíba onde ocupou um enobrecido cargo de Juiz Ordinário. Além de cargos militares, as patentes ainda podem apresentar quais serviços que foram realizados pelo beneficiado. Muitos desses homens tinham nesses postos um status de privilégio na sociedade colonial, bem como dentro da instituição militar. Aos oficiais superiores cabia honrar e estimar qualquer oficial, aos “subalternos e soldados da dita Ribeira lhe obedeção cumprão e guardem suas ordens de palavra e por escrito tão pontual e inteiramente como devem, e são obrigados”551. Outro ponto relevante presente nas cartas patentes é a razão pela qual o posto em questão se achava vago: alguns por ‘deixação’, isto é, porque abandonaram o posto; outros porque o antecessor foi promovido ou transferido para outra ribeira; há também vaga por falecimento, entre outros fatores. Um caso divergente deste quadro diz respeito a nomeação de Davi Dantas de Faria no posto de Coronel de Cavalaria do Regimento do Assú, cargo até então ocupado por Antonio da Rocha Bezerra, que foi deposto do cargo por incapacidade. A carta mostra que os moradores desta Ribeira fizeram uma representação ao capitão mor Pedro de Albuquerque e Mello contra Antonio da Rocha “das insolências, e perturbações” por “ser hum homem pitulante, e da sua pitulançia, tem resultado naquella dita Ribeyra muitas das Ordens, em disservissos de Sua Majestade”; essas atitudes renderam ao senhor Antonio da Rocha uma sentença do Ouvidor Geral da Paraíba “na qual lhe deu tres annos de degredo para hum dos lugares de Africa, e comdemnação de tresentos mill para as despesas da Justiça pella desobediência que fes a mesma Justiça, e atendendo eu mayores desordens naquella Ribeyra”552. Com isso observamos que o fato de possuir uma patente, não garantia ao beneficiado a permanência no cargo. A partir da análise dessas cartas patentes e requerimentos de confirmação das mesmas, constrói-se o seguinte quadro:

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AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 421. ABRIL, Victor Hugo. Centralidades repartidas de poder: governo colonial e instituições locais. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 549 Regimento dos Capitães-Mores [1570]. Disponível em: . Acesso em 01/05/2014. 550 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 7, Doc. 421. 551 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 368. 552 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 397. 548

170 ISSN 2358-4912 Distribuição de Cartas Patente na Capitania do Rio Grande no reinado josefino (1750-1777) Favorecido Tipo de Patente Local Ano Capitão Mor Manuel Coelho Capitão de Infantaria Ribeira do 1751 Francisco Xavier de Serrão Potengi Miranda Henriques Gaspar de Paiva Capitão de Infantaria Ribeira de [anterior Francisco Xavier de Baracho Goyaninha a 1751] Miranda Henriques Antonio de Paiva Capitão de Infantaria Ribeira do 1740 Francisco Xavier de da Rocha Mopebu Miranda Henriques Bernardo de Faria Capitão de cavalos Ribeira do 1742 Francisco Xavier de e Freitas Cunhaú Miranda Henriques Maximiliano Sargento-Mor Ribeira do 1750 Francisco Xavier de Pereira Torres Potengi Miranda Henriques João Gonçalves Coronel do Regimento de Ribeira do 1751 Pedro de de Melo Cavalaria Seridó Albuquerque e Melo Gonçalo Freire de Coronel do Regimento de Capitania do 1752 Pedro de Amorim Infantaria Rio Grande Albuquerque e Melo Sebastião Dantas Tenente-Coronel do Capitania do 1751 Pedro de Correia Regimento de Cavalaria Rio Grande Albuquerque e Melo Antonio de Paiva Sargento-Mor de Infantaria Cidade do 1754 Pedro de da Rocha Natal Albuquerque e Melo João Francisco Capitão de Cavalaria Capitania do [anterior Pedro de Ribeiro Rio Grande a 1754] Albuquerque e Melo Jerônimo Cabral Sargento-Mor de Cavalaria Ribeira do Açu 1755 Pedro de de Macedo Albuquerque e Melo David Dantas de Coronel de Cavalaria Ribeira do Açu 1756 Pedro de Faria Albuquerque e Melo Alexandre Coronel de Cavalaria Ribeira do 1755 Pedro de Rodrigues da Seridó Albuquerque e Melo Cruz Cipriano Lopes Coronel de Cavalaria Ribeira do 1758 João Coutinho de Galvão Seridó Bragança Francisco da Coronel de Cavalaria Cidade do 1759 João Coutinho de Costa de Natal Bragança Vasconcelos José da Costa de Capitão de Cavalos Ribeira do Açu 1758 João Coutinho de Carvalho Bragança Sebastião Dantas Tenente-Coronel de Cavalos Cidade do 1755 João Coutinho de Correia Natal Bragança Manuel Antonio Capitão de Cavalos Ribeira do 1755 João Coutinho de das Neves Seridó Bragança Francisco Capitão de Cavalos Ribeira do 1758 João Coutinho de Ferreira Souto Mossoró Bragança V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

(Fonte: AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 351; Caixa. 6, Doc. 357; Caixa 6, Doc. 358; Caixa 6, Doc. 359; Caixa 6, Doc. 368; Caixa 6, Doc. 369; Caixa 6, Doc. 370; Caixa 6, Doc. 383; Caixa 6, Doc. 386; Caixa 6, Doc. 387; Caixa 6, Doc. 396; Caixa 7, Doc. 397; Caixa 7, Doc. 406; Caixa 7, Doc. 420; Caixa 7, Doc. 421; Caixa 7, Doc. 423; Caixa 7, Doc. 424; Caixa 7, Doc. 427; Caixa 7, Doc. 428.)

No quadro, observa-se um levantamento geral das informações contidas nessas patentes: o nome do favorecido, a patente em questão, o local em que foi designado, bem como o ano e o Capitão Mor que a concedeu. Outro dado importante é a disposição dessas patentes, pois nota-se que, em sua maioria, são oficiais designados para tropas de cavalaria. O quadro ainda permite-nos perceber a distribuição dessas patentes por localidades. Das 19 patentes analisadas, 4 são para a Ribeira do Seridó, 3 para capitania do Rio Grande; 2 para as Ribeira do Assú, Potengi e cidade do Natal; e 1 para as Ribeiras do Mipibu e Cunhau. O número reduzido de

171 ISSN 2358-4912 patentes levantadas até aqui, não nos permite construir um quadro mais completo, ou chegar a uma hipótese mais abrangente, senão das questões até agora disponibilizadas e já discutidas. Ainda é possível através de cruzamento de fontes, observar quem eram esses homens, seus núcleos familiares e algumas de suas posses, nesse sentido, foi possível obter dados de dois desses homens d’armas até aqui. O coronel de milícias Alexandre Rodrigues da Cruz era português e possuiu uma criação de gado na fazenda Acauã Velha, no Acari. Além disso, o coronel ainda possuiu uma sesmaria na Serra do Dorna, em Currais Novos-RN. Foi casado com Vicência Lins de Vasconcelos e tiveram duas filhas. A primeira, Ana Lins de Vasconcelos, casou-se com Antônio de Sá Barroso, e a segunda, Teresa Lins de Vasconcelos, que casou-se com Francisco Cardoso dos Santos, um português, que residia no Acari. A esposa do coronel, segundo indícios, também era natural de Portugal, e teria sido parenta muito próxima de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, esposa do Coronel Cipriano Lopes Galvão, do Totoró553. O Coronel Cipriano Lopes Galvão era natural de Igaraçu, Pernambuco. Em 1721, ele foi inventariante dos bens deixados por seu pai, cujo inventário processou-se em Goianinha, na Capitania do Rio Grande do Norte. Cipriano Lopes Galvão foi o primeiro Coronel do Regimento de Cavalaria da Ribeira do Seridó, o mesmo adquiriu uma sesmaria por nome Totoró, aonde fixou uma fazenda de criação de gado. O dito coronel ainda possui, na Serra de Santana, um aviamento para o fabrico de farinha de mandioca. Ele foi pai do Capitão-mor da Capitania do Rio Grande do Norte Cipriano Lopes Galvão554. A partir da análise desses dois personagens é possível observar um pouco da figura desses homens d’armas. Após receber as patentes, os militares requeriam a confirmação desses postos ao rei. Ao requerer a confirmação das patentes ao rei os oficiais reforçam a submissão à Coroa e busca de seus objetivos, além de atenuar o fato de que exercer um posto militar não é algo permanente. Em muitos desses documentos não há o registro da confirmação dessas patentes. Ao confirmar a ‘validade’ dessas patentes o rei dava o parecer favorável solicitante como é observado no trecho à seguir: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Faço saber a vos Capitam Mor da Cappitania do Rio Grande, que Gaspar de Payva Baracho, requereu no meu Concelho Ultramarino a confirmaram da Patente que lhe passou o Capm[capitão] Mor vosso antessessor Francisco Xavier de Miranda Henriques, do posto de Capitão de Infantaria da Ordenança da Ribeyra de Goyaninha, do Regimento de que he Coronel Theodozio Freire de 555 Amorim .

O caso de Gaspar de Paiva Baracho nos faz pensar em outras situações, pois o dito oficial só requereu ao rei a confirmação da sua patente onze anos após ter recebido sua carta pelo capitão mor, e já no ano seguinte recebeu a confirmação por parte do rei. Essa situação repete-se com a de Bernardo de Faria e Freitas que requereu a confirmação nove anos depois de ter recebido a carta patente, e no ano seguinte também recebe a confirmação do rei. Além desses dois casos ainda existe o de Antonio de Paiva da Rocha que requereu confirmação onze anos após ter recebido sua carta patente por mãos do capitão-mor da Capitania do Rio Grande, Francisco Xavier de Miranda Henriques556. Ao observar esses casos surge o questionamento do por que na demora em solicitar a confirmação dessas patentes. Considerações finais Este trabalho teve o objetivo de abordar um tipo de documentação ainda pouco explorado na historiografia: as cartas patentes e os requerimentos de confirmação das mesmas. Ao estudá-los, pôdese notar que são documentos que dão grande contribuição para a construção historiográfica militar. Apesar de serem padronizados, contém informações que, com cruzamento de dados e com uso de outras fontes, permite-nos o traçado do perfil desses oficiais, além de características militares e políticas da Capitania do Rio Grande.

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MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Senado Federal, Centro gráfico, 1981, p.251. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Op. cit., p. 369-373. 555 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 357. 556 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 6, Doc. 358. 554

172 ISSN 2358-4912 Trata-se de uma abordagem inicial que será aprofundada posteriormente, tal estudo permite-nos atentar para as possibilidades ao estudar as cartas patentes e os requerimentos de confirmação, além de uma contribuição para a construção de uma História Militar do Rio Grande do Norte.

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Referências ABRIL, Victor Hugo. Centralidades repartidas de poder: governo colonial e instituições locais. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra, 1712, vol. 06. BOXER, Charles. O império marítimo português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas Famílias do Seridó. Brasília: Senado Federal, Centro gráfico, 1981. RODRIGUES, Victor Luís Gaspar. As companhias de ordenança no estado português da Índia (15101580): ensaios de criação, razões do insucesso. Oceanos, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n. 19, p. 212-218, 1994. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001. ______. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003.

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ISSN 2358-4912 A ATUAÇÃO DO OUVIDOR LUÍS FERREIRA DE ARAÚJO E AZEVEDO NOS SEQUESTROS DOS BENS DE INCONFIDENTES MINEIROS: O CASO DE HIPÓLITA JACINTA TEIXEIRA DE MELO557 André Figueiredo Rodrigues558 Existem poucos dados biográficos sobre Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Sabe-se que nasceu em 1722, pois na ocasião da Inconfidência Mineira tinha 67 anos. Ele veio de Angola, onde era juiz de fora, para as Minas Gerais nomeado ouvidor, corregedor e provedor dos defuntos e ausentes da comarca do Rio das Mortes por Decreto, de 10 de abril de 1779, tomando posse em São João del-Rei em 22 de abril de 1780.559 Poucos meses antes do final de seu mandato, oficiais da Câmara de São José, atual Tiradentes, enviaram representação ao Conselho Ultramarino solicitando a permanência do ouvidor no cargo. Em maio de 1783, nova representação pedia a prorrogação de sua serventia. Essas solicitações foram tão positivas que exerceu o cargo de ouvidor por três triênios consecutivos, de 1780 a 1790.560 O mestre de campo Inácio Correia Pamplona, em depoimento como testemunha na devassa mineira, em 30 de junho de 1789, informou que o ouvidor Luís Ferreira participou do batizado de dois dos filhos de Inácio José de Alvarenga Peixoto, realizado na vila de São João, em 8 de outubro de 1788, cerimônia que reuniu os principais líderes da Conjuração Mineira e transformara-se em mais uma das reuniões sobre o levante.561 Não se pode concluir, como lembrou Márcio Jardim, que apenas por presenciar a festa do batizado tenha sido ele um inconfidente. Entretanto, como o denunciante Pamplona lembrou os nomes de Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga, Luís Vaz de Toledo Piza e padre Carlos Correia de Toledo e Melo, todos estes revoltosos e efetivamente envolvidos no projeto de uma sedição em Minas Gerais, surgiu a suspeita de que Luís Ferreira fosse um dos importantes conspiradores da comarca do Rio das Mortes que não foram presos.562 A cumplicidade de Luís Ferreira pelas ideias e amizade que mantinha com pessoas detidas como inconfidentes foi denunciada em carta anônima dirigida ao visconde de Barbacena. Com riqueza de detalhes e narrando acontecimentos da vida são-joanense, seu autor enumerou acusações de irregularidades cometidas pelo ouvidor no exercício de seu ofício, inclusive algumas atitudes e atos

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Este texto, com modificações, se baseia em informações extraídas de nossa tese de doutorado Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise dos sequestros de bens dos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes, defendida no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), em 2008, e que contou com o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – processo nº 2004/15892-5. Vale a ressalva que “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”. 558 Universidade Estadual Paulista (UNESP), câmpus de Assis, [email protected] 559 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Manuscritos Avulsos da Capitania de Minas Gerais [doravante AHU/MAMG], cx. 117, doc. 81 – Carta de D. Rodrigo José de Menezes, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a ineficiência do Tribunal da Junta da Fazenda e solicitando providências a fim de alterar tal situação. Vila Rica, 31/12/1781; AHU/MAMG, cx. 114, doc. 36 – Decreto de D. Maria I, concedendo ao bacharel Luís Antônio de Araújo e Azevedo o lugar de ouvidor do Rio das Mortes. Lisboa, 10/4/1779; BIBLIOTECA MUNICIPAL BAPTISTA CAETANO D’ALMEIDA. Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei, ACOR 06, fls. 131-132 – Auto de posse dado ao dr. Luís Ferreira de Araújo e Azevedo do lugar de Ouvidor, Corregedor e Provedor dos Defuntos e Ausentes da comarca do Rio das Mortes. 560 AHU/MAMG, cx. 118, doc. 10 – Representação dos oficiais da Câmara de São José, pedindo a continuação da ocupação no cargo de ouvidor-geral da Comarca do Rio das Mortes, por Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São José, 6/2/1782; AHU/MAMG, cx. 119, doc. 34 – Representação dos oficiais da Câmara de São José, pedindo a prorrogação da serventia de Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. São José, 17/5/1783. 561 ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Códice 5: Inconfidência em Minas Gerais – Levante de Tiradentes [de agora em diante ANRJ/ADIM-C5], v. 1, fl. 88v – Inquirição da testemunha Inácio Correia Pamplona. Vila Rica, 30/6/1789. 562 JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989, p. 245.

174 ISSN 2358-4912 que demonstraram ser o denunciado partícipe do movimento de contestação que se preparava em Minas.563 Apesar de a maioria dos fatos alegados contra o ouvidor ser documentável, a interpretação é desafetuosa e a incriminação despida de prova material. Mesmo com a apresentação de nomes de testemunhas que comprovariam as afirmações, o governador decidiu não aprofundar as investigações sobre os suspeitos. De acordo com a carta-denúncia, Luís Ferreira era corrupto, demonstrava sentimentos antilusitanos em público e era amigo particular do padre Toledo e de seu irmão Luís Vaz, de José Aires Gomes, de Francisco Antônio de Oliveira Lopes e de Alvarenga Peixoto. Acusações, aliás, semelhante às feitas pelo governador dom Rodrigo José de Meneses contra ele, em carta de 31 de dezembro de 1781, ao ministro Martinho de Melo e Castro, ao acusá-lo de arrogante, corrupto, desordeiro e ignorante.564 Ignorância presente no modo como se expressava, na maneira como escrevia a Língua Portuguesa recheada com vícios dos estratos sociais mais baixos e nas sentenças despropositadas que sua pena e/ou de seus ajudantes proclamavam nos documentos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

onde chegam as ridículas sentenças que tem o trabalho de lançar nos autos depois de terem sido feitas por um rábula seu assessor, que mandando-lhas escrita em papéis separados, tem já sucedido ele enganar-se trocando-as, e lançando as sentenças de degredo em ações de Libelo Cível, o que é 565 notório por toda a parte.

Quando os desembargadores José Pedro Machado Coelho Torres e Marcelino Pereira Cleto chegaram à vila de São João del-Rei para inquirir testemunhas para o processo de devassa aberto para julgar o crime de Inconfidência, em 1789, o ouvidor Luís Ferreira bajulou-os, “oferecendo-lhes obséquios, touros, saraus e passeios públicos fora de hora”, com receio de que alguém tocasse em seu nome. Para evitar quaisquer problemas, Luís Ferreira indicou as pessoas que deviam testemunhar, intimando outras a não comparecerem perante os juízes. Atitudes que, segundo o missivista da denúncia anônima, não foram percebidas pelos juízes da Alçada, por estarem “sempre cercados dos meirinhos e escrivães da ouvidoria”, ou assistidos em casa e acompanhados sempre pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo Azevedo.566 Esses relatos comprovam o jogo da corrupção na política e na economia da Inconfidência. De todas as acusações merecem destaque as que indicaram que Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, esposa do inconfidente Francisco Antônio, foi favorecida pelo magistrado no processo de sequestro de seus bens: Não menos ir fazer sequestro, por ordem de Vossa Excelência, à mulher do coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, e esta lhe dar três vacas paridas sabe Deus pelo que; e ele as mandar vir para a chácara do seu meirinho geral Antônio José Simões, onde estão hoje. O que é público e o sabem: o capitão Leandro Barbosa da Silva; o ajudante Tomás da Costa Salvador; e o sargentomor pago Joaquim Pedro da Câmara. E na mesma ocasião, induziu e persuadiu ele e o seu meirinho geral, à D. Hipólita, que devia mandar pessoa ao Rio de Janeiro indagar o bom e o mau sucesso da prisão do marido e que, com algumas dádivas, alcançasse favores – o que poderia conseguir porque ‘o dinheiro vencia tudo’. Ela lhe certificou que estavam prontos 10 ou 12 mil cruzados. Para este fim, lhe introduziram um filho do dito meirinho geral do mesmo nome, Antônio José Simões Dias, o qual foi há dias à Ponta do Morro, e se tem andado a preparar para quando chegar o dito ministro [Luís Ferreira de Araújo e Azevedo] e seu pai [o meirinho geral Antônio José Simões, o velho], do sequestro do coronel Alvarenga [que ambos foram realizar em Campanha e São Gonçalo do

563

. ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 2, fl. 18v-19 – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789. 564 AHU/MAMG, cx. 117, doc. 81 – Carta de D. Rodrigo José de Menezes, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a ineficiência do Tribunal da Junta da Fazenda e solicitando providências a fim de alterar tal situação. Vila Rica, 31/12/1781. 565 . Ibidem; ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Seção Colonial [doravante APM/SC], cód. 224, rolo 46, gav. 3, fl. 125v – Carta de D. Rodrigo José de Meneses a Martinho de Melo e Castro. Vila Rica, 31/12/1781. 566 . ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 42, fls. 2-2v – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789.

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ISSN 2358-4912 Sapucaí com Bárbara Eliodora] para ir logo para o Rio. Testemunhas: Joaquim Barbosa, porteiro; 567 o capitão Joaquim Simões de Almeida; e os mais que os ouviram.

O coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes nasceu em 1750, na Borda do Campo, atual Barbacena. Era filho de José Lopes de Oliveira e Bernardina Caetana do Sacramento. Em 1781, aos 36 anos de idade, casou-se com Hipólita Jacinta, mulher de família abastada que trouxe para o casamento apreciável dote que, oito anos mais tarde, seria sequestrado pela devassa. Dona Hipólita, nascida em Prados, era filha de Clara Maria de Melo e do capitão-mor Pedro Teixeira de Melo e irmã do então ocupante desse posto na vila de São José del-Rei, Gonçalo Teixeira de Carvalho. O casal morava na fazenda da Ponta do Morro, entre a vila de São José e o arraial de Prados, e nunca teve filhos legítimos. Mas o casal criou duas crianças: Francisco da Anunciação Teixeira Coelho e Antônio Francisco Teixeira Coelho, filho ilegítimo de Maria Inácia Policena da Silveira (irmã de Bárbara Eliodora, esposa do inconfidente Alvarenga Peixoto) e do marechal de campo Antonio José Dias Coelho.568 Única mulher que participou da Inconfidência, Hipólita é citada em dois episódios registrados no processo de devassa. Ela tinha pleno conhecimento das discussões sobre a revolta e participava ativamente em 1789. Ela destruiu uma denúncia completa que seu marido escrevera para levar pessoalmente ao governador, visconde de Barbacena, delatando o movimento, como tentativa para diminuir a pena por ter-se envolvido no intento sedicioso.569 Também ateou fogo em todos os papéis que julgou poder incriminá-los.570 Em uma carta enviada em maio de 1789 ao marido, acolhido na fazenda Paraopeba, denunciou a traição de Joaquim Silvério dos Reis e mencionou o destino de outros inconfidentes. Sem mostrar muitas dúvidas, dizia que “se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o alferes Tiradentes para que vos sirva, ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”, conforme bilhete enviado ao padre Toledo, por intermédio de seu compadre Vitoriano Gonçalves Veloso. No mês seguinte, em 12 de junho de 1789, seu marido Francisco Antônio de Oliveira Lopes foi preso, por causa de seu envolvimento com os inconfidentes. Por pronunciarem práticas de lesamajestade, ou seja, por proporem uma insurreição contra a autoridade real na capitania de Minas Gerais, os sediciosos foram penalizados, de imediato, com o sequestro de seus bens.571 À família Oliveira Lopes coube a perda total de seus pertences, sem direito à meação da mulher, nem mesmo dos bens indivisos da herança paterna, que dona Hipólita tinha direito. A apreensão dos bens do casal iniciou-se, em 25 de setembro de 1789, na fazenda Ponta do Morro, e contou com a presença do meirinho Antônio José Simões Dias, o pai, e do ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, que apreenderam a propriedade, 430 animais de criação e 74 escravos, assim como os utensílios e os rendimentos das extrações de ouro. O ouvidor e seu ajudante pouparam os objetos de dentro da casa e seus bens pessoais, a revelia da ordem governamental que determinava a listagem e apreensão de tudo o que se encontrasse em posse da família. Após incessante luta para reaver a parte que lhe cabia dos bens sequestrados, já que inicialmente negaram-lhe o direito à meação conjugal, Hipólita Jacinta, guiando-se possivelmente por sugestão do ouvidor Luís Ferreira, escreveu ao secretário do Ultramar em Lisboa, dom Rodrigo de Sousa Coutinho, alegando que parte dos pertences apreendidos em sua casa era de sua herança paterna.572 Os argumentos e as provas apresentadas foram convincentes e, por isso, ela obteve despacho favorável. 567

. Ibidem, fl. 3v. Grifos do original. “Óbito e registro do testamento de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva do Inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes”. Prados, 27/04/1828. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 431-433. 569 “Auto de perguntas ao coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes”, 1ª inquirição, Cadeia Pública (Vila Rica), 15/6/1789. In: AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira [daqui por diante ADIM]. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1978, v. 2, p. 57. 570 “Formação de culpa: inquirição da testemunha Francisco Antônio de Oliveira Lopes”, Casa do desembargador José Pedro Machado Coelho Torres (Vila Rica), 8/8/1789. In: ADIM, 1981, v. 4, p. 158. 571 Sobre os sequestros empreendidos aos inconfidentes mineiros, conferir: RODRIGUES, André Figueiredo. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010. 572 Infelizmente, não foi possível descobrir quais bens eram dela e quais eram do sequestro. Na documentação não consta o Auto de Partilha. Sabemos, apenas, que a partilha ocorreu. Conferir: “D. Rodrigo de Sousa Coutinho 568

176 ISSN 2358-4912 Com o Despacho de dom Rodrigo, a favor da meação do patrimônio de Francisco Antônio, dona Hipólita conseguiu salvaguardar parte de seus bens de casada, mais os oriundos da herança paterna. Esta informação corrige o exposto pela historiografia que afirma que Hipólita foi a única esposa de inconfidente a não conseguir a meação do patrimônio do marido, por ter sido penalizada pelo visconde de Barbacena devido à sua participação ativa no movimento insurreto.573 Na verdade, ela foi a última mulher a conseguir reaver o que lhe pertencia (1804); no mínimo, uma década depois das demais senhoras. Na ocasião dos sequestros, dona Hipólita declarou à Justiça, estrategicamente, bens que em grande parte eram de sua sogra Bernardina Caetana, uma vez que ela e seu marido eram os testamenteiros da matriarca. O patrimônio foi apreendido pela devassa, como se fosse do “degredado e confiscado” Francisco Antônio, e estava sendo administrado pelo fiel depositário Pedro Joaquim de Melo, primo de Hipólita Jacinta.574 Por “repetidas vezes”, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira, irmão do inconfidente Francisco Antônio e cunhado de dona Hipólita, apresentou certidões para que o fiel depositário entregasse os bens de sua mãe, desmembrando-os do sequestro ocorrido em 25 de setembro de 1789. Mesmo com a possibilidade de ser preso pelo não cumprimento dessa medida, como escrito nos atestados, o fiel depositário e primo de dona Hipólita, não se interessou pela divisão patrimonial, deixando-o integrado ao sequestro. Inconformado e ao perceber o descaso e a falta de empenho em se fazer cumprir a decisão judicial, a qual lhe foi favorável a devolução dos bens da herança de sua mãe, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira tomou uma iniciativa em agosto de 1794: denunciou ao juiz responsável pela devassa, Antônio Ramos da Silva Nogueira, a artimanha montada por sua cunhada e acobertada pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Alegou que a restituição dos bens estava desfavorável aos seus interesses e, também, aos do Estado metropolitano, pois, enquanto o que lhe pertencia por herança estava listado como patrimônio do inconfidente, o que cabia ao seu irmão e deveria ser objeto da real apreensão, foi omitido da devassa. Com a delação, esperava ganhar a confiança e o respeito do devassante quanto à solução da disputa familiar. Transcrevamos a apresentação dos fatos:

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Diz o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira, que no sequestro que se procedeu por este Juízo na Ouvidoria do Rio das Mortes contra o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes compreendido, condenado, e definitivamente sentenciado pelo delito de Sublevação se ocultaram muitos bens, que o suplicante denuncia quais são os do Rol junto, e poderão ainda haver muito mais como há de constar do Inventário feito entre dona Hipólita Jacinta Teixeira, mulher do dito proscrito, e seu irmão capitão-mor Gonçalo Teixeira, que todos pertencem ao referido sequestro por ser o suplicante dito condenado no perdimento de sua inteira meação, e para segurança dos 575 mesmos, e sobre eles requer o suplicante seus direitos, e ações que lhe competirem.

Foi devido às brigas familiares causadas pela herança de Bernardina Caetana que detectamos processos de sonegação e corrupção presentes nos Autos de Devassa. O patrimônio escondido contava com vários escravos, “muitos trastes de casa”, como jarros, bacias de prata, dois faqueiros “de colheres, – Ofício à Junta da Real Fazenda da Capitania de Minas Gerais mandando informar sobre o requerimento de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva de Francisco Antônio de Oliveira Lopes”. Lisboa, 28/09/1802. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 368; “Contadoria Geral – Informação sobre requerimento incluso de D. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, viúva de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, relativo ao sequestro de sua meação”. Rio de Janeiro, 17/10/1804. In: ADIM, 1977, v. 9, p. 386-387. 573 A historiografia a que me refiro é composta, por exemplo, por: OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de. Nota explicativa ao Apenso XXXVII. In: ADIM, 1981, v. 3, p. 407; REIS, Liana Maria. A mulher na Inconfidência (Minas Gerais – 1789). Revista do Departamento de História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 9, p. 86-95, 1989, p. 93; VALE, Dario Cardoso. Memória histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n.], 1985, p. 92; VIEIRA, José Crux Rodrigues. Tiradentes: a Inconfidência Mineira diante da história. Belo Horizonte: 2º Cliche Comunicação & Design, 1993, v. 2, t. 1, p. 329-332. 574 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO (doravante IHGB). DL 101.2, fl. 15 – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 575 Ibidem, fl. 42. Grifo nosso.

177 ISSN 2358-4912 garfos e facas de cabo de prata”, “várias dúzias de cadeiras, baús, caixas e armários” e “várias dúzias de louças de prata da Índia e de pó de pedra”.576 Entre os bens semoventes foram encobertos bois, vacas, cavalos, éguas e potros, com suas selas e arreios. Todos estes bens estavam “ocultos nas fazendas da Laje, Gales e Ponta do Morro e em casas de Pedro Joaquim de Melo [o fiel depositário] e do tenente Antônio Gonçalves [de Moura]”. Quanto aos bens imóveis registrou-se a indicação da desconhecida fazenda Bananal, localizada no termo de Mariana, que foi vendida ao coronel João Damasceno, sendo que este ainda devia a maior parte das prestações de compra da propriedade.577 Nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira não existe qualquer menção às fazendas chamadas Gales e Bananal como pertencentes ao conjurado Francisco Antônio. O próprio desembargador Antônio Ramos da Silva Nogueira achou estranha a omissão daqueles bens de raiz, chegando a sublinhar no manuscrito a indicação da existência da fazenda Bananal, de tão surpreendente que foi a sua descoberta.578 Quando foi chamada para depor na inquirição de sequestro dos bens denunciados pelo seu cunhado, Hipólita Jacinta disse que desconhecia quaisquer bens existentes nas fazendas Bananal e Laje. Na fazenda Gales, localizada no termo da vila de São José, os inquiridores apreenderam nove cabeças de gado vacum. Ainda, em São José, na fazenda Carandaí, do capitão Antônio Gonçalves, foram encontradas e sequestradas várias éguas e bois que pertenciam ao casal Hipólita e Francisco Antônio.579 Mas, de todas as omissões, as mais significativas foram as dos escravos: 74 cativos não apareceram listados no sequestro coordenado pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Manuel Caetano entregou ao juiz Antônio Ramos da Silva Nogueira lista contendo os nomes dos escravos furtados do inquérito da Inconfidência. Estes números são impressionantes: metade de sua unidade escravista esteve subtraída às escondidas da devassa. Nos Autos de Devassa, em sua edição impressa, está registrado que Francisco Antônio teve 69 mancípios apreendidos. Na documentação original seus números chegaram a 74 pessoas listadas. Dona Hipólita, em 27 de abril de 1795, quando inquirida sobre os bens “ocultos ao sequestro” e que foram “denunciados no Juízo dos Feitos do Contencioso da Real Fazenda”, apresentou as seguintes justificativas para que os 74 escravos omitidos não aparecessem na lista do sequestro:

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ANRJ/ADIM-C5, v. 7, doc. 2, fls. 1-7 – Traslado do sequestro feito a Francisco Antônio de Oliveira Lopes. IHGB. DL 101.2, fls. 44-44v; 78v-80v – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes. Além desses bens, denunciou-se, ainda, “um crédito, ou execução que é devedor Manuel Inácio Rodrigues, cuja ação principiou contra Manuel Antônio camarada do dito Manuel Inácio Rodrigues”. In: Ibidem, fl. 78. 578 No documento, encontramos: “Uma fazenda chamada o Bananal, sita no termo de Mariana, que foi vendida ao coronel João Damasceno, que ainda se deve a maior parte de seu valor”. [grifo do original]. In: Ibidem, fl. 78. A fazenda Bananal é a mesma que consta no processo de compra dos bens do tenente-coronel Manuel Lopes de Oliveira feita por Francisco Gomes Martins e, depois, por José Aires Gomes. Este tenente-coronel era pai de Maria Inácia de Oliveira, esposa do inconfidente da Borda do Campo, e do sedicioso Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 579 Ibidem, fls. 80v-81; 83-83v. 577

178 ISSN 2358-4912 Quadro 1 Justificativas apresentadas por Hipólita Jacinta dos escravos omitidos no sequestro de Francisco Antônio de Oliveira Lopes

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Quantidade de escravos omitidos

Justificativa “seis foram apresentados aos ministros” e que estes não foram inventariados porque “se achavam hipotecados a Domingos da Cunha por dívidas que (...) lhe devia” e, os outros dois, por “andarem fugidos juntos com outros mais”; “todos estes haviam sido sequestrados e se acham no depósito do primeiro sequestro como dele há de constar”; “nasceram depois do sequestro”; “pertenciam a sua mãe Bernardina Caetana” [mãe do inconfidente]; pertenciam a outras pessoas; eram “escravos nascidos depois do sequestro e que se dizem mortos”; na ocasião do sequestro estavam fugidos, “hoje estão falecidos”; não pertenciam ao seu patrimônio; na ocasião do sequestro estavam fugidos e, quando presos, “foram levados para a casa do sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira”; estavam depositados nas mãos de Pedro Joaquim de Melo.

8 16 8 3 15 5 4 4 3 8

Fonte: IHGB. DL 101.2, fls. 79-80 – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes.

Dos 74 escravos apontados no agravo de sequestro (Quadro 1), 54 foram denunciados como novos bens e reconhecidos por dona Hipólita como sendo de seu patrimônio. Se somarmos os 74 mancípios originalmente sequestrados pela devassa com os 54 cativos sonegados e delatados, concluímos que no plantel de Francisco Antônio de Oliveira Lopes havia 128 escravos. Mas, voltando-se à lista entregue por Manuel Caetano, observa-se a delação de 74 nomes de cativos. Destes, seis encontravam-se no sequestro, nove transferiram-se para o patrimônio de Manuel Caetano com o desenvolvimento do processo, cinco morreram entre a data de confecção do primeiro sequestro e o dia da delação e, do restante, 54 mancípios eram novos. Portanto, da delação, apenas esta quantidade de negros não foi arrolada entre os bens apreendidos ao sedicioso. Com estas informações, podemos calcular os cativos que estavam no plantel de Francisco Antônio no momento da confecção do primeiro sequestro (25 de setembro de 1789) e a data da delação feita por seu irmão, em agosto de 1794. Quadro 2 Plantel escravista de Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1789-1796) Quantidade de escravos 23 25 54 41 5

Origem da escravaria Herança de Francisco Antônio – partilha dos bens de José Lopes de Oliveira (1790) Auto de Arrematação (1796) Denúncia do sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira (1794) Sequestro realizado pela devassa da Inconfidência (1789) Escravos que nasceram e morreram / não contabilizados nos itens acima (17891794)

148 Fonte: IHGB. DL 101.2, fls. 16; 18-21; 43-44v; 74-83v – Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes; IHGB. DL 3.4, fls. 155-164v – Autos de depósito / Prestação de contas do capitão Pedro Joaquim de Melo, depositário dos bens do inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes.

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ISSN 2358-4912 Pelo Quadro 2 se presume que, de 1789 a 1796, o plantel de Francisco Antônio era composto por 148 escravos. Este número representa um aumento de 74 mancípios ou 200% sob o total de cativos apreendidos pela devassa, considerando-se, para o efeito deste cálculo, os sequestros originais (74 escravos). Se todos esses negros fossem sequestrados pela devassa da Inconfidência e, também, listado pelo ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, quando esteve na fazenda da Ponta do Morro em 1789, se poderia atribuir a Francisco Antônio de Oliveira Lopes o epíteto de o maior escravista da Conjuração Mineira. Hipólita, no final do processo, conseguiu evitar, portanto, o confisco de 74 escravos, duas propriedades, bois, vacas e cavalos, além de muitas bugigangas de casa, como jarros, bacias, louças, faqueiros, baús, cadeiras e armários; graças ao provável suborno realizado ao ouvidor Luís Ferreira, que recebeu “três vacas paridas sabe Deus pelo que...”.580 Em abriu de 1795, mesmo sendo chamada pela Justiça para prestar esclarecimentos e reconhecendo atos de sonegação no sequestro empreendido pelo ouvidor, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo não foi penalizada. A fortuna que havia sido escondida permaneceu nas mãos da família, sem que sofresse nova apreensão. Seu cunhado recebeu a parte que lhe cabia da herança, subtraindo-a dos bens que foram confiscados pela devassa. Quanto ao ouvidor, também nada aconteceu contra ele.

580

ANRJ/ADIM-C5, v. 3, doc. 42, fl. 3v – Carta-denúncia de um anônimo ao visconde de Barbacena contra Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. São João del-Rei, 14/10/1789.

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ISSN 2358-4912

INSERÇÃO PORTUGUESA NA VILA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE PARANAGUÁ (1800-1830): O CASO DOS AGRICULTORES André Luiz Cavazzani581 É ampla a historiografia que atesta a relação entre a imigração lusitana e a participação de seus quadros nos mais variados patamares do comércio. É sabido que no período colonial, ingressavam por aqui portugueses jovens, alguns, inclusive, ainda sem pontas de barba, com o fito de se fazerem, na expressão consagrada do Marquês do Lavradio, Senhores de Comércio. Sabe-se, também, que a adesão lusitana ao comércio em terras brasileiras prosseguiu alcançando outros tempos inclusive do século XX582. Evidente, também, que associar os portugueses unicamente ao setor mercante, esmaece a complexidade referente ao seu arraigamento em terras brasileiras. Embora apresentasse tendências bem marcadas ( como a já descrita adesão lusitana ao comércio, por exemplo) este processo foi, no geral, multifacetado. Numa sondagem feita por Carlos Bacellar, para a Capitania de São Paulo, entre 1801 e 1802, tendo como referencia as listas nominativas de habitantes, se vê que a maioria dos portugueses dedicava-se à agricultura.583 Cidade portuária, situada na costa sul do país, Paranaguá recebeu entre 1801 e 1830 um número considerável de portugueses. Muito embora tivesse importância secundária, no período em foco, o porto de Paranaguá relacionava-se com outras praças mais importantes (da bacia platina inclusive) conhecendo um pequeno, porém, insinuante comércio. Não obstante o comércio e o perfil litorâneo da cidade havia ali agricultores portugueses. Quantos eram? O que plantavam? Como viviam? São as perguntas que se procura responder nestas páginas, a partir do recurso às listas nominativas elaboradas para a vila em questão lidas numa perspectiva longitudinal, acompanhando o evolver dos domicílios entre 1801 e 1830. O que se quer é apreender um pouco do cotidiano de imigrantes portugueses, que se radicaram em Paranaguá, abordando processos de assimilação, meios de sobrevivência nuançando os processos de arraigamento destes indivíduos. Iniciam-se as considerações pela base da pirâmide formada pelos imigrantes lusitanos dedicados à agricultura: os não escravistas. Entre os anos de 1801 e 1830, respeitando-se um intervalo (aproximadamente quinquenal), descontando-se repetições, foi possível levantar quatorze domicílios sem escravos, chefiados por portugueses, em oposição a 27 domicílios de portugueses agricultores e escravistas. Não foi uma constatação extraordinária. Entre os portugueses a posse cativa era, geralmente, mais frequente do que o contrário. Manoel de Oliveira (54 anos), oriundo da Ilha de São Miguel, casado com Rita natural de Paranaguá, vivia em 1801 na companhia de seis filhos e plantava mandioca;584 José Francisco (49 anos), também natural das ilhas (do Fayal no caso), teve seu domicílio arrolado em 1805, vivia com sua esposa, Gertrudes, natural de Paranaguá, mais quatro filhos. Quanto às suas ocupações foi registrado como “he agricultor e nada mais consta no registro [sic]”.585 Em 1830 seu domicílio voltou a ser arrolado. Nesse ano foi indicado que ele, somando 91 anos, já se encontrava viúvo, e continuava plantando “para o gasto” contando com a ajuda de um filho solteiro de 19 anos.586 Antonio de Ramos 581

UFPR / PDJ Há uma vasta bibliografia que não será enumerada aqui pela limitação de espaço. Boa parte dela pode ser recuperada aqui: CAVAZZANI, André Luiz M. Tendo o Sol por testemunha: população portuguesa na Baía de Paranaguá. Tese de Doutorado. Programa de História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2013. 583 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Reinóis na população paulista às vésperas da Independência. In: ANAIS DO XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, 2000. p.20. 584 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÂO PAULO: Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 49, 2a Cia 585 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1805. Fogo:230, 1ª Cia. 586 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1830. Fogo: 91, 2ª Cia. 582

181 ISSN 2358-4912 natural do Porto, arrolado em 1805, era viúvo e vivia com seu neto de 15 anos, “plantando para seu custo”.587 Assim como aconteceu com José Francisco (citado há pouco), Joaquim Monteiro teve seu domicílio registrado em duas ocasiões (1815 e 1830). Tal como ocorreu com seu patrício, no intervalo de cinco anos, seguiu atuando na lavoura sem contar com mão de obra escrava. Caso diferente ocorreu com João Gonçalves natural de Aveiro. Se em 1824 ele integrava, mediante posse de dois escravos, o rol de pequenos proprietários, em 1830 ele se viu alijado desta condição alinhando-se ao lado dos pequenos lavradores despossuídos. Em nenhum caso acompanhado, aliás, pôde se perceber a entrada de escravos novos em domicílios não escravistas. Numa dinâmica que remonta à máxima do Evangelho de São Mateus588, o acréscimo de cativos tendia a ser mais frequente em domicílios já escravistas do que o contrário. É importante salientar que, no caso dos domicílios que não operavam no regime de coerção cativa, a ausência de escravos não significava, necessariamente, práticas restritas à agricultura de subsistência. Assim se vê, por exemplo, registros de domicílios que mesmo despossuídos de escravos chegaram a vender farinhas. Manoel de Oliveira em 1801, além de plantar mandioca, “vendeu 15 alqueires de farinha”.589 José Monteiro, casado e natural do Porto, chegou a vender “90 alqueires de farinha” em 1824590. No mesmo ano o lisboeta Antonio da Silveira, casado, foi indicado como “planta para o gasto e vendeu 36 alqueires de farinha”.591 Não se tratavam de quantias inexpressivas. Ao apresentar A conta de mantimentos para a gente que tem se empregado no Brigue Cascudo desde seu princípio até o dia 9 de outubro de 1846, Jozé Barrozo, um dos responsáveis pela sua construção, discrimina os montantes da ração de farinha consumida na bóia: 59 alqueires e meio de farinha de mandioca (821,1 litros) teriam alimentado 41 homens durante aproximadamente 130 dias de trabalho.592 Planta rústica de cultivo relativamente fácil, pouco vulnerável aos ataques de pragas, vegetação estranha, doenças, exigindo mínimos cuidados. A cultura da mandioca foi traço onipresente, constituindo-se a principal referência alimentar e de trabalho, nas pequenas unidades agrícolas parnangüaras daqueles que a historiografia convencionou chamar de “livres e pobres”.593 A análise das listas nominativas revela que os reinóis nesta faixa estavam plenamente alinhados à população local. Alguns furando covas em terrenos acanhados, outros articulando o plantio com a produção da farinha. Mais trabalhoso que plantar mandioca era “farinhar”, ou seja, beneficiá-la. A mandioca deveria ser descascada, moída, prensada (para se retirar o suco ácido no caso da espécie brava), e depois torrada. Este último processo suscitava, inclusive, certa utensilagem: a roda, a prensa, o tacho, o forno. De maneira que se vê aí uma sensível diferenciação entre os que plantavam mandioca e aqueles que conseguiam vendê-la como farinha. Mas não é improvável que aqueles que não dispusessem de utensílios utilizassem formas alternativas para obter aquela que era a primordial fonte calórica daquelas paragens. O uso do tipiti (cesto cilíndrico de dois palmos de altura trançado a partir de lascas de taquara) fazendo a função de prensa que, diga-se de passagem, é ainda hoje utilizado pelas comunidades ribeirinhas, consiste num exemplo nesta direção. O beneficiamento da própria

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ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 191, 2a Cia 588 Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. (São Mateus 25,29) BÍBLIA, A.T. Gên. Português. Bíblia Sagrada. trad. Centro Bíblico Católico.34.ed. rev. São Paulo : Ave Maria. 589 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo: 49, 2a Cia. 590 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 29, 1ª Cia. 591 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 46 1ª Cia. 592 Este documento é apresentado por LEANDRO, José Augusto. A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná. In Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n. 54, 2007. pp.261278. 593 Idem.

182 ISSN 2358-4912 produção em fábricas alheias, mediante alguma espécie de contrato, tal como faziam os canavieiros “partidistas”594, também pode ter sido uma solução no universo das possibilidades daquele contexto. Ainda, mostrando capacidade de adaptação às condutas autóctones, também se viu portugueses não escravistas recorrendo à estratégia da incorporação de agregados (em geral pardos). Fosse para garantir a subsistência, fosse para ultrapassar este limiar tratavam de aumentar, via agregação de indivíduos, a força de trabalho em seus núcleos domiciliares. O mesmo Antônio da Silveira que disse ter vendido 36 alqueires de farinha contava, em seu domicílio, com três agregados. A parda Jacinta Maria, viúva de 28 anos, agregada ao domicílio em 1824 e seus filhos, também pardos, Pedro 11 anos e Joaquina 10 anos.595 Em 1810, Manoel Marques de Jesus (natural de Braga, 32 anos) casado com Isabel Gonçalves, vivia de sua lavoura de mandioca, tendo agregada ao seu domicílio a parda Maria Gomes.596 Na sociedade em questão, a cor dos indivíduos não se resumia a uma questão de fenótipo, remetia antes a um lugar social. Construídas historicamente as categorias classificatórias expressas na cor, vinham (ou vem?) sempre imbuídas de polissemia variando nas diferentes circunstancias sociais, bem como nos variados contextos em que são aplicadas. E, nesse sentido, a questão dos pardos é permeada por complexidades. Estudiosos do assunto já puderam observar que, mediante cabedal material e social amealhado ao longo da vida, um indivíduo mulato poderia mesmo sofrer um processo de branqueamento social, passando a ser reconhecido como branco. Mas o contrário também era passível de ocorrer.597 No caso de Paranaguá a conotação pardo tendia a aproximar os livres de cor do mundo do cativeiro.598 Em 1830, se verificou na lista nominativa, que somente oito indivíduos pardos foram denominados livres em oposição a 406 que foram denominados cativos e quatro alforriados. No levantamento nominativo de 1801 havia apenas dezesseis pardos livres para 542 cativos e, também, quatro manumitidos. Quanto aos denominados negros nenhum foi classificado como livre: 675 indivíduos foram classificados como cativos em 1801 e seis alforriados. Em 1830, se têm 875 negros cativos, seis alforriados, e nenhum denominado livre, mas havia também um importante número de pardos que não tiveram sua condição jurídica indicada. Em 1801 este foi o caso de pelo menos 550 pardos contra apenas 48 negros não definidos como livres ou cativos. Em 1830 o padrão se repete: 660 pardos não tiveram sua condição indicada contra 77 negros. Quanto aos brancos, não houve caso em que sua condição de livres não tenha sido afirmada. 599 Esta diferença gritante entre o número de pardos sem condição indicada contra o número de negros na mesma situação pode ser lida como mais um indicador da oscilação entre o cativeiro e a liberdade protagonizada pelos livres de cor. Os pardos agregados aos domicílios portugueses integravam o rol daqueles que não tiveram sua condição de livres ou escravos anotada. Mas, ao que tudo indica, pareciam ser livres de cor incorporados ao domicílio em condição de subalternidade, numa dinâmica que faz lembrar as considerações de Cacilda Machado. A autora pôde captar dinâmicas que permeavam as relações entre brancos, pardos, negros, na freguesia de São José dos Pinhais, na passagem do século XVIII para o XIX. Detectando a vigência de um conjunto de práticas patriarcalistas, Cacilda Machado observou que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A respeito dos lavradores de cana sem engenhos na Capitania de São Paulo consulte-se, por exemplo, FERNÁNDEZ, Ramón V. Garcia. Os Lavradores de Cana em São Sebastião. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.40, 1996. pp.173-190. 595 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 46 1ª Cia. 596 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1810. Fogo 62 1ª Cia. 597 GUEDES, Carlos Roberto. Sociedade escravista e mudança de cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX. In FRAGOSO, João. & Florentino, Manolo. & SAMPAIO, Carlos Jucá. & CAMPOS, Adriana. (org.) Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de Vitória : Edufes, 2006. 598 Fato que parece de acordo com as considerações de Hebe Matos para quem: na verdade durante todo o período colonial, e mesmo até bem avançado do século XIX, os termos negro e preto foram usados exclusivamente para designar escravos e forros. Em muitas áreas negro foi sinônimo de africano... Pardo foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência europeia de alguns deles. CASTRO, Hebe Maria M. de. Das cores o silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional,1995. p.219 599 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801 e 1830.

183 ISSN 2358-4912 onde faltava a capacidade para se investir em escravos, sobrevinham esforços senhoriais para, informalmente, incorporar livres de cor ao cativeiro. Prática alimentada e impulsionada, segundo a autora, pela própria lógica hierárquica daquela sociedade fundada na escravidão.600 Tratando-se, portanto, de uma sociedade escravista busca-se, doravante, colocar em evidencia a situação daqueles domicílios que se caracterizaram pela presença de cativos em sua estrutura. Um dado de coesão bastante perceptível entre os domicílios escravistas e aqueles descritos há pouco é a onipresença da cultura da mandioca. Analisando inventários paranangüaras abertos à segunda metade do século XIX, José Augusto Leandro traçou algumas considerações que, conforme as análises aqui empreendidas parecem válidas, também, para a primeira metade do século XIX. Segundo o autor... “é possível inferir que esta classe, proprietária de escravos, produzia para além da subsistência do seu grupo e de seus próprios cativos. Evidencia-se, também, que essa produção de alimentos concentravase quase que em único produto a farinha de mandioca.” 601 Contudo, antes de se referendar a citação acima, cabe apontar uma exceção. Natural de alguma das vilas do Arcebispado de Braga Lourenço Maciel Azamor já contava 79 anos quando foi arrolado na lista nominativa de 1801. Era casado com Vitória Rodrigues de 80 anos. Ainda compunham o domicílio o filho Antonio Maciel (19 anos, nascido em Paranaguá), sua mulher Ana Luiza (natural do Rio de Janeiro, 19 anos) e uma filha (Maria, de um ano de idade). Azamor reunia um pequeno plantel de quatro escravos adultos: Francisco (51 anos); Luzia (21 anos); Antonio (61 anos); Maria (31 anos). No item ocupações ficaria anotada a seguinte expressão: “vive da lavoura de mandioca e diz que não lhe chega para comer”.602 Não deixa de ser curiosa esta indicação, afinal, mesmo sendo escravista, dandose crédito à informação prestada pelo recenseador, o domicílio não esteve imune a uma crise de subsistência. Ao que parece não conseguira produzir nem para a subsistência de seu grupo, tampouco, para a dos cativos. Infelizmente o mesmo fogo não chegou a ser arrolado em levantamentos posteriores para que se pudesse entender melhor se esta crise chegou a ser superada nos próximos anos. Esse não foi o caso de José Gonçalves Lopes. Natural “de Portugal”, 59 anos, casado com Maria de Jesus (58 anos) reunia um plantel de dez escravos, ou, melhor, dez escravas (seis meninas de dois, três, sete, oito e nove anos de idade e quatro mulheres de 41, 42, 46 e 57 anos). A inquirição sobre a produção de seu domicílio acusou que ele: Planta mandioca para sustento de sua Caza, abatido o qual sobraram-lhe 220 alqueires de farinhas.603 Entre os farinheiros havia ainda Antonio Jozé Sintra. Natural de Sintra, senhor de cinco escravos, ao ser arrolado em 1824 indicou ter produzido duzentos alqueires de farinha. Pedro Martins natural de Lisboa, arrolado em 1830 na condição de senhor de oito escravos, também era farinheiro, tendo conseguido produzir 150 alqueires de farinha.604 O caso de Pedro Martins chama atenção, aliás, por outros motivos. Em 1801, o mesmo reinol havia sido arrolado como agregado ao domicílio do tenente miliciano Faustino José Borges, natural de Lisboa, senhor de seis escravos dedicados ao plantio de mandioca e à produção de farinhas.605 O domicílio pôde ser acompanhado até 1830. Nesse ínterim, o ano de 1824 marca uma inflexão naquela estrutura doméstica: Pedro Martins é arrolado como marido de Gertrudes Borges, filha de Faustino Borges. Após o falecimento deste último o fogo toma o contorno captado em 1830 quando, então, se vê Pedro Martins assumindo a chefia da casa no lugar do sogro, acrescentando mais dois novos cativos ao plantel original, mantendo também a atividade praticada por seu sogro. A incorporação de adventícios portugueses no domicílio do sogro, a quem acabavam substituindo depois na liderança familiar, não era, portanto, um expediente restrito ao universo dos comerciantes.606

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MACHADO, Cacilda. Op. cit. p. 30. LEANDRO, José Augusto. Op. cit. p. 270. 602 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 40 1ª Cia. 603 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 112 1ª Cia. 604 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1824. Fogo 18 1ª Cia; 1830, Fogo197. 605 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 32 1ª Cia. 606 Há vasta literatura que indica esta modalidade de incorporação de adventícios portugueses nas famílias e, por extensão, na sociedade local. No caso dos comerciantes portugueses muitos destes portugueses eram 601

184 ISSN 2358-4912 Avançando-se um pouco mais com relação ao tamanho dos planteis se vê que a raiz tuberosa continua lá onipresente. Mas essa tonalidade monocórdia vai ganhando um pouco mais de nuance. Senhor de treze escravos, o Capitão Antonio da Silva Neves acusou, em 1801, viver “de suas lavouras de mandioca, feijão, arroz, vendeu duas pipas de cachaça e algumas arrobas de açúcar”. A renda do domicílio era incrementada ainda com o trabalho de três escravos ladinos (dois barbeiros e um carpinteiro).607 O domicílio do Capitão João Crisóstomo Salgado foi registrado no intervalo de 1805 e 1830. O número de integrantes do plantel manteve-se constante, como também se mantiveram constantes as atividades desenvolvidas naquela estrutura: “vive de lavoura para seu consumo. Consumiu 246 alqueires de farinha. Tem olaria de fazer telhas fez 2500.” 608 Parte do plantel cativo ao domicílio foi indicado como sendo proveniente de Santos, tal como a esposa do reinól, Dona Maria Magdalena, também santista. Há ainda a notícia de uma filha do casal (16 anos) nascida em Curitiba. Dado que pode ser indício de processos de mobilidade que acabaram cessando a partir de 1805. Em 1830, como já havia sido indicado em item anterior, o domicílio era encabeçado por Dona Maria Magdalena, já viúva. O sargento José Vieira Belém, de 52 anos, natural de Lisboa, casado com Roza Maria (40 anos) mantinha um plantel, em 1830, que também somava 24 escravos, constando que: Vive de Lavouras comsomio farinha 190 alqueires; vendeo 40 alqueires de Arros e 100 de maça de Cal.609 Entre os grandes escravistas, detentores de dez ou mais escravos, verificou-se que a menção à produção de farinhas foi mais rara do que a menção ao seu consumo. É provável que estivessem concentrados na produção de víveres mais lucrativos; ou então, conforme o exemplo mencionado, mobilizassem ao ganho parte da força cativa. Isso não quer dizer que não produzissem farinhas. Contudo, conforme a assertiva de José Augusto Leandro, é admissível imaginar que tal gênero ficava retido no próprio fogo alimentando o plantel e os seus demais moradores da unidade domiciliar. Já nos plantéis pequenos e médios, a dar crédito aos informes das listas nominativas, quando se tratava de produção destinada à venda, as farinhas reinavam absolutas. Finalmente, já em vias de conclusão, podem ser retomadas algumas questões acerca do perfil geral dos 41 portugueses envolvidos com a lavoura em Paranaguá durante o recorte indicado anteriormente. Em primeiro lugar cabe perguntar se havia alguma relação entre a sua proveniência e a prática da lavoura. Em Paranaguá não foi levantado nenhum dado que pudesse encorajar uma tendência nesta direção. Somente seis açorianos (entre os 41 lavradores) dedicavam-se ao trato agrícola. O restante dos agricultores portugueses, dividido de forma mais ou menos equilibrada, provinha de áreas continentais em especial nortistas e, também, dos grandes centros Lisboa e Porto. Também se pôde testar se havia alguma hierarquização (entre os reinóis agricultores) relacionando proveniência e tamanho de plantel. Nesse caso se obteve novamente uma reposta negativa. Entre os quatorze não proprietários de escravos havia dois ilhéus e o restante equilibrava-se entre Porto, Lisboa e Braga. O restante dos ilhéus dividia-se entre o grupo dos donos de três, sete e, finalmente, onze escravos. Não havia, é verdade, ilhéus no restrito grupo dos dez portugueses lavradores que possuíam mais de catorze escravos. Mas é difícil imaginar que isso se devesse a alguma espécie de hierarquização no interior deste grupo. Talvez esse número se explicasse mesmo pela baixa proporção dos provenientes das ilhas diante de seus conterrâneos. Todos os portugueses agricultores, sem exceção, conheceram o casamento. Um único português que havia sido registrado como solteiro veio a se casar depois. Casou-se com uma mulher natural da vila de Paranaguá; e, nesse comportamento, esteve completamente consonante com seus conterrâneos lavradores que, feita apenas uma exceção (lembre-se do caso de Dona Magdalena santista),

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incorporados como caixeiros, para depois, assumirem o lugar do sogro falecido na gerência do comércio e da família. Cf: MARTINHO, Lenira Menezes. & GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro : Secretaria da Cultura,1993. 607 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1801. Fogo 1, 2ª Cia. 608 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1810. Fogo 107, 1ª Cia. 609 ARQUIVO PÚBLICO... Listas Nominativas de Habitantes da Vila de N. Sra. do Rosário de Paranaguá, 1830. Fogo 10, 1ª Cia.

185 ISSN 2358-4912 desposaram mulheres naturais de Paranaguá. Fato que sugere a importância do casamento no processo de arraigamento e socialização destes indivíduos. Ainda, com relação ao perfil etário dos 41 lusitanos agricultores, se tem a idade mínima fixada em 25 anos e a máxima em 98 anos. Entre os portugueses mais velhos (81, 91, 98 anos) havia dois senhores de catorze escravos e um que não possuía nenhum. Os demais despossuídos que, descontando-se o de 91 anos, somam treze, dividem-se entre as faixas etárias de trinta a sessenta anos. Por fim, para o caso dos proprietários, se tem que entre 285 escravos: 83 (29,2 %) concentravam-se na faixa de senhores que possuíam entre 51 a sessenta anos; 62 (21,7%) nas mãos de senhores de 71 a noventa anos; cinquenta (17,5%) nas mãos de senhores 61 a setenta anos; 46 (16,1%) nas mãos de proprietários de 25 até quarenta anos e, por fim, (15,4%) pertenciam a senhores de 41 até cinquenta anos. Vê-se, portanto, uma distribuição equilibrada, fazendo pender a concentração cativa para as faixas etárias mais avançadas da amostra, sobretudo, entre os portugueses de 51 a sessenta anos, indicando, que, no caso dos portugueses, a aquisição de cativos se dava paulatinamente. Situação que não contrasta do que foi verificado por Carlos Bacellar, quando este relacionou a posse de escravos e a idade média dos proprietários reinóis para o conjunto de vilas Capitania de São Paulo em 1801610. Escravistas donos de engenho e lavradores de maiores superfícies convivendo com pequenos roceiros trabalhando com a família sem a ajuda de um escravo sequer. A cultura da mandioca atravessava, é verdade, esses dois âmbitos. Mas naquela sociedade escravista era tácita a diferença entre um e outro grupo. Nem pobres nem proeminentes, também foram visitados os domicílios dos remediados. A emigração para Paranaguá, para a América lusitana, era uma possibilidade de sucesso aos portugueses... Mas somente possibilidade. O êxito dependeu de um grande número de fatores. E oscilava também conforme a imprevisibilidade ditada pelo acaso. Um quadro heterogêneo que desencoraja, portanto, apreensões unívocas acerca dos processos de enraizamento protagonizados pelos lusíadas em Paranaguá.

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Referências CAVAZZANI, André Luiz M. Tendo o Sol por testemunha: população portuguesa na Baía de Paranaguá. Tese de Doutorado. Programa de História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2013. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os Reinóis na população paulista às vésperas da Independência. In: ANAIS DO XII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambu, 2000. LEANDRO, José Augusto. A roda, a prensa, o forno, o tacho: cultura material e farinha de mandioca no litoral do Paraná. In Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n. 54, 2007. FERNÁNDEZ, Ramón V. Garcia. Os Lavradores de Cana em São Sebastião. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n.40, 1996. GUEDES, Carlos Roberto. Sociedade escravista e mudança de cor. Porto Feliz, São Paulo, século XIX. In FRAGOSO, João. & Florentino, Manolo. & SAMPAIO, Carlos Jucá. & CAMPOS, Adriana. (org.) Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Ilha de Vitória : Edufes, 2006. MARTINHO, Lenira Menezes. & GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro : Secretaria da Cultura,1993. MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social no Brasil escravista. Rio de Janeiro : Apicuri, 2008.

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BACELLAR, Carlos. Op. cit.10.

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RAREFEITA TRAJETÓRIA DO MAMELUCO SIMÃO ROIZ: DAS “TEIAS DE FALSOS ENGANOS” À PRISÃO INQUISITORIAL (1587-1593) Andreza Silva Mattos611 O mameluco Simão Roiz Simão Roiz foi um mameluco que conviveu com a índia Gracia Fernandes.612 E dessa união um filho foi gerado, cujo nome foi o mesmo do pai, Simão Rodrigues, assim como também o fora o nome do seu avô porque, no final do século XVI, os homônimos predominavam não somente entre os nobres, mas também entre as famílias menos abastadas, como pode ser observado.613 Por ser um mameluco, Simão Roiz devia ter a tez amorenada, como mencionou Ronaldo Vaifas ao indicar a cor da pele do jesuíta mameluco Manuel de Moraes, personagem do livro “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” (2008).614 Segundo as informações de Jorge Couto (2011), poderíamos descrever, ainda por verossimilhança, que Simão Roiz tinha a tez acobreada, assim como tinham os “mamelucos do Egito” (2011, p. 349). Nosso mameluco de tez acobreada nasceu por volta de 1552, sendo apontada, em seu processo, a idade de 40 anos. Foi fruto da união entre Simão Rodrigues, homem branco, pedreiro, e sua escrava, a índia Felipa – ambos falecidos. No interrogatório genealógico realizado, em 1592, pelo Visitador do Santo Ofício, Heitor Furtado de Mendonça, Simão Roiz disse que não conheceu seus avós, tios e irmãos (ANTT, IL, Proc. n.º 11.632). Por volta de 1592, ele só tinha a seu filho Simão Rodrigues, pois a companheira, Gracia Fernandes já havia, nessa data, falecido. Diferente do filho que era natural da Capitania da Bahia, Simão Roiz informou ser natural da Capitania de Ilhéus, doada a Jorge Figueiredo Correa. Não temos dados para precisar quando o Simão Roiz abandonou sua terra natal para ir morar nas terras do Engenho Sergipe do Conde, no Recôncavo baiano. Contudo, é certo que à época do nascimento do filho ele já estava na Capitania da Bahia, local onde, provavelmente, deve tê-lo criado, transferindo-lhe tanto os hábitos da cultura materna – os gentílicos, quanto os hábitos da cultura portuguesa, os quais herdara do seu pai. Nas terras do engenho Sergipe do Conde, fez amizades, dentre as quais se destacaram as que mantiveram Francisco Pires e João Gonçalves, ambos mamelucos. João Gonçalves, jovem de 20 anos, denunciou Simão Roiz na mesa do Santo Ofício, o qual, que por sua vez, denunciou Francisco Pires. Na teia de relacionamentos de Simão Roiz ainda constava Gonçalo Álvarez, que também morava em Sergipe do Conde. Este engenho pertenceu ao Conde de Linhares e estava localizado no Recôncavo baiano, “formando-se nas terras do herdeiro de Mem de Sá, dom Fernando de Noronha, terceiro conde de Linhares” (TAVARES, 2001, p. 155). Gonçalo Álvares, além de exercer a função de carpinteiro no engenho do Conde de Linhares, atuou como soldado no sertão norte da Bahia colonial desde o ano de 1575, quando houve a guerra contra as tribos dos caciques Aperipê e Surubi, no sertão do rio Real. Incorporando esta função de soldado sertanista, Gonçalo Álvares foi ao sertão norte da Bahia objetivando apresar os índios para, provavelmente, utilizar-se de suas forças laborais no engenho de Sergipe do Conde. Com esse propósito, partiu em meados de 1590, levando “consigo 25 homens deles

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Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Especializada em Ciências da Religião (UFS). Licenciada em História na mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa “Culturas, Identidades e Religiosidades” da UFS, organizado pelo Prof. Dr. Antônio Lindvaldo Sousa. E-mail: [email protected] 612 O sobrenome “Roiz” é uma abreviatura de Rodrigues, utilizada no processo inquisitorial. Optamos por utilizá-lo na forma abreviada para diferenciar do nome do filho de Simão Roiz que também é Simão Rodrigues. 613 Os genealogistas mencionam que era comum o neto usar os sobrenomes de avós, paternos ou maternos. Quando “havia um avô ilustre, em geral o neto adotava não só o sobrenome como o nome completo do antepassado” (SILVA, M., 2005, 29). 614 Ronaldo Vainfas, no livro “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição”, informa-nos que o padre Rafael Cardoso, ex-procurador da Companhia de Jesus, disse que Manoel de Morais (o jesuíta, personagem da trama abordada) “tinha parte de mameluco e na cor se mostrava” (2008, p. 15). Os que o conheceram destacaram sua tez amorenada. “Mestiço, disseram uns; moreno, disseram outros” (VAINFAS, 2008, p. 15).

187 ISSN 2358-4912 brancos deles mamelucos afora muitos negros frecheiros615 para fazerem descer e trazer consigo gentios do dito sertão para o mar [...]” (CONFISSÃO DE GONÇALO ÁLVARES, in: ANTT, IL, Proc. n.º 12.229, fl., 01v). Entre os 25 homens mamelucos, estavam Simão Roiz, seu filho Simão Rodrigues, João Gonçalves, Francisco Pires, bem como outros companheiros. Enquanto estiveram no sertão, os integrantes dessa entrada comeram carne de bichos do mato na Quaresma e nos demais dias proibidos pela Igreja. A concepção de sertão foi concebida por várias versões que variavam segundo o interesse e o significado que cada observador lhe atribuía. No caso dos jesuítas, que estavam a serviço da colonização por meio da catequese, o sertão funcionava como um chamariz para onde eles deveriam ir a fim de “socorrer” os nativos, imbuídos do espírito da Contrarreforma, da qual foram porta-vozes, para fundar missões e evangelizar os índios. Por outro lado, para os soldados sertanistas, o sertão era o local onde se poderia apresar os índios para levá-los para os engenhos onde empregariam sua mão de obra. Indo para além dessa prática de comer carne em dias de preceitos, objetivamos nesta pesquisa, a partir da teia de relacionamentos de Simão Roiz, compreender as ações de alguns soldados sertanistas que pregaram aos índios contra os interesses das atividades missionárias dos jesuítas, a exemplo do que fizeram Lázaro da Cunha e Francisco Pires – companheiros de Simão Roiz durante as expedições no sertão. Observaremos como essas ações influenciaram no julgamento desses homens, quando foram processados e sentenciados durante a I Visita do Santo Ofício da Inquisição na Bahia, entre os anos de 1591 e 1593. Esses sujeitos estão ligados por uma rede de sociabilidades, da qual tratou Nobert Elias, segundo o qual os indivíduos constituem teias de interdependências, uma teia ordenada de configurações que resultam da “totalidade das ações nas relações que sustentam uns com os outros” (ELIAS, 2008, p. 142). Nesta conjuntura, a compreensão do que aqui nos propomos seria obstada se fosse reduzida a análise das ações de um indivíduo, no caso, apenas de Simão Roiz. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Teia de “falsos enganos” Ao lançarmos um olhar criterioso às vicissitudes de Simão Roiz, encontramos outros soldados que nos dão conta de informações para alcançarmos a inteligibilidade das relações tecidas nesse espaço múltiplo que foi o sertão colonial, a exemplo dos resgates indígenas e, sobretudo, das pregações dos sertanistas aos índios contra as intenções missionárias dos jesuítas. Acreditamos na possibilidade de Simão Roiz não ter pregado contra os jesuítas porque, se assim o fizesse, seu nome, provavelmente, constaria entre as denunciações daqueles que compuseram sua teia de relacionamentos. Sobre ele falaram apenas que tinha presenciado Lázaro da Cunha falar sobre seus feitos no sertão contra os jesuítas. As pregações de Lázaro da Cunha aconteceram no sertão de Laripe ou Raripe, próximo à capitania de Pernambuco, ainda em terras baianas, no atual território de Sergipe. Situava-se “à margem direita do São Francisco, no hoje território de Sergipe” (MELLO, 1970, p. 11, grifo do autor). Capistrano de Abreu esclarece-nos que as entradas para o sertão partiram da Bahia – “seguindo a margem direita do rio São Francisco” (ABREU, 1935, p. XXI); e de Pernambuco – seguindo a margem esquerda desse mesmo rio, sendo as últimas margens do São Francisco limites comuns de ambas as capitanias.616 A população baiana atirou-se pela costa até as divisas da antiga capitania de Francisco Pereira Coutinho, tornando frequentes as “viagens entre Bahia e Pernambuco beirando o mar” (ABREU, 1935, XXII). Comecemos a seguir as aventuras de Lázaro da Cunha, pelo sertão de Laripe, contadas pelas ricas informações do seu processo inquisitorial. Ele compareceu para confessar ao Visitador em 21 de janeiro de 1592, dentro do tempo da graça do Recôncavo baiano. Informou ser natural da capitania do Espírito Santo, filho de Tristão da Cunha, homem branco, e de Isabel Paiz, mameluca. A essa altura,

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A expressão “negros frecheiros” refere-se aos índios, com destaque ao uso da flecha. A margem do rio São Francisco do lado de Pernambuco havia “numerosas serras, matas formando uma cinta quase contínua, como em Ilhéus e Porto Seguro, embora em direções muito menores, dificultavam as entradas e tolhiam a expansão pernambucana que pouco se afastou do rio. Os que dele se afastaram, se não utilizavam canoas que os levassem ao Recife, preferiam a praça da Bahia para suas transações” (ABREU, 1935, p. XXVI). 616

188 ISSN 2358-4912 contava com trinta anos e informou uma particularidade: não tinha lugar certo de morada (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 23v).617 Passada a confissão de Lázaro da Cunha, tendo ele já sido denunciado pelos companheiros, o Visitador perguntou, logo na primeira sessão, se ele lembrava, sabia, ouviu ou viu de alguma pessoa que “lá no sertão pregasse os gentios que se não viessem fazer cristãos e que não descessem com os padres da Companhia para as igrejas ou outras coisas semelhantes” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 28v). Nesse momento, o réu confessou, e disse que quando estava no sertão de Laripe, por cinco anos, próximo a Pernambuco, para onde foi seguindo o curso do rio São Francisco, chegaram dois padres da Companhia de Jesus, sendo um por nome João Vicente, e pregaram pela língua gentílica, solicitando que os índios fossem e “descessem para o mar para as igrejas para deus a fazerem-se filhos de deus” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 29). Quando da chegada dos jesuítas ao sertão, Lázaro informou que foi até eles saber quais eram as suas intenções, e quando percebeu que os padres pretendiam levar os índios, ele teve que agir. Diante da ameaça, alegou que pregou pública e notoriamente “pela mesma língua gentílica que ele bem sabe, pregou aos ditos gentios em contrário dos ditos padres” (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 29). E para consolidar, aconselhou ao principal da aldeia que:

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Não descesse nem consentisse descer os seus gentios com os ditos padres para o mar desta Bahia mas que se deixasse estar onde estava por que se descesse com os padres que lhes haviam de tomar as suas mulheres e que quando muito lhe daria uma só e que se descesse que não havia de ter que muitas mulheres nem usar dos costumes de seus antepassados como lá tinhas e usavam no sertão e que estas coisas lhe dizia aconselhava para lhes estornar a descida com os padres dizendo que lhe mais que quando não quisesse se não descer que descesse com o dito seu capitão para Pernambuco [...]

(ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fls., 30-30v). Buscando uma forma de amenizar sua ação perante o Visitador, o réu acrescentou que seu capitão Manoel Machado (já falecido na data do processo), bem como todos os outros soldados, eram consentidores e aconselhadores que os ditos gentios não fossem com os padres. Simão Roiz foi testemunha dessas pregações. Não no sertão de Laripe onde tudo aconteceu, mas durante os dias em que a resgatou índios no sertão na expedição de Gonçalo Álvares, período no qual presenciou Lázaro da Cunha “gabar-se” de seus feitos, quem nos conta é o cristão novo Tristão Rodrigues, ao denunciar o propagandista ao Visitador: [...] e que outrossim o dito Lázaro da Cunha na dita jornada lhe disse também per muitas vezes em diversos lugares perante outros companheiros, gabando-se que quando ele andava entre os gentios propriamente como gentio fazendo seus costumes gentílicos, pelejara contra os cristãos por parte dos ditos gentios e que tomarão um ou dois cristãos e depois os largara e que lhe parece que isto lhe ‘ouvirão também Simão Roiz mameluco’ [...] (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 9, grifo

nosso). Ao ser perguntado sobre quem mais fez essas pregações contra os jesuítas, Lázaro da Cunha citou os nomes de Afonso Pereira, o marigui618 que é “morador em o forte de Ceregipe e assim mais Francisco Pires, morador em Ceregipe do Conde e Manoel Miranda residente no forte de Ceregipe” (ANTT, IL, Proc. nº 11.068, fl., 31).619 É sobre as ações de Francisco Pires sobre as quais também trataremos.

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Interessante percebermos no processo de Lázaro da Cunha, os delatores informaram lugares diferentes onde ele residia, como se pode notar: Marçal Aragão e o jesuíta João Vicente disseram ser ele estante no engenho do Conde de Linhares, local onde Simão Roiz e Francisco Pires moravam; Bastião Madeira informou que ele morava na casa de Bernardo Ribeiro, não clareando sobre a localidade; Simão Roiz usou uma expressão que se coaduna ao que Lázaro disse ao Visitador: “morador ora em passe” (ANTT, IL, Proc. nº 11.068, fl., 15) – o que nos leva a crer que ele estava de passagem por Sergipe do Conde. 618 Marigui, em português, significa mosquito (ANTT, IL, Proc. n.º 11.068, fl., 31). 619 O Forte de Ceregipe era a região conquistada, em 1590, pelo capitão Cristóvão de Barros e seus homens.

189 ISSN 2358-4912 No processo desse segundo propagandista da anticatequese constam as denunciações de Gonçalo Álvares (com quem foi ao sertão das Alpariacas e Topimaensis juntamente com Simão Roiz), a do jesuíta João Vicente (que presenciara tais ações) e a de Lázaro da Cunha. Compareceu perante o Visitador em 13 de março de 1592. Disse ser cristão velho, natural de Porto Seguro. Sobre seus pais informou que era filho de “Antônio Eanes, homem branco, lavrador e de Catariana sua escrava negra brasila, ambos defuntos” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 12). Suas confissões não eram novidades, porque o Visitador já tinha conhecimento de suas práticas contra os jesuítas, e logo sobre elas quis saber na primeira sessão do interrogatório. Por ele foi dito que:

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Pregou e aconselhou os ditos gentios, dizendo-lhes que não viessem com os ditos padres para o mar porque lhes haviam de tolher ter muitas mulheres e que tinham troncos em que os haviam de prender e os havia de açoitar e que lhes não haviam de deixar-lhes seus bailes e costumes de seus antepassados e que os haviam de fazer cristãos e que não os haviam de deixar viver em suas gentilidades e que não os haviam de deixar dormir com as suas sobrinhas (ANTT, IL, Proc. n.º

17.809, fls., 17v-18). As ações de Francisco Pires contra as intenções dos jesuítas foram além daquelas propagadas por Lázaro da Cunha. Ele não apenas persuadiu os gentios a não seguirem com os padres, como os amedrontou, falando-lhes que iriam ser açoitados no tronco. E disse ao Visitador que isso fazia movido pelo seu proveito, como pelo interesse de toda a companhia de soldados da qual era integrante, porquanto tinha por objetivo resgatar os índios por via de Pernambuco, e não queria que os gentios faltassem no sertão com a vinda deles com “os padres da Companhia de Jesus para esta Bahia” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 18). Descortinavam-se, na mesa inquisitorial, as teias de intrigas urdidas pelos mamelucos contra os jesuítas enquanto exerceram a função de soldados no sertão colonial. Francisco Pires argumentou, em sua defesa, que reconhecia não ter agido como um bom cristão, e entendia que era melhor para os índios renunciarem a seus usos e costumes para se fazerem “cristãos e batizarem-se, porém que lhes aconselhava e pregou ao contrário pelo dito seu interesse temporal” (ANTT, IL, Proc. n.º 17.809, fl., 18v). Mas as argumentações foram inválidas e Francisco Pires saíra gravemente sentenciado da mesa inquisitorial, sendo preso, praticamente um ano após a sua confissão, precisamente, em 21 de janeiro de 1593, dois dias após a prisão de Simão Roiz. Parafraseando Ronaldo Vainfas, Francisco Pires revelou uma “verdadeira teia de falsos enganos” (1997, p. 182), que não se limitaram às relações entre ele e os jesuítas pelo controle dos nativos. A prisão inquisitorial Acreditamos que as intrigas urdidas nas veredas do sertão colonial tiveram ressonâncias diretas nas conclusões dos processos inquisitoriais movidos contra muitos soldados sertanistas, como no caso de Simão Roiz que foi proibido de retornar ao sertão. Nos espaços do sertão, ele encontrou a “brecha” que lhe permitiu praticar ações que foram de encontro aos dogmas estabelecidos pelo catolicismo, isso porque “para cada indivíduo há uma margem de liberdade que se origina precisamente das incoerências e dos confins sociais” (LEVI, 1998, p. 182). A cultura do sertão colonial não refletia a cultura das áreas colonizadas, o que ofereceu a Simão Roiz um “um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um” (GINZBURG, 2006, p. 20). A punição revela fissuras no relacionamento de toda uma categoria de soldados sertanistas com os jesuítas. Simão Roiz é a apenas a porta de entrada para compreendermos como se deram as relações socioculturais entre os sujeitos coloniais no sertão com seus divergentes interesses. Dessa disputa pelo controle dos gentios surgiu o embrião da intolerância em relação às práticas dos mamelucos que atuaram como soldados no sertão e foram processados e presos em virtude dos procedimentos da I Visita da Inquisição à Bahia, entre 1591 e 1593. O confinamento dos réus era uma prática comum a quase todos que pecavam e precisavam ser reconciliados com a Igreja (SIQUEIRA, 2013). Foi consequência direta dos processos inquisitoriais contra eles movidos. E assim, por comer carne de bichos do mato na Quarema e nos demais dias

190 ISSN 2358-4912 proibidos pela Igreja, Simão Roiz foi preso em 19 de janeiro de 1593. Dois dias após sua prisão, chegara ao cárcere Francisco Pires, sendo ambos levados a auto público de fé no domingo de 24 de janeiro daquele ano. A sentença a eles imposta foi a “abjuração por suspeita leve” que corresponde ao quarto veredito incluso no Manual dos Inquisidores, elaborado por Nicolau Eymerich, em 1376, e reelaborado por Francisco de La Peña, em 1578. Esse veredito determinava, em caso de suspeita pública, que o réu deveria abjurar no meio da nave da igreja de frente para o altar para que todos os presentes o vissem (EYMERICH, 1993). Foi o que ocorreu a Simão Roiz, a Francisco Pires e a outros companheiros de cárcere. A cerimônia do auto público da fé aconteceu na Sé de Salvador, a qual era situada com o rosto sobre o mar da Bahia, defronte do ancoradouro das naus. A Igreja era de “três naves, de honesta grandeza, alta e bem assombrada, com cinco capelas bem feitas e ornamentadas e dois altares nas ombreiras da capela-mor” (SOUSA, 1987, p. 135). Foi no altar da Sé que os réus foram apresentados publicamente e expostos à humilhação moral e social, perante o Visitador do Santo Ofício, os padres, os assessores, grande concurso de religiosos e do povo. Todos estavam lá para ouvir, além do sermão, as palavras de arrependimento dos condenados. É chegada a hora da abjuração. Simão Roiz deveria estar absorto pelas lembranças de tudo o que lhe acontecera até aquele momento. Aguardava a sua vez de ser chamado, porque era assim que funcionava a abjuração pública e coletiva. Ao ouvir seu nome, deveria agir conforme o ritual, aproximando-se e “ouvindo de pé a leitura de suas faltas” (SIQUEIRA, 2013, p. 624). Em seguida, tinha que ficar de joelhos perante o Visitador a fim de repetir as palavras da abjuração. Algo semelhante deve ter ocorrido com os demais que com ele estavam. A abjuração, nas palavras de Francisco Bethencourt, reflete “o ato de expressão pública e formal do arrependimento do penitente, de recusa das heresias cometidas e de compromisso renovado com a Igreja Católica” (2000, p. 249). Simão Roiz, ao desrespeitar os dogmas católicos, rompeu automaticamente com a Igreja, sendo necessário fazer a abjuração para ser reconciliado. A ação de Heitor Furtado de Mendonça para com Simão Roiz refletiu o modo de proceder a Inquisição em um plano macro: concluir os processos, às pressas, com “o propósito de reunir o maior número de penitentes – forma de tornar mais brilhante a festa principal da instituição” (BETHENCOURT, 2000, p. 221). Com o número maior de penitenciados, evitou-se fazer abjuração individual, para fazê-la em ato coletivo visando a obter uma maior mobilização da população, a qual presenciaria “abjuração de todos os reconciliados, por pequenos grupos” (BETHENCOURT, 2000, p. 250). Além das penitências espirituais impostas, as sentenças também trouxeram uma imposição que se adequava à realidade colonial: proibiu os réus a não mais retornarem ao sertão – local onde habitavam os índios, onde os soldados praticavam ações que contradiziam o catolicismo, local, sobretudo, onde eles pregavam contra as intenções dos jesuítas, tornando-se empecilhos às ações missionárias. Percebemos que a proibição de retorno ao sertão não se limitava a garantir o restabelecimento espiritual dos réus. Contribuía, mormente, com o desenvolvimento das ações missionárias, uma vez que coube somente aos jesuítas, através de lei real de 1591, a tarefa ou “o privilégio de ‘descer os índios do sertão’, o que por sua vez, implicava o poder exclusivo de destribuição e do uso dos indígenas nas regiões litorâneas” (DAVIDOFF, 1982, p. 35, grifo do autor). Com o auxílio das novas determinações legais, os jesuítas poderiam retomar seu projeto evangelizador atravancado pelos soldados sertanistas que além de pregar contra as intenções dos jesuítas, invadiam aldeias para aprisionar índios, pondo em descompasso o ritmo dos trabalhos missionários que iniciavam ao romper da manhã com os badalos do sino a soar.

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Considerações Finais O sertão colonial, lócus de atuação de Simão Roiz e de seus companheiros que atuaram como soldados sertanistas, tornando-se alvo de Heitor Furtado de Mendonça que trabalhou para zelar pela unidade da Fé Católica, agindo de modo a tentar impedir os desvios dos homens que se diziam cristãos, mas que, no sertão, agiam contra o catolicismo. A rarefeita trajetória de Simão Roiz nos mostrou que o sertão foi o palco das discordâncias que moveram jesuítas e sertanistas. Entretanto, havia uma concordância básica que era a relevância do

191 ISSN 2358-4912 gentio para o sucesso da colônia. Mas grande parte dos gentios negava-se a responder a ambos os grupos, cujas relutâncias variavam desde as lutas armadas à acomodação e aculturação. Embora tenha iniciado pela acusação de comer carne em dias de preceitos, o processo de Simão Roiz revelou, como bem disse Ronaldo Vainfas, uma teia de “falsos enganos”, por meio da qual os sertanistas acabaram pregando contra os jesuítas para obterem a mão de obra dos gentios. Essa disputa entre sertanistas e jesuítas foi sendo ampliada à medida que as distintas estratégias acabavam chegando no limite da outra. Ambos os interessados coincidiam quanto à necessidade de introduzir os índios na vida “civilizada”, mas quando se sentiam ameaçados, os colonos sertanistas atingiam os jesuítas no seu ponto franco – nas atividades missionárias. Por isso que acreditamos que os jesuítas, auxiliares da comitiva inquisitorial, podem ter influenciado nas decisões tomadas, inclusive na pena de não mais retornar ao sertão. As punições podem se configurar como uma ressonância dos acontecimentos de outrora, coadunando-se com a metáfora de George Duby (1986) referente aos redemoinhos formados a partir da pedra atirada na água. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CONVERSÃO NOS CAMINHOS DE DENTRO: ENCONTROS DOS KIRIRI E JESUÍTAS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1660-1699) Ane Luíse Silva Mecenas Santos620 Após a expulsão dos holandeses, intensifica-se uma rota de povoamento rumo ao sertão da Bahia. Nesse processo de expansão pelos “caminhos de dentro” são estreitados antigos laços com as comunidades de tapuais. Antigos aliados dos portugueses no apressamento de índios e de escravos. Diante da conquista desse novo espaço, os territórios religiosos é partilhado entre as ordens religiosas, os jesuítas ficam sob a tutela da margem sul do Rio São Francisco, enquanto que os capuchinhos ficam com a margem ao norte. Esse trabalho visa analisar o processo de conversão jesuítica alicerçado nas comunidades Kiriri do sertão da Capitania da Bahia e de Sergipe Del Rey. O marco temporal adotado compreende a formação das primeiras aldeias administradas pelos jesuítas até a publicação do Catecismo Kiriri organizado pelo padre Mamiani. A conversão dos kiriri foi apresentada em estudos como fato isolado de aldeamentos específicos, como o caso do Geru, sempre debatendo a história e a conversão desse povo levando em consideração os limites territoriais estabelecidos pelo colonizador. Outra contribuição proposta por esse trabalho visa utilizar para a constituição da interpretação histórica confrontando diferentes fontes, de cunho administrativo, dos quais destaco os alvarás, decretos e cartas, e de cunho religioso, cartas ânuas, catecismos e gramáticas. Em virtude da especificidade linguística os jesuítas que aturaram nessa região foram a partir do processo de observação e de registro dos hábitos locais sistematização um códice linguístico adequado as suas necessidades. Primeiramente, o padre João de Barros organizou um manuscrito que não chegou a ser publicado e ao final do século XVII o padre Mamiani publica com a autorização da ordem dois instrumentos de conversão o catecismo em língua kiriri e a gramática. Esses instrumentos foram utilizados nas aldeias de Mirandela, Saco dos Morcegos, Natuba e Geru. Dentre os Kiriri destaca-se os dialetos Kipeá, Dzubukuá, Kamuru e Sapuyá. Os dois primeiros foram alvo de estudo, o primeiro foi analisado pelo padre Mamiani e o segundo pelo capuchinho Bernardo de Nantes. No catecismo Kiriri do padre jesuíta são destacados os hábitos e costumes da população, tanto no Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri como na Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da naçam Kiriri.. Os resquícios desse trabalho são os murmúrios dos detentores do poder da escrita que tentam estabelecer a comunicação com os gentios. Para isso, o conhecimento da língua local passa a ser imprescindível para o êxito da catequese. Através desses dois documentos pensamos ser possível perceber a importância do domínio da língua local para a comunicação e como instrumento de conversão na “arte de educar” o gentio. A palavra seria um canal para que o índio pudesse alcançar a salvação, sendo esse o papel fundamental da missão. Ao longo do processo de colonização, muitos desempenharam a função de um homem-memória, ao registrar os feitos, ao narrar as conquistas e ao descrever as paisagens621. Distante do mundo europeu, as penas filtravam o olhar do estrangeiro acerca da América, e por isso foi descrita com estranhamento e admiração. A comunicação se tornava necessária. Serviu como instrumento de controle por parte da estrutura burocrática do antigo regime, bem como estratégia de benesses por parte dos súditos do rei. O volume documental produzido, sejam os alvarás, as cartas e ou os diários de viagem o Novo Mundo se

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Diretora do Museu Galdino Bicho e da Pinacoteca Jordão de Oliveira. Professora da Universidade Tiradentes e da Rede Pública do Estado de Sergipe. Doutoranda em História pela UNISINOS. Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Sergipe. Pesquisadora dos grupos de pesquisa do diretório da Capes, “Jesuítas nas Américas”, “Culturas, Identidades e Religiosidades” e “Arte, Cultura e Sociedade no Mundo Ibérico (séculos XVI a XIX)”. 621 RAMINELI, Ronald. Viagens Ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008. p. 32

193 ISSN 2358-4912 descortina perante a tessitura do velho. Nesses registros além da descrição do era visto, cada linha escrita carrega em suas marcas os mundos do escritor.622 Pela seleção da escrita as narrativas acerca do Novo Mundo foram tecidas. Não apenas no mundo burocrático da corte, mas nos bastidores da fé. Nesse ensejo uma vasta escrita, voltada a “adaptar” os mecanismos de conversão dos indivíduos que viviam na América, foi produzida623. Catecismos e gramáticas passaram a ser elaborados pelos membros das mais diversas ordens. O significativo número de publicações, envolvendo a normatização das línguas indígenas para o modelo latino, reflete a diversidade de povos e consequentemente de costumes, conforme aponta Daher:

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(...) as operações de dicionarização e de gramaticalização das línguas indígenas não são apenas fundamentos de estratégias catequéticas, são elas mesmas determinadas teologicamente, ratificação evidente do princípio unitário da verdade divida profunda frente à multiplicidade 624 superficial das línguas humanas, desde a dispersão da língua adâmica no mundo.

Uma das necessidades que se estabeleceu estava pautada na questão do conhecimento e a partir da estratégia, construir a narrativa do texto. A efetivação da colonização precedia da necessidade de domínio do espaço e do outro. Conhecer o lugar era condição sine qua non para o êxito da ação. E nessa conquista pelo espaço era imprescindível a formação de alianças. Na dinâmica de povoação da América Portuguesa foi efetivada, primeiramente, com a ocupação do litoral. Nesse momento inicial, foi possível estabelecer os limites de norte a sul da colônia, uma língua foi instituída como a falada na costa, que a partir de um tronco linguístico “unificava” povos. Após a expulsão dos holandeses tornou-se imprescindível fincar raízes nos caminhos de dentro625. E avançar rumo aos sertões. A cada passo distante da costa, da zona de conforto o conhecimento adquirido nas décadas anteriores apresentou falhas. Dessa forma, com a colonização rumo aos “caminhos de dentro”626 , tornouse fundamental encontrar novas formas de comunicação para conhecer o espaço e assim efetivar o projeto de conquista. E nesses novos caminhos um grupo desses “novos” sujeitos históricos passam a ser os Kiriri. Conforme Dantas, os Kiriri são “índios que formavam importante grupo lingüístico cultural do Nordeste brasileiro, cujo habitat se estendia desde o Paraguassu e o rio de São Francisco até o Itapirucu, afastado da linha da costa, domínio dos povos de língua Tupi”627. Almeida também faz referência ao grupo: “Do tronco linguístico macro-jê e habitantes do sertão do São Francisco, os kariris tiveram seus costumes descritos por jesuítas e capuchinhos (...)”628. A instrumentalização do processo de conversão foi travado a partir da elaboração de uma gramática e de um catecismo em língua Kiriri. Com a finalidade de facilitar a comunicação e assessorar os padres durante a prática de conversão. Organizados para publicação pelo padre Mamiani, um homem memória, que registra nas suas duas obras o estranhamento pelo que viu e dessa forma descobriu costumes e diferenças. Mamiani ocupa por ter domínio da língua do outro ocupa o espaço bilíngue.

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CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVII. Coleção tempos. Tradução Mary del Priore. Brasília: Editora da UnB, 1994, p. 13. 623 Dos quais podemos destacar: Arte da Grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasi,l do padre Jose de Anchieta, 1595; Arte da Grammatica da lingoa brasílica, do padre Luiz Figueira, 1687; Diccionario da língua geral do Brazil, sem data definida; Caderno de vocábulos da língua geral, muito necessário para com brevidade se aprender, feyto no anno de MDCCL; Diccionario dos vocábulos mais uzuaes para a inteligência da dita linguage; Diccionario da Lingua geral do Brasil que se falla em todas as Villa, lugares e aldeias deste Vastissimo Estado. Escrito na Cidade do Pará. Anno de 1771; Diccionario portuguez, e brasiliano, obra necessária aos ministros do altar(...) 1795. 624 Daher, Andrea (2012), A oralidade perdida. Ensaios de história das práticas letradas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.46 625 Os caminhos do sertão já eram empreendidos pelos criadores de gado ainda no século XVI, contudo esse projeto de governo passou a ser intensificado após a Restauração pernambucana. 626 Termo encontrado na documentação do Arquivo Ultramarino e se refere ao caminho da Bahia, passando pela Capitania de Sergipe até chegar ao Rio São Francisco. 627 DANTAS, Beatriz Góis (1973), Missão Indígena no Geru. Aracaju: UFS, p. 2. 628 ALMEIDA, Maria Celestino de (2010), Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, p.32.

194 ISSN 2358-4912 E o papel do bilíngüe, na sociedade colonial, é o do individuo que ocupa a zona do hiato entre dois mundos sociais, representado suas maneiras de falar. Tornando-se o elo entre mundos e desempenhando um papel social para as duas sociedades de que fala. As formas de comunicação ocorrem nas misturas, “lingüística de contato”. Nas zonas de fronteira linguísticas são adquiridas novas formas de fala.629 De acordo com Leite630, Mamiani nasceu na cidade de Pésaro, Itália, no dia 20 de janeiro de 1652. Tornou-se membro da ordem, quando tinha 16 anos, em abril de 1668. Embarcou para o Brasil em 1684. Tinha com destino a missão do Maranhão, contudo foi enviado para a aldeia do Geru, na Capitania de Sergipe Del Rey já nos limites com a Bahia. Nesse aldeamento, atribui-se a ele a fundação do templo votivo a Nossa Senhora do Socorro. Organizou e publicou as obras Catecismo Kiriri e Arte da Gramática Kiriri. A sua atuação na Terra Brasilis não durou muito tempo, em 1701 retornava ao Velho Continente. Posteriormente, tornou-se procurador em Roma e lá viveu até a seu falecimento em 8 de março de 1730. Todavia a normativa de instrumentos linguísticos não ficou restrita aos domínios portugueses na América, esteve presente na dinâmica do Império português. Após a expulsão holandesa dos domínios da África e do Novo Mundo é possível constar uma “corrida” aos sertões e a ampliação dos domínios nessas localidades. Para mapear as publicações da Companhia de Jesus o primeiro caminho foi seguir os “rastros” da tipografia responsável pela publicação dos textos da língua kiriri. As duas obras organizadas por Mamiani foram publicadas pela Officina de Miguel Deslandes. O responsável pela tipografia era Miguel Deslandes, francês, naturalizado português e desde 1687, tornou-se impressor real631. Durante a segunda metade do século XVII, sob o selo dessa tipografia, publicaram dezenas obras da Companhia. Dentre os livros, sete obras foram de autoria do padre Antônio Vieira. É conveniente destacar a publicação de duas gramáticas nesse período, uma em língua Kiriri e a outra em língua Angola. Assim como o Brasil, Angola também foi invadida pelo holandeses na primeira metade do século XVII. E, nessa restauração da antigas colônias nos dois lugares a Companhia de Jesus ficou responsável por normatizar a língua nesses dois lugares do Império português. Conforme aponta Batista: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

(...) os jesuítas estavam inseridos em um processo no qual línguas das Américas, da África e da Ásia foram aprendidas num momento que ficou conhecido, posteriormente, como de expressiva publicação de obras referentes às línguas das terras colonizadas por nações europeias a partir das 632 Grandes Navegações.

A Arte e língua Angola foi organizada pelo padre Pedro Dias633. O jesuíta elaborou a normativa da língua quimbundo na Bahia634. Possivelmente, por não ter vivido na África e não ter elaborado o registro in loco, a sua obra não possui um espaço dedicado ao leitor como na gramática e no catecismo de Mamiani. Na documentação consultada, não foi possível encontrar como o referido padre aprendeu o Kiriri. Serafim Leite aponta a existência de um manuscrito elaborado pelo padre João de Barros, no período em que esteve como superior na aldeia de Canabrava. E na escrita de Mamiani inicia ressaltando a experiência de vinte e cinco anos dos “religiosos da Companhia desta Provincia do Brasil” nos sertões 629

BURKE, Peter. A arte da conversão. Tradução Álvaro Luiz Hattnher. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 29. 630 LEITE, Serafim (1949), História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, p. 351-353. 631 CUNHA, Xavier da, 1840-1920 Impressões deslandesianas: divulgações bibliographicas. Lisboa: Imprensa Nacional, [1895], (1896). - 2 v. http://purl.pt/254 632 BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Descrição de línguas indígenas em gramáticas missionárias do Brasil colonial. DELTA, Vol. 21. 2005. p. 123. 633 No ano de 2006 a Biblioteca Nacional organizou a publicação fasc-similar do livro. 634 LIMA, Ivana Stolze. Na Bahia, a arte da língua de Angola. Comunidades linguísticas no mundo Atlântico. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo Social. Natal, 2013, p. 1-13. Consultado em 14 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371346755_ARQUIVO_ArtigoAnpuh2013.pdf

195 ISSN 2358-4912 do Brasil. A ação dos jesuítas junto aos kiriri teve inicio nos idos de 1666, na aldeia de Natuba. No ano seguinte foi inserido um novo aldeamento, Canabrava. E por volta de 1691, efetivou-se a atuação em Saco dos Morcegos e por fim, em 1683 no Geru. A comunicação entre os padres que viveram nesses aldeamentos pode ser observada também quando analisamos as licenças da ordem para publicação. No catecismo há três licenças. A primeira é assinada pelo jesuíta Antônio de Barros, que em sua assinatura apresenta a localização em que preparou seu parecer para publicação, a aldeia de Canabrava. O outro padre é João Matheus Falletto que se encontrava na aldeia do Geru, ou missão de Nossa Senhora do Socorro. E terceiro autorizar a impressão é o provincial da Companhia Alexandre de Gusmão, que assina do colégio da Bahia. Outro ponto curioso acerca das licenças é referente importância que os padres atribuem a obra. Para Antônio de Barros o catecismo irá beneficiar as “almas, com que poderão agora ser melhor doutrinadas nos mysterios”. João Matheus Falletto a obra não fere os bons costumes e só iria facilitar a instrução e a salvação das almas por parte dos missionários. Já o provincial autoriza a impressão, não pelo fim que a mesma iria atender, mas por ter sido avaliada e respaldada pelos outros padres especialistas na língua. Sua licença é semelhante a atribuída a Arte da Língua de Angola, do padre Pedro Dias. E com relação a publicação em língua Angola, é curioso também observar que todas as licenças foram elaboradas por jesuítas que se encontram no colégio da Bahia. Ao analisar as licenças da gramática podemos observar a repetição da autorização do provincial Alexandre de Gusmão, com os mesmos termos e assinada na mesma data, 27 de junho de 1697, apenas com a alteração, do nome da obra. O padre João Matheus Falletto também apresenta um licença para a publicação da gramática, com pequenas passagens que foram publicadas no catecismo e suprimidas na versão da arte. A diferença se faz presente na terceira licença do padre Joseph Coelho do seminário de Belém. O referido jesuíta salienta os dezenove anos que viveu junto aos índios Kiriri e apoia a publicação pela contribuição que a mesma proporcionaria aos missionários na “salvação daquelas almas”. Os indícios do processo de aprendizado do Kiriri pelo padre Mamiani é possível constar nas advertências ao leitor, onde ele descreve a importância da obra e a dificuldade em organizá-la. O trabalho se tornou árduo por conta da dificuldade de pronunciação, que gerava discordância entre os próprios padres. Esse ponto pode ser confirmado na licença de publicação do padre João Matheus Falletto quando afirma que o catecismo é claro, apresenta a propriedade da língua no que era humanamente possível visto que a “pronúncia bárbara, & fechada” dificultava o entendimento. Por isso, para o autor a obra não é perfeita, contudo, faz-se necessário a publicação pois o mérito está na normatização básica para o estabelecimento da comunicação. Essa é a justificativa apresentada pelo padre por ter elaborado um catecismo bilíngue. Com as frases em Kiriri e em português Mamiani defende a tese que o leitor poderia ter maior facilidade em aprender a língua indígena, seja ele um padre ou qualquer outra pessoa. Para ele, a importância da obra é poder “administrar o remédio” ao gentio, e mesmo na ausência de um padre, os índios pudessem aprender o que era mais importante, os mistérios, pois caso um individuo que não fosse religioso tivesse posse do catecismo deveria ensinar o método para seus filhos, seus escravos e todos pelos quais fosse responsável. O jesuíta descreveu a estruturação do seu método de aprendizagem. Ao ouvir cada palavra, ele anotava a pronuncia e o significado. Entretanto, o método só alcançou êxito, pela constante comunicação, com outros padres e com os índios. Esse é um ponto de destaque da obra de Mamiani a dinâmica da comunicação, a circulação de padres entre as aldeias Kiriri e os detalhes de como o conhecimento oral é estruturado e moldado para a escrita europeia. Podemos concluir que a aprendizagem do autor passava pela capacidade do mesmo em ordenar os sentidos. Primeiramente, com o olhar e assim observar os gestos e o espaço no qual estava inserido. Em seguida, com a audição, saber ouvir e conseguir interpretar os ditos e os silêncios. E por fim, construir a trama da memória do que viu e ouviu em uma narrativa. Esse oficio era importante para conseguir cumprir com o objetivo da publicação da obra:

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ISSN 2358-4912 (...) para os missionários novos serem ouvidos, e entendidos pelos índios, que he o fim principal, que se pretende, pois por falta dele não se declarao aos índios muitos mysterios, & muitas cousas 635 necessárias a hum Cristão.

O catecismo foi organizado em três partes, dedicada as orações, aos mistérios e as instruções. O jesuíta optou em organizar os ensinamentos em forma de diálogo porque era a forma mais utilizada e de acordo com ele era também a mais fácil de ser ensinada. Mamiani ratifica o era necessário que o índio aprendesse, as orações e as respostas das perguntas gerais. De acordo com ele, não deveriam esperar que os índios aprendessem tudo, porque não era necessário como também para o autor eles não tinham capacidade para isso. Mas deveriam entender ao processo como uma prática ordenada. Para ilustrar os ensinamentos as explicações acerca da doutrina, foram relacionadas aos elementos práticos da vida e do mundo que os cercavam. Na passagem em forma de diálogo na qual o padre explica a Santíssima Trindade: Explicarei isso como o exemplo do rio. Nasce a agua da fonte do rio, & corre formando o rio, & dahi sahe formando hua lagoa. A mesma agua he a que sahe da fonte, corre no rio, & fórma a lagoa. A fonte, o rio, & a lagoa são três lugares distintos entre si, & para a lagoa são três lugares distintos entre si, & com tudo he hua só, & a mesma agua que sahe da fonte para o rio, & para a lagoa: Assim 636 o Padre he Deus, o Filho he Deos & em três pessoas distintas.

Nos elementos apresentados antes das normativas as quais se dedica o catecismo, são elencadas algumas características referente aos Kiriri. Mamiani, nas advertências ao leitor salienta o cuidado com o povo bravo, bárbaro e que não tinha capacidade de aprendizagem. E na gramática ele retoma essa discussão ao problematizar a língua e associar seus caráter “bárbaro” ao ausência de lei e de regras. Mamiani, ao longo de sua escrita, constrói sua narrativa a partir de duas concepções de tempo, duas modalidades de ser no mundo: o sagrado e o profano. As duas concepções são regidas tanto em caráter individual, nas práticas diárias de cada sujeito, bem como no que tange o coletivo da comunidade, nas atividades do bem comum do grupo. Dessa forma, a normatização da rotina é estabelecida com o intuito de alcançar a salvação. Observa-se que no tempo profano há um conjunto maior de práticas particulares, constituídas pelas orações individuais, modelos de vida seguidos a partir dos mandamentos. Contudo, a salvação não é alcançada apenas através do conjunto de atividades individuais, pois a ação praticada com o outro também deve ser discutida e ensinada. Para Eliade: Tal como o espaço, o Tempo também não é, para o homem religioso, nem homogêneo nem continuo. Há, por um lado, os intervalos de Tempo sagrado, o tempo das festas (na sua maioria, festas periódicas); por outro lado, há o tempo profano, a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso. Entre essas duas espécies de Tempo, existe, é claro a continuidade, mas por meio dos ritos o homem religioso pode “passar”, sem perigo, da duração 637 temporal ordinária para o Tempo sagrado.

Já na gramática Mamiani638 aponta outras concepções de tempo, partindo dos tempos verbais. De acordo com o autor na língua kiriri os verbos podem ser conjugados no presente do indicativo, no futuro do indicativo, no pretérito perfeito do indicativo, pretérito do indicativo, no gerúndio, no particípio, no imperativo e permissivo, no modo optativo e conjuctivo. Para indicar cada tempo verbal

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MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698]. 636 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p. 43-44. 637 ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, p. 63. 638 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1877), Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da naçam Kiriri. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.35.

197 ISSN 2358-4912 há uma série de regras apresentadas, entretanto a conjugação só é feita na primeira pessoa do singular. Para as outras pessoas verbais devesse apenas mudar os artigos dos pronomes. O tempo ordinário era rompido pelo tempo sagrado639 todos os domingos, o primeiro dia das festas do Nascimento do Senhor, da Ressurreição, Pentecostes, as festas da Circuncisão, da Epifania, da Ascensão, do Corpus Christi, do Nascimento do Senhor, da Purificação, da Anunciação, da Assunção, como também o dia de São Pedro e São Paulo. Ao observar essas datas destacadas pelo inaciano podemos ter uma ideia do calendário festivo das aldeias. Além disso, mostra que tanto no domingo como no dias santos deve-se ouvir a missa640 e rezar, mas se podia também cozinhar, comer, caçar e pescar. As atividades voltadas para a alimentação eram permitidas. O jejum também marca o tempo, pode ser incluído no conjunto de práticas que marcam a passagem dos anos e do tempo sagrado. As datas festivas remontam ao tempo litúrgico, constitui-se na antiga prática de rememorar a partir da representação o ritual de evento sagrado o passado mítico da fé cristã641. A festa marca a saída da vida temporal “ordinária” e inserção do indivíduo no tempo mítico, percebem-se encenadas que fazem parte de um conjunto de regras que compõem o universo festivo, passíveis de repetição. Trata-se de um tempo ontológico. Para Bakhtin: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As festividades têm sempre uma relação marcada com o tempo. Na base, encontra-se constantemente uma concepção determinada e concreta do tempo natural (cósmico), biológico e histórico. Além disso, as festividades, em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos marcantes da festa. E são precisamente esses momentos – nas formas concretas das diferentes festas – que criaram o clima típico da 642 festa.

Anualmente, na festa de Nascimento de Cristo, a etiqueta cerimonial que compõe a mentalidade cristã dessa data é rememorada de forma semelhante ao longo dos anos. Isso contribui com a formação de uma mentalidade coletiva e simbólica do grupo que participa da celebração. Na festa anual, que marca a passagem do tempo há o reencontro com o tempo sagrado, e nesse caso coletivo. Os elementos específicos que compõe as festas não foram apresentados. Não se identificou a normatização das festividades. A descrição dos rituais não consistia no objetivo de Mamiani. Possivelmente, a ritualização da festa fosse composta principalmente pelo visível, de forma teatral, por isso não haveria a necessidade de registrar no “manual” que serviria de base para a comunicação entre os membros da ordem e o grupo de gentios que falava o Kiriri não traz a “tradução” dos ritos. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia identificamos como procissões que ficaram a cargo dos jesuítas a da Santíssima Trindade e a Terça Feira das quarenta horas. O tempo sagrado era marcado pelas festas bem como através dos sacramentos. Dos quais Mamiani destaca sete: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema unção, ordem e matrimônio. Ato necessário para o bom cristão e estabelecido tanto no Concílio de Trento como nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e também presente no mencionado catecismo, é a penitência. Para isto o indígena deveria utilizar sua memória para elencar todos os pecados praticados após o batismo. No Título XXXIV das Constituições, intitulado da “Contrição, confissão, e satisfação, que se requer para o sacramento da penitencia e dos effeitos que elle causa” são estabelecidas três regras básicas que o penitente é obrigado a cumprir para alcançar a perfeita purificação dos pecados, são elas: a contrição, a confissão e, por fim, a satisfação da culpa pelo Confessor. 639

ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes. 640 Realizar missas pela manhã era também o que estava estabelecido nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia celebrado no dia 12 de junho de 1707, no Título IV Em que tempo, hora, e lugar se deve dizer a Missa, artigo 336, “Prohibe o Sagrado Concilio Tridentino, que os Sacerdotes digão Missa fora das horas devidas, e competentes, as quaes conforme o costume universal da Igreja, e Rubricas do Missal Romano, são desde que rompe a alva até o meio dia” (VIDE, 2007, p.137). 641 ELIADE, Mircea (2001), O sagrado e o profano: essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, p. 64. 642 BAKHTIN, Mikahail (2008), A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 8.

198 ISSN 2358-4912 A segunda cousa, que deve fazer o penitente é a Confissão vocal, e inteira de todos os seus peccados com a circunstancias necessariais: e para que esta sua Confissão seja inteira, e verídica, deve tomar tempo bastante para examinar com diligencia, e cuidado a consciência antes da Confissão, discorrendo pelos Mandamentos da lei de Deos, e da Santa Madre Igreja, e pelas obrigações de seu estado, vícios, companhias, tratos, e inclinações, que tem; vendo como peccou por pensamentos, palavras, e obras, e fazendo quanto puder por distinguir, e averiguar as espécies, e numero dos peccados. O qual exame feito, procurarão Confessor, a quem hão de dizer todos os seus peccados, e os mais que depois do exame lhe lembrarem. E requeremos a todos os nossos súbditos da parte de deos nosso Senhor , que não deixem de confessar peccado algum por pejo, e vergonha, ou temos dos Confessores, ainda que o pecado seja o mais grave, e enorme, que se póde considerar, porque são muitas as almas, que por este principio se condemnão643. Nessa passagem das Constituições é possível constatar a necessidade e a importância dada à confissão: a necessidade da consciência do ato e o arrependimento são características necessárias para a “purificação dos pecados”. No entanto, a confissão, para o branco, normalmente europeu, era algo simples de se fazer, levando em consideração as normas estabelecidas tanto no Concílio como nas Constituições, mas como seria confessar índios que viviam nas aldeias jesuíticas e que falam uma língua totalmente diferente daquelas conhecidas pelo colonizador? No catecismo kiriri a confissão era também prática obrigatória pelo menos uma vez ao ano, sob pena de excomunhão. A confissão era necessária, principalmente, quando havia iminente perigo de morte. Para efetivar o sacramento o pecador deveria ficar de joelhos e, em seguida, rogar a Deus e contar seus “verdadeiros pecados”:

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Fazer confessar o pecado para que ele receba do padre o perdão divino e saia conformado: tal foi a ambição da Igreja católica, sobretudo a partir do momento em que tornou obrigatória a confissão privada anual e além disso exigiu dos fiéis a confissão detalhada de toso os seus pecados ‘mortais’. Ao tomar essas decisões carregadas de futuro, a Igreja romana certamente não avaliava em que engrenagem punha o dedo, nem que peso estava impondo aos fiéis, nem que avalanche de problemas 644 decorrentes uns dos outros haveria de desencadear.

Dentre os diversos pecados o de mentir ou esconder alguma informação do padre local era profundamente abominado. Após a confissão era necessário pagar a penitência declarada pelo Confessor, podendo ela ser o jejum, dar esmola, fazer uma oração ou “rezar as contas”. A confissão era necessária nos dias da quaresma e principalmente quando havia conspícua ameaça de depauperamento: quando estavam doentes, quando fossem à guerra ou quando uma mulher fosse parir. E seguir os costumes dos avós significava ir para o inferno.645 A comunhão era prática comum na vida dos cristãos batizados. Fazia-se necessário comungar entre o período da Quaresma e da festa de Corpus Christi, como também jejuar. A prática do jejum era imprescindível em todas as festas da Quaresma, na vigília do Natal e da Ressureição. Nessas datas os gentios deveriam comer uma só vez durante o dia, mas nessa refeição não poderiam se alimentar de carne. O jejum dos índios, como também dos “negros da América”, era apenas não comer carne e alimenta-se uma vez ao dia. Estavam desobrigados nos seguintes casos: Não peccaõ, se estão doentes; se não tem de comer bastante para poder comer o necessário; se trabalhão muito; se lhes falta peixe, ou legumes, ou outro mantimento fora da carne; se são de pouca 646 idade, ou se são muito velhos.

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VIDE, Sebastião Monteiro da (2007), Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia / feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, p. 57. 644 DELUMEAU, Jean (2009), História do Medo no Ocidente 1300-1800. Uma cidade sitiada. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, p. 11. 645 MAMIANI, Luiz Vincêncio. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p. 157. 646 _________. (1942), Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica da Nação Kiriri. Lisboa. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, [1698], p.106.

199 ISSN 2358-4912 Percebemos que não se trata apenas de ensinar a oração, mas, sobretudo, explicar a importância do ato para quem o pratica. Nos diálogos encontramos a seguinte pergunta “Como havemos de rezar?” e a resposta “Há muitos modos, mas sobre tudo He bom rezar o Padre nosso, porque Jesu Christo ensinou esta oração aos seus discípulos. He bom também ki rezar a Ave Maria, ou a salve Rainha, pois assim nos ensinou a rezar a santa Igreja; para q a May de Deos interceda por nós para o seu Divino Filho” (MAMIANI, 1942, s/p). Após o Concílio de Trento, o culto à Virgem Mãe de Deus foi bastante divulgado, sendo que sua imagem se encontra presente em quase todos os templos nos escritos de Mamiani a repetição é método utilizado para que o gentio pudesse aprender.

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REFORMAS EDUCACIONAIS E AS ‘LUZES’ EM PORTUGAL* Antonio Cesar de Almeida Santos Diversos estudos procurados relacionar as ‘reformas pombalinas do ensino’ às ideias iluministas e, neste trabalho, pretendemos apontar para a importância dessas reformas para uma discussão acerca da presença das Luzes em Portugal.647 Neste sentido, consideramos que tais reformas estiveram orientadas pelo desejo de transformação da mentalidade dos jovens portugueses, afinado-a aos ‘novos tempos’, que exigiam profissionais com uma formação diversa daquela proporcionada até então.648 As considerações que iremos apresentar estão apoiadas em documentação oficial, na qual foram expostas as concepções e as expectativas dos propositores daquelas reformas.649 Entendemos que esse tipo de documentos, apesar de suas limitações, permite perceber nexos entre as ideias que circulavam no ambiente intelectual europeu da época e a formação que se esperava oferecer para os jovens portugueses.650 Assim, abordamos algumas questões que apontam para o tipo de estudante e, consequentemente, para o ‘profissional’ esperado pelos propositores das reformas educacionais da segunda metade do século XVIII, em Portugal, e também para a questão do método de ensino, buscando relacioná-lo com um dado saber que, defendemos, influenciou diretamente os diversos âmbitos da política pombalina. António de Oliveira, ao tratar do quotidiano universitário em Coimbra, entre os séculos XVI e XVIII, indica que o ato da matrícula e o juramento exigido ligavam o estudante “pela vida fora aos interesses da corporação, como estatutariamente se encontrava tipificado”.651 Mas, quem era aquele que chegava às portas da Universidade? Ou melhor, o que aqueles jovens, transformados em estudantes, esperavam alcançar com seus estudos? E, por outro lado, o que a monarquia portuguesa desejava deles obter? Conforme os “Estatutos Velhos”652, o candidato à matrícula em um dos cursos de direito deveria comprovar apenas o prévio conhecimento do latim. Para o ingresso nos cursos de Teologia ou

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Este texto decorre de pesquisas conduzidas a partir de Plano de Trabalho inscrito no Projeto Integrado de Pesquisa Ilustração e cultura escrita (Portugal e Brasil, 1750-1840), contemplado com recursos do Edital de Ciências Humanas 2012 (Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 18/2012). Universidade Federal do Paraná. Email: [email protected] 647 Necessário mencionar, CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva; Ed. Universidade de São Paulo, 1978 (originalmente publicado em 1952). Um registro recente deste tipo de abordagem pode ser visto em CARVALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008. Ver ainda ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal : temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. 648 Em relação às ações reformistas no contexto do Iluminismo, ver, entre ouros: OUTRAM, Dorinda. O iluminismo. Lisboa: Actividades Editoriais, 2001 e HOF, Ulrich Im. A Europa no século das Luzes. Lisboa: Editorial Presença, 1995. 649 Entre outros documentos, ver o Alvará de confirmação e os Estatutos da Aula de Comércio, de 19 de maio de 1759, o Alvará régio de 28 de junho de 1759 e as Instruções para os professores, a Lei de criação e os Estatutos do Colégio Real dos Nobres, de 7 de março de 1761, e a Lei de 6 de novembro de 1772. 650 Conforme entendem Mário Júlio de Almeida Costa e Rui de Figueiredo Marcos, “as modificações pombalinas testemunham um sério esforço destinado a implantar no ensino português certas modernidades que faziam carreira além-fronteiras”.COSTA, Mário J. de A.; MARCOS, Rui de F. Reforma pombalina dos estudos jurídicos. In: ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 97-125, p. 125. 651 OLIVEIRA, António de. O quotidiano da academia. In: História da Universidade em Portugal, I volume, tomo II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 617-692, p. 619. 652 Segundo Mário Júlio de Almeida Costa, “[...] os Estatutos Filipinos de 1598, conhecidos por Sétimos Estatutos, depois revistos e confirmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados por D. João IV (1653), permaneceram em vigor até à reforma pombalina. Recebem o nome de Estatutos Velhos, em contraposição aos chamados Estatutos Novos, de 1772”. COSTA, Mário J. de A. O Direito (Cânones e Leis). In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 823-834, p. 825.

201 ISSN 2358-4912 Medicina, o estudante deveria ter concluído curso em Artes.653 Não obstante essas exigências para o ingresso nas faculdades, o que pressupunha a realização de estudos prévios, diversos jovens concluíam os cursos universitários com idades entre 17 e 21 anos, apesar da duração média dos cursos jurídicos, por exemplo, ser de 7,2 anos.654 A propósito, não havia nos “Estatutos Velhos” nenhuma disposição que regulasse a idade mínima de ingresso na Universidade. A escolha dos cursos também era bastante desigual: o maior número de matrículas ficava com o curso de Direito Canônico, seguido pelo curso de Direito Civil; os cursos de Medicina e de Teologia eram os menos frequentados: “Mais precisamente, e reportando-nos a todo o longo período de 1577 a 1772, as proporções são, respectivamente, 72%; 15,3% (o que dá, para o conjunto das duas faculdades jurídicas, 87,3%); 7,1%; e 5,6%”.655 A opção pelas faculdades expressa o valor social atribuído às respectivas carreiras e, no que se refere ao âmbito do Direito, os “juristas letrados” foram ganhando espaço e reconhecimento, entre os séculos XVI e XIX.656 Nos dados acima mencionados, percebe-se um relativo menosprezo pela formação em Medicina, mesmo sendo um curso de menor duração (6 anos). Conforme Fernado Taveira da Fonseca, “Na hierarquia dos saberes cujo ensino se professava nas chamadas faculdades maiores da Universidade, a Medicina ocupava o último lugar, depois da Teologia e dos dois Direitos”. Esta situação decorria, em parte “do seu carácter, quase misto, de ciência (procurando, como tal, a explicação causal dos fenômenos que analisava) e de arte (fornecendo um conjunto de preceitos tendentes à execução bem sucedida de técnicas curativas)”.657 A faculdade de Teologia gozava de uma certa especificidade, sendo “majoritariamente freqüentada por membros das ordens religiosas”, em busca do grau de doutor, “de cariz marcadamente honorífico, embora estatutariamente exigido para os que optavam pela carreira docente universitária”.658 Os cursos de Direito aparecem, portanto, como aqueles que ofereciam – aos olhos dos estudantes e de suas famílias – as melhores oportunidades de ‘empregos’ e de reconhecimento social. Para além desses quatro cursos, também existia, em Coimbra, desde 1653, “uma cadeira de Matemática”.659 As informações acima oferecem alguns traços daquele que chegava às portas da Universidade de Coimbra, no período precedente à Reforma de 1772. Se o estudante esperava empregos e reconhecimento social, o que a monarquia portuguesa desejava do ensino universitário? Conforme os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1653, além da “honra, glória e serviço de Deus nosso Senhor”, esperava-se que na universidade fosse realizado o ensino das “ciências necessárias para bom governo e conservação da República Cristã”.660 José Subtil, assim, vê a Universidade de Coimbra como um agente responsável pela reprodução do poder dominante, na medida em que produzia a “elite dirigente”; seus graduados eram atraídos para ofícios e cargos que asseguravam a presença simbólica do soberano em diversos níveis e espaços da administração régia (juízes de fora, corregedores, provedores, entre outros).661 António de Oliveira

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Estatutos da Universidade de Coimbra confirmados por el Rei nosso Senhor Dom João o IV, no ano de 1653. Coimbra: Oficina de Thomé Cavalho, Impressor da Universidade, 1654, p. 136. [versão digitalizada]. 654 FONSECA, Fernando Taveira da. [Os corpos acadêmicos e os servidores] Universidade Coimbra. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 499-600, p. 555. 655 Idem, p. 537-539. 656 Ver HESPANHA, Antonio Manuel. Os modelos normativos; os paradigmas literários. In: MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal : a Idade Moderna [coordenação de MONTEIRO, Nuno Gonçalo]. Lisboa: Círculo de Leitores; Temas e Debates, 2011, p. 58-70. 657 FONSECA, Fernando Taveira da. A medicina. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 835-873, p. 835. 658 FONSECA, [Os corpos acadêmicos ...], op. cit. , p. 541. 659 Estatutos (1653), p. 144. 660 Estatutos (1653), p. 1. Nas citações dos documentos, optamos pela atualização ortográfica e gramatical, devido à origem diversa das fontes com que trabalhamos, em sua maior parte, impressas. Havendo interesse, as referências permitem o acesso aos documentos citados. Manteve-se, contudo, a ortografia dos textos publicados em Portugal. 661 SUBTIL, José. O protagonismo dos professores e dos graduados. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 943-964, p. 943-944.

202 ISSN 2358-4912 salienta, então, que “não admira, por isso, que o poder régio, à medida que se foi fortalecendo, se impusesse à Universidade como corporação, cerceando-lhe as liberdades colectivas”.662 Se mesmo antes da Reforma de 1772, a Universidade de Coimbra já respondia pela formação de uma “elite dirigente”, quais foram as motivações das reformas empreendidas no reinado de D. José I? Seriam elas prioritariamente educacionais? Tratou-se mesmo de uma tentativa de alterar uma situação na qual, “por motivos metodológicos fundamentais, a ‘ciência’ ministrada na Universidade nada tinha de investigativa e tudo de argumentativa”?663 Ou seja, as “reformas pombalinas” expressaram de fato um “sério esforço destinado a implantar no ensino português certas modernidades que faziam carreira além-fronteiras”?664 Ana Cristina Araújo, confrontando “planos, tratados, cartas e instruções que antecederam” e instituíram as ‘reformas pombalinas’ e documentos produzidos depois dela, entende que os resultados ficaram, “em muitos aspectos, aquém da ambição e das expectativas alimentadas por alguns dos mais conceituados filósofos e teorizadores”, referindo-se especificamente a Luís Antonio Verney, Antonio Soares Barbosa e Antonio Nunes Ribeiro Sanches.665 Sem dúvida, é difícil encontrar a transposição das ideias desses intelectuais para as reformas educacionais portuguesas, da segunda metade do século XVIII. Contudo, também há que se levar em conta os ideais políticos que orientaram as ações administrativas no reinado de D. José I. Ou seja, como reconhece Ana Cristina Araújo, “não se tratava apenas de controlar, funcionalmente, a escola, mas de infundir, por meio de um projecto coerente de educação nacional, a ideia de que a instrução era inseparável do bem comum e da felicidade pública”. Nesse sentido, houve uma tentativa de adequar a educação portuguesa “às exigências secularizadoras e regalistas do Estado”, conformando-a às “orientações dominantes, do ponto de vista filosófico, pedagógico e científico, do século das Luzes”.666 Eram patentes as expectativas em relação a transformações sociais e políticas e, nesse sentido, percebe-se que as reformas do sistema educacional português estiveram diretamente relacionadas ao desejo de modificar a mentalidade de setores da sociedade portuguesa.667 Essa mentalidade reformada se conformaria a um “discurso da ilustração portuguesa” que, conforme apontado por Francisco António Lourenço Vaz, reconhecia na instrução “a chave para formar o cidadão cristão, que seria necessariamente virtuoso, trabalhador e aplicado para obter a riqueza para si e para o Estado”.668 Mas os “Estatutos Velhos” da Universidade de Coimbra já tinham em vista o “cidadão cristão”, preconizando que, junto às ciências, fosse ensinada a “santa doutrina” necessária à conservação de uma “República Cristã”.669 Neste aspecto, o que diferencia um momento do outro? Como apontamos em outros trabalhos,670 no reinado de D. José I, a disposição em formar homens virtuosos e trabalhadores, aplicados em “obter a riqueza para si e para o Estado”, está diretamente relacionada à necessidade da recuperação econômica de Portugal, e as ações para essa recuperação estiveram apoiadas em proposições da aritmética política inglesa, com a qual Sebastião José de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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OLIVEIRA, António de. A Universidade e os poderes. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 897-941, p. 897 e 898. 663 MAGALHÃES, Joaquim Romero. A Universidade e a Inquisição. In: História da Universidade em Portugal, op. cit., p. 971-988, p. 971. 664 COSTA & MARCOS, op. cit., p. 125. 665 ARAÚJO, A cultura das Luzes..., p. 51-66. 666 Idem, p. 54. 667 Ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para formar homens capazes de “discernimento e de percepção” : reformas educacionais em Portugal (segunda metade do século XVIII). Anais do XIII Encontro Estadual de História ANPUH/PR, Londrina, 2012, p. 392-403. 668 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia: as ideias económicas no discurso da Ilustração portuguesa (1746-1820). Lisboa : Colibri, 2002, p. 74 [destaques no original]. 669 Estatutos (1653), p. 1. 670 Ver, entre outros, SANTOS, Antonio Cesar de Almeida . O mecanismo político pombalino e o povoamento da América portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional, v. 15, n.1, p. 78-107, 2010; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, jan.-jun. 2011; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 205-226.

203 ISSN 2358-4912 Carvalho e Melo671 tomou evidente contato quando de sua estadia em Londres, durante o período compreendido entre os anos de 1738 e 1742. Em Portugal, referências aos princípios da aritmética política inglesa permaneceram mesmo após o reinado de D. José I, como mostram, por exemplo, diversos textos produzidos por Domingos Vandelli672. Este antigo professor da Universidade de Coimbra reformada defendia que a economia, para ser útil aos interesses do reino português, deveria ser regulada “por princípios deduzidos de uma boa aritmética política”, ressaltando que “não se devem seguir sistemas, sem antes examiná-los e confrontá-los com as actuais circunstâncias da nação”.673 Esta proposição de que os “sistemas” deveriam ser confrontados à própria realidade condensa a teoria política de Carvalho e Melo, para quem as especulações deviam ser postas de lado e, no lugar delas, produzir-se um conhecimento que, a partir da observação da realidade, pudesse ser comprovado “por demonstrações de conta, peso e medida”674. Ou seja, conforme William Petty (1623-1687), reconhecido como o principal teórico da aritmética política inglesa, devia-se “usar apenas argumentos baseados nos sentidos e considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração de outros as que dependem das mentes e opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens”.675 No geral, é esta a disposição que norteia todas as propostas do reformismo pombalino, seja na área econômica, ou na educacional: o abandono de noções pré-concebidas (os “sistemas” mencionados por Vandelli) em prol de conhecimentos produzidos a partir de uma observação sistemática da realidade social sobre a qual se objetiva intervir, modificando o que existe.676 Retomemos, então, a discussão que foi proposta mais acima, sobre a formação dos cidadãos necessários para o “bom governo e conservação da República Cristã”: aos olhos de Carvalho e Melo e de seus coligados, a Universidade portuguesa estava preparada para oferecer um ensino mais assentado na investigação do que na mera argumentação? Considerando que a resposta a esta questão seja negativa, parece-nos que o foco da reformas pombalinas na área pedagógica girou em torno do método de estudo, como deixa entrever o texto do Alvará de 28 de junho de 1759, que retirava dos jesuítas as suas escolas. O método que passaria a vigorar era aquele “reduzido aos termos simples, claros e de maior facilidade, que se pratica atualmente pelas nações polidas da Europa”,677 em contraste ao método de ensino utilizado pelos padres da Companhia de Jesus,678 o qual já havia sido criticado, na década de 1730, por Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, que expressava suas reservas ao “sistema abstrato de Aristóteles, ou para melhor dizer dos Escolásticos”.679 Pouco antes da assinatura do Alvará que reformou os Estudos Menores, D. José I havia confirmado os Estatutos da Aula de Comércio, uma “pública e muito importante Escola” na qual seriam ensinados “os princípios necessários a qualquer Negociante perfeito”.680 No geral, o objetivo dessa escola era “a V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782) foi nomeado secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra em 1750; em 1756, passou a ocupar o cargo de secretário de estado dos Negócios do Reino. Recebeu o título de Conde de Oeiras, em 1759, e o de Marquês de Pombal, em 1770. 672 Domingos Vandelli foi professor de História Natural e de Química na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, por cerca de 20 anos (1772-1791). Fez parte, depois, da Academia Real das Ciências. 673 VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas (1789). In: SERRÃO, José Vicente (dir.). Domingos Vandelli: aritmética política, economia e finanças. Lisboa: Banco de Portugal, 1994, p. 143 [nosso destaque]. 674 Carta de 19 de fevereiro de 1742, citada em SILVA DIAS, José Sebastião da. Pombalismo e projecto político. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984, p. 227. 675 Ver PETTY [e] QUESNAY. Obras econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 143. 676 Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José : na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 168. 677 Alvará de 28 de junho de 1759, sobre a reforma dos Estudos Menores. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações : Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 675. [versão digital, disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73; consulta em 12/06/2012]. 678 Ana Cristina Araújo destaca: “no fulcro das novas tendências filosóficas, está o problema do método dos estudos”. ARAÚJO, A cultura das Luzes ..., p. 29 [destaque no original]. 679 PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de um menino nobre. Lisboa: Oficina de Joseph Antonio da Silva, 1734, p. 319. 680 Estatutos da Aula de Comércio, In: SILVA, op. cit., p. 656.

204 ISSN 2358-4912 conservação e aumento do Bem público dos meus Vassalos e do Comércio”.681 Conforme os referidos Estatutos, a Aula, com duração de três anos, estava aberta, preferencialmente, a jovens das famílias de “homens de negócios”; eles deveriam saber “ler, escrever e contar” e ter, ao ingressar, “catorze anos completos”. Essa última exigência foi, para a época, uma novidade. Aos olhos dos elaboradores dos Estatutos da Aula de Comércio, a idade ajudaria a definir um aluno “apto” para o ensino e para os empregos dele decorrentes, pois os estudos não poderiam “suprir o defeito causado pela pouca idade”.682 Os Estatutos do Colégio Real dos Nobres também previam uma idade mínima (e máxima) para ingresso: “os que houverem de ser admitidos no dito Colégio, saberão ler e escrever, não tendo menos de sete anos, nem mais de treze”.683 A limitação de idade, neste caso, além de estar relacionada à aptidão de leitura e escrita dos alunos, aponta para o tipo de ensino que seria ministrado aos jovens fidalgos postos sob a responsabilidade dos dirigentes e professores daquele Colégio: os alunos deveriam conhecer e observar os preceitos de Deus “e da sua Igreja, não bastando que no Colégio floresçam as Belas Letras se com elas não se aprenderem e cultivarem os bons costumes”.684 Os cuidados com “os bons costumes” dos jovens fidalgos estudantes do Colégio dos Nobres estão relacionados ao tipo de formação que se pretendia conferir a eles. Assim, enquanto os estudantes da Aula de Comércio já teriam recebido uma primeira educação escolar (dada a idade mínima de ingresso), na qual se incluíam os preceitos religiosos, os alunos do Colégio dos Nobres, ao contrário, eram crianças e jovens que, não obstante a necessidade de saberem ler e escrever, iriam ser instruídos para bem desempenharem funções no serviço régio: ao mesmo tempo em que tinham aulas de esgrima, dança e equitação, também recebiam uma formação que lhes permitiria o ingresso na universidade.685 Apesar de existirem recomendações acerca do que deveria ser ensiando, o professor da Aula de Comércio não estava preso a um plano de ensino formalizado.686 Ao contrário, os professores do Colégio Real dos Nobres deviam seguir instruções bastante extensas e detalhadas; em especial, o “método pelo qual [se] pretende ensinar” devia ser previamente aprovado. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] que os professores da Lógica, da História, da Matemática, da Arquitetura Militar e Civil, do Desenho, da Física e das Artes, da Cavalaria, Esgrima e Dança formem cada um deles na sua diferente profissão uma Minuta na qual se contenha: primeiramente, uma idéia clara do método pelo qual pretende ensinar; em segundo lugar, um catálogo dos livros por onde intenta que seus respectivos discípulos hajam de estudar; em terceiro e último lugar, outro catálogo que sirva de socorro de estudo àqueles que entre os sobreditos discípulos se acharem capazes de passar das lições das Escolas a exercitarem-se pela sua própria aplicação nas Faculdades, que antes houverem aprendido. Conferindo-se as referidas minutas, depois de assim serem formadas com o Reitor e Professores, que ao mesmo Reitor e Professores parecer convocar para a conferência. E sendo os autos dela remetidos ao Diretor Geral para Me os consultar e Eu resolver sobre eles o que achar que é mais útil ao adiantamento e boa ordem dos Estudos.687

Além destas disciplinas, D. José I, considerando que o “estudo da Matemática e das diferentes partes que a constituem é não só útil, mas indispensavelmente necessário a todos os que aspirarem a servir-me na milícia, ou por mar ou por terra”, estavam previstos “três professores desta proveitosa ciência”.688 No lugar de um mero “ornamento”,689 o ensino e o aprendizado da Matemática devia-se à 681

Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: SILVA, op. cit., p. 655. Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: op. cit., p. 658. 683 Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 778. 684 Idem, p. 775. 685 Embora não exista, nos Estatutos do Colégio dos Nobres, uma indicação expressa sobre a duração dos estudos, entendemos que a permanência dos alunos seria aquela que Laerte Ramos de Carvalho apresenta para as escolas menores jesuíticas: “o curso de gramática e humanidades deveria durar de cinco a seis anos. Completada a iniciação literária, passavam os estudantes para as classes de filosofia, que abrangiam três anos de estudos sobre lógica, física, metafísica, moral e as matemáticas. Totalizavam esses estudos nove anos”. CARVALHO, As reformas pombalinas ..., p. 113. 686 Alvará régio de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula de Comércio. In: SILVA, op. cit., p. 658. 687 Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 785-786. 688 Idem, p. 782. 682

205 ISSN 2358-4912 sua importância na formação de jovens nobres que, futuramente, estariam encarregados da defesa “da pátria”.690 Os jovens que viessem a concluir seus estudos no Colégio Real dos Nobres, e que recebessem aval do Diretor Geral dos Estudos, teriam direito a efetuar suas matrículas nas faculdades da Universidade de Coimbra, sem outros exames. Lembremos que os Estatutos de 1653 não traziam normas que regulasse a idade de ingresso nas faculdades, verificando-se, mesmo, alguns casos de matrículas bastante precoces. Contudo, conforme registra Fernando Taveira da Fonseca, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O panorama das condições de acesso à Universidade muda de forma substancial, com os Estatutos de 1772. [...] Antes de mais, pelo estabelecimento de idades mínimas de ingresso – para obviar, como explicitamente se afirma, a que se precipitassem os estudos preparatórios: assim é que ninguém poderia matricular-se em Teologia “sem contar dezoito annos de idade completos, e dahi para cima”; o mesmo se aplicava a Medicina; para os cursos de Direito (Civil e Canônico) a idade mínima seria de dezasseis anos; já para Matemática se podia ingressar com quinze anos e para Filosofia, com catorze.691

Como sabemos, o corolário de toda a reformulação do ensino, no reinado de D. José I, foi a redação dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, elaborados pela Junta de Providência Literária. Os elaboradores dos Estatutos de 1772 defendem que os estudantes “se demorassem nas Escolas Menores” o tempo necessário para a aquisição “dos estudos preparatórios”.692 Nesse sentido, percebe-se, por exemplo, uma atenção específica para com os estudos prévios do “futuro teólogo”. Os interessados em cursar Teologia, precisavam ter uma “boa instrução da Língua Latina, da Retórica, das Disciplinas Filosóficas e muito principalmente da Lógica”, além de estarem “instruídos em todas as partes da Metafísica” e, “cientes na Ética”.693 Para além das questões relativas às condições para o ingresso dos estudantes, os membros da Junta de Providência Literária criticavam duramente o método de estudos até então adotado, acusando-o de estar fundado em “questões sutis, abstratas e inúteis” e em “contendas, disputas e rixas” inócuas.694 Podemos entender que o principal ponto da reforma dos Estatutos residiu em definir o que devia ser ensinado, como e por que. Tal atenção constrasta com a constante dos Estatutos de 1653, que eram totalmente omissos na definição de uma metodologia de ensino, prescrevendo apenas as formalidades dos atos, ou exames, que os estudantes estavam obrigados a realizar.695 Apesar de não considerarmos que as chamadas reformas pombalinas do ensino derivem exclusivamente de um enfrentamento ao método utilizado pelos jesuítas, os responsáveis pela redação dos Estatutos de 1772 estendem-se por diversos parágrafos sobre “o método e ordem” que deveriam ser seguidos, indicando que o “método demonstrativo” (também designado por “Geométrico ou Matemático”) deveria ser “inviolavelmente o que se deva sempre adotar e seguir no ensino da Teologia, de todas as ciências, e de cada uma das partes de que elas se compõem, para poderem as suas lições ser mais frutuosas”.696 Para concluirmos estas reflexões, apontando para a influência das ideias dos aritméticos políticos ingleses nas reformas do ensino, verificamos que, sem dúvida, a intenção dos elaboradores dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra foi a de substituir o ‘aristotelismo escolástico’ dos jesuítas por um método “mais próprio para dar a conhecer as verdades pelas suas causas”,697 uma disposição à qual devemos associar uma máxima de William Petty que veio a ser adotada por Sebastião José de Carvalho

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Estatutos (1653), p. 144. Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. In: SILVA, op. cit., p. 786. 691 FONSECA, Fernando Taveira da. A dimensão pedagógica da reforma de 1772 : alguns aspectos. In: ARAÚJO, O Marques de Pombal..., p. 43-68, p. 46-47. 692 Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da imediata e suprema inspeção de el Rei D. José I. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1772, Livro Primeiro, p. 5. 693 Idem, p. 10 e 5-6. 694 Ver Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra, 1972, p. 97-141. 695 Estatutos (1653), p. 185-186. 696 Estatutos (1772), Livro Terceiro, p. 3. 697 Estatutos (1772), Livro Primeiro, p. 22-23. 690

206 ISSN 2358-4912 e Melo para a formulação de sua política:698 “em vez de usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos intelectuais, tratei de [...] usar apenas argumentos baseados nos sentidos e considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza”.699 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000. ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. CALAFATE, Pedro (org.). Portugal como problema, volume 2 – Séculos XVII e XVIII, da obscuridade profética à evidência geométrica. Lisboa: Público; Fundação Luso-america, 2006. CARDOSO, José Luiz (org.). Portugal como problema, volume 5 – A economia como solução; do mercantilismo à ilustração (1625-1820). Lisboa: Público; Fundação Luso-america, 2006. CARRATO, José Ferreira. O iluminismo em Portugal e as reformas pombalinas do ensino. São Paulo: USP, 1980. CARVALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português? A reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008. CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva; Ed. Universidade de São Paulo, 1978. FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011. História da Universidade em Portugal, I volume, tomo II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. HOF, Ulrich Im. A Europa no século das Luzes. Lisboa: Editorial Presença, 1995. MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna [coordenação de MONTEIRO, Nuno Gonçalo]. Lisboa: Círculo de Leitores; Temas e Debates, 2011, p. 58-70. MELO, Sebastião José de Carvalho. Escritos econômicos de Londres (1741-1742). [Seleção, leitura, introdução e notas de José Barreto]. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 168. OUTRAM, Dorinda. O iluminismo. Lisboa: Actividades Editoriais, 2001. PETTY [e] QUESNAY. Obras econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996. PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de um menino nobre. Lisboa: Oficina de Joseph Antonio da Silva, 1734. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. O mecanismo político pombalino e o povoamento da América portuguesa na segunda metade do século XVIII. Revista de História Regional, v. 15, n.1, p. 78-107, 2010. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95, jan.-jun. 2011. SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para formar homens capazes de “discernimento e de percepção”: reformas educacionais em Portugal (segunda metade do século XVIII). Anais do XIII Encontro Estadual de História ANPUH/PR, Londrina, 2012, p. 392-403. SERRÃO, José Vicente (dir.). Domingos Vandelli: aritmética política, economia e finanças. Lisboa: Banco de Portugal, 1994. SILVA DIAS, José Sebastião da. Pombalismo e projecto político. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984. VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia: as ideias económicas no discurso da Ilustração portuguesa (1746-1820). Lisboa: Colibri, 2002. 698

Ver Códice 686. COLEÇÃO POMBALINA (Biblioteca Nacional de Portugal). “Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do mecanismo político” e “Mecanismo político no qual se oferece à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence ao comércio e a agricultura), cujos princípios se reduzem a termos práticos e mecânicos” [textos autógrafos do marquês de Pombal, sem data, fls. 187-190v. e fls. 191-199 – paginado posteriormente]. 699 PETTY [e] QUESNAY, Obras econômicas..., p. 143.

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CAPITÃES DO SERTÃO: INTERESSES, CONFLITOS E DOMINAÇÃO Antonio José de Oliveira700 Os sertões das Capitanias do Norte só foram ocupados definitivamente por parte dos colonos após as guerras luso-holandesas. Encerrado esse conflito, muitas das decisões tomadas pela Metrópole delinearam os rumos da administração e da economia na Colônia. Ao reestruturar o poder Central, D. João IV optou em colocar à frente das capitanias indivíduos que prestaram bons serviços, muito dos quais egressos dessas guerras. Mestres de Campo, Capitães mores, Sargentos e outros indivíduos de baixa patente se destacaram e ganharam mercês e muitos ocuparam postos importantes na administração dos territórios coloniais, engrossando cada vez mais as fileiras de uma elite privilegiada. A política de distribuição das mercês respondia aos apelos desse grupo que lutou e expulsou junto com boa parte da população os inimigos das terras luso-brasileiras. Dessa forma, a Metrópole estava tentando retribuir os esforços e os gastos financeiros que os mesmos depreenderam para vencer tão cruenta guerra. O requerimento do Capitão Agostinho Cardozo ilustra um pouco isto; Diz o Capitão Agostinho Cardozo filho legitimo de Jorge Cardozo que elle tem servido a vossa Magestade na guerra viva e exercito de Pernambuco(...)consta pella folha corrida do Capitão João de Morim Bentecor a fl¹ que sendo o inimigo ocupado a Villa de Olindae sitiado oforte de Recife(...)lhe sahio odito Capitam com vinte soldados e alguns índios ao encontro donde lhe mataram nove e aprizionaram hum fazendo retirar os mais(...) e por certidão do Capitam Francisco Rabelo fl4 e por outra do Capitam Afonso de Albuquerque fl5-consta que se achou elle supplicante naocaziam emque se avistaram astrincheiras que oinimigo tinha nopontal comartilharia e ronqueira daqualpelejando comvalor matando eferindonelles leha ganharam adita trincheira e elle supplicante consta pellejar comsinal de valor(...) Pede a V.M. a que em remuneração dos dittos serviços,pessoais de doze annos contínuos, de guerra viva e com tanta satisfaçam lhefaça mersê de hum hábio das três ordens, com promessa de hua comenda; e enquato não for provido nella a já outenta mil res de tença; ou penção noutros, eque V.Magde. o ocuppe em 701 seu serviço composto que lhe for servido.

Diante destes feitos muitos adquiriram autoridade, poder e prestígio junto a Coroa. Para o governo de Pernambuco, homens como João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Francisco Barreto, Costa Barros, Fernão de Sousa Coutinho, Jerônimo de Albuquerque, Matias de Albuquerque, dentre outros, se destacaram como importantes Capitães na guerra, bem como Mestres de Campo, e mais tarde responsáveis pela frente de expansão colonial para os sertões. Homens de confiança da Coroa, os três primeiros servem de exemplo para ilustrar um pouco de sua autoridade, poder, mandonismo e dominação. João Fernandes Vieira, Capitão mor, que atuou como Governador da Paraíba, cometeu delitos que foram muito bem registrados pela historiografia, sobretudo contra os nativos. Suas atitudes violentas contra os filhos de Janduí, chefe de uma importante nação indígena, desencadearam em violentos conflitos. Leonardi (1996, p. 53), observa que Mandando encerrar dois filhos de um cacique daquela tribo, tão logo assumiu a ele a Capitania da Paraíba, em 1655, sob a alegação de que os Jandui teriam colaborado com outros mercantilistas holandeses. É a partir desse incidente, aliás, que os Janduí, em represália, começaram a atacar fazendas de gado no sertão e incendiá-las. Uma guerra como essa contra os Janduí, que durou trinta anos, teve como resultado um verdadeiro genocídio. Não há outro termo para qualificar semelhante violência, nem há razão alguma para que a historiografia tente evitá-lo.

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Doutorando em História Social do Programa de Pós-graduação-Universidade Federal do Ceará-UFC. Bolsista-CAPES. Email: [email protected] 701 AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 4. Doc. 314. Em 16 de julho de 1642.

208 ISSN 2358-4912 Há denúncias da má administração do também Mestre de Campo Vidal de Negreiros e também Fernandes Vieira quando atuaram na Capitania de Pernambuco. Os mesmos são supostamente acusados de cometerem alguns delitos como abaixo se enuncia:

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Votte se nesse Conselho o decreto q. V.Mgde. foi servido mandar a elle sobre as cartas q. farão assinar por V.Mgde. para Andre Vidal de Negreiros e João Fernandes Vieira(...) aestes Mestres de Campo que Gouvernão os portugueses daquella Capitania de Pernambuco vassalo de V.Mgde.(...) e nestas formas pareceo que era licito q. V.Mgde. como Rey e Snr. Nosso, mandasse acodir as vexações q. aly padecião os Navios q. desvião deste Reyno, e ainda osq. se fazem naquelles povos(...)702

Se as denúncias eram plausíveis ou não, o importante é entender que esses dois indivíduos tinham do soberano confiança inquestionável. Preocupação, confiança/ou suposta proteção, os exemplos desses indivíduos demonstram como aos poucos foram se construindo os laços de lealdade recíproca e de confiança entre Coroa/Vassalos. Importante compreender também que o documento deixa transparecer também os conflitos internos existentes entre os representantes do poder local. Conflitos que passaram a ser mais acirrados após as guerras luso-holandesa, uma vez que, com as reformulações efetuadas pelo novo monarca deixaram a todos na expectativa de conseguirem altos postos no escalão da administração colonial ou em outros territórios pertencentes à Metrópole. Com essa euforia, os esforços para demonstrar os melhores serviços e impressionar o rei não tinham limites, mesmo que, para isso, tivessem que subjugar a tudo e a todos e até denegrir a imagem de seus próprios companheiros. Preocupado, o rei procurou amenizar esses problemas, e alertou para que cada um se preocupasse com seus próprios governos. Vejamos o documento abaixo; (...) procedendo nas ações de mayor importância, com Conselho dos Mestres de Campo e dosque mais práticos, inteligentes forem de guerra, porquanto dividir o governo militar, entre pessoas na mesma Provincia, não servirão demais, que de dar ocasião a invejas, e competências, de que nascem as divisões, e parcialidades, e retarda se a execução das causas, passando se muitas vezes as ordens em contrário e rendendo em dano Público, as paixões e sentimentos particulares, ficando a cada hum atribuyr assy os bons sucessos (...)703

Tentar eliminar ao máximo os conflitos e fazer com que os seus dirigentes se voltassem para suas capitanias e as fizesse atingir os sucessos desejados era a grande preocupação da Metrópole. Preocupações plausíveis, pois alguns Capitães em suas respectivas Capitanias, leia-se a de Itamaracá e de Pernambuco, parece que tomavam decisões sem conhecimento da Metrópole. O documento demonstra essa preocupação. E porque com a expulsão dos Olandezes de Pernambuco edas mais prassas do Estado do Brazil ficou também a Ilha de Itamaraca livre dos Olandezes, equerendo os moradores della tomar ao antigo costume de seu governo de Camara, Juizes e vereadores, e mais ministros, que lhe administrasse justiça o mestre de Campo geral lho impede e que vão aPernambuco tratar deseus requerimentos diante do ouvidor geral comque o pequeno povo daquella Ilha padecem(...)704

A atitude do Capitão da Capitania de Itamaracá elucida as novas diretrizes políticas que passariam a se configurar a partir de então. Os poderes dos Capitães à frente de seus respectivos governos apontam para um mandonismo verticalizado que se traduziu nas atrocidades contra a população branca e pobre, o negro e o índio. Isto acontecia, dentre outros problemas, dado as dimensões dos territórios da Colônia, as quais dificultavam demasiadamente que a legislação Metropolitana atingisse a todas as Capitanias. As diferenças entre as Capitanias e as formas de administração de seus Capitães eram evidentes, sobretudo no trato com a criminalidade. Apesar de haver o Regimento Geral das capitanias, a sensação 702

AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 05. Doc. 363. Em 24 de outubro de 1647. (grifos meus) AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 07. Doc. 466. Em 31 de março de 1654. 704 AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa. 6. Doc. 526. Em 09 de março de 1655. 703

209 ISSN 2358-4912 era de que estava defasado ou não funcionava para coibir e julgar crimes graves. Exemplo mais palpável é o da capitania de Pernambuco. Ali, o governo tinha dificuldades em tratar os crimes que fugiam à alçada de seu regimento. Numa representação do povo (oficiais da Câmara) da referida capitania ao poder central, os mesmos reclamam que não sabem mais como lidar com a crescente violência e pede desesperadamente como proceder.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Os povos desta Capitania de Pernambuco prostados aos Reaes pés de V.A. representam a mizeria que padecem por cauza denão haver castigos nos delinqüentes com quesão emgrande crescimento os roubos, latrocinio e mortes eviolencias queordinaria exprimentão e suposto plo capitulo 4º do Regimento do Ouvidor geral se da faculdade em alguns cazos para ocastigo, contudo não para há principal Penna ordinária, sendo esta a deque mais necessita; em nome delles pedimos a V.A.seja servido ordens asque no governo desta Capitania se passão justiça e castigos os culpados compenna de morte natural na mesma forma que se sucedera ao Rio de Janeiro,com que se evitarão os grandes crimes que se cometiam, e como neste governo não são menores nem deixa de aver osmesmos ministros para sentenciarem, pedimos a V.A o conseda asim a esta Capitania, pois não há demenos reputação. 705

Se evidencia no documento os apelos da elite a aplicação da justiça e que há também um certo ressentimento dos moradores de Pernambuco de que estavam sendo menosprezados pelas leis Régias, uma vez que na Capitania do Rio de Janeiro existia sua “própria” forma de tratar os delitos mais graves. A distância do centro de poder e a ausência de vigilância, proporcionava essa vacância judicial e possibilitava aos comandantes locais irem preenchendo, gerenciando, controlando e exercendo seus poderes com maior autonomia. Como isso, as ordens emanadas da Metrópole quando aqui chegavam eram “negligenciadas”. Isto forçou ao Conselho Ultramarino se manifestar e propor ao rei que efetuasse reformulações no regimento do Governo Geral dos Estados do Brasil. Na observação do Conselho, (...) e emque a continuação do tempo alterou as cousas demodo que he muyto conveniente aos serviços de V.A emenda los, e reformula los deprezente. E porque destas ordens não dão cumprimento, sendo tantas vezes repetidas (...) os gouvernadores não obedecem, p’la conveniência que achão em não darem parte destas ordens pro e contra, para oque intentão em deserviço de V.A (...)706.

As leis metropolitanas não conseguiam mais contemplar os novos problemas que iam surgindo numa sociedade que se tornava cada vez mais dinâmica e complexa. Por sua vez, os Capitães aproveitavam para utilizar suas próprias formas de resolver os velhos e novos problemas que se apresentavam naquele cotidiano, tornando-se assim quase que absolutos em seus governos. Por essas e outras atitudes é que a Colônia se tornou o espaço do mandonismo. Senhores de Engenho, Capitães mores, dentre outros, ditavam suas “próprias” regras e faziam com que todos compulsoriamente a cumprissem. Na observação de Leonardi (1996, p. 120) foram esses homens ricos de Olinda, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, São Luis ou Belém que fizeram com que a achegada eventual de legislação humanitária, vinda de Portugal, virasse letra morta na América do Sul (...) no contexto do século XVII, os colonos sabotaram por todos os meios a legislação humanitário elaborada na Metrópole.

Em meio a uma gama de índios, degredados, negros e mestiços, os detentores de honras e privilégios foram proeminentes na condução e dominação de um ambiente social em construção. Nessa dinâmica, aos poucos vai se construindo uma das facetas mais degradantes da sociedade colonial: a formação de uma elite que se arrogava em ter o direito de vida e morte sobre seus subordinados. As concessões de privilégios, “provimento de postos e ofícios, sesmarias eram segundo 705

AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 12. Doc. 915. Em 16 de maio de 1672. AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 10. Doc. 909. Em 19 de Agosto de 1670.

706

210 ISSN 2358-4912 Gomes (2009, p. 123), mecanismos fundamentais para a construção da autoridade dos Capitães mores” e de outros elementos da sociedade civil. Com esses incentivos, indivíduos se agregavam a corpos militares e se precipitavam rumo aos sertões, e na certeza de conseguirem benesses não mediram esforços para matar índios, tomar suas terras e desbaratar negros aquilombados. Todavia é praticamente impossível compreender as ações dos agentes da colonização dos sertões das Capitanias do Norte sem que tenhamos a sensibilidade de que houve um amplo e ambicioso planejamento. Território imenso e de difícil penetração, os sertões intimidavam a muitos. As hostilidades dos nativos ditos “Bárbaros”, as secas periódicas e uma fauna desconhecida, requeriam desses Capitães uma organização que envolvesse Coroa, Igreja, e outros agentes interessados. Desta feita, os interessados em novas aventuras e enriquecimento passaram a planejar as diretrizes para ocupação e conquista do restante dos territórios da Colônia. Estrategicamente, Poder Central, os Capitães e a Igreja, começaram a traçar os planos de como deveriam administrar e melhorar a ocupação dos sertões, uma vez que os pontos mais importantes da faixa litorânea já estavam conquistados e assegurados. Numa carta ao rei D. João III, o Bispo de Pernambuco, D. Frei Francisco de Lima, informando a situação da Junta das Missões, propõe alguns pontos para auxiliar nessa conquista e administração. Dentre os muitos pontos um é sobre o sertão. Observemos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tem V.Mgde. ordenado se Repartam os certoens em Capitães mores, e que se deve de declarar que cada hum no seo districto gouvernará e terá jurisdiçam sobre todos o Índios q. lhe for a sinado, e sobre o exame dos administradores da Aldeas, se deve mandar aos gouvernadores examinem os títulos comque muitos os administrão e faça que seevite todo dano que neste partícula possão senti os mizeraveis índios.707

A intenção da Igreja, mediante a Junta das Missões de Pernambuco era tentar monitorar as ações dos Capitães sobre os índios ditos “mansos” e aldeados. Por outro lado, se entende que a proposta sinaliza cada vez mais para os sertões onde havia muitos “Bárbaros” a serem catequizados. Responsáveis por essas jornada/entradas, os Capitães se precipitaram sobre os sertões e muitos aproveitaram para promover contra seus habitantes massacres sem precedentes. À frente das entradas, Capitães rompiam caatingas, escalavam morros, abriam picadas; padeciam fome e sede, atacavam e eram atacados por índios indômitos. De recompensas, recebiam sesmaria, construíam arraiais, paliçadas, fortificações, casas fortes e se tornavam senhores da localidade. Em outras ocasiões, não conseguindo vencer os nativos pelas armas, se utilizavam de negociações e os persuadiam à cooperar com a empresa colonial. Não dando resultados, de imediato requeriam a junta das Missões para que aprovassem Guerra Justa. Exemplo contundente desse momento foram as disputas que se sucederam numa das áreas do Médio São Francisco, onde existiam ricas minas de salitre e habitavam os índios Mancaru: Este Conselho parece dar conta a V.Mgde de que escreveu o Gouvernador da Bahia e pello queconsta da carta q. lhe escreveo o Gouvernador de Pernambuco se mostra q. neste particular da guerra que mandares fazer aesta nação de Indios Mancarus se procedeo segundo as ordens da V.Mgde pois mandou propor em Junta das Missoeins este negocio naqual seassentara ser justo o rompimento comeste inimigo por nao haverem dado ocazião nas repetidas hostilidades quenos fizerão. Lxª 25 de setembro de 1703. Do Conselho Ultramarino.708

Área bastante convidativa à criação de gado, fixar povoado, e de grandes possibilidades de encontrar muito mais riquezas, naquele momento, as terras do Médio São Francisco era alvo de acirradas disputas. As ambições dos Capitães e todos que o acompanhavam fizeram aquele espaço se tornar bastante conflituoso, tanto envolvendo os índios que se utilizavam daquelas terras para sobreviver, como entre os próprios colonos que pleiteavam as áreas mais ricas para criação de gado e a pequena agricultura. Se nos sertões da Capitania de Pernambuco, muitos Capitães travaram sangrentas batalhas para ocupar, conquistar e se apossar daqueles territórios, nos sertões da Capitania da Bahia não poderia ser 707

AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 19. Doc 1864. Em 14 de janeiro de 1701. AHU. Documentos para Pernambuco. Caixa 20. Doc.1941. em 25 de setembro de 1703.

708

211 ISSN 2358-4912 diferente. Se do lado do Governo de Pernambuco se destacaram Francisco Barreto, Vidal de Negreiros, Fernandes Vieira, entre outros, na Bahia, não devemos compreender a conquistas não só dos sertões baianos, mas das demais capitanias do Norte, sem mencionar o Capitão Garcia d’Ávila, os Guedes de Brito, os Adornos, dentre outros. Vale destacar a atuação de Dias d’Ávila, o qual é unânime na historiografia como grande conquistador e dominador de grandes extensões territoriais nos sertões do nordeste no período colonial. A cada ato importante que realizava em benefício da fazenda Real, Garcia d’Ávila era recompensado com sesmarias e outras mercês. Nesse processo, com “pequenas” sesmaria, algumas cabeças de gado e mão de obra indígena subjugada, aos poucos esse indivíduo foi aumentando seu patrimônio. Sempre que precisava, o governo da capitania da Bahia requisitava seus préstimos. Com a atitude de estar sempre disposto a auxiliar, Garcia d’Ávila estruturou seu poder econômico e político, passando a expandir suas terras na direção dos sertões. Como observa Lenk (2009, p. 54)

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Em 1629, o governador Diogo Luiz de Oliveira chamou uma expedição contra um mocambo situado ao Norte de Salvador. Antes da sua partida em 24 de janeiro, a Câmara procurou Francisco dias d’Ávila, o Capitão da empresa (membro da conhecida família de sertanista baiano), para juntos assentarem sobre o destino dos “negros resgatados”. Pelo acordo o Capitão recebera 9.000 por peça trazida até a cidade.

Na observação de Neves (2011,p. 254), Na transição para o século XVIII, haveria nos sertões da Bahia mais de 500 criatórios. Somente na borda direita do São Francisco encontravam-se 106 fazendas de gado estabelecidas por Antônio Guedes de Brito e arrendatários de suas terras. Na margem esquerda os descendentes de Garcia d’Ávila e seus rendeiros estabeleceram fazendas ente os riachos da Brígida e do Navio em Pernambuco, de onde se para outras províncias.

A família D. d’Ávila e seus aliados, que por dez gerações dominarem o cenário político e econômico da capitania baiana e também grandes porções de terras do interior das Capitanias do Norte, foi um dentre dos demais agrupamentos surgidos dessa sociedade profundamente hierarquizada e militarizada. “Quer chamemos esses poderosos da colônia de nobreza da terra, ou de outra denominação, eles se tornaram a base da governança local, exercendo mando frente à sociedade colonial e representando, não raro, resistência às diretrizes emanada da Coroa”. Pessoa (2007, p. 4) A atuação dos Capitães da capitania da Bahia em seus redutos não foi menos violenta que em outras capitanias. Na conquista daquelas terras, imensos conflitos se sucederam e na maioria deles estava presente essa afamada família. Os conflitos que provocaram maior repercussão foram os ocorridos nos finais do século XVII com os Franciscanos estabelecidos no Médio São Francisco, em especial com o Padre Martinho de Nantes.709 Assim, entre um conflito e outro os agentes da Casa da Torre iam galgando espaço no cenário colonial. Com seus foreiros, alcançou os sertões do Piauí e chegou a fronteira sul da Capitania do Ceará. Distribuindo seus rendeiros pelos sertões e cobrando foros de suas terras, a Casa da Torre enriquecia a passos largos. Muitos desses rendeiros/foreiros eram Capitães e foram importantes na conquista de muitas terras para a Casa da Torre. Teodósio de Oliveira Ledo foi um desses afamados foreiros. Foi o principal conquistador dos sertões do Cariri da Paraíba, Piancó e Piranhas. Após ferrenha luta contra os índios Cariri, conseguiu senhorear-se daquelas terras. Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, Fidalgo da Casa de sua Magestde q. Deos goarde Capitão mor e governador das armas da Capitania da Paraíba do Norte superintendentes das armas, fortificações della, pello ditto Capittão porquanto Francisco de Oliveyra Ledo Capitão mor da Certão do Cariri me enviou a dizer para sua petição que elle foy provido no dito posto nos fins do governo do meu antecessor (...)atente para como elle impetrar essa confirmação. E a entendo eu asino o ditto Francisco de Oliveira Ledo filho de Theodozio de Oliveira Ledo que foy muitos annos Capitão mor naquelle certão, e decorrido delle junto com seu pay, sujeitando o gentil. 709

NANTES, Padre Martinho de. Relação de uma Missão no São Francisco. Tradução e comentário de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, Brasiliana, volume 368, 1979, p. 20.

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ISSN 2358-4912 Enquanto Dias d’Ávila conquistava o Médio São Francisco chegando até as fronteiras da Capitania do Ceará, Antonio Guedes de Brito, da “Casa da Ponte”, fazia suas conquistas em outras áreas daquele sertões no sentido sul. Na observação de Antonil (1711, p. 186) Os herdeiros do Mestre de Campo Antonio Guedes de Brito possuem desde o Morro do Chapéu até a nascença do Rio das Velhas, cento & sessenta legoas. E nestas Terras, partes os donos dellas tem Curraes próprios; & pare são dos que arrendarão sítios dellas, pagando por cada sitio, que ordinariamente he de hua legoa, cada anno dez mil reis de foro.

Nesse ritmo, alargavam-se os espaços do sertão e ficava mais difícil definir fronteiras entre as capitanias. Onde quase tudo estava por se construir a lei do mais forte imperava e era complicado aos governos de suas respectivas capitanias gerenciar esses problemas. Assim, a atuação dos Capitães da Casa da Torre, da Ponte, da Igreja, dos Senhores de Engenhos, bem como de outros agentes envolvidos na conquista dos territórios dos sertões, provocou variadas formas de expropriação. Por se arrogarem de ter sido os pioneiros na conquista de muitos territórios, Capitães mandatários exerciam seus poderes de persuasão em povoados, vilas e cidades. As lutas envolvendo Capitães, Posseiros, Padres e Índios, que cada vez mais foi se aprofundando naqueles finais de século, desencadeou uma das mais sangrentas guerras em solo colonial, a Guerra dos “Bárbaros”. Causa disso foi cada vez mais o avanço das fronteiras coloniais que buscava sempre descobrir, dominar e ocupar muito mais territórios. Referências ANTONIL, J. A. Cultura e Opulência do Brasil por suas droga e minas. Lisboa: 1711. GOMES, José Eudes Arraes Barroso. As Milícias Del Rey: Tropas Militares e Poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: UFF, 2009. p.123 (dissertação) LENK, W. Guerra e Pacto colonial: exército, fiscalidade, e administração colonial da Bahia (1624-1654). São Paulo: Unicamp, 2009, p. 54.(dissertação) LEONARDI, V. Entre Árvores e Esquecimento: História Social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo15. 1996, p.53. Ver também Pedro Puntoni A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC, 2002, p. 124-125. NANTES, P. M. Relação de uma Missão no São Francisco. Tradução e comentário de Barbosa Lima Sobrinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, Brasiliana, volume 368, 1979, p. 20. NEVES, F. E. Curraleiro, Crioulo, Peduro: a pecuária como fator da formação socioeconômica do semiárido. In: Erivaldo Fagundes Neves (org). “Sertões da Bahia: Formação Social, Desenvolvimento Econômico, Evolução Política e Diversidade Cultural”. Salvador: Arcadia, 2011.p.254. PESSOA. A. E. S. Família, Propriedade, Tradição e Poder no Nordeste colonial: a casa da Torre de Garcia d’Ávila. Artigo publicado no XXIV Simpósio Nacional de História - ANPHU. 2007. p. 4

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O BASTIÃO DA CONQUISTA: A FORTALEZA DOS REIS MAGOS NO PERÍODO SEISCENTISTA Arthur Gabriel Frazão Bezerra Alves710 No final do século XVI, o rei Felipe I de Portugal (II de Espanha) ordenou o governador geral do Estado do Brasil, que enviasse expedições comandadas por Mascarenhas Homem e Feliciano Coelho, capitães mores de Pernambuco e da Paraíba, respectivamente, para conquistar definitivamente a capitania do Rio Grande. O principal objetivo da campanha era afastar os franceses e conquistar a região em que habitavam diversos grupos indígenas, fazendo desse território a “ponta da lança” para avanços da colonização portuguesa a oeste e noroeste711. Manuel Mascarenhas Homem, capitão-mor da capitania de Pernambuco comandou a expedição. Em sua companhia estava o jesuíta espanhol Gaspar de Samperes, experiente em arquitetura militar. Segundo Olavo de Medeiros Filho, Samperes foi um dos autores do traçado presente na fortaleza dos Reis Magos, fundada na barra do rio Potengi em 6 de janeiro de 1598, razão pela qual recebeu o seu nome712. Para Luis da Câmara Cascudo, Samperes seguiu a forma clássica dos fortes marítimos, com o modelo de polígono estrelado713. Inicialmente sua estrutura foi feita em taipa, ou seja, uma arquitetura vernacular à base de argila (barro) e cascalho.A edificação da fortaleza dos Reis Magos simbolizou o marco da conquista do território antes sob domínio dos potiguares e franceses. Nela abrigava-se um presídio militar e um quartel para soldados, sem nenhum povoamento ao seu redor. Segundo Cascudo, a fortaleza tornara-se a semente de uma cidade futura. A Relação das Praças e Fortes do Brasil, datado de 1609 e escrito por Diogo de Campos Moreno, sargento mor do Estado do Brasil, traz consigo informações valiosas a respeito da situação que se encontrava a fortaleza no início do século XVII. O relatório afirmava que a fortaleza ainda estava em construção, algumas paredes não possuíam sequer 18 palmos de altura, faltavam-lhe os parapeitos e entulhos para se poder lajear, e sobre o lajeado poder andar a artilharia. Com isso se isentariam de cotidianamente ter gastos com hastes de madeira. Diogo Campos ainda ressaltava a necessidade de se terminar a obra, pois “convém terminar a fortaleza e provê-la de moradores, pois, como fica dito, a terra tem com que sustentar os que nela trabalhem” 714. Em 1614, segundo Galvão, foi enviado à fortaleza um engenheiro-mor do Estado, arquiteto Francisco de Farias Mesquita. Retornando este em 1618, apresentou um relatório em sua volta a Pernambuco, mencionando ambas as inspeções, relatando que em 1614 fizera traçados para a fortaleza, e ordenara a continuidade das obras, entretanto, algumas não foram cumpridas. Francisco de Farias havia dado instruções para construção do terrapleno715 com pedra em sossa716, e contrariamente, foi feito de areia da praia e não de lama do mangue, diretamente sobre o arrecife, sem o contra piso de pedra em sossa. Em 1618, a fortaleza possuía diversas estruturas por fazer: a cisterna; um arco no meio do corpo da guarda; casas e alojamentos para os soldados; um pilar no centro do armazém; conclusão do lajeamento da praça alta; uma plataforma ao lado do mar; casa de pólvora; instalações de esgoto; casa de artilharia e a colocação de duas fiadas de laje na praça baixa717. A partir de 1622, existem informações provenientes da visita do provedor-mor da Fazenda, Antonio Barreiros, junto a outras autoridades. Segundo Galvão, o edifício estava concluído no conjunto. Na 710

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Graduando. Orientadora: Carmen Margarida Oliveira Alveal. Email: [email protected] 711 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 123-124. 712 MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 21-22. 713 CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Achiamé, 1984, p. 23-24. 714 GOLSALVES DE MELO, José Antonio. A Relação das Praças Fortes do Brasil (1609) de Diogo de Campos Moreno, p. 190. Apud: MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 23. 715 Praça de Armas em torno da qual se ergue uma fortificação e suas defesas. 716 Pedra que se coloca em uma construção sem argamassa. 717 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 50.

214 ISSN 2358-4912 Praça de Armas, dentro da fortaleza, ergueu-se a Capela dos Santos Reis Magos e acima dela, a casa de pólvora. Também havia se concluído a casa do capitão, onze casas de sobrado, um armazém de munições e o paiol de mantimentos, tudo coberto por telhas718. Em 1633, os holandeses invadiram o Rio Grande e dominaram a fortaleza dos Reis Magos, que passou a se chamar castelo de Keulen, em homenagem ao comandante Mathias van Keulen, conselheiro da Companhia das Índias Ocidentais719. O espião Adriano Verdonck, a serviço dos holandeses, relatou em 1630 que a fortaleza dos Reis Magos era a melhor que existia em todo o Brasil. As paredes possuíam cerca de dez polegadas e eram tão resistentes quanto belas. Verdonck já chamava atenção ao motivo pelo qual a fortaleza foi erguida naquela localidade: “Junto ao mesmo forte, para o lado do norte, fica o rio chamado Rio Grande, um muito grande e belo lugar; por esse motivo e porque os franceses e os ingleses ali aportavam frequentemente seus navios”720. Nota-se que as investidas ocorriam primeiramente, naquele que seria o principal símbolo do poder local (mesmo deficiente), pois se subentende que, ao dominá-lo, substancialmente a jurisdição local ficaria sob custódia dos novos invasores. As obras na fortificação prosseguiram sob o domínio holandês. Os neerlandeses fizeram da fortaleza o centro de suas atividades na região, e dessa forma, não poderiam descuidar da sua estrutura. Em 1638, foram chamados dois mestres pedreiros de Recife, João Rodrigues e Antonio Pires, bem com um engenheiro português chamado Cristovão Alvares, e juntos comandaram as restaurações e melhorias da fortificação 721. No entanto, com o abandono da guarnição holandesa presente na capitania do Rio Grande, após a rendição do Recife em 1654, a fortaleza não sofreu ataques722. A edificação ainda não estava concluída quando os portugueses e brasílicos reocuparam a capitania e as obras foram retomadas de forma lenta723. A situação econômica para a retomada das obras na fortaleza estava difícil. O vice rei, Dom Vasco de Mascarenhas, ordenou que os recursos para a construção da fortaleza fossem remanejados para a alimentação das tropas. Segundo o historiador Paulo Possamai, os holandeses exigiram uma pesada indenização para desistir do Brasil, e os portugueses ainda estavam em conflito com os espanhóis que não reconheciam a ascensão da dinastia de Bragança ao trono lusitano. Quando a guerra de Restauração da independência portuguesa (1640-1668) frente à Espanha terminou, a coroa portuguesa estava envolta em dívidas com as nações que o auxiliaram na independência da Espanha. A crise econômica foi agravada pelo grande número de concessões feitas aos estrangeiros no comércio colonial, para garantir o reconhecimento da família Bragança ao trono português e também pelo início da produção de açúcar nas Antilhas, que reduziu o preço internacional do produto, fonte primária de recursos para a coroa724. Esta difícil situação da Coroa portuguesa com a redução dos tributos e os gastos militares com a Guerra de Restauração agravaram a situação militar da colônia. As autoridades régias não possuíam recursos suficientes para administrar os reparos nas fortalezas, os pagamentos dos soldos e a compra de materiais bélicos. Devido aos conflitos entre as autoridades por jurisdição, principalmente entre o governador de Pernambuco e o governador-geral do Estado do Brasil, a situação militar de capitanias periféricas era agravada pelo não recebimento dos recursos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 51. MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997, p. 26-28. 720 MEMORIA oferecida ao Senhor Presidente e mais Senhores do Conselho desta cidade de Pernambuco, sobre a situação, lugares, aldeias e comércio da mesma cidade bem como Itamaracá, Paraíba e Rio Grande segundo o que eu, AdriaenVerdonck, posso me recordar. Escrito em 20 de maio de 1630. In: MELLO, José Antonio Gonçalves de. Fontes para a História do Brasil Holandês. Recife: CEPE, 2004. Tomo I: A Economia Açucareira. 721 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 88. 722 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 226. 723 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 133-134. 724 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 246-250. 719

215 ISSN 2358-4912 É importante destacar que depois da expulsão dos holandeses de Pernambuco e das demais capitanias do norte, a relação entre os governadores de Pernambuco com os governadores gerais ficou mais delicada, isso porque durante o processo de restauração Pernambucana, Francisco Barreto de Menezes exerceu o cargo de Mestre de Campo General do Brasil, o que dava a ele plenos poderes sobre as capitanias do norte. Por ser ele também governador de Pernambuco entre os anos de 1654 e 1657, esse tipo de influência que ele possuía sobre as capitanias do norte, que provinha do fato dele exercer o cargo de Mestre de Campo General, terminou sendo confundida pelos seus sucessores no governo de Pernambuco como prerrogativa deste posto, lembrando que eles não possuíam mais o posto de Mestre de Campo General725. Desta forma, o conde de Óbidos, ao assumir o governo geral tentou diminuir a influência de Pernambuco sobre as capitanias menores do norte, pois para ele, “[...]os Correias de Sá no Sul e os governadores de Pernambuco haviam esfacelado a autoridade do governador geral, estado de coisa inaceitável a que D. Afonso VI o encarregara de pôr cobro”726. Essa tentativa de diminuir a influência de Pernambuco sobre as capitanias vizinhas era decorrente do medo de que se Pernambuco tivesse sucesso nessa empreitada, outras capitanias passassem a exigir esse mesmo direito, o que terminaria esfacelando cada vez mais o poder central727. Em 10 de maio de 1664, o vice-rei, conde de Óbidos, escreveu ao Governador de Pernambuco uma solicitação de socorro à capitania do Rio Grande, salientando que já havia ordenado a seu antecessor, Francisco de Brito Freire, que enviasse à dita capitania “socorro a Fortaleza do Rio Grande com a infantaria que lhe parecesse, farinha e algumas coisas mais [...] necessário para o sustento daquela guarnição e reedificação da mesma Fortaleza” 728. A solicitação do conde de Óbidos a Francisco Brito Freire, não foi completamente atendida segundo o capitão mor do Rio Grande, que alegou ter recebido apenas sete soldados, 90 alqueires de farinha e quase nenhum recurso para mantimento das forças. Dessa forma, o vice-rei ordenava a Jerônimo de Mendonça Furtado729. Posteriormente, os oficiais da Câmara de Natal escreveram ao rei em 1665, alertando sobre as péssimas condições que ainda se encontrava a fortaleza dos Reis Magos. Alegavam ainda que dos 12 soldados que existiam apenas seis continuam no serviço, devido à falta de recursos, que os fizeram largar as obrigações. Outra reclamação foi direcionada ao vice-rei, que afirmou não poder ajudá-los, propondo que os dízimos arrecadados na capitania, fossem direcionados para pagamento da guarnição. Os camaristas solicitavam à coroa que sustentasse uma guarnição de oitenta soltados, mais artilheiros e oficiais necessários, além de pólvora e munição. Segundo eles, o investimento em segurança traria mais desenvolvimento à região, e consequentemente mais contribuintes para a coroa730. Dessa forma, os funcionários da Câmara tinham a intenção de mostrar que os investimentos trariam retorno financeiro a Coroa, e que a ajuda do rei era fundamental para o desenvolvimento da capitania que se encontrava pouco povoada, e os dízimos e impostos pagos não eram suficientes para sustentar a guarnição. Valentim Tavares Cabral conferiu aval ao documento enviado pela câmara ao rei, acrescentando uma queixa. Segundo ele, já havia outros pedidos enviados ao vice-rei, conde de Óbitos, solicitando homens e munições, mas nada tinha sido feito, pois o capitão mor da capitania de Pernambuco não atendia as ordens enviadas da Bahia, devido às desavenças existentes entre o conde de Óbidos e Jerônimo de Mendonça Furtado. Segundo Paulo Possamai, o desentendimento não era o único fator da falta de assistência das capitanias periféricas por Pernambuco. As dificuldades estavam ligadas à própria administração de Pernambuco, já que o conde de Óbidos, afirmava que seu antecessor, Francisco Barreto (1657-1663), havia ordenado ao governo de Pernambuco que guarnecesse a fortaleza dos Reis Magos com 80 soldados, mas nenhuma atitude foi tomada nesse sentido731. Além dos problemas com a estrutura física da fortaleza, Valentim Tavares Cabral escreveu em carta direcionada V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p 105-106. 726 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 26. 727 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p. 5-6. 728 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V.9, 170-171 729 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V.9, 170-171 730 AHU-RN, Documentos Avulsos, cx. 1, doc. 7 731 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 226.

216 ISSN 2358-4912 ao rei, alegações de que muitos custos para manutenção do efetivo militar estavam sendo arcados pelo próprio capitão mor, tendo em vista a falta de auxílio por parte do governador de Pernambuco732. O visconde de Barbacena e governador-geral do Estado do Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça, escreveu em 10 de novembro 1671 ao governador de Pernambuco, Fernão de Sousa Coutinho, que os capitães mores da Paraíba e do Rio Grande enviaram uma solicitação de mantimentos militares, pois suas praças estavam quase sem munições e pólvora. Fernão de Sousa, como vizinho mais próximo destas capitanias, deveria ajudá-los da forma que os recursos de seus armazéns permitissem, e que ordenasse ao Provedor da Fazenda Real de Pernambuco que o avisasse dos recursos que seriam levados para as capitanias 733. Segundo Kalina Vanderlei Silva, enviar tropas para as capitanias próximas era obrigação imposta com frequência a Pernambuco. Em 1674, a Coroa ordenou ao governador de Pernambuco, dom Pedro de Almeida, que enviasse à capitania do Rio Grande um engenheiro, um alferes, um sargento, 25 soldados e munição para suprir as necessidades da Fortaleza dos Reis Magos. Ainda segundo Silva, para a câmara de Olinda não se tratava de um simples envio de tropas e mantimentos militares para o Rio Grande. A problemática se estabelecia no sustento dessa guarnição, devido a dificuldade no envio dos recursos734. Com a eclosão da Guerra dos Bárbaros em meados de 1687, ocorreram assaltos a senhores de todo o sertão, incluído os colonos que habitavam a ribeira do rio Ceará-Mirim, a cinco léguas da capital. Várias casas-fortes foram construídas, onde os moradores buscavam refúgio: Cunhaú, Goianinha, Mipibu, Guarairas, Potengi, Utinga. Em decorrência do extremo risco em que se encontravam os moradores de Natal, um dos oficiais da Câmara do Rio Grande foi até a Bahia solicitar socorro, devido a proximidade que os índios chegaram de Natal735. Em 17 de junho de 1687, o então governador-geral do Estado Brasil, Mathias da Cunha escreveu uma carta para o governador de Pernambuco, avisando que a capitania do Rio Grande estava sofrendo ataques do gentio bárbaro, e em um deles, sessenta pessoas (brancas e negras) foram mortas. O capitão mor do Rio Grande alegara que não possuía recursos bélicos e de contingente para defender o povo, mostrando as deficiências presentes no cenário militar desta capitania. Mathias da Cunha segue com sua solicitação, enfatizando a necessidade do socorro o quanto antes, com os soldados e as munições que pudessem ser disponibilizadas, para que os moradores da capitania do Rio Grande não padeçam736. A solução mais viável, diante das suplicas emitidas pelo Senado da Câmara da cidade do Natal por auxilio no enfrentamento do gentio no sertão, foi o envio de tropas compostas por paulistas para a região do conflito, e tais tropas estavam subordinadas ao governo geral, e não as autoridades locais. Analisando tal situação, Carmen Alveal e Tyego Silva, entendem que é possível perceber que o governador-geral preferiu interferir na guerra contra os índios, passando de um problema localizado, principalmente dos governos de Pernambuco e do Rio Grande, para chegar até a capital do Estado do Brasil, Salvador. Os bandeirantes paulistas foram vistos como a melhor solução, devido à fama construída em todo Brasil colonial, por suas praticas eficazes no combate as rebeliões de escravos e em apresar os gentios ariscos 737. Com o sucesso que o terço dos paulistas teve no conflito contra os indígenas, esses mesmos autores chegam a conjecturar que isso deixou as autoridades de Pernambuco preocupadas, pois poderia estar acontecendo um possível aumento da ingerência do governo geral sobre as capitanias do norte 738. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU, Avulsos, RN, cx. 1, doc. 8. COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V. 10, 24 734 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001, p. 179-180) 735 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 124-125. 736 COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTORICOS, V. 10, 245 737 ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 238. 738 ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 239. 733

217 ISSN 2358-4912 Em uma carta escrita para o governador de Pernambuco, em 14 de março de 1688, Mathias da Cunha ordenou que os prisioneiros cativos na Guerra dos Bárbaros, fossem direcionados à fortaleza dos Reis Magos. Além disso, o governador-geral ainda solicitava que fossem enviados 80 infantes, “pois é uma lastima que a melhor fortaleza” que Portugal tinha em suas conquistas, tivesse poucos moradores e apenas um artilheiro incapaz739. A Guerra dos Bárbaros certamente não atingiu a cidade do Natal, pois localizava-se principalmente as margens do rio Açu e seus arredores. Entretanto, o medo dos ataques dos gentios se perpetuavam por toda a capitania. Os relatos de ataques no rio do Ceara Mirim, por exemplo, deixavam os oficiais da câmara do Natal em polvorosos. A partir do inicio do conflito, a Coroa viu-se forçada a renovar as ordens para que o governo de Pernambuco enviasse suporte bélico para os soldados que serviam na fortaleza dos Reis Magos. A subordinação da fortaleza do Reis Magos a Pernambuco garantia o sustento da guarnição, mas também era seguida de problemas. Em dois de junho de 1689, os oficiais do Senado da Câmara de Natal escreveram ao rei, pedindo que os soldados fossem recrutados no Rio Grande, pois o índice de deserção por parte soldados de Pernambuco era elevado. Entretanto, solicitavam que os pagamentos dos soldos continuassem a ser arcados por Pernambuco. Em 1701 o Rio Grande foi separado da jurisdição da Bahia e foi anexado a Pernambuco, pois dessa forma para a Coroa, a mobilização contra os gentios seria facilitada por causa da distância740. A fuga dos soldados parecia, para Kalina Vanderlei, a única forma de resistência possível para as ordens da Coroa. O recrutamento militar, mais especificamente os deslocamentos para as capitanias nos arredores de Pernambuco, impostos pela Coroa, eram os motivos mais frequentes para a deserção741. A Carta Régia de 5 de janeiro de 1698 dá a notícia da reiterada intenção de que os soldados recrutados para servir na fortaleza dos Reis Magos fossem naturais da terra, pois aqueles que vinham de Pernambuco costumavam debandar, ficando aquela praça sem guarnição. A súplica foi deferida por Sua Majestade, havendo um questionamento por parte do governador de Pernambuco, alegando que os capitães-mores colocariam seus filhos, criados e escravos nos postos militares. A ordem não foi revogada, entretanto os soldados que fossem servir no Rio Grande, deveriam se submeter a exames de aptidão e serem devidamente registrados em Pernambuco, conforme Carta Régia de 17 de dezembro de 1698742. Analisando os diversos pedidos de ajuda, sejam eles realizados pela Câmara ou pelo Capitão-mor, para a manutenção da Fortaleza dos Reis Magos, é interessante perceber o jogo de poderes envolvidos na relação entre o Rio Grande, Pernambuco e Bahia. Os governadores de Pernambuco, principalmente após a Restauração, quiseram aumentar sua influência sobre as capitanias menores, que seriam consideradas anexas, como no caso de Francisco de Brito Freire, que ao assumir o governo de Pernambuco, defendia que as capitanias menores do norte deveriam responder diretamente à Pernambuco devido a distâncias delas a Bahia, que apenas representaria um gasto desnecessário à Coroa 743. Outro caso que mostra isso, foi quando em 1672 a Câmara de Olinda, através de seus oficiais, envia uma carta a Dom Pedro, argumentando que o Tribunal da Relação existente na Bahia era muito distante das capitanias do norte, por isso, seria mais vantajoso para o funcionamento da justiça se fosse criada uma Relação também em Pernambuco para abarcar as capitanias do norte744. Assim como os governadores de Pernambuco quiseram aumentar os seus espaços de poder, os governadores-gerais também pretendiam garantir a hegemonia de seu poder, não permitindo que ele fosse diminuído devido a participação desses governadores. Tal conflito de interesses gerou alguns problemas entre governadores gerais e os de Pernambuco, como no caso em que André Vidal nomeou o V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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COLEÇÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS, V. 10, 263-267 POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 229. 741 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001, 254-256. 742 GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999, p. 141. 743 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 30. 744 ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013, p. 35. 740

218 ISSN 2358-4912 capitão-mor de Itamaracá em 1657. Francisco Barreto, governador geral, enviou uma representação ao rei, alegando que André Vidal estava invadindo sua jurisdição745. É preciso levar em consideração que o contexto desse período pós-restauração foi muito conturbado, tanto politicamente, quanto economicamente. A Coroa portuguesa, na tentativa de ganhar legitimação com a ascensão dadinastia de Bragança, teve grandes gastos com distribuições de mercês, pagamento de uma indenização à Holanda e sem contar com os próprios prejuízos decorrentes do período de conflito seja com a própria Holanda ou com a Espanha. Dessa forma, se pode entender um pouco da resistência tanto do governo geral, quanto dos governadores de Pernambuco em arcar com mais despesas ao auxiliar o Rio Grande. Essa resistência em auxiliar o Rio Grande vai de encontro com a tentativa de ambos, Pernambuco e Bahia, em expandir os seus poderes sobre as capitanias do norte, que como Carmen Alveal analisou a situação da capitania do Rio Grande746, seriam espaços a serem conquistados. O que parece, após as análises feitas até aqui, é que para Pernambuco essas áreas já estavam garantidas, mobilizando-se apenas quando identificava alguma resistência ao seu domínio, como aconteceu no caso das capitanias da Paraíba e Itamaracá. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências MOUREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri; LOUREIRO, Marcello José Gomes. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 13-32. ALVEAL, Carmen; SILVA, Tyego Franklin. Na ribeira da discórdia: povoamento, políticas de defesa e conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 235263. POSSAMAI, Paulo César (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil: Estudos de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável Soldo & a boa ordem da sociedade colonial. Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação Cultura da Cidade do Recife, 2001. GALVÃO, Hélio. História da fortaleza da barra do Rio Grande. 2ª Edição, Natal: Fundação Hélio Galvão; 1999. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, 2000. MEDEIROS FILHO, Olavo. Aconteceu na Capitania do Rio Grande. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 1997. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. 2ª Edição São Paulo: Ed. 34, 2003. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Achiamé, 1984 POMBO, Rocha. História do Estado do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1922. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. 2005. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2014. ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997. ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson

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ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, 94-95. 746 ALVEAL, C. M. O. Os desafios da governança e as relações de poder na capitania do Rio Grande na segunda metade do século XVII. In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013, p. 27-44

219 ISSN 2358-4912 da Silva. (Org.). Capitania do Rio Grande: histórias e colonização na América portuguesa. João Pessoa: Ideia Editora; Natal: EDUFURN, 2013. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO ESPANHOLA DA ILHA DE SANTA CATARINA (1777-1778) Augusto da Silva747 No dia 23 de fevereiro de 1777, o recém nomeado vice-rei, governador e capitão general das Províncias do Rio da Prata, d. Pedro de Cevallos, a frente de uma frota de aproximadamente uma centena de embarcações e cerca de 8.000 homens, desembarcava na Ilha de Santa Catarina, dando início a uma ocupação que perduraria por cerca de um ano e quatro meses (BARBA, 1978: 258).748 Essa ação fazia parte das pretensões da coroa espanhola de domínio sobre os territórios ao norte do Rio da Prata. Pretensão essa abalada no ano anterior face a reconquista dos territórios do Rio Grande de São Pedro pelos portugueses. Não me ocuparei aqui com a série de eventos que antecederam a tomada da ilha por Cevallos e nem tampouco dos fatores políticos e econômicos que explicam essas ações.749 O objetivo deste artigo é de problematizar tanto o discurso das autoridades portuguesas sobre a queda “vergonhosa” da ilha, como também a própria historiografia luso-brasileira sobre esse acontecimento. Minha hipótese de trabalho é de que essa historiografia acabou por reproduzir o discurso das autoridades lusitanas sem questionar devidamente as posições, tempo e lugar de quem pronunciou esse discurso. Um erro corrente na historiografia do século XIX, e mesmo depois, foi de trabalhar com a ideia de impérios coesos e unitários nos séculos XVII e XVIII, transpondo para aquele passado distante a noção de unidade estatal, territorial e mesmo identitária que não existia. Este artigo tem como objetivo problematizar essa noção de unidade, que não concebeu a especificidade e relativa autonomia daquela formação colonial nos planos político, econômico e social. A ocupação espanhola da ilha em 1777 foi, sem dúvida, um marco para a história do império português, não tanto sob o aspecto econômico, pois, os dois maiores rendimentos daquele estabelecimento colonial, o dízimo e a pesca da baleia, eram administrados por particulares que arrematavam os contratos, repassando as rendas antecipadamente para a fazenda real. O mais importante deles, o contrato da pesca da baleia, pouco prejuízo resultou à coroa portuguesa. Em 1765, foi assinado um contrato de 12 anos, ou seja, até o ano de 1777, por 32:000.000 de réis anuais para exploração dessa pescaria em toda a costa do Brasil e renovado, ao mesmo grupo mercantil, provavelmente após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, em 1.10.1777, por mais 12 anos, na quantia de 40:000.000 de réis anuais (ELLIS, 1958: 29-54). O problema maior de ter a ilha de Santa Catarina e seu continente fronteiro sob domínio espanhol é que se colocava em sério risco territórios mais valorizados do ponto de vista econômico como o Rio Grande de São Pedro, São Paulo e até mesmo o sertão mineiro. No aspecto político, essa ocupação deve ser inscrita no conjunto de fatos que sacudiram o império nesse momento: a morte do rei d. José I (24.2.1777), a queda do marquês de Pombal, a celebração do Tratado de Santo Ildefonso (1.10.1777) e a própria substituição do vice-rei do Brasil, o marquês do Lavradio, dois anos depois. O fato, talvez, mais marcante desse evento esteja no plano cultural e simbólico. A rendição da ilha – a “capitulação de Cubatão”, como foi chamada –, sem que a sua guarnição oferecesse o mínimo combate, soou como uma terrível e humilhante derrota na América e no reino. A entrega de uma praça militar, ou de um forte ao inimigo sem que o comandante oferecesse resistência era muito mais que uma desonra, consistia mesmo em crime contra a monarquia, motivo pelo qual alguns militares preferiram desertar a serem submetidos ao Conselho de Guerra. Possivelmente, essa foi a motivação do brigadeiro José Custódio de Sá e Faria. Engenheiro-militar e cartógrafo com mais de 20 anos de serviços prestados à Portugal, Sá e Faria foi o oficial representante a acertar os artigos da capitulação da ilha com Cevallos. Após esse ato optou por abandonar o serviço de seu rei e servir ao de Espanha,

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Universidade Federal de Sergipe. Don Pedro de Cevallos era o chefe da empresa; o comando da esquadra estava a cargo do Marquês de Casa Tilly. 749 Essas e outras informações encontram-se em: (BARBA, 1978; LOBO, 1875; ALDEN, 1968; e MONTEIRO, 1979). 748

221 ISSN 2358-4912 radicando-se na cidade de Buenos Aires, onde viveu até o seu falecimento em 9.1.1792 (SANTILLÁN, 1961: 297). A notícia de terem os portugueses abandonado a ilha de Santa Catarina sem fazer a menor resistência saiu na Gazeta de Madrid e se fez logo patente a toda a Europa. Quem lamentava isso era o Secretário de Estado português Martinho de Melo e Castro em carta ao vice-rei do Brasil Marquês do Lavradio em 22.6.1777. E dizia ele também:

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Esperávamos com impaciência as Relações de V. Exa. e nelas a certeza de termos ao menos salvado a Honra da Nação (...) [mas] acabamos de receber a confirmação da perda daquele importante Estabelecimento, a qual sendo para esta Coroa das maiores consequências, é infinitamente menor que o fatal e irreparável golpe com que os figurados e infelizes Defensores daquela Colônia, esquecidos inteiramente de tudo quanto devem à Pátria em que nascerão, se deixaram preocupar de um Terror pânico, sepultando nas Praias de Santa Catarina toda a sua reputação e honra com eterna ignomínia do Nome Português.750

E não era menor a tristeza do Marquês do Lavradio. Comunicando o acontecido ao governador da Bahia, manifestava o seu profundo pesar diante daquela derrota: Veja V. Ex. qual terá sido a minha dor e a minha consternação. Eu não sei o como me não tem estalado o coração por toda a parte. Esta dor é daquelas que quanto mais se lhe procura o remédio, menos alívio se lhe encontra. Eu conheço que é necessário revestir-me de toda a constância e desafogo, para poder obrar o que devo, para restaurar a honra e glória da nação; porém se Deus me não der forças, eu não poderei resistir.751

O marquês de Pombal sofreu também as consequências dessa derrota militar. Uma das acusações dirigidas contra ele, após ser substituído no ministério, era de que “a Praça de Almeida, e a ilha de Sta. Catarina foram entregues aos castelhanos por ordens particulares” dele.752 Podia-se questionar sobre as condições concretas da guarnição portuguesa que se encontrava na ilha de Santa Catarina753 – do número e qualidade das tropas, dos seus armamentos e embarcações em comparação com a Armada espanhola (cerca de cem embarcações contra pouco mais de dez portuguesas!), das fragilidades do seu sistema defensivo (o desembarque espanhol na ponta das Canasvieiras mostrara que as barras norte e sul não eram as únicas portas de entrada na ilha) etc –, mas não se trata de fazer aqui juízo sobre a atitude dos responsáveis pela capitulação. Refletindo mais sobre os desdobramentos do fato, sabe-se que o governador Pedro Antônio da Gama Freiras, o comandante da guarnição, Antônio Carlos Furtado de Mendonça, e outros oficiais do exército foram levados ao Conselho de Guerra, presos e tiveram seus bens sequestrados, até que, em 14.1.1786, um decreto real mandava que os “referidos autos, sentenças e informações” fossem “recolhidos à Secretaria de Estado da Repartição da Guerra, para nela se guardarem com o maior segredo e recato a fim de que este negócio” ficasse “em perpétuo esquecimento”.754 Infelizmente, o perdão chegava tarde demais para alguns que, a essa altura, já haviam morrido na prisão. Mas a tentativa de apagar da memória acontecimento tão nefasto seria em vão. As autoridades, os memorialistas e, sobretudo, os historiadores tratariam de alimentar no imaginário das gerações 750

Archivo General de la Nación. Campaña del Brasil – Antecedentes Coloniales. Vol. III. Buenos Aires: Kraft, p. 466 e 467. 751 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (ABNRJ), v. 32, 1914, p. 349. Ofício do vice-rei marquês do Lavradio ao governador da Bahia, em que lhe dá parte de ter o general Antônio Carlos Furtado de Mendonça abandonado a ilha de Santa Catarina e várias notícias relativas à esquadra espanhola, em 24.3.1777. 752 Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), PBA, 695, mf. 1635. Em 2.4.1777, Pombal apresentou o documento Apologias que tenho escrito sobre cada uma das calúnias, que a ingratidão, e a inveja espalharam contra mim no grande povo de Lisboa, depois da minha ausência. Ver Décima Quarta Apologia, fl. 177. A Praça de Almeida situa-se na Província de Beira Alta, em Portugal, fronteira com a Espanha. 753 Para uma análise mais aprofundada dessas questões ver: (ALDEN, 1968; PIAZZA, 1978; MOSIMANN, 2003). 754 BNL, PBA, 653, fl. 267.

222 ISSN 2358-4912 subsequentes, a ideia da queda “vergonhosa” da ilha de Santa Catarina em 1777. Segundo José Arthur Boiteux, a tomada da ilha por Cevallos constituía em “página que deslustraria os foros de bravura e heroísmo” da história catarinense (1929: 13). Em 1944, o general Vieira da Rosa proferia uma conferência no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina com o título “A vergonha de 1777”, “não para verberar uma covardia coletiva que não houve, mas para causticar a memória dos chefes que cometeram um crime de lesa-pátria” (1944: 25). E a culpa maior da tragédia recairia sobre o governador Pedro Antônio da Gama Freitas, que foi caracterizado como aquele que “entregou esta ilha aos espanhóis” (MEMÓRIA HISTÓRICA, 1913: 5); ou, como um homem que não obstante “fosse dotado de excelentes qualidades careceu de energia e resolução para obstar o desembarque [deles] na ilha, a qual entregou sem queimar uma escorva” (PAIVA, 2003: 35); ou ainda, como aquele que se esqueceu de lembrar “que era governador da província, quando os espanhóis” se apoderaram dela (COELHO, 1877: 64). Observa-se que essa representação negativa da “queda da Ilha” deixou marcas ainda mais profundas na historiografia e, portanto, na memória social, pois, o ano de 1777 aparece como um ponto de inflexão na história política de Santa Catarina demarcando uma fase anterior de decadência, de governadores inábeis, despóticos ou violentos e uma fase posterior caracterizada por governadores reconstrutores. De fato, houve a desestruturação política, administrativa e militar daquele estabelecimento colonial português. O governo foi desarticulado e grande parte das tropas se desfez; muitos soldados desertaram, regressando aos seus locais de origem, refugiando-se em povoados próximos, ou mesmo fugindo para o sertão adentro. Muitos foram também parar no Rio Grande de São Pedro. José Marcelino de Figueiredo, governador daquele continente, em carta ao vice-rei, dizia que havia recolhido nas imediações de Laguna alguns desertores da ilha e juntado com outros, que já passavam de quatrocentos homens. As tropas que permaneceram fixaram-se nas proximidades do rio Cubatão, no continente, e a elas se agregariam mais 219 praças da cavalaria auxiliar enviado por terra pelo governador de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, para fazer “a mais vigorosa barreira aos inimigos”.755 Além disso, as atividades pesqueiras das duas armações na ilha, a da Piedade e a da Lagoinha, foram interrompidas no tempo da ocupação (pelo menos da administração portuguesa), e alguns lavradores refugiaram-se em povoados do continente. Contudo, é preciso relativizar essa ideia de desorganização total e inutilização de todos os trabalhos feitos até ali naquela colônia. Trata-se de um ponto de vista da monarquia portuguesa, que perdia um estabelecimento colonial chave nos domínios do império na fronteira-sul da América. Qual deve ter sido a percepção e reação dos povoadores à ocupação espanhola? Difícil saber. Podemos, entretanto, com base nalguns indícios refletir sobre isso. Inicialmente, deve-se considerar que, se houve soldados e povoadores que fugiram com a invasão – fato sempre muito destacado pelas autoridades portuguesas e reproduzido pela historiografia –, houve também aqueles que ficaram desenvolvendo suas habituais atividades e até colaborando à subsistência dos novos comandantes da ilha e seu exército. Assim que as tropas espanholas tomaram as fortalezas, já vazias pela debandada do exército português momentos antes para o interior do continente, ocorreu um princípio de anarquia, com saques às casas dos povoadores, como narra o biógrafo de Cevallos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Em vista del abandono hecho de las defensas de las islas y de los saqueos que se habían entregado los negros y criollos, envió Cevallos um cuerpo de ejército y mandó publicar um bando por el que se imponia la pena de muerte a todo soldado marinero o dependiente del Ejército que maltratara, robara o causara cualquier espécie de daño, a los moradores de la Isla (BARBA, 1978: 259).

Temendo todos, logrou o General, por este meio, restabelecer a boa ordem naquele estabelecimento; conseguiu que os povoadores fugitivos se restituíssem às suas casas; que os pescadores e alguns vivandeiros contribuíssem à manutenção do exército e que se devolvessem vários negros que haviam sido conduzidos aos navios de guerra (LOBO, 1875: 69). As guerras costumam trazer destruição, sofrimento e perdas materiais e humanas. Mas, paradoxalmente, não é incomum que tragam, às vezes, desenvolvimento econômico às regiões em 755

Arquivo do Estado de São Paulo. Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, v. 79, p. 80. Carta do governador de São Paulo ao capitão Manuel Gonçalo Leite de Barros, em 9.8.1777.

223 ISSN 2358-4912 litígio. E foi isso que aconteceu com a ilha de Santa Catarina. O palco principal dos conflitos entre portugueses e espanhóis no terceiro quartel do século XVIII não era a ilha (a ação de Cevallos foi sem dúvida ousada, porém sem causar graves confrontos, nem mortes), mas a vila do Rio Grande de São Pedro e parte daquele continente. Nos treze anos de ocupação castelhana daquele território (17631776) a ilha serviu de base estável para as estratégias de defesa e de reconquista do exército português, o que trouxe como resultados o crescimento demográfico (principalmente por causa da transferência de tropas para a ilha) e investimentos da Coroa com o pagamento dos soldos, construção de novas casas e quartéis. Segundo a avaliação do governador Miranda Ribeiro, em 1797, em todo o tempo do governo de Pedro Antônio de Gama Freitas (1775-1777), “se viu esta ilha muito abundante de fornecimentos e de dinheiro” e que, embora não fosse suficiente para satisfazer as dívidas atrasadas, pôde construir alguns edifícios particulares, se aumentou o comércio e, como consequência natural, aumentou a “produção do giro da moeda no país”. 756 E completava: nunca antes havia ocorrido tanto movimento de barcos e gentes no seu porto; nunca antes tinha se visto tanta circulação de mercadorias e dinheiro naquele povoado. Apresento a seguir dois quadros, um demográfico e outro do contrato dos dízimos, que revelam o crescimento social e econômico da capitania de Santa Catarina na segunda metade do século XVIII. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 1 - Levantamentos populacionais do governo da Ilha de Santa Catarina (1739-1806)

Localidades no continente sob a jurisdição da Ilha de S. Cat.

1739 Ilha de Santa Catarina > 900 Enseada de Brito ? São José ? São Miguel (e Ganchos) ? Vila do Rio de São ? Francisco Sant’Ana (Vila Nova) Vila de Laguna ? Total

1753 4.820 172 503 441 ?

c.1756 4.584 212 533 481 2.299

1796 9.160 1.091 2.091 2.758 4.453

1803 11.144 1.315 2.192 3.475 ?

1805 10.599 1.379 2.656 3.498 5.293

1806 11.016 1.393 2.833 3.339 5.485

312 234 6.482

382 557 9.048

1.109 3.203 23.865

? ? ?

? 5.684 29.109

1.617 4.479 30.162

Fontes: para o ano de 1739 – Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, n. 109 a 112, 1948, p. 101. Projeção de José da Silva Paes, em 30.4.1739, quando chega à ilha de Santa Catarina; para 1753 - AHU-SC, cx. 2, doc. 92. “Mapa das Freg.as q. tem a Ilha de S.ta Cathr.a, e seu Contin.te com distinção do n. de uns e outros casais e Comp.as de Ordenança, e n. das almas q. contem, ano de 1753” encaminhado pelo governador José de Melo Manoel ao Conselho Ultramarino, em 30.11.1753; para 1756 - AHU-SC, cx. 1, doc. 67. “Mapa das Freg.as q. tem a Ilha de S.ta Cathr.a, e seu Contin.te...” encaminhado pelo governador José de Melo Manoel para o Conselho Ultramarino; para 1796 – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 245, 1959. Relatório do governador João Alberto de Miranda Ribeiro ao vice-rei conde de Resende, em 17.11.1797. “Resumo geral de toda a população pertencente ao governo da ilha...”; para 1803 - AHU-SC, cx. 8, doc. 454. “Resumo da população em particular dos sete distritos q’. pertencem a vila de Nossa Senhora do Desterro da ilha de Santa Catarina extraído do Mapa geral que deram os comandantes dos mesmos distritos no ano de 1803”; para 1805 - AHU-SC, cx. 9, doc. 501. Mapas encaminhados pelo gov. Luís Maurício da Silveira ao visconde de Anadia, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, em 2.6.1806; para 1806 - AHU-SC, cx. 12, doc. 14. Mapas encaminhados pelo gov. Luís Maurício da Silveira ao visconde de Anadia, em 8.6.1807.

Considerando os contingentes militares de primeira e de segunda linha transferidos para a ilha nas décadas de 1760 e 1770, do ingresso de escravos africanos (evento sobre o qual poucas informações se dispõe), e do crescimento natural da população, pode-se justificar melhor o significativo aumento demográfico da capitania de mais de 160% entre 1756 e 1796. Quanto à produção econômica desse estabelecimento é possível fazer uma estimativa de seu montante ou, pelo menos, uma análise comparativa com o de outros espaços coloniais, tendo como parâmetro o valor arrematado nos contratos do dízimo.

756

Arquivo Histórico Ultramarino-Santa Catarina (AHU-SC), cx. 6, doc. 386. Relatório de João Alberto de Miranda Ribeiro à rainha d. Maria I, em 16.11.1797, fl. 09.

224 ISSN 2358-4912 Quadro 2 - Rendimentos anuais dos dízimos na Provedoria da Ilha de Santa Catarina (17561802) Anos 1756 1759 1762 1768757 1772 1780 1786 1789 1795 1802 Dízimos 1:600$ 1:665$ 1:665$ 2:800$ 4:600$ 4:720$ 4:786$ 4:920$ 5:066$ 5:066$ V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Fonte: Para os anos de 1756 a 1772: (OSÓRIO, 2007: 225-232), ANRJ, F. 86, Cod. 106, v. 2, fl. 43 e 62; ANRJ, F. 86, Cod. 109, v. 1, fl. 2; Para os anos de 1780 a 1802, utilizou-se os relatórios de conta corrente dos cofres da Provedoria da Real Fazenda da Ilha de Santa Catarina existentes no ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 03 (1780); v. 9 (1786); v. 12 (1789); v. 13 (1795); e v. 15 (1802).

Multiplicando esses números por dez obtêm-se, portanto – ressalvando todos os desvios que esse cálculo possa oferecer –, as estimativas da produção desse estabelecimento. É interessante observar que a estabilidade no valor dos arremates, apresentando uma curva ligeiramente ascendente, aponta para um negócio seguro e rentável, ou seja, a produção não deve ter sido em nenhum momento subestimada, pois, caso contrário, não se renovariam os contratos por preços superiores. Analisando a evolução dos dízimos, percebe-se, no período de 1756 a 1762, um tímido crescimento da produção, mantendo-se quase que estagnada. Depois, nos dez anos seguintes, registra-se um aumento significativo de cerca de 176% e, no período subsequente, de 1772 a 1802, ela volta a apresentar-se praticamente estacionária. Ao aumento expressivo registrado entre 1762 e 1772 correspondeu também um crescimento da população, já analisado anteriormente. A ocupação espanhola do Rio Grande entre 1763 e 1776, que desorganizou a estrutura produtiva daquela fronteira nesse período, refletiu de maneira positiva para a economia de Santa Catarina. Outro fator a problematizar diz respeito às relações entre as autoridades civis e militares portuguesas com a sociedade colonial: não eram relações de plena harmonia e nem se pode dizer que havia uma identidade entre esses diferentes grupos. Os vínculos institucionais que ligavam o monarca aos súditos no Antigo Regime – as graças e mercês do príncipe com a doação de terras, a nobilitação dos indivíduos, as patentes militares e, sobretudo, a execução da justiça – eram frágeis, ou pelo menos recentes, nessa parte do império. Reciprocamente, frágeis deviam ser também os compromissos de fidelidade dos súditos para com o monarca. Os povoados da ilha de Santa Catarina e do continente fronteiro remontam ao final do século XVII, formados por famílias oriundas – e em sua grande maioria naturais – das pequenas vilas de São Paulo, Santos e São Vicente. Um movimento migratório de caráter muito mais espontâneo do que oficial. Um governo português mais estruturado do ponto de vista político-administrativo só ocorreria, de fato, em meados do século XVIII, quando também se conduziu para aqueles territórios os casais das ilhas, cerca de 7000 pessoas dos arquipélagos de Açores e da Madeira. Como podemos constatar em trabalho anterior foi comum, no terceiro quartel do século XVIII, o confisco arbitrário e, às vezes violento, das produções agrícolas daqueles povoadores, sobretudo da farinha de mandioca, para sustendo das tropas militares. Fato que causava ódio aos civis a esse modo de governar, já que o pagamento desse confisco, quando feito, vinha com muito atraso (SILVA, 2013: 161-168). Outro problema corrente nesse período foi o recrutamento dos lavradores ao corpo militar da ilha. Como ocorria em praticamente toda a América, essas convocações eram temidas por muitos, devido ao regime severo e muitas vezes cruel do disciplinamento militar. Além do que, os soldos, quando pagos, chegavam com atraso de meses ou até de anos. Em carta ao vice-rei Luis de Vasconcelos e Souza de 7 de julho de 1779, o governador da ilha Francisco de Barros Moraes informava que o comandante da vila de Laguna estava há 18 meses sem receber pagamento para sua guarnição e que para a subsistência dos soldados estava constrangendo os pescadores para que fornecessem peixe a eles. Constrangimento esse que, depois de tantos meses de opressão, podia “arrebentar com alguma má consequência”.758 Ocorreu, no entanto, algumas vezes um fato que, ao ser publicizado, provocou ainda maior indignação aos moradores da ilha. Nos momentos de maior crise financeira, quando praticamente se deixara de pagar qualquer soldo aos militares, salário aos funcionários e côngruas aos párocos, 757

Valor da arrematação por 11 meses. ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 1, of. n. 3. O coronel Francisco de Barros Moraes Araújo Teixeira Homem governou a ilha de Santa Catarina de 1779 a 1786. Antes dele, ela foi governada pelo coronel Francisco Antônio da Veiga Cabral da Câmara, que foi quem a recebeu formalmente, em 31.7.1778, do marechal de campo espanhol Guilherme Waughan.

758

225 ISSN 2358-4912 registravam-se entradas de numerário na Provedoria de Santa Catarina, de remessas enviadas do Rio de Janeiro, mas que se destinavam integralmente para o pagamento da guarnição do Rio Grande.759 Ou seja, o vice-rei priorizava a manutenção das tropas na fronteira-sul em detrimento das de Santa Catarina. Em 21 de março de 1783, em outro ofício o governador expõe o problema ao vice-rei:

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quando chegaram os oficiais com o coronel [Francisco João] Roscio, não se descuidaram os desta ilha, sabendo que vinha um pagador com dinheiro, de lhes perguntar se vinha também para esta tropa: conhecendo então pela resposta que não vinha, que lá não havia para o remeter [...] foi e tem sido uma geral consternação; têm falado ou murmurado em particular uns com outros (sem que até ao presente, contudo, seja por modo criminoso) pela quase extrema necessidade em que se acham [...]. Não têm eles que comer, que vender ou empenhar, salvo se for o uniforme e as camisas; nem ache quem lhes fie, porque como a experiência mostra que não têm soldos nem por onde paguem, ninguém lhes quer emprestar [...]: a necessidade vai crescendo de forma que os oficiais se têm metido a pescadores (até agora por modo descente) para terem eles e suas famílias alguma coisa que comer, mas brevemente lhes será necessário fazê-lo por ofício.760

Se, no passado, nos momentos críticos de guerra com os espanhóis, os lavradores foram recrutados para servir no Exército, agora ocorria um movimento inverso, a falta prolongada no pagamento dos soldos obrigava os soldados a fazerem-se lavradores ou pescadores, e tiveram eles, como se pôde ver, a permissão do governador para isso. Nem podia ser diferente. As circunstâncias exigiam mesmo um afrouxamento das regras. Francisco de Barros Moraes, sem se embaraçar com o regulamento, passou a conceder licenças aos soldados e oficiais inferiores, mesmo nos meses em que essas eram proibidas. Procurando sensibilizar ainda mais o vice-rei para as nefastas consequências que poderiam advir daquela situação em que se encontrava a ilha de Santa Catarina, o governador tocou num dos pontos talvez mais delicados na governança das conquistas: a falta de fidelidade dos súditos para com o soberano. Nada podia ser mais agressivo e desonroso para o vice-rei, nesse contexto em que as feridas da invasão de 1777 encontravam-se ainda abertas, do que a ameaça de ter seus vassalos em harmonia com a nação invasora. No mesmo ofício anterior, dizia Francisco de Barros Moraes: quando vim para esta ilha e dentro dos primeiros seis meses, nas ocasiões em que os paisanos me visitavam, se na prática se vinha a falar nos espanhóis (o que nos paisanos era frequente) tudo era gabá-los de boa gente, carregando no ponto de que pagavam tudo prontamente, e por grande preço, que não tomavam coisa alguma, que girava muito dinheiro, e que alguns ilhéus se enriqueceram com o que lhes venderam: eles não diziam mais, porém, via eu, que no fundo do seu coração, amavam o governo espanhol, pela frequência com que dele falavam, e por quê. Se em outras ocasiões se falava nos meus antecessores, e na Fazenda Real, tudo era lastimarem-se que nada ou pouco se pagava, que se tomavam as farinhas aos lavradores, e que se estavam devendo de há muitos anos, motivo porque se não cuidava como devia na sua cultura, que se deviam muitos jornais, muita cal, madeiras, fazendas etc., e que por estas expressões percebia eu neles uma aversão a este modo de governar.

Talvez, mais do que o problema da infidelidade dos súditos, a grande preocupação do governador fosse justamente a redução do seu poder e a dificuldade em administrar naquelas precárias condições. Os governadores tinham também “aversão a este modo de governar”. De qualquer forma, seu interessante relato nos leva a problematizar a dramaticidade da ocupação espanhola da ilha. Alguns povoadores, e também militares, não só permaneceram na ilha – ou regressaram a ela – após a invasão, mas, possivelmente, levaram suas vidas de maneira habitual, desenvolvendo suas atividades profissionais como antes, ou até com maior sucesso no período da ocupação. Já se disse que um acontecimento pode ser irrelevante no momento em que ocorre e se revelar historicamente significativo no futuro ou, de maneira inversa, pode aparecer como impactante aos 759

ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 9, “Conta-corrente dos cofres da Provedoria… janeiro de 1786”; v. 10, ibidem, março de 1787; v. 11, ibidem, julho de 1788; v. 12, ibidem, fevereiro de 1789. 760 ANRJ, F. 86, cód. 106, v. 6, of. 6. Do governador Francisco de Barros Moraes Araújo Teixeira Homem ao vicerei Luís de Vasconcelos e Sousa, em 21.3.1783.

226 ISSN 2358-4912 contemporâneos e se mostrar anódino no futuro (SCHAFF, 1986: 274). Poderíamos acrescentar ainda que os eventos não provocam o mesmo impacto, a mesma força, nos diferentes níveis sócio-históricos – político, econômico, social e mental. Podem ser decisivos para mudanças em determinada esfera e insignificantes noutras. O evento que analisamos aqui, a tomada da ilha por Cevallos, em fevereiro de 1777, foi dramático no plano político, da monarquia portuguesa, com desdobramentos importantes, pelo menos num futuro breve, como a deposição e prisão dos oficiais do exército envolvidos, e também de ter sido um dos pontos significativos a ser negociado no Tratado de Santo Ildefonso de 1 de outubro de 1777. (Evidentemente que, caso a ilha permanecesse sob o domínio espanhol a história seria diferente e o impacto do evento seria bem maior.) Foi também dramático no plano cultural e simbólico, mas aqui, mais uma vez do ponto de vista das autoridades portuguesas, pois a “queda da ilha”, da maneira como ocorreu, manchou a honra lusitana, nesse tempo em que tais valores eram fundamentais na distinção militar e social. Os memorialistas, cronistas e historiadores, construtores de identidades, tratariam de alimentar na memória social o fato como vergonhoso, demarcando o ano de 1777 como de recomeço, de refundação. Como escreveu o governador João Alberto de Miranda Ribeiro, entrava-se nela “assim como em uma nova Conquista”.761 Entretanto, se pensarmos na história social daquele estabelecimento o evento não deve ter sido tão dramático assim. Tirando o instante de anarquia e de violências provocado pelo lapso de tempo entre a debandada do exército português e o estabelecimento do poder espanhol, a vida daquele povoado retomou sua normalidade. Acostumamo-nos a pensar a história da colonização ibero-americana como de intenso conflito entre os impérios, como se esses impérios fossem entidades perfeitamente constituídas nos planos políticos, territorial e identitários. Se da perspectiva dos Estados monárquicos ibéricos a expansão das conquistas se fazia mais pelo signo da divisão, da demarcação dos limites jurisdicionais de soberania, para os coloniais essa expansão representava a aproximação e o contato com o outro, muitas vezes de maneira amistosa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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761

AHU-SC, cx. 6, d. 386, fl. 9. Relatório do governador João Alberto de Miranda Ribeiro à rainha d. Maria I, em 16.11.1797.

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ISSN 2358-4912 O OLHAR DE TRÊS LUSO-AFRICANOS NA “GUINÉ DE CABO VERDE”: SUAS VIDAS E EXPERIÊNCIA EM SEUS RELATOS DE VIAGEM (SÉC. XVI E XVII) Beatriz Carvalho dos Santos762 Este trabalho é fruto de uma pesquisa que vem se desenvolvendo no doutorado em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora e que conta com o financiamento da CAPES. O tema da pesquisa é o estudo das relações comerciais na região denominada por “Guiné e Cabo Verde763” nos séculos XVI e XVII. O vetor principal que orienta este trabalho é a compreensão de que as relações comerciais desenvolvidas na região entre os diferentes homens das mais distintas posições - sejam nativos africanos, lançados, mandingas, luso-africanos e estrangeiros – foram determinantes na influência de seus perfis socioculturais. Para este breve artigo irá se enfatizar algumas das conclusões iniciais que já foram possíveis de se fazer sobre os autores dos relatos de viagem que servem como fontes para o trabalho. A região aqui tomada como recorte territorial, a “Guiné do Cabo Verde”, referida nos estudos mais recentes como Senegâmbia, é alvo de grande diversidade de estudos na historiografia atual, especialmente pelo grande leque de possibilidades de enfoques que fornece. Sua configuração populacional longa e gradual através dos séculos de história da África (FAGE, 1995) acabou por gerar um mosaico cultural. A esse respeito Boubacar Barry complementa que: A Senegâmbia, em alguns aspectos, funcionava como uma vasta reserva em que as populações do Sudão e do Sahel habitualmente derramavam seus membros excedentes. Em sua nova casa os imigrantes criaram uma civilização de fluxo constante, em que as identidades étnicas foram principalmente um resultado do isolamento mútuo das comunidades internas causadas pela economia de subsistência764.

A confluência de diferentes povos em mesma região teve como aspecto motor as trocas comerciais, tendo sido desde o início as rotas saarianas que levavam a Guiné os mais diferentes homens. Foi o comércio inclusive que permitiu a chegada do Islã a região, assim como os demais domínios abaixo do Saara. A região, que já apresentava um cenário bastante dinâmico do ponto de vista cultural, após o século XV e a inserção da presença europeia passou a contar com um constante fluxo de trocas culturais, para além das mercadorias que circulavam em mesmo meio. No desenvolver do presente estudo são utilizados os relatos de viagem de três autores caboverdianos que estiveram na região e na qual comerciaram por décadas, sendo eles André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho.765 Suas obras são o “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde”, que foi redigido no ano de 1594 pelo capitão André Alvares Almada, fruto de suas investidas na costa entre os anos de 1566 e 1583. Esta obra contou com várias versões e edições, sendo a aqui utilizada a de António Luís Ferronha de 1994. O relato de André Donelha intitulado “Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde” foi redigido em 1625, resultante de 762

Beatriz Carvalho dos Santos doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora email: [email protected] 763 Tal como aponta o historiador português José da Silva Horta, os usos de terminologias distintas para referir à região da Senegâmbia carregavam preceitos do período dos descobrimentos portugueses. “O uso mais restrito de “Guiné” e termos associados que se vulgarizou não estava isento de ambiguidades e estava longe de ser neutro, correspondendo a diferentes e por vezes contrastantes percepções do espaço africano” (HORTA, 2005, p.2). Contudo, a menção a essa grande faixa territorial por tal abrangente nomenclatura, refere-se a um lugar comum que possuía local bem definido no imaginário das navegações do período moderno, sendo mais ou menos compreendida entre os Rios Senegal e Serra Leoa. 764 Tradução livre do trecho: Senegambia, in some respects, functioned like a vast reserve into which populations in the Sudan and the Sahel habitually poured surplus members. In their new home the immigrants created a civilization of constant flux, in which ethnic identities were primarily a result of the mutual isolation of domestic communities caused by the subsistence economy (BARRY,1998, p.35) 765 São estes os autores das fontes centrais em que se baseia esta pesquisa e dissertação. Contudo, há de se esclarecer que também será feito uso de algumas cartas de missionários que estiveram na Guiné, a fim de ilustrar determinados aspectos compartilhados sobre o olhar aos homens da Costa.

229 ISSN 2358-4912 viagens sucessivas na costa africana entre 1573 e 1585, sendo a edição utilizada a de 1977, editada por Avelino Teixeira da Mota. E por último a descrição de Francisco de Lemos Coelho, “Duas Descrições Seiscentistas da Guiné” de 1669 e 1684, versão editada por Damião Peres em 1990. Segundo Avelino Teixeira Mota (MOTA, 1971), tanto André Álvares de Almada quanto André Donelha eram homens pardos. Nascidos nas ilhas de Cabo Verde, sendo o pai de Almada Ciprião Álvares de Almada um nobre e principal da ilha e sua mãe uma parda. Em 1598, Almada teria recebido o hábito da Ordem de Cristo pelos serviços prestados, especialmente na defesa contra os estrangeiros. Almada fez diversas viagens à Guiné por volta de 1570 e escreveu Tratado breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde em 1594. Este, redigiu seu relato destinado ao Rei Felipe II, como forma de chamar a atenção para as potencialidades da região e solicitando a colonização de Serra Leoa. Já Donelha esteve em Serra Leoa na armada de Antônio Velho Tinoco em 1574, no Rio Gâmbia em 1585 e é bastante provável que tenha feito outras viagens à Guiné. Mas só em 1625 escreveu a sua Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. Pode-se notar que o período em que Almada e Donelha estiveram na Guiné é bastante próximo, tendo Donelha retornado anos mais tarde à região, mas suas viagens datam basicamente das mesmas décadas, o que é interessante destacar, pois assim percebe-se que seus relatos se dão sobre as mesmas populações e em períodos similares, embora seus escritos tenham quase três décadas de distanciamento. Foram esses autores pertencentes à elite de Cabo Verde que contou com uma porção de dificuldades comerciais que foram impostas pela coroa a partir de 1472766. Francisco de Lemos Coelho, por sua vez, é o que menos se tem notícia, sabe-se que era comerciante assim como os outros e residente em Santiago, tendo comercializado com os guineenses durante 20 anos. Sua cidade de origem não é conhecida. Seus escritos datam de 1669 e 1684. Sendo este o autor de Duas Descrições Seiscentistas da Guiné. Os autores José da Silva Horta, Paul Hair e Peter Mark concordam em assinalar para o fato de que mesmo de origem desconhecida, a ligação e vivência de Lemos Coelho em Cabo Verde foi bastante significativa. O trabalho de investigação sobre as trajetórias dos autores ainda está em fase de realização junto às demais fontes da pesquisa e como se propõe aqui demonstrar, será crucial para lapidação das presentes reflexões. Dessa sorte, um dos primeiros questionamentos que motivaram esse trabalho foi a indagação a respeito do que reflete a nomenclatura de luso-africanos. A esse respeito o historiador José da Silva Horta assinala que:

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A base da definição de uma identidade étnica luso-africana pelos historiadores citados incluiu o estudo, entre muitos outros, dos textos que nos séculos XVI e XVII foram escritos por oficiais e comerciantes cabo-verdianos (entenda-se, nados e criados em Santiago). Os mais notáveis são Francisco de Andrade e, sobretudo pela extensão dos seus relatos, André Álvares de Almada e André Donelha. Mas também, cabo-verdiano ou não, mas ligado a Cabo Verde, Francisco de Lemos Coelho. A estes outros nomes se virão a acrescentar sendo todos eles pertencentes ao meio mercantil cabo-verdiano-guineense. (HORTA, 2010, p. 57-58)

O uso desta terminologia é bastante comum na historiografia e segundo Horta há uma vertente que concebe como luso-africanos uma “categoria restrita de afro-portugueses descendentes dos "Lançados" e "Tangomaos" vivendo na Guiné” (HORTA, 2010, p. 59). Estes, de acordo com o autor, passaram por um processo de constituição de um grupo específico identificável por um conjunto de características similares como religião, língua e cultura material. Havendo ainda a distinção desses com outros portugueses e cabo-verdianos que também estabeleciam relações comerciais na costa. Outra vertente bastante comum é a adotada pela historiografia anglo-saxônica que nomeia como luso-africanos “todos os luso-afrodescendentes, quer nascidos na Guiné, quer nas ilhas” (HORTA, 2010, p.60). Como 766

A ocupação de Cabo Verde que se iniciou na segunda metade do século XV foi incentivada pela Carta de Privilégios de 1466 que dava inúmeras liberdades comerciais aos seus moradores e prioridade sobre o comércio realizado na Costa. Contudo, devido aos arrendamentos que foram feitos a Fernão Lopes na região costeira, uma nova Carta foi promulgada em 1472 limitando a carta anterior. Tal limitação teve efeitos negativos tanto à coroa portuguesa que viu o aumento gradativo das atividades ilegais costeiras, assim como a propagação do número de lançados, como também aos moradores das ilhas, que começaram a enfrentar a concorrência desses lançados no comércio, assim como a limitação de seus lucros. (CARREIRA, 1983).

230 ISSN 2358-4912 exemplo dessa historiografia tem-se a definição de David Wheat a respeito de quem seriam esses lusoafricanos, que já comporta alguns fatores que serão mais a frente retomados:

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Uniões sexuais entre homens portugueses e mulheres africanas em contextos amplamente diferentes deu origem a várias gerações de crianças racial e culturalmente mestiças, resultando na formação de hibridismos, sociedades luso-africanas em locais como as ilhas de Cabo Verde e São Tomé. Na verdade, esses luso-africanos e seus próprios filhos frequentemente se identificavam como católicos e "portugueses". Ainda ao mesmo tempo, suas relações com as comunidades locais africanas e seu conhecimento sobre a língua, crenças e práticas sociais africanas permitiu-lhes um papel central como intermediários comerciais e culturais entre grupos europeus e africanos. (WHEAT, 2009, p.71)

Há, contudo, um problema com o uso indiscriminado de tal termo, por exemplo, no que diz respeito às ambiguidades passiveis de serem geradas: Este uso fluido torna-se confuso quanto paralelo ao de cabo-verdiano, dado que, por exemplo, um cabo-verdiano não é necessariamente um luso-africano, no sentido de ser mestiço descendente de Portugueses e pode ser um Negro ou mesmo um Branco, desde que já nascido em Cabo Verde (HORTA, p.60).

Dessa forma, fica aparente que a associação única e exclusiva ao local de origem e seus antepassados não é suficiente para caracterizar uma identidade como a defendida pelos historiadores que discutem o tema. David Wheat já assinala para os demais aspectos que compõe a identidade desses homens, suas práticas, vivências e trajetórias influenciavam diretamente na lapidação de seu perfil como homens intermediários entre diferentes regiões. Contudo, em uma breve passagem pelas obras que fazem uso desse termo, não parece haver uma definição compartilhada de quem seriam e as características principais desse grupo de homens assim identificados. Para elucidar as aplicações e formas nas quais o mesmo prefixo foi utilizado de maneira semelhante podemos mencionar casos não necessariamente associados ao continente africano. Como a menção de Luiz Filipe Thomaz aos luso-indianos (THOMAZ, 1994), ou a de Luís Felipe de Alencastro aos lusobrasílicos (ALENCASTRO, 200). Estes, assim como o uso do próprio termo luso-africano, parecem como uma tentativa de entender mundos distintos ou grupos de fronteira. Tais categorias são empregadas como descrição de homens e mulheres intermediários entre sistemas normativos diferentes: sociedades africanas, sociedades europeias e sociedades coloniais no Novo Mundo. Aparece como primeira necessidade diferenciar a noção de quem eram esses homens de alguns outros presentes na região, que possuíam semelhanças pelo fato de serem também portugueses e seus descendentes. Especificamente sobre os homens de Santiago há uma definição do historiador Peter Mark que fornece alguns aspectos para delineamento desse perfil de luso-africanos. Eram homens que se auto definiam como “portugueses” e viviam na Guiné e nas Ilhas de Cabo Verde. Entre outras coisas reuniam aspectos semelhantes na arquitetura de suas construções e pelo fato de serem comerciantes. Também a língua crioula que falavam, que convergia vocábulos do português com uma estrutura gramatical derivada das línguas do oeste atlântico, como resultado de um processo de assimilação cultural (MARK, 2002, p.16). O último aspecto em comum a esses homens era religião, Peter Mark esclarece que embora definidos como cristãos essa religião católica consistia em um amálgama de práticas cristãs, judaicas e africanas. Mesmo raras nas fontes as menções às práticas não ortodoxas desses homens, segundo o autor, as fronteiras culturais entre os luso-africanos e seus vizinhos não era necessariamente bem demarcadas. Uma das mais isoladas comunidades de luso-africanos estava situada nas ilhas de Cabo Verde, ainda para Mark, Donelha e Almada são representantes das complexas relações que prevaleciam entre as ilhas de Cabo Verde e o continente: Essa situação era caracterizada pela migração dupla de indivíduos e pelo ativo processo de interação cultural e troca entre os vários grupos de portugueses e seus parceiros comerciais africanos, assim como um continuo processo de casamentos entre cabo-verdianos, africanos e dos descendentes dos lançados. (MARK, 2002, p. 19)

231 ISSN 2358-4912 Nesse sentido é importante também definir quem eram os lançados, ou tangomaos, rotineiramente mencionados nas fontes. Segundo Peter Mark eram emigrantes de Portugal que se lançavam ao longo da costa e acabavam por se casar com mulheres das comunidades locais, em grande parte eram judeus que procuravam fugir das perseguições religiosas (MARK, 2002, p.13). Antonio Carreira, renomado historiador de Cabo Verde, define que eram os lançados todos os cristãos que se instalavam nos rios e portos africanos sem possuírem licença régia, eram esses “havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, penetrar, avançar pelo sertão a negociar, em contrário às estipulações régias) e desse modo considerados como perdidos para a cristandade e para civilização europeia” (CARREIRA, 2000, p.58) ao passo que “simultânea e paralelamente aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define estes mesmos transgressores: o de tamgomao e suas diferentes formas gráficas” (CARREIRA, 2000, p.59). Espera-se assim demonstrar que figura-se uma diferença entre quem eram os ditos luso-africanos e lançados. Os lançados eram estrangeiros, muitas vezes fugitivos portugueses, que adentraram os grupos étnicos africanos adotando boa parte de suas práticas culturais e em muitos casos até mesmo aderindo as escarificações. Eles se diferenciavam dos luso-africanos e eram mal vistos inclusive por estes últimos. Conforme mencionado anteriormente, o que parece acontecer é que a pouca definição concisa e não muito discutido compartilhamento conceitual do que seriam os luso-africanos acabou por gerar diferentes usos desses conceitos. O que parece influenciar diretamente na escolha por um ou outro termo é a perspectiva de análise da qual parte o observador. Sobre um caso citado no relato de André Donelha a respeito de um negro mandinga de nome Gaspar Vaz, que será a frente citado, há inúmeras interpretações já assinaladas pela historiografia. Tal episódio para Carlos Zeron (ZERON, 1999, p. 26-27) e J. Thornton (THORNTON, 2004, p. 117) que partem de um ponto de vista comercial do eixo afro-atlântico foi descrito como a respeito de um “tangomao”, “indivíduo que, além de intérprete, era um dos intermediários ou mediadores do trato comercial na costa da Guiné” (SANTOS, 2011, p.199). Sobre mesmo caso Alberto da Costa e Silva não fornece uma definição precisa, embora ao falar de Gaspar Vaz mencione este “lançara-se no continente” (COSTA E SILVA, 2002, p.246) dando margem para interpretação de que concebe também o mesmo caso como o de um lançado. Tais confusões parecem todas residirem em dois principais pilares, o primeiro são as poucas referências consistentes a casos particulares de homens e suas trajetórias que permitam traçar e definir seus perfis mais ou menos filiados aos conceitos de luso-africanos, lançados, africanos, portugueses. O segundo e grande razão dessas interpretações múltiplas são as relações comerciais nas quais se inseriam todos esses homens. O comércio era o ingrediente agregador dos interesses e vidas de todos os moradores e estrangeiros na Guiné, independente de suas filiações religiosas, políticas ou econômicas. Nesse sentido, emergiram a presente pesquisa dois desafios. O primeiro é o de lapidar em um conceito esclarecedor que não dê margem para confusões, o que se objetiva chamar de luso-africanos, definindo um perfil que comporte os interesses e atividades dos homens de Cabo Verde. O segundo é compreender em que medida, e comparando obviamente com os outros casos de comerciantes na Guiné, é possível fechar em si um conceito nesse espaço cabo-verdiano-guineense. O que já parece bastante claro é que a terminologia luso-africano comporta uma discussão de construção identitária e que nem de longe pode ser superficial, talvez a menção aos autores como cabo-verdianos apenas aludindo a seu lugar de origem, pela segurança de reduzir a denominação a uma única característica, fosse em certa medida mais adequada. Contudo, de maneira ou de outra pouco revelaria sobre a complexidade do papel exercido por esses homens. Além das questões mencionadas que se fizeram presentes, um questionamento ainda vigora: eram esses autores autoproclamados “portugueses” e que seguiam uma série de pré-disposições para se identificarem com a coroa, e junto a ela solicitarem privilégios, de fato mais próximos das lógicas de súditos da coroa portuguesa – lembrando por exemplo do fato de ser André Almada portador do hábito da Ordem de Cristo -, ou mais afinados as dinâmicas locais. É importante, nesse sentido, destacar o que aponta Jean Boulègue “Os luso-africanos que habitavam ao sul do Gâmbia, assim como os cabo-verdianos que se instalaram temporariamente entre eles, podiam seguir uma estratégia própria, diferente da de Portugal e da dos poderes africanos” (BOULÈGUE, S/D, p.48). É justamente sobre essa possibilidade que reside todo o presente debate conceitual e de construção de identidade. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

232 ISSN 2358-4912 Assim, seriam os vínculos desses homens com a monarquia portuguesa tão fortes a ponto de retirar-lhes da posição de homens de fronteira e de sua identidade maleável? Almada elabora seu relato com o objetivo de apresenta-lo ao Rei Felipe II e atrair atenção à causa dos moradores de Santiago, seu texto é produzido dentro dos padrões para requerer mercê. Pertencia a uma elite de Cabo Verde com condição bastante diferente da dos lançados que viviam na Guiné. Conhecia o modelo convencional e a linguagem política e simbólica régia, seu relato forma-se em função do que pretendia comunicar e visando um público específico. A imagem que deseja transpassar a coroa é a de um perfeito súdito, cristão em combate aos males que dominavam a Guiné. Alguns aspectos de seu relato poderão ser esclarecedores nesse sentido, os silêncios que comportam com relação a algumas atividades comerciais em territórios ilegais, ou mesmo a pouca menção aos lançados e tangomaos com os quais conviviam rotineiramente em meio as transações comerciais que se inseriam. Há de se levar em conta que talvez a importância para a coroa de homens como Almada, Donelha e Lemos Coelho residisse justamente em não serem portugueses, mas sim homens de fronteira, lusoafricanos, que dialogavam com um universo de símbolos, normas e linguagens com fluidez suficiente para fazer frente aos tantos estrangeiros que adentravam a Guiné. Dá-se aqui a importância e valor das relações comerciais para entender esses diferentes atores, seus papéis e funções desempenhadas e como contribuem para compreensão de seus perfis socioculturais. As reflexões para responder esse debate parecem de fato precisarem ser feitas fora das referencias internas dos textos que discutiram apenas a identidade luso-africana ou a filiação regional de caboverdianos. Considerando autores e debates que se aprofundem nas discussões sobre as lógicas do Antigo Regime, o mundo Ultramarino e as próprias questões culturais e antropológicas intrínsecas a essas relações e trajetórias. Para ilustrar alguns desses pontos supracitados destaca-se o trecho a seguir da fonte de André Donelha sobre seu encontro com Gaspar Vaz:

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Era o negro bom alfaiate e botoeiro. Tanto que soube que eu estava no porto, me veio a ver e visitar com grande alvoroço. Abraçou-me, dizendo que não podia crer ser eu o que via, e que Deus me levara lá para ele me fazer alguns serviços. Ao que lhe dei os agradecimentos, dizendo que também folgava muito de o ver, para lhe dar novas de seu senhor e senhora e conhecidos, mas que me pesava de o ver vestido com o camisão de Mandinga e com nóminas dos seus feitiços ao pescoço.

Ao que Donelha prossegue transcrevendo o que diz ser a fala do negro: Eu trago, senhor, este traje porque eu sou o sobrinho do Sandeguil, senhor desta aldeia, o qual os tangomaos chamam duque, por ser a segunda pessoa do rei. Por morte do Sandeguil, meu tio, fico herdeiro de todos os seus bens, e por isso trago os vestidos que vossa Mercê vê, mas na Lei de Mafamede não creio, mas antes me aborrece. Na Lei de Cristo Jesus creio, e para que Vossa Mercê saiba ser verdade o que digo (despiu o camisão, ficou em Jubão e camisa ao nosso modo, e do pescoço tirou um Rosário de Nossa Senhora dizendo) todos os dias me encomendo a Deus e a Virgem Nossa Senhora nesse rosário. E se eu não morrer, e vier a herdar essa casa do meu tio, irei por em Santiago alguns escravos, e achando embarcação hei-me de ir viver nessa ilha e morrer entre cristãos (DONELHA, 1977, p. 148).

Inúmeros são os aspectos que poderiam ser analisados deste encontro, contudo aqui somente irá se dedicar atenção à necessidade que demonstra Gaspar Vaz de justificar a Donelha sua associação ao islã, representado por suas roupas e colares que levava ao pescoço. Tanto o mandinga quanto o viajante apenas discutem e debatem o conflito existente entre a coexistência de signos cristãos e muçulmanos na cultura de Gaspar Vaz. Ao que suas filiações as tradições africanas não parecem em momento algum representar um ponto de discussão. Ao mencionar as tradições sucessórias em que está inserido, fazendo referência a herança dos bens do tio que viria a herdar – e consequentemente referindo-se ao esquema matrilinear – apresenta-se uma das características do perfil híbrido de muitos moradores da Guiné. Em momento algum do relato parece passível de questionamento qualquer filiação de Vaz às tradições africanas, seja esse questionamento oriundo de Donelha ou necessário de justificativa por parte de Vaz. Há uma concordância tácita de que não existe qualquer conflito nessa coexistência.

233 ISSN 2358-4912 Dessa forma, em certa medida há de se concordar com Peter Mark que o que ele denomina de lusoafricanos compor um “grupo-étnico” entre os tantos existentes na Guiné, pois o autor considera que esses autodeclarados “portugueses” foram fruto de um processo de construção identitária. O que os caracterizou segundo Peter Mark não foram um conjunto de características que se opunham a nenhuma outra existente na região, mas sim a grande maleabilidade e dinamismo com que se adaptavam as diferentes circunstâncias diárias. O que parece correto inferir de todo o debate corrente é que a formação dessa identidade dos luso-africanos foi um processo baseado nas experiências vividas no constante contato com o mosaico cultural que era a “Guiné do Cabo Verde”. Além do papel desempenhado por esses autores que era diferente do dos lançados, mas não deixava de possuir estreita relação com os parceiros comerciais da costa da Guiné. As circunstâncias que foram impostas aos autores, pelas razões políticas da coroa aos moradores de Cabo Verde, as saídas encontradas por estes no comércio ilegal e a concorrência com o crescente número de lançados na Guiné, assim como o caso da parceria com os nativos da terra como Gaspar Vaz. Todas essas foram circunstancias ligadas pelo comércio. Todos esses aspectos terão de ser analisados com base na análise das fontes para composição mais detalhada da trajetória desses homens, assim como a observação de seus relatos – inclusive dos silêncios destes – de forma a melhor adotar, ou não, o termo de luso-africanos. Por hora, além da constatação de sua importância como reflexo de uma identidade complexa e dinâmica, conclui-se que foi um caso sui generis, que ainda te muito por mostrar sobre as possíveis maiores afinidades dessa elite cabo-verdiana-guineense e suas intenções mais ou menos parelhas com o observado em demais casos do ultramar dos súditos da coroa portuguesa.

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Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BOULÈGUE, Jean. "Présences portugaises et societés africaines sur la côte de la 'Guinée du Cap-Vert' aux XVIe et XVII siècles". In: LANG, Jurgen. Cabo Verde: origens de sua sociedade e do seu crioulo. Tubingen: Gunter Narr Verlag. pp.48-49. CARREIRA, Antonio. Cabo Verde: formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-1878). Lisboa: Instituto Cabo-verdiano do Livro, 1983. COSTA E SILVA, Alberto. A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. DONELHA, André. Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar. 1977. HORTA, José da Silva. “O nosso Guiné”: representações luso-africanas do espaço guineense (sécs. XVI-XVII). In: Actas do Congresso Internacional “Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades”. Lisboa, 2 a 5 de Novembro de 2005. HORTA, José da Silva. A “Guiné do Cabo Verde” produção textual e representações (1578-1484). Lisboa, 2010. MARK, Peter. “Portuguese” style and luso-african identity – precolonial Senegambia, Sixteenth-Nineteenth Centuries. Bloomington: Indiana University Press, 2002. MOTA, Avelino Teixeira da. Dois escritores quinhentistas de Cabo Verde, André Álvares de Almada e André Dornelas. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971. SANTOS, Vanicléia Silva. "Bexerins e jesuítas: religião e comércio na costa da Guiné (século XVII)" Metis: História e Cultura, v.10, n.19 (2012), THOMAZ, Luis Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. WHEAT, David. The afro-portuguese maritime world and the foundations of spanish caribbean society, 1570-1640. Dissertação de Mestrado: Faculty of the Graduate School of Vanderbilt University. Nashvile, 2009. ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangomaus: intermediários do tráfico de escravos na África. In: LOUREIRO, R.M.; GRUZINSKI, S. (Coord.). Passar as fronteiras. Lagos: Centro de Estudos Gil Eanes, 1999.

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O USO DAS CARTAS PATENTES NO EXERCÍCIO DA GOVERNANÇA DAS CAPITANIAS DO BRASIL: O CASO DE JERÔNIMO JOSÉ DE MELO E CASTRO, CAPITANIA DA PARAÍBA (1764-1797) Bruno Cezar Santos da Silva767 Um duque tem que construir sua casa de uma maneira que expresse: sou um duque e não um conde. [...] O mesmo vale para todos os aspectos do seu estilo de vida. Ele não pode tolerar que outra pessoa 768 pareça mais um duque do que ele próprio. (Norbert Elias, A sociedade de corte).

Jerônimo José de Melo e Castro era português de nascimento769 e tomou posse do governo da Paraíba em vinte e um de abril de 1764, após setenta e um dias de “uma fastidioza” viagem de travessia ao Atlântico.770 O decreto, outorgando a sua nomeação, fora expedido cerca de um ano antes, mais precisamente, no mês de julho. No documento, constava a determinação de que estava sendo encarregado para o posto de governador da capitania da Paraíba, a ser exercido por período de três anos, ou até quando lhe mandassem sucessor.771 Chegava para administrar uma capitania já subordinada, mas, na sua carta patente apresentavamse diferenciais que, a despeito disso, são dignos de nota. Primeiro, a ele havia sido conferido o título de Coronel de Infantaria e o comando das tropas da circunscrição da Paraíba, denotando que seu cargo continha importantes obrigações militares (da qual, cobrará, exaustivamente, anos depois). Segundo, receberia soldo à semelhança de seus antecessores, nomeadamente, os governadores independentes, no valor de quatro mil cruzados anuais, tendo em vista que, os designados para o posto, após o parecer da anexação, venciam uma quantia bem menor, à semelhança do capitão-mor do Rio Grande: de 400 mil réis. Na função, ficou até maio de 1797, deixando-a, apenas, em razão de seu falecimento. Com a sua morte, tomou posse, a título de emergência, um triunvirato772, que governou de maio de 1797 a março do ano seguinte, até que se enviasse da Corte um nome com predicados compatíveis ao grau de responsabilidade do referido posto e das demandas que se almejavam, no alvorecer de um século que se avizinhava. Administrou a capitania por longos 33 anos, correspondendo a ¾, ou 75%, do período da anexação, e foi o terceiro capitão-mor subordinado a Pernambuco. Antes dele, ocuparam o cargo, o oficial das tropas pernambucanas, José Henrique de Carvalho (1757-1761), vindo por indicação do general-governador daquela capitania, e Francisco Xavier de Miranda Henriques (1761-1764), que, anos antes, havia sido capitão-mor do Rio Grande (do Norte). Para Maximiano Lopes Machado, as gestões destes dois oficiais não foram de grande relevo, asseverando que se viam reduzidos à simples inspetores das tropas da guarnição e limitados a pequenas atribuições de âmbito municipal. Neste sentido, o historiador atribui ao governo de Jerônimo José maior poder de autonomia no que respeitava aos negócios administrativos, ressaltando, até, a reefetivação do soldo de 4 mil cruzados como elemento elucidativo de que possuía mais status e

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Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. Email: [email protected] ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 83. 769 Uma excelente investigação das origens genealógicas de Jerônimo José de Melo e Castro, incluindo a situação socioeconômica de sua família e os serviços prestados à Coroa por seus ancestrais mais influentes, pode ser encontrada em: CHAVES JÚNIOR, José Inaldo. “As duras cadeias de hum governo subordinado”: História, elites e governabilidade na capitania da Paraíba (c.1755-1799). Dissertação de Mestrado: Universidade Federal Fluminense, 2013. p. 138-140. 770 Carta de Jerónimo José de Melo e Castro, ao rei D. José I, informando que tomou posse no governo da capitania, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1726). 771 Decreto do rei D. José I, nomeando Jerónimo José de Melo e Castro no cargo de governador e coronel da Paraíba, datado de 05 de jul. de 1763 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 22, D. 1701). 772 O triunvirato era composto do Ouvidor Geral da Comarca, o Desembargador Antonio Felipe Soares de Andrade e Brederode; pelo Sargento-mor João Ribeiro Pessoa Lacerda e pelo vereador mais antigo, Luiz Álvares da Nóbrega. Confere: LEAL, José. Itinerário histórico da Paraíba. 2ª ed. João Pessoa: Editora A União, 1989. p. 105. 768

235 ISSN 2358-4912 ingerência que seus antecessores.773 Contudo, teria mesmo apresentado maior capacidade governativa, sobretudo, no que concerne às questões de cunho militar? É o que tentaremos detalhar doravante. Fazendo jus à patente de Coronel e de Superintente das fortificações da Capitania, bem como às deliberações castrenses a que foi incumbido, não fugiu à regra das medidas imediatas a serem tomadas por um capitão-mor, logo que assume uma capitania, e enviou um relatório acurado contendo o estado em que se encontrava a fortaleza do Cabedelo e os apetrechos que nela havia. Expôs as armas capazes e incapazes e, com isso, elaborou lista do que se precisava para completar o trem de guerra, não se esquecendo de fazer menção à necessidade de refinação da pólvora. Da mesma maneira, também versou sobre a situação da Capela da citada fortaleza, carente de ornamentos e de consertos de alvenaria e marcenaria. Por último, alertou para os problemas estratégicos nas três companhias pagas, segundo ele, todas indisciplinadas e sem a prática de exercícios há mais de sete anos e, ainda, há três, sem fardas.774 Ao que parece, Jerônimo José conseguiu exercer certa influência sobre os assuntos militares, nos primeiros anos de seu governo. Sinalizador deste apanágio encontra-se na faculdade que o mesmo possuía de indicar e nomear indivíduos para ocuparem cargos de oficiais nas tropas pagas e auxiliares da capitania, assim como, fizeram seus predecessores, a exemplo de Francisco Xavier de Miranda Henriques que, propôs a nomeação de um capitão-mor para a fortaleza do Cabedelo, após o falecimento de Manoel Gonçalves Ramalho, no ano de 1763, e, antes deste, em 1755, Luiz Antonio de Lemos de Brito que, para o mesmo posto, recomendou e empossou o próprio Manoel Gonçalves Ramalho para a vaga de José de Melo Muniz, também aberta por motivo de óbito.775 Na documentação pesquisada, encontramos algumas ações de Jerônimo José no sentido de conceder e intervir na distribuição de patentes. Uma delas foi em 1765, quando indicou a nomeação de vários cargos atinentes às tropas pagas. Para capitão da fortaleza, sugeriu o nome do Tenente da mesma, Luiz Queixada de Luna; para Sargento-mor da Praça, propôs Marcelino da Silva Maciel, que já o exercia, contudo, ainda sem as patentes reais, e para capitão de uma das companhias da cidade, a Antonio da Silva Frazão, em decorrência da morte de Brás de Mello Moniz.776 Não obstante, o interessante é que chega a lograr êxito, no exercício desta prerrogativa de conferir patentes, uma vez que consegue ver seus indicados serem nomeados. Foi o que aconteceu com Luis Queixada de Luna, que assumiu a função de capitão da fortaleza do Cabedelo, cargo vago havia, pelo menos, três anos, após consulta do Conselho Ultramarino articulada, inclusive, a partir das informações fornecidas por Jerônimo José. Na ocasião, o governador da Paraíba aconselhou seis nomes para o posto, mas, faz nítida apologia ao então tenente, que ganha à concorrência, provavelmente, em função da sua preciosa “ajuda”.777 Outro caso teve abrangência numa das companhias do Terço de auxiliares. Desta feita, em razão da incapacidade física de Cosme Soares Barboza poder continuar no exercício de capitão da companhia da praia de Lucena, dada a sua avançada idade, indicou três nomes para o seu lugar. No entanto, o fez seguindo uma explícita ordem hierárquica, colocando o nome de Francisco Martins Xavier como a primeira opção, por, na sua concepção, “ser abonado, ter sufficente capacidade e assistir na praia de Lucena na forma das ordens de Vossa Magestade”. Em anexo, para enaltecer mais ainda as qualidades V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: UFPB, 1977. p. 444. Cf: Carta do governador da Paraíba, coronel Jerónimo José de Melo e Castro, ao rei D. José I, sobre o estado da fortaleza do Cabedelo, os apetrechos que possui e necessita, tanto para refinação da pólvora, quanto para ornamentar a capela da mesma Fortaleza, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1729); Ofício do coronel J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, remetendo as relações das munições existentes e necessárias à fortaleza do Cabedelo, para defesa da capitania, de 26 de mai. de 1764 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1730) 775 Carta do governador e capitão-mor da Paraíba, Francisco Xavier de Miranda Henriques, ao rei D. José I, propondo a nomeação de pessoas para o posto de capitão-comandante da fortaleza do Cabedelo, de 23 de ago. de 1763 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 22, D. 1706); Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão de Infantaria da fortaleza do Cabedelo da Paraíba, de 11 de out. de 1755 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1457). 776 Ofício do governador da Paraíba, coronel Jerónimo José de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, propondo a nomeação de pessoas para diversos cargos militares, datado de 16 de jun. de 1765 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1758); 777 Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. José I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão da fortaleza do Cabedelo, de 25 de jan. de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1772). 774

236 ISSN 2358-4912 do aludido militar, apresenta outra carta endossando esta primeira, como pode ser percebido no fragmento abaixo:

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Jeronimo Jozé de Mello e Castro, Cavaleiro professo na Ordem de Christo, moço Fidalgo da Casa de Sua Magestade, Coronel Governador desta Capitania da Paraíba do Norte, e superintendente das Fortificações della pello dito Senhor que Deus guarde. Faço saber aos que esta minha Patente de referendação virem que tendo consideração a Francisco Martins Xavier ser provido por meu antecessor no posto de capitão de Auxiliares do Terço de que hé Mestre de Campo Matias Soares Taveira do districto da Ponte de Lucena, que comprehende quatro Legoas desde a enseada de Santo Antonio até a barra de Miriri que se lhe havia passado por desistência que delle fes Cosme Soares Barboza a que se lhe acceitou por mostrar os muitos annos a que se via reduzido e ser conveniente ao serviço de Sua Magestade proverse o dito posto em pessoa que tivesse expressivos requisitos que se achavão perfeitamente em a pessoa do dito Francisco Martins Xavier por haver servido a Sua Magestade quatorze annos em praça de soldado em huma das companhias do mesmo Terço com cabal satisfação dando inteiro comprimento a tudo o que se lhe encarregou e confiando delle continuará com acertada actividade. Hey por bem de lhe referendar como por esta referendo a sua Patente de Capitão de Auxiliares do dito districto, uzando da faculadade que me permitte o cappitão do meu Regimento [...].778

A recomendação de Jerônimo José teve verdadeira eficácia e o dito capitão, como indicado, conseguiu ser alçado ao posto pretendido. Porém, tudo leva a crer que esta tenha sido uma das últimas nomeações para cargos militares, feitas pelo capitão-mor da Paraíba, haja vista que este privilégio de propor patentes passaria a ser exclusividade dos generais-governadores de Pernambuco. E a investigação nos revelou que o marco definidor desta inflexão foi, inexoravelmente, a carta régia de 22 de março de 1766. Portanto, podemos aduzir que Jerônimo José de Melo e Castro logrou alguma autonomia sobre as questões militares da capitania, apenas, nos dois primeiros anos de seu governo. Com efeito, a partir deste momento, consideramos iniciadas as suas grandes agruras e, isso, em razão do achatamento de sua jurisdição e do desencadeamento das atitudes tidas como desrespeitosas, materializadas nas transgressões e indocilidades provenientes dos vários grupos e setores da sociedade local. A rigor, seus tempos na Paraíba passariam a se resumir a queixas contra os limites da subordinação, a denúncias de desacato e a pedidos repetitivos de transferência para servir em outras capitanias, ou mesmo, para voltar à metrópole. Sem dúvidas, a perda do direito de propor cargos para os corpos militares, significou, para Jerônimo José, a diminuição imediata da sua autoridade bem como do seu poder de mando perante a sociedade paraibana. Em outras palavras, dentro da arquitetura de poderes em que se fundamentava a cultura política do Antigo Regime ibérico, por sua vez, norteada pela lógica da “economia de favores” e da (re) distribuição de dons e contradons, temos que o respeito dispensado a uma pessoa, via de regra, se colocava diretamente atrelado à sua capacidade de fornecer benefícios, assim como, no caso da outra parte - aquela que recebia a graça - de ser proporcionalmente leal ao seu benfeitor. Isto é, o ato de dar levava ao ato de retribuir. Seguindo esta perspectiva, como observa António Hespanha e Ângela Xavier, se tratavam de “prestações materiais em troca de submissão política; effectus em troca de affectus”.779 Sendo assim, como o referido capitão-mor ficava impedido de conceder patentes, também se encontrava desprovido de capital simbólico e material para preservar o respeito e a credibilidade dos potentados locais em relação à sua pessoa.780 Vale lembrar que as patentes militares eram utilizadas, pela monarquia portuguesa, como instrumentos de negociação (effectus) em troca da fidelidade dos seus súditos ultramarinos (affectus). Consoante José Eudes Gomes, a doação de patentes fazia parte da estratégia metropolitana com vistas no incentivo da colonização, servindo, na mesma medida, para remunerar os seus conquistadores e 778

Requerimento do capitão de uma das Companhias do Terço de Auxiliares do distrito da Ponte de Lucena, ao rei D. José I, solicitando que do Conselho Ultramarino lhe mande expedir a sua patente para subir à real assinatura de Sua Majestade, de 06 de nov. de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1808). 779 XAVIER, Ângela; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes clientelares. In: HESPANHA, A. M. (coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998, p. 339-349. 780 Confere: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

237 ISSN 2358-4912 para viabilizar a sua administração, configurando-se, por consequência, numa prática que corroborava a troca de serviços por mercês remuneratórias.781 Como este período – a segunda metade do século XVIII – foi marcado por intenso processo de militarização da sociedade colonial, possuir uma patente militar, especialmente das tropas auxiliares e de ordenanças, se tornava, ainda mais, um indiscutível dispositivo de nobilitação e de consolidação das elites da terra, chegando, inclusive, a agregar maior atração que os cargos de vereança que, até então, eram mais visados.782 Portanto, apesar de não vencerem soldo e de terem de custear suas fardas e armamentos, os cargos do oficialato das milícias e das ordenanças atraiam sobremaneira em decorrência das benesses que gozavam seus detentores: “honras, graças, privilégios, izençoes, franquezas e liberdades”, por tudo, eram cargos destinados aos “melhores” cidadãos da localidade, ou então, para aqueles que almejavam ser. Desta maneira, tomada a importância peculiar das patentes e o monopólio de sua tutela atribuído ao poder central e aos seus representantes, devemos considerar - novamente, nos fiando nos postulados de José Eudes Gomes - o papel decisório da Coroa no processo de hierarquização social nas terras ultramarinas. Portanto, por se constituírem em mercês eletivas, sujeitas à confirmação régia e não patrimonializáveis, diferentemente das sesmarias, que eram hereditárias, as patentes fomentavam, por excelência, “os jogos de trocas assimétricas agenciadas entre a monarquia portuguesa e os potentados locais”, fazendo com que “a cada geração se renovasse a busca por patentes de comando das tropas locais, [implicando numa] constante renovação do pacto político estabelecido entre o rei distante e seus vassalos”.783 Não por acaso, Jerônimo José via com tão maus olhos a incapacidade de indicar cargos militares e de comandar as tropas. Pois, sem estas atribuições, acabava por ficar impossibilitado de se articular às chefias locais, além de não conseguir constituir boas redes de sociabilidade e de governabilidade, uma vez que se encontrava politicamente desprestigiado. Dito isto, partamos para alguns casos de concessões de patentes, ulterior à carta régia de 22 de março de 1766, para, com isso, ratificarmos o axioma que sugestiona que este encargo, passou, especificamente, para os generais-governadores de Pernambuco. De fato, da mencionada carta régia para frente, percebemos diversos exemplos apontando para a afirmação supracitada. Entretanto, é importante sublinhar que o disposto só se verifica, notadamente, a partir da década de 1770, pois, até o fim do governo de António de Souza Manuel de Meneses, o Conde de Vila Flor (1763-1768), e o de José da Cunha Grã Ataíde e Melo, o Conde de Povolide (17681769), poucas foram as situações de proposição de patentes estabelecidas pelos próceres da capitania geral. Neste sentido, em fins de 1769, Jerônimo José reclama a ocupação do posto de sargento-mor pago do terço auxiliar, em substituição de João Baptista Ferreira, por motivo de falecimento, através de indicação do governo de Pernambuco.784 No ano seguinte, chama atenção para a nomeação de Pedro de Barros Barboza, soldado da Companhia de Infantaria paga da guarnição da cidade da Paraíba do Norte, ao posto de cabo de esquadra, da mesma companhia, vago em razão do antigo ocupante ter ascendido ao cargo de ajudante das tropas auxiliares, feito pelo general-governador de Pernambuco, Manuel da Cunha Menezes (1769-1774).785 Daí em diante, os casos só se abundam, especialmente, na gestão de José Cezar de Meneses (1774-1787). Um desses casos foi paradigmático e se sucedeu em 1780, quando o Conselho Ultramarino envia consulta contendo seus pareceres em relação à indicação de uma série de nomes para a ocupação de cargos de oficiais superiores que, por sua vez, estavam vagos na capitania – uns, cumpre dizer, há bastante tempo. Consistia-se em altos postos, derivados de todos os corpos, tanto da primeira linha, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

781

GOMES, José Eudes. As milícias D’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010. p. 145. 782 MELLO, Cristiane Figueiredo Pagano de. A centralização política e os poderes locais ultramarinos: as câmaras municipais e os corpos militares. In: Revista História Social: Campinas-SP, 2005. n. 11. p. 153-172. 783 GOMES, José Eudes. Op. Cit. p. 145-146. 784 Ofício do governador da Paraíba, brigadeiro J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, solicitando esclarecimento sobre os limites da subordinação da Paraíba a Pernambuco, para se evitar os conflitos e o proveito que deles tiram os delinquentes, de 29 de jul. de 1769 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1857). 785 Ofício do J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado dos Negócios Estrangeiros, conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, de 10 de fev. de 1770 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1879).

238 ISSN 2358-4912 quanto das milícias e, alguns, das ordenanças. Dentre estes, salientamos o de tenente da Companhia da Fortaleza do Cabedelo, ocioso devido ao passamento de Francisco Rodrigues Barboza; para o qual, três oficiais foram indicados, sendo efetivado o então sargento do número, António de Mello Muniz. Para mesma companhia, sendo que para o posto de capitão, no lugar de Luis Queixada de Luna, também por motivo de óbito, dois nomes foram sugeridos, escolhendo-se Manoel Carneiro de Albuquerque Gondim. Para capitão de uma das companhias da infantaria paga da cidade, na vaga do falecido Marcelino da Silva Maciel, nomeia-se José Correia de Mello, que vence a disputa de mais dois concorrentes. Por último, destacamos a consulta realizada para a função de coronel do Regimento de cavalaria auxiliar, disponível após a reforma de Francisco de Pinto Pessoa, que possuía patente conferida pelo Conde de Vila Flor. Para este posto, dois foram indicados, e preencheu a vaga o, à época, tenente coronel do segundo regimento de cavalaria da Paraíba, Bernardo José dos Santos.786 Um aspecto relevante, neste contexto acima descrito, é que o tempo de serviço, acompanhado de uma minuciosa descrição das ações e feitos no ofício militar, pesava bastante na escolha da pessoa para ocupação do cargo. Dito de outra forma, quanto maior a importância da patente almejada, maior a necessidade de experiência do postulante. No entanto, contava como outro ponto importante, na mesma proporção, a interferência do representante do rei responsável pela feitura da indicação. E, neste particular, não estamos falando do capitão-mor da Paraíba, mas, do general-governador de Pernambuco. Como sinalizamos, Jerônimo José havia perdido o direito de propor patentes, desde 1766. Cabia a ele, tão somente, a diminuta obrigação de enviar, aos seus superiores, em Pernambuco, as informações sobre os oficiais concorrentes. Sendo assim, a recomendação enviada para Portugal, contendo os papéis correntes dos pretendentes, incluindo os posicionamentos preferenciais, isto é, a ordem de classificação dada, era atributo praticado pelos chefes da capitania geral de Pernambuco. Abaixo, explicitamos a indicação, elaborada por José Cezar de Menezes e destinada à rainha D. Maria I, para a ocupação do posto de Coronel da Cavalaria das tropas auxiliares:

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Senhora. Para o posto de Coronel do novo Regimento da Cavalaria Auxiliar da Capitania da Parahiba do Norte, vago desde dous de Abril de mil setecentos setenta e seis por se haver reformado Francisco Pinto de Pessoa, que exercia por Patente passada pelo meu antecessor, o Conde de Vila Flor, a qual não confirmou por Vossa Magestade. Proponho a Vossa Magestade em primeiro lugar Bernardo Jozé dos Santos da Silveira Tenente Coronel do mesmo Regimento que ofereceo os seus papeis de Serviço incluzos. Em segundo lugar Joaquim Francisco Cavalcante de Albuquerque, capitão de huma das Companhias do mesmo Regimento, que ofereceo os seus papeis de Serviços incluzos. Não proponho em terceiro lugar, por não ter havido mais opositores, sem embargo de terem precedido os Editais do estillo; e vão incluzas as informações que a respeito destes propostos me deu o Governador da capitania da Parahiba do Norte. Recife de Pernambuco 22 de Março de 1780. Jozé Cezar de Menezes.787

O procedimento para enviar os papéis correntes, evidenciando o rol dos serviços prestados, se dava através da abertura de edital, geralmente, exposto em ponto central da localidade. Então, depois da publicação deste ato oficial, o candidato tinha vinte dias para apresentar os documentos comprobatórios, que, em seguida, seriam compilados, autenticados e despachados para Corte. Porém, antes disso, era anexada a toda esta papelada, o parecer do governador sugerindo os nomes – em ordem de preferência – que, por seu turno, achava mais procedente para desempenhar o mencionado posto, como pôde ficar claro na citação acima. 786

Respectivamente: Consulta do Conselho Ultramarino, à rainha D. Maria I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de tenente da Companhia de Infantaria paga da fortaleza do Cabedelo, de 02 de set. de 1780 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2072); Consulta do Conselho Ultramarino, à rainha D. Maria I, sobre a nomeação de pessoa para o posto de capitão da Companhia de Infantaria paga da fortaleza do Cabedelo, de 04 de set. de 1780 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2075); Consulta do Conselho Ultramarino, à rainha D. Maria I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de capitão de Infantaria paga da Companhia que guarnece a cidade da Paraíba, de 04 de set. de 1780 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2074); Consulta do Conselho Ultramarino, à rainha D. Maria I, sobre a nomeação de pessoas para o posto de coronel do novo Regimento de Cavalaria Auxiliar da Paraíba, de 02 de set. de 1780 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2073). 787 AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2073. Grifo nosso.

239 ISSN 2358-4912 Nesta mesma citação, José Cezar de Meneses salienta que considerou as informações concedidas pelo governador da Capitania da Paraíba do Norte acerca dos pretendentes. A partir dela, podemos perceber que, no que respeita à proposição de patentes, a atribuição de Jerônimo José ficava restrita à função de comunicar, ou melhor, de inteirar seu superior sobre o perfil dos indicados. Tratava-se de função que lhe conferia um papel deveras secundário, o qual se recusava tenazmente a assumir. Vejamos o que escreve sobre Bernardo Jozé dos Santos da Silveira e Joaquim Francisco Cavalcante de Albuquerque:

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Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor, Bernardo Joze dos Santos da Silveira Tenente Coronel do novo Regimento da Cavalaria Auxiliar de idade de quarenta e quatro annos, tem robustes e capacidade para que applicandose cumpra inteiramente com as obrigações do posto, hé bem executor das [tarefas], tem bom comportamento e aceio pessoal, hé o que posso informar a Vossa Excelência. Paraíba 7 de dezembro de 1779. Jeronimo Joze de Mello e Castro. Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor, Joaquim Francisco Cavalcante de Albuquerque, Capitão do novo Regimento da Cavalaria Auxiliar com idade quazi de secenta annos tem ar de official, e capacidade para qualquer empreza de persevação, hé robusto, e tem a capacidade para se instruir, em as obrigações de hum bom official, quando se applicasse, hé o que posso informar a Vossa Excelência. Paraíba 7 de Dezembro de 1779. Jeronimo Joze de Mello e Castro.788

Conforme asseveramos, anteriormente, para Jerônimo José de Melo e Castro, o que explicava a redução de sua ingerência perante os corpos militares da Paraíba, sobretudo, no tocante ao provimento de patentes, era a má interpretação e apropriação que os governadores de Pernambuco fizeram em relação à carta régia de 22 de março de 1766. A propósito da questão, era bastante enfático na exposição de sua opinião: dizia que os generais daquela capitania tinham arrogado para si toda a jurisdição sobre as tropas Auxiliares e de ordenanças, adulterando a finalidade precípua do conteúdo presente na carta, que era a de criar companhias militares, incluindo, sem exceção, todos os moradores aptos. Para ele, o documento só determinava o levantamento de novas companhias com intuito de intensificar a defesa e que, no caso da capitania da Paraíba, se configurou na ereção dos três terços de infantaria e nos dois regimentos de cavalaria, ambos auxiliares, e montados a partir do recrutamento dos homens residentes nas áreas do litoral até a extensão de quinze léguas, em direção ao sertão, chegando, mesmo, a promover a desmobilização dos corpos de ordenanças, fato do qual era peremptoriamente contra, tendo em vista que prejudicava o desenvolvimento produtivo da região, dada as obrigações recaídas sobre os integrantes das guarnições auxiliares.789 Portanto, reclamava que essas novas ordens os privava de toda administração, num nível ainda maior que o aplicado a seus antecessores, como, a Francisco X. de Miranda Henriques. Nesse sentido, como bem ressalta Elza Regis de Oliveira, o fator que mais proporcionava insatisfação a Jerônimo José era, justamente, a perda da jurisdição militar, haja vista que já considerava natural a ausência de autonomia no que dizia respeito aos assuntos políticos e econômicos.790 A verdade é que o capitão-mor da Paraíba não se conformava com esta situação porque a considerava deveras incoerente, partindo do principio de que tinha recebido patente régia de coronel para, ao menos, exercer o comando das tropas da capitania.

788

Idem. Ofício do governador da Paraíba, brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, acusando o governo de Pernambuco de ter lhe tirado a jurisdição de prover os postos de Ordenanças, na forma que lhe faculta a ordem real, 27 de out. de 1770 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1897). 790 OLIVEIRA, Elza Regis. A Paraíba na crise do século XVII: subordinação e Autonomia. 2ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007. p. 116. Em carta de 24 de abril de 1766, o capitão-mor faz questão de elucidar que “só [lhe] estava encarregado o Governo Militar; e não o Político e Fazenda”. Confere: Ofício do governador da Paraíba, brigadeiro J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado dos Negócios Estrangeiros, conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1787). 789

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ISSN 2358-4912 Aqui agora me impossibilitão as ordens que o Governo de Pernambuco quer extender para este como Vossa Excelência verá do edital junto quando parece que a Real ordem de 22 de Março em que elle se funda não comprehende esta Capitania. Cujas ordens me privão de toda administração das tropas Auxiliares, ordenanças e cavalaria ficando-me restricta a jurisdição ainda muito mais do que se teve o Capitão-mor Francisco Xavier de Miranda Henriques, quando Sua Magestade na Patente de que me fez graça quer que eu goze das regalias que gorão os Grandes meus Antecessores.791

Na citação, o capitão-mor deixa evidente que deveria gozar das regalias que a Coroa havia lhe outorgado. Precisamente, referia-se não apenas à patente de coronel e de superintendente da fortaleza do Cabedelo, mas também, ao soldo de quatro mil cruzados que recebia conforme seus antecessores independentes. Afirmava que tais atributos se contrastavam com a sua carência de comando e jurisdição sobre as tropas, assim como, com os ultrajes que sofria dos habitantes, por não lhe dedicarem o devido respeito.792 Com efeito, numa sociedade onde o imperativo do dar se configurava em elemento sine qua non, ficar impossibilitado de propor patentes militares representava uma perda assaz considerável, tendo em vista que, comprometia diretamente o exercício da governança e, neste sentido, o estabelecimento das imprescindíveis articulações com as elites locais. Referências BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. CHAVES JÚNIOR, José Inaldo. “As duras cadeias de hum governo subordinado”: História, elites e governabilidade na capitania da Paraíba (c.1755-1799). Dissertação de Mestrado: Universidade Federal Fluminense, 2013. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GOMES, José Eudes. As milícias D’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010. LEAL, José. Itinerário histórico da Paraíba. 2ª ed. João Pessoa: Editora A União, 1989. MACHADO, Maximiano Lopes. História da Província da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: UFPB, 1977. MELLO, Cristiane Figueiredo Pagano de. A centralização política e os poderes locais ultramarinos: as câmaras municipais e os corpos militares. In: Revista História Social: Campinas-SP, 2005. n. 11. p. 153-172. OLIVEIRA, Elza Regis. A Paraíba na crise do século XVII: subordinação e Autonomia. 2ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2007. XAVIER, Ângela; HESPANHA, Antônio Manuel. Redes clientelares. In: HESPANHA, A. M. (coord.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998, p. 339-349.

791

OFÍCIO do governador da Paraíba, brigadeiro J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as ordens do governo de Pernambuco, que o privam de toda a administração das Tropas Auxiliares, Ordenanças e Cavalaria, restringindo-lhe a jurisdição, de 05 de nov. de 1766 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1806). Grifo nosso. 792 Ofício do governador da Paraíba, brigadeiro J. J. de Melo e Castro, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, acerca da jurisdição, dignidade, soldo do seu cargo, de 31 de mar. de 1775 (AHU_ACL_CU_014, Cx. 25, D. 1963).

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A RESTAURAÇÃO NA BAHIA: QUERELAS ENTRE UM BISPO E UM GOVERNADOR NA DÉCADA 1640 Camila Teixeira Amaral793 Primeiro governador nomeado pela dinastia brigantina para administrar o Brasil, Antonio Telles da Silva chegou a Salvador em 1642 trazendo consigo uma vasta experiência militar. Descendente de umas das famílias mais ricas de Portugal e típico filho secundogênito, ele deixou a carreira eclesiástica para seguir o caminho das armas. Participou da armada que veio à Bahia em 1625 para lutar contra os holandeses e dez anos depois partiu em uma jornada para Índia794 e em 1640 fez parte da aclamação de Dom João IV, lutando no Paço ao lado de outros restauradores.795 Chegou na cidade da Bahia em Agosto de 1642 focado principalmente nas questões militares e de defesa do território ocasionadas pela presença dos holandeses em Pernambuco e as constantes investidas em outras partes da costa nordestina. Nesse sentido, tão logo chegou na Bahia e observou sua defesa bastante vulnerável, Telles da Silva tratou de fazer objeção ao desejo da coroa de manter apenas dois mil homens na guarnição da cidade. Afirmou que mesmo que fossem dois mil homens em atividade na Praça da Bahia seriam necessários os três mil, para casos de doenças e impedimentos, e também porque grande parte atendia às outras partes da capitania.796 Há muitos exemplos que denotam os esforços de Telles da Silva em favor da defesa do Brasil, e principalmente o Nordeste, Salvador e seu recôncavo. Evaldo Cabral de Mello narrou a participação ativa do governador na guerra contra os holandeses em Pernambuco797. Segundo ele, Telles da Silva foi responsável por articular um levante contra o inimigo, e seu sucesso militar o manteve no posto após o fim do seu triênio.798 Após essa breve e necessária introdução contextual é possível afirmar que no que diz respeito à defesa do Brasil, destacadamente do Nordeste, Antonio Telles da Silva obteve algum êxito, embora as dificuldades econômicas oferecessem condições desfavoráveis. Entretanto, as suas relações com outras autoridades não foram tão zelosas. Sua administração foi marcada por conflitos e queixas dos seus desmandos, que serão o foco central deste texto. Já com um mês de governo, Telles da Silva reclamou dos seus predecessores ao Conselho Ultramarino. Contou ele que pouco antes de sua chegada à cidade a Câmara criou uma finta para ajudar a sustentar os soldados, que se encontravam numa situação periclitante. Porém, e sem nenhuma autorização real que permitisse tal ação, os governadores da junta provisória tomaram nove mil cruzados desta finta para seus ordenados e por tal motivo Telles da Silva tinha mandado notificá-los para que entregassem o dinheiro. O Bispo logo devolveu, mas os outros dois não seguiram o mesmo caminho.799 A questão foi pauta de mais correspondências entre o Governador e os conselhos da Coroa, mas tudo indica que só no início de 1643 a devassa foi concluída. De acordo com Affonso Ruy, o Bispo, “resguardado pelas leis canônicas”800, escapou de receber maior punição, ao contrário de Luiz Bezerra Barbalho e Lourenço de Brito Correia. O primeiro foi obrigado a deixar a Bahia (surgindo depois como governador do Rio de Janeiro), e o segundo foi preso em Lisboa.801 Contudo, se

793

Doutoranda em História na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Bolsista da Capes, integra o projeto «Uma cidade, vários territórios e muitas culturas. Salvador da Bahia eo mundo Atlântico, da América Portuguesa ao Brasil República», financiado pelo programa CAPES-FCT (PPGH - Universidade Federal da Bahia; CHAM - Universidade Nova de Lisboa). 794 Virgínia Rau, “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa no século XVII”, in José Garcia Manuel(int. e org.), Estudos sobre história econômica e social no Antigo Regime, Lisboa, Editorial Presença,1984, p.30. 795 Cf. Luis de Meneses, Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. 1, Lisboa, Oficina de Domingos Rodrigues, 1759. 796 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 976 [23 de Setembro de 1642]. 797 Evaldo Cabral de Mello, O Negócio do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p.42. 798 Idem p.48. 799 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 8, documento 970 [10 de Setembro de 1642]. 800 Affonso Ruy, História Política e Administrativa, Salvador, Tipologia Beneditina, 1949, p. 187. 801 Idem ibid.

242 ISSN 2358-4912 inicialmente houve uma relação amistosa entre o Governador e o Bispo, alguns meses depois o primeiro não poupou acusações ao clérigo – situação que se manteria daí pra frente. Dom Pedro da Silva e Sampaio assumiu o cargo de Bispo do Brasil em 1634 e permaneceu ali até sua morte, em 1649. Seu bispado, contudo, caracterizou-se pelas dificuldades provenientes da invasão da cidade pelos holandeses oito anos antes e a constante ameaça que eles representavam. À sua época a diocese estava numa situação bastante grave e segundo os eclesiásticos da Bahia não podiam se sustentar à base de farinha de pão com seus rendimentos.802 Também sofria o edifício da Sé, que após a invasão holandesa ficou num estado de penúria e seu saque pelos inimigos deixou-a sem prata, órgão, ornamentos, castiçais e até o livro do Coro.803 Dom Pedro da Silva foi um Bispo inegavelmente político, participando ativamente dos negócios do governo secular, sobretudo no governo provisório, em que ele predominou entre os outros dois participantes, assinando grande parte das correspondências. Mesmo antes, a propósito, ele já escrevia regularmente ao Rei sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre a guerra holandesa em curso. Segundo Pablo Iglesias Magalhães, o clero e os demais religiosos funcionaram como um serviço de inteligência e contra-inteligência na guerra804 e o dito bispo não foi uma exceção, correspondendo-se com o Reino para noticiar sobre a guerra e emprestando dinheiro para as necessidades impostas pela luta contra os inimigos.805 Frei Manoel Calado do Salvador, em seu Valeroso Lucideno, tratou da ocupação holandesa no Nordeste brasileiro e versou sobre a participação do prelado. Essa narrativa dá indícios da forte personalidade do Bispo e os diversos conflitos entre ele e o Governador Antonio Telles da Silva denotariam isso.806 No final de Janeiro de 1643 Telles da Silva escreveu à coroa dando notícias do Brasil. Falou sobre o estado de sua defesa, a falta de moeda e de escravos e também investiu uma denúncia contra Dom Pedro da Silva. Disse que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Entre os ordenados que se pagam na folha ao Bispo deste Estado, leva cem mil réis que Vossa Majestade manda dar ao Vigário Geral de Pernambuco: leva mais duzentos mil réis cada ano que Vossa Majestade manda dar para a Sé havendo obras nela. Em tempo do Conde da Torre, se pôs dúvida a uma e outra coisa: e por se evitarem as excomunhões com que queria vir (por ter uma provisão de Vossa Majestade para ser executor de seus ordenados) se tomou por assento, que se desse conta a Vossa Majestade de que não tem ainda vindo resposta: E porque nem na Sé se faz obra alguma, nem em Pernambuco há Vigário Geral e o Bispo se fica com tudo807

No mesmo ano o Bispo também seria protagonista de duas outras contendas; em Junho durante, a procissão do Corpo de Deus, e em Agosto contra o contratador dos dízimos, Matheus Lopez Franco, que envolvia indiretamente o problema citado logo acima. Analisemos primeiramente o problema entre o prelado, a Câmara e o Governador durante a festa religiosa808. Queixosos, os camaristas escreveram: Por um grande excesso e insolência que na procissão de Corpos Christo deste presente ano fez o Bispo Dom Pedro da Silva saindo-se para fora da Sé sem dar tempo para sair a Procissão nem haver chegado a Câmara a acompanhar como é costume nem haver músicos ainda na Sé para irem nela nem gente da qualidade que convinha para levar o pálio tudo de propósito e sobre teima e por tanto que o mesmo Deão e outras pessoas eclesiásticas o advertiram que nem ainda era tempo de 802

AHU, Luiza da Fonseca, caixa 6, documento 682 [26 de Março de 1635]. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 4, documento 474 [13 de Fevereiro de 1629]. 804 Pablo Antonio Iglesias Magalhães, “Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (16241654)” (tese de doutorado), Salvador, PPGH-UFBA, 2010, pp.95-101. 805 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 7, documento 799 [12 de Junho de 1638]. 806 Frei Manoel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno e o triumpho da liberdade, volume 1, Lisboa, Oficina de Domingos Carneiro, 1668. 807 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1003 [31 de Janeiro de 1643]. 808 A procissão de Corpus Christi tem a data móvel, sendo sempre realizada onze dias após o Pentecostes. Criada no século XIII, logo ganhou corpo e tornou-se a mais solene de todo o Império português. Ela celebra a Divina Eucaristia, em memória ao sacrifício de Cristo, que após o Concílio de Trento constituiu o principal sacramento para os católicos. Sobre a procissão de Corpus Christi na Bahia ver Ediana Ferreira Mendes, “Festas e procissões reais na Bahia colonial (século XVII-XVIII)” (dissertação de mestrado), Salvador, PPGH-UFBA, 2011, pp. 47-51. 803

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ISSN 2358-4912 saírem nem havia os preparatórios convenientes para isso com tudo tomando o Senhor nas mãos saiu tão antecipadamente escandalosamente que fez força com a pouca gente que havia sair a procissão com toda esta descompostura [...]809

As procissões eram organizadas, pela ordem do sagrado, da seguinte forma: eram presididas por um eclesiástico com maior dignidade em exercício, que deveria caminhar sob o pálio. Este era obrigatório se o Santíssimo Sacramento ou as relíquias do Santo Lenho fizessem parte da celebração. Primeiro estavam os instrumentos musicais, seguidos pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras. Depois vinham os religiosos regulares e seculares, seguidos, por fim, pelos leigos.810 O festejo começava com uma missa e depois seguia com uma procissão pelas principais ruas da cidade, e foi nesta passagem da igreja para a rua que Dom Pedro da Silva protagonizou esta “vexação”. A querela, portanto, era em relação ao lugar do guião (estandarte) da Câmara no préstito. Dom Pedro da Silva, baseado numa provisão que recebera anos antes, afirmava que a bandeira deveria ir à frente de todas as cruzes. Após protagonizar esse episódio na comemoração do Corpo de Deus, Dom Pedro da Silva continuou a ser alvo das denúncias de Telles da Silva no que dizia respeito ao seu ordenado. O problema desta vez envolveu o contratador dos dízimos eclesiásticos Matheus Lopez Franco e estava, de certa forma, ligado à primeira acusação feita em Janeiro pelo Governador, de ficar com dinheiro que não o pertencia. Narrou Telles da Silva que Havendo se levantado a moeda neste Estado, e querendo o contratador Matheus Lopez Franco pagar um quartel que devia da folha eclesiástica; o Bispo lho não quis aceitar por ser no dinheiro cunhado que corria, obrigando-o sem censuras a que lho desse por cunhar. Já o tem declarado, e ameaça toda esta cidade sem interditos, e excomunhões, levado da ambição dos avanços que lhe podiam resultar; sendo eles de pouca consideração, e opinião de todas as pessoas doutas, que lhes não deve como de tudo informara a Vossa Majestade o Padre Francisco Pirez da Companhia de Jesus, que nesta ocasião envio a essa corte. A causa de o Bispo exceder em tanta demasia é uma provisão que em tempo D´El Rei de Castela se lhe passou para ser executor de seus ordenados, com poder, da qual faz estas vexações aos contratadores. E porque não haja quem por temer delas, se atreva a lançar nos dízimos, e por este respeito virá a perder muito a fazenda de Vossa Majestade me pareceu representá-lo a Vossa Majestade para que se sirva mandar considerar quanto convém que se lhe revogue a tal provisão [...]811

Os dízimos eclesiásticos foram tema de pouca atenção na historiografia brasileira. Eles eram a décima parte – ou outra porção pré-determinada – dos frutos ou dos lucros licitamente adquiridos, tributados para o auxílio do culto divino e dos ministros da Igreja.812 A sua arrecadação pertencia à coroa, garantida pelo direito do padroado régio. Desse dinheiro eram pagas as côngruas do Bispo e do Cabido, bem como o ordenado dos párocos colados e as demais necessidades que existissem para a manutenção da Sé ou paróquias. Discorramos, de forma simples, sobre o processo de cobrança dos dízimos eclesiásticos. Havia um contrato, de valor estipulado pela coroa, que era posto em arrematação. Sabe-se que até 1735 todos os contratos da colônia eram rematados na Bahia e em geral eram trienais.813 Arrematado o contrato, cabia ao contratador a cobrança dos dízimos. Na Bahia, os proprietários de terra eram os principais taxados e o açúcar era o principal produto arrecadado.814 Recolhidas as décimas, os contratadores passavam à terceira etapa do processo: botavam os produtos em pregão e pagavam à 809

Cartas do Senado, vol. 1, p. 18. Mendes, “Festas e procissões reais...”. pp. 82-83 811 AHU, Avulsos Bahia, caixa 1, documento 46 [21 de Agosto de 1643]. 812 Dom Oscar de Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil nos períodos da colônia e do império, UFMG, Belo Horizonte, 1964, p.15. Os dízimos eclesiásticos da Bahia também foram tema de uma dissertação de Mestrado recém defendida no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Bahia: Cf. Iane Dias Cunha, Dízimos Reais da Bahia: Igreja, Estado e Fiscalidade (1647-1760). (Dissertação de mestrado). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2013. 813 Idem, p.76. 814 Stuart Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 95. Para conhecer sobre a safra do açúcar e seu ciclo, ver especialmente o capítulo 5. 810

244 ISSN 2358-4912 Fazenda Real o valor que deviam do contrato, sendo deles o restante do lucro. Na prática nem sempre o processo se cumpriu rigorosamente e muitas vezes os contratos não eram devidamente pagos pelos contratadores. O problema ainda perduraria por mais alguns anos, apesar da insistência do governador sobre a necessidade urgente de resolvê-lo. Em 1644 Telles da Silva arrolou uma série de informações à coroa sobre as controvérsias de Dom Pedro da Silva e tornou a lembrar de que ainda não tivera resolução sobre tais casos. Ainda afirmou que o Bispo, assegurado pela provisão que tinha de executar seus ordenados “cobra por meio dela com tanta violência dos contratadores, que teve excomungado a Matheus Lopez Franco, e por este respeito, não há quem se atreva a lançar nos dízimos”. Disse também que o prelado tinha outra provisão pela qual podia confirmar nos benefícios as pessoas que ele mesmo nomeava, o que tocava aos governadores gerais por isto fazer parte da jurisdição real. Segundo o governador, Dom Pedro da Silva provia nos cargos da Sé “sujeitos incapazes de executálos”.815 Por ordem real, na portaria de Outubro do mesmo ano, Antonio Telles da Silva ordenou ao Provedor Mor da Fazenda que arrecadasse logo os trezentos mil réis que todos os anos Dom Pedro da Silva tirava do ordenado do Vigário de Pernambuco e do dinheiro para as obras da Sé. 816 Dessa forma, Sebastião Parvi de Brito emitiu um despacho ordenando que o Bispo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Ponha as verbas necessárias no assento e folha por onde se faz pagamento ao Reverendo Bispo deste Estado Dom Pedro da Silva em como não pode haver pagamento dos cem mil réis que se lhe manda pagar ao Vigário geral das partes de Pernambuco e Paraíba pelo não haver nem se exercitar o tal ofício depois de ocupadas as ditas partes pelos holandeses e assim mais se pôr a verba no assento e folha dos duzentos mil réis aplicados da Fazenda Real para a fábrica das obras da Sé para de uma e outra coisa se não fazer pagamento até ordem de Vossa Majestade para o tempo atrasado o Reverendo Bispo dará satisfação com efeito ao que tem recebido da fábrica de que não fez obra do dia que tomou posse deste Bispado e começou receber, e dos cem mil réis do dia que a capitania de Pernambuco foi ocupada e começou a receber817

Entretanto Dom Pedro da Silva não acatou a ordem e recorreu ao Provedor mor afirmando que podia “mostrar dentro em meio dia [...] que sempre se fizeram obras e que se despendeu nelas mais do que se recebeu”. Disse ainda que ele não recebeu nenhum dinheiro e que isso ficava a cargo dos priostes818 e tesoureiros da Sé “e que de tudo deram conta e inteira satisfação e que a despesa foi feita com muita consideração e muito aproveito da Igreja e do serviço de Deus e Del Rei”.819 Por fim, assegurou que sempre houve Vigário geral em Pernambuco durante seu Bispado, e não um, mas dois, por serem extensas aquelas terras e que, embora os holandeses tivessem-na ocupado, “ha[via] lá muitos católicos e igrejas” e, portanto, não podia abandoná-los sem um governo espiritual.820 Contudo, a palavra de Dom Pedro da Silva não foi suficiente para convencer as autoridades da Fazenda Real. Logo o Provedor ordenou que as obras da Sé fossem avaliadas e comprovadas por ele ou por outras pessoas e que o Procurador da Fazenda faria o mesmo. 821 Alguns dias depois a Junta da Fazenda deu início as suas averiguações, nomeando duas pessoas para avaliarem as obras de carpintaria da Sé e outras duas para as obras de pedraria (Dom Pedro não quis nomear avaliadores). Estas tiveram uma soma total de oitocentos e cinquenta e sete mil e quatrocentos réis, enquanto os carpinteiros chegaram ao total de um conto cem mil e setecentos e vinte réis, perfazendo um montante de um conto novecentos e cinquenta e oito mil e vinte réis.822 Entre as pessoas que foram arroladas para estimar os gastos das obras da Sé foi consenso que tudo o que havia sido feito não seguiu o traçado elaborado por Domingos da Rocha, mestre de pedreiro, 815

Idem. Idem. 817 Idem. 818 No dicionário de Bluteau encontra-se a seguinte descrição para prioste: o que cobra a renda da Igreja. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1 819 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 820 Idem. 821 Idem. 822 Idem. 816

245 ISSN 2358-4912 afirmando entre outras coisas que as paredes que existiam foram levantadas apenas para poder se rezar a missa. Disseram também que na construção quase nada era aproveitável, apenas as pedras, e que havia quatro anos e meio que nenhuma obra era feita na igreja. Portanto, concluiu o Provedor mor, que devia o Bispo novecentos mil réis referentes ao tempo em que as obras estavam suspensas. Além disso, ele também tinha que devolver um conto de réis do dinheiro do Vigário geral de Pernambuco, já que, ainda que tentasse provar, não podia afirmar que o despendia corretamente. O prelado, não satisfeito por ter perdido a causa, enviou uma apelação indeferida pelo procurador da Fazenda, afirmando que não era de sua alçada e que ele era um “mero executor das ordens de Vossa Majestade e do Governador e capitão geral”, não podendo avaliar uma apelação de efeito suspensivo. Por fim, já em novembro de 44, decidiu-se por abater dos “ordenados do Reverendo Bispo vencidos e que forem vencendo” a quantia devida – que concluíram não ser mais de um conto e novecentos mil réis e sim um conto (do Vigário de Pernambuco) e quinhentos e quarenta mil réis, já que abateram oitenta mil réis cada ano, por quatro anos, despendidos na fábrica da sacristia.823 Entretanto, o problema ganharia outra dimensão. Dom Pedro da Silva, insatisfeito, enviou ao reino em 1645 o tesoureiro da Sé para dar conta de todos os desmandos que Telles da Silva andava fazendo contra ele e contra outros oficiais da administração. Ocorre que o Governador, ao passo que estava envolvido no processo contra o prelado, também entrou em litígio com os oficiais da Câmara e o Ouvidor geral Manuel Pereira Franco, do qual trataremos brevemente adiante. A tudo o que foi feito e dito acima pelo Governador, provedor mor e procurador da Fazenda refutou o Dom Pedro da Silva. Sua defesa foi assentada em duas partes, cada uma tratando de uma das acusações que o Governador do Brasil fez contra ele. Vale ressaltar, contudo, que o documento que acompanharemos aqui não foi escrito pelo próprio Dom Pedro da Silva, mas narra o que foi dito por ele em duas cartas de fins de 1644.824 No início da missiva contou-se que o Bispo foi notificado por conta do dinheiro do Vigário de Pernambuco e das obras da Sé e que, “informando contra a verdade”, não lhe foi dado nem meio dia para que ele apresentasse provas a seu favor.825 Por acusarem-no de não despender os trezentos mil réis como devia, suspendeu-se esse dinheiro, bem como não se pagou o seu ordenado, visando satisfazer o um conto e quinhentos e quarenta mil réis. E isso tudo era coisa V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

tão escandalosa de toda aquela cidade, por saberem o contrário de que o dito Governador escreveu que se pôs em grande contingência a quietação daqueles vassalos, e particularmente vendo que o dito Governador absolutamente trata mal a ele Bispo, procurando que com seus agravos use para sua defensa do remédio que lhe dá o direito, o que ele Bispo sofre e tem sofrido

Inúmeras razões foram relacionadas no documento contra tudo o que acusou Telles da Silva e seus “sequazes” (o procurador e o provedor). Embora a querela sobre o Vigário de Pernambuco tenha sido menos abordado no documento, não foi deixado de lado. Sempre depois que estava no Brasil tivera Vigário Geral e Provisor na Paraíba. E algumas vezes como de presente tinha outro em Sirinhaém, tudo em Pernambuco porque assim é na verdade, e consta do Instrumento que apresenta, e que lhe dessem pessoa sem suspeita para o ouvir, e não querendo foi com embargos; e porque são suspeitos a ele Bispo, e o Provedor sobredito por duas vezes o confessar em despachos seus, e se deitou de Juiz; teme que não alcançará justiça; e em Pernambuco há muitos católicos, e não podem estar sem Provisor e Vigário Geral, a que recorrer, e será grande dano de suas almas, e de nossa santa Sé católica; e o ordenado de Bispo é tão tênue que não lhe fica com que poder remediar isto.826

As nove testemunhas inquiridas sobre o tema – a maioria de ex-moradores de Pernambuco – corroboraram com o prelado. Contaram que, mesmo com a ocupação dos inimigos, sempre houve Vigários ali, e as vezes eram três, mas naquele ano de 44 eram dois: Manoel Rabello, de Sirinhaém, e Gaspar Ferreira, da Paraíba. Na obra de Frei Calado, aliás, esse último é citado diversas vezes, sendo também um desafeto do autor.827 Magalhães também cita Manuel Rabello no conteúdo de uma carta 823

Idem. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10 documento 1157 [26 de Outubro de 1644] e 1158 [17 de Outubro de 1644]. 825 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 826 Idem. 827 Frei Manoel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno... op. Cit. 824

246 ISSN 2358-4912 escrita do Bispo para ele que foi interceptada pelos holandeses.828 Desta forma, possivelmente Dom Pedro da Silva tivesse razão neste caso. No que tange a Sé da cidade da Bahia foi exposto

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Que vendo-se há muitos anos a Sé daquela cidade velha e arruinada se tratou de se fazer outra deixando a velha dentro para se dizer missa até se acabar a nova; e estando feito pouco mais que os alicerces; ocupando os holandeses a Bahia, e destruíram e roubaram a Sé, em forma que era grande indecência celebrarem-se nele os ofícios divinos; e as paredes eram umas taipas de barro; e o telhado de telha vã; e a sacristia uma logia [sic] que servia de Aljube; e o altar principal, e coro, muito apertado de baixo de uma abóbada, e a Sé em altos e baixos com entulhos, e totalmente indecente.829

Para pagar as contas desta obra foi utilizado o rendimento da imposição do vinho, que depois passou a ser utilizado para fins de sustentar o presídio da cidade.830 Quando da vinda de Dom Pedro da Silva para o Bispado do Brasil, lhe foi dada uma provisão oferecendo o pagamento dos duzentos mil réis para a manutenção e reforma da igreja, e obras e ornamentos, ficando a critério dele quanto se gastaria em cada coisa. Mas ao chegar em Salvador o prelado percebeu que seria necessário muito mais dinheiro do que tinha e muitos anos para terminar a Sé nova. Portanto reuniu os oficiais dali e acordaram que “se fizesse agora como convinha a necessidade presente, e que não se tratasse de ir continuando as paredes [...] que com poucas fileiras de pedra se gastaria muito dinheiro”.831 Então, com ajuda de outras pessoas, as esmolas dos capitulares, com o ordenado da fábrica e mais sua fazenda ergueu ele a capela mor, a sacristia, o cruzeiro e a casa do Cabido. Quando o Governador passou a portaria para suspender o dinheiro da dita obra, o Bispo quis mostrar as contas das despesas que teve, mas o Provedor não quis vê-las e mandou seus avaliadores, como já narrado anteriormente. Finalmente, assegurou que vendo seus inimigos que não podiam prosseguir com as acusações, passaram a dizer que “as obras que se fizeram de madeira, e pedra não eram boas”.832 Embora acreditasse que não conseguiria alcançar a justiça, certamente sentindo-se perseguido por outros agentes reais (como era o caso do Governador e do Provedor Sebastião Parvi de Brito), Dom Pedro da Silva requereu lhe faça mercê mandar que as ditas verbas se levantem, e os embargos; e se dê a ele suplicante o que se lhe tiver levado e a Igreja; e que a Provisão dos duzentos mil réis da fábrica esteja em pé como nela se contém, e tudo o que ele Bispo levava pela provisão de seu ordenado, e que sejam restituídos, e o Bispo em tudo o que se lhes tiver levado, e logo, porque de outra maneira o aperto será grande, e o escândalo que já o é crescerá mais, e que Vossa Majestade seja servido mandar estranhar muito a quem semelhantes causas ordena, e que não dá verdadeira informação delas.

Os camaristas também se envolveram no conflito. Enviaram uma carta em Novembro de 1644 em nome dos moradores da cidade e do Recôncavo, onde escreveram: O Bispo com seu zelo, cuidado e com o seu [dinheiro], na forma em que podia ser, pôs mãos a obras. Proveu de cálices, livros e de outras coisas precisamente necessárias; e de ornamentos a sacristia – foi acudindo a despesa corrente da Igreja; e fazendo nela a Capela mor, a Sacristia com seus caixões, casa do Cabido, e cruzeiro e ladrilhando a Sé toda com forma que se consola agora a gente de entrar nela. E quando esperávamos e os moradores da cidade e do Recôncavo que Vossa Majestade havia de por os olhos nos muitos e qualificados serviços do Bispo; e deste cuidado e zelo da Igreja para lhe fazer mercê vemos que o Governador Antonio Telles lhe fez tomar seu ordenado todo, sem lhe deixar coisa alguma, até dali repor o que lhes parecesse [...] sem o querer ouvir, nem lhe admitir requerimento [...]833 828

Magalhães, “Equus Rusus...”, p.150. AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 830 Segundo Bluteau, presídio significa “gente de guarnição; os soldados que estão em uma praça para a guardar e defender do inimigo”. Consultado em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/edicao/1 831 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 9, documento 1096. 832 Idem. 833 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1156 [17 de Novembro de 1644]. 829

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ISSN 2358-4912 Os oficiais da Câmara, vale ressaltar, estavam também em litígio com o Governador. Acusavam-no de tomar e abrir cartas que seriam enviadas ao Rei por alguns deles relatando os excessos praticados por Telles da Silva contra o Ouvidor geral Manuel Pereira Franco.834 Ocorre que Franco, em duas sentenças, agiu a contra gosto de Telles da Silva e acabou preso e suspenso do seu cargo. Além dos vereadores, o Ouvidor e o Governador enviaram cartas relatando suas versões sobre o problema.835 Entretanto o Conselho Ultramarino, após analisar o caso, deu razão ao Ouvidor, mas apenas algum tempo depois uma carta régia suspendeu sua prisão e também o restituiu no seu cargo, além de advertir Telles da Silva, relembrando-o da sua obrigação em evitar discórdias entre eclesiásticos e seculares, “pelo mau exemplo que causavam a vista do gentio e dos hereges tão vizinhos” 836 Se a querela entre o Governador, a Câmara e o Ouvidor estava encerrada, o mesmo não se pode dizer em relação ao litígio entre o Bispo e o Governador. Uma consulta de 17 de Agosto de 45 e um requerimento feito em nome de Dom Pedro da Silva dão a entender que nada foi solucionado, ficando o prelado “sem ter coisa alguma que comer nem gastar”.837 Por certo a animosidade entre o Bispo e o Governador foi se construindo ao longo da convivência. Esse tipo de conflito entre a esfera secular e a eclesiástica é consequência da congruência de personalidades fortes nos cargos mais altos das duas hierarquias. As contendas vistas aqui ocuparam lugares sociais diversos e denotaram uma disputa de poder e de jurisdição muito comum na sociedade do Antigo Regime. Embora os dois fossem representantes do poder régio na colônia, e que normativamente sua relação deve ser colaborativa, os conflitos podem revelar melhor a existência de limites entre o governo da Igreja e a administração secular. Principalmente, demonstram que essas duas esferas, antes de qualquer coisa, eram constituídas de homens dotados de interesses próprios que geravam desafetos não tão excepcionais no Antigo Regime. A necessidade de distinção estimulava a disputa de poder e fazia parte do jogo político da época. Como afirmou Boxer, ainda que essas brigas não fossem estimuladas e não contribuíssem para uma harmonia administrativa, também não eram controladas pela coroa, posto que se encaixassem “no sistema colonial de verificações e balanços”, garantindo “a rápida chegada das notícias dos delitos e enganos cometidos”.838 Dessa maneira o rei português, representando a principal fonte solucionadora desses problemas, tentava manter mais ou menos sob o seu controle a governança do ultramar. Referências ARAÚJO, Érica Lôpo de. “De golpe a golpe: política e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1667)” (dissertação de mestrado), UFF, 2011. BOXER, Charles R, A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000. CARRARA, Angelo Alves, Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2009. FIGUEIREDO, Luciano R. A., “O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial Português, séculos XVII e XVIII” in Júnia Furtado, Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português, Belo Horizonte, UFMG, 2001. IGLESIAS, Pablo Magalhães. “Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654)” (tese de doutorado), Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2010.

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AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1094 [2 de Setembro de 1644]. Sobre a querela entre o governador e o ouvidor ver Érica Lôpo de Araújo, “De golpe a golpe: política e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1667)” (dissertação de mestrado), UFF, 2011, pp. 74-86. 836 Idem. 837 AHU, Luiza da Fonseca, caixa 10, documento 1133 [sem data]. 838 Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000, p.168. 835

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ÁFRICA NOS OBJETOS NO MUNDO ATLÂNTICO: OLHARES CRUZADOS SOBRE OS PROCESSOS DE COLECIONISMO-1822-1960 Carlos Jorge Mendes839 Introdução Este ensaio preliminar sobre o colecionismo da cultura material africana e afrodescendentes840 visa refletir sobre a bibliografia temática, problematizando as ausências e presenças desses artefatos nos espaços museológicos e coleções privadas no atlântico português. Problematiza-se os processos de recolhas e formação dessas coleções tendo como enfoque o programa imperialista português, depois da Independência do Brasil, e a consequente virada para o continente africano. A experiência histórica de Portugal, devido ao pioneirismo das conquistas, bem como as influências das sociedades europeias mais desenvolvidas, favoreceu ao desenvolvimento de uma cultura de colecionismo. Processo esse, intrinsicamente associado à estrutura favorecedora de novas visões e divisões do mundo841. A preocupação com a integração de recursos das colônias na estrutura da metrópole contribuiu para a incorporação de objetos nas instituições museológicas e particulares. Cabe ainda realçar a integração das coleções no discurso do império, favorecendo estratégia de imposição ideológica e de afirmação identitária do império. No caso brasileiro, o colecionismo constitui em um processo tardio, iniciado com a transferência administrativa da coroa. As realizações museológicas decorrentes do processo de modernização da sociedade, e o papel dos intelectuais brasileiros na formatação de um discurso nacional842, constituem aspetos reflexivos sobre a seletividade do item africano nas coleções museológicas. Visão sobre o colecionismo da cultura material africana no atlântico português Embora a produção historiográfica sobre o colecionismo, de uma maneira geral, tem sido frutífera, ainda, carece de uma abordagem específica sobre o item africano nos museus e coleções privadas. Ainda mais quando se questiona essa prática numa perspectiva da história do atlântico. Contudo, é importante realçar os contributos da museologia histórica843, história de ciência844, antropologia histórica845 no caso português, que numa visão panorâmica trazem para o conhecimento público as 839

O presente artigo é o resultado da pesquisa de doutoramento em andamento que venho realizando no curso de História da Universidade Paulista “julio Mesquita Filho”- Campus Unesp, sob orientação da Professora Doutora Denise Aparecida da Moura e com o financiamento da CAPES. 840 Sobre a formação de coleções de uma cultura africana remanescente no Brasil e não de coleções africanas, constitui foco de discussão que iremos discutir ao longo deste artigo. 841 Sobre este aspecto, é importante frisas as condições científicas e filosóficas favorecedoras de uma nova forma de ver e apreender o mundo. Um colecionismo que apropriou e ajudou a desenvolver outras ciências. 842 SCHWARCZ, L. K. M. O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 843 BRIGOLA, João Carlos. Coleções, gabinetes e museus em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003. 844 ”. LOPES, Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997; CAMARGO, Téa. Colecionismo, Ciência e Império. Disponivel em: < http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Colecionismo-Ci%C3%AAncia-eImp%C3%A9rio-T%C3%A9a-Camargo.pdf> Acesso em: 22 Janeiro. 2014 845 GOUVEIA, H. C. Aspetos das relações entre Portugal e Angola no domínio museológico – as viagens de exploração científica setecentistas. [s/l]: Ed. Do Autor, Policopiada. 1991. __. Museologia e etnologia em Portugal. Instituições e personalidades, 2 vols. Dissertação de Doutoramento. Lisboa: U.N, 1997. __. As Colecções Etnológicas de Origem Ultramarina no Contexto de uma Política do Património Cultural. Coimbra: M.L.A.U.C, 1982. __. Museu e Laboratório Antropológico 1772-1978. Exposição Temporária. Coimbra: M.L.A.UC, 1978; CANTINHO, M., Colecções etnográficas extra-ocidentais em Portugal. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/2200 Acesso em: 12 fev. 2014

250 ISSN 2358-4912 coleções extra europeia, com algum enfoque para a cultura material africana. Por outro lado, não se pode descurar outros trabalhos, igualmente importante, produzidos pela Universidade de Coimbra846, Sociedade de Geografia de Lisboa847, e catálogos produzidos por antropólogos, no caso Bastin848, sobre a cultura material dos Cokwe, etc. Esses trabalhos, cada um ao seu jeito, apresentam referências às fontes textuais, e outros com referências à cultura material africana. No caso da sociedade brasileira, essa preocupação com a integração do item africano nas coleções brasileiras é um fato recente, ainda que os cientistas sociais sobre as questões africana só acontece no princípio do século XX e décadas seguintes. Nina Rodrigues849 e os seus seguidores850 contribuíram, cada um ao seu jeito, para a estruturação do conhecimento do componente africano na formação da sociedade brasileira. O colecionismo enquanto apropriação de registros materializados das práticas cotidianas dos povos, pode-se constituir num importante elemento de compreensão histórica, das relações hegemônicas de um país sobre outro, e de um grupo social sobre outro. Sendo objeto do poder, a cultura material, incorporada nas coleções museológicas e privadas, foi instrumentalmente utilizada pelo estado e colecionadores particulares com propósitos de imposição ideológica, e de afirmação e reprodução de identidades. A história da colonização ancorada numa economia escravocrata, para além de ajudar a tecer o mundo atlântico, contribuiu para o conhecimento do continente africano e na apropriação da sua cultura material. Convém realçar que a mobilidade dos portugueses foi um processo secular que começou em 1415, e tornou-se intenso ao longo dos tempos, com a política de ocupação dos territórios do ultramar. Essa mobilidade facilitou a familiaridade com outras geografias e povos. As apropriações de recursos faziam parte dessa experiência. Os artefatos africanos, que fazem parte das coleções nos museus e particulares, testemunham esses encontros seculares, marcados pela diversidade de agentes e produtos. Portugal, devido a sua história de conquistas e a sua situação geográfica (na Europa), imprimiu a construção de uma estrutura favorecedora do espírito colecionista. As vagas iluministas, aliada às curiosidades dos seus obreiros, teceram e permaneceram nos gabinetes de curiosidades as maravilhas do universo. O universo comprimido nos gabinetes, ordenado consoante as ideias científicas da época, favoreciam nos seus arranjos uma visão enciclopédica de objetos de arte consagrados e de “outros mundos” que faziam parte de naturalia e artificialia. A história do colecionismo português é viabilizada com as viagens dos comerciantes e naturalistas que aconteciam com regularidades ao longo do século XVIII. Nessas viagens a Coroa e a nobreza, no período joanino851, encomendavam objetos para os seus gabinetes; também as viagens filosóficas perpetradas às colônias portuguesas, no período josefino852, sob a responsabilidade da Universidade de Coimbra, blindada num programa científico, contribuíram para o aprofundamento do conhecimento territorial e de recursos do ultramar. As viagens filosóficas representam um marco importante na história do colecionismo português porque coincide com a implementação de um programa de exploração científica nas colônias. As reformas estruturais imprimidas pelo Marques de Pombal, as universitárias, criações de unidades museológicas, favoreceram o colecionismo institucional, representada pela universidade e outras V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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MUSEU ANTROPOLÓGICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Adornos Africanos como Entidade Cultural. Instituto de Antropologia, Coimbra. 1989. 847 SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA. Catálogo Especial da Sociedade de Lisboa. Imprensa Nacional, Lisboa. 1896. 848 BASTIN, M-L Arte Decorativa Cokwe. Coimbra: Museu Antropológico da Universidade de Coimbra e Museu do Dundo, Vol. I e II, 2010. 849 RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional. [1933], 1997; __. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. 850 Ver também: RAMOS, A. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Ed. Nacional, [1935], 1979; __. O negro brasileiro. São Paulo: Ed. Nacional, [1934], 1940; CARNEIRO, E. Ladinos e crioulos- estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1964. 851 Neste período apelidado de joanino (dom João IV) se notabilizou a figura do colecionador Conde da Ericeira como figura notável do espírito de curiosidade científica da época. Ver sobre assunto, os trabalhos de BRIGOLA, João Carlos. Op. Cit. 2003; CAMARGO, Têa. Op. Cit, (s/d) 852 GOUVEIA, Op. Cit. 1978; BRIGOLA, Op. Cit. 2003.

251 ISSN 2358-4912 instituições853. Neste contexto, as práticas colecionistas tornaram-se uma atividade especializada, institucionalizada, resultado de mapeamento de recursos nas colônias. É possível afirmar que todo o esforço para a institucionalização de colecionismo, desde do seu primórdio, tem sido orientado no sentido de possibilitar apropriação mais ampla dos objetos e recursos. No caso da cultura material africana, esse esforço fica agregado com a vigência do regime liberal e com a reformulação da política colonial para a África. Acresce, ainda, as variáveis estruturais e conjunturais que impulsionaram mudanças de rumos que o ambiente político e económico portuguesa tanto carecia. A invasão das tropas napoleónicas, para além de fomentar clima de dificuldades na sociedade portuguesa, contribuiu, diretamente, na criação de climas de incerteza. A mudança administrativa para o Brasil, ao criar bases para a modernização, deixava a metrópole em segundo plano em termos políticos. A virada para África começou a impor-se naturalmente, como empresa, no momento em que o regime liberal em Portugal começava a se implementar. O projeto colonial para a África ganhava um quadro estrutural mais consistente com reformas legislativa e administrativa. Foi com o governo de Sá da Bandeira é que a visão estratégia para a África ficou mais esclarecida, centrado no domínio africano, até então subvalorizada como simples fornecedores de mão-de-obra escrava para as plantações no Brasil. A vigência do regime liberal, em Portugal, conheceu mudanças importante no ambiente sociocultural portuguesa. As iniciativas privadas nos domínios culturais854, económicas, floresciam, preenchendo vagas importante na formação de mentalidades que se queria ombrear com as nações europeias mais avançadas. Começou-se a operacionalizar medidas com o fito de garantir uma ocupação efetiva do continente africano mas também planos de fomento para o desenvolvimento industrial. Este processo está bem patente nas expedições científicas e comerciais ao continente africano, e na criação de condições locais para suprir produtos naturais e artefatos para as instituições museológicas criadas para o efeito. Os jardins botânicos, os gabinetes e museus de história natural, sob a responsabilidade da coroa e das instituições universitárias, contaram com um quadro legislativo promovido pela Secretaria de Estado responsável pelo ultramar que exigia o envolvimento de estruturas administrativas das colónias nas coletas e envio de produtos e espécimes para as instituições museológicas sedeadas na metrópole855. Isto demonstra o envolvimento do estado nas políticas de incorporação nos museus, realçando, igualmente, a preocupação com o discurso integrador das questões coloniais. Os grandes eventos nacionais e internacionais, neste caso, as exposições nacionais e universais, ajudaram na construção do imaginário coletivo representado pelo Estado português, mas também serviram de mecanismos para a entrada de muitos objetos coloniais nos museus. Numa lógica inversa do que defendemos, Margaret Lopes856 fala dessa participação estadual como “estatismo da produção científica”. Em jeito de complemento, reforçamos a ideia de estatismo de intermediação que fazia a ponte com a produção científica numa lógica legitimadora, priorizando a propaganda enquanto mecanismo de construção da identidade nacional e de imaginação sobre os territórios ultramarinos. A criação do Museu Nacional, em 1870, demonstra o comprometimento do estado português com os assuntos coloniais, fazendo desta instituição um instrumento de propaganda do projeto colonial. Convém realçar que os itens que compunham acervos do Museu Colonial faziam parte de produtos remetidos para a Exposição Universal de Paris857. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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As instituições que surgiram no contexto são Museu de História Natural de Coimbra, Museu Maynense, Real Museu da Ajuda; com a extinção dos museus Maynense e Real da Ajuda, os seus acervos foram incorporados pelo Museu de Ciência de Lisboa. 854 A criação do museu privado de João Allen e outras instituições favoreceram, no plano de inovação e de competitividade, um ambiente cultural importante na época. 855 ANTUNES, Luís Pequito. Museus e ciência em Cabo Verde, 1850-1876. Disponível em: < http://www.revista-patmus.org/ojs/index.php/RPM/article/view/7/18> Acesso em: 13 març. 2014. 856 Refletindo sobre a realidade brasileira, a despeito da história de ciência, Margaret Lopes fala de “estatismo da produção científica”. LOPES, Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. 857 ANTUNES, Op. Cit.

252 ISSN 2358-4912 A criação da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1875, juntamente com outras instituições vigentes, desempenhou um papel central na mudança de percepção sobre a África.858 Esta instituição se notabilizou nos programas de apropriação científica do continente africano, fazendo trabalho de exploração e de prática científica sobre vários aspectos das possessões portuguesas em África, num contexto de grande agitação imperialistas para o domínio em África859. Através das expedições ao continente africano, foram recolhidos objetos culturais para enriquecer coleções dos museus. A coleção do Henrique de Carvalho constitui, entre muitas, testemunhos da virada e ocupação do continente africano860. O colecionismo não foi só prerrogativa da sociedade portuguesa. A sociedade brasileira, devido à presença portuguesa nos trópicos, conheceu algumas práticas colecionistas e de realizações museológicas. Os séculos XIX e XX foram frutíferos para o colecionismo brasileiro. As viagens dos naturalistas estrangeiros (europeu em maioria) contribuiu para a formação de diversas coleções indígenas. O Brasil neste contexto era um território virgem, espécie de laboratório onde se laborava ideias evolucionista dominante. O carácter científico dessas incursões servia para coletar e compor as coleções e instituições museológicas. Os museus criados no século XIX, Museu Nacional (1818), Museu do Ypiranga (1824-1890) e o Museu Emilio Goeldi (1866-1891)861, representam esforços institucionais numa altura em que o Brasil estava a tecer a sua identidade. Em resposta as lacunas historiográficas que desvaloriza a problemática da presença da cultura material africana nos museus brasileiros, nos períodos pré-abolição e pós-emancipação, este projeto questiona essa ausência no projeto da construção da nacionalidade, viabilizada através de discursos museológicos e de outros órgãos Via de regra o colecionismo é uma prática que do ponto de vista de topografia social está bem assinalada. Essa prática resguardada por uma elite culta, experimentada com as lides das suas disciplinas e dos seus mundos, não é homogênea. Dependendo da estrutura e da conjuntura, a prática de colecionismo da cultura material africana é complexa, diferenciando-se na sua natureza e instituição. No caso da sociedade brasileira, essa prática acontece no contexto da abolição e da emancipação dos africanos e afrodescendentes. Ou melhor, não se pode falar de colecionismo da cultura material africana mas sim de afrodescendentes. Um tipo de colecionismo de artefatos religiosos que envolve a reconfiguração identitária em um novo contexto, a sociedade brasileira.

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Colecionismo no atlântico português: instituições e personalidades. Tentativa de uma operacionalização. A componente interpretativa permiti-nos comparar e operacionalizar o processo de colecionismo da cultura material africana no atlântico português (Portugal e Brasil), refletindo as suas variações estruturais, fazendo referências às presenças e ausências do item africano nos museus e coleções particulares. Trata-se de um exercício com riscos acrescidos no apuramento dos fatos. As hipóteses teóricas que norteiam esta pesquisa navegam nos seguintes pressupostos: A presença dos itens africanos nos museus e coleções particulares na sociedade portuguesa está relacionado com o processo histórico de formação do colecionismo, processo esse, que envolveu convívio prolongado com o continente africano. Por outro, a institucionalização do colecionismo na sociedade portuguesa está relacionada com os movimentos de ideias cuja matriz europeia ajudou a estruturar. Enquanto que na sociedade portuguesa, a operacionalização de longa duração favoreceu a institucionalização do colecionismo, na sociedade brasileira, de modernização tardia, e tecida por contradição interna na aceitação da diversidade étnica, desvalorizou o item africano nos museus e

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As instituições que estiveram na linha da frente na política colonial podem ser consideradas de apêndice do estado português. Entre elas podemos listar Universidade de Coimbra (Museu Natural, depois Museu Antropológico), Museus Colonial, Sociedade de Geografia de Lisboa. 859 SANTOS, M. E. dos. Das Travessias Científicas à Exploração Regional em África: uma opção da Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa: Centro de Estudo de História e Cartografia/ IICT, 1998. 860 CARVALHO, H. D. de. Ethonografia e História Tradicional dos povos da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1890. 861 Os museus referidos funcionaram em momentos descontínuos. Essas paragens e retomas fazia parte das condições internas de um país que começava a dar os primeiros passos no domínio museológico.

253 ISSN 2358-4912 coleções particulares. Estas indagações serão acompanhadas por pesquisas etnográficas e documentais que ajudarão a confirmar ou infirmar estas hipóteses. Numa visão panorâmica sobre a presença ou não de itens africanos nas coleções portuguesas, as investigações históricas demonstram essas evidencias. No mapeamento das instituições portuguesas que acolheram e conservam objetos africanos, duas notas para reflexão: a existência de uma diversidade de instituições e de experiência histórica, de intervenientes, coletores e colecionadores, que contribuíram para o enriquecimento dessas coleções. As coleções sedeadas no Museu Antropológico de Coimbra, Museu Colonial, Sociedade de Geografia de Lisboa, e coleção de João Allen, no Porto, constituem amostras para este estudo. A justificativa de escolha dessas instituições, para além de apresentar denominadores comuns de um processo histórico, tem a ver com o comprometimento do estado português nos assuntos coloniais. Os museus da Universidade de Coimbra, colonial, depois a Sociedade de Geografia de Lisboa representam aquilo que Margaret Lopes862 chama de “estatismos de produção científica” servindo de intermediários nas políticas coloniais. No caso de João Allen, é um dos casos paradigmáticos de colecionadores enciclopédicos universalista cuja visão se enquadrava com a mentalidade da época; um burguês abastado que na topografia da sociedade portuguesa se destacava nas redes nacionais e internacionais de colecionismo que com o seu espírito empreendedor criou um museu privado, um dos pioneiros do país. No caso do Brasil, as instituições museológicas criadas no quadro de modernização do país, no século XIX, foram enriquecidas com objetos indígenas e outros objetos europeus. Faz parte deste estudo pesquisar nos catálogos e inventários, a existência ou não de itens africanos. Contudo, há de se realçar, numa tentativa científica de estudo do componente negro na sociedade brasileira, alguns cientistas engajados com a problemática negra na sociedade brasileira recolheram artefatos produzidos no Brasil. Esses objetos dos afrodescendentes representam um universo diferente da realidade portuguesa. Enquanto que na sociedade portuguesa temos um colecionismo ligado ao patrimônio do império, no Brasil temos um colecionismo ligado à problemática da inserção da comunidade africana e afrodescendentes na sociedade brasileira863. Acresce ainda testemunhos de objetos religiosos que foram enclausurados durante a perseguição religiosa864. Para melhor apreensão da problemática, resolvemos operacionalizar o colecionismo de acordo com a variável estrutural, natureza de coleções e intervenientes. Uma vez que o colecionismo no atlântico português não é homogêneo, existindo diferenças estruturais importantes, a construção temática segue a lógica de homogeneidade.

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Coleções da cultura material africana - institucional de base estatal Coleções da cultura material africana – privada de universo enciclopédico Coleções dos exploradores no âmbito da partilha da África Coleções da cultura material afrodescendentes – privada dos cientistas sociais Coleções de intolerância religiosa – sedeada nos museus da polícia e do crime

Esta proposta temática constitui elemento para reflexão, sendo que as propostas reflexivas e o processo investigativo poderão sofrer reformulações. Para finalizar, permita-nos afirmar a complexidade do colecionismo e as suas variantes. Na sociedade portuguesa, os itens africanos presentes nos museus e coleções particulares testemunham a herança imperialista. Muitos desses objetos foram celebrados nos eventos nacionais e internacionais. No caso da sociedade brasileira, o contributo negro ficou confinado a história de servidão, servindo de elementos de ocultação da identidade nacional, resgatada com Nina Rodrigues e seus seguidores. Referências 862

LOPES, Margaret, Op. Cit. Uma nota de interesse para esta questão tem a ver com as coleções do Nina Rodrigues atualmente sedeada na Bahia, Museu Estácio Lima do Instituto Nina Rodrigues, coleção de Artur Ramos sedeado na Casa da Cultura e Museu professor Arthur Ramos, e coleções de Pierre Verger alguns adquirida pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. 864 NASCIMENTO, A. African presence in Brazilian art. In: Journal of African Civilization, Vol. 3, n. 1, 1981. Pp. 49-68. 863

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ISSN 2358-4912 AMORIM, F. B; MORAIS, M. H. X. de. Catálogo Inventário do Museu de Etnografia do Ultramar do Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra. Estudos de Etnologia, Anais, Vol. X, Tomo I. J.M.G.I.U., 1955 ANTUNES, Luís Pequito. Museus e ciência em Cabo Verde, 1850-1876. Disponível em: < http://www.revistapatmus.org/ojs/index.php/RPM/article/view/7/18> Acesso em: 13 març. 2014 AREIA, M. L.; ROCHA, M. A.; MIRANDA, M. A. O Museu e Laboratório Antropológico da Universidade de Coimbra. In: Universidade (s), História, Memórias, Perspectivas, Coimbra, Congresso de História da Universidade da Universidade, Vo.II,. Pp. 87-105, 1991 BASTIN, M-L. Arte Decorativa Cokwe. Coimbra: Museu Antropológico da Universidade de Coimbra e Museu do Dundo, Vol. I e II, 2010. CAMARGO, Téa. Colecionismo, Ciência e Império. Disponivel em: < http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/Colecionismo-Ci%C3%AAncia-eImp%C3%A9rio-T%C3%A9a-Camargo.pdf>Acesso em: 22 Janeiro. 2014 CANTINHO, M., Colecções etnográficas extra-ocidentais em Portugal. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/2200 Acesso em: 12 fev. 2014 CARNEIRO, E. Ladinos e crioulos- estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1964. GOUVEIA, H. C. Aspetos das relações entre Portugal e Angola no domínio museológico – as viagens de exploração científica setecentistas. [s/l]: Ed. Do Autor, Policopiada. 1991. __. Museologia e etnologia em Portugal. Instituições e personalidades, 2 vols. 1997. (Doutorado). Universidade Nova de Lisboa, 1997. __. As Colecções Etnológicas de Origem Ultramarina no Contexto de uma Política do Património Cultural. Coimbra: M.L.A.U.C, 1982. LOPES, Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997 MUSEU ANTROPOLÓGICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Adornos Africanos como Entidade Cultural. Coimbra: Instituto de Antropologia, 1989. RAMOS, A. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Ed. Nacional, [1935], 1979; __. O negro brasileiro. São Paulo: Ed. Nacional, [1934], 1940 RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional. [1933], 1997; __. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935 SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA. Catálogo Especial da Sociedade de Lisboa. Imprensa Nacional, Lisboa. 1896.

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SANTOS NEGROS NAS AMÉRICAS: RESISTÊNCIA E HIERARQUIAS Caroline dos Santos Guedes865 Introdução Este trabalho objetiva estudar duas instituições leigas existentes no mundo urbano colonial ibérico: a irmandade de São Balthazar em Buenos Aires e a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro, desde fins do século XVIII até princípios do século XIX. A irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia foi criada por africanos866 em 1740, desde quando vem sendo construído o seu compromisso, que só foi aprovado em 1767 pela mesa de consciência e ordens de Lisboa. Inicialmente a irmandade foi abrigada na igreja de São Domingos, em 1754 foi construída uma igreja própria para abrigar a instituição e cultuar aos santos patronos. A irmandade de São Balthazar e almas foi criada em 1772 pelo clero para negros, mulatos e índios da cidade. Esta foi a primeira confraria do vice-reinado do Rio da Prata, sendo abrigada na parte externa da paróquia de Nossa Senhora da Piedade do Monte Calvário. Através dos compromissos das irmandades, cartas de permissão e correspondências entre autoridades que cedem seu tempo a tratar dessas instituições, objetivo analisar a constituição interna e a hierarquia dessas confrarias, assim como a relevância em cultuar um santo negro para os indivíduos que carregam um “defeito de cor”.867 Deveres, direitos, hierarquia e cidadania nas irmandades negras Para se filiar às confrarias, os indivíduos tinham como condição o pagamento de uma taxa de anuidade. Em troca, essas instituições oferecem ajuda em casos de enfermidade, idade avançada ou qualquer outra condição que impedisse o trabalho. Algumas irmandades também podem auxiliar na obtenção da alforria, mas o principal motivo para a filiação é assegurar uma sepultura digna com missas e reza dos irmãos. É possível verificar a importância dos rituais após a morte, por exemplo, nos testamentos analisados por Miguel Rosal868 para o caso argentino onde o irmão descreve exatamente como quer seu enterro, o rito fúnebre, local da missa e da sepultura. Segundo o autor869, a instituição destinada a São Balthazar é a irmandade negra em excelência, atraindo negros escravos, então muitos não tem heranças, mas fazem o testamento somente para garantir a sepultura conforme seus desejos. Assim como no catolicismo, as religiões africanas também acreditam na existência de dois planos – um terreno e um eterno – pelo qual os fiéis buscam se salvar. Outra maneira de buscar a salvação era através das esmolas doadas para caridade, podemos perceber isso no Compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia: Capítulo 17 Os Irmãos desta Santa Irmandade terão o cuidado toda deligencia em pagar suas esmolas pois são para o ornato e decência dos Santos evitando que todas as despesas que fizerem se lhe desse porque continuamente estão rogando a Deus nos dê do bens da fortuna e salvação para nossas almas (...)870

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Mestranda da Universidade Federal Fluminense Africanos estes oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique. 867 É interessante observar que existem outras irmandades que abrigam estas populações negras e tem como patronos santos brancos, o exemplo mais claro é a irmandade de Nossa Senhora do Rosário. 868 ROSAL, Miguel. “Aspectos de la religiosidade afroporteña, siglos XVIII-XIX.” Buenos Aires, CONCINET, Instituto Ravignani, UBA, 2009. 869 Id. 870 “Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Ephigenia de S. Domingos d’esta cidade do Rio de Janeiro anno de 1740 aos 2 de outubro.” – depositado no museu do negro, na irmandade dos santos, centro do Rio de Janeiro. Capítulo 17 866

256 ISSN 2358-4912 Essas instituições também permitiam a criação de laços de parentesco fictícios no universo negro. As pessoas que pertenciam às mesmas instituições eram chamadas de irmãos, eram considerados parentes e muitas vezes esse convívio era realmente familiar. Através do parentesco simbólico é possível perceber as irmandades como espaços de socialização da população negra. Isso é observável inclusive nos documentos das confrarias. Segue abaixo um trecho do capítulo I do compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia que data de 2 de outubro de 1740:

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Nós o Juiz, o escrivão e [mais Irmãos]871 mordomos que este presente anno servimos a confraria dos Santos desta nossa Irmandade, sita em S. Domingos, desejamos que esta se aumente no serviço Deus e tenha seus estatutos pelos quais se governe e saiba cada um dos [Irmãos]872 a obrigação que lhe compete para que assim se sirva aos gloriosos santos, que veneramos e lhe tributamos o maior culto veneração que pode ser e com nossas devotas assistências e demonstrações se edifiquem os mais fieis christãos, tendo quanto cabe em nossa capacidade, fazemos venerar os gloriosos santos, ordenamos os estatutos seguintes que com licença alcançamos.873

Em relação às hierarquias internas existentes nessas instituições, elas se dão de acordo com a ocupação de cargos pelos membros das irmandades. Em ambas as realidades havia a mesa diretiva que contava com cargo diretivo máximo (Juiz ou provedor para o Rio de Janeiro e Mayordomo para Buenos Aires), tesoureiros, secretários, escrivão, padre capelão e procuradores. Na irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia havia uma mesa própria de mulheres, onde as mesmas eram eleitas e elegíveis. Cada mesa contava com doze pessoas. De acordo com os documentos da irmandade carioca é possível observar que essa hierarquia de cargos na irmandade também se dá em função da renda dos candidatos, que devido as suas esmolas podiam ser elegíveis. Capítulo 22 Haverá n’esta Irmandade uma juíza a qual será eleita por votos como o juiz que são 12$800 rs. que é só a obrigação que lhe impoem em razão deve ser a dita esmolla vantajada e haverá também douze Irmães de Meza eleitas na mesma forma que darão de esmola 2.000 rs. Cada um e querendo por sua devoção darem maior esmola, maiores serviços farão à Deus e os Santos.874

A questão de eleição de cargos que está presente nesta realidade é importante em muitos sentidos. Expõe a existência de uma hierarquia que também se baseia em renda dentro de uma instituição negra. Mas ao mesmo tempo dá a essa população privada de cidadania o direito de voto interno. Concordo com Mariza Soares875 quando a autora defende que a noção de representatividade se agregava à liberdade. Isso se dá de forma muito intensa nesse período de queda do Antigo Regime, numa busca constante de autonomia e liberdade em que os negros se encontram naquele momento. O que essas sociedades mantêm de mais importante em relação aos padrões de Antigo Regime são as posições hierárquicas dos indivíduos, ou seja, as distinções entre as qualidades de pessoas, como por exemplo, entre livres e escravos.876 Porém não se pode esquecer que as sociedades coloniais tem uma realidade hierárquica mais fluida do que a própria metrópole e que se trata de uma realidade urbana onde há maior possibilidade de autonomia com os ofícios de ganho e formação de redes de solidariedade devido a maior circulação de pessoas.

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Grifos meus. Grifos meus. 873 Id. Capítulo 1 874 Id. Capítulo 22 875 SOARES, Mariza de Carvalho. “Política sem cidadania: Eleições nas irmandades de homens pretos, século XVIII” IN: CARVALHO, José Murilo de. E CAMPOS, Adriana Pereira (orgs.) Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 876 SECRETO, María Verónica. Entre a hierarquia e a igualdade: Os degraus da individualização na Buenos Aires “tardocolonial” e nas primeiras décadas da vida independente. Seminário Internacional NUPEHC 20 anos. Sujeitos na História: Perspectivas e abordagens. 18 a 20 de setembro, Universidade Federal Fluminense, 2012. 872

257 ISSN 2358-4912 Tais instituições também elegiam uma espécie de corte com a escolha de reis e rainhas, imperadores e imperatrizes das irmandades, os mesmos eram coroados de acordo com a tradição de Antigo Regime metropolitano. Essas festas aconteciam baseadas no calendário católico. É importante observar que ocorria uma espécie de apropriação da moral e dos costumes ibéricos pelos negros. Os festejos significavam muito no universo africano e afrodescendente, pois ali se misturavam elementos do sagrado e do profano, como danças, procissões e missas. É importante pensar de que maneira era vista pela alta sociedade colonial esta atitude negra de coroar pessoas de cor, de acordo com uma tradição europeia. Os afrodescendentes e africanos tratados como meros objetos, desumanizados diante da escravidão se apropriaram de uma prática que simbolicamente coroa negros, os elevando a um alto escalão, mesmo que este fosse apenas um ritual dos festejos. Tanto na colônia portuguesa quanto na espanhola, a realidade negra era de apropriação e readaptação de costumes, religiões e políticas europeias impostas. Ou seja, enquanto as autoridades permaneciam na tentativa de controlar a população negra em seus direitos e manifestações – fosse ela cultural, religiosa ou política – os mesmos seguiam tecendo estratégias de autonomia diante deste controle. Os africanos e seus descendentes não negavam a religião católica, suas festas e instituições, mas se faziam presente nesta realidade de acordo com os seus anseios cotidianos. Na verdade, a relação dos africanos e afrodescendentes com a igreja católica sempre foi dúbia no mundo colonial, pois ao mesmo tempo em que o catolicismo visava catequisar os negros, em nome de uma pedagogia da fé, muitas vezes com batismos forçados e trocando seus nomes em virtude do projeto de expansão da fé, também considerava os negros bárbaros, desumanos e desprovidos de religião. A maneira como o catolicismo foi apropriado877 de acordo com a realidade negra e misturado às suas crenças vindas de ancestrais africanos também foi outro problema no processo de catequese. A adesão da religião pelos afrodescendentes não se deu de maneira superficial e dissimulada conforme defende Roger Bastide878. Atualmente essa visão é muito criticada pela historiografia.879 Para o caso das irmandades argentinas, Martha Goldberg880 também partilha da visão de dissimulação negra em relação à aceitação da religião católica. A autora defende a associação dos negros a tais instituições buscando um menor controle da igreja sob suas práticas negras. O catolicismo foi realmente utilitário para os negros, incorporado em seu cotidiano eles conseguiram criar meios para que tal religião os ajudasse em uma realidade marcada por trabalho escravo, discriminação e opressão, o que não deslegitima sua real devoção. A religião católica trouxe consigo uma gama de oportunidade de formações coletivas que surgiram para os africanos e afrodescendentes muitas vezes como um refúgio que gerou conflitos na sociedade. Pois muitas vezes, as manifestações afrocatólicas eram bem aceitas por autoridades civis e eclesiásticas, como uma maneira de domesticar e civilizar negros escravos e libertos, mas por outras visto como uma oportunidade de formação de rebeliões, fugas e desordem, conforme observa Reis881. Dentro dessa lógica, as irmandades muitas vezes eram privadas de exercerem publicamente suas práticas como procissões e festas. Por isso, algumas das fontes que constam no banco de documentos de ambas as irmandades se referem a permissões a fim de realizarem tais procissões e festas. Segundo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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O termo apropriação aparecerá de maneira recorrente neste ensaio e o objetivo é que o mesmo seja interpretador de acordo com a teoria de CHARTIER, 1990. 878 BASTIDE, Roger. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. (trad. De Les Amériques noires: les civilizations africaines dans le Nouveau Monde”) São Paulo: EDUSP, 1974. 879 Como exemplos de tal devoção negra podemos citar o ato dos negros de deixar testamentos descrevendo seu enterro, rito fúnebre e até o destino de suas heranças que muitas vezes eram as próprias irmandades. Outro ato comum de prova de fidelidade e crença na religião católica é a prática comum de negros nomearem seus filhos com nomes santos. 880 GOLDBERG, Marta Beatriz. Las sociedades afroargentinas de ayuda mutua en los siglos XVIII y XIX. Associação Latino-Americana de Estudos Africanos e Asiáticos. X congresso internacional “Cultura, poder e tecnologia: África e Ásia face à globalização.” Rio de janeiro, Brasil, 2000. 881 REIS, João José. “Tambores e temores: A festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX.” IN: CUNHA, Maria Clementina P. (org.). Carnavais e outras F(r)estas. Ensaios de História social da Cultura. Campinas: UNICAMP, 2002.

258 ISSN 2358-4912 Martha Abreu e Larissa Viana, as festas são importantes manifestações culturais das irmandades e sempre estiveram na pauta de reivindicações de escravos e seus descendentes.882 São várias as cartas da confraria de São Balthazar à autoridades pedindo permissões para construir capelas onde aconteceriam festas e procissões. Por exemplo, um documento do ano de 1785 sob o título de: “Expediente en que los morenos confrade de San Balthazar solicitan hacer uma capilla para celebrar em ella sus funciones.”883 As privações eram inúmeras em torno das festas, pois de acordo com Reis, essas festas católicas davam espaço para manifestações paralelas negras, que também podiam ser escravas e instalavam certa independência dos negros por estarem juntos. De acordo com a perspectiva de Edward W. Said884, analiso estas manifestações culturais como símbolos de resistência negra diante da opressão e da restrição diária. Assim esses indivíduos se apropriaram dos símbolos religiosos e até políticos dos europeus, ressignificando para sua realidade de sofrimentos provindos da cor da pele. Seja na irmandade de San Balthazar ou de Santo Elesbão e Santa Efigênia os fiéis “de cor” se apropriaram do que lhes era imposto transformando em benefícios para a sua população. Essas instituições foram criadas em momentos e realidades distintas e de maneiras diferentes, sendo a primeira uma instituição secular, criada pelo clero para os discriminados sociais, certamente como mais uma forma de controle, e a segunda criada pelos próprios negros como uma maneira de agrupar os negros, talvez como uma maneira de aliviar seu sofrimento diário. Mas da mesma maneira os descendentes de cor se apropriaram do espaço institucional que lhes foi concedido, impondo certa representação. Inserida nessa lógica, Edward Said885 defende a resistência como algo sistemático, assim como o colonialismo que é um sistema. Inclusive, a apropriação de santos negros é uma das formas de reação ao sistema, no caso, uma resistência secundária, que Said define como uma resistência ideológica que age na tentativa de reconstruir uma sociedade estilhaçada, de restituir seu sentido. No caso que me proponho a pesquisar, um povo que passou por uma experiência de diáspora e de escravidão que tentou ser desagregadora, e foi de certa maneira. É importante ressaltar que a resistência da população de origem africana sempre foi muito intensa a fim de manter seus costumes e de manter certa unidade de acordo com as suas tradições, por isso a permanência de suas tradições, mesmo que reinventadas.886 Os santos negros se inserem nessa lógica cultural trabalhada por E. Said à medida que o autor (em seu estudo de caso) acredita que a resistência recupera o que já foi influenciado ou permeado pela cultura do Império, e é exatamente isso que acontece nas irmandades negras estudadas quando os africanos e afrodescendentes buscavam para si os santos negros, que os definiam, que tinham a mesma cor de pele, que eram provenientes do mesmo continente887. Assim, esses negros entraram numa lógica religiosa imperial, tendo um santo que os representa. Existia uma identificação dos negros com os santos, e isso era uma expressão de resistência simbólica. Os santos negros e toda a dinâmica provinda das irmandades e a própria instituição em si devem ser pensados como produtos de cruzamentos. São claros resultados de histórias entrelaçadas e complexas, interligadas e sobrepostas que geraram tais formas negras de resistir. A apropriação de São Balthazar, Santo Elesbão e Santa Efigênia pela população afro foram o produto final do cruzamento de experiências religiosas e de outros fins entre brancos e negros. Os africanos e afro-descendentes como V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ABREU, Martha; VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura e política no Império do Brasil.” IN: Keila Grinberg e Ricardo Sallles (orgs.). O Brasil Imperial. Volume III-1870-18889. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009. 883 Documento de permissão para a construção de uma capela de 1785 depositado no Archivo general de la nación. 884 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 885 Id. 886 HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Tradições estas que não necessariamente se encontram intactas, mas obviamente arraigadas por práticas variadas de outros campos de experiência. 887 Anderson José Machado de Oliveira descreve São Baltasar como um santo africano de linhagem real cultuado na Europa desde o século XIV. Santa Efigênia é uma princesa do reino da Núbia e Santo Elesbão é neto do rei Salomão e da rainha Sabá, provenientes da Etiópia, o mesmo é imperador do país no século XI.

259 ISSN 2358-4912 agentes sociais estavam inseridos em uma tentativa de se definir culturalmente através de santos patronos e festas comemorativas, por exemplo. É importante frisar que o fato dos africanos aderirem ao catolicismo e consequentemente se apropriar de seus elementos não quer dizer que sua manifestação não seja autêntica. Said888 defende a importância das influências que é resultante do contato cultural, já que nenhuma cultura é impermeável. Assim, me permito pensar nos santos negros como afirmações de identidades que surgem através de uma política mobilizadora.

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Conclusão À título de conclusão, este ensaio pretendeu pensar acerca das irmandades que surgem em torno de santos negros católicos, reunindo “pessoas de cor” em nome de uma devoção à São Balthazar e Santo Elesbão e Santa Efigênia. Essas manifestações culturais foram expressões da resistência negra na sociedade colonial hierárquica no contexto urbano. É inegável a constante tentativa da elite de buscar elementos para restringir direitos aos negros, criando um cotidiano de opressão, até mesmo no meio religioso. Mas é importante pensar nas estratégias que foram traçadas por esta população para expressarem sua fé. Referências ABREU, Martha; VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura e política no Império do Brasil.” IN: Keila Grinberg e Ricardo Sallles (orgs.). O Brasil Imperial. Volume III-1870-18889. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009. BASTIDE, Roger. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. (trad. De Les Amériques noires: les civilizations africaines dans le Nouveau Monde”) São Paulo: EDUSP, 1974. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: Uma história das últimas décadas de escravidão na corte. São Paulo: Companhia das letras, 2001. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. GOLDBERG, Marta Beatriz. Las sociedades afroargentinas de ayuda mutua em los siglos XVIII y XIX. Associação Latino-Americana de Estudos Africanos e Asiáticos. X congresso internacional “Cultura, poder e tecnologia: África e Ásia face à globalização. Rio de janeiro, Brasil, 2000. HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. OLIVEIRA, Anderson Machado de. Devoção negra – Santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de janeiro: Quartet editora, 2008. REIS, João José. “Tambores e temores: A festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX.” IN: CUNHA, Maria Clementina P. (org.). Carnavais e outras F(r)estas. Ensaios de História social da Cultura. Campinas: UNICAMP, 2002. ROSAL, Miguel. “Aspectos de la religiosidade afroporteña, siglos XVIII-XIX.” Buenos Aires, CONCINET, Instituto Ravignani, UBA, 2009. SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SECRETO, María Verónica. Entre a hierarquia e a igualdade: Os degraus da individualização na Buenos Aires “tardocolonial” e nas primeiras décadas da vida independente. Seminário Internacional NUPEHC 20 anos. Sujeitos na História: Perspectivas e abordagens. 18 a 20 de setembro, Universidade Federal Fluminense, 2012. Pp.1 SECRETO, María Verónica. Justiça na desigualdade: Ações de liberdade, “papéis de venda” e “justo preço”no Rio da Prata, 17776-1815. IN: Revista Afro-Ásia, nº. 40, 2010. SOARES, Mariza de Carvalho. “Política sem cidadania: Eleições nas irmandades de homens pretos, século XVIII” IN: CARVALHO, José Murilo de. E CAMPOS, Adriana Pereira (orgs.) Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 888

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A ARQUITETURA DO AÇÚCAR NA DINÂMICA COLONIAL: UM ESTUDO DE TRÊS ANTIGOS ENGENHOS DE ALAGOAS Catarina Agudo O estudo que aqui se apresenta consiste em um esforço de investigação de aspectos da arquitetura remanescente de antigos engenhos do Estado de Alagoas889, a partir da análise de três exemplares, quais sejam: Pau-Brasil, Varrela e Salgado, localizados nos atuais municípios de Boca da Mata, São Miguel dos Campos e Pilar, respectivamente. O que se pretende é compreender um pouco mais sobre como esta arquitetura se colocava enquanto representação de uma série de relações e, ao mesmo tempo, respondia pragmaticamente às necessidades técnicas da manufatura do açúcar, que impunha programas específicos aos espaços internos e externos dos complexos e onde cada atividade era desenvolvida em um ambiente específico. Originária da Ásia, a cana-de-açúcar encontrou em terras brasileiras condições favoráveis para o seu amplo desenvolvimento, sendo cultivada já em meados do século XVI890. A produção de açúcar, como se sabe, foi a principal atividade econômica da colonização portuguesa no Brasil, pelo menos até fins do século XVII, quando o ouro foi descoberto na região das minas (QUINTAS, 2007, p.42). Esta predominância foi ainda mais evidente na Capitania de Pernambuco, que chegou a dominar, por um período, a produção mundial de açúcar, caracterizando a primeira atividade manufatureira da colônia. Esta atividade tão próspera foi, inclusive, objeto de extensos e detalhados levantamentos que demonstram que, em meados do século XVII, por exemplo, a Capitania de Pernambuco possuía centenas de engenhos, que somavam uma vultosa produção de açúcar. Pernambuco tem cento e cinquenta engenhos de açúcar e cada um deles já mister ao menos vinte e cinco pessoas, entre brancos e negros, para moer, assim dos oficiais que fazem o açúcar, como escravos que servem nas fornalhas, metem cana nos engenhos e cortam e a carretam; e cortam e combóiam a lenha necessária e muitos carros e bois que servem neste ministério. E quem deitar bem a conta conhecerá a multidão de gente que se ocupa nos engenhos e lavradores de cana e quantos se podem ocupar na guerra e plantar mantimentos não moendo os engenhos (CALADO, 1648, p.648).

A instalação dos engenhos de açúcar, que começaram a se espalhar pela capitania pernambucana, no entanto sem se afastar muito, do litoral, foi, além de uma atividade muito rentável para a Coroa, uma estratégia que contribuiu para a fixação das populações em terras brasileiras. A produção de açúcar demandava uma estrutura complexa, tanto material, no que diz respeito às edificações do complexo produtivo, quanto de relações, no que tange a atividades de plantio da cana, produção, transporte e comercialização do produto final. Além disso, o complexo de produção do açúcar necessitava de várias instalações para realização de atividades menores, porém muito importantes para o funcionamento do engenho. Eram necessárias, por exemplo, olaria, carpintaria, marcenaria, entre outras, e todas necessitavam de locais apropriados. Antonil ([1711] 1982, p.24) descreve com clareza a complexidade que demandavam os engenhos: Toda a escravaria (que nos maiores engenhos passa o número de cento e cinquenta e duzentas peças, contando as dos partidos) quer mantimentos fardas, medicamentos, enfermaria e enfermeiro; e, para isso, são necessárias roças de muitas mil covas de mandioca. Querem os barcos velame, cabos, cordas e breu. Querem as fornalhas, que por sete e oito meses ardem de dia e de noite, muita lenha; e, para isso, há mister dous barcos velejados para se buscar nos portos, indo um atrás do outro sem 889

. O atual Estado de Alagoas foi parte da Capitania de Pernambuco até 1817, quando obteve a sua emancipação. Até este momento, o que hoje conhecemos como o estado alagoano era considerado como a parte sul da capitania. Desta maneira, embora este artigo esteja considerando para o estudo somente a parte que corresponde hoje a Alagoas, deve-se ter claramente a noção de que durante quase todo o período colonial Pernambuco e Alagoas formavam um só território. 890 . Segundo Varnhagen, o primeiro engenho foi instalado no Brasil por volta de 1539, na vila de São Vicente. (VANHAGEN, 1975, p.73)

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ISSN 2358-4912 parar, e muito dinheiro para comprar; ou grandes matos com muitos carros e muitas juntas de bois para se trazer. [...] Querem machados e serras. [...] São finalmente necessárias, além das senzalas dos escravos, e além das moradas do capelão, feitores, mestre, purgador, banqueiro e caixeiro, uma capela decente com seus ornamentos e todo o aparelho do altar, e umas casas para o senhor do engenho, com seu quarto separado para hóspedes que, no Brasil, falto totalmente de estalagens, são contínuos; e o edifício do engenho, forte e espaçoso, com as mais oficinas e a casa de purgar, caixaria, lambique e outras cousas, que, por miúdas, aqui se escusa apontá-las [...].

Segundo Simonsen (2005, p.118), dependendo do porte do engenho, este poderia assemelhar-se a uma pequena povoação. Dessa forma, grande quantidade de pessoas era deslocada para determinada região, e a partir de seu crescimento favorecia o aumento da população nas terras brasileiras: O engenho representava uma verdadeira povoação, obrigando a utilização não só de muitos braços, como as necessárias terras de canaviais, de mato, de pasto e de mantimentos. Com efeito, da casa do engenho, da de moradia, senzala e enfermarias, havia que contar com uns cem colonos ou escravos, para trabalharem umas mil e duzentas tarefas de massapê (de novecentas braças quadradas), além dos pastos, cercas, vasilhames, utensílios, ferro, cobre, juntas de bois e outros animais.

Em Alagoas a produção de açúcar esteve relacionada ao surgimento dos três primeiros focos de povoamento: ao norte, em Porto Calvo, na região das lagoas Mundaú (Lagoa do Norte) e Manguaba (Lagoa do Sul) e ao sul, em Penedo. Posteriormente, com a fundação da vila de Atalaia, a ocupação foi sendo expandida para o interior. Segundo Diégues Júnior (2002, p. 48), o primeiro engenho implantado em Alagoas foi o Buenos Aires, em Camaragibe, fundado por Cristóvão Lins, que recebeu a doação de uma sesmaria do donatário da capitania. Diversos relatos do século XVII dão conta da existência de engenhos na parte sul da capitania de Pernambuco, indicando, inclusive, as condições de produção de alguns: Trataremos em primeiro lugar da lagoa do Sul, porque é a que foi melhor povoada. No tempo da primeira povoação foi seu proprietário Diogo Soares da Cunha, pai de Gabriel Soares da Cunha, senhor do Engenho Novo, o qual a obteve por doação de Duarte de Albuquerque, senhor de toda a capitania de Pernambuco (...) (WALBEECK & MOUCHERON, 1643, p. 124). Na jurisdição das Alagoas 106) Engenho de Manuel Ramalho, agora pertencente a David de Vries, está arruinado, mas está sendo reparado e replantado. 107) Engenho dos Alpoins, está arruinado. 108) Engenho do Morro, pertencente a Rodrigo de Barros Pimentel. 109) Engenho Santo Antônio, pertencente ao mesmo Rodrigo de Barros. 110) Engenho São Francisco, pertencente a Manuel Carvalho de Queiroga, mói. 111) Engenho de Cristóvão Botelho, arruinado. 112) Engenho Novo, do dito Botelho, arruinado. 113) Engenho de Bartolomeu Lins d’Almeida, mói. 114) Engenho de Cristóvão Dias Delgado, arruinado. 115) Engenho de Domingos Gonçalves Margen, mói. Seguem os engenhos de Alagoas, com os situados em Alagoas do Norte: 116) Engenho Nossa Senhora da Ajuda, pertencente a François Cloet, é engenho d’água e mói. 117) Engenho Nossa Senhora da Encarnação, pertencente a Antônio Martins Ribeiro, mói. 118) Engenho que foi de Lucas de Abreu, está arruinado e foi confiscado. Nas Alagoas do Sul: 119) Engenho Novo Nossa Senhora do Rosário, pertencente a Gabriel Soares, mói. 120) Engenho Velho, pertencente a Domingos Rodrigues d’Azevedo, mói. 121) Engenho São Miguel, pertencente a Martys Mendes, não moerá.

(VAN DER DUSSEN [1640], 1947, p.58-62) Entre os principais aspectos relacionados à chamada arquitetura do açúcar, dois compõem o meio natural predominante, e imprescindível, na instalação dos engenhos, e isto é bem característico nos exemplares alagoanos: a presença de água e a topografia. Os rios possuíam funções variadas, todas,

262 ISSN 2358-4912 direta ou indiretamente, essenciais para a produção do açúcar. A água era utilizada para a movimentação da moenda, nos serviços gerais do engenho e das casas de moradia, para banhos, pesca e, sobretudo, para o escoamento da produção de açúcar e aquisição de outros produtos (SIMONSEN, 2005, p.118).

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Todo o litoral brasileiro está literalmente tarjado de pequenos cursos d’água que se vêm lançar ao mar após terem banhado extensos vales. Por isso os engenhos de cana erigidos nas regiões ribeirinhas desfrutam grande economia tanto no transporte como na mão de obra. Além de moverem, esses rios, os engenhos instalados em suas margens, servem eles para transporte do açúcar e constituem via fácil para o abastecimento das usinas. Considerações assim tão vantajosas, não se encontram em nenhum outro país das Índias Ocidentais, e, por isso, neles não se poderia cuidar com lucro da cultura da cana (NIEUHOF, 2004, p.68).

Os três engenhos alagoanos deste estudo possuíam relações estreitas com os cursos d’água. Foram através desses rios, e em seus vale, que a cultura da cana pode se desenvolver nos primeiros dois séculos da colonização em Alagoas, lançando, dessa maneira, os fundamentos para a ocupação e expansão do território alagoano.

Figura 1. Esquemas da relação entre os engenhos e os cursos d’água. Da esquerda para a direita: Salgado, PauBrasil e Varrela. Catarina Agudo, 2014.

No que tange a topografia, os senhores de engenho encontraram nas terras alagoanas diferentes paisagens, posto que algumas áreas poderiam ser planas e outras bem acidentadas. Mas no geral, a exemplo de vários engenhos de Pernambuco891, o terreno predominante era aquele com algumas ou várias ondulações, de diferentes alturas. Esta configuração atuou também como um suporte para a espacialização da hierarquia social existente no engenho, bem como para otimizar algumas atividades. A edificação da fábrica estava localizada geralmente na parte mais baixa e plana do terreno, próxima ao rio ou em posição que facilitasse a chegada da água. No caso da moenda movida por bois esta situação não era tão necessária. A área plana facilitava a execução de atividades como o transporte de materiais nos carros de bois, a separação e secagem do açúcar, etc. outras edificações, como as oficinas e a casa de purgar poderiam ficar no mesmo nível da fábrica (GOMES, 2006, p.176). A casa-grande, por sua vez, situava-se geralmente em uma área elevada do sítio, podendo estar à meia-encosta. Esta localização incutia à casa do senhor de engenho uma posição de destaque na paisagem, significando, muitas vezes, a sua imponência e importância no sistema produtivo. Esta posição favorecia ainda a fiscalização, por parte do senhor ou de seus feitores, das atividades realizadas pelos escravos, uma vez que era possível obter uma ampla vista para a propriedade (idem). As capelas também recebiam posição de destaque no cenário do engenho. Situadas no mesmo nível que as casas-grandes, às vezes contíguas a estas, ou em locais ainda mais elevados, denotando a sua importância na dinâmica socioespacial do engenho, bem como indicando a representatividade do poder eclesiástico na colônia. Nos engenhos Varrela e Pau-Brasil esta diferenciação na topografia é bastante evidente, sobretudo no primeiro, que tem suas edificações mais espalhadas no terreno, como se pode ver a seguir (figura 2).

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Ver Geraldo Gomes, Engenho e Arquitetura, 2006.

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Figura 2. Engenhos Varrela e Pau-Brasil (da esquerda para a direita). Legenda: 1. Fábrica; 2. Casa-grande; 3. Capela. Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, 2010. Intervenção: Catarina Agudo, 2014.

Esta sobreposição de papeis e hierarquias foi vastamente representada em iconografias do período colonial, como por exemplo, nas vistas do pintor holandês Frans Post892, que produziu cerca de 47 telas com a temática dos engenhos do nordeste brasileiro (LAGO, 2006. p.72). É bastante evidente nestas pinturas a implantação das edificações dentro de um sistema funcional e hierárquico. Note-se, nas imagens que seguem (figuras 3 e 4), a localização de cada componente do conjunto edificado, bem como a relação de cada um com a topografia e com o rio, sobretudo a roda d’água.

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Figura 3. Vista de uma usina de açúcar no Brasil. Frans Post, in.: LAGO, 2006, p.65. Legenda: 1. Fábrica; 2. Casa-grande; 3. Capela

Figura 4. Engenho. Frans Post, in.: LAGO, 2006, p.132.

As vistas de Frans Post demonstram, com grande riqueza de detalhes, a ambiência do engenho colonial, dando uma boa medida da multiplicidade de aspectos evolvidos no cenário açucareiro, permitindo compreender também os aspectos arquitetônicos e construtivos dos engenhos deste período. Embora as imagens de Frans Post não tratem especificamente de engenhos alagoanos, estas podem elucidar uma grande quantidade de aspectos quanto à configuração dos exemplares de Alagoas. Como já foi colocado, o engenho de açúcar demandava uma série de edificações, com funções bem específicas. Entretanto, no que tange aos exemplares de alagoas selecionados para este estudo, foram consideradas apenas as edificações remanescentes e identificadas quanto à sua função, quais sejam, a fábrica, a capela e a casa-grande. Para a fábrica, um amplo barracão, cuja forma podia variar um pouco no partido de planta e no nível de vedação. Mas em sua maioria, eram retangulares e quase que totalmente abertos nas laterais. Nos engenhos Salgado e Pau-Brasil ainda existem remanescentes desta edificação, e embora no segundo engenho a antiga fábrica esteja em ruína, ainda é possível visualizar parte da sua volumetria e inquirir sobre seus espaços internos. Ambas apresentam-se como construções alongadas, com pé direito alto, telhado em estrutura de madeira, sustentado por grossos pilares. Entretanto, no PauBrasil há somente uma parte do telhado, com uma inclinação pronunciada. São compostas por vários 892

Como se sabe, este pintor veio ao Brasil a convite de Maurício de Nassau e o acompanhou nas suas incursões pelo Nordeste. Foi responsável por uma série de obras, hoje disponibilizadas em um Catalogue raisoné, publicado em 2006. Seus trabalhos têm sido usados pelo Grupo de Pesquisa para realizar comparações entre situações paisagísticas seiscentistas e atuais, com o auxílio de programas de manipulação digital. Ver LAGO, Bia Corrêa do.; LAGO, Pedro Corrêa do; BURBRIDGE, Izabel. Frans Post (1612-1680) – Obra Completa. São Paulo: Capivara, 2006.

264 ISSN 2358-4912 ambientes, onde eram desenvolvidas diferentes etapas da produção do açúcar. As plantas de ambas são em forma de L.

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Figura 5. Edificações das fábricas dos engenhos Novo e Salgado, respectivamente. Pilar. Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, 2011.

Com base na observação das fontes imagéticas seiscentistas, percebe-se que os dois exemplares mencionados apresentam algumas semelhanças com as unidades fabris representadas por Frans Post, que alia elementos de volumetria e dos detalhes das edificações representadas, como a forma do telhado, a planta alongada e em L, com a extensão do telhado podendo ser utilizada para a fornalha (A), a sustentação da coberta por pilares e a coexistência de espaços abertos e fechados (ou semiabertos).

A

Figura 6. Detalhe de uma fábrica de açúcar na imagem de Post.

Para o senhor de engenho, a casa-grande, um híbrido que agregava características de diversas regiões de Portugal893. Surgem, portanto, diversas tipologias da casa rural: terra ou de dois pavimentos, com ou sem varanda, com telhados diversos e até mesmo com torres. As casas-grandes dos engenhos Varrela e Salgado possuem características semelhantes, como a planta retangular, telhado em quatro águas, alpendre em três faces e escada externa. Ambas as casas são térreas, e no caso do Varrela, que está implantado a meia-encosta, há um porão na parte da frente.

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Geraldo Gomes (2006, p.125), quando busca as origens da casa rural de Pernambuco no século XVII, traça um paralelo com as casas de algumas regiões de Portugal, como se vê: “A arquitetura da casa rural do Norte de Portugal foi, portanto, transplantada para Pernambuco com quase todas as suas características formais. Diríamos que em Pernambuco, no século XVII, realizaram-se em madeira os modelos que em Portugal tinham sido concebidos em pedra.”

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Figura 7. Casas dos engenhos Varrela e Salgado, respectivamente. Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, 2011.

Estas edificações, embora tenham, provavelmente, sofrido alterações em sua configuração original, assim como as fábricas, também apresentam características que remetem às primeiras construções destinadas à moradia do senhor de engenho e sua família, representadas nas imagens de Frans Post. Apesar de serem térreas (nas imagens de Post predominam as casas de dois pavimentos) possuem uma volumetria semelhante à das casas mais antigas. A forma do telhado, a presença do alpendre e a planta retangular aproximam essas edificações de seus exemplares mais remotos.

Figura 8. Exemplos de casas-grandes nas imagens de Frans Post.

Para Deus e os santos católicos, era comum que muitos engenhos tivessem a sua própria capela, que muitas vezes recebia tratamento construtivo diferenciado, em detrimento das demais edificações do conjunto, simbolizando a fé do colonizador que aos poucos vai se enraizando em novas terras. O exemplar de destaque, entre os engenhos deste estudo, é a capela do Varrela. Possui planta retangular, com nave única. Esta capela apresenta uma configuração peculiar, pois possui um pequeno cemitério a sua frente e um alpendre localizado na parte posterior da edificação, atrás da nave.

Figuras 9. Capela do engenho Varrela. Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, 2011.

Ao observar as capelas de engenho pintadas por Frans Post e as que permaneceram inteiras até os dias de hoje, é possível perceber que a planta, de uma forma geral, não sofreou grandes variações ao longo do tempo, predominando a forma retangular, com nave única. O alpendre, elemento comum nas capelas seiscentistas, também aparece nos engenhos alagoanos, inclusive com o telhado em três águas, como se pode observar.

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Figura 10. Exemplos de capelas representadas por Frans Post.

É interessante acrescentar que no que tange às habitações dos escravos, a sua arquitetura torna-se uma incógnita. Seja pela precariedade das edificações, que poderiam frequentemente ruir e ser reconstruídas, seja pelo próprio discurso hierárquico, através do qual só se representava aquilo que interessava a um determinado público, o intrigante é que poucas são as referências, textuais e iconográficas, principalmente dos séculos XVI e XVII, que dão pistas quanto à configuração destas edificações. Nenhum dos três engenhos analisados aqui possui edificações que sugiram terem sido senzalas. Nos engenhos pernambucanos esta questão também ocorre, como coloca Geraldo Gomes (2006, p.106): Em uma das gravuras holandesas, o Mapa do território brasileiro sob o domínio holandês, de Johanes Blaus, aparece uma construção por trás do que seria uma capela onde se pode ver uma série de quatro portas e nenhuma janela. Uma outra casa encobre o resto do edifício, o que impede a observação integral da primeira construção citada. Próximo a residência do proprietário do engenho, e por trás dela, existe também uma construção singela, somente com portas, que poderia ser a habitação dos escravos negros. Os desenhos são muito rudimentares e não nos arriscamos a asseverar que se trata de uma senzala.

Como se vê, a chamada arquitetura do açúcar consistiu, desta forma, em uma expressão bastante peculiar. No que tange às relações de poder, estas eram claramente definidas espacialmente, reafirmando o discurso vigente quanto ao lugar de diversos agentes deste processo, como o escravo, o representante eclesiástico e o senhor de engenho no cenário colonial. No entanto, as relações desenvolvidas nos engenhos extrapolam a dimensão espacial, exercendo sua influência em várias outras dimensões, posto que a diversidade que existia nos engenhos irá penetrar de forma definitiva na sociedade de Alagoas. As manifestações advindas dos antigos engenhos de açúcar alagoanos extrapolam o campo da arquitetura, permeando diversas outras expressões culturais, tais como a pintura, a literatura, a poesia popular, o conto de lendas e superstições, o uso da medicina natural, a culinária, as festas tradicionais, entre outras. Referências ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia/EdusP, 1982. In.: Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa – www.bivirt.futuro.usp.br CALADO, Frei Manuel. “O Valoroso Lucideno 1648.” In: FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia – história da guerra brasílica, 1675. São Paulo: Beca Editora, 2004. (cd-rom) CALADO, Frei Manuel. 15841654. “O valoroso lucideno e triunfo da liberdade. 4º Ed. Pref. De José Antônio Gonçalves de Mello. Recife, FUNDARPE. Diretoria dos assustos culturais, 1985. 2v (coleção Pernambucana – 2º fase, 13). DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O Bangüê nas Alagoas. Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. Maceió: Edufal, 1980. FREIRE, Gilberto. CASA-GRANDE & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo, Editora Global, 2005. GOMES, Geraldo. Engenho e Arquitetura. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 2006. LAGO, Pedro & Bia Corrêa do. FRANS POST {1612-1680} Obra Completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2006.

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AMAZÔNIA PORTUGUESA: AS DEFESAS NO PERÍODO POMBALINO Christiane Figueiredo Pagano de Mello*

Introdução Este texto pretende esboçar, de forma introdutória, alguns aspectos no âmbito da defesa na região amazônica. Ao falar de defesa e militarização nas áreas de fronteira ao norte da América Portuguesa durante a segunda metade do século XVIII, particularmente as fronteiras com a Guiana Francesa e a América Espanhola, deve-se conceber este espaço como imensa área da Amazônia colonial marcada por disputas econômicas, coloniais e geopolíticas (NUNES, 2008:1-3). A necessidade de manter controle sobre a região parece ter sido a principal motivação da Coroa Portuguesa em promover diversos projetos de construção de fortificações, de estabelecimento de vilas, de criação e organização de tropas militares: auxiliares, ordenanças e regulares; o que se por um lado, promovia a ocupação, a conquista e a militarização desse espaço, por outro, deveria garantir a expansão do aparato estatal português, redefinindo os limites territoriais e assegurando a soberania de Portugal na Amazônia. Analisar as ações da Coroa Portuguesa na Amazônia para promover a ordenação das áreas de fronteira, considerando os discursos e práticas em torno da defesa e da militarização da região durante a segunda metade do século XVIII constituem a nossa proposta de trabalho. Tratados e Tensões Durante a segunda metade do século XVIII, a busca do governo português por uma maior centralização político894 administrativa provocou mudanças nas instituições políticas e militares outrora dotadas de certa autonomia . Essa política régia se estendeu pelos domínios ultramarinos portugueses e foi implementada por seus representantes: Vice-Rei, Capitães-Generais e Governadores das Capitanias.

O Estado do Grão-Pará e Maranhão, fundado em 1751 e que compreende hoje em dia os estados da federação brasileira do Pará, Maranhão, Piauí, Roraima, Amapá e Amazonas, foi uma das áreas de grande tensão ao longo do século XVIII, visto que os limites eram manifestamente indefinidos. Zona estratégica de primordial importância, como assinala Maria Isabel da Silva, o Estado dava acesso, através da bacia hidrográfica do Amazonas, as minas existentes na colônia que importava defender; e representava uma fonte de recursos naturais que pareciam proporcionais à sua grandeza (RODRIGUES, 1997:3). Como lembra Elis Miranda, as terras a oeste da Amazônia, segundo o Tratado de Tordesilhas (1494) eram de domínio da Espanha e o Tratado de Madri em 1750 veio legitimar a expansão portuguesa para as terras a oeste do tratado anterior, pois o Tratado de Madri era baseado na ocupação efetiva do território, coisa que o Estado Português já praticava desde o século XVII (MIRANDA, 2005:3). Em 1761, devido aos problemas de aplicação do Tratado de Madri, é assinado o Tratado de El Pardo cancelando o primeiro. Essa situação colocou as regiões de fronteira da Amazônia com as colônias de Espanha em estado de risco, de disputa. Além disso, a Guerra dos Sete Anos na Europa iria acirrar ainda mais a tensão entre as duas Coroas. Era necessário Portugal preparar devidamente suas defesas em caso de prováveis ataques espanhóis na região.

No que se refere às fronteiras entre os domínios coloniais portugueses e franceses na América do Sul, o Tratado de Utrecht (1713) definiu os limites entre a Guiana francesa e a Capitania do Cabo Norte, pertencente a Portugal. Entretanto, a partir de meados de 1720 os franceses passaram a questionar tais limites e a reivindicar a posse da região do Cabo Norte. O problema da posse da região permaneceria pendente nas relações entre as duas Cortes trazendo inquietação constante com a defesa do território. Defesa e Ocupação

*Doutora em História pela UFF; Professora efetiva do Departamento de História da UFOP. 894 Para a abordagem da política pombalina, um trabalho clássico é FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo: Ática, 1982.Além deste, ver. Maxwell, K. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

269 ISSN 2358-4912 Para pôr em prática seu projeto na Amazônia, Pombal nomeou, para Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1758). Inúmeras medidas foram adotadas: o levantamento cartográfico e formação de comissões de demarcação de limites, a mudança da sede do governo para Belém do Pará, a organização das capitanias subalternas ao Grão-Pará e Maranhão, a criação da Capitania de São José do Rio Negro; a construção de fortalezas, a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, a introdução de negros na região, a expulsão dos jesuítas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

No que diz respeito à política territorial, de acordo com Christian Púrpura em “Formas de existência em áreas de fronteira” (PÚRPURA, 2006:6), o governo de Francisco Xavier Mendonça Furtado, nos anos 50 do século XVIII, não operou uma ruptura tão radical com os governos anteriores, como quer uma corrente interpretativa bastante aceita na historiografia. Segundo o autor, mesmo antes de Mendonça Furtado, a formação de uma rede de fortificações foi uma medida importante de afirmação da autoridade portuguesa no interior da Amazônia. Sobretudo, nos últimos anos do século XVII. Nesse sentido, são importantes as pesquisas de Arthur Cezar Ferreira Reis em que as fortalezas são entendidas como “afirmações de soberania” e “marcavam a fronteira” (REIS, 1956:40). As fortalezas foram instrumentos para a construção de um território político. Entretanto, além das fortalezas, Mendonça Furtado e outros governantes da época pombalina viam no povoamento uma das grandes armas de defesa do território. Nesse sentido, Renata Malcher Araújo entende que, os principais critérios da gestão do território, na ótica pombalina, foram fundamentados na criação de uma linha de defesa por meio das fortificações e na ocupação da terra pela fundação de povoações. Com a atividade fortificatória, assegurava-se o controle dos limites exteriores do território e por meio da estratégia interior, investia-se na ocupação efetiva do domínio colonial (ARAÚJO, 1998:24). Praticamente toda a Amazônia foi “cercada” por povoações e fortificações. No noroeste foi construído o Forte Príncipe da Beira-Rondônia-, em frente à atual Bolívia, no Amapá foi construída a Fortaleza de São José de Macapá, além da Vila de Macapá, a Vila Nova de Mazagão e a Vila Vistosa da Madre de Deus.

Acevedo Marin observa que, além da defesa militar ocorrida através das construções de fortes e fortalezas, ocorreu também a projeção da estrutura agrária e camponesa, que tinha como finalidade o controle da população da região e a defesa das fronteiras contra os inimigos externos (ACEVEDO, 1998:53-44). A autora desenvolve uma análise bastante interessante sobre o cultivo do arroz como projeto de ocupação e aproveitamento da região do Macapá. Observa que a região necessitava ser protegida das ameaças francesas; na condição de fronteira, era necessário que o Macapá se tornasse uma área de destaque agrícola, haja vista, que a França perdera, em 1763, a região em litígio para o Brasil. Nesse projeto de colonização do Macapá que, ao mesmo tempo, era militar e agrícola, o colono, assume, assim, a dupla função de colono e soldado. Dessa forma, de acordo com a autora, a agricultura no Macapá representou muito mais do que uma simples tentativa do cultivo de um produto agrícola em uma região primordial para a garantia do controle de fronteira. Nesse sentido, vale destacar que, muitos estudos, ainda hoje, enfatizam apenas a economia extrativista na região Amazônica. A autora demonstra a importância do historiador que evita cair nos grandes ciclos econômicos e critica a história tradicional que estuda as regiões a partir de modelos pré-elaborados que fogem à própria historicidade, no caso, a Amazônia. Há, portanto, a preocupação em situar a região em suas particularidades para poder depois compreendê-la num contexto macro. É essa escrita histórica que permite não se fazer história a partir de concepções que apresentam a região como área periférica (CARDOSO, 1999:4) Assim, a organização da sociedade colonial na região amazônica, no contexto das demarcações, deu-se em torno da comercialização dos produtos da natureza, em sua forma extrativista e, também, contando com uma produção agrícola considerável, como por exemplo, o cacau, argumento defendido por Dauril Alden (ALDEN, 1974:26). Nesse mesmo sentido, José Ubiratan Rosário, também recusando a concepção de uma economia colonial amazônica reduzida ao extrativismo, afirmou que o cultivo próspero do cacau na região teria sido responsável por orientar algumas das políticas pombalinas de reforço das fronteiras e da construção do Diretório dos Índios, 895 objetivando garantir mão-de-obra e defesa das plantações (ROSÁRIO, 1986:54). Em termos gerais, como destaca Flavio Gomes, paulatinamente, a ocupação da região Amazônica foi ganhando forma, e a característica marcante foi a militarização da região, especialmente no século XVIII. Colônia agrícola e guarnição militar, faces contraditórias e, ao mesmo tempo, complementares da ocupação portuguesa. Nesse contexto, destaca-se o papel dos colonos-soldados destinados a estas praças estratégicas, onde se encontravam 895

Sobre esse debate, ver: COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo: Universidade de São Paulo, Tese de Doutorado, 2005, pp. 98-100.

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ISSN 2358-4912 em regime de disponibilidade compulsória para servir como militares (GOMES, 1999:14). O que, vale destacar, provocou uma intensa deserção por parte de vários destes colonos-soldados. As origens e as motivações das freqüentes deserções de soldados no Grão-Pará colonial podiam ser muitas. Índios, brancos pobres e negros – de maneira geral – fugiam do recrutamento militar e do trabalho 896 compulsório nas fortalezas e vilas. Como observa Flavio Gomes, os desertores e fugidos procuravam proteção nas áreas de fronteiras de ocupações coloniais. Mais do que a floresta propriamente dita, era a região da fronteira o lugar seguro para fugitivos. A busca de apoios, de alianças e de solidariedades nesta região não tinha, literalmente, limites territoriais. Nesse contexto, os fugitivos negros, índios e soldados desertores – foram protagonistas de uma original aventura, na qual reinterpretaram os sentidos da colonização. Com suas próprias ações, reinventaram significados e construíram visões sobre escravidão, liberdade, ocupação, posse, fronteiras e domínios coloniais. Inventaram a geografia de suas ações. Mais do que isto, marcaram as experiências da colonização e ocupação de vastas regiões amazônicas, principalmente aquelas das fronteiras coloniais internacionais. (QUEIROZ & GOMES, 2002:2) Como afirma Almir Diniz, as fronteiras da colônia portuguesa na Amazônia se entrelaçavam numa rede complexa formada por inúmeros atores: indígenas, brancos, negros e mestiços de variadas matizes. A constituição deste espaço de convivência deu-se através do fluxo de seu movimento contínuo e da dinâmica das negociações. (CARVALHO JÚNIOR, 2011:1-2). Índios e Militares

O historiador português, José Manuel Azevedo e Silva em “O Modelo Pombalino de Colonização da Amazônia”, observa que a maior parte dos jovens soldados recrutados em todo o Reino de Portugal para formarem e renovarem os três regimentos criados em 1753, no Pará e Maranhão, eram dadas terras de sesmarias e concedidos outros privilégios no caso de casarem com as índias. Como destaca o autor, “é a convicção política de que a defesa do território, para ser eficaz, deveria ser feita pela articulação das forças militares com a fixação efetiva de colonizadores” (AZEVEDO E SILVA, s/d:2). De acordo com Ângela Domingues, o processo legislativo relacionado ao casamento entre os vassalos naturais e os reinóis no Grão-Pará e Maranhão e na Índia e em Macau era similar. “A intenção era semelhante: formar um grupo de indivíduos que fizessem a ligação entre as duas sociedades, a colonial e a indígena, tanto pelo nascimento, quanto pela formação” (DOMINGUES, 2000:40). É bom lembrar que, o início desse processo é muito anterior a esse período, pois dele faz parte, também, aquilo que então se denominava “casamento pela lei da natureza” ou, dito de outro modo, concubinato ou mancebia, que talvez seja a sua verdadeira gênese. Vale lembrar que, na aplicação das novas disposições da política pombalina, ganhou importância estratégica a secularização das missões e a declaração da lei de “Liberdade dos Índios” em 1755. E, também a aplicação de um instrumento tutelar das populações indígenas aldeadas: o “Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão”, implementado em 1757. Com base na releitura que se faz hoje sobre as questões da Colônia, é válido afirmar que as leis de 1755 concebidas em Portugal para a Amazônia sofreram adaptações no contexto colonial, até tomarem a forma do Diretório dos Índios de 1757. Como afirma Mauro Coelho: “o Diretório dos índios é uma lei nascida na Colônia, formulada em resposta aos conflitos vividos durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado” (COELHO, 2005:36-37). Segundo Patrícia Sampaio, essa legislação interferiu nos mais diferentes níveis da vida sócio-econômica, cultural e política das populações amazônicas (SAMPAIO, 2003:7). Ao longo de todo o período de vigência do Diretório dos Índios, as populações indígenas foram incorporadas à sociedade colonial, por meio da inclusão nas forças militares, na condição de ajudantes, 896

Sobre a escravidão africana na Amazônia Ver: SALLES, Vicente. O Negro no Pará. Brasília: Ministério da Cultura; Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1988. [1971]; VIRGOLINO-HENRY,Anaiza & FIGUEIREDO, Napoleão. A Presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990. ACEVEDO MARIN, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas. Guardiães das matas e rios. Belém: Cejup, 1998. FUNES, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor. História e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. São Paulo, 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, entre outros.

271 ISSN 2358-4912 alferes, sargentos mores, capitães e mestres de campo. Alguns poucos índios exerceram as ocupações de Meirinho e Diretor. Essas incorporações representaram, em vários casos, uma chance de mobilidade, para os índios aldeados (Coelho, 2006:126).

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A Defesa e a Companhia Geral de Comércio No contexto da reorganização do sistema de defesa dos territórios amazônicos na segunda metade do século XVIII, deve-se destacar, ainda, o importante papel da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Foi uma empresa privilegiada, de caráter monopolista, criada pelo Marquês de Pombal, destinada a controlar e promover a atividade comercial do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Kenneth Maxwell destaca que a Companhia fora criada para atender os anseios tanto de ordem econômica, como militar: de vigilância das fronteiras com o Império Colonial Espanhol. A Companhia teve grande importância no campo da defesa do território do Estado do Grão Pará e Maranhão, uma área que necessitava de constante vigilância em razão do assédio de: ingleses, franceses, espanhóis e holandeses (MAXWELL, 1996:34). Assim, a Companhia ao defender o seu patrimônio, acabou por colaborar com a defesa do patrimônio da Coroa portuguesa. Não tendo condições financeiras para defender suas colônias, Portugal contou com a ajuda financeira e militar da Companhia para preservar suas conquistas.

A Companhia construiu fortalezas e foi responsável pelo pagamento da folha militar e secular. Embora não exercesse a administração do Estado do Grão-Pará e Maranhão, forneceu assistência financeira e ficou incumbida de montar e manter uma rede militar permanente. Segundo Nunes Dias, a Companhia ajudou o Estado português a manter o domínio político sobre tais territórios, tornandose assim, uma instituição vital para a monarquia (DIAS, 1971:20). Finalizando, como afirma Patrícia Melo Sampaio, os esforços da administração portuguesa, ao longo segunda metade do século XVIII, na região passariam pelo reforço militar às áreas de “soberania duvidosa”, pelas inúmeras tentativas de consolidar tanto a produção de alimentos quanto a coleta de drogas do sertão, pelo estabelecimento das populações indígenas através dos descimentos nas povoações, garantindo as fronteiras e a necessária mão-de-obra à sustentação da economia colonial (SAMPAIO,2003:8). Referências ALDEN, Dauril. O Significado da produção de cacau na região amazônica no fim do período colonial:um ensaio de história econômica comparada. Belém: UFPA; NAEA, 1974. ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. A escrita da história paraense. Belém: Universidade Federal do Pará, 1998. ARAÚJO, Renata Malcher. As cidades da Amazônia no século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão. Porto, Faup publicações, 1998.

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ISSN 2358-4912 URBANIZAÇÃO EM VILA RICA: ESTUDOS COM TÉCNICAS DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO Christiane Montalvão897

Introdução O presente artigo busca fazer um ensaio sobre os métodos utilizados na pesquisa: “Os espaços urbanos de Minas Gerais: Vila Rica, 1784-1835” 898, cujo objetivo é mapear a mancha urbana deste núcleo populacional e estudar a concentração demográfica através de uma nova abordagem em voga no meio acadêmico. O uso dessa abordagem que venho chamando de georreferenciamento aplicado à história899 liga os estudos históricos aos sistemas de informação não só por trabalhar com dados quantitativos, mas sim por utilizar novos softwares como, por exemplo, o AutoCAD 900 e o ArcGIS 901. Tais programas de computador permitem produzir uma imagem do espaço tanto em duas dimensões (2D) como em três dimensões (3D), com coordenadas georreferenciadas a partir de pontos existentes desde o período colonial, que é o caso de algumas edificações de Ouro Preto. História e Sistemas de Informação Geográfica Entre os fins do século XVIII e 1835 Minas Gerais deixara de ser uma capitania do Estado, depois Reino do Brasil, para tornar-se uma província do Império. A imagem que dela tinham seus habitantes durante o Setecentos começou a desbotar, para dar lugar a um outro quadro, com cores novas. Entre 1808 e 1813, a produção total de ouro tornou-se equivalente à produção agrícola e pecuária da Capitania, e não cessou mais de perder importância para estas últimas. Desde então, outras mudanças ocorreram rapidamente, especialmente o aumento na emissão do papel moeda: 1807 foi o último ano em que o ouro em pó – o principal meio de troca e a principal reserva de valor da capitania, circulou livremente como moeda em seu interior. A perturbação financeira de 1808, a ocupação da Zona da Mata e do Leste mineiro e o estabelecimento de uma política em relação aos índios a partir de 1813, a inclusão do Triângulo Mineiro em 1816, a rápida ocupação do vale do Paraíba mineiro e sua inclusão no 897

Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Orientador: Angelo Alves Carrara Email: [email protected] 898 Pesquisa em andamento desenvolvida no âmbito do curso Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora pela discente Christiane Montalvão, graduada em História na mesma faculdade. Pesquisa sob orientação do Professor Doutor Angelo Alves Carrara. 899 Georreferenciamento aplicado à História seria o uso de SIG (Geographic Information System - Sistema de Informação Geográfica) que permite através de usos de softwares associar os conhecimentos históricos a informações geográficas de precisão para representar os espaços urbanos ou rurais e também possibilita através de dados extraídos das fontes a criação de novas fontes ou imagens fiéis do espaço (no caso mapas a partir das informações contidas nas fontes). 900 AutoCAD (desenho auxiliado por computador) é um programa de computador utilizado principalmente para a elaboração de peças de desenho técnico em duas dimensões (2D) e para criação de modelos tridimensionais (3D). É amplamente utilizado em arquitetura, design de interiores, engenharia civil, engenharia mecânica, engenharia elétrica, utilizados por geógrafos, e em vários outros ramos da indústria e pesquisa técnica. 901 ArcGIS é um programa de computador, um Sig fornecido pela ESRI (Environmental Systems Research Institute), uma empresa americana especializada na produção de soluções para a área de informações geográficas. No site da ESRI, o ArcGIS é apresentado como "um sistema incremental de software para criação, gestão, integração, análise e disseminação de dados geoespaciais, ao nível individual ou global de uma rede distribuída de pessoas". Serve como Sig para criação, visualização, consulta e análise de representações cartográficas, operando sob o sistema Microsoft® Windows NT/2000/XP. Oferece um instrumental interativo para exploração, seleção, apresentação, edição, análise, simbolização e classificação de dados geoespaciais, assim como para criação, manutenção e gestão de meta-dados geoespaciais (simplifica a produção de mapas e análises geoespaciais). Disponível em: http://igeo-server.igeo.ufrj.br/fronteiras/geodicas/index.php?action=artikel&cat=4&id=155&artlang=pt-br

274 ISSN 2358-4912 complexo agroexportador cafeeiro a partir de 1818, marcaram o fim do ‘Século do Ouro’ na mentalidade do século XIX. A partir de então, a Capitania, poucos anos depois Província de Minas Gerais parecia ser outra coisa que o fora no século anterior, apesar de estruturalmente não ocorrer qualquer ruptura. Apesar de os habitantes da capitania perceberem-na como fortemente dominada pela mineração — o que era correto, especialmente para a região recoberta pelo quadrilátero formado pelas antigas vilas de Ouro Preto, Sabará, Caeté e cidade de Mariana, assim como para a Demarcação Diamantina — a paisagem predominante era rural. Era nos sítios e nas fazendas que se concentrava a maior parte da população de Minas. 902 O maior núcleo urbano da capitania de Minas Gerais em 1812 era Ouro Preto, com 1651 edificações. Em seguida vinham Sabará, Diamantina, São João del Rei e Paracatu, com um total entre 785 e 758 imóveis compreendidos nas áreas que suas câmaras municipais arbitravam ser seus espaços urbanos. A única cidade da capitania, Mariana, compreendia 607 casas, pouco acima do total para o Serro, com 546. Pitangui e Campanha, sedes das duas freguesias com mais elevada produção agrária de Minas nesse ano, possuíam, respectivamente, 400 e 377 casas. As demais vilas e arraiais contavam menos de 328, e os "lugares notáveis" menores, como São Vicente, com 15 apenas. O valor total arrecadado com o imposto da décima predial resultava de dois fatores fundamentais: o número de prédios e o valor de cada imóvel. Sem dúvida, os maiores valores arrecadados deveriam provir das vilas e arraiais com maior número de prédios. Os 6.671 imóveis — 61% do total de 10.940 de prédios lançados — das nove maiores vilas mencionadas anteriormente eram responsáveis em 1812 por 73% do total da décima para esse ano (Rs 4:526$107 de um total de 6:207$677). Este, contudo, era o valor cobrado, o que estava longe de corresponder ao recebido. 903 As cifras totais, contudo, opacam aspectos diversos. A relação entre o total da décima e o número total de imóveis revela que os prédios de algumas vilas e arraiais valiam em média bem mais do que os prédios de outras. As vilas e arraiais com os prédios mais caros em média eram, nesta ordem, São João del Rei, Campanha, Bom Sucesso, Tijuco, Lagoa Dourada, Barbacena, Ouro Preto, Mariana e o Serro. Estes números convidam a que se busque a razão destas diferenças. A riqueza proveniente das atividades agrícolas não é a explicação principal. Se assim fosse, a freguesia com uma das mais elevadas participações na produção rural, Pitangui, lideraria a lista. Outra questão a demandar respostas é o papel dominante desempenhado por cada vila e arraial. É nesse contexto que se insere nossa investigação, que tem por objetivo mais amplo contribuir para a caracterização dos espaços urbanos na capitania, depois província de Minas Gerais, com recurso aos Sistemas de Informação Geográfica. Trata-se de uma empreitada que envolveu a solução de um grande número de problemas decorrentes tanto da variedade de fontes - cada uma exigindo uma metodologia específica - quanto dos próprios procedimentos em si. Um outro problema corresponde ao próprio uso dos chamados Sistemas de Informações Geográfica na pesquisa histórica, "ainda bastante incipiente, tanto em relação ao que se dá em várias outras áreas do conhecimento, como em contraposição com a sistemática pertinência de questões ligadas ao espaço nos estudos do passado".904 O que podemos observar é que este tipo de estudo com representações digitais de cidades histórias ainda é muito escasso no Brasil905, entretanto diversos trabalhos realizados no exterior aplicam tecnologia para áreas urbanas de caráter histórico, constata-se que a grande maioria envolve técnicas de visualização utilizando programas para a Realidade Virtual.906 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Sobre este conjunto de transformações das atividades econômicas cf. CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais; produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007. 903 CARRARA, Angelo Alves. Espaços urbanos de uma sociedade rural: Minas Gerais, 1808-1835. Varia História, Belo Horizonte, n. 25, p. 144-164, 2001. 904 FERLA, Luis. Implementação de GIS Histórico no Campus de Humanidades da UNIFESP e projeto-piloto sobre a urbanização de São Paulo (1870-1940). Comunicação apresentada no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (San Francisco/Califórnia, 23- 26 de maio de 2012). 905 ROCHA, Heliana Faria Mettig. Visualização Urbana Digital: Sistemas de Informações Geográficas e Históricas para o Bairro do Comércio – Salvador. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. 906 Realidade Virtual é a técnica avançada de interface que permite ao usuário realizar imersão, navegação e interaçao em um ambiente sintético 3D gerado por computador, utilizando canais multi-sensoriais (AZEVEDO: CONCI, 2003)

275 ISSN 2358-4912 O uso do computador em análises espaciais acelerou-se a partir dos anos 1990, e pode ser associado, no que tange à demanda pelo SIG a uma necessidade crescente de organização do aumento sem precedentes do fluxo de informações, com aplicação nas áreas de gestão de políticas públicas, administração de redes comerciais, estudos de geografia econômica, gerenciamento ambiental, análises geomorfológicas e roteamento do tráfego urbano, por exemplo. A despeito disto, na pesquisa histórica seu uso é ainda muito incipiente. Na avaliação de Luis Ferla, a explicação parece ligar-se à "pequena tradição do uso das tecnologias da informação entre estudiosos das ciências humanas, em geral, e entre os historiadores, em particular, em contraposição ao que acontece em outras áreas, como nas ciências ditas naturais ou exatas". A bibliografia a respeito, contudo, tem aumentado de maneira considerável nos últimos anos. 907 Isto, contudo, ocorre bem menos com os historiadores econômicos, há muito habituados com o recurso aos métodos de história quantitativa e serial, que sempre demandaram o uso da informática no tratamento das informações massivas com as quais lidam em suas pesquisas. Esta é a razão pela qual a presente pesquisa está sendo desenvolvida com o auxilio de pesquisadores do Grupo de Pesquisa em História Econômica - História Quantitativa e Georreferenciada, que considera que:

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a incorporação privilegiada da dimensão espacial na agenda de pesquisas possibilitaria não apenas o enriquecimento das possibilidades temáticas e da capacidade de integração de distintas tipologias documentais, como também poderia fornecer novas perspectivas analíticas e interpretativas para temas já relativamente bem explorados, mas que poderiam sofrer ressignificações ou relativizações com o auxílio da tecnologia aqui proposta.908

Compartilhamos a aposta feita por Anne Kelly Knowles, Amy Hillier e Roberta Balstad, de que “não há dúvida de que o saber acadêmico baseado em SIG histórico irá render novas descobertas". Ou ainda por Ian Gregory e Paul Ell, segundo os quais "o SIG se tornará uma parte essencial da pesquisa histórica no futuro".909 No entanto, como destacou Luis Ferla, nestes tipos de pesquisa ainda enfrentamos as dificuldades inerentes a um contexto, de um lado, favorável no que respeita à pertinência da tecnologia e, de outro a incipiência de trabalhos nessa área no país. 910 Esta a nossa maior dificuldade. Não se trata de fazer uma biografia totalmente deste espaço utilizando-se de técnicas computacionais, mas o uso do termo e talvez o método se encaixem com a atual fase da pesquisa que 907

Para mencionar apenas alguns títulos de interesse mais direto para esta pesquisa: BODENHAMER, David J; CORRIGAN, John; HARRIS, Trevor M. (Ed.). The spatal humanites: GIS and the future of humanites scholarship. Bloomington: Indiana University Press, 2010; FRANK, Zephyr; JOHNSON, Lyman. "Cites and Wealth in the South Atlantc: Buenos Aires and Rio de Janeiro before 1860," Comparatve Studies in Society and History, 48:3, 2006; GREGORY, Ian; ELL, Paul. Historical GIS: technologies, methodologies and scholarship. Cambridge: Cambridge University Press, 2007; HARVEY, C.; PRESS, J.. Databases in historical research: theory, methods and applicatons. London: Palgrave Macmillan, 1996; KNOWLES, Anne (ed.). Placing history: how maps, spatal data, and GIS are changing historical scholarship. Redlands: Esri Press, 2008; LANGRAN, G. Time in Geographical Information Systems. London: Taylor & Francis, 1992; OTT, Thomas; SWIACZNY, Frank. Time-integrative geographic information systems: management and analysis of spato-temporal data. Berlin: Springer-Verlag, 2001; REBELATTO, Martha; FREITAS, Frederico. “Desafios e possibilidades ao uso de Sistemas de Informação Geográfica na História”. In: 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, de 11 a 13 de maio de 2012, UFRGS, Porto Alegre; SIEBERT, Loren. “Using GIS to document, visualize, and interpret Tokyo's Spatial History”. Social Science History. 24:3, 2000, pp. 537-574. Social Science History, vol. 24(3), 2000; TOWNSEND Sean; CHAPPELL, Cressida; STRUIJVÉ, Oscar. Digitsing History: A Guide to Creatng Digital Resources from Historical Documents. Oxford: Oxford Books, 1999. 908 FERLA, Luis. Implementação de GIS Histórico no Campus de Humanidades da UNIFESP e projeto-piloto sobre a urbanização de São Paulo (1870-1940). Comunicação apresentada no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (San Francisco/Califórnia, 23- 26 de maio de 2012). 909 KNOWLES, Anne (ed.). Placing history: how maps, spatal data, and GIS are changing historical scholarship. Redlands: Esri Press, 2008, p. 272; GREGORY, Ian; ELL, Paul. Historical GIS: technologies, methodologies and scholarship. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 204. 910 FERLA, Luis. Implementação de GIS Histórico no Campus de Humanidades da UNIFESP e projeto-piloto sobre a urbanização de São Paulo (1870-1940). Comunicação apresentada no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (San Francisco/Califórnia, 23- 26 de maio de 2012).

276 ISSN 2358-4912 visa reconstruir esses espaços com base em fontes que demonstrem como a realidade fiscal e legislativa da sociedade interferiu ou não no meio urbano. Após a produção do mapa em meio digital constatou – se através de uma sobreposição as distorções e mudanças ocorridas. Com o auxílio da base de dados fornecidos pela décima predial, os tombos e pelo recenseamento somados ao mapa de Ouro Preto (2006) gerroreferenciado, cedido gentilmente pela prefeitura local, poderemos em um segundo momento verificar com mais exatidão quando e por que essas transformações ocorreram com o fim do século do ouro e com a transferência da capitania do Estado e o “começo” de uma província. Também é objetivo demonstrar que a articulação entre a História e as tecnologias associadas aos Sistemas de Informação Geográfica, como o georreferenciamento, é fundamental para fazer avançar nossos conhecimentos nas áreas da História Econômica, de modo mais abrangente, e da História Urbana, de modo particular, apresentando um produto final que seja acessível não só a pesquisadores das áreas de pós-graduação, mas também um material que possa ser didático ao ensino de base. Este procedimento seguiu muito de perto o método de elaboração do plano de Lyon vetorizado a partir da planta cadastral dessa cidade do século XIX, e cujo objetivo foi produzir um documento utilizável para pesquisas futuras. A diferença estava em que o ponto de partida na iniciativa francesa foi desenhá-lo em um formato eletrônico por meio da decomposição em camadas vetorizadas. No final, pretendia-se que a superposição dos planos (o vetorizado e o manuscrito) permitisse interpretar precisamente as diferenças. A correção geométrica é operada segundo um posicionamento num sistema de referência único dos pontos dos quais se sabe que não mudaram, por representarem uma mesma realidade física em duas datas diferentes. 911 Pensávamos que seria fácil num segundo momento comparar o mapa desenhado a partir da imagem original do século XVIII com a planta mais recente de Ouro Preto de que dispomos (de 2006). Este procedimento, contudo, mostrou-se absolutamente ineficaz, pois a planta manuscrita não contém indicação de qualquer sistema geodésico de referência (característica, aliás, comum à planta de Lyon). Por não ser georreferenciado, o resultado não nos assegurava o rigor necessário. De qualquer maneira, esta primeira confrontação foi importantíssima para avançarmos, pois já nos permitiu observar a ocupação de terrenos vazios, o desaparecimento de ruas e o surgimento de novas construções incorporadas às construções do século XVIII. Com esse propósito de utilizar recursos de sistemas de informação, procura-se tornar conceitos abstratos visíveis através da representação visual do espaço urbano. O manuseio das informações colidas nas fontes (Tombos de Ouro Preto 1812; Décima predial de Ouro Preto; 1809; Lista nominativa de Ouro Preto 1804, Planta de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar 1784)912 auxiliada pelos recursos GIS tem como propósito revelar como esse processo de mudança e continuidade é visualmente revelado pela cidade. Através do uso do GIS, visa-se mapear essas mudanças urbanas ligadas à situação econômica e social que esta localidade (Ouro Preto) sofreu ou não com os retrocessos e avanços devido ao fim da exploração massiva de seus recursos naturais. Neste trabalho a tecnologia será aplicada como instrumento de análise e crítica do espaço urbano construído e modificado. Os Sistemas de Informações Geográficas “englobam em um só sistema as funções de documentação, análise, representação, visualização e monitoramento, que podem auxiliar o estudo da evolução da forma urbana e suas respectivas interfaces na paisagem”. 913 Assim é possível

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GAUTHIEZ, Bernard Gauthiez. Lyon en 1824-32: un plan de la ville sous forme vecteur d’après le cadastre ancien. Géocarrefour, v. 83, p. 57-68, 2008. 912 ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO/Planta de Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar; autor: P. D. Almeida; colorido, nanquim, tinta colorida, aquarela, com legenda, com seta norte, escala em braças, papel canson telado, bom estado, 83cm x 29cm; localização: 5.051.1131. ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO/COLEÇÃO CASA DOS CONTOS DE OURO PRETO/Décima predial de Ouro Preto; 1809; volume 3540; rolo 215/fotograma 1130. ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO/COLEÇÃO CASA DOS CONTOS DE OURO PRETO/Lista nominativa de Ouro Preto; 1804 [distritos: Morro, Antônio Dias, Alto da Cruz, Cachoeira do Campo, Padre Faria, Água Limpa, Taquaral, Cabeças]; rolo 620/fotogramas 0119. LIVRO DE TOMBOS 1806 - Sesmaria do Termo de Ouro Preto. AN rolo 215, fotograma inicial 1130. 913 Definição sobre os Sistemas de informação que se enquadram na proposta desta pesquisa. ROCHA, Heliana Faria Mettig. Visualização Urbana Digital: Sistemas de Informações Geográficas e Históricas para o Bairro do Comércio – Salvador. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

277 ISSN 2358-4912 fazer o cruzamento dos dados das fontes já citadas, ou a partir de iconografias antigas de pouca precisão, no caso o mapa de 1784 que apresenta precisão cartográfica distorcida, e relacioná-los com dados atuais criando uma nova fonte: um mapa da região central de Vila Rica que contenha a população distribuída neste espaço físico. Esta amostragem será um dos produtos desta pesquisa. Com esses resultados é possível nutrir estudos futuros voltados à interpretação deste espaço urbano.

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Referências ALMEIDA, Carla M. Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. (orgs). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Ed.UFJF, 2006. BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Códigos e Práticas: o processo de constituição Urbana em Vila Rica Colonial (1702-1748). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2004. CARRARA, Angelo Alves. Espaços urbanos de uma sociedade rural: Minas Gerais, 1808-1835. Varia História, Belo Horizonte, n. 25, p. 144-164, 2001. CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais; produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 16741807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007. FERLA, Luis. Implementação de GIS Histórico no Campus de Humanidades da UNIFESP e projetopiloto sobre a urbanização de São Paulo (1870-1940). Comunicação apresentada no Congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos (San Francisco/Califórnia, 23- 26 de maio de 2012). REIS FILHO, Nestor Goulart. A urbanização e o urbanismo na região das minas. São Paulo: FAU/USP, 1999. ROCHA, Heliana Faria Mettig. Visualização Urbana Digital: Sistemas de Informações Geográficas e Históricas para o Bairro do Comércio – Salvador. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento – residências. São Paulo: Perspectiva, 1997.

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PRESCRIÇÕES SOBRE A MORTE NOS ESCRITOS RELIGIOSOS DO BRASIL COLONIAL (SÉCULOS XVII E XVIII) Clara Braz dos Santos914 O padre Nuno Marques de Pereira (1652–1731?), em seu Compêndio narrativo do peregrino da América915, ressalta um aspecto recorrente nos escritos religiosos e de cunho moralista que circularam nos vários cantos do Brasil durante os séculos XVII e XVIII, qual seja: a necessidade de todos os católicos, independente do lugar social que ocupassem na colônia, de se lembrar da morte cotidianamente para que pudessem se livrar de todos os pecados cometidos no decorrer vida, garantindo, portanto, a salvação de suas almas. Assim, afirma Pereira, que É muito necessário que vós não esqueçais de que haveis de morrer, porque não há coisa mais importante para livrar aos homens de ofender a Deus, do que a repetida lembrança da morte. E diz Santo Agostinho, que esta lembrança há de ser de todos os dias, para que estejam os homens aparelhados para quando Deus os chamar a dar contas de suas vidas.916

A lembrança da morte era um elemento fundamental para os fiéis fugirem dos pecados, pois garantia o cultivo de uma vida virtuosa, centrada no cuidado da alma, na constatação de que a vida é passageira, bem como os valores mundanos. Em outras palavras, era o exercício moral de memória da morte – o ato de lembrar e refletir sobre a própria morte como se ela já tivesse ocorrido ou em vias de acontecer – que merecia importância e era estimulado nos católicos por diversos escritos correntes na época, como os sermões, panegíricos, livros de devoção, parábolas e sonetos. Desse modo, o esquecimento da morte era, como afirma Pereira917, muito grave, já que conduziria os homens e as mulheres ao pecado. Para confirmar essa assertiva, o autor sugere que a primeira medida de Satanás para induzir Adão e Eva ao pecado, que resultou na queda do paraíso, foi justamente tirar a lembrança da morte de seus pensamentos e meditações. Nesse mesmo sentido, o frei capuchinho Antônio do Rosário (?–1704) alerta aos católicos, em seu livro de devoção denominado Feira Mística de Lisboa918, que o Diabo estimula os pecadores a continuar preferindo as vaidades mundanas919 à vida virtuosa por meio do esquecimento da morte, porque sem a consideração da morte não seria possível saber que o homem está no mundo apenas de passagem, e que deveria se preocupar continuamente com a salvação da alma, uma vez que o corpo não seria nada além de pó. Mas, afinal, quais eram os vícios mais recorrentes entre aqueles que se esqueciam da morte? Haveria diferenças entre os pecados cometidos por colonos e escravos? Da mesma forma, é preciso questionar quais eram as virtudes conquistadas pelos fiéis ao lembrarem-se cotidianamente da morte, com o intuito de compreender em que consistia a salvação da alma no Brasil dos séculos XVII e XVIII. Antes, porém, de respondermos a essas questões, é preciso entender porque a tópica da morte esteve tão presente nos escritos religiosos durante esses dois séculos na colônia. 914

Mestranda em História e Cultura Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 915 O livro de Nuno Marques de Pereira obteve grande repercussão no Brasil, possuindo cinco edições impressas durante o século XVIII. Cf.: RODRIGUES, Anna Maria Moog. Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, Estudos Filosóficos, São João del-Rei, UFSJ, n. 7, 2011, p. 33. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014. 916 PEREIRA, Nuno Marques de. Compêndio narrativo do peregrino da América, em que se tratam vários discursos espirituais, e morais, com muitas advertências, e documentos contra os abusos, que se acham introduzidos pela malícia diabólica no estado do Brasil. Lisboa: Officina de Antônio Vicente da Silva, 1760, p. 459. 917 Ibidem, p. 459. 918 ROSÁRIO, Antônio do. Feyra Mystica de Lisboa, armada em hua trezena do divino Portuguez, Santo Antonio [...]. Lisboa: Officina de João Galrão, 1691. 919 Ibidem, p. 105.

279 ISSN 2358-4912 É sabido que, desde o século XVI, os primeiros jesuítas já falavam sobre a morte e, principalmente, sobre a importância de sua memória para catequizar os índios do Brasil920. Na Carta dos meninos do colégio da Bahia ao P. Pedro Domenech921, por exemplo, é destacada a obrigatoriedade dos jesuítas darem “meditações da morte, juízo, ou semelhantes coisas”, aos negros e índios, e que durante todas as manhãs “lhes prati[quem] da morte e inferno e da paixão de Nosso Senhor”922. Mas é somente a partir do século XVII que o tema da morte passa a ser discutido com maior consistência, não apenas pelos homens da Igreja Católica, como Antônio de Araújo (1566–1632), o primeiro religioso a escrever um catecismo de índios no ano de 1618, com um capítulo voltado especificamente para a meditação da morte923 e demais novíssimos do homem – purgatório, inferno e paraíso –, mas, também, por um Sebastião da Rocha Pita (1660–1738), Juan Lopes de Sierra (?–?), ou mesmo Gregório de Mattos (1636– 1696)924, que, mesmo não possuindo cargos eclesiásticos, buscavam moralizar seus leitores e ouvintes através do discurso sobre a morte propagado pela Igreja, o que nos leva a pensar que tal discurso era naturalizado no Brasil do seiscentos, até o final do setecentos. Além disso, é nesse momento, também, que vemos uma produção e circulação sistemática de textos que falam especificamente sobre a morte, como os sermões e suas vertentes fúnebres, e os manuais ou livros devocionais que ensinavam os fiéis bem morrer. Após esses dois séculos, no decorrer do oitocentos, a tópica da morte não será tão recorrente nos textos religiosos e de cunho moralizante, além de passar a existir um novo discurso sobre a morte no Brasil, o médico, que começa a ser construído em finais do setecentos e que se propagará, paulatinamente, no decorrer do século XIX, a partir da construção das primeiras escolas de medicina em 1808925. Segundo o historiador João José Reis, a morte passa a ser vista por alguns doutores como símbolo de perigo à vida, seja pelo enterro desordenado nas igrejas, onde a decomposição do cadáver poderia contaminar o ar prejudicando a saúde dos vivos, seja pela duração das cerimônias fúnebres, como as exéquias reais, que exigiam “excessivos dobres de sinos”926 das igrejas, uma vez que “a morte não deveria ser lembrada por representar uma espécie de chamamento”927. É possível afirmar, então, que a temática da morte e, principalmente, a preocupação em exercitar moralmente a memória da morte, com objetivo de garantir uma vida virtuosa e, por conseguinte, a salvação da alma, foi predominante no Brasil durante os séculos XVII e XVIII. Tal preocupação estava relacionada a uma concepção escatológica da Igreja Católica que não compreendia a morte como um fim, mas como uma passagem da alma ao além-túmulo, que, dependendo dos pecados ou virtudes dos fiéis em vida, poderia ser o inferno ou o paraíso. Em alguns casos, devido à prática de pecados veniais, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

920

Cf.: KOK, Maria da Glória. Os vivos e os mortos na América Portuguesa: da antropofagia a água do batismo. São Paulo: FAPESP, 2001, pp. 148-149; AZZI, Riolando. Teologia da salvação. In: _______. A teologia católica na formação da sociedade colonial. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, pp. 288-310; CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro (séculos XVI-XVII). São Paulo: Alameda, 2011, p. 96. 921 Segundo Serafim Leite, não é possível saber ao certo quem a escreveu, pois não está identificada, mas acreditase que o padre José de Anchieta (1534–1597) ou Francisco Pires (?–1586) sejam seus autores. Cf.: LEITE, Serafim. Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/ Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940, pp. 141-142. 922 Ibidem, p. 153. 923 ARAÚJO, Antônio de. Catecismo na lingoa brasílica, no qual se contem a summa da doctrina christa. Com tudo o que pertence aos Mysterios de nossa sancta Fé & bõs costumes [...]. Lisboa: Por Pedro Crasbeeck, 1618, Não paginado. 924 Cf.: PITA, Sebastião da Rocha. Breve Compendio, e Narraçam do Funebre Espectaculo, que na insigne Cidade da Bahia, cabeça da America Portugueza, se vio na morte de El Rey D. Pedro II [...]. Lisboa: Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709; SIERRA, Juan Lopes. Vida o panegírico fúnebre ao senhor Afonso Furtado Castro do Rio de Mendonça [...]. In: SCHWARTZ, Stuart; PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 67–290; MATOS, Gregório de. Reflete o poeta sobre sua pobreza, para se conformar com a vontade divina. In: SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995, pp. 113-116. 925 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 255. 926 Ibidem, p. 263. 927 Ibidem, p. 266.

280 ISSN 2358-4912 as almas poderiam aguardar o julgamento em um lugar intermediário e probatório, o purgatório928. Porém, como afirmam os textos da época, quem se esquecia de cuidar da própria alma através do pensamento voltado para a morte, dando, portanto, atenção apenas à vida terrena, cometia pecados mortais. Dentre eles, os mais recorrentes no Brasil, ou seja, aqueles que clérigos e moralistas enfatizavam continuamente, seja em relação aos colonos, seja em relação aos escravos, eram a soberba e a vaidade. Essa ênfase é explicada porque esses pecados desviavam os fiéis do verdadeiro conhecimento de si, que, segundo o jesuíta Antônio da Silva (1639–?) se resumia às seguintes constatações: “é homem, há de ser terra, e saiba que na geração foi culpa, no nascimento pena, na vida miséria, na morte desengano” 929. Nesse sentido, só era possível aos fiéis conhecerem a si mesmos através da constatação da perenidade da vida, e era essa constatação que reforçava as responsabilidades morais do cristão, que se resumiam, sobretudo, ao cultivo das virtudes. Nas palavras do padre José Pereira Veloso (?–?), em um sermão pregado em Pernambuco em 1691, “o maior soberbo que houve foi Lúcifer, e para vencer a sua soberba, foi necessário maior humildade”930. Da mesma forma, frei Francisco Augusto (? –?), em uma licença emitida ao sermão de quaresma do padre José de Araújo e Lima (? –?), persuade sobre a importância da virtude da caridade, em contraposição ao excesso de vaidade dos homens que viviam nas Minas, que, por serem “ricos e poderosos”, se preocupavam apenas com os “bens caducos” 931. Questionamos, então, como era possível que esses pecados relacionados ao esquecimento da morte, fossem cometidos tanto por colonos, quanto por escravos, uma vez que se vinculavam aos bens terrenos? De acordo com o que nos indicam esses escritos dos séculos XVII e XVIII, os pecados cometidos pelos homens comuns, ou seja, aqueles que não tinha um lugar de destaque na sociedade colonial, bem como por escravos, decorriam das faltas cometidas pelos homens de prestígio social. O carmelita Manoel Ângelo de Almeida (1697–?) evidencia bem essa concepção através de um de seus sermões, afirmando que os grandes deveriam ter maior controle de suas condutas e afetos, “porque o pecado dos superiores são pecados públicos, e os erros públicos sempre são danosos a quem os comete, e a quem os vê cometer” 932. Afirma, ainda, que “os pecados públicos sempre causam escândalo, o escândalo gera facilidade; e quando nada, pecando o superior, pecam os súditos, e vem os súditos, dessa forma, a padecer pelos pecados do superior” 933. Podemos ver também em outros conjuntos de textos, como os manuais para senhores de escravos de Jorge Benci (1650?–1708) e Manuel Ribeiro Rocha (?–1778)934, que, em relação aos escravos, essa lógica era muito mais rígida, pois eles eram considerados rudes por esses religiosos, sendo sua educação moral responsabilidade única de seus senhores – e não dos religiosos –, já que os senhores eram seus donos e, portanto, tinham total controle sobre seus corpos e almas. Assim, os pecados que os escravos cometiam sempre eram reflexo dos pecados de seus senhores. É nesse sentido que Benci afirma que “pode[mos] inferir, qual é a principal causa de escandalosa vida com que ordinariamente vivem os escravos, e escravas do Brasil [...] se nos senhores e nas senhoras não veem exemplo de cristãos, se não escândalos próprios de gentios”.935 E continua questionando os senhores de escravos, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

928

RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 260. 929 SILVA, Antônio da. Sermoens das Tardes das Domingas da Qvaresma Pregadas Na Matris do Arrecife de Pernambuco No anno de 1673 [...]. Lisboa: Officina de João da Costa, 1675, p. 30. 930 VELOSO, José Pereira. Sermam do Glorioso Arcanjo S. Miguel, Com Commemoração do Officio que se faz pelas Almas do Purgatorio, Pregado Na Igreja Matriz do Arrecife de Pernambuco [...]. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1691, p. 8. 931 LIMA, José de Araújo e. Sermão que na Quarta Dominga da Quaresma Expoz em a Cathedral de Mariana Nas Minas do Ouro Anno de 1748 [...]. Lisboa: Officina dos Herdeiros de Antônio Pedrozo Galram, 1749, p. 4. 932 ALMEIDA, Manoel Ângelo de. Declamação Moral, que na occasiam da rogativa, que fez a venerável ordem terceira do Carmo da Bahia com huma devotissima Procissão de penitencia, por causa da grande secca, que sentio a mesma Cidade da Bahia desde o anno de 1734 até o presente de 1735 [...]. Lisboa: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, 1736, p. 14. 933 Ibidem, loc. cit. 934 Cf.: BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores de escravos. Lisboa: Oficina de Antônio Rossi, 1705; ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, emprenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758. 935 Ibidem, p. 99.

281 ISSN 2358-4912 dizendo: “que importa que lhes ensine com palavras o modo com que hão de viver cristamente, se a má vida de seu senhor desmente com costumes viciosos da doutrina que lhes dá?”936 Os homens e mulheres de prestígio social, como reis, rainhas, príncipes, princesas, clérigos e governadores deveriam ser os exemplos dos demais, pois eram eles que deveriam estar de acordo com os preceitos da Igreja Católica e propagar as palavras e imitar as ações de Cristo, mantendo, assim, a ordem dessa sociedade estamental. Era, pois, através das posturas desses homens e mulheres que os fieis deveriam se basear para seguirem suas vidas, caso fossem pecaminosos ou virtuosos, os seus súditos também seriam. Por esse motivo, um dos principais veículos de propagação do discurso sobre a morte e sobre a importância de rememorá-la foi a parenética fúnebre. Dito de outro modo, através do exemplo da boa morte de homens e mulheres de prestígio considerados exemplares em seus cargos porque eram verdadeiros cristãos, ou seja, desprendidos das questões mundanas e preocupados com a morte durante toda existência, que os pregadores puderam mostrar como reis, rainhas, príncipes, princesas, governadores e clérigos deveriam se portar para também serem virtuosos e se livrarem dos vícios. Da mesma forma, buscavam ensinar aos demais fiéis que eles deveriam imitar esses homens de prestígio para também obterem a salvação de suas almas. As virtudes exaltadas nesses elogios fúnebres, decorrentes do pensamento voltado para a morte durante toda a vida eram, principalmente, as teologais. O jesuíta Sebastião do Vale Pontes (1663– 1736), por exemplo, em uma oração fúnebre pregada na Catedral da Bahia em 1729, nas exéquias de D. Rodrigo de Moura Telles (1644–1728), declara no final da primeira parte de sua prédica, que buscará comprovar como o arcebispo teve uma “feliz morte”, pois se tratava de um dos religiosos mais virtuosos que já viu, sendo sua principal virtude o “temor de Deus”, a única que permite “que a vida seja boa [...] e que a morte seja feliz” 937. Além do temor a Deus, outras três virtudes foram destacadas pelo pregador: a sua piedade, demonstrando “muita afinidade com a religião e o culto divino”, além disso, “tinha oração e meditação muito freqüente e contínua, todos os dias dizia e ouvia a missa”, era extremamente caridoso, construindo uma série de edifícios para igreja e ajudava frequentemente os pobres com esmolas938. Ademais, o arcebispo tinha o costume de fazer mortificações com certa frequência, o que indicava ainda mais o seu fervor religioso e o desprezo para com as coisas mundanas. O beneditino Mateus da Encarnação Pina (1687–1703), nas exéquias do rei D. João V, celebradas na capitania do Rio de Janeiro939, também se preocupou em ensinar para os seus ouvintes que apenas a vida virtuosa era merecedora do paraíso. No caso da morte dos reis, rainhas, príncipes e princesas, além das virtudes aqui já mencionadas – temor a Deus, desprezo às coisas mundanas, caridade e piedade –, as virtudes cardeais – a prudência, a temperança, a justiça e a fortaleza – ganhavam maior destaque, porque eram necessárias, segundo os manuais políticos e religiosos da época, para que fossem monarcas perfeitos. Na morte dos governadores, as mesmas virtudes eram destacadas, como podemos ver no elogio dedicado à morte de Roque da Costa Barreto (?–1677), proferido pelo carmelita Manuel da Madre de Deus Bulhões (1666–1738), na Bahia, no ano de 1699940. Segundo o pregador, Costa Barreto morreu muito cedo, mas não repentinamente, como acontecia com os pecadores, pois havia se preparado para o último momento, exercitando durante a vida as virtudes cardeais e, principalmente, as teologais. Todavia, essa brevidade deixava a notícia de sua passagem cheia de tristeza, fazendo com que o pregador falasse demasiadamente em sua oração sobre a brevidade da vida e da fragilidade do homem, este que é, em última instância, pó. Nas exéquias das rainhas, princesas e nobres, as mesmas virtudes eram exaltadas. O pregador, aqui já citado, Manuel da Madre de Deus Bulhões, na oração pregada, em 1731, em decorrência da morte da senhora Mariana de Alencastro, mãe de um dos governadores da Bahia, destaca bem as suas virtudes, estas que, segundo ele, a auxiliaram a alcançar a bem-aventurança e que seriam úteis a todos os fiéis como exemplo para se espelharem e salvarem suas almas: “a primeira é a observância dos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

936

Ibidem, p. 99. PONTES, Sebastião do Vale. Oração Funebre nas Exequias do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Rodrigo de Moura Telles [...]. Lisboa: Officina da Música, 1730, pp. 5, 6. 938 Ibidem, p. 7. 939 PINA, Mateus da Encarnação. Sermão Nas Exequias Del Rey Fidelissimo D. João V. Que o Senado da Camera da Cidade do Rio de Janeiro fez celebrar, na Sé da mesma Cidade, em 12 de Fevereiro de 1751 [...]. Lisboa: Officina de Ignácio Rodrigues, 1752. 940 BULHÕES, Manuel da Madre de Deus. Sermam Funebre Nas Exequias do Senhor Roque da Costa Barreto [...].. Lisboa: Officina de Manuel Lopes Pereira, 1619. 937

282 ISSN 2358-4912 mandamentos da lei de Deus, a segunda é o desprezo das coisas terrenas, a terceira é o amor para com Deus, e a quarta é a caridade para com os pobres.” 941 Vemos, portanto, que nesses textos era somente uma vida voltada para a morte que garantiria a salvação da alma. Nesse sentido, sem seu relato minucioso, destacando as virtudes e as obras pias dos elogiados, não era possível comprovar que esses homens e mulheres de prestígio gozavam da eterna bem-aventurança, impossibilitando que os demais fiéis pudessem se espelhar em suas atitudes para que também se salvassem. Diferentemente, pois, das concepções propagadas pelos primeiros religiosos da Companhia de Jesus aos índios do século XVI, que previam uma preparação para a morte, substancialmente, através do batismo, das orações e atos de contrição no leito de morte942, nos séculos XVII e XVIII, os pregadores, bem como outros moralistas, passaram a dar destaque à vida virtuosa, e esta seria alcançada apenas por aqueles que tinham consciência de que o destino de todos os homens era a morte, conformando-se e preparando-se para a partida cotidianamente através de sua memória. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALMEIDA, Manoel Ângelo de. Declamação Moral, que na occasiam da rogativa, que fez a venerável ordem terceira do Carmo da Bahia com huma devotissima Procissão de penitencia, por causa da grande secca, que sentio a mesma Cidade da Bahia desde o anno de 1734 até o presente de 1735 [...]. Lisboa: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, 1736. ANCHIETA, José de. Doutrina cristã: catecismo brasílico. São Paulo: Edições Loyola, 1992. ARAÚJO, Antônio de. Catecismo na lingoa brasílica, no qual se contem a summa da doctrina christa. Com tudo o que pertence aos Mysterios de nossa sancta Fé & bõs costumes [...]. Lisboa: Por Pedro Crasbeeck, 1618. BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores dos escravos. Lisboa: Officina de Antônio Rossi, 1705. BULHÕES, Manuel da Madre de Deus. Sermam Funebre Nas Exequias do Senhor Roque da Costa Barreto [...]. Lisboa: Officina de Manuel Lopes Pereira, 1619. _______. Oraçam Concionatoria Nas Sumptuosas exéquias da Excellentissima Senhora D. Marianna de Alencastro [...]. Lisboa: Officina de Pedro Ferreira, 1732. LIMA, José de Araújo e. Sermão que na Quarta Dominga da Quaresma Expoz em a Cathedral de Mariana Nas Minas do Ouro Anno de 1748 [...]. Lisboa: Officina dos Herdeiros de Antônio Pedrozo Galram, 1749. MATOS, Gregório de. Reflete o poeta sobre sua pobreza, para se conformar com a vontade divina. In: SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995, pp. 113-116. PEREIRA, Nuno Marques de. Compêndio narrativo do peregrino da América, em que se tratam vários discursos espirituais, e morais, com muitas advertências, e documentos contra os abusos, que se acham introduzidos pela malícia diabólica no estado do Brasil. Lisboa: Oficina de Antônio Vicente da Silva, 1760. PINA, Mateus da Encarnação. Sermão Nas Exequias Del Rey Fidelissimo D. João V. Que o Senado da Camera da Cidade do Rio de Janeiro fez celebrar, na Sé da mesma Cidade, em 12 de Fevereiro de 1751 [...]. Lisboa: Officina de Ignácio Rodrigues, 1752. PITA, Sebastião da Rocha. Breve Compendio, e Narraçam do Funebre Espectaculo, que na insigne Cidade da Bahia, cabeça da America Portugueza, se vio na morte de El Rey D. Pedro II [...]. Lisboa: Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709. PONTES, Sebastião do Vale. Oração Funebre nas Exequias do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Rodrigo de Moura Telles [...]. Lisboa: Officina da Música, 1730. ROCHA, Manuel Ribeiro. Etíope resgatado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758. ROSÁRIO, Antônio do. Feyra Mystica de Lisboa, armada em hua trezena do divino Portuguez, Santo Antonio [...]. Lisboa: Officina de João Galrão, 1691. SIERRA, Juan Lopes. Vida o panegírico fúnebre ao senhor Afonso Furtado Castro do Rio de Mendonça [...]. In: SCHWARTZ, Stuart; PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o 941

Idem. Oraçam Concionatoria Nas Sumptuosas exéquias da Excellentissima Senhora D. Marianna de Alencastro [...]. Lisboa: Officina de Pedro Ferreira, 1732, p. 7. 942 ANCHIETA, José de. Doutrina cristã: catecismo brasílico. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

283 ISSN 2358-4912 panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 67–290 SILVA, Antônio da. Sermoens das Tardes das Domingas da Qvaresma Pregadas Na Matris do Arrecife de Pernambuco No anno de 1673 [...]. Lisboa: Officina de João da Costa, 1675. VELOSO, José Pereira. Sermam do Glorioso Arcanjo S. Miguel, Com Commemoração do Officio que se faz pelas Almas do Purgatorio, Pregado Na Igreja Matriz do Arrecife de Pernambuco [...]. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1691. AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro (séculos XVI-XVII). São Paulo: Alameda, 2011. KOK, Maria da Glória. Os vivos e os mortos na América Portuguesa: da antropofagia a água do batismo. São Paulo: FAPESP, 2001. LEITE, Serafim. Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/ Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. RODRIGUES, Anna Maria Moog. Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, Estudos Filosóficos, São João del-Rei, UFSJ, n. 7, pp. 30-36, 2011. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014. RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. SCHWARTZ, Stuart; PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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FAMÍLIAS PORTUGUESAS, LARES MINEIROS: UMA ANÁLISE DA PRESENÇA DE PORTUGUESES EM COMUNIDADES RURAIS DE MINAS GERAIS – SÉCULO XVIII Clara Garcia de Carvalho Silva* O presente trabalho apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa ainda em andamento, na qual procuramos traçar o perfil socioeconômico das famílias constituídas e chefiadas por indivíduos de origem declarada portuguesa que chegaram a Minas Gerais no século XVIII. A região mineira escolhida para este estudo foi a da Borda do Campo, Comarca do Rio das Mortes, formada por pequenas localidades que se formaram em função da extração aurífera vinculada a atividades voltadas para uma produção para o mercado interno. Nesta fase inicial da pesquisa buscamos analisar os registros paroquiais de batismos realizados nessas pequenas comunidades rurais com o intuito de identificar as famílias, bem como as origens lusitanas de seus chefes; as origens de suas esposas; o tecer de redes relacionais descortinados pelos apadrinhamentos. Reveladas tais informações, pensaremos na funcionalidade da família como uma prática de restituição dos laços familiares que ficaram para trás após a travessia do Atlântico e que, consequentemente, proporcionaram a fixação desses indivíduos às terras da América Portuguesa. Ao final do século XVII, o ouro é dado oficialmente como descoberto na região de Minas Gerais. A notícia de tal descoberta provocou o afluxo de milhares de pessoas vindas de outras partes da Colônia e até mesmo de Portugal, dando início a um intenso processo de ocupação do espaço em torno das minas (OLIVEIRA, 2012). Nas primeiras décadas do século XVIII, a ocupação da região foi marcada pelo esforço da Coroa portuguesa para controlar a área mineradora, mantendo a população sob vigilância para garantir a exploração mineral, cobrança de impostos régios e envio de parte do ouro para o outro lado do Atlântico. Entre os anos de 1701 e 1702, o Caminho Novo já era utilizado para o fluxo de pessoas e mercadorias, viabilizando a saída do ouro de aluvião, bem como o abastecimento da região aurífera. A movimentação das tropas demandava a existência de pontos de abastecimento que contribuíssem para o bom resultado do projeto da metrópole de ocupação e exploração da fronteira que se abria. Paralelamente à atividade mineradora começou a se desenvolver o cultivo de roças e criação de animais ao longo do caminho, impulsionando o desenvolvimento de atividades rurais na região. Nas primeiras décadas dos setecentos, os primeiros povoados que surgiram em função da atividade mineradora começaram a adquirir um caráter mais estável com a construção de uma capela e pequenas moradias em torno desta e ao longo dos caminhos. Formaram-se, então, as primeiras pequenas comunidades agrárias ao redor do Caminho Novo (RESENDE, 2009). O Termo da Borda do Campo, localizado na serra da Mantiqueira e hoje correspondente à região do entorno de Barbacena, foi uma das regiões que serviu de passagem aos viajantes do Caminho Novo em direção aos núcleos mineradores de Minas Gerais. A região possuía solos férteis e agricultáveis, propícios para o estabelecimento de lavouras, roças e criações, e ainda terras minerais não exploradas, o que levou à formação de núcleos de povoamento – como Nossa Senhora da Conceição de Ibitipoca, Santa Rita do Ibitipoca, Santana do Garambéu, São Domingos da Bocaina –, caracterizados pela pequena propriedade, posse de cativos e com uma lógica socioeconômica e cultural de unidades agrícolas familiares de caráter camponês (OLIVEIRA, 2010). O contínuo movimento populacional para a região das Minas trouxe muitos portugueses para o exercício de cargos na administração civil, militar e como membros do clero, que trabalhavam junto a Coroa na organização da ocupação da região em torno da área mineradora. No entanto, a descoberta do ouro e de pedras preciosas não atraiu apenas os ilustres homens do reino. Outros tantos portugueses, a maioria pobre em sua terra de origem, viram em tal descoberta, bem como na oportunidade de acesso a terra na América Portuguesa, a esperança de mudança da qualidade de vida e assim vieram atraídos pelas possibilidades enriquecimento na exploração mineral e também pela expectativa de mobilidade social baseada na posse de terras na fronteira que se abria na região das Minas. Para muitos destes indivíduos, a travessia do Atlântico ocorreu apenas uma vez: desembarcaram na América, formaram famílias, se fixaram à terra e nunca mais regressaram a Portugal (PEREIRA, 2009). *

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.

285 ISSN 2358-4912 Nesta primeira etapa da pesquisa, o ponto de partida de nosso trabalho foi identificar as famílias presentes na Borda do Campo no século XVIII cuja figura paterna fosse de origem portuguesa. Para isso, contamos com o corpus documental que permite a identificação dos núcleos familiares: os registros paroquiais de batismos. Para esse período foram coletados 4592 registros de batismos realizados nas paróquias dos povoados da região escolhida para o estudo.943 Entre esses, identificamos 1090 assentos em que o pai do batizando declara ser de origem portuguesa. Com a elaboração de fichas individuais para cada registro, centradas na figura paterna de origem lusa, constatamos que muitos indivíduos levaram inocentes a pia batismal por mais de uma vez. Para evitar o equívoco de duplicações de indivíduos e, em consequência, a duplicação de famílias, foi necessário filtrar ainda mais os registros coletados em uma segunda base de dados para que houvesse apenas uma entrada por chefe de família. Desta maneira, chegamos a 295 famílias cuja chefia é de responsabilidade de um imigrante português. Ao analisarmos as origens lusitanas dos pais das crianças batizadas nas comunidades eleitas para o estudo, chegamos ao seguinte quadro:

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 01 – Origens dos Pais Portugueses Províncias* Portugueses

Arquipélago dos Açores

Entre-Douroe-Minho

Beira

Estremadura

Alentejo

Dados incompletos

295

117

138

7

26

5

2

100%

40%

47%

2%

9%

1,5%

0,5%

*As nomenclaturas das províncias estão baseadasna divisão das regiões portuguesas de 1758. Fonte: Registros Paroquiais de Batismos – AEAM e CMJF.

Os resultados confirmam a tendência já apresentada por Donald Ramos (1993) e outros estudiosos do movimento migratório de portugueses para Minas Gerais no século XVIII: é forte a presença de indivíduos oriundos do Noroeste de Portugal, sobretudo do Minho (47%), na região aurífera. A província do Minho, formada pelos distritos de Viana do Castelo, Braga e Porto, era a mais densamente povoada entre todas as províncias portuguesas e a possessão de bens fundiários simbolizava poder e prestígio social. Segundo Caroline Brettell (1991), a maioria dos estudos sobre o caráter do sistema fundiário e estrutura social descrevem o Noroeste português como uma região de minifúndio, herança divisível e explorações agrícolas familiares de pequena escala, voltadas para a auto-subsistência. Mesmo a terra sendo a base da sustentação familiar, poucas famílias minhotas eram proprietárias do espaço em que cultivavam o seu sustento. O domínio direto das propriedades pertencia, em geral, aos grandes senhorios, interessados apenas na coleta de seus rendimentos, que eram frutos do trabalho de camponeses que possuíam contratos para explorarem as terras. Em meio a este domínio senhorial, havia pequenos proprietários de alguns terrenos de pouca importância, que não garantiam a sobrevivência de um agregado familiar, sendo necessário aliar ao trabalho dessas pequenas propriedades a exploração dos domínios senhoriais. A densidade populacional exercia forte pressão sob a divisão das terras. Com o tempo, apesar de todos os esforços dos senhores para evitar a sua fragmentação, as terras a serem exploradas foram sendo fracionadas para satisfazer a necessidade de um número cada vez maior de famílias. Sendo assim, as propriedades assumiam um tamanho cada vez mais reduzido, trazendo dificuldades para a divisão da herança que deveria ser igualitária – o que ocasionaria a fragmentação e a falência do patrimônio da família (DURÃES, 2002). Impossibilitados de uma mobilidade social baseada na posse de terra, a solução para muitos minhotos seria partir para outras localidades, inclusive para o Brasil, que passava por um período de abertura de fronteiras em Minas Gerais e trazia a possibilidade de enriquecimento com o acesso e cultivo das terras do outro lado do Atlântico. Outro dado significativo refere-se à presença de indivíduos açorianos na região das Minas, representantes de 40% do total de portugueses que batizaram seus filhos na Borda do Campo. Ao estudar a migração dos Arquipélagos dos Açores para Rio Grande de São Pedro no século XVIII, Ana 943

Os registros paroquiais de batismos estão sob custódia da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora e do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, doravante CMJF e AEAM.

286 ISSN 2358-4912 Silvia Volpi Scott (2012) ressalta que os movimentos migratórios açorianos tem sido frequentemente entendidos como um mecanismo de regulação destinado a amenizar os desequilíbrios demográficos da região, as crises de subsistência – dada a abundância de população em relação aos recursos disponíveis – ou até mesmo as recorrentes catástrofes naturais. Além desses dados, Volpi Scott lança mão dos trabalhos de Martha Hameister (2006) para acrescentar o impacto que os regimes sucessórios não igualitários teriam sobre aquelas populações. O sistema de heranças e propriedades então vigentes em Portugal levava à exclusão sistemática de parcelas da população do acesso à terra, obrigando-os a abandonar a exploração agrícola e recorrer, muitas das vezes, à emigração. Mônica Oliveira (2011) aponta para a ideia de que muitos desses portugueses partiram para tão desconhecida região mediante o garantido acesso a sesmarias. No entanto, a historiadora alerta para a funcionalidade da sesmaria enquanto mercê, que recompensava e favorecia apenas indivíduos que prestavam serviços a Coroa. Desta maneira, para aqueles que não recebiam tal benefício restava apenas o risco de se aventurar em uma emigração para áreas pouco articuladas ao núcleo minerador, aproveitando-se até mesmo de uma ausência de fiscalização sobre as terras para ocupá-las. No que tange à posse da terra, dos 295 personagens desta pesquisa, localizamos apenas 13 indivíduos (4%) como sesmeiros, ou seja, que obtiveram suas terras através de doações feitas pela Coroa portuguesa. Em uma relação de posseiros da região, encontramos 33 portugueses. Assim como para os posseiros, para os demais indivíduos que não apareceram na documentação – embora seja difícil afirmar e quantificar a emigração livre – é possível que tenha lhes restado a aventura em busca do enriquecimento com o ouro e com as terras de além-mar. A Borda do Campo, menos articulada aos centros mineradores e menos sujeita ao controle da Coroa, foi também o destino de muitos desses homens que não contavam com os benefícios legais dados por Portugal aos colonizadores. Os personagens centrais desse trabalho não se enquadram, portanto, na nobreza do Reino, com seus conquistadores, homens de negócio ou burocratas, mas sim entre os pobres emigrantes que almejavam melhores condições de vida e se aventuraram ao partir para o Brasil. Ao chegarem às novas terras, se depararam com novas situações que exigiam comportamentos estratégicos para melhor adaptação: o estabelecimento de redes relacionais revelou-se um dos mais importantes meios para adequação às novas circunstâncias encontradas. O fenômeno da migração era uma constante em Portugal: seus habitantes saíam em busca de melhores condições e almejavam retornar às suas terras de origem após a conquista de seus objetivos. O trabalho de Caroline Brettel (1991) sobre as consequências da emigração no Noroeste português demonstra que essa foi uma realidade para alguns emigrantes, mas também houve aqueles que nunca mais regressaram às suas comunidades. Ao estudar os membros da elite mineira setecentista, Carla Almeida (2006) constatou a forte fixação de portugueses na região das Minas. De acordo com Mônica Oliveira (2009), em regiões de fronteira, como a Borda do Campo, a formação de famílias funcionou como uma estratégia de restituição dos laços familiares que ficaram para trás após a travessia do Atlântico e, consequentemente, esses laços proporcionaram o enraizamento dos recém chegados. Ao analisarmos a naturalidade das esposas dos portugueses aqui apresentados, chegamos ao seguinte quadro: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 02 – Origens das Esposas dos Portugueses Portuguesas

Esposas

Arquipélago dos Açores 34

Naturais da Colônia EntreDouro-eMinho 5

Minas Gerais

Rio Janeiro

115

19

de

São Paulo

Dados incompletos

26

295

39

160

96

100%

13%

54%

33%

Fonte: Registros Paroquiais de Batismos – AEAM e CMJF.

A maioria das uniões foi realizada com mulheres que se autodeclararam naturais da colônia (54%), com destaque para as referências às localidades da Capitania de Minas Gerais, como a própria Borda

287 ISSN 2358-4912 do Campo, Mariana e São João Del Rei; seguidas pelas da Capitania de São Paulo, como Jacareí, Mogi, Pindamonhangaba e Taubaté; e, por fim, pela Capitania do Rio de Janeiro, que é citada de forma geral. Acerca dos casamentos entre portugueses (13%), destacam-se as uniões com mulheres naturais das ilhas Atlânticas, especificamente dos Açores. Destes, foram identificados 27 casais com naturalidade declarada açoriana, sendo os outros 12 casais portugueses de origens mistas (açorianos e minhotos; açorianos e naturais da Estremadura, por exemplo). Possivelmente as uniões em que os cônjuges são de origem lusa ocorreram ainda no Reino, antes mesmo da emigração para a América Portuguesa. Entre os dados incompletos (33%), constatamos, através da análise da naturalidade dos avós maternos, que 6 esposas são filhas de casais de portugueses, o que pode significar que elas também são naturais de Portugal; e que 14 são filhas de pai português e mãe natural da Colônia (também das Capitanias apresentadas no Quadro 02). Entre os demais dados, encontramos esposas designadas como pardas e índias, além de mulheres que não possuem a naturalidade declarada, mas que aparecem como descendentes de mulatas ou pretas forras. Em Barrocas Famílias – Vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, Luciano Figueiredo ressalta que com o desenvolvimento da mineração nas Gerais a Coroa tomou medidas mais consistentes em relação a sua política familiar, que visava combater as uniões ilícitas e a miscigenação da população. Além do estímulo às relações legais, o Estado estimulava o casamento entre a população de pura descendência portuguesa, na tentativa de preservar a pureza racial. No entanto, os dados encontrados para a região da Borda do Campo demonstram o grande número de uniões que ultrapassam essa noção de preservação de uma raça pura. A presença de casais cujas esposas são índias, pardas e descendentes de mulatas ou pretas forras pode ser explicada pelas características da própria região: fortemente ruralizada, predomínio de pequenas propriedades e o mínimo controle da Coroa marcado pela ausência de Câmara na localidade. Nessas condições, as uniões matrimoniais poderiam ocorrer de forma mais livre, longe das diretrizes e olhares do Estado português, e mais adequadas às possibilidades apresentadas por comunidades de natureza ainda inóspita. O matrimônio apresentava-se, portanto, como uma primeira estratégia de vida: casar significava recriar os laços familiares que ficaram em Portugal. A segunda estratégia percebida foi a extensão das redes relacionais através dos apadrinhamentos, que se revelam um importante instrumento de solidariedade em função do dom e contra dom, comportamento característico do Antigo Regime. Dos 1090 assentos de batismos analisados, em 258 registros a origem do padrinho do batizando é especificada: desses, apenas um é natural do Reino e todos os outros se declararam naturais de localidades da Capitania de Minas Gerais, como Ibitipoca, São João Del Rei, Mariana, Prados, entre outras. Essa tendência se repete entre as madrinhas que declararam suas origens (223): apenas uma também é portuguesa, dos Açores, e as demais são das próprias Minas. Percebemos, assim, que as redes tecidas na pia batismal transcendiam o parentesco – certamente, muitos desses homens vieram acompanhados de irmãos, primos, tios e sobrinhos – e também se baseavam na amizade, vizinhança ou mesmo nos negócios aqui realizados. O compadrio significava o fortalecimento dos laços de identidade entre aqueles que acabavam de chegar e aqueles que já estavam estabelecidos na América Portuguesa. Os laços estreitados pelas relações compadrescas se tornaram, portanto, um significativo recurso de ajuda mútua que colaborou para a superação das dificuldades encontradas pelos reinóis no Novo Mundo. Os laços matrimoniais e de afinidade proporcionaram a segurança necessária para que os portugueses se fixassem às terras de além-mar e não mais regressassem a Portugal. Seguindo a lógica econômica da região, eles constituíram unidades agrícolas de economia doméstica nas pequenas comunidades rurais da Borda do Campo do século XVIII. O próximo passo da pesquisa é a análise de suas propriedades, através de inventários post-mortem, comparando-as às características da vida camponesa que estes indivíduos buscaram superar com a partida para a América Portuguesa.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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288 ISSN 2358-4912 BRETTELL, Caroline. Homens que partem, mulheres que esperam: consequências da emigração numa freguesia minhota. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991. DURÃES, Margarida. A posse da terra na região rural de Braga no século XVIII. In: Ler História. n. 43. Lisboa, 2002. pp. 57-83 HAMEISTER, Martha. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Indivíduos, famílias e comunidades: trajetórias percorridas no tempo e no espaço em Minas Gerais, séculos XVIII e XIX. In: ALMEIDA, C. & OLIVEIRA, M. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Ed FGV, 2009. pp-209-238. _____. Senhores, roceiros e camponeses: apontamentos para uma história das comunidades rurais dos setecentos colonial. In: ECHEVERRI, A. M. A., FLORENTINO, M. & VALENCIA, C. E. (Orgs). Impérios Ibéricos em Comarcas Americanas: estudos regionais de história colonial brasileira e neogranadina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. pp. 165-196. _____. Avô imigrante, pai lavrador, neto cafeicultor: análise de trajetórias intergeracionais na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX). In: Varia História. vol 27, n. 46. Belo Horizonte: UFMG, 2011. _____. Famílias dos Sertões da Mantiqueira. In: Revista do Arquivo Publico Mineiro. v XLVIII. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2012. pp. 100-115. RAMOS, Donald. From Minho to Minas: the portuguese roots of the Mineiro family. History of the American Historical Review. n. 4, vol.73, 1993. pp. 639-662. PEREIRA, Ana. Luiza de Castro. Unidos pelo sangue, separados pela lei: família e ilegitimidade no Império Português, 1700-1799. Tese de doutorado. Braga, Universidade do Minho, 2009. RESENDE, Edna. M. Os senhores do Caminho Novo: notas sobre a ocupação da Borda do Campo. In: Mal-Estar e Sociedade. Ano II, n. 2. Barbacena, 2009. pp. 121-143. SCOTT, Ana Silvia Volpi. Gentes das Ilhas: migração açoriana para o Rio Grande de São Pedro. In: Anais do XVIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo: ABEP, 2012. SCOTT, Ana Silvia Volpi; MATOS, P.T.; SANTOS, C.; BERUTE, G.S. & CARVALHO, G.P. Casais de Ilhéus: a migração do Arquipélago dos Açores para o Rio Grande de São Pedro (décadas de 1740 a 1790). In: Anais do X Congreso de la Asociación de Demografía. Albacete: ADEH, 2013. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A NATUREZA DA AMAZÔNIA COLONIAL COMO SUAS “BOTICAS BEM PROVIDAS” EM MEIO AS EPIDEMIAS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Claudia Rocha de Sousa944 No decorrer da história da humanidade há um aspecto sempre presente, mesmo que em alguns momentos estejam em segundo plano, – quase camuflado em meio aos mais diversos âmbitos da história humana – é o meio natural, que como foi observado por Raymond Williams, no texto Ideias de Natureza, até para definir a natureza têm-se dificuldade devido a sua complexidade, alterações de usos e experiência. Williams busca os diferentes sentidos e relação do homem com a natureza, desde a natureza como ministra de Deus; a natureza singular, essencial, com leis consistentes e conciliáveis. Do século XVII ao XIX a natureza torna-se um “advogado constitucional”, a partir do final do século XVIII e início do XIX a ideia de natureza se alterou para a de uma criadora seletiva945. De acordo com Raymond Williams foi somente ao final do século XVIII e do XIX que se passa a ter noção de que a natureza tinha história, pois havia a possibilidade do homem ser descrito em termos de processos naturais. Têm-se a percepção do lugar do homem na natureza e de sua intervenção no meio natural946. Em meio a esse debate sobre a ideia de natureza e a relação do homem com o meio que lhe rodeia, o presente artigo se direciona para as questões das epidemias ocorridas na primeira metade do século XVIII na Amazônia Colonial. Períodos esses que culminaram em uma nova reordenação da sociedade, haja vista que com a elevada mortandade causada pelos surtos de varíola e de sarampo, havia uma carência constante das práticas medicinais, levando os moradores a voltaram-se para os recursos naturais e para os saberes indígenas como forma de sanar essa lacuna, pois como afirmou o padre jesuíta João Daniel “nas suas muitas ervas, raízes e arbustos têm os americanos boticas bem providas”947. Para além da problemática das práticas de cura, as epidemias prejudicavam a economia e as relações de trabalho, a primeira em consequência de as maiores vítimas dessas moléstias serem os índios, e por serem o principal “instrumento” de “sustentação” dos moradores948, sua ausência prejudicava as coletas do sertão, a navegação dos rios, o comércio, o plantio das fazendas e a construção de fortes, igrejas, casas. Como solução para a falta de mão-de-obra escrava, ocorria nesses períodos inúmeras solicitações de descimentos indígenas, ou que enviassem escravos africanos para o antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará em substituição aos índios, por serem mais resistentes as doenças. Questões da natureza Em seu livro O homem e o mundo natural Keith Thomas, analisa os sentimentos, atitudes, pensamentos e fundamentos na relação entre os homens e o mundo natural na Inglaterra dos séculos XV ao XVIII, tendo, no entanto, o cuidado de não generalizar o debate. Inicialmente relata a diferença feita entre 944

Graduada em História pela Universidade Federal do Pará (UFPa). Mestranda em História pelo Programa de Pós Graduação em História Social da Amazônia (PPGH) da Universidade Federal do Pará (UFPa). Bolsista da CAPES. 945 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 94-98. Para maiores informações sobre esse debate a cerca da ideia de natureza e a modificação de sua percepção no decorrer da história da humanidade ver: LENOBLE, Robert. História da Ideia de Natureza. Lisboa: Edições 70, p. 183-367, s/d. 946 WILLIAMS. O campo e a cidade, p. 98-99. 947 DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 383. O padre jesuíta João Daniel viveu como missionário na Amazônia por seis anos (1741-1757), quando foi expulso e preso em Portugal, sua obra foi escrita na prisão e “revela intensa vivência na região, admiração e interesse pela exuberante natureza descrita com detalhes e entusiasmo, o que torna o autor além de religioso naturalista”. ALMEIDA, M. R. C. de. Um tesouro Descoberto: Imagens do Índio na Obra de João Daniel. Tempo. Rio de Janeiro, nº 5, p. 153, 1995. 948 Carta de José Borges Valério ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 768, 8 set. 1725.

290 ISSN 2358-4912 homem e animal, em que os primeiros tinham direitos garantidos pela Bíblia e por autores da antiguidade, de utilizar-se do meio natural de acordo com seus interesses, o que legitimaria a exploração sem sentimento de culpa. Keith Thomas ressalta que os problemas ecológicos não eram exclusividade do Ocidente, e que era recorrente comparar o homem com o animal, afirmando a supremacia humana, para justificar a exploração e a matança dos animais. Havia também a associação de adjetivos negativos à comportamentos humanos, além da visão de que bebês, jovens, mulheres, pobres e mendigos possuíam características sub-humanas. No contexto colonial, em especial em relação a escravidão, os escravos eram vistos e tratados como animais, pois ao serem “percebidas como bestas, as pessoas eram passíveis de serem tratadas como tais”949. A mudança de sensibilidade referente aos animais, deve-se ao fato de que alguns animais deixaram de ser instrumentos de trabalho, em consequência da emergência de uma nova ordem industrial, onde os homens não dependiam mais dos animais como ferramentas. Nesse aspecto da relação entre homem e animais, Philippe Descola afirma que a simpatia com os animais varia de acordo com as tradições culturais, em que há uma hierarquia na simpatia do homem aos animais, onde as espécies mais próximas estão no ápice. Afirma também que a sociedade é “fonte de direito” administrada pelo homem, e por serem “condenadas as violências para com os humanos que as violências com relação aos animais se tornam condenáveis”950. Portanto, por meio dos autores acima citados podemos perceber o quanto a questão da natureza é complexa, pois em diferentes períodos possuíam significados diferentes, despertavam sentimentos diversos, o que evidencia a impossibilidade de desassociar a história social da natural. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As epidemias na Amazônia colonial Em relação à propagação de doenças Alfred Crosby em seu livro sobre o Imperialismo Ecológico, relata que o europeu partia para a conquista de novos territórios levando consigo sua cultura, ervas, animais e patologias; ressaltando que as doenças foram o fator fundamental para a efetivação do sucesso do imperialismo europeu. Entretanto, deve-se observar que a visão de Crosby é determinista, ou “biocêntrica”, o autor destaca o papel das epidemias no processo de colonização, mas relativiza a ideia do genocídio consciente por parte do europeu951. Crosby relata que o sarampo era uma doença infantil e benigna entre os europeus e chineses, mas mortal para os povos que a desconheciam. A varíola, por sua vez, era a “pior de todas e a mais temida” em consequência de sua “rápida disseminação, aos altos índices de mortalidade e ao muito que desfigurava os sobreviventes”, e por ser uma doença epidêmica com “periódicas depredações, a cada dez, vinte ou trinta anos, os jovens eram inteiramente suscetíveis, e uma geração inteira podia ser perdida em umas poucas semanas”952. De acordo com Hermann Schatzmayr a varíola “teria surgido na Índia, sendo descrita na Ásia e na África desde antes da era cristã”, era presença constante entre os africanos, que, por já terem entrado em contato com essa patologia, possuíam maior força contra ela953. Argumentação essa que acede com a análise de Nauk de Jesus, que afirma que a varíola seria uma doença endêmica na África e na Europa e sua propagação na América estaria diretamente relacionada aos desembarques de europeus e africanos, uma vez que se tratava de uma doença exclusiva do gênero humano954. Ainda sobre o surgimento da varíola no Brasil o cientista alemão Carlos Frederico von Martius, no início do século XIX, em sua obra sobre as doenças dos índios brasileiros, afirma que a varíola era “completamente desconhecida pelos índios, antes do povoamento português”, e após a 949

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (15001800). São Paulo: Companhia das Letras, p. 31-60, 2010. 950 DESCOLA, Philippe. Estrutura e Sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 4 (1), 1998, p. 23-25. 951 CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico. A expansão biológica da Europa, 900 – 1900. Companhia das Letras, 2002. 952 Ibidem, p. 45-46. 953 SCHATZMAYR, Hermann G. A varíola, uma antiga inimiga. Cadernos de Saúde Pública, vol. 17, nº 6, nov./dez. 2001, p. 1525-1530. 954 JESUS, Nauk Maria de. Saúde e Doença: Práticas de Cura no Centro da América do Sul (1727-1808). Dissertação de mestrado em História – Universidade Federal de Mato Grosso, 2001, p 37.

291 ISSN 2358-4912 colonização com a “tremenda rapidez e desumanas consequências, se alastra até aos mais remotos ermos” sendo temida por cada tribo como o mais “pernicioso veneno para seu sangue”. Para ressaltar as mazelas causadas por essa doença, Martius alega que em tupi a varíola é chamada de “Mereba-ayba” que significa “doença maligna”955. Segundo Ronald Raminelli a intensa mortandade dos índios em períodos epidêmicos era consequência do fato de que os indígenas residentes nas aldeias “trabalhavam mais do que comiam, faziam jejuns forçados ou ingeriam apenas farinha de mandioca e água”, sendo assim, a falta de alimentação enfraquecia-os facilitando o contágio das doenças e fazendo da Amazônia uma região em que as epidemias e a carência de trabalhadores fosse constante956. Em setembro de 1725 o ouvidor-mor do Pará, José Borges Valério relata sobre uma epidemia que grassou entre 1724-25 causando elevada mortandade entre brancos, e “mais de mil escravos”, principalmente os índios. O governador João Maia da Gama dava conta do início do contágio que teria ocorrido durante a viagem do bispo do Pará, do Maranhão a Belém, durante a qual em uma das canoas apareceram dois índios doentes. Ao pararem na aldeia do Caeté, lá foram deixados os enfermos; porém, ao chegar à aldeia de Maracanã havia mais dois doentes que, assim como os primeiros, ali ficaram. Essa medida tinha o objetivo inicial de evitar a disseminação do contágio, acabou trazendo poucos resultados, pois ao aportarem em Belém, havia mais seis índios bexigosos. Para evitar que esses índios doentes propagassem as bexigas em Belém, o governador mandou isolá-los em uma casa vigiada por guardas957. Entretanto, as medidas preventivas não evitaram o alastramento da varíola; segundo o governador, o restante dos remeiros da Companhia de Jesus e trabalhadores pertencentes a um sargento que viajara na mesma canoa em que o bispo estava, também se contaminaram com a doença; dessa forma, aos poucos o contágio se estendeu por toda a cidade. Para agravar a situação, os índios doentes deixados na aldeia de Caeté “infeccionaram e atearam o contágio na dita aldeia”; os que ficaram em Maracanã acabaram por alastrar a contaminação “que levou logo oitenta e tantas pessoas fora dois que se não sabia e morreram no mato para onde fugiram”. Ainda de acordo com o relato de João da Gama, essas fugas ocasionaram o contágio nas dez ou doze aldeias circunvizinhas da capitania do Pará, “onde morreram muitos, e se despovoaram todas”; segundo ele alguns dos que fugiam para o mato se livravam da doença, porém os que escapavam já “feridos do contágio” acabavam morrendo. Dessa forma, percebe-se a partir das notícias dessas fugas, o temor dos índios em se contaminar com a varíola. As fugas dos indígenas em período epidêmico eram algo constante, devido ao medo do contágio, levando os indígenas a se deslocarem para o sertão ou para as aldeias vizinhas958. Martius relatou sobre esse pavor dos índios para com a varíola, referindo-se a um caso que ocorreu durante uma viagem do governador do Estado do Grão-Pará, Mendonça Furtado; segundo o relato, a bordo do navio que conduzia o governador do Pará a Macapá surgiu a notícia de um “varioloso”; o medo dos índios remeiros foi tão elevado que se jogaram “em alto mar e, a nado, preferiam alcançar as praias, a tentar ficar em companhia dos brancos”, afirmou que alguns índios ao “terem a notícia da erupção da epidemia, não fogem de casa para o esconderijo distante, em caminho reto, porém fazem toda sorte de voltas, imaginando deste modo, escapar ao inimigo perseguidor”959. Em novembro de 1744, – vinte anos após o grande surto epidêmico anterior (1724), o que acede com a afirmação de Crosby que descreve a varíola como sendo uma doença com “periódicas depredações”960 – o governador José de Abreu Castelo Branco escreve para o secretário do Maranhão e Ultramar relatando as mazelas causadas por uma epidemia, na qual relatava que desde agosto de 1743 a capitania do Pará e todos os seus distritos padeciam de uma “grande mortandade” pelo contágio de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

955

MARTIUS, Carlos Frederico Phil. von. Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros (1844). Companhia Editora Nacional, 1939, p. 98. 956 RAMINELLI, Ronald. Depopulação na Amazônia Colonial. XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Anais. Belo Horizonte: ABEP, 1988, p. 1371. 957 Carta de José Borges Valério ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 768, 8 set. 1725. 958 Carta de João Maia da Gama ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 757. 2 set. 1725. 959 MARTIUS, Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros, p. 99. 960 CROSBY, Imperialismo ecológico, p. 45.

292 ISSN 2358-4912 bexigas; o estrago fora tanto que resultou numa fuga das aldeias, onde um número elevado de indígenas morrera. O governador informava também que, em fins de 1744, a doença encontrava-se quase extinta961. Sobre o surgimento do contágio de 1743, o governador Francisco Pedro de Mendonça Gurjão relatava ao rei que a contaminação na capitania do Pará iniciara por meio do contato com os índios tirados dos sertões do Rio Negro; teria a doença durando três anos, com grande mortandade “tanto de índios, como mestiços e alguns brancos nacionais”. Informava ainda que no ano em que chegara ao Estado, 1747, continuavam as queixas das mortes, embora em menor número. Entretanto, em novembro de 1748, estando na cidade de São Luís, o governador teve avisos de que chegaram ao Pará moradores que viajaram ao sertão para a colheita das drogas, de onde trouxeram um “novo mal contagioso”. Depois de entrarem em contato com as “aldeias domesticadas” ao longo do Amazonas, “contaminou a esta cidade e suas capitanias”962. Este “novo mal” tratava-se, segundo Antônio Baena, de uma epidemia de sarampo963. Francisco Gurjão escrevia ainda que mandou os oficiais militares realizarem na semana santa (tempo em que os moradores recolhiam-se à cidade) a contagem do número de mortos nas 450 casas que se achavam com habitantes, o que seria metade da população da cidade, pois ao todo possuía 900 fogos. Contou-se o número de 4900 pessoas falecidas na cidade do Pará; por achar que não havia tantos moradores na cidade quanto havia nas relações de mortos, o governador pretendia efetivar uma contagem em toda a capitania do Pará e regiões adjacentes, como as aldeias desde os rios Solimões e Negro até o Caeté; tratava-se de uma tarefa complicada, pois além da distância, a mortandade continuava nessas localidades964. De qualquer modo, em consulta à carta do governador, o Conselho Ultramarino apresentava listagens do número de mortos no Pará; uma delas dava o número de 3348 (incluindo as fazendas dos padres jesuítas); a outra contava 3061 mortos (referindo-se especificamente à freguesia da Campina, em Belém)965. Dados elevados eram apresentados junto a uma carta dos oficiais da Câmara de Belém ao rei, de maio de 1750. Ao lado de várias certidões assinadas por missionários das aldeias de índios, contabilizando o número de mortos, havia um “Resumo da gente falecida do serviço das religiões e das aldeias que administram e dos moradores desta cidade”. O saldo do contágio totalizava 18377 mortos, sendo 7600 dos moradores de Belém, e o restante do serviço e aldeias das ordens religiosas966. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As práticas de cura em períodos epidêmicos A carência de médicos habilitados e os problemas para obter remédios vindos de Portugal e do Oriente, já que muitas vezes, em consequência da longa viagem os medicamentos poderiam chegar deteriorados, levaram os moradores a procurar na natureza e nos conhecimentos curativos dos índios a solução dessa dificuldade967. Em uma carta datada de 1744, têm-se um relato de uma epidemia que ocorreu em todo o Brasil, em que se afirma que esse país era muito sensível ao contágio da varíola, e por possuir poucos habitantes necessitava muito da mão-de-obra indígena, principalmente de médicos para descreverem e tratarem as doenças968. 961

Carta de José de Abreu de Castelo Branco a Antônio Guedes Pereira. Pará. Maranhão (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 28, doc. 2885, 30 nov. 1744. 962 Carta de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão ao rei. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 31, doc. 2910, 26 abr. 1749. 963 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compendio das eras da provincia do Pará. Belém: Typographia de Santos & Santos menor. 1838, p. 228-229. 964 Carta de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão ao rei. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 31, doc. 2910, 26 abr. 1749. 965 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei. Lisboa. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 31, doc. 2976, 16 maio 1750. 966 Carta da Câmara de Belém ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 32, doc. 3001, 15 set. 1750. 967 CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil Colonial. Tempo, Rio de Janeiro, n° 19, jul./dez. 2005, p. 61. 968 Correspondências da Metrópole com os Governadores (1728-1756). Códice 13. Arquivo Público do Estado do Pará. doc. 12, 1744.

293 ISSN 2358-4912 No contexto colonial, a relação doença/castigo divino era recorrente. Para Nauk Maria de Jesus, prevalecia a ideia de que a enfermidade era ocasionada por algum mal feito de um individuo ou de um grupo, e que em consequência disso recebia a merecida punição, e que para evitar a ocorrência das moléstias era necessária vigilância permanente para manter um equilíbrio com o meio. A autora afirma ainda que existiam crenças similares entre os ameríndios e africanos, que geralmente percebiam as causas das doenças graves como sendo “feitiçarias, transgressões de tabus alimentares, regras ecológicas, resguardo pós-parto e descumprimento de deveres para com os deuses”969. Em meio às trágicas consequências das epidemias os religiosos possuíam um papel importante na administração do socorro. Um relato da epidemia de varíola que assolava a capital do Pará na década de 1720, refere-se que o Bispo Dom Bartolomeu visitava as casas dos enfermos para dar-lhes conforto970. O governador João Maia da Gama, por sua vez, em carta ao rei, datada de 1725, destacava que foi “providência de Deus” o curso de teologia dos padres da Companhia de Jesus ter se mudado para essa capitania, pois os religiosos teriam “continuamente de dia e de noite” auxiliado aos moradores, “confessando, catequizando, batizando, e ajudando a bem morrer” por meio de sua “caridade, com as suas mãos lavando e limpando muitos, indo buscar lenha, buscar panela, acender fogo, e fazer caldos”, função essa fundamental porque em muitas casas não havia quem cuidasse dos doentes “estando em muitas dez, e doze enfermos, deste hediondo, horroroso, e pestilento mal”971. O relato do governador João da Maia da Gama ao rei, expõem as trágicas consequências para a cidade, descrevendo os medicamentos aplicados nessa terrível situação, pois ao se ver “rodeado de lágrimas e de choros, mais também de ver o desamparo geralmente de todos” serviu aos moradores o que possuía em sua casa “galinha, marmelados, biscoito, farinha do reino, triagas e bezoárticos”, fabricou com as suas “mãos remédios” como os “bezoárticos que era a infusão do esterco do cavalo, remédio que aponta o curso, para fazer sair as bexigas” fez também vinhos enxofrados na forma que usava “Hipócrates para a peste”, receita que tinha em um caderno que foi retirado de um senhor estrangeiro, tendo usado dele e do “enxofre consertado, e bebido em aguardente” utilizou também “casca de cajueiro, árvores de fruto agreste, mas que todos comem aqui em todo o Brasil”972. O padre jesuíta João Daniel relata as doenças mais mortais para os índios e os métodos de cura praticados pelos indígenas; descreve que o suadouro era o método mais utilizado na América, e que produziria bons efeitos, sendo utilizado para a “constipação dos poros nos resfriamentos” explicando que os índios cozinhavam em um tacho ou panela bastante grande, algumas ervas medicinais “mocura caa, pajé, merioba, e muitas outras aperientes”, e depois de estarem bem fervidas, sentava-se o doente em uma cadeira furada e com pouca roupa, para que ao ser exposto ao calor fosse expelindo o suor, e depois de alguns minutos, acrescentava-se alguns “ladrilhos” já “vermelhos em brasa”, na panela para conservar o calor. O padre afirma que o “suor é tanto que ainda depois de abafados na cama, suam e tressuam os constipados”, destaca que, nas várias moléstias que grassavam nas colônias portuguesas, as principais técnicas de cura eram advindas dos próprios recursos naturais, “porque nas suas muitas ervas, raízes e arbustos têm os americanos boticas bem providas”973. Entretanto, é importante destacar que para o padre João Daniel, na verdade, não era a doença que causava a morte dos infectados, pois o autor esclarecia que “ordinariamente saravam do sarampão”, mas posteriormente eram “assaltados os convalescentes quase de repente com febre maligna” que em poucos dias os matava devido a dois fatores, primeiro por não terem curado completamente do sarampão, cujos “pestíferos humores por não expelidos foram malignando-se em corrupção”; em segundo por não haver por “curiosidade, ou por ofício” alguém que fizesse anatomia nos cadáveres “porque vendo a grande multidão das lombrigas, já aos mais se poderia acudir com os remédios convenientes”974. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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JESUS, Saúde e doença, p. 25. Apud PINTO, Antonio Rodrigues de Almeida. O Bispado do Pará. A caridade de Dom Bartolomeu. ABAPP, tomo V (1906), pp. 28-29. 971 Carta de João Maia da Gama ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 757. 2 set. 1725. 972 Ibidem. 973 DANIEL, Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, p. 381-383. 974 Ibidem, p. 385-386. 970

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ISSN 2358-4912 Conclusão Por meio do presente artigo torna-se perceptível como os períodos epidêmicos ensejaram a necessidade de uma nova reordenação da sociedade colonial, em que as elevadas mortandades causavam transtornos nos mais variados aspectos, desde a economia aos problemas relacionados a falta de medidas curativas eficientes, que resultavam na busca em sua natureza de remédios que mesmo que não curassem completamente os doentes, ao menos minimizassem seu sofrimento. Conclui-se assim que durante a ocorrência das constantes epidemias que grassaram no Estado do Maranhão e Grão-Pará, haviam poucas maneiras eficazes de evitar a propagação das doenças, e as epidemias se alastraram em consequência dos aldeamentos, da fuga de índios já contaminados ou do próprio processo de colonização. Fazendo com que os conhecimentos, crenças e temores do povo indígena, europeu e africano se sincronizassem durante a colonização, e suas práticas de cura se relacionassem em meio às epidemias. Referências ALMEIDA, M. R. C. de. Um tesouro Descoberto: Imagens do Índio na Obra de João Daniel. Tempo. Rio de Janeiro, nº 5, p. 147-160, 1995. http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg5-7.pdf. Acessado em: 10 ago. 2013. Apud Antonio Rodrigues de Almeida Pinto. O Bispado do Pará. A caridade de Dom Bartolomeu. Anais do Arquivo Público do Pará, tomo V, p. 28-29, 1906. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compendio das eras da provincia do Pará. Belém: Typographia de Santos & Santos menor. 1838. CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil Colonial. Tempo, Rio de Janeiro, n° 19, p. 6175, jul./dez. 2005. http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n19/v10n19a05.pdf. Acessado em: 16 jan. 2010. Carta da Câmara de Belém ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 32, doc. 3001, 15 set. 1750. Carta de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão ao rei. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 31, doc. 2910, 26 abr. 1749. Carta de João Maia da Gama ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 757. 2 set. 1725. Carta de José Borges Valério ao rei. Belém. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 9, doc. 768, 8 set. 1725. Carta de José de Abreu de Castelo Branco a Antônio Guedes Pereira. Pará. Maranhão (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 28, doc. 2885, 30 nov. 1744. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei. Lisboa. Pará (Avulsos), Arquivo Histórico Ultramarino, caixa 31, doc. 2976, 16 maio 1750. Correspondências da Metrópole com os Governadores (1728-1756). Códice 13. Arquivo Público do Estado do Pará. doc. 12, 1744. CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico. A expansão biológica da Europa, 900 – 1900. Companhia das Letras, 2002. DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Vol. 1. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. DESCOLA, Philippe. Estrutura e Sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, 4 (1), p. 2345, 1998. http://www.ifch.unicamp.br/ihb/HZ868-06/DescolaAnimal.pdf. Acessado em: 20 set. 2013. JESUS, Nauk Maria de. Saúde e Doença: Práticas de Cura no Centro da América do Sul (1727-1808). Dissertação de mestrado em História – Universidade Federal de Mato Grosso, 2001. LA CONDAMINE, Charles-Marie. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas. Brasília: Senado Federal, 2000. LENOBLE, Robert. História da Ideia de Natureza. Lisboa: Edições 70, p. 183-367, s/d. MARQUES, Vera Regina Beltrão. Medicinas secretas – Magia e ciência no Brasil setecentista. In: CHALHOUB, Sidney et al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil, capítulos de história social. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, p. 163-196, 2003.

295 ISSN 2358-4912 MARTIUS, Carlos Frederico Phil. von. Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros (1844). Companhia Editora Nacional, 1939. RAMINELLI, Ronald. Depopulação na Amazônia Colonial. XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Anais. Belo Horizonte: ABEP, p. 1359-1376, 1988. SÁ, Magali Romero. A ‘peste branca’ nos navios negreiros: epidemias de varíola na Amazônia colonial e os primeiros esforços de imunização. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 11, nº 4 (Suplemento), p. 818-826, 2008. http://www.redalyc.org/pdf/2330/233020554008.pdf. Acessado em: 15 mar. 2010. SCHATZMAYR, Hermann G. A varíola, uma antiga inimiga. Cadernos de Saúde Pública, vol. 17, nº 6, p. 1525-1530, nov./dez. 2001. http://www.worldcat.org/title/variola-uma-antiga-inimiga/oclc/71154727. Acessado em: 15 mar. 2010. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ____________. “Ideias de Natureza”. In: Cultura e Materialismo. São Paulo: UNESP, p. 89-114, 2011. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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O ANOTADOR DE LIVROS E A BIBLIOTECA APREENDIDA: OS LIVROS DO CONDE DA EGA EM 1813 Cláudio DeNipoti975 A tarefa de se fazer história da leitura (do livro, da palavra impressa, do escrito, etc..) está profundamente associada à expansão, perpetrada por historiadores de diversos matizes, dos tipos de fontes que “servem” para falar do passado. Este paradigma, banalizado pela repetição e pelo uso frequente por diversas tradições historiográficas, está vigente e nos permite buscar interpretações intrínsecas a textos produzidos com objetivos radicalmente distintos daquele que norteia o olhar do historiador. Neste sentido, explorar um documento relacionado à história dos livros é, quase sempre, lançar um feixe de luz sobre práticas de leitura manifestas nas maneiras como as sociedades do passado organizaram, criaram ou apropriaram formas de sociabilidade relacionadas à palavra impressa. No caso em questão, interessa-nos o texto do Catalogo dos livros que foram do Ex Conde da Ega, os quaes por ordem do Illmo e Exmo Snr, Marquez de Borba se entregárão na Academia Real de Sciencias,976 manuscrito feito no âmbito da Intendência de Obras Públicas de Lisboa, em 1813, pelo escrivão Thomaz de Aquino Leal. Temos ai três personagens, mais ou menos conhecidos à sua época em função de status social, atuação política ou exercício de profissão. Nesta relação de notoriedade, o escrivão é o personagem sobre quem houve menos interesse historiográfico. Sobre ele sabe-se somente que foi escrivão das Obras Públicas ao menos até 1822, quando foi nomeado em um relatório das Cortes sobre “pessoas que tem officios incompatíveis ou indevidamente accumulados”.977 Ele somava a seu cargo de escrivão, o de Contador do Arsenal das Obras Militares, onde produziu mapas semanais, em 1820, sobre o funcionamento do arsenal, quartéis e fortificações.978 Voltaremos a ele quando retomarmos o documento propriamente dito. Cabe antes sabermos mais sobre outro personagem: o proprietário dos livros em questão. No contexto da expansão napoleônica, Portugal viu-se envolvido em uma série de conflitos chamados na tradição anglo lusitana de “Guerra Peninsular”, ou Guerra de la Independencia, na Espanha. Os conflitos, inaugurados em território português efetivamente em 1801, com a Guerra das Laranjas entre Portugal e Espanha, diziam respeito, de formas complexas, às tomadas de partido a favor, ou contrárias à política externa e às guerras promovidas por Napoleão Bonaparte. Os conflitos fizeram com que a Corte Portuguesa adotasse a solução de transferência para o Brasil, em 1807, às vésperas da primeira invasão efetiva de Portugal por forças francesas e espanholas.979 Durante a ocupação, o jogo político continuou, com “partidos” atuando em ambos os campos de apoio ou rejeição à política e ações francesas. O líder dos invasores, General Junot, proclamou a anexação de Portugal à França em fevereiro de 1808, e agiu visando ser nomeado regente, tentando manipular as lideranças portuguesas remanescentes para evitar a revolta que se organizava em Portugal e na Espanha, com apoio de forças inglesas, contra as forças invasoras francesas.980 Neste processo, “[...] havia uma facção da nobreza que apoiava as aspirações de Junot à Regência do reino […]. Representados pelo conde da Ega e seus seguidores”, indicavam que parte da nobreza aderiu à concepção de que Napoleão era, de fato, o “continuador da revolução de 1789”.981 A contrapartida a esta posição pode ser caracterizada como resultado do “medo francês”, presente 975

Departamento de História –UEPG. Grupo de Estudos Cultura e Educação na América Portuguesa. ACADEMIA REAL DAS CIÊNCIAS, Manuscrito 793, Série Azul 977 Diário das cortes geraes e extraordinarias da nacão portugueza. 28 de janeiro a 30 de abril de 1822. Lisboa: Na Imprensa Nacional, 1822, p. 483. 978 Mapas semanais do arsenal das obras militares e inspecção dos quarteis, sobre obras de fortificação e reedificação de quarteis e seus fornecimentos, assim como das pessoas que se empregam nestes trabalhos e sua despesa, assinados pelo brigadeiro Duarte José Fava, intendente-geral, fiscal e inspector, e por Tomás Aquino leal, contador. Arquivo Histórico Militar. PT/AHM/DIV/3/20/09/7. 1820, Janeiro, 5 – Agosto, 29 – Lisboa. 979 VICENTE, António Pedro. Guerra Peninsular; 1801-1814. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2007; VENTURA, António. Guerra das Laranjas; 1801. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2008. 980 VICENTE, … p. 52-54. 981 ARAÚJO, Ana Cristina. Napoleão Bonaparte e Portugal, patriotismo, revolução e memória política da resistência. Carnets, Revista electrônica de Estudos Franceses. Numéro spécial automne-hiver 2011-2012. p. 13-28. Disponível em http://carnets.web.ua.pt. Consultado em 03/03/2013. 976

297 ISSN 2358-4912 nos escalões administrativos portugueses desde princípios da década de 1790, e tipificado, inicialmente, como medo de uma invasão francesa do Brasil, ao mesmo tempo que se manifestava como medo da disseminação das ideias “propagadas no ideário iluminista”. Posteriormente, em especial entre 1796-1798, houve o medo de tentativas de revolução.982 Durante as várias fases e invasões da Guerra Peninsular, este medo surgiu também como revoltas e motins populares contra tudo o que fosse (ou se assemelhasse) vagamente francês. O segundo Conde da Ega (Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha) fez parte – liderou, talvez seja um termo mais adequado - da parcela da nobreza que via favoravelmente a aproximação com a França napoleônica. Com pouco mais de cinquenta anos à época da invasão de Portugal pelas tropas lideradas por Junot, o Conde, que assumiu o título em 1771, gozou de especiais atenções do Príncipe Regente ao participar da organização das defesas de Portugal em fins do século, inspecionando o fornecimento de munições para as diversas forças militares, colocando em ação “tudo quanto for concernente ao municiamento das Tropas dos mesmos Exércitos”.983 Ele também já atuara, em 1806, como embaixador de Portugal junto à corte de Madri, além da miríade tradicional de cargos, títulos e mercês que acompanham a nobreza lusitana em qualquer momento do antigo regime. Defensor, portanto, do “partido francês”, o Conde tornou-se próximo de Junot, recebendo-o frequentemente em seu palácio (de particular interesse aos historiadores hoje por abrigar o Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa). A proximidade era ainda maior pelo fato de a segunda esposa do Conde ter tido uma relação bastante escandalosa, à época, com Junot, tendo acompanhado-o de volta à França como sua amante. Também o Conde seguiu para Paris, onde ficou exilado até 1823. A defesa da invasão feita por Aires José Saldanha fica evidente nas cartas que escreveu, em 1808, ao General Godoy, principal aliado espanhol de Napoleão, e líder do exército espanhol na “Guerra das Laranjas”, de 1801 – prenúncio da década de conflitos que se seguiria.984 Nestes documentos, Aires reclamava que Dom João tivesse aceitado a opinião de “hu partido vil vendido á Inglaterra”, abandonando “vassalos fieis e constantes”; lamentava não participar da “deputação composta das primeiras pessoas da nobreza portuguesa [que] vai apresentar-se a Sua Majestade o Imperador dos franceses” ao mesmo tempo que dava notícias da partida da família real para o Brasil. Neste mesmo tom, o Conde da Ega vai ser o principal advogado da nomeação de Junot como rei de Portugal pelo imperador dos franceses.985 Com as reviravoltas da guerra, a península assistiu a gradual expulsão dos franceses por ações conjuntas de revoltas populares, ações de guerrilha e de estratégia militar tornadas famosas pela historiografia especializada.986 A retomada da vida política em Lisboa, mesmo na ausência do rei e da corte, foi feita inicialmente por processos judiciais contra os partidários da invasão. O Conde da Ega, que acompanhara a retirada francesa e exilara-se na França, com direito a uma pensão até a derrota final de Napoleão, foi condenado, in absentia, em 1811, à “morte natural” por garrote: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[…] Portanto, e o mais dos Autos, julgam que o Réo Ayres de Saldanha Albuquerque Coutinho Mattos e Noronha pelos factos expostos tem incorrido no horrorosissimo crime de Lesa Magestade de primeira cabeça, e de alta traiçaõ, [...] havendo-o por isso desauthorado de todos os Titulos, Honras, e Prerogativas Civis de que gozava, e o condemnaõ a que com baraço, e pregao seja conduzido á Praça, do Caes do Sodré, onde formando-se um alto Cadafalço, morrerá morte natural para sempre, de garrote, e sendo lhe depois decepada a cabeça, se reduza seu corpo a cinzas, que se lançaraõ ao Mar. E visto achar-se ausente, o haõ por banido, e mandam ás Justiças do dito Senhor, que appellidem contra elle toda a Terra para ser prezo, ficando livre a qualquer do Povo o poder matallo, estando certo de que he o proprio banido; e o condemnam outrosim em confiscaçaõ, e 982

MENDES, Ricardo Antonio Souza. O Medo francês. Métis: história & Cultura. v. 5, n. 10, p. 101-119, jul./dez. 2006, p. 102. 983 DECRETO, de 25 de novembro de 1796. Lisboa: Régia Officina Typographica, 1796. 984 VENTURA, Guerra das Laranjas; 985 BRANDÃO, Raul. El-Rei Junot, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1919. p. 232; 253-255 986 A Batalha da Serra do Buçaco entre o exército francês, comandado por Masena, e uma combinação de forças portuguesas e inglesas, comandadas por Wellington, é considerada o início da derrota plena de Napoleão, assegurada em Waterloo. Também as linhas de defesa construídas na região de Torres Vedras são frequentemente citadas como uma obra-prima de engenharia militar. Ver: VICENTE, Guerra Peninsular;...; Ver também FLETCHER, Ian. The Lines of Torres Vedras 1809-11. London: Osprey Publishing, 2012; GREHAN, John. The Lines of Torres Vedras: The Cornerstone of Wellington's Strategy in the Peninsular War, 1809-1812. London: Spellmount, 2000.

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ISSN 2358-4912 perdimento de todos seus bens para o Fisco, e Camera Real, revertendo e incorporando-se effectivameute na Coroa os que forem de Morgado, Feudo, ou Foro estabelecido em bens, que haja sido da mesma Coroa, [...] e pelo que respeita aos de Morgado, que seja constituido em bens patrimoniaes, ficaraõ pertencendo ao Fisco [...], em quanto naõ for effectivamente executada a Sentença, ou verificado o banimento, ou morte natural do Réo.987

Com a “confiscação e perdimento” dos bens, incluiu-se a biblioteca do castelo de Ega, que, por ordem do Marquez de Borba - D. Tomé Xavier de Sousa Coutinho de Castelo-Branco e Menezes - foi enviada para a Academia de Ciências de Lisboa, para ser incorporada à biblioteca daquela instituição. Dom Tomé foi um dos nobres convocados a organizar a transferência da Corte para o Rio de Janeiro,988 e deu a ordem de sequestro dos livros, enviando-os à instituição – a Academia de Sciencias – à qual pertencia seu filho, que, por sua vez, herdou o título de Marquês em outubro do mesmo ano de 1813 em que o catálogo estava sendo escrito por Tomaz de Aquino Leal. Sobre este último, sabe-se somente o que se apresentou acima, - que ele foi escrivão das Obras Públicas e contador do Arsenal das Obras Militares - mas é possível buscar, nas suas peculiaridades na escrita do documento, alguns traços de práticas relacionadas ao livro e à palavra impressa no passado – neste caso, em Portugal, no raiar do século XIX. Temos então um escrivão/contador transformado em anotador de livros que prepara uma longa lista de livros para funcionar tanto como inventário das apreensões de propriedades de um dos vários indivíduos julgados por traição naquele contexto, quanto para guiar a organização dos livros na Academia de Ciências – onde supõem-se que estes livros foram guardados. O que o texto do catálogo pode nos revelar? Inicialmente, se percebe a preocupação do anotador com o valor das obras, enfatizando, em uma coluna própria, quanto cada título e seus respectivos volumes valiam. Assim, a “História Geral do Peru ó Comentarios reales de los Incas”, de Garcilaso de la Vega, publicado em 1617, em quatro volumes, valia 1$600 réis, enquanto os cinco volumes do “Systema ou collecção dos regimentos reaes”, de 1783, foram estimados em 14$400 réis, e assim por diante. Neste tocante, quando havia motivo de desvalorização de uma determinada obra, Tomaz de Aquino Leal destacava-o ao descrever o livro, como a obra de Tito Livio, “Décadas” “muito mal tractado e incompleto”, e avaliada em 240 réis, ou a História Romana, de Suetonio, “de má edição”, avaliada em apenas 160 réis. A própria ordem dos livros no catálogo demonstra um viés econômico – em oposição a preocupações com a ordem do conhecimento, ou a ciência – na composição do documento. A única divisão colocada é entre “Folios” e “livros de oitavo”. Aqueles, compreendem os 689 primeiros títulos do documento (vinte e oito páginas), enquanto estes ocupam o resto das quarenta e seis páginas do documento, listando as 508 obras restantes (em um total, portanto de 1197 títulos anotados). Fólios, feitos a partir de uma única dobra da folha depois da impressão gerando somente quatro páginas para cada folha, são obras maiores, geralmente mais caras, melhor trabalhadas que os “oitavos” e suas três dobras e dezesseis páginas para cada folha impressa. Então, o autor lista inicialmente as obras mais caras, para, ao fim do catálogo, elencar os folhetins mais baratos e comuns. Um gráfico montado a partir dos valores enunciados no catálogo demonstra essa preocupação econômica com mais vigor:

987

SENTENÇA do Conde, e Condessa da Ega, pelo crime de Lesa Majestade. Correio Brasiliense ou Armazém litterario. Vol VI, Londres, Impresso por Lewis, Paternoster Row, 1911. p.286-292. 988 ANDRADE, Santiago Silva de - A Casa Real portuguesa: aspectos centrais da instituição na crise do Antigo Regime português (c.1780 1821) http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300871726_ARQUIVO_TEXTOANPUHSP2011.pdf, consultado em 13/05/2014.

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299

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Média de preços do catálogo de livros do conde da Ega 3000

m édia de preços

2500 2000 1500 1000 500 0 1

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Grupos de 50 livros, na ordem de anotação no catálogo

Fonte: CATÁLOGO DOS LIVROS QUE FORÃO DO EX CONDE DA EGA, OS QUAES POR ORDEM DO ILMO E EXMO SRN MARQUEZ DE BORBA SE ENTREGÁRAO NA ACADEMIA REAL DE SCIENCIAS989

Este foco sobre o valor financeiro das obras pode também ser a razão para o anotador fazer várias entradas depreciativas, em especial ao fim do catálogo, reunindo diversos livros em uma única linha, e apresentando-os de forma genérica, como os vinte e dois volumes listados à décima segunda página descritos como “Livros de Folio truncados e insignificantes”, ao valor de 6$000, além dos dez volumes de uma “colleção de papeis vários” estimada em 1$200, e 147 volumes (a 9$200) de “Livros Truncados, e insignificantes de quatro encadernados, um em pastas, outro em pergaminho e alguns em Broxura” com os quais o anotador termina a sessão de “Fólios” (mencionando o formato intermediário – in quarto – somente nesta entrada). É com o mesmo espírito que ele termina a sessão dos “Oitavos” listando “Duzentos e quarenta e oito volumes de diversas obras francezas tudo truncado” (valendo 19$200) e “Duzentos e doze volumes de Oitavo, e doze insignificantes”, avaliadas em 4$400 réis. O que ele quer dizer com insignificante neste caso? O termo sequer aparece nos dicionários de português do fim do século XVIII e início do XIX. Bluteau, por exemplo, traz os vocábulos “Significação” (“o sentido que as palavras encerrão e contem”) “significado”, “significador” (significativo) e “significativo”, (“que tem significação e sentido”),990 variando pouco nos dicionários subsequentes, como o “Novo dicionário da Lingua Portugueza”, de 1806 e o dicionário de Moraes Silva, de 1813.991 Não obstante, o termo é bastante recorrente. Nas Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de 1789 o termo aparece relacionado a rendimentos e colheitas,992 ao passo que no Fazendeiro do Brasil, do frei Velozo, o termo se refere a medidas de grãos, e combinação de cores.993 Isto não significa, contudo, que a insignificância atribuída por Leal a estes livros é exclusivamente econômica, mas não temos elementos para conclusões em qualquer sentido. Cabe notar também que Leal escreveu o catálogo a partir de uma ideia de familiaridade com as obras ali contidas – ou, pelo menos, com a maioria delas – citadas sem maiores referências que permitam, por exemplo, identificar de qual obra se trata. O “Escola do Andrade”, “Arte Poetica do Pina” e a “Logica do Aranha” são exemplares desta prática de anotação, permitindo somente que a referência completa do último livro fosse localizada (a Disputationes logica de Silvestre Aranha, publicada pela sociedade de Jesus, em 1736). Esta noção de familiaridade permite imaginar duas possibilidades: 1) 989

ACADEMIA REAL DAS CIÊNCIAS, Manuscrito 793, Série Azul BLUTEAU, Rafael. Diccionario da língua portugueza. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeio Ferreira, 1789, p. 400. 991 Novo dicionário da Lingua Portugueza; Lisboa: Typographia Rollandiana, 1806: s./p.; SILVA, Antonio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portuguesa Recopilado. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 699. 992 Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias. Lisboa: Officina da Academia Real das Sciencias, 1789, p. 71 993 Veloso, José Mariano da Conceição. O Fazendeiro do Brasil. Lisboa, na Officina de Simão Thaddeu Ferreira, 1798, p. 123 e 178. 990

300 ISSN 2358-4912 esses livros eram suficientemente conhecidos para que o autor julgasse desnecessário dar mais detalhes ou 2) eram bem conhecidos pelo anotador, fazendo-nos imaginar pistas para suas próprias leituras e práticas. Porém, apesar desses caminhos interessantes que a leitura e análise deste documento podem oferecer, interessa também aquilo que o catálogo revela além das idiossincrasias de seu anotador ou do proprietário dos livros ali listados. Um processo de busca das obras referenciadas permitiu localizar informações adicionais (título completo, ano e local de edição e nome do editor ou impressor) para 663 obras (55,39%) dentre as 1.197 entradas. Embora uma distribuição por estilos e categorias literárias ou científicas seja possível, preferimos não fazê-lo, levando em consideração que uma tal classificação não fez parte das intenções do anotador. Porém, um estudo prévio sobre os dados deste catálogo revelaram uma possível distribuição temática, que não está necessariamente vinculada à percepção que os contemporâneos dos Condes poderiam ter dos livros ali contidos, mas que ajudam a ilustrar um pouco mais do conteúdo da biblioteca:

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O número exato de livros seria: História (137), Religião (219), Artes (123), Clássicos Latinos (94), Dicionários (74), Estadística (130), Nobiliarquia (75), Ciências Naturais (89), obras francesas desconhecidas (239), filosofia (11) e obras desconhecidas (171).994

Dos 55,3% dos livros cuja data de publicação mais provável foi encontrada, pode-se perceber, na Tabela 1, que a maior concentração (178 livros) é de obras publicadas na primeira metade do século XVIII, com forte incidência de livros publicados ao longo do século XVI (124 na primeira metade do século e 95 na metade final) e outras 142 obras publicadas na metade final do século XVIII, ainda que um detalhamento deste último dado indique mais obras perto do marco inicial (1750) do que do marco final do período (1800). O que estes dados tendem a demonstrar é que a aquisição dos livros que compunham aquela biblioteca se deu principalmente durante o século XVIII, provavelmente através dos processos usuais de compra, herança ou de doação, em especial por autores buscando a proteção do nobre dono dos livros. Foi uma biblioteca criada pelo Primeiro Conde da Ega, pai de Aires José, Manuel de Saldanha de Albuquerque e Castro (1712-1771). TABELA 1 - Livros no catálogo do Ex-Conde da Ega, por data de publicação Ano Quantidade % 1451-1500 8 0,7 1501-1550 32 2,7 1551-1600 78 6,5 1601-1650 124 10,4 1651-1700 95 7,8 1701-1750 176 14,7 1751-1800 142 11,8 > 1800 8 0,7 Data indefinida 534 44,7 Total 1197 100 Também, neste sentido, cumpre destacar a presença de livros proibidos, listados no catálogo de forma casual, sem alusões à necessidade de qualquer tipo de ação de apreensão ou censura desses livros. Uma grande quantidade de títulos defesos estava incorporada à biblioteca. Havia, por exemplo, obras que se encaixam nas definições historiográficas correntes que pensam as obras do Iluminismo como foco principal das proibições. Este é certamente o caso das “Obras de Rousseau falto, de volumes de 5 tomos de Emilio e Heloisa”, avaliadas em 7$200. A obra de Rousseau – em especial a Lettres des deux amants habitants d'une petite ville au pied des Alpes, publicada originalmente em 1761 e mais conhecida 994

AMATUZZI, Renato Toledo Silva. O livro como instrumento de civilidade e prestígio social: as elites ilustradas de Portugal no século XVIII, um estudo de caso do acervo pessoal de Ayres Saldanha de Albuquerque. Anais do VI Congresso Internacional de História. Maringá: 2013. Disponível em http://www.cih.uem.br/anais/2013/?l=trabalhos&id=90, acesso em 02/06/2014.

301 ISSN 2358-4912 como Julia ou a nova Heloísa, ou, neste caso, simplesmente Heloísa, fora proibida em 1768 por parecer da censura escrito por Frei Manoel do Cenáculo.995 O mesmo se aplica à entrada seguinte quanto a “Obras de Volter [sic.] truncados em q.e no todo da Obra lhe faltam 31 tomos”, com o valor de 12$000. As obras de Voltaire, que incluem também a História de Carlos XII, rei da suécia, originalmente publicada em 1732, anotada mais ao fim do catálogo, e a tradução inglesa da Era de Luis XIV, incorriam nas condições de censura listadas no regimento da Real Mesa Censória 1768, completado pelo Alvará de 1795 feito por D. João para determinar critérios comuns para a censura.996 Essas condições proibiam obras de ateísmo ou escritas por ateus, protestantes ou qualquer indivíduo contrário ao Papa ou que defendesse a resistência à tirania, ou ainda, ser um dos “Pervertidos Filósofos destes últimos tempos”.997 Isto se aplicava, por exemplo, ao Le compere Mathieu, proibido pela Real Mesa em 1776;998 ao Defense de l'Esprit des Loix, de Montesquieu; ao Vie de Monsieur Turgot, de Condorcet999 e a outros livros de autores tão diversos como Mabli, Gibbon, Milton, Tissot, Verney Erasmo e Ovídio. Podemos incluir neste rol livros suspeitos, ou seja, livros de autores que tiveram obras proibidas ou “depuradas” pelos censores em algum momento, como Boccaccio, cujo Decameron foi proibido repetidamente,1000 mas que consta neste catálogo com o livro De genealogia deorum gentilium, de 1491, que não surge nas listas de obras defesas. No total, ao longo do documento, são citadas vinte e oito títulos de obras notoriamente proibidas ou suspeitas. Embora estatisticamente pequeno, já era um número suficiente para que o aparato censório atuasse, ainda que não há evidências que qualquer um dos Condes da Ega tenham solicitado à Real Mesa Censória, a licença necessária para possuir tais livros, ou que esta licença tenha sido fornecida.1001 Temos então uma biblioteca que muito provavelmente pertencera mais ao primeiro do que ao segundo conde da Ega, no sentido em que – a julgar pela predominância de livros editados antes de 1750 - foi acumulada como uma biblioteca de nobreza – uma joia a ser entesourada, como a Real Bibliotheca, no Rio de Janeiro, descrita, em 1821 como “alfaia preciosa da coroa de Portugal”1002 - e herdada pelo segundo conde, que fez poucas contribuições ao acerto entre 1771 (quando o primeiro conde morreu) e 1810 (quando o segundo conde se exilou na França). Ela também demonstra uma outra faceta para o universo da posse de livros proibidos. Vistos pela documentação da censura ou da polícia, este livros parece terem sido perseguidos implacável e incessantemente pela “alta polícia” - um grupo de funcionários da Coroa que tinha a responsabilidade de manter a comunidade política do regime absolutista português, através da “repressão exclusiva de todos aqueles cujos sentimentos ou conduta desafiassem os padrões estabelecidos de adequação e lealdade”, em especial os “dos portadores de ‘doutrinas alheias à nossa fidelidade’”.1003 Porém, se o olhar passa pela documentação desta biblioteca “nobre”, o aparato de censura parece estar à margem da constituição das coleções. Se, por exemplo, o Morgado de Mateus, em maio de 1776, pediu licença à Real Mesa Censória para ter e ler livros proibidos, baseado fundamentalmente em seu status social, comparável a outros indivíduos que obtiveram igual licença: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] verçado na língua Franceza, Ingleza e Latina, e tem além dos continuados estudos aq. se applicou, a Instrucção de ter governado honze annos a Capitania de São Paullo, e porq’ por este 995

MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 242-3. 996 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Latina.São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 206. 997 Idem, p. 204-5. 998 MARTINS. A censura literária... p. 251. 999 VILLALTA. Reformismo...p. 232-3. 1000 MARTINS. A censura literária... p. 192. 1001 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Mesa Censória, Requerimentos, caixa 112, caixa 113; Provisões, livros 13 e 14. 1002 ESTATUTOS da Real Bibliotheca, mandados ordenar por sua Majestade. Rio de Janeiro: Na Regia Typographia, 1821. 1003 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p.169.

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ISSN 2358-4912 Régio Tribunal Se tem dado Licença a outros sugeitos p.a poderem Ler Livros proibidos, e o Supp.te não desmerece pellas Suas applicações e Estudos a mesma graça [...].1004

Outros nobres possuíram livros proibidos em suas coleções e deixaram registros dessa posse (embora não das leituras), aparentemente ignorando a ação censória, e relativizando o conhecimento que os historiadores podem produzir hoje sobre as sociabilidades derivadas da palavra impressa no passado.1005 Referências ANDRADE, Santiago Silva de - A Casa Real portuguesa: aspectos centrais da instituição na crise do Antigo Regime português (c.1780 - 1821) http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300871726_ARQUIVO_TEXTOANPUHSP2011.pd f, consultado em 13/05/2014. ARAÚJO, Ana Cristina. Napoleão Bonaparte e Portugal, patriotismo, revolução e memória política da resistência. Carnets, Revista electrônica de Estudos Franceses. Numéro spécial automne-hiver 2011-2012. p. 13-28. Disponível em http://carnets.web.ua.pt. Consultado em 03/03/2013. DENIPOTI, Cláudio. O mundo organizado em um catálogo de biblioteca: conhecimento, livros e pensamento em Portugal no início do século XIX. Arquipélago História, 2. série, XI-XII (2007- 2008), p. 163-190; ______. Libraries and the book trade in Portugal: The papers of Marino Miguel Franzino. E-JPH [online], v. 8, n. 1, p. 1-13, 2010. Disponível em: . ISSN 1645-6432>; ______. Rotas de comércio de livros para Portugal no fim do Antigo Regime. In: RODRIGUES, José Damião. O Atlántico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Ponta Delgada: CHAM – Centro de História de Além-Mar, p. 161-178, 2012.: FLETCHER, Ian. The Lines of Torres Vedras 1809-11. London: Osprey Publishing, 2012; GREHAN, John. The Lines of Torres Vedras: The Cornerstone of Wellington's Strategy in the Peninsular War, 1809-1812. London: Spellmount, 2000. MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 MENDES, Ricardo Antonio Souza. O Medo francês. Métis: história & Cultura. v. 5, n. 10, p. 101-119, jul./dez. 2006 NUNES, Maria de Fátima. O liberalismo português: ideários e ciências; o universo de Marino Miguel Franzini (1800-1860). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1988. _____. Portugal-Brasil 1808: trânsito de saberes. In: KURY, Lorelai; GESTEIRA, Heloisa (orgs.). Ensaios de história das ciências no Brasil: das luzes à nação independente. Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 267-280, 2012. SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 1004

ANTT, Real Mesa Censória, Requerimentos, caixa 113, p. 141. Ver: DENIPOTI, Cláudio. O mundo organizado em um catálogo de biblioteca: conhecimento, livros e pensamento em Portugal no início do século XIX. Arquipélago • História, 2. série, XI-XII (2007- 2008), p. 163-190; ______. Libraries and the book trade in Portugal: The papers of Marino Miguel Franzino. E-JPH [online], v. 8, n. 1, p. 1-13, 2010. Disponível em: . ISSN 1645-6432>; ______. Rotas de comércio de livros para Portugal no fim do Antigo Regime. In: RODRIGUES, José Damião. O Atlántico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Ponta Delgada: CHAM – Centro de História de Além-Mar, p. 161-178, 2012. Sobre Marino Miguel Franzini, ver também: NUNES, Maria de Fátima. O liberalismo português: ideários e ciências; o universo de Marino Miguel Franzini (1800-1860). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1988. _____. PortugalBrasil 1808: trânsito de saberes. In: KURY, Lorelai; GESTEIRA, Heloisa (orgs.). Ensaios de história das ciências no Brasil: das luzes à nação independente. Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 267-280, 2012. 1005

303 ISSN 2358-4912 VICENTE, António Pedro. Guerra Peninsular; 1801-1814. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2007. VENTURA, António. Guerra das Laranjas; 1801. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2008. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Latina.São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

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ISSN 2358-4912 A FIXAÇÃO DA IGREJA NO CEARÁ DURANTE O SÉCULO XVIII: ALGUMAS NOTAS Clovis Ramiro Jucá Neto1006 Introdução O artigo discute, em grandes linhas, os primórdios da fixação da Igreja no espaço territorial cearense. Contribui com a reflexão identificando as áreas do território e os lugares da fixação, estabelecendo a relação entre a gênese dos aglomerados e a construção das primeiras ermidas e capelas. Também evidencia a pouca importância da capitania para o Estado português considerando o número de freguesias coladas instaladas no território. A pecuária e a ocupação do território No final do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII, ordens régias portuguesas proibiram a atividade da pecuária na faixa litorânea do nordeste brasileiro, reservando-a para a economia açucareira (JUCÁ NETO, 2012). Expulsos do litoral, os criadores de gado com suas boiadas partiram em direção à capitania do Maranhão em busca de novas pastagens. Durante o século XVIII, os boiadeiros e suas boiadas cruzaram o território cearense. Em relação a outras áreas do Brasil, a ocupação do território foi tardia. A despeito de sua baixa produtividade e pequena rentabilidade, a economia pecuarista atribuiu sentido à ocupação e deu forma e conteúdo à Capitania. A fazenda de gado espalhada no sertão foi sede primeira da ocupação. Ao lado de uma ou de outra fazenda, terras foram doadas aos santos pelos próprios conquistadores para a realização dos atos religiosos, onde foram erguidas algumas das primeiras capelas do território. Além das ermidas erguidas no entorno das fazendas, outras foram edificadas nos aldeamentos. A doação de terras para a construção das primeiras ermidas ao lado das fazendas de gado, juntamente com a formação dos primeiros aldeamentos indígenas significava o início da constituição do patrimônio religioso no Ceará. A fixação da Igreja no território A fixação da Igreja no Ceará também ocorreu tardiamente se comparada com o restante da terra brasileira. O processo de conversão1007 da capitania não foi diferente daquele empreendido em outras regiões brasileiras, antecedendo o poder civil. Também como no restante do território brasileiro, a conversão dos sertões do Ceará realizou-se gradativamente, seguindo os caminhos do povoamento, da construção de capelas pelos colonizadores e a consequente ampliação da rede de freguesias no território. As tentativas de conversão não constituíram grandes ajuntamentos, como nas missões estabelecidas na região Sul do Brasil. Além daqueles que se fixaram temporariamente, vários religiosos foram proprietários de sesmarias ou estavam "integrados em congregações beneficiadas com doações de terras" (NOBRE, 1986, P.246). É possível presumir que, ao contrário da atividade produtiva do açúcar, concentradora de mão de obra, a atividade extensiva da pecuária e sua extrema dispersão tenham dificultado a instalação da Igreja. O projeto jesuítico na Capitania do Ceará prendeu-se ao surgimento de algumas pequenas "missões anteriormente estabelecidas pelos inacianos em Parangaba, Caucaia e Paupina, nas proximidades da Serra da Ibiapaba, [...] da Serra de Baturité [...] dos Cariris-Novos", e na instalação do Real Hospício1008 jesuítico em Aquiraz1009. 1006

Universidade Federal do Ceará. Curso de Arquitetura e Urbanismo. Email: [email protected] Tal como Fonseca (2011, p. 83), entendemos a Conversão em uma dupla acepção; tanto a cristianização dos espaços originalmente ocupados por povos “pagãos”, como a “ideia de sua metamorfose, de sua transmutação em territórios controlados por autoridades que exercem funções de cunho tanto religioso como civil”. 1008 Segundo Serafim Leite (1943, p. 73), “entende-se por Hospício uma casa ou Residência Grande, cabeça de toda Missão, diferente das casas das Aldeias. A ela se acolheriam os missionários das Aldeias para repousar de vez em quando; e dela, os missionários, que habitassem de assento, iriam fazer missões às Aldeias e ao sertão. Seria também uma como enfermaria geral dos missionários onde se recolhessem os doentes ou alquebrados pela 1007

305 ISSN 2358-4912 As missões de Parangaba, Caucaia, Paupina, das serras da Ibiapaba, de Baturité e dos Cariris Novos foram transformadas em vilas no reinado de D. José I. Os novos topônimos impostos pelas autoridades portuguesas foram, respectivamente, os de Arronches (atual Parangaba), Soure (atual Caucaia), Messejana, Vila Viçosa Real e Monte-mor o Novo da América (atual Baturité). As missões dos Tremenbés, no rio Aracati-Mirim, e a dos Pacajús, no rio Choró, tornaram-se respectivamente Almofala e Monte-mor o Velho da América (atual Pacajus), mas permaneceram como simples povoados (NOBRE, 1986, p.242). De acordo com Nobre (1980, p. 211), antes mesmo da expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759, a possibilidade de tornar o Ceará uma província jesuítica já havia fracassado devido à criação das vilas, das freguesias, das dificuldades de comunicação no território, das brigas entres sesmeiros e povoadores, das “deliberações das autoridades superiores sediadas em Pernambuco, Bahia” e em Portugal, “da insuficiência de recursos para uma organização de maior vulto” e em decorrência da baixa produtividade da atividade econômica da pecuária. O território cearense também foi pontuado por ermidas, capelas, aldeamentos pequenos e efêmeros que tiveram à frente, na maioria das vezes, padres seculares, os Clérigos do Hábito de São Pedro. Além dos oratorianos, carmelitas e capuchinhos também percorreram o território, aldeiando a população indígena. Algumas ermidas espalhadas pelo sertão, após a autorização do bispado de Pernambuco, foram transformadas em capelas curadas, visitadas pelo capelão residente da capitania e dependentes das paróquias mais próximas. Com o tempo, no entorno de algumas dessas capelas se organizaram pequenas povoações, alterando a dispersão reinante, vagarosamente, pela materialidade construída dos incipientes núcleos e a institucionalização dos mesmos1010. Com o aumento do número de "pessoas de desobriga" ou o crescimento do núcleo adstrito às capelas, o bispo pernambucano era solicitado para a criação de uma paróquia, ou freguesia. Se colada, a freguesia teria um vigário dedicado unicamente a ela, remunerado pela Coroa.

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O lugar de alguns primeiros aldeamentos No final do século XVII, diante da sangrenta “guerra dos bárbaros”, o Rei de Portugal D. Pedro II entendeu que a forma possível de pacificação da região seria o “estabelecimento de aldeias de índios nos sertões de Açu, Jaguaribe e Piranhas”. Seriam duas aldeias em cada sertão, segundo ordem régia do governador de Pernambuco Caetano de Melo Castro datada de 6 de março de 1664 (NOBRE, 1980, p. 229). Possivelmente em cada uma das aldeias fundadas nos últimos anos do século XVII e por todo o século XVIII, uma rudimentar capela fora construída. Em 20 de agosto 1696, o capitão mor do Ceará Pedro Lelou1011 escreveu da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção do Ceará Grande ao Rei de Portugal D. Pedro II afirmando a inexistência de sacerdotes e religiosos que assistissem aos gentios na capitania cearense. O documento apresentou ainda um genérico e reduzido panorama quantitativo dos aldeamentos existentes no Ceará. Na capitania há quatro aldeias de gentio potiguaras. Estes são domésticos e batizados, mas mal instruídos na fé por falta de haver nesta capitania sacerdotes ou religiosos que lhes assistam e lhes ensinem a doutrina porque mal há um para todas, ficando elas distantes uma das outra 2, 4, 6 e 8 léguas e assim mais há uma nação de tapuias jaguaribaras que estão aldeados, e alguns destes batizados, mas gentílicos no seu trato e sem doutrina por alta de terem quem os vá catequizando e exortando nela. Há outra nação de tapuias paiacus que assiste este na Ribeira de Jaguaribe que

idade. A este conceito primitivo acresceu mais tarde outro, de estudos, vindo a ser este Hospício o primeiro Seminário e o primeiro estabelecimento oficial de Latim e Humanidades no Ceará”. 1009 O Real Hospício de Aquiraz foi destruído em 1854. 1010 Como afirma Murilo Marx (1991, p. 18), a institucionalização de “tantas e tão dispersas comunidades” se dava pela oficialização das ermidas “de sua capelinha visitada por um cura, o pela sua elevação um dia a matriz, elevação que significava a ascensão de toda uma região inóspita [...] ao novo status de paróquia ou freguesia”. Ainda de acordo com o autor, o que se obtinha não era somente o acesso à assistência religiosa, mas “o reconhecimento da comunidade de fato e de direito perante a igreja, portanto perante o próprio Estado”. 1011 Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 37.

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ISSN 2358-4912 pedem: se querem aldear, e batizar seus filhos, que lhes deem sacerdotes para isso. E há outra nação de tapuias anacés que também pedem lhes deem sacerdote para se aldearem a batizarem.

Até o início do século XVIII, quatro aldeamentos encontravam-se sob os cuidados dos Clérigos do Hábito de São Pedro. Não nos foi possível determinar suas durações. Dos quatro, dois estavam localizados na Ribeira do Jaguaribe e dois nas proximidades da futura vila de Fortaleza. Em 1696, os índios paiacus foram reunidos na Aldeia de Nossa Senhora da Madre de Deus (Aldeia Velha), a meia légua do monte Arerê, atual Itaiçaba, na Ribeira do Jaguaribe, sob a ação do clérigo oratoriano João da Costa (Rocha, 2001, p. 22). Em 1697, os índios jaguaribaras e anacés foram aldeados em Parnamirim, a sete léguas de Fortaleza, pelo clérigo João Leite de Aguiar (NOBRE, 2001, p. 231). No ano seguinte, em 1698, Nobre faz referência a um aldeamento nas proximidades da futura vila de Nossa Senhora da Assumpção, sob a atenção do também clérigo João Alvares da Encarnação (NOBRE, 2001, p. 231). Em 1699, o clérigo padre João da Costa cria um novo aldeamento (Aldeia Nova) na Aldeia de Nossa Senhora das Montanhas, localizada a 24 léguas da antiga Aldeia Velha. Rocha (2001, p. 78) assevera que o aldeamento provavelmente localizava-se onde hoje se situa a cidade de Morada Nova. Além da missão dos jesuítas na serra da Ibiapaba, definitivamente instalada por volta de 1695, no início do século XVIII identificamos a presença de padres da Companhia de Jesus em missão na Ribeira do Jaguaribe. Segundo Rocha (2001, p. 79), em 1700, o jesuíta João Guinzel1012 reuniu índios baiacus na Missão de Nossa Senhora da Anunciada ou Anunciação1013 (Aldeia do Jaguaribe), nas proximidades da atual cidade de Tabuleiro do Norte. Em 1702, de acordo com Geraldo Nobre (1980, p. 238), estando em missão pelo sul do Ceará, o padre João de Matos Serra, vigário colado da vila de Aquiraz (STUDART, 1923, p. 303), fundou o Arraial Novo, sob a invocação de Nossa Senhora do Ó, onde hoje é a cidade do Icó, e aí aldeiou os índios icós. Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, governador da Capitania de Pernambuco, escreveu ao rei D. João V, em 17391014, apresentando uma relação das missões e aldeias da capitania pernambucana. Na capitania do Ceará, anexa à capitania de Pernambuco, foram inventariados treze aldeamentos (Tabela 1). Sete aldeias eram ministradas por jesuítas, uma por capuchinho, quatro por clérigos e a vila de Fortaleza não fica especificado a ordem ou irmandade. A “Descrição de Pernambuco com parte da sua história e legislação até o Governo de D. Marcos de Noronha em 1746 e mais alguns documentos até 1758” (tabela 2) apresentou a situação das aldeias no Ceará em meados do século XVIII (ROCHA, 2001, p. 247). Segundo o documento o território cearense possuía nove aldeamentos. Os jesuítas encontravam-se basicamente no litoral, excetuando a aldeia da Ibiapada, no alto da serra homônima. Já clérigos do Hábito de São Pedro achavam-se no processo de conversão do sertão. Somente a aldeia de Miranda, no Cariri, que dará origem a atual cidade do Crato encontrava-se sob a ação de um capuchinho, o frei Carlos Ferrara. Em 1757, o Catálogo da Companhia de Jesus no Brasil relacionou somente cinco aldeias no Ceará: Parangaba, Paupina (atual messejana), Caucaia, Payacus, e Ibiapaba (NOBRE, 1980, p. 225).

1012

Segundo Serafim leite (1043, p. 76), 0 jesuíta João Guinzel é o mesmo padre jesuita João Guedes, um dois fundadores do Real Hospício de Aquiraz no Ceará. 1013 Studart Filho escreveu que, em 1700, “o padre João Guedes, com ajuda do padre Vicente Vieira, fundou a Aldeia de Nossa Senhora da Anunciada, onde reuniu ao Baiacus do Jaguaribe”; apud Nobre (1980, p. 235). O padre João Guedes pertencia à Companhia de Jesus, ver Serafim Leite (1953, p.94). 1014 Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 55. D. 4767.

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Primeiras capelas e igrejas Em alguns casos, após o erguimento das fazendas de gado, os sesmeiros requeriam permissão ao bispado de Pernambuco1015 para construção de uma ermida, onde poderiam ouvir as missas celebradas por capelães. A permissão significava assistência religiosa. As ermidas eram construídas em terras doadas1016 por um ou mais de um proprietário de terra, contribuindo para a formação do patrimônio eclesiástico na capitania cearense. Juntamente com a fixação dos boiadeiros, a Igreja reafirmava, assim, sua presença no território instalando-se nas terras oferecidas. Em 20 de agosto de 1696, o capitão mor do Ceará Pedro Lelou em missiva ao rei de Portugal D. Pedro II afirmou que a capitania cearense não possuía igreja matriz e nem curato1017. Que as únicas capelas eram as das aldeias e da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. 1015

As paróquias do Ceará eram subordinadas ao Bispado de Pernambuco e este, ao Arcebispado da Bahia, criado em 1676. 1016 Em troca da doação de “terras para o santo, seu patrimônio ou da sua capela”, eram rezadas missas para o doador e sua família, em vida e após a morte (MARX, 1991, p.26). 1017 Projeto Resgate. AHU-ACL-N-Ceara. Cx. 1. Doc. 36.

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ISSN 2358-4912 O povo desta capitania não tem matriz, nem curato nem há mais igreja fora das aldeias que a capela desta fortaleza, e nela o capelão faz ofício de vigário causa de haver pouca obediência na infantaria por ele os querer reger e meter-se em toda a governança, com autoridade de vigário; e sendo só não pode acudir a toda obrigação; também se deve atender nesta parte ao bem das almas.

Geraldo Nobre (1980, p. 242) assevera que, muito provavelmente, "excluídas a do Forte de Nossa Senhora da Assumpção e as das aldeias dos missionários", a capela dedicada a Nossa Senhora do Ó cujo patrimônio fora doado pela família Montes na ribeira do rio Salgado, no lugar da futura matriz de Nossa Senhora da Expectação do Icó, foi a primeira a erigir-se no Ceará. A Carta Régia fundacional da Vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, de 1738, determinou a criação de uma "nova Villa no Icó junto aonde se acha a Igreja Matriz” (JUCÁ NETO, 2012). Por volta de 1793, Manuel da Cunha Pereira, o capitão comandante da Ribeira do Jaguaribe, pediu licença à rainha D. Maria I para edificar uma ermida em homenagem a Nossa Senhora das Dores, em sua fazenda chamada Boqueirão, localizada na freguesia das Russas1018. O documento expressa os procedimentos que provavelmente todos os detentores de terra, durante o século XVIII, deviam ter seguido ao requerer ao bispado de Pernambuco a construção das primeiras capelas no território cearense. A requisição implicava na doação de terras para o orago correspondente à igreja, contribuindo para o patrimônio religioso da capitania do Ceará. “Diz Manoel da Cunha Per.a Cap.m Comand.e da Ribeira de Jaguaribe, Capitania do Ceará Grande no Bispado de Pern.co que elle pertende edificar na sua fazenda do Boqueirão Freg.a da Russas [...] hua Ermida a Nossa Snr.a das Dores; a qual se faz necess.a para nella ouvirem Missa o Sup.te e Sua Fam.a e igualm.te os Povos circunvizinhos q' distar da moradia do Sup.te Seis legoas a Ermida mais próxima [...] a Sua Pied.e lhe conceda faculd. de p.a d.a fundação concorrendo a Licença do Ordinário a patrimônio Canônico”. Freguesias Além da construção das ermidas e capelas, e sua elevação à condição de igreja matriz, o bispo de Pernambuco cuidou de ordenar a demarcação dos limites das freguesias1019 cearenses, que seriam frequentemente percorridas por padres visitadores angariando fundos para os cofres portugueses. Em sua grande maioria, as vilas foram fundadas onde já existiam as sedes das paróquias, o que confirma a precedência da organização religiosa quanto à organização político-administrativa (NOBRE, 1980, p. 246). Durante o século XVIII, o número de freguesias superou o número de vilas criadas no Ceará. A capitania alcançou o século XIX com 17 freguesias e 14 vilas. Em 17 de fevereiro de 1777, D. Tomás da Encarnação Costa e Lima, bispo de Pernambuco, apresentou ao rei de Portugal D. José I1020 uma relação de todas as igrejas paroquiais que pertenciam ao bispado pernambucano - que se estendia desde a foz do São Francisco até Fortaleza, no Ceará, fazendo limite com o do Pará, a oeste, e com o arcebispado da Bahia, ao sul -, abrangendo várias capitanias. Segundo o bispo todas as capelas do bispado ou eram de “engenhos necessárias para a celebração do Santo Sacrifício da Missa e administração dos Sacramentos aos trabalhadores dos mesmos” ou “são edificadas pelos povos circunvizinhos com patrimônio competente, nas distancias grandes das suas Matrizes para o referido fim dos Sacramentos e Santo Sacrifício, conservando-se nelas hum Sacerdote com licença do próprio Parocho, sem alguns encargos de encapellados”. De acordo com o documento, no território cearense havia uma vigaria colada, 19 amovíveis e 34 capelas (tabela 3). As Paróquias, “freguesias coladas” ou “colativas” possuíam “vigários colados”, “padres perpétuos” que eram nomeados pelo Rei e recebiam os “benefícios eclesiásticos”, as “côngruas”. Já os Curatos ou paróquias encomendadas possuíam padres encomendados, temporários, “nomeados pelo bispo e remunerados pela população”; ou seja, não recebiam côngruas. Para subsistirem as paróquias “cobravam da população as “conhecenças”, que eram taxas diferenciadas (e em geral muito elevadas)

1018

Projeto Resgate. AHU_ACL_CU_017. Cx. 12. Doc. 693. As freguesias “designavam o templo – a igreja matriz -, [...] a povoação [...], o conjunto dos fregueses, e por fim, o território paroquial, que incluía a povoação sede, áreas rurais e, por vezes, sertões residuais” (FONSECA, 2011, p. 84) 1020 Projeto resgate. AHU_ACL_CU_015. Cx. 126. D. 9545. 1019

309 ISSN 2358-4912 para cada tipo de celebração ou sacramento” (FONSECA, 2011, p. 83). A Coroa só criava freguesia colada quando lhe convinha. A Instalação de Freguesias Coladas como medida de controle implicava em investimentos por parte do Estado Português. Daí porque as sedes paroquiais nos sertões do Brasil localizavam-se em pontos estratégicos do território brasileiro. Como afirma Fonseca (2011, p. 83), a instalação “supunha a existência de povoamento estável e de certa prosperidade nas zonas que seriam incluídas dentro da freguesia” 1021. Para efeito de comparação lembramos que em 1778, a região das Minas Gerais possuía 50 freguesias coladas (FONSECA, 2011, p. 97), São Paulo 13 e o Ceará em 1775 apenas uma. A presença de uma única freguesia colada na capitania cearense é indicativa do pequeno interesse da Coroa em relação ao Ceará, na medida em que implicava o pagamento das “congruas” em um território pautado pela baixa rentabilidade econômica. Como no restante do Brasil, o estabelecimento da estrutura eclesiástica no Ceará dependeu, primordialmente, da iniciativa dos habitantes. O que diferia de outras regiões do território brasileiro foi a ausência de capital local, associada à baixa rentabilidade da pecuária, que possibilitasse maiores investimentos por parte dos habitantes, durante o processo de fixação da Igreja. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Em 1800, o visitador Mariano Gregório do Amaral correu a capitania demarcando os limites das freguesias cearenses, identificando suas matrizes e capelas. O espaço territorial do Ceará encontravase definitivamente ocupado pela igreja. Possuía 17 freguesias e apresentava uma rede eclesiástica com 22 igrejas Matrizes e 47 capelas (figura 01, 02 e 03). A maioria das igrejas matrizes e capelas encontravam-se nas estradas coloniais delineadas pelo eng. Silva Paulet1022 em sua Carta Marítima e Geográfica da Capitania do Ceará de 1817.

1021

Fonseca (2011, p.105) justifica o elevado número pela importância econômica da região mineradora que implicava na necessidade de “se ter “pastores” da confiança do rei na direção das comunidades mineradoras, sobretudo durante o apogeu da produção aurífera”. 1022 “Antonio José da Silva Paulet. – Coronel do Real Corpo de Engenheiros. [...] Por Dec. de 13 de Maio de 1811 foi nomeado Ajudante de Ordens do Governo do Ceará, que assumiu a 19 de Março de 1812. (STUDART, 1923, p. 278 – 279)

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Figura 2. Reconstrução gráfica – Igrejas, Matrizes e capelas da Capitania do Ceará. Ano 1800.

Fonte: Mapa Geográfico da Capitania do Ceará. Mariano Gregório do Amaral [1800]. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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ISSN 2358-4912 A Igreja, o Estado, os agentes econômicos e a população indígena. Uma ação integrada A fixação da Igreja no Ceará foi orquestrada por párocos que ou, na maioria das vezes, acompanhavam os primeiros desbravadores; ou fundaram aldeamentos, congregando a população indígena que resistia à expansão da pecuária. A rede eclesiástica cearense precedeu a rede civil, mas em termos jurídicos ficava submetida à autoridade portuguesa, assim como ocorreu no restante do território brasileiro. No entorno das primeiras fazendas de gado, com suas ermidas, e dos aldeamentos a gênese urbana se faz presente. Como no restante do Brasil, a fixação – construção de capelas e Igrejas Matrizes – dependeu basicamente dos habitantes locais. As ações foram individuais ou associadas em irmandades. De maneira dispersa, até as primeiras décadas do século XVIII, a Igreja fixou-se nas proximidades da foz do rio Jaguaribe, nas áreas adjacentes à Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção, na serra da Ibiapada – mais especificamente onde hoje se encontra a cidade de Viçosa do Ceará - e em alguns pontos do interior da capitania, como ocorreu no lugar da atual cidade do Icó. Somente a partir de 1738 a administração civil portuguesa se fixou no sertão do Ceará, inicialmente nas proximidades do Icó. O Icó foi elevado à condição de vila somente em 1738. Por todo o século XVIII, a dispersão da Igreja juntamente com a fundação de vilas no território foi paulatinamente sendo alterada. Por fim, afirmamos que a compreensão da organização do espaço territorial do Ceará setecentista não pode desconsiderar as múltiplas ações integradas entre a Igreja, os representantes da atividade pecuária, a população indígena e o Estado português. Os agentes envolvidos na ocupação do território uniram-se das mais diversas formas e em tempos diferenciados, transformando o espaço. Referências BUENO, B. P. Dilatação dos confins: caminhos, vilas e cidades na formação da Capitania de São Paulo (1532-1822). Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 17, n. 2, 2009. FONSECA, C. D. Arraiais e Vilas D’El Rey. Espaço e poder nas Minas Setecentistas. Ed UFMG. Belo Horizonte. 2011. JUCÁ NETO, C. R. Primórdios da Urbanização no Ceará. BNB/UFC. 2012. LEITE, Padre Serafim Soares, S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil (séculos XVII-XVIII), 3. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. 1943 MARX, M. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo: Edusp; Nobel, 1991. NOBRE, G. da S. História eclesiástica do Ceará, 1. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desportos, 1980. ROCHA, L. M. da. Russas: 200 anos de emancipação política. Fortaleza: Banco do Nordeste, 2001. STUDART, G. Barão de. Figuras do Ceará Colonial. In: Revista do Instituto do Ceará. Tomo XXXVII. Typ. Minerva. Fortaleza. 1923.

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GÊNERO E PODER NA CAPITAL DO VICE-REINADO: MULHERES E VIÚVAS PROPRIETÁRIAS SEGUNDO A RELAÇÃO DO MARQUÊS DE LAVRADIO

Cristiane Fernandes Lopes Veiga1023 Introdução O Antigo Regime se caracteriza pela familiaridade que sua população tinha com a morte, fome, guerras, elevada taxa de mortalidade infantil e neonatal, epidemias, pestes e doenças endêmicas1024. Conviver com o fim da vida cotidianamente só vai ser um fato estranho a partir do século XIX. Na colônia não era diferente, e muitas vezes a situação se agravava pela falta de assistência local e distância dos núcleos de povoamento. Portanto, a existência de viúvas, e viúvos em menor escala1025, não era um acontecimento estranho a esta sociedade. A mulher no Antigo Regime desfrutava de uma posição ambígua. No momento da morte do marido a mulher viúva se tornava independente de quaisquer membros masculinos da família, pois herdava os bens dos maridos e podia administrá-los livremente1026. Porém, sua condição de “ser inferior”, compartilhada por muitos juristas e pensadores do período, a colocava como incompetente para a tarefa. Estereótipos de fraqueza imputados à mulher, desde o período romano1027, punham a viúva diante da necessidade de proteção e a aproximavam da imagem da viúva ideal: reclusa, solitária e dedicada ao lar. Entretanto, mulheres que se recusavam a casar novamente demonstravam a sua capacidade de enfrentar relações de poder que as colocavam em desvantagem social1028. Durante o período colonial observamos a existência de mulheres que aparecem como proprietárias de terras, sesmarias ou engenhos no Brasil. Ao pesquisar a Bahia, Schwartz destaca a presença de mulheres proprietárias de engenho1029 e, também, a participação de 17 % delas como lavradoras de cana em Sergipe do Conde e Pernambuco em 16391030. No entanto, é comum atribuir apenas aos homens o governo dos engenhos na colônia. Proprietárias de escravos, trabalhadoras em roças de subsistência ou em pequenas lavouras de cana, elas são presença constante na vida na colônia e no império1031. O principal objetivo de nosso trabalho é observar a presença de mulheres proprietárias e/ou viúvas na Capitania do Rio de Janeiro, em especial aquelas especificadas como senhoras de engenho na documentação em 1779 comparando-as, quando possível, com os senhores de engenho. Utilizaremos como fontes para análise as Relações parciais apresentadas ao Marquês do Lavradio pelos mestres de Campo

1023

Universidade de São Paulo. PELLEGRIN, N. et WINN, C. H. Veufs, veuves et veuvage dans la France d’Ancien Régime : Actes du colloque de Poitiers, 11-12 juin, 1998. Paris: Honoré Champion, 2003, p. 15. 1025 O recasamento de viúvos é mais frequente que o de viúvas no Antigo Regime. 1026 ERICKSON, A. L. “Property and Widowhood in England: 1660-1840”. In: CAVALLO, S. e MASONWARNER, L. J. Widowhood in medieval and early modern Europe. Harlow: Longman, 1999, p. 145. 1027 GRUBBS, J. E. Women and the law in the Roman Empire: a sourcebook on marriage, divorce and widowhood. London: Routledge, 2002, p. 46. 1028 Poumarède 1991, 64-67. 1029 SCHWARTZ, S. B. Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835. New York: Cambridge University Press, 1985, p. 290 1030 SCHWARTZ, S. B. “Free Labor in a Slave Economy: the Lavradores de Cana of Colonial Bahia”. In ALDEN, Dauril (ed.). Colonial Roots of Modern Brazil. Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1973, p.178. 1031 Ver DEL PRIORE, M. “Mulheres de Açúcar: Vida Cotidiana de Senhoras de Engenho e Trabalhadoras da Cana no Rio de Janeiro, entre a Colônia e o Império”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 438, pp. 9-360, jan./mar. 2008; e ALEGRIO, L. V. Donas do café: mulheres fazendeiras no Vale do Paraíba (Rio de Janeiro, século XIX). Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 1024

313 ISSN 2358-4912 responsáveis pelas freguesias do recôncavo do Rio de Janeiro1032 e o Resumo Total da população que existia no anno de 1779, comprehendidas as quatro Freguezias desta Cidade do Rio de Janeiro, até o último de Dezembro do dito anno. Tambem dos que nascerão e fallecerão no mesmo anno de 17791033. Com o intuito de comparar os dados da capitania, utilizaremos algumas informações específicas do Distrito de Campos dos Goytacazes, importante região produtora de cana de açúcar no período1034. Segundo o próprio Marquês do Lavradio, [a]quele distrito é importantíssimo e digno de merecer os particulares cuidados de V. Exc.: há nestes vastíssimos campos, muito férteis e de grandíssima produção, o açúcar; e toda a casta de mantimentos produzem com muita diferença das outras partes. Tem muitas e excelentes madeiras, admiráveis bálsamos, óleos, gomas, e muitas outras drogas preciosas, com que se pode aumentar o comércio, e até tem excelente minas de ouro (...). Tem muitos rios navegáveis, e em que hoje se principia a fazer bastante comércio1035. Tendo por base estes documentos, estudaremos questões relacionadas com o tamanho e composição dos planteis de escravos, à produção de açúcar, bem como o período de criação dos engenhos e alguns dados demográficos. É necessário adicionar à análise do período as questões de gênero que, como categoria de análise, ajudam o pesquisador a estabelecer por que determinados comportamentos acontecem em lugares e tempos específicos1036. A teoria das duas esferas separadas, masculino/público e feminino/privado, não é capaz de dar conta de realidades que extrapolam muitas vezes a simples bipolaridade homem/mulher no mundo colonial. A inserção da categoria gênero, aliada à classe e raça, insere em nosso estudo o conceito de poderes dispersos. A existência de mulheres chefes de domicílio são exemplos da necessidade de se relativizar a onipresença de tipos ideais de mulheres, reclusas ao lar, colocando-as convivendo com outras responsáveis por administrar a casa e a unidade produtiva. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A Capital do Vice-Reino no interior da economia colonial A transferência do Vice-reinado da Bahia para o Rio de Janeiro veio consolidar uma situação previsível por volta de 1750: a cidade do Rio de Janeiro já se constituía como importante porto de importação e exportação do Império de tal forma que se configurou como destacada praça mercantil da região Centro-Sul. Aliava-se a isso a necessidade de se empreender uma fiscalização mais efetiva do ouro de Minas Gerais, bem como, o constante clima beligerante nas capitanias do Sul (Rio Grande de São Pedro, Santa Catarina) e na colônia do Sacramento exigiam maior proximidade das autoridades destas áreas ameaçadas. Por volta desta mesma data, a maioria do aparelho administrativo já se achava instalado na cidade de São Sebastião1037. O cenário de meados do século XVIII surge como consequência de uma evolução que se configura como tal ao longo da centúria anterior. Durante o século XVII a capitania do Rio de Janeiro ganha proeminência no cenário do Império ultramarino português. Observa-se a multiplicação do número de engenhos que, em 1580 eram apenas 3, passa a 40 em 1612, chegando a 60 fábricas em 1629 e, em 1639, 1032

“Relações parciais apresentadas ao Marquês do Lavradio”. In Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Tomo LXXVI, Parte I, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915. 1033 “Resumo Total da população que existia no anno de 1779, comprehendidas as quatro Freguezias desta Cidade do Rio de Janeiro, até o último de Dezembro do dito anno. Tambem dos que nascerão e fallecerão no mesmo anno de 1779”. In Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, 2ª. ed., Tomo XXI (1858), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1930. 1034 Especificamente para a região dos Campos Goytacazes, estão disponíveis para consulta COUTO REYS, Manoel Martinz do. Manuscritos de Manoel Martinz do Couto Reis, 1785 [Descripção Geographica, Pulitica e Cronographica do Districto dos Campos Goitacaz]. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1997., bem como MONTENEGRO, Joaquim Silvério dos Reis. “Mappa da população, fabricas e escravaturas de que se compõem as diferentes Freguezias da Villa de São Salvador dos Campos Goytacazes no anno de mil setecentos noventa e nove”. Revista Trimensal do Instituto Historico e Geographico, Tomo LXV, Parte I, Rio de Janeiro, Companhia Typographica do Brazil, 1902, pp. 293-295. 1035 Relação 1842, 422. 1036 SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of Historical Analysis”. The American Historical Review, vol. 91, n. 5, pp. 1053-1075, dez./1986.. 1037 Nessa época já estavam instalados na cidade do Rio de Janeiro o Tribunal da Relação (1751), a Mesa de Inspeção (1751) e a Intendência do Ouro (1751). Alden 1968, p. 45.

314 ISSN 2358-4912 somam 1101038. Por outro lado, a presença de mercadores fluminenses no tráfico atlântico de cativos demonstra a dinâmica dessa praça frente às demais da colônia1039. Ao mesmo tempo, a reconquista de Angola, com a forte presença da elite mercantil e política da capitania1040 no processo comprova a dinamização da economia fluminense1041. Os primeiros engenhos surgem nas proximidades da área onde teve início a povoação. Com o tempo eles vão se afastando, seguindo rumo ao interior, de acordo com o aumento da população1042. Durante o período entre a segunda metade do século XVII e o próximo, há o crescimento do setor de produção de alimentos1043. Enquanto isso, as fábricas de açúcar vão ganhando o espaço do recôncavo da Guanabara, até a Baixada Fluminense e a capitania de Paraíba do Sul. Entretanto, o mercado internacional sofre com as oscilações do preço do açúcar e crises políticas e econômicas durante todo o período que vão ter consequências sobre os rumos da colônia. O conflito entre Espanha e Províncias Unidas resulta na ocupação holandesa em Pernambuco e Bahia (1630-1654). Com a Restauração portuguesa, ocorre o aumento dos custos militares com conflitos que se estenderam na Península Ibérica até 1668 e um sério déficit com a interrupção do comércio com as províncias espanholas. A tomada de Luanda pelos batavos provoca o fim do suprimento de escravos. Por fim, a entrada das Antilhas no mercado do açúcar (1650) resulta na perda de mercado consumidor, baixa dos preços e demanda por mão de obra escrava. Ao mesmo tempo, internamente, o aumento da atividade mineradora teve consequências diversas. Durante a primeira metade do XVIII, o resultado foram crises de abastecimento e fome na capitania1044 que logo deram início ao crescimento do setor de alimentos para abastecer as minas. Em seguida, os conflitos entre paulistas e portugueses, com a vitória dos Emboabas sobre os paulistas, resultou na inserção de cariocas no mercado das minas, colocando-os definitivamente como protagonistas do complexo atlântico português. Por fim, a construção do Caminho Novo reforça a participação da capitania fluminense no comércio interno e externo1045. Na segunda metade do século XVIII, assiste-se a uma mudança política decisiva: a ascensão ao poder do Marquês de Pombal. No setor econômico, os produtos coloniais sofrem com crises sazonais, provocando déficits elevados na balança comercial portuguesa. O volume de ouro extraído das minas diminui consideravelmente entre as décadas de 1760 e 1780. O açúcar sofre com baixas nos preços (1749-1776), os diamantes escasseiam e eleva-se o valor dos escravos1046. Diante de tal conjuntura Sebastião José de Carvalho e Melo, como ministro de D. José, inicia uma série de medidas para recuperar a economia portuguesa e aumentar a fiscalização sobre a colônia1047. Na colônia assume o vice-reinado o Marquês do Lavradio. Simpatizante do movimento ilustrado, ele empreende uma série de medidas para diversificar a economia e desenvolver a agricultura, melhorar as defesas da Colônia, bem como dinamizar a administração1048. O governo de D. Luiz de Vancellos começa já com uma

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1038

SAMPAIO. A. C. J. de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (16501750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 65. Abreu contabiliza em 1580, 3 engenhos e 131 entre 1691-1700, ABREU, M. “Um quebra-cabeça (quase) resolvido: os engenhos da capitania do Rio de Janeiro – séculos XVI e XVII”. In: FRIDMAN, F. e ABREU, M. Cidades Latino-Americanas: um debate sobre a formação de núcleos urbanos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010, p. 81. 1039 FLORENTINO, Manolo G. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. 1040 O próprio governador da capitania, Salvador Correa de Sá e Benevides, lutou para recuperar Angola dos holandeses. 1041 SAMPAIO, op. cit.. 1042 ABREU, op. cit., p. 83. 1043 SAMPAIO, op. cit., pp. 115 e segs. 1044 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil Colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1690-1790). UFF, Niteroi, 1990, Tese de Doutorado. 1045 SAMPAIO, op. cit., pp. 80-99. 1046 ARRUDA. José Jobson de A. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980, pp. 111 e segs. 1047 Criação das Companhias de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755) e Pernambuco e Paraíba (1759), instalação do Colégio dos Nobres (1760) e criação de aulas régias, expulsão dos Jesuítas (1759), reforma da Universidade de Coimbra (1772). 1048 Pelo relatório que o Marquês do Lavradio escreve para entregar a seu sucessor percebe-se a preocupação em se implantar novas culturas que aumentassem a arrecadação e diversificassem a economia, são elas: a cochonilha, o cânhamo, o anil, o algodão, fumo da Virginia e o arroz Carolina. DIAS, M. O. da S.. “Aspectos da ilustração no

315 ISSN 2358-4912 conjuntura econômica mais favorável de alta nos preços do açúcar, apesar de ainda haver uma preocupação dos governantes da metrópole, sobretudo com D. Rodrigo de Souza Coutinho, em promover os diversos setores agrícolas dos territórios de ultramar1049. No final do século XVIII o porto do Rio de Janeiro era o primeiro em importação e exportação de produtos, bem como se destacava na redistribuição de produtos para outras capitanias. A sede do vice-reinado concorre com 38,1% das importações e 34,2% das exportações, à frente de Bahia, cujos índices correspondem a 27,1% e 26,4%. Pernambuco fica em terceiro lugar de participação absoluta (21% e 22,7%, respectivamente), seguido por Maranhão e Pará, em últimos lugares Santos, Paraíba e Ceará1050. O início da década de 1790 é um momento de crescimento da economia açucareira devido aos preços elevados, resultado da interrupção de fornecimento do produto pelo Haiti. Entretanto, entre 1799 e 1811 o preço do açúcar branco exportado pelo porto do Rio de Janeiro cai a uma taxa anual de 5,7% e suas receitas a uma taxa anual de 19,9%1051. Em Campos dos Goytacazes, a segunda metade do século XVIII configura-se como um período de expansão açucareira. Alden assinala que entre 1769 e 1778 houve um crescimento de 235% na produção açucareira, quando o número de engenhos passou de 56 para 104, elevando-se também o número de escravos de 3.192 para 4.8711052. O distrito de Campos dos Goytacazes iniciou sua participação na economia colonial como uma região produtora de gado1053. A primeira fase da ocupação se deu pelo avanço da pecuária, facilitada pela abundância de pasto, solo fértil e plano, bem como pelo fácil deslocamento em caso de ataques do gentio. Em um segundo momento, os “índios ferozes” Goitacás, de início obstáculo à ocupação da capitania, já não provocavam qualquer empecilho ao povoamento1054. Desenvolvem-se as grandes criações que abastecem a cidade de São Sebastião e o mercado das Minas, ao mesmo tempo em que começam os conflitos por terras. O período de instabilidade iniciado no século XVII termina na metade do século seguinte quando se observa um aumento acelerado na instalação de engenhos na região. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Gênero e Propriedade Há uma grande dificuldade do historiador em resgatar os dados demográficos e econômicos para o Brasil colonial. Utilizaremos aqui, entretanto, alguns números relativos ao período publicados pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. De acordo com o Resumo da população de 1779, apenas na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro havia uma população de 19.578 brancos (45%), Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, vol. 278,1968, pp. 1123; MAXWELL, K. Conflicts and Conspiracies: Brazil and Portugal (1750-1808). London: Cambridge University Press, 1973 e “Relação do Marques do Lavradio...” 1915. 1049 DIAS, op. cit.. 1050 ARRUDA, op. cit., p. 133. 1051 FRAGOSO, J. L. R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992, p. 22. 1052 ALDEN, D.. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of California Press, 1968, p. 356. 1053 Gil de Góis recebeu como mercê a Capitania de São Tomé, conhecida também como Paraíba do Sul. Em 1619, o donatário devolveu a capitania à coroa por impossibilidade de dominar o gentio e povoar a região. Depois de oito anos, a capitania foi doada aos Sete Capitães que não ocuparam pessoalmente a planície, deixando as terras aforadas a terceiros. Muitos deles permaneceram em seus engenhos na Guanabara e na atual Região dos Lagos (Tapacorá). Interessado nas terras, o governador Salvador Correia de Sá e Benevides ameaçou comunicar à Coroa o abandono da região. Foi, então, que os donatários cederam ao governador e dividiram as terras entre eles, os antigos donatários, os Jesuítas, o capitão Pedro de Souza Pereira e os frades de São Bento. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 30. O domínio dos Assecas e o consequente conflito com os interessados pela região começa na segunda metade do século XVII, com a doação da capitania de Paraíba do Sul para o recém-nomeado Visconde de Asseca (1674), filho de Salvador Correia de Sá e Benevides. Três anos mais tarde, São Salvador dos Campos dos Goytacazes foi elevada à categoria de vila. Entretanto, as desavenças durariam ainda um século, com a eclosão de sedições civis no século XVIII. A população reclamava, sobretudo, dos tributos que deveriam ser pagos aos donatários. A principal revolta foi liderada por Benta Pereira, viúva proprietária de um pequeno engenho em São Salvador, e Mariana Barreto, sua filha (1748). Depois da tomada da câmara pelos revoltosos, o conflito cessou e os líderes foram presos. A capitania retornou à Coroa em 1753. 1054 LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo. Rio de Janeiro: IBGE, 2007, pp. 58-59.

316 ISSN 2358-4912 4.227 pardos libertos (10%), 4.585 pretos libertos (11%) e 14.986 escravos (34%). Por esse documento não podemos averiguar a população por sexo, pois não vinham especificados homens e mulheres. Porém, constava o número de viúvos e viúvas. Haviam 268 viúvos e 773 viúvas brancos, 140 viúvos e 193 viúvas entre os pardos libertos e 183 viúvos e 195 viúvas entre os pretos libertos. O que estes números podem nos sugerir é que os homens, provavelmente, recasavam-se com maior frequência que as mulheres, sobretudo os brancos. No que tange às proporções de homens e mulheres viúvos entre pardos e pretos libertos encontramos números mais próximos. Entre os pardos temos 42% de viúvos e 58% de viúvas. Já entre os pretos, 48% dos que enviuvaram eram homens e 52% eram mulheres. Tais dados podem nos indicar que, em primeiro lugar, havia maior dificuldade de recasamento na medida em que nos aproximamos da condição de escravo ou proporcionalmente ao “escurecimento” da pele. Em segundo lugar, os elevados números de viúvos e viúvas entre pardos e pretos apontam para uma provável tendência a viver em concubinato entre as camadas mais baixas da população. Já a elevada taxa de viúvas entre as mulheres brancas confirmam estudos que salientam a grande presença de mulheres viúvas em regiões urbanas1055. Com relação aos engenhos no Rio de Janeiro, optamos por destacar alguns dados fornecidos por Maurício Abreu para a capitania do Rio de Janeiro. De acordo com Abreu, a cultura de cana assumiu importância decisiva na Capitania do Rio de Janeiro durante o século XVII, entretanto é difícil dimensionar o volume da produção e o número de propriedades dedicadas ao cultivo. Segundo Frei Vicente do Salvador, o Rio de Janeiro possuía em 1627 quarenta engenhos. Boxer calculou que, entre 1638 e 1642 partiram do porto do Rio de Janeiro, em média de 20 a 25 navios carregados de açúcar para Portugal. Já Antonil atesta que, em 1711, o Rio de Janeiro tinha 136 engenhos de açúcar1056. Em seu estudo sobre as fábricas de açúcar na capitania, Abreu estima que na década de 1691-1700 houvesse 131 engenhos no Rio de Janeiro1057. No entanto, o autor não especificou quem eram os proprietários. O que se observa, entretanto, é que, frequentemente, as viúvas aparecem em transações de compra e venda de terras e partidos de cana dos engenhos. No ano de 1694, Francisca de Araújo, viúva de Francisco de Araújo Caldeira, vende metade do engenho a João Gonçalves Viana1058. Em 1702, Dona Páscoa Barbalho, viúva de Pedro da Costa Ramiro, doa “três safras livres do partido que tem em seu engenho” a José Vieira da Costa como dote para sua neta1059. Outro caso foi o da viúva D. Izabel de Mariz que, em 1673, pede autorização para vender um engenho que seu marido, almirante Rodrigo Muniz da Silva, deixou na capitania do Rio de Janeiro1060. Por estes exemplos podemos concluir que estas mulheres continuavam produzindo nas propriedades que herdaram, apesar das dificuldades que podemos deduzir devido ao fato de algumas proprietárias ter a necessidade de vender um engenho ou parte dele. Ao final do século XVIII os engenhos fluminenses mais que triplicaram. Em 1779, a Relação do Marquês de Lavradio relata a existência de 18.511 fogos, 38 freguesias, 491 engenhos de açúcar, 194 engenhocas de aguardente com uma produção de 289.185 alqueires de farinha, 50.481 de arroz, 48.565 de feijão e 64.422 de milho1061. No distrito de São Salvador de Campos dos Goytacazes havia um total de 1.883 fogos, 6 freguesias, 168 engenhos de açúcar e 9 de aguardente. Portanto, mais de 34% do total de engenhos da capitania do Rio de Janeiro estavam na região de Campos. Aí se produzia 28.312 arrobas de farinha, 1.326 de arroz, 9.277 de feijão, 7.152 de milho, 2.050 de algodão, 2.161 caixas de açúcar, 141,5 pipas de aguardente e, apenas, 3 arrobas de anil. Um total de 5.066 almas cativas pertenciam aos senhores de engenho1062. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1055

Ver SOCOLOW, Susan. M. The Women of Colonial Latina America. 7th ed., New York, Cambrigde University Press, 2006, pp. 88-89; LEWKOWICZ, Ida e GUTIÉRREZ, Horacio. “Mulheres sós em Minas gerais: viuvez e sobrevivência nos séculos XVIII e XIX” in SILVA, Gilvan V. da, NADER, Maria B. e FRANCO, Sebastião P. História, Mulher e Poder. Vitória, Edufes, 2006, pp. 292-306, p. 298. 1056 Apud ABREU, p. 64. 1057 ABREU, op. cit., p. 81. 1058 Idem p. 71. 1059 Ibidem p. 74. 1060 Ibidem p. 76. 1061 Relação do Marquês do Lavradio, pp. 285-360. 1062 Op. cit., pp. 331-341. Ao somar os dados individuais chegamos ao total de 1.758 caixas de açúcar, 142 pipas de aguardente e 5.156 cativos.

317 ISSN 2358-4912 Na capitania havia 58 engenhos e/ou engenhocas de aguardente de propriedade de mulheres, o que corresponde a 11,2% do total dos proprietários. Destes, três não existiam mais ou foram desativados até data da Relação, restando 55 engenhos produzindo, dos quais dois estavam arrendados. Entre estes existiam 26 engenhos que fabricavam açúcar e aguardente, 12 apenas açúcar e 17 aguardente. Estas mulheres possuíam 1.723 escravos que produziram 770 caixas de açúcar e 636 pipas de aguardente. Estes números davam uma média de 29 escravos fabricavam 13 caixas de açúcar por engenho. No distrito de São Salvador de Campos dos Goytacazes 15 dos 168 engenhos de açúcar eram de mulheres em 1779, destes um estava desativado. O que significa dizer que, 25,8% dos engenhos da capitania, cujas proprietárias eram mulheres, estavam em Campos1063. Com relação ao período de fundação dos engenhos de mulheres, conseguimos apurar as datas para apenas 17 deles na capitania do Rio de Janeiro. Destes, observa-se que a maioria (13) foi criada após 1750, três na segunda metade do XVII e apenas um na primeira metade do século XVIII. Entre 1770 e 1774 surgiram 9 dos 13 engenhos da segunda metade do século XVIII (Tabela 11064). Em Campos dos Goytazes, mais de 4/5 dos engenhos já fabricavam açúcar nos primeiros cinco anos da década de 1770 (Tabela 2)1065. Tais números podem nos indicar - o que pesquisadores como Sheila de C. Faria já constataram para a região de Campos - a dificuldade em se manter um engenho funcionando por mais de uma geração1066. Gostaríamos de destacar duas categorias que aparecem entre as senhoras de engenho: aquelas descritas como Dona 1067 e as viúvas. As viúvas são em número de 11 e as Donas somam 19. É possível que ambos os grupos sejam maiores, uma vez que identificamos uma senhora de engenho que era viúva e aparecia com o título de Dona em um momento e em outro não. Este é o caso de Anna Maria de Jesus. Sabemos pelo rol de inventários, disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, e pela Relação que D. Anna Maria de Jesus era viúva e proprietária dos engenhos Sacopema e Capoeiras, nas freguesias de Irajá e Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande, respectivamente1068. Ao isolarmos as proprietárias que só fabricavam aguardente, as viúvas e as mulheres com título de Dona1069,destacamos algumas características das proprietárias. A maioria das proprietárias de engenhocas de aguardente (41%) tinha planteis de 5 a 10 escravos. Apenas três delas possuíam 46% dos cativos (Tabela 3) que se concentravam em escravarias entre 21 e 50 cativos. Estes escravos produziam uma média de 15 pipas de aguardente por engenho. Houve uma maior concentração de proprietárias de aguardente em duas regiões: Nossa Senhora da Conceição de Ilha Grande e Nossa Senhora dos Remédios de Paraty. Nesta última localidade 100% das propriedades fabricavam apenas aguardente. No que diz respeito às viúvas tem-se que, quase metade delas, detinha entre 21 a 50 indivíduos cativos que rendiam em média mais de 15 caixas de açúcar por engenho (Tabela 4). Quando se isolam apenas as mulheres descritas como Dona, que produzem açúcar e aguardente, 68% delas são proprietárias de planteis de até 50 escravos, sendo que 57% dos cativos se concentravam nestes V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1063

Almeida ao estudar as mulheres proprietárias rurais em Itu, contabilizou 15% (45) das propriedades nas mãos de mulheres. Os engenhos, por outro lado, pertenciam a 24 (22%) mulheres ALMEIDA, Joseph Cesar Ferreira de. Entre engenhos e canaviais: senhoras do açúcar em Itu (1780-1830). USP, São Paulo, 2008, Dissertação de Mestrado, p. 44. 1064 As Tabelas de 1 a 7 estão dispostas em anexo. 1065 Apesar de não virem referidas as datas, os engenhos da Coroa - sequestrado dos Jesuítas -, do Visconde de Asseca e dos religiosos Bentos são anteriores à metade do século XVIII. 1066 Faria, op. cit. 1067 (…) honorific term of prestige usually associated with wealth, respect, and, presumably, white skin. Schwartz 1982, 62. “Dom ... é um título de honra. Eis-aqui o que as leis dizem sobre este Tratamento. Defendemos, que nenhum homem, nem mulher se possa chamar, nem chame de Dom, se lhe não pertencer de direito, por via de seu Pai, e Avô da parte de seu Pai, ou por nossa mercê, ou que nos livros das nossas moradias com o dito Dom andarem. E as mulheres o poderão tomar de seus Pais, Mães, ou Sogras, que o dito direitamente tiverem, como sempre neste Reino se costumou”. Porta Siqueira 1845, 191. Ver também Ordenações Filipinas, Livro V, Título XCII, §7, p. 1243. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1243.htm . Acessado em: 10 de julho de 2014. 1068 Optamos por incluir D. Anna Maria na categoria Dona, uma vez que o título de Dona lhe impunha o pertencimento a uma classe e a desempenhar papeis femininos específicos. 1069 Este grupo corresponde a 32,7% das mulheres proprietárias de engenho em 1779.

318 ISSN 2358-4912 planteis. Estes trabalhadores cativos fabricavam em média 25 caixas de açúcar por engenho (Tabela 5). Entre as mulheres da capitania produtoras de açúcar e aguardente ou apenas açúcar, 58% delas tinham planteis entre 21 e 50 escravos, o que correspondia a 52% do total de cativos (Tabela 6). Por outro lado, as senhoras de engenho campistas, tinham a seu dispor 334 cativos, entre estas 46% detinham planteis de 11 a 20 cativos. No distrito, 44% dos escravos estavam em planteis de 21 a 50 cativos. Entre os homens, 34% dos proprietários eram donos de até 50 almas, porém, 4 proprietários possuíam 2.242 trabalhadores cativos (Tabela 5)1070. Estes índices contrastam com o que pesquisadores têm mostrado para economias de subsistência e áreas urbanas, como por exemplo, em Minas Gerais ou São Cristóvão no Rio de Janeiro. Nestes locais Luna e Motta apontam que a maioria dos proprietários possuía entre 1 a 4 escravos1071. O único grupo que se aproxima destes números é ode produtoras de aguardente que em sua maioria tinha escravarias de no máximo 10 escravos. As viúvas e mulheres com título de Dona na capitania do Rio de Janeiro, entre 45% a 68% das proprietárias, eram proprietárias de escravarias com mais de 21 e menos de 50 cativos. Já em Campos dos Goytacazes, observamos que a produção agroexportadora de senhores e senhoras de engenho era sustentada por donos de planteis de 11 a 20 escravos (34% e 46%, respectivamente) (Tabela 7). Especificamente para os proprietários de engenho do distrito de Campos dos Goytacazes temos que: pouco mais de 1/3 dos produtores de açúcar tinham planteis de 11 a 20 escravos, havia uma maior concentração de cativos nas mãos de quatro proprietáriosque possuíam 47% dos cativos1072 (Tabela 7) e, em média, as fábricas rendiam 10 caixas de açúcar por engenho. Estes dados nos revelam que, a maioria dos escravos das propriedades de mulheres viviam em planteis com mais de 21 e menos de 50 indivíduos, tinham mais cativos em média e maior produtividade do que aqueles sob a administração de homens. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusão Podemos concluir que, pelo que vimos anteriormente, havia uma presença significativa de mulheres proprietárias no agro fluminense. Todavia, não nos foi possível identificar pelas fontes, como elas chegaram à condição de proprietárias de engenhos, se por herança de pais, marido ou outra origem. Entre as viúvas, sobretudo, sua condição de meeira do marido, alçou-as à condição de proprietárias, em muitos dos casos em que elas aparecem como donas de engenho. Neste momento específico da história, estas proprietárias faziam parte de um setor ativo e atuante na sociedade do Brasil colonial. Estas mulheres, provavelmente de elite, souberam desempenhar seu papel de administradoras, pois, em sua maioria, tinham planteis significativos de mais de 20 escravos e mantinham uma produção de açúcar maior que aquela dos proprietários de engenho. Certamente elas não deixaram de exercer seu papel de mãe, uma vez que a muitas ficavam viúvas por volta dos 40 anos. Podemos imaginar que, para elas, as esferas pública e privada várias vezes se confundiram. O que nos leva a conjecturar na hipótese de que o que realmente importava era manter a si e à família, não perder o patrimônio, abandonando papeis e estereótipos que na prática levariam estas mulheres à ruína.

1070

Os maiores proprietários de escravos, de acordo com o Relatório do Marquês do Lavradio, eram o Engenho Real sequestrado dos jesuítas (1.400 escravos), dos religiosos de São Bento (432 escravos), do Visconde de Asseca (200 escravos) e do Mestre de Campo João Jozé Barcelos Coutinho (210 cativos). 1071 LUNA, Francisco Vidal da. Minas Gerais, escravos e senhores: análise da estrutura populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). USP, São Paulo, 1980, Tese de Doutorado, p. 57; MOTTA, José Flávio; NOZOE, Nelson & COSTA, Iraci del Nero da. “Às vésperas da abolição um estudo sobre a estrutura da posse de escravos em São Cristóvão (RJ), 1870”. Estudos Econômicos, São Paulo, vol.34, n.1, pp. 157-213, 2004. 1072 Ver nota 44.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

ISSN 2358-4912 Anexos

Tabela 1 - Ano em que os engenhos de propriedade de Mulheres foram fundados: Capitania do Rio de Janeiro (1779) N

%

1651-1700

3

18%

1701-1750

1

6%

1751-1778

13

76%

Total

17

100%

Fonte: Relação do Marquês Lavradio

do

Tabela 2 - Ano em que os engenhos de propriedade de Homens e Mulheres fabricavam açúcar: Campos dos Goytacazes (1779) Homens

Mulheres

N

%

N %

1770-1774*

71

75%

6

86%

1775-1779*

24

25%

1

14%

Total 95 100% 7 100% * Engenhos em que as datas foram fornecidas no Relatório Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

Tabela 3 - Mulheres proprietárias de engenhocas de aguardente em relação ao número de escravos possuídos: Capitania do Rio de Janeiro (1779) Escravos

Proprietárias

N

%

N

%

0-4

12

6%

4

24%

5-10

58

28%

7

43%

11-20

43

20%

3

19%

21-50

97

46%

3

14%

51-100

0

0%

0

0%

Mais de 100

0

0%

0

0%

Total

247

100%

17

100%

Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

319

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

ISSN 2358-4912 Tabela 4 - Mulheres viúvas proprietárias de engenhos de açúcar e aguardente em relação ao número de escravos possuídos: Capitania do Rio de Janeiro (1779) Escravos

Proprietários

N

%

N

%

0-4

3

1%

2

18%

5-10

0

0%

0

0%

11-20

42

13%

3

27%

21-50

191

57%

5

45%

51-100

100

30%

1

9%

Mais de 100

0

0%

0

0%

Total

336

100%

11

100%

Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

Tabela 5 - Engenhos que fabricam açúcar e aguardente de mulheres com título de Dona: Capitania do Rio de Janeiro (1779) Escravos

Proprietários

N

%

N

%

0-4

0

0%

0

0%

5-10

0

0%

0

0%

11-20

36

4%

2

11%

21-50

441

49%

13

68%

51-100

226

25%

3

16%

Mais de 100

200

22%

1

5%

19

100%

Total 903 100% Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

Tabela 6 - Mulheres proprietárias de engenhos que fabricavam açúcar e aguardente e apenas açúcar em relação ao número de escravos possuídos: Capitania do Rio de Janeiro (1779) Escravos

Proprietárias

N

%

N

%

0-4

3

0,20%

1

3%

5-10

5

0,33%

1

3%

11-20

114

8%

8

21%

21-50

785

52%

22

58%

51-100

413

27%

5

13%

Mais de 100

200

13%

1

3%

100%

38

100%

Total 1520 Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

320

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

321

ISSN 2358-4912

Tabela 7 - Homens e Mulheres proprietários de engenho em relação ao número de escravos possuídos: Campos dos Goytacazes (1779) Homens Mulheres Escravos

Proprietários

Escravos

Proprietárias

N

%

N

%

N

%

N

%

48

1%

19

12%

3

1%

1

8%

5-10

267

6%

37

24%

5

1%

1

8%

11-20

788

17%

52

34%

78

23%

6

46%

21-50

1039

22%

37

24%

148

44%

4

31%

51-100

368

8%

5

3%

100

30%

1

8%

+ 100

2242

47%

4

3%

0

0

0

0

154

100%

334

100%

13

100%

0-4

Total 4752 100% Fonte: Relação do Marquês do Lavradio

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V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

323

ISSN 2358-4912 CAPITANIA DE MATO GROSSO: ÍNDIOS E COLONIZADORES NO SÉCULO XVIII Cristiane Pereira Peres1073 Introdução Diante das expedições de colonização, os confrontos com os povos indígenas sempre foram um problema enfrentado pelas autoridades portuguesas, visto que, esses povos eram tidos como um empecilho para o desenvolvimento do projeto colonizador. Nesse sentido, é preciso analisar as estratégias de defesa mantidas pelas sociedades indígenas durante o século XVIII na Capitania de Mato Grosso. O autor John Manuel Monteiro quanto à procura por trabalhadores indígenas evidencia que “os colonos buscavam suprir-se, inicialmente, de duas maneiras: através do escambo ou da compra de cativos” 1074. Dessa forma, é necessário analisar os confrontos, negociações, acomodações, e resistências mantidas no período colonial, sob a perspectiva defendida por Jacques Le Goff (1992), em que o historiador ainda possui a função social de refletir sobre a memória falseada, contribuindo com esclarecimentos e retificações, onde a história passa a ser um instrumento de libertação dos poderes já consolidados. Entretanto, quanto à história dos povos indígenas, de acordo com Pedro Puntoni, “os índios ficaram, por muitos anos, assunto apenas dos arqueólogos ou dos antropólogos. Foram estes, enfim, que trouxeram, pouco a pouco, a necessidade de se escrever a história destes povos” 1075. Nessa perspectiva, é sabido que os índios também se apresentaram enquanto agentes políticos extremamente importantes na construção da sua própria história, mantendo fugas, ataques e alianças frente ao processo de civilização dos jesuítas e colonizadores. Assim, para pensar o contato entre indígenas e colonizadores é preciso abordar a pesquisa enquanto uma produção historiográfica, na qual Michel de Certeau elucida que “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural” 1076. Nesse contexto, é importante evidenciar que entre os séculos XVI e XVIII havia no Brasil os índios aldeados e aliados dos portugueses e índios inimigos espalhados pelo sertão, sendo regidos por políticas indigenistas diferenciadas. Aos índios aldeados e aliados era garantida a liberdade ao longo de toda a colonização, sendo os principais defensores da colônia, constituindo o grosso dos contingentes de tropas de guerra contra inimigos tanto indígenas quanto europeus1077. Logo, as abordagens aqui apresentadas buscam analisar as relações estabelecidas entre os povos indígenas e os colonizadores com as descobertas do ouro durante o século XVIII em Mato Grosso, identificando as estruturas sociais que passariam a nortear o contato entre esses povos (autoridades coloniais, negros, diversos povos indígenas “Bororos, Paresis, Guatirias, Paiaguás, Caiapós, Pacanauas, Guaicurus”, outros e jesuítas). Legislação colonial Durante o período colonial, a relação entre índios e colonizadores era norteada por diversas leis que tinham como objetivo o sucesso da colonização conduzida pela Coroa portuguesa. Devido aos limites deste artigo, não será possível descrever toda a legislação deste período, sendo abordadas as leis que sustentavam o trato com os índios. 1073

Mestranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD. [email protected] MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 30. 1075 PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2002, p. 15. 1076 CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 66. 1077 PERRONE-MOISÉS, B. Índios Livres e Índios Escravos: Os princípios da legislação indigenista do período colonial (século XVI – XVIII). 1992, p.118. 1074

324 ISSN 2358-4912 Nesse sentido, dentre as leis que foram criadas para justificar e legitimar as ações colonizadoras pode-se citar: a lei de 24/2/1587 – que obrigava a presença de missionários juntamente às tropas de descimentos; o regimento de Tomé de Sousa de 1547 a 1757 que trata dos descimentos; o Alvará de 21/8/1582 e Provisão Régia de 1/4/1680 que trata dos aldeamentos; assim como a Lei de 1611; o Diretório de 17571078. Desta forma, para impulsionar a colonização, muitas táticas foram articuladas pela Coroa portuguesa, dominando, escravizando e matando muitos dos índios, destacando entre elas: descimentos (1547); aldeamentos (1582); a coligação com os índios aliados; assim como a catequese e a civilização presentes durante o projeto colonizador, tidas por Perrone (1992) como ações principais na implantação do mesmo. De acordo com Perrone V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

os descimentos são concebidos como deslocamentos de povos inteiros para novas aldeias próximas aos estabelecimentos portugueses. Os aldeamentos possui a função de incentivar o contato com os portugueses, facilitando assim tanto a civilização dos índios quanto a utilização de seus serviços, são em geral situados próximo das povoações coloniais. A coligação com os índios aliados acarretava participação desses índios nas guerras movidas pelos portugueses contra índios hostis e estrangeiros 1079.

O século XVIII teve grande interesse pelos esquemas de dominações, no qual o poder se apresentava por meio das limitações e proibições gerais, assim, manter os índios próximos aos locais em que estavam os colonizadores, significava a dominação desses povos e a utilização de seus serviços, assim como, a conquista dos indígenas que se recusavam descer para esses locais. De acordo com Maria Regina Celestino de Almeida, para os povos indígenas, os aldeamentos significou um mal menor diante de outras estratégias colonizadoras1080. Assim, os índios aldeados encontraram meios para manter sua identidade e cultura, transformando, associando e permanecendo quando preciso. Nessa perspectiva, Loiva Canova escreve que: a sociedade que ia se constituindo, a partir das descobertas do ouro, na espacialidade em que se fundou a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, e, posteriormente, na região que veio a se denominar Mato Grosso, também fruto de descobertas auríferas, exigiu da Coroa Portuguesa um projeto colonizador sofisticado, capaz de justificar suas escolhas e definir estratégias de concorrência e de dominação sobre os indígenas e seus territórios. A implementação deste projeto, no que respeita aos indígenas, exigia a formação de uma nova identidade histórica, nela moldando um sistema econômico, político e cultural de relações, uma identidade social que previa a relação de poder vinda de um soberano, padronizando religião, língua e conceitos sócio-culturais1081.

Assim, para justificar o trato com os índios durante a colonização, leis foram criadas. Deste modo, de acordo com Perrone (1992), quanto à escravidão dos índios, a Lei de 20/3/1570 e a de 11/11/1595 tornam lícito o cativeiro para aqueles que sejam capturados em guerra. No século seguinte, a lei de 30/6/1609, na tentativa de reprimir as escravizações ilícitas, torna livres todos os índios do Brasil, sem exceções. Porém, anos depois, a Lei de 10/9/1611, sendo justificada pela agressividade por parte dos índios, torna legal novamente a escravidão dos índios que fossem aprisionados em guerra justa. Podese perceber que a legislação indigenista foi, em sua prática, contraditória. Além da escravidão dos indígenas por meio de guerra, ocorreu também no período colonial a escravidão por meio do resgate, sendo utilizada pela Coroa Portuguesa de forma lícita. Sendo o resgate 1078

Ibidem, p. 119. Ibidem, p. 118 e 121. 1080 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. 1081 CANOVA, Loiva. Os Doces Bárbaros: imagens dos índios Paresi no contexto da conquista portuguesa em Mato Grosso (1719 – 1757). 2003, p. 15-16. 1079

325 ISSN 2358-4912 legitimado pela “Lei de 1587, retomado posteriormente em Regimento de 21/2/1603 na Lei de 1611, na Provisão Régia de 17/10/1653, no Alvará de 28/4/1688” 1082. Quanto ao resgate, segundo Perrone (1992), a Lei de 10/9/1611 estipula um período de dez anos para que os “resgatados” sejam libertos, fato que não ocorreria caso o preço pago por eles fosse superior ao declarado pelo governador e os adjuntos. Para tanto, frente aos abusos cometidos pela Coroa Portuguesa, somente no início do século XVIII, em especial no ano de 1707, é que o rei envia duas Cartas Régias ao governador do Maranhão tratando de punição aos excessos acontecidos no aprisionamento por meio de resgates pelas tropas responsáveis. Nesse contexto, segundo Perrone “as justas razões de direito para a escravização dos indígenas, de que fala, por exemplo, a Lei de 1680, são basicamente duas: a guerra justa e o resgate” 1083. Onde a legalidade de deferir as chamadas guerras justas era perante a não aceitação à conversão ao catolicismo e a agressividade contra membros e aliados à Coroa Portuguesa. Dessa forma, para evitar que se movam guerras injustas e se escravizem seus prisioneiros, os reis vão limitando cada vez mais a possibilidade de declará-las, chegando a estabelecer que serão justas apenas as guerras que o rei de próprio cunho declara, (Lei de 11/11/1597; Lei de 9/4/1655)1084. Nesse sentido, em nível de justificação por parte dos colonizadores para incitar guerra contra os índios, era preciso comprovar a inimizade desses povos. Porém, “nos documentos relativos às guerras, trata-se sempre de provar a presença de um inimigo real. Tudo leva a crer que muitos desses inimigos foram construídos pelos colonizadores cobiçosos de obter braços escravos para suas fazendas e indústrias” 1085. Nos documentos oficiais do século XVIII, encontram-se cartas que tratam das hostilidades dos índios, assim caracterizadas pelas autoridades coloniais. Vejamos um trecho de uma carta V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

enquanto o gentio Paiaguá é constante que desde o estabelecimento destas minas sempre cometeram hostilidades, assim nós moradores, como nós comerciante e viajantes que navegam e navegam por aqueles rios, tirando a vida a muitas mil pessoas, acabando e destruindo monções inteiras, roubando-lhes as fazendas e escravos para ir vender a Castela; e além disso muitas arrobas de ouro de partes, e algumas de quintos de Sua Majestade, que Deus guarde. Por repetidas vezes lhes fizeram guerras às suas custas os habitantes deste país, e Sua Majestade lhes mandou fazer de uma vez em que acabaram muitos, mas não extinguiram por repetir os insultos1086.

Dessa maneira, faz-se necessário analisar e compreender como as representações mantidas pelos colonizadores acerca dos povos indígenas e os discursos elaborados pela Coroa Portuguesa, construíam uma relação de dominação no período colonial. Assim, este estudo busca desconstruir a História passada através do eurocentrismo europeu. Nesse contexto, frente às suspeitas levantadas sobre irregularidades na legislação, a Coroa Portuguesa passa então a proibir as guerras e a escravização dos indígenas, perante a Lei de 1/4/1680, que passa a declarar a liberdade de todos os indígenas do Brasil. Mas essa liberdade não permaneceu por muito tempo seis anos depois a Carta Régia de 2/3/1686, apresenta os índios enquanto desleais e violentos nas relações com os moradores. Já “a Carta Régia de 25/10/1707 menciona documentos recebidos da colônia que comprovam ‘os grandes e atrozes delitos e horríveis extorsões’ dos gentios, declarando-lhes guerra” 1087.

1082

PERRONE MOISÉS, B, 1992, p. 128. Ibidem, p. 123. 1084 PERRONE-MOISÉS, B., 1992, 124. 1085 Ibidem, p. 125. 1086 Carta dos Vereadores da Câmara da Vila do Cuiabá ao Governador e Capitão General da Capitania do Mato Grosso, Luis Pinto de Sousa Coutinho, propondo providencias para conter as hostilidades dos índios Caiapó, que haviam feito um ataque nas lavras do Médico, e Paiaguá, que chegaram no Piraim, rio Cuiabá abaixo. Vila do Cuiabá, 30/3/1771. BR APMT. CVC. CA Nº 0037 Caixa 001. 1087 PERRONE-MOISÉS, B., 1992, 126. 1083

326 ISSN 2358-4912 Em outra data, “cartas do vice-rei do Brasil de 1723 e 1726 pedem índios das aldeias para fazer uma campanha ao gentio bárbaro que hostiliza os vassalos de sua majestade, e os exemplos podem ser multiplicados” 1088. Dessa forma, quando os colonizadores passam a caracterizar os índios enquanto inimigos devido à hostilidade tida pela Coroa Portuguesa e é declarada guerra justa, as consequências são devastadoras. Os mesmos são alvos de ataques, apresamentos, destruição de suas aldeias, matanças e escravidão, essas organizações são intensificadas durante o século XVII e início do século XVIII, objetivando uma destruição dos povos indígenas. Segundo Luiza Volpato, “o apresamento dos indígenas só era possível através dos ataques e lutas” 1089. Sendo assim, quando os inimigos são autores comprovados de violências e atrocidades a guerra é julgada justa. Mesmo que se rendam, o máximo que podem esperar é que se lhes poupem as vidas em cativeiro “não só se hão de matar todos os índios que na dita guerra resistirem, mas cativar aos que se renderem e que estes cativos se hão de vender em praça pública”, ficando estabelecido por meio da Carta Régia de 25/10/17071090. Segundo Patrícia Maria Melo Sampaio, “até a segunda metade do século XVIII, as modalidades empregadas para a incorporação de mão de obra indígena eram os descimentos, guerras justas e resgates” 1091. No entanto, essas formas de apropriação da mão de obra indígena desencadearam constantes ataques, que norteiam o foco deste trabalho. Deste modo, diante da legalidade no cumprimento das legislações do período colonial, nos deparamos com fraudes que não atendiam aos direitos indígenas, mesmo garantidos na lei. Como por exemplo, a atuação do Diretório dos Índios concebido no ano de 1757 permanecendo até 1798, que “dava ao índio um tratamento específico, visando preparar trabalhadores e povoadores que estivessem a serviço da Coroa, povoando e protegendo as terras da fronteira” 1092. A política do Diretório manteve algumas das instruções gerais das legislações anteriores, destacando: “a divisão dos índios nas categorias de mansos e selvagens, a obrigação do trabalho compulsório para os aldeados, a condição de tutela a eles imposta, e a garantia das terras das aldeias para os índios” 1093. Com base nas leis anteriores, a grande mudança foi à política da miscigenação, incentivada por meio dos casamentos. Os documentos oficiais também comprovam as falhas existentes quanto à atuação do Diretório no trato com os povos indígenas, sendo preciso “[...] representar-lhe a toda hora que são livres que lhes não deixam usar das suas coisas com liberdade, que os obriguem como pretos a trabalhar, e outras semelhantes coisas que agradam aos mesmos índios e lhe infundem um horror ao trabalho, quando para estes somente os deviam encaminhar” [...] 1094. Dessa forma, cabe contextualizar que a política indigenista sempre buscou pela imposição de novas culturas, afastar cada vez mais os índios da sua própria identidade, porém, cada povo a sua maneira, soube mudar e permanecer quando necessário. De acordo com Volpato, “a luta pela sobrevivência, no início da colonização do Brasil, era uma pesada realidade vivida por todos e cada um” 1095. Destarte, Pedro Puntoni descreve que os povos indígenas durante a época da “Guerra dos Bárbaros” (1650-1720), articulavam frequentes levantes para impedir o avanço dos colonizadores. Visto que “as diversas guerras movidas aos índios bravos se estenderam por todo o sertão pernambucano ou baiano, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1088

Ibidem, p. 125. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Entradas e bandeiras. São Paulo: Global, 1985, p. 46. 1090 PERRONE-MOISÉS, B., 1992, p.127. 1091 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: Etnia, Legislação e Desigualdades na Colônia. Sertões do Grão-Pará, c 1755- c.1823. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2001, p. 60. 1092 BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato Grosso: 1752-1798. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Cuiabá – MT, 2007, p. 16. 1093 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 109. 1094 Carta do Juiz de Fora da Vila do Cuiabá, João Batista Duarte, ao Governador e Capitão General da Capitania do Mato Grosso Luis de Albuquerque Melo Pereira e Cáceres, versando sobre o tratamento que devem dar aos índios de acordo com o Diretório dos Índios. Vila do Cuiabá, 10/11/1775. BR APMT CVC JF CA Nº 0400 Caixa 008. 1095 VOLPATO, 1985, p. 35. 1089

327 ISSN 2358-4912 os episódios do Açu acabaram por cristalizar de maneira mais dramática o resultado de décadas de tirania e aniquilamento, mobilizando diversas nações em conflitos continuados” 1096. Nesse sentido, busca-se lançar olhares sobre os povos indígenas do século XVIII, enquanto sujeitos históricos que se organizaram frente aos confrontos com os colonizadores. Lembrando que para os colonos, os indígenas foram extremamente importantes no trabalho de guias, diante do conhecimento que possuíam do sertão1097. Assim, era mantida certa proximidade entre colonizadores e indígenas pela qual garantia a sobrevivência de ambos. Logo, “os índios mantiveram-se muito presentes nessa história, tanto nas petições que se faziam ao rei, para justificar as mercês solicitadas, quanto nos sertões adjacentes, desafiando os portugueses” (ALMEIDA, 2003, p.88). Deste modo, “a maioria dos índios recusava-se a trabalhar para os colonos, e mesmo aqueles que aceitavam não respeitavam as condições de pagamento, voltando para o aldeamento [...]” (MONTEIRO, 1994, p. 46). São perceptíveis as diversas formas adotadas pelos indígenas para reagirem ao projeto colonizador. Os Anais de Vila Bela (2006) apresentam muitas das ações realizadas pelos colonizadores, assim como das práticas de resistência mantidas pelos indígenas. No ano de 1763, por exemplo, soldados caminhando pelo interior do mato, se depararam com índios trabalhando, e ao realizar o ataque não conseguiram aprisionar nenhum, pela resistência que fizeram, no conflito morreram dois índios e os demais fugiram. Relatos muitos semelhantes a este estão nos Anais de Vila Bela e de Cuiabá, apresentando as diferentes formas que os indígenas reagiram e resistiram às práticas colonizadoras. Pode-se afirmar que inúmeras foram as formas pelas quais os índios sobreviveram aos ataques sofridos, provindos de uma ambição mercantil da Coroa Portuguesa, na tentativa de extinguir todos aqueles que fossem uma ameaça ao novo empreendimento. Entre as políticas de resistência indígena, destacam-se: o suicídio, os assassinatos das autoridades coloniais, as alianças, os furtos, o casamento com o não índio, as fugas, a formação dos quilombos, as negociações, as acomodações. Portanto, para evitar as falsificações diante das representações, Roger Chartier (2011, p. 15), descreve que “os historiadores precisam se libertar das representações ilusórias ou manipuladoras do passado e estabelecer a realidade do que foi”. Sendo então de extrema importância inverter o olhar ao analisar a relação entre indígenas e colonizadores, desconstruindo uma História pautada na superioridade do europeu, diante da passividade e aniquilamento dos índios. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais As discussões abordadas neste artigo nos revelam o vasto campo de pesquisa ainda a ser explorado sobre as relações estabelecidas entre os colonizadores e os povos indígenas mantidas pela legislação colonial em Mato Grosso. Entretanto, devido aos limites deste artigo, muitas questões de relevância não foram apresentadas, abrindo espaço para novas pesquisas que venham contribuir com a discussão realizada até o momento. Dessa forma, entender o projeto colonizador português fugindo de uma simples análise de agentes históricos ativos e passivos, é de extrema importância para incitar uma mudança no imaginário da sociedade de que os povos indígenas foram somente vítimas deste projeto. Perante o estudo realizado até o momento, é perceptível que muitas foram as políticas de resistência organizadas pelos indígenas para sobreviverem às práticas de extermínio articuladas pela Coroa Portuguesa, fosse ela física ou cultural. Portanto, os povos indígenas foram sujeitos ativos durante o projeto colonial português, resistindo às diversas ações de extermínio, civilização e catequização que eram garantidas em lei. E quando a legislação tornava libertos todos os índios brasileiros, as guerras mantidas pelos colonizadores ocorriam de forma ilícita, ou então, tornavam os indígenas inimigos, caracterizando-os enquanto agressivos e perigosos para tornar novamente lícita a prática do cativeiro, a escravização, assim como o extermínio, provocado pelas guerras justas. 1096

PUNTONI, 2002, p. 44. “Eram regiões normalmente não habitadas pelos portugueses, onde certamente haveria forças potencialmente perigosas”. JESUS, Nauk Maria de (org.). Dicionário de História de Mato Grosso: Período Colonial. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato, 2011, p. 256. 1097

328 ISSN 2358-4912 Concluindo, as relações estabelecidas entre os colonizadores e os povos indígenas, estavam extremamente ligadas a políticas mantidas por ambos, sejam elas de ataques, fugas, ou de alianças.

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Referências Fontes Impressas ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Transcrição e sua organização Yumiko Takamoto Suzuki. Cuiabá, MT: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. ANAIS DE VILA BELA – 1734-1789. Janaína Amado, Leny Caselli Anzai. Cuiabá, MT: Carlini e Caniato: EdUfMT, 2006. APMT – Arquivo Público de Mato Grosso Carta do Juiz de Fora da Vila do Cuiabá, João Batista Duarte, ao Governador e Capitão General da Capitania do Mato Grosso Luis de Albuquerque Melo Pereira e Cáceres, versando sobre o tratamento que devem dar aos índios de acordo com o Diretório dos Índios. Vila do Cuiabá, 10/11/1775. BR APMT CVC JF CA Nº 0400 Caixa 008. Carta dos Vereadores da Câmara da Vila do Cuiabá ao Governador e Capitão General da Capitania do Mato Grosso, Luis Pinto de Sousa Coutinho, propondo providencias para conter as hostilidades dos índios Caiapó, que haviam feito um ataque nas lavras do Médico, e Paiaguá, que chegaram no Piraim, rio Cuiabá abaixo. Vila do Cuiabá, 30/3/1771. BR APMT. CVC. CA Nº 0037 Caixa 001. Referências ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo nacional, 2003. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato Grosso: 1752-1798. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Cuiabá – MT, 2007. CANOVA, Loiva. Os doces bárbaros: imagens dos índios Paresi no contexto da conquista portuguesa em Mato Grosso (1719-1757). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Cuiabá – MT, 2003. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In._______. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982. CHARTIER, Roger. Defesa e Ilustração da Noção de Representação. Fronteiras: Revista de História/Universidade federal da Grande Dourados. Dourados, v.13, n 24, p. 15-29, jul./dez. 2011. JESUS, Nauk Maria de (org.). Dicionário de História de Mato Grosso: Período Colonial. Cuiabá, MT. Carlini & Caniato, 2011. LE GOFF, Jacques. História. In._______. História e Memória. 2ª ed. Campinas: Edunicamp, 1992. MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. PERRONE-MOISÉS, B. Índios Livres e Índios Escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial. In: Manuela Carneiro da Cunha. (Org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992, v., p. 115-132. PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2002. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: Etnia, Legislação e Desigualdades na Colônia. Sertões do Grão-Pará, c 1755- c.1823. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2001. VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Entradas e bandeiras. São Paulo: Global, 1985.

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ISSN 2358-4912 A PRESENÇA DE NATURALISTAS LUSO-BRASILEIROS NA OBRA PLUTO BRASILIENSES; MEMÓRIAS SOBRE AS RIQUEZAS DO BRASIL EM OURO, DIAMANTES E OUTROS MINERAIS VOLUMES 1 E 2 Daniela Casoni Moscato1098 O viajante e sua narrativa Da grande variedade de cor e de cristalização que possuem os diamantes brasileiros não posso dar aos leitores uma boa ideia, senão reproduzindo aqui a descrição, por mim publicada no segundo volume do "Jornal do Brasil", dos diamantes do Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, registrados por Câmara, descritos e classificados por mim.1099

O fragmento acima é parte da narrativa científica de viagem intitulada Pluto Brasilienses; memórias sobre as riquezas do Brasil em ouro, diamantes e outro minerais, publicada em Berlim em 1833 e escrita por Wilhelm Ludwig von Eschewege (1777-1855), um dos muitos naturalistas do século XIX que publicaram suas descobertas, pesquisas e aventuras. Em linhas gerais, os escritos científicos de viagem fortaleceram-se ao longo do século XVIII, refletindo as modificações da chamada História Natural. Entretanto, mesmo em séculos anteriores, já era comum a circulação de informações sobre os muitos deslocamentos pelos cantos do mundo. Um dos resultados desse trânsito por terras e mares, foi a escrita ou, como classificou Mary Anne Junqueira, os produtos dessas viagens: textos ficcionais, guias, notícias, artigos em periódicos e, o que mais aqui interessa, os relatos. Além de refletirem “mudanças estéticas e estilos culturais de cada época”, os relatos também se subdividem em classificações como narrativas, memórias, cartas e diários1100. Dessa forma, é comum compreender esse corpus heterogêneo de textos, científicos ou não, como um gênero literário, o qual se convencionou classificar como literatura de viagem. Ao se conferir rapidamente a citação, percebe-se possibilidades de abordagens teóricas e enfoques temáticos diferenciados. A primeira delas seria baseada na descrição mineralógica dos diamantes de “grande variedade de cor e de cristalização que possuem os diamantes brasileiros não posso dar aos leitores uma boa ideia, senão reproduzindo aqui a descrição ”. De maneira rasa, essa curta citação permite, entre outras, a aplicação da abordagem clássica de análise dessa tipologia de fonte, segundo a qual, os elementos escritos são compreendidos como uma representação do viajante em comparação com o modelo de seu local de origem. Entretanto, o pequeno trecho evidencia outros elementos que nos são caros para a análise aqui proposta, como o esclarecimento de estudos já publicados pelo mineralogista- especificamente no Jornal do Brasil, em 1811-1817 – e a menção ao naturalista lusobrasileiro Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá ( 1762-1835), o qual será retomado e acurado ao longo deste texto . Tornar complexa essas duas informações – o texto Jornal do Brasil e ao naturalista Câmara - foi essencial na busca e apreensão da presença de naturalistas luso-brasileiros na obra Pluto Brasilienses. Natural do grão-ducado de Hesse, Alemanha, Eschewege estudou ciências naturais e mineralogia na Universidade de Göttingen, um centro científico importante nos séculos XVIII e XIX, muito frequentado e visitado por naturalistas de todo globo1101. Ainda em Göttingen, Eschewege teve como contemporâneo Georg Heinrich von Langsdorff ( 1774-1852), que esteve no Brasil de 1803 a 1820 e de 1824 a 1830. 1098 Doutoranda em História/UFPR. Bolsista CAPES 1099

Eschewege, Wilhelm Ludwig von Pluto Brasilienses; memórias sobre as riquezas do Brasil em ouro, diamantes e outros minerais v. 1 e 2 São Paulo: Editora Nacional, 1944. p. 226, vol. 2. 1100 JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de viagem como fonte para o historiador. Cadernos de Seminários de Pesquisa / orgs. Mary Anne Junqueira, Stella Maris Scatena Franco. – São Paulo : Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo / Humanitas, 2011.pp. 45-54 1101 A Universidade de Göttingen mantém remessas científicas de famosas viagens como a do Capitão James Cook, compondo a CooK-Foster Collection.

330 ISSN 2358-4912 Dos naturalistas que percorreram o território brasileiro no oitocentos, o Barão de Eschewege apresenta aspectos basilares na compreensão dos seus escritos de viagem, como sua relação com o Reino de Portugal e Algarves, iniciada em 1803. Na ocasião, contratado pelo reino, exerceu o cargo de diretor de minas em território lusitano aventando informações geológicas, paleontológicas e técnicas de mineração, trabalho que realizou até 1810. Era comum em Portugal, como em outros territórios europeus, a contratação de estrangeiros para atuarem em explorações e descobertas de riquezas naturais, o caso de Domenico Vandelli (1735-1816) foi exemplar no processo de desenvolvimento das ciências portuguesas. Eschewege , da mesma forma, representou um padrão de profissional da ciência utilitarista constituído ao longo do século XVIII, como bem demonstraram Marie-Noëlle Bourguet e Vincenzo Ferrone1102. A experiência de deslocamento no mundo europeu, e além dele, era comumente determinante para a formação desses homens de ciência e, quando profissionais, para a continuidade do trabalho. Seguindo o gosto do século, em 1810, o Barão de Eschewege atravessou o Atlântico rumo à América Portuguesa, onde morou até 1821. Nessa longa permanência, manteve-se funcionário do reino português dirigindo o Real Gabinete de Mineralogia, desenvolvendo pesquisas mineralógicas e mantendo contatos com personagens importantes das ciências naturais portuguesas: José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812) e o já citado Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá, mais conhecido como intendente Câmara. O período de permanência em terras brasileira também propiciou a Eschewege, conhecido como “pai da mineralogia no Brasil”, fortalecer suas relações científicas, como recordaram Sheila Maria Doula, Thaís Helena de Almeida Slaibi e Maria Fernanda de Aguiar Costa. No Brasil, Eschewege estabeleceu ou fortaleceu intercâmbios científicos com viajantes como Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), Johann Baptiste von Spix (1781-1826), Langsdorf, Guido Tomás Marliére ( 17671836), Johann Baptist Emanuel Pohl ( 1782-1834), John Luccock (?-?) e Auguste de Saint-Hilaire (17791853), e fez de sua residência na antiga Vila Rica “(...) não só um pouso ao longo da viagem, mas especialmente um centro de atualização teórica e troca de informações multi-disciplinares.”1103 As pesquisas e viagens realizadas durante esses onze anos foram apresentadas e publicadas em importantes Annales do período1104, algumas quando ainda morava na América portuguesa. Ao retornar à Alemanha; compilou, para redigir a obra aqui analisada, informações de diários, anotações e leituras de outros cientistas. A partir desses muitos exercícios de memória, retomada de anotações e leituras de literaturas concomitantes, publicou, após uma longa espera, os dois volumes de Pluto Brasilienses, nome que indica uma predileção pela teoria plutônica ou plutonismo defendida por James Hutton (1726-1796)1105 Na escrita de Pluto Brasilienses, apesar da predominância de análises mineralógicas e geológicas, o autor não descarta sua experiência brasileira; entre seus estudos e conclusões, referentes às minas e geologia, traça uma espécie de História do Brasil - amparada em decretos e correspondências oficiais discorre acerca de costumes brasileiros, detalha a exploração aurífera na província de Minas Gerais, relata a escravidão e opina sobre a política portuguesa, propondo até soluções. Além disso, o mineralogista utiliza-se de um recurso comum aos relatos de viagem: a escrita de si mesmo, momento no qual o autor especifica desafetos e esclarece maus entendidos, como o curioso caso de uma hospedagem oferecida pela viúva D. Joaquina da Silva Oliveira Castelo Branco: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Desejo tornar pública aqui, a minha gratidão a essa digna senhora e a seus filhos, pela maneira gentil com que, durante semanas, às vezes, me acolheram nas frequentes viagens que fiz àquela região, e pela maior 1102

VOVELLE, Michel. “O homem do Iluminismo”. Lisboa: editorial presença, 1997 “(...) not only an accommodation point during the trips, but, specially a center of teoric actualization and change of multi-disciplines informations.” DOULA, Sheila Maria; SLAIBI, Thaís Helena de Almeida; COSTA, Maria Fernanda de Aguiar. Science and nature for the empire's wealth: the baron Eschewege and the mineralogist's project for Brazil during the XIX century. Sociedade & Natureza, Uberlândia, Special Issue, 551560, May, 2005. p.554 1104 Sobre as obras completas de Eschewege ver RENGER, Friedrich E. O QUADRO GEOGNÓSTICO DO BRASIL. DE WILHELM LUDWIGVON ESCHWEGE: BREVES COMENTÁRIOS À SUA VISÃO DA GEOLOGIA NO BRASIL. GEONOMOS, UFMG, 13, 2005.pp 91-95 1105 James Hutton, naturalista e geólogo escocês, acreditava que todas as rochas teriam sido criadas por meio da atividade vulcânica, daí o nome plutonismo, uma referência ao deus romano Plutão. 1103

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ISSN 2358-4912 hospitalidade que dispensaram a diversos naturalistas, recomendados por mim. Devo desmentir também um boato que corre a meu respeito, espalhado por alguns viajantes e subscrito por outros. Teria sido contrário à delicadeza dessa digna senhora oferecer a um barão alemão um presente de mil bois e algumas centenas de cavalos e, mais ainda, receber este um tal presente1106.

Grosso modo, os elementos evidenciados - narrar os modos de viagem, traçar uma história local, discorrer sobre os conhecimentos naturais, conferir atenção ao gentio e aos costumes locais - são identificados em outros escritos de viajantes, publicados nas primeiras décadas do século XIX. Auguste de Saint-Hilaire, anteriormente mencionado, e Maximilian zu Wied-Neuwied ( 1782-1867), são alguns dos conhecidos e muitos explorados pela historiografia brasileira. A presença dos luso-brasileiros em Pluto Brasilienses Não há dúvida de que cada relato de viagem é único. Assim, há necessidade de considerar o viajante e suas experiências possíveis de averiguação, como a formação científica e estabelecimento de redes de sociabilidade. Como bem analisou Stella Maris Scatema Franco, a melhor forma para se compreender um material escrito sobre viagem é considerar a “descrição como uma interpretação que visa valorizar o lugar de enunciação do autor do relato.”1107. Entretanto, é importante acrescentar que as escritas de viagem, especificamente de um mesmo período histórico, utilizam recursos comuns para a narração do itinerário. Em análise precisa, Flora Süssekind define-os como topoi da literatura de viagem: “ as tempestades, as cenas de chegada a lugares desconhecidos, as descrições de paisagens e tipos exóticos, os difíceis percursos por terra ou por mar (...)”1108 . O texto de Eschewege não foge dessas convenções e o mineralogista, ao descrever essa experiência única, usa de sua subjetividade e caracteres comuns de um gênero literário complexo, muito escrito e lido. Um dos lugares comuns desse gênero é a valorização da experiência física e da observação do viajante como forma de adquisição de conhecimento. Eschewege, ao pormenorizar sua investigação durante a estada no Brasil, reconta a viagem como uma aventura rumo a rincões desconhecidos e perigosos. A aventura, o desconhecido, e o viajante - como desbravador desses lugares – eram representações comuns nas obras desses indivíduos: o viajante é aquele que “vê” e tem seu aprendizado realizado por meio da experiência: Como as rochas do Brasil são ainda pouco conhecidas e quase nada esclareça a exploração de minas, não se pode afirmar coisa alguma com segurança. Limitar-me-ei, pois, ao que pude conhecer através de observações e pesquisas que eu próprio fiz, no decorrer de onze anos de permanência nas regiões auríferas. Somente essa longa permanência e as contínuas e repetidas viagens puderam esclarecer-me sobre a questão. De fato, até então ninguém oferecera indicações a respeito. A pobre técnica mineira e a completa ignorância dos mineiros no que se refere aos conhecimentos geológicos, muito menos o poderiam dar1109.

A experiência aventuresca da viagem, e nesse caso uma aventura científica, não excluía a busca de informações em outras descrições, como aponta parte da citação que abre este artigo, ao destacar o intendente Câmara. Ao se observar, criteriosamente, esses relatos, identificou-se que argumentos e recursos outros tornavam tais descrições “confiáveis”, como citar e discutir diferentes autores. Dessa forma, os naturalistas, os quais produziram esse gênero literário, podem ser percebidos além do olhar e da experiência presencial: eram tanto viajantes quanto leitores de relatos de viagem e de literatura científica conexa. 1106

ESCHEWEGE, 1944, p. 281, vol2. FRANCO, Stella Maris Scatema. Relatos de viagem: reflexões sobre seu uso como fonte documental. Cadernos de Seminários de Pesquisa / orgs. Mary Anne Junqueira, Stella Maris Scatena Franco. – São Paulo : Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo / Humanitas, 2011. v. 2. p.68 1108 SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p. 58 1109 ESCHEWEGE, 1944, p. 276 1107

332 ISSN 2358-4912 Em Pluto Brasilienses, identificou-se fragmentos de leituras de outros naturalistas viajantes presentes ora no corpo textual, ora nas notas de rodapé – que apresentam elogios aos amigos, críticas acerca de análises anteriores e são corriqueiramente usados como apoio da narrativa escrita sobre o que o viajante viu. Enfim, os relatos de viagem do século XIX, embora sejam baseados na necessidade de comprovar a experiência presencial, não descartaram o diálogo com os olhares de outros viajantes. Tal comunicação é mais usual entre contemporâneos, como o caso da referência a Carl Friedrich Philipp von Martius e a Johann Baptiste von Spix no texto de Eschewege: “Segundo meu modo de pensar, trata-se de turmalinito friável, contendo manganês. O sr. Zinchen julga-a óxido de ferro manganesífero, enquanto von Spix e von Martius a consideram minério de manganês acinzentado, semelhante ao turmalinito.”1110 O “pai da mineralogia no Brasil” citou vinte e sete autores em seus dois volumes do Plutos Brasilienses, dos quais dezoito são europeus – seis alemães, quatro ingleses, dois italianos, um francês, um austríaco e quatro não identificados -, seis luso-brasileiros e três obras, que, até o momento, não se verificou a autoria. Dentre eles, privilegiou-se os viajantes naturalistas que estiveram no Brasil entre 1808 e 1822 – botânicos, mineralogistas, geógrafos, etnólogos etc. -, pesquisando o clima, os minerais, a fauna, a flora e outras características brasileiras. Muitos, igualmente, publicaram seus estudos nesse mesmo período. Nessa listagem levantou-se, também, as seguintes informações: nome, período de vida, nacionalidade, período de viagem ao Brasil e, se necessário, observações adicionais sobre o autor e a viagem em questão. A quantificação dessas referências, permitiu averiguar, de maneira inicial, quem estava sendo lido e citado, como levantar hipóteses de valorização de determinados centros científicos em detrimento de outros. Em relação aos luso-brasileiros que são identificados nesse levantamento, importante esclarecer que esses participaram do movimento setecentista e, quando jovens, como súditos da coroa portuguesa, dirigiram-se à metrópole para estudar na Universidade de Coimbra. Finalizados os estudos, tais indivíduos foram enviados, como profissionais da Coroa, a vários cantos da Europa e aos muitos cantos do Império, inclusive, à América portuguesa. Esse trabalho oficial possibilitou a produção de inúmeros documentos, dentre eles, relatos de viagem: memórias e diários. Os viajantes a serviço do Império português também estreitavam laços com a cultura científica internacional, como ocorreu com José Bonifácio. O luso-brasileiro, privilegiado por uma bolsa de estudos do governo português, viajou por países europeus entre 1790 e 1800. Nesta longa “viagem filosófica”, permaneceu um período duradouro na Alemanha onde teve aulas de filosofia com Emmanuel Kant (1724-1804) e se tornou amigo e correspondente de Alexander von Humboldt (1769-1859): V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A importância dessa viagem para a formação de José Bonifácio e para sua inserção nos círculos ilustrados do período é perceptível ainda por sua aceitação como sócio em várias academias científicas, como por exemplo as de Estocolmo, Copenhague, Turim e Berlim, e a da Sociedade de História Natural e Filomática, de Paris, e a de Física e História Natural, de Gênova.1111

Não se identificou, até o momento da pesquisa, se Eschewege e José Bonifácio tiveram seu primeiro contato no período em que o luso-brasileiro esteve em terras alemãs. Pode-se afirmar, entretanto, que ambos eram amigos e correspondentes de Humboldt e que Bonifácio foi seu chefe em Portugal, entre 1803 e 1810. Tal relação científica continuou durante sua permanência no Brasil e após seu retorno à Alemanha, como demonstrou Friedrich E. Renger em seus estudos sobre o mineralogista. A trajetória científica de Eschewege e sua e relação com o Império Português, pode explicar as citações de nomes e obras em Pluto Brasilienses. O alemão Humboldt, que percorreu a América espanhola entre 1799 e 1804, é mencionado quatro vezes, enquanto que Carl Friedrich Phillipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, seus hóspedes em Minas Gerais, dezessete. Em relação aos luso-brasileiros seis são identificados: João da Silva Feijó (1760-1824), Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt Aguiar e Sá e José Vieira Couto (1752-1827). Cumpre aqui observar que todos frequentaram a Universidade Coimbra, somente Rocha Pita foi aluno 1110

Idem, p. 12 CAVALCANTE, Berenice. José Bonifácio: razão e sensibilidade, uma história em três tempos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. p. 47 1111

333 ISSN 2358-4912 antes da mudança dos estatutos, ocorrida em 1772, no reinado de D. José I (1714-1777) e conduzida por Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1699-1782). A análise se encontra no período de levantamento das referências, mas, até o momento, se pode afirmar a predileção do autor por naturalistas europeus, oriundos de locais em destaque no mundo científico setecentista e oitocentista, como França e Alemanha. Tal fato não poderia ser diferente, pois foram també nesses territórios que a comunidade científica se proliferou em espaços como salões, cafés e associações autônomas, principalmente, na França, onde foi criada a primeira Académie. O naturalista alemão seguia regras específicas do universo científico do final do XVIII e início do XIX. Nesse espaço em construção existia uma estrutura de pesquisa “ que obedecia ao princípio hierárquico da importância e da influência de centros individuais, uma espécie de pirâmide que sancionava na verdade o primado e o prestígio das grandes academias estatais de França, Inglaterra, Prússia, Rússia e Suécia.” 1112 Quando há referências aos luso-brasileiros essas o são, geralmente, negativadas e as ações ou pesquisas desses letrados consideradas questionáveis: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Nessa oportunidade, o dr. Couto também examinou o vieiro de galena, acompanhado de um certo José Soares Roma, antigo fornecedor de mantimentos aos garimpeiros e conhecedor de todas as sendas dos contrabandistas de pedras no sertão. Por intermédio do dr. Couto — que, depois de cinco dias de viagem, descobriu incompletas. Essas informações podiam ser lidas num manuscrito elegantemente encadernado, que ele apresentou ao Príncipe Regente, em 1808. A persistente ideia de que o grande Brasil devia ser tão grande e rico em tudo, como o era em ouro, não se abalou no espírito do Ministro D. Rodrigo, então Conde de Linhares, com a descrição do dr. Couto, que reduziu uma montanha de chumbo à simples proporção de um vieiro. 1113

O dr. Couto, acima citado, é o brasileiro José Vieira Couto, oriundo de Arraial do Tejuco. Cria da Universidade de Coimbra, viajou, em 1799, pelo norte da capitania de Minas Gerais, para investigar os recursos minerais da região e, sobre esta expedição, escreveu a obra Memórias sobre a Capitania de Minas Gerais, de 1801. Em Memória,de Eschewege, as identificações de Couto são questionadas e menosprezadas: o letrado demora para descobrir o vieiro, deixa informações incompletas e, finalmente, reduz “uma montanha de chumbo à simples proporção de um vieiro.”1114 Em outros momentos, os luso-brasileiros aparecem como privilegiados pela Coroa, com todo o tempo e financiamento necessário para realizarem projetos injustificáveis: Como ficou dito páginas atrás, o muito conhecido mineralogista Manoel Ferreira da Câmara resolveu construir, às expensas do Rei, uma grande fábrica de ferro em Minas Gerais, para o que não lhe faltaram nem poder, nem dinheiro, pois obteve ambas as cousas do Governo, que lhe permitiu usar do primeiro e retirar o segundo na Caixa da Administração Diamantina. (…) Somente após a construção de um alto forno, um forno de refino e de um malho, é que Câmara se convenceu intimamente de que a água só bastava para estas três instalações, e isso mesmo no tempo das águas, conforme eu já lhe chamara a atenção, por ocasião de minha visita em 1811. Como, porém, para grande prejuízo da Administração, ele perseverasse teimosamente no seu projeto, teve a ideia de trazer a água para os outros fornos projetados de um córrego afastado, por meio de um difícil canal de uma milha de extensão, projeto esse que, aliás, não foi realizado. 1115

O Intendente Câmara, colega de José Bonifácio da Universidade de Coimbra, foi, a partir de 1112

FERRONE, V. O Homem de Ciência. VOVELLE, Michel. “O homem do Iluminismo”. Lisboa: editorial presença, 1997. p. 164 1113 ESCHEWEG, 1944, p.274 1114 Idem, p. 264 1115 Ibidem, pp.346-348

334 ISSN 2358-4912 1808, administrador da Real Extração de diamantes, na Capitania de Minas Gerais. No extrato de Eschewege, o empreendimento é recontado e o autor destaca os equívocos da fundação da Usina de Ferro de Serro Frio, em Minas Gerais. Os trechos mencionados e algumas correlações levantam as seguintes questões: os fragmentos, exemplificados da obra de Escheweg, exemplificados neste texto, comprovam uma exclusão dos cientistas luso-brasileiros? De que forma essas memórias científicas foram fulcrais e apropriadas por uma rede acadêmica que se estabelecia no início do século XIX? Esses serão apenas alguns dos reptos a serem vencidos durante a pesquisa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Á maneira de Conclusão A mostra de autores e livros remete não apenas a leituras particulares, mas a um perfil de textos lidos numa determinada época por uma particular “república das letras” a saber: os viajantes oitocentistas que percorreram o Brasil. Tal grupo, além de ler, provavelmente, atuou, singularmente, nas interpretações e apropriações dos discursos e das práticas de seu tempo histórico. É Importante destacar que tais naturalistas– em suas especificidades territoriais e áreas de conhecimento – participaram, recusaram ou adotaram processos de uma incipiente “operação científica”. Os livros e periódicos podem até não terem sido lidos, mas o fato de estarem lá, ou não estarem, os tornam autoridade científica e não um escrito qualquer. Os dados levantados, por meio das citações das duas obras mencionadas, comprovam a circulação dos resultados das pesquisas científicas: A ideia da circulação do conhecimento é um dos pressupostos da ciência moderna. Desde os séculos XVII e XVIII, em linhas gerais, deseja-se um conhecimento que seja aberto. Isto é, forja-se um modelo de conhecimento que se pretende comunicar com o mundo, que circula pelo mundo. Não se trata mais de uma produção fechada, enclausurada nas bibliotecas dos mosteiros ou nos laboratórios dos alquimistas.1116

A ideia de circulação do conhecimento - recriada no XIX, em parte, pelas inovações científicas – conectou-se com a escrita e a leitura. As impressões de monografias, manuais, relatórios, diários e relatos de viagem comprovam que os resultados científicos circulavam entre Academias de Ciências, Museus, Jardins Botânicos do mundo Ocidental e, igualmente, pelo próprio livro. A leitura, nessa relação, foi um fator facilitador no trânsito do conhecimento. No caso de Eschewege, as referências às obras dos luso-brasileiros ainda são incipientes, o autor se preocupou muito mais em descrever as ações profissionais desses brasileiros, como a usina errada de Manuel Ferreira da Câmara, do que aventar uma leitura de suas pesquisas. Eschewege deixou o debate científico e elogios para seus contemporâneos como o caso de Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, ambos citados em dezessete páginas do texto central e em três notas de rodapé. Alem disso, também evidencia, amiúde, determinados espaços científicos quando menciona seus representantes, como o mineralogista inglês John Mawe (1764-1829) referenciado em dez páginas e seis notas de rodapé. Finalmente, cumpre observar como o fortalecimento das ciências, a edificação de espaços e comunidades científicas e o papel dos Impérios nesses processos moldaram, ou determinaram, o como o leitor Eschewege articulou e selecionou as obras dos naturalistas luso-brasileiros para a composição de seu próprio relato. Entretanto, essa tarefa demanda mais tempo e leitura das obras citadas, mas conseguiu-se, até o momento, pensar na formação de uma rede de trocas de conhecimentos, assim como, na construção de uma “comunidade de leitores”1117. Aqui, limitou-se à localização de pistas. Estas apontaram em direção à formação de uma rede de conhecimentos e de uma comunidade de leitores de narrativas científicas. Esse perfil de textos citados e lidos não é uma surpresa, uma vez que o viajante naturalista do período era formado em alguma área de conhecimento e, geralmente, vinculado a uma Academia de Ciência ou Museu. Incipientemente, 1116

FIGUEIREDO, B.G.; SOUZA, G. de. Os dilemas da História social das ciências no Brasil: as artes de curar no início do século XIX. In: KURY, L.; GESTEIRA, H. (orgs.) Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. p.47 1117 CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 13

335 ISSN 2358-4912 pode-se aventar que esses escritos compõem as partes de uma rede científica, a qual se construía ao longo dos séculos XVIII e XIX. Nesse processo, os atos de ler e de citar demonstram que as literaturas de viagens não foram somente constituídas pelas descrições dos lugares visitados, amparadas apenas pelo olhar do aventureiro. Na escrita da viagem se percebe outras informações; essas apontam para caminhos distintos daquele da representação de que a viagem seria, somente, o viajante.

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AS CHARQUEADAS NA VILA DE SÃO JOÃO DA PARNAÍBA (1759-1830) Dante Cardoso Soares Barbosa1118 Introdução Estudar a História de um lugar, não objetiva apenas coletar informações para posteriormente serem expostas a um público que muitas vezes não tem nem mesmo interesse naquele assunto. O historiador não é apenas o mediador entre o passado e o presente; tem igualmente a tarefa especial de reunir dois modos de compreensão do mundo que de costume estariam invariavelmente separados. Estudar a História de um povo nos ajuda a identificar àquele povo, ou seja, fazer com que as pessoas saibam como seu deu a origem do seu lugar, o que o fez prosperar ou até mesmo declinar, qual a contribuição que seus antepassados deram para tal formação ou tal declínio. Pesquisar e estudar documentos que retratam a História de Parnaíba é sempre uma atividade relevante, uma vez que nos remete ao conhecimento de um dos capítulos marcantes e fundamental para a formação do Piauí. Sem contar que foi a partir dali, da então Vila de São João da Parnaíba que o Piauí começou a despontar na economia. A formação de um núcleo de povoamento se dá a partir da interação de vários fatores ligados aos meios: social, político e, principalmente, ao econômico. O teor da economia de um lugar é o que revela as possibilidades de desenvolvimento do mesmo. A vila de São João da Parnaíba (atual cidade de Parnaíba), criada em 19 de junho de 1761, teve sua economia, em princípio, girando em torno da criação e do abate de reses para o preparo do charque (carne seca) que posteriormente era comercializado com as principais províncias da colônia: Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, Pernambuco e Pará e até mesmo com a metrópole portuguesa. A iniciativa de comerciantes locais com a implantação de “oficinas de charque” no Porto das Barcas (antigo Porto Salgado) fez prosperar a economia local e, conseqüentemente, deu um relevante desenvolvimento para a região. Apesar disso, o então Governador, João Pereira Caldas, inicialmente escolheu um pequeno núcleo de povoamento, denominado de Testa Branca, para ser a sede da Vila de São João da Parnaíba (sendo transferido posteriormente para o Porto das Barcas). Outros fatores essenciais para a ascensão da Vila foram: a navegabilidade do Rio Parnaíba, tornando favorável o escoamento de mercadorias para as regiões do interior da Capitania e o clima litorâneo do nordeste – calor e vento seco quase o ano inteiro, além da facilidade na extração de sal. Dentre os grandes charqueadores daquela época, podemos destacar João Paulo Diniz, Domingos Dias da Silva e seu filho Simplício Dias da Silva. João Diniz antecedeu os Dias da Silva na instalação de fazendas de gado e comercialização da carne de charque; Domingos Dias da Silva, provindo do Rio Grande do Sul, inovou as técnicas das oficinas de charque e Simplício Dias da Silva, que herdou grande fortuna deixada pelo pai, deu continuidade a produção de charque. Tais charqueadores mantiveram um alto padrão de vida, algo que não condizia com a realidade da maioria dos moradores locais daquela época. O interesse em fazer a pesquisa sobre esse tema surgiu a partir do desejo de conhecer aspectos que deram ao Piauí colonial certo grau de desenvolvimento. Sabemos que várias pessoas foram importantes para que a economia local se desenvolvesse, porém é relevante saber um pouco da História da Vila de São João da Parnaíba como um todo para entendermos essa formação econômica. Partindo desse interesse, o objetivo geral desse trabalho é identificar em fontes documentais aspectos que revelam a contribuição das oficinas de charque para a economia da Vila de São João da Parnaíba, visando dar ao leitor uma conscientização sobre o desenvolvimento da Capitania do Piauí, e os específicos são: fazer um histórico da Vila de São João da Parnaíba e contextualizar sua economia baseada nas charqueadas realizadas entre a segunda metade do século XVIII e início do século XIX.

1118

Graduado em Licenciatura em História - UFPI; Assistente Técnico Administrativo – UESPI – Parnaíba-PI; Professor Substituto do Instituto Federal do Piauí – Parnaíba-PI.

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ISSN 2358-4912 Trajetória Metodológica: Em busca de novas explicações para velhos questionamentos Partindo do pressuposto de que o ato de pesquisar requer um rigor científico e metodológico, é interessante evidenciarmos que este estudo consistiu de algumas etapas, no sentido de facilitar a compreensão da pesquisa e de seus resultados. A pesquisa científica tem uma importância social e epistemológica, e um dos seus objetivos é procurar desenvolver um projeto social que viabilize a obtenção de novos saberes científicos na realidade social. Quanto à abordagem deste estudo, caracterizamos como qualitativa, visto que se relaciona àquela que o investigador faz alegações de conhecimento com base ou em perspectivas construtivistas ou reivindicatórias / participatórias e auto-reflexiva. Em nível de esclarecimento, Creswell (2007) apud Rossman e Rallis, caracteriza a abordagem qualitativa destacando os seguintes pontos: ocorre em um cenário natural, permitindo dessa maneira ao pesquisador desenvolver um nível de detalhe sobre o pesquisado ou local da pesquisa, usa métodos múltiplos que são interativos e humanísticos. Dessa forma, o pesquisador faz uma interpretação dos dados qualitativamente e vê os fenômenos sociais holisticamente. Os estudos nessa abordagem aparecem com visões amplas em vez de micro análises, refletem sistematicamente sobre quem é ele na investigação e é sensível à sua biografia pessoal e à maneira como o pesquisador molda o estudo. Sendo assim, atualmente essa introspecção e esse reconhecimento de vieses, valores, interesses, reflexões que tipificam a pesquisa qualitativa, usando o raciocínio complexo multifacetado, interativo e simultâneo, para uma melhor análise e comunicação dos dados, na adoção e uso de uma ou mais estratégias de investigação como um guia para os procedimentos no estudo qualitativo. Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa descritiva, segundo Gil (1999, p. 44) “[...] as pesquisas descritivas são aquelas que visam descobrir a existência de associações entre variáveis [...]”. Nesta perspectiva é interessante ressaltar que os dados serão observados, registrados e analisados sem que o pesquisador interfira nos fatos. No que se refere ao objetivo desta pesquisa comporta uma revisão bibliográfica, a partir das seguintes fases, leitura seletiva, analítica e interpretativa, haja vista que para a sustentação da base teórica será necessário fazer um levantamento de textos sobre a temática e as questões metodológicas da pesquisa, por meio de livros, artigos científicos e outros documentos. O campo da pesquisa teve como foco a Biblioteca Municipal de Parnaíba-PI, o Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba-PI, o Arquivo Ultramarino digitalizado pelo “Projeto Resgate” composto por documentos avulsos do Piauí, como também o Arquivo Público do Piauí e a Academia Piauiense de Letras, ambos localizados em Teresina-PI. Como instrumento de coleta de dados, foi utilizado a pesquisa bibliográfica, por meio de estudos em artigos científicos, periódicos, revistas eletrônicas, bem como livros que evidenciam a História da cidade de Parnaíba entre os séculos XVIII e XIX, principalmente no que se refere ao comércio da carne de charque. Para organização dos dados coletados, utilizamos a análise do conteúdo, que segundo Franco (2007, p. 19) “[...] requer que as descobertas tenham relevância teórica”. Dessa maneira, a análise do conteúdo possibilitou ao pesquisador uma aproximação das idéias emitidas pelos sujeitos da pesquisa e uma contextualização significativa de tais idéias. Toda pesquisa historiográfica é articulada a partir de um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se precisa uma topografia de interesses, que se organizam os documentos e as indagações relativas a esses documentos. Na tentativa de caracterizar as fontes pesquisadas, podemos destacar que as mesmas são de relevante importância para o entendimento da História de Parnaíba e do Piauí como um todo, entretanto, existem formas de como abordar essas fontes relacionando-as entre si para se chegar a uma visão crítica de tal assunto.

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ISSN 2358-4912 As Charqueadas e a Economia da Vila de São João o Parnaíba (1759-1830): Algumas Considerações O processo de ocupação das fazendas de gado no litoral do Piauí se deu a partir do Ato de 12 de janeiro de 1699, onde o conselho ultramarino determinava que se fizesse uma sondagem do Rio Parnaíba e a verificasse a possibilidade da construção de um porto e de uma Vila na região do Delta, dentre outros motivos, por conta desse local já ser utilizado por contrabandistas do Pará, de Pernambuco e da Bahia para fazer o translado do gado. Conforme Brandão: A pecuária serviu de base à ocupação de uma extensa área, em rápido espaço de tempo e com reduzido número de pessoas. A forma como se processou a penetração deste setor da economia colonial garantiu o caráter patrimonialista e mercantilista da colonização portuguesa na área do sertão. No início do século XVIII, a setorização articulada da produção nordestina achava-se concluída, permanecendo no litoral o setor açucareiro e no sertão a atividade pecuarista. O Piauí mantinha intercâmbio com os demais setores da economia colonial através da venda do produto dos currais e das importações de artigos manufaturados e escravos.

Por causa de uma Carta Régia de 1701, permitindo que o gado somente pudesse ser criado a uma distância de 10 léguas do litoral, forçando uma penetração mais a cima do Rio Parnaíba, criando a necessidade de erguimento de um entreposto para guarda de animais e mercadorias que seriam usadas na troca. Esse local passou a ser denominado de Porto das Barcas, onde o mesmo se desenvolveu em função da necessidade de acondicionamento da carne bovina que seria comercializada em outras regiões mais distantes, nascendo ali a “indústria do charque”. O Porto das Barcas, antes conhecido como Porto Salgado, situado na margem direita do Rio Igaraçu, prosperou devido à grande agitação de embarcações, tornando-se numa feitoria crescente do comércio que teve notável impulso, administrado pelo português João Paulo Diniz, proprietário de oficinas de carnes secas, situadas a 80 léguas da foz do Rio Parnaíba. Diniz trazia em suas sumacas (barcas) gêneros alimentícios e charque para dar maior consistência no comércio de Parnaíba. Além de Várias fazendas, foi arrendatário da Ilha do Caju. João Diniz foi sucedido por Domingos Dias da Silva, português, trouxe grande fortuna em ouro e prata do Rio Grande do Sul e se instalou na região do litoral da Capitania do Piauí, onde conquistara grande patrimônio tornando-se notável fazendeiro, grande agricultor e respeitado comerciante. Sendo um homem que ganhara grande prestígio em meio à sociedade, Domingos Dias conseguiu efetivar comércio com Lisboa, exportando, assim, seus produtos e importar os que necessitavam. Em 1770 o então Governador Gonçalo Botelho de Castro, reconhecendo o grande desenvolvimento comercial do Porto das Barcas, transfere oficialmente a sede da Vila de Testa Branca para esta localidade. No mesmo ano desse ocorrido, a Igreja Matriz da Vila da Parnaíba, Nossa Senhora da Graça, começa a ser construída. A criação de gado foi a atividade primordial na economia da Capitania do Piauí. A grande quantidade de fazendas que foram se instalando, a princípio no interior, se estendeu até o lado norte, na Vila de São João da Parnaíba, onde ali começou a se fixar as “oficinas de charque”. Com isso, alguns nomes foram se destacando como grandes charqueadores, tais como: João Paulo Diniz, Domingos Dias das Silva e posteriormente Simplício Dias da Silva. As charqueadas no Porto das Barcas na então Vila de São João da Parnaíba (atual cidade de Parnaíba) foi um dos fatores que impulsionou a economia local e, consequentemente, levou certo desenvolvimento para a Capitania do Piauí. O charque era produzido nas oficinas, estocado e depois comercializado com outros centros urbanos. Tal produto saía em grandes quantidades uma vez que a demanda crescia com o passar dos anos. Partindo desse pressuposto, podemos destacar também Simplício Dias da Silva (1773-1829) como sendo uma das pessoas mais importantes para a obtenção dessa conquista, uma vez que o mesmo herdou as propriedades do pai e consequentemente, deu continuidade a essa produção do charque

339 ISSN 2358-4912 através das oficinas. Isso levou ao mesmo manter relações comerciais com outras Vilas, Capitanias e até mesmo com o Exterior. Nunes (2007), fala sobre as relações que Simplício Dias da Silva teve com a política colonial e nos últimos sete anos de sua vida com a política imperial. Como dito outrora, as relações comerciais mantidas com outros lugares deu visibilidade à economia da capitania. Como já foi exposto, a economia do Piauí girou em torno da pecuária, do abate de reses e da comercialização da carne de charque. Um fator relevante nesse contexto está relacionado na mão de obra utilizada nas oficinas de charque, como também nos outros setores da economia do Piauí. Brandão (1995), assim como Lima (2005), ressalta como se dava o trabalho escravo nas fazendas de gado no Piauí e também nas charqueadas. Dentre os principais proprietários de escravos da Vila da Parnaíba, Simplício Dias da Silva se destaca como sendo um dos maiores possuidores desses, como dito anteriormente, o mesmo possuía cerca de 500 escravos distribuídos pelos diversos setores de trabalho nas suas propriedades. Sobre a presença escrava no Piauí Brandão (1999, p.30) ressalta que “o escravo no Piauí teve o mesmo perfil cultural, econômico e social das demais regiões brasileiras, engajando-se, portanto, no quadro social piauiense”. Com isso, percebemos que a escravidão não só contribuiu com a economia local, como fora indispensável para que esta se desenvolvesse e adquirisse notoriedade na província do Piauí. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais Fazer uma análise da História de Parnaíba, cada ano que passa se torna uma tarefa cada vez mais desafiadora. A memória se perde com o passar do tempo, uma vez que, para muitos, resguardar a História do seu lugar muitas vezes não tem a menor importância. A economia da Vila de São João da Parnaíba trouxe notória visibilidade para o Piauí como um todo através da criação e do abate de gado bovino para a comercialização, dentre outros produtos, da carne seca. As charqueadas do final do século XVIII até a primeira metade do século XIX foi o que fez prosperar o mercado da Vila não só por ser o charque produto de interesse primordial, mas por ter ocasionado numa maior movimentação do Porto das Barcas para a exportação e importação de outros produtos, como fumo, arroz, milho, algodão, aguardente, etc. Podemos também ressaltar que a contribuição de algumas pessoas foi fundamental para que a Vila da Parnaíba fosse vista por muitos anos como pólo de desenvolvimento econômico. João Paulo Diniz, Domingos Dias da Silva e Simplício Dias da Silva, dentre outros, podem servir como exemplo de nomes que inseriram, renovaram e conduziram os negócios que giraram em torno da produção do charque, alavancando dessa maneira a movimentação no Porto das Barcas e tornando atrativa sua economia. Algumas famílias que ostentavam o poder na Vila desfrutavam de uma vida luxuosa e repleta de privilégios. Os Dias da Silva se caracterizam bem como uma dessas famílias que tiveram tais regalias, algo que contrastava com a realidade da maior parte da população A reivindicação por uma alfândega no próprio Porto das Barcas trouxe esperança aos comerciantes de terem um contato direto com o mercado consumidor e assim dar mais agilidade nas negociações, sem contar que a emancipação alfandegária traria para a Vila da Parnaíba um retorno financeiro considerável, pois diminuiria os gastos feitos pelos comerciantes que precisavam ir até São Luís para liberar seus produtos, tanto exportados como importados. Mesmo tendo sua fase áurea no lado econômico, a Vila de São João da Parnaíba já entra na segunda metade do século XIX com a atividade charqueadora em declínio, outrora considerada como símbolo de progresso para a região. As charqueadas gaúchas com técnicas inovadoras, as constantes variações nos preços do gado, a morte de Simplício Dias da Silva em 1829, a inserção e movimentação de outros produtos no mercado local, principalmente o algodão, e a mudança no sistema político nacional em prol de uma política que propiciasse o desenvolvimento do país, frente aos novos produtos, foram alguns dos motivos da decadência das oficinas de charque. Mesmo com o declínio das charqueadas, o comércio de gado vivo continuou a operar. Pessoas provindas de outros países como Dinamarca, frança e Inglaterra foram se inserindo na sociedade parnaibana dando uma nova “face” para a sociedade e a economia local, fazendo uma interação comercial com outros países como Guiana Francesa e Inglaterra.

340 ISSN 2358-4912 Com relação a essa pesquisa em evidência, vale destacar que para sua efetivação houve muitas dificuldades em parte de referência bibliográfica, pois quando nos deparamos com temas de recorte temporal de mais de dois séculos, nos sentimos desafiados pelo tempo e por personagens que a todo custo querem nos mostrar que o tempo os vem apagando da História. Esse trabalho nos deu essa impressão. A falta de fontes, referências muitas vezes repetitivas em relação a determinado tópico da pesquisa e a falta de estrutura para ir além das fronteiras do Piauí em busca de informações que pudessem contribuir para esse trabalho, foram alguns das dificuldades que nós enfrentamos durante essa trajetória. Contudo, esperamos que ao leitor, essa pesquisa tenha despertado o interesse por analisar de forma crítica a História do nosso Estado e principalmente refletir sobre de que forma ele entrou para o cenário econômico nacional e internacional a partir da Vila de São João da Parnaíba.

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ESPAÇOS DE PODERES LOCAIS: A FAMILIATURA DO SANTO OFÍCIO COMO MECANISMO DE PROMOÇÃO SOCIAL AO SENADO DA CÂMARA DO RECIFE COLONIAL Davi Celestino da Silva Introdução A abordagem sobre a história das elites locais nos espaços do Ultramar do Império português vem cada vez mais ganhando visibilidade na historiografia brasileira. Ademais, tais abordagens também apresentam- se hoje como parâmetros imprescindíveis à compreensão do contexto da relação Portugal e seus domínios ultramarinos. Nesse sentido, torna- se incontornável não mencionarmos nomes como o de António Manuel Hespanha e Joaquim Romero Magalhães, que por meio de seus trabalhos suscitaram acalorados debates acerca do papel dos espaços periféricos dentro do Império português1119. No presente artigo procuramos abordar por uma análise social a presença dos Familiares do Santo Ofício1120 na Capitania de Pernambuco entre o período de 1654 e 1750. Privilegiamos esse viés, mais o período em pareço, por considerarmos estes dois aspectos importantíssimos para se fazer um estudo sobre as elites1121 locais em Pernambuco. A historiografia portuguesa também vem rediscutindo o papel da Familiatura. De acordo com o professor José da Veiga Torres1122, estudar a Familiatura do Santo Ofício português tão somente na perspectiva da repressão religiosa não há mais espaço dentro da historiografia portuguesa. A perspectiva agora se volta na análise sob a ótica da promoção e mobilidade social, vislumbrando assim uma nova perspectiva de análise sobre os Familiares do Santo Ofício. Presenção Inquisitorial na Capitania de Pernambuco Religião e Estado sempre estiveram fortemente ligados no contexto da história de Portugal, nas palavras do historiador britânico Charles Boxer havia um intimo e inseparável laço entre cruz e espada, trono e altar, religião e império nos reinos íbéricos1123. Um comentário colocado pela historiadora Sônia Siqueira acerca daquele laço fora de tão relevância que mereceu aqui ser destacado: No momento em que o soberano fundira com a religião os interêsses e horizontes nacionais, passou êle, legitimamente, a conceder privilégios a instituições religiosas ou para-eclesiásticas, ou a elas delegar autoridade para concedê-los. Assim consentiu que o Tribunal do Santo Ofício os outorgasses para seus Oficiais e Familiares1124. 1119

Ressaltamos respectivamente: Antônio Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal. século XVII. Coimbra: Almedina, 1994; Joaquim Romero Magalhães, O poder concelhio: das origens às Cortes Constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. 1120 Por vezes faremos uso do termo agentes da fé com relação aos Familiares do Santo Ofício. 1121 Optamos pelo uso do termo “elites” a contrapelo de “oligarquias municipais” apoiado na opinião de Nuno Monteiro, pois segundo o autor a expressão confere “uma identidade social a uma categoria institucional (a dos vereadores camarários) cuja existência como grupo social carece de demonstração”. Também haviam instituições locais relevantes que coexistiam com as câmaras, constituindo elas também elites locais, tais como as misericórdias e as ordenanças. Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. In: Idem. Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 43-47. 1122 TORRES, José Veiga. Da Repressão Religiosa Para a Promoção Social- A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia. Artigo disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/11594/1/Da%20Repress%C3%A3o%20Religiosa%20para%20a%20 Promo%C3%A7%C3%A3o%20Social.pdf 1123 BOXER, R. Charles. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.p. 97. 1124 SIQUEIRA, Sônia Aparecida. ARTESANATO E PRIVILÉGIOS: OS ARTESÃOS NO SANTO OFíCIO NO BRASIL DO SÉCULO XVIII. Simpósio dos professores universitários de História- de 3 a 7 de novembro de 1965. Faculdade de

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ISSN 2358-4912 A história da presença e atuação dos Familiares do Santo Ofício na América Portuguesa ainda carece revisão. A pesquisadora Sônia Siqueira”1125, revela um fato interessante sobre esses agentes da fé: “No Brasil, no inicio do séc. XVII, já apareciam na Bahia e em Pernambuco 18 Familiares, embora só a partir do Regimento de 1613 tivessem sido autorizados Familiares no Ultramar, inclusive nas Capitanias do Brasil”1126. Sobre a presença daqueles agentes na América portuguesa, notadamente no norte açucareiro, pode representar vários aspectos, mas preferimos compartilhar do argumento da historiadora Daniela Buono Calainho, ao referir que a presença da Inquisição no Brasil colonial seguiu fielmente a trilha do desenvolvimento econômico das capitanias mais prósperas1127. Efetivamente instalada na Capitania de Pernambuco, a máquina burocrática inquisitorial carecia de homens que buscassem primar pela pureza religiosa, entretanto, a função institucional dos Familiares do Santo Ofício fora suplantada pela visibilidade social que o cargo oferecia. Com relação a tal mudança de comportamento o professor Bruno Fleiter argumenta o seguinte fato: Os homens que quisessem integrar a prestigiosa corporação dos servidores do Santo Ofício faziamno também para mostrar o lugar que lhes cabia na sociedade em que viviam, para fixá- la e mantêla do modo em que se achava, limitando ao máximo s possibilidades de mobilidade social de uma certa parte dessa população 1128.

Poucos historiadores se enviesaram aos estudos do corpo de funcionários do Tribunal da Santa Inquisição, componentes indispensáveis no funcionamento daquela instituição. A atual produção historiográfica ao contrário vem concentrando- se no interesse dos agentes e funcionários do Santo Ofício. A historiografia portuguesa também vem rediscutindo o papel da Familiatura. Na esteira dessas novas abordagens sobre o papel da Inquisição portuguesa na era moderna, encontra- se o professor José da Veiga Torres. No seu artigo Da Repressão Religiosa para a Promoção Social: A Inquisição como Instancia Legitimadora da Promoção Social da Burguesia Mercantil, o autor analisa a instituição inquisitorial a partir da perspectiva da promoção e da mobilidade social. Segundo Torres, essa mudança ocorre a partir do último quartel do século XVII, e as vicissitudes daquela mudança se deve ao seguinte fato: O prestigio social crescente da Inquisição e os particulares privilégios conferidos aos portadores da carta de Familiar do Santo Ofício, faziam desta uma espécie de carta de Nobilitação, até porque, para além de constituir o documento mais seguro e prestigiado de comprovação de limpeza linhagística, alguns dos privilégios a que dava acesso, pela carga simbólica de distinção nobre que possuíam, aproximadamente os Familiares das gentes nobres das localidades, sem que fossem nobres, nem por origem, nem por estatuto1129.

Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Associação dos professores universitários de História; Anais/ Franca 1966. pp. 505- 6. 1125 SIQUEIRA, Sonia Aparecida de. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978 p. 178. 1126 Entretanto um levantamento documental realizado pela historiadora nos revela a presença de Familiares nas Capitanias de Pernambuco e Bahia em períodos anteriores a criação do Regimento de 1613- 1611: Antonio Coelho Pinheiro. “homem nobre” casado com Inês de Menezes, filha de Henrique Moniz, fidalgo escudeiro da casa real, e de Leonor Antunes, morador na Bahia; 1606: Manoel Gonçalves de Cerqueira, casado com Isabel Cavalcanti de Albuquerque, filha de Antonio Cavalcanti de Albuquerque e Isabel de Gois de Vasconcelos. Professo da Ordem de Cristo- Mor em Pernambuco; 1607: Pe Joaquim José de Melo Cavalcanti, vigário colado na freguesia de Santo Antonio de Tracunhaém. Filho do capitão José Vieira de Melo e de Maria Cavalcanti de Albuquerque. Neto paterno do capitão maro morador Antonio Vieira de Melo e de Eugenia Freire da Cunha, e, materno, de Cosme Bezerra de Melo e Isabel Coelho Cavalcanti. Cf.: SIQUEIRA, Sonia Aparecida de. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978 pp. 180- 181. 1127 CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil. São Paulo: EDUSC, 2006.p. 80. 1128 FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Inquisição: Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Phoebus, 2007. pp. 84- 5. 1129 TORRES, José Veiga. Da Repressão Religiosa Para a Promoção Social- A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia. Artigo disponível em:

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ISSN 2358-4912 O hábito de Familiar do Santo Ofício acarretava ao portador não só status social, como também privilégios, como nos informa Sônia Siqueira: A maior parte das concessões referia-se à fazenda do familiar: isenção de impostos e contribuições existentes ou a serem determinados - e preservação de seus haveres. Isto sugere que o Privilégio invadira o campo do econômico. Indica a presença ascencional da classe endinheirada a que já pertenciam alguns artesãos bem sucedidos1130.

O exemplo acima esclarece o quanto a economia do dom fora peça fundamental na política do Império português: Definiu- se a economia do dom como cimentada sobre actos de dar e retribuir compreendidos pela vastidão do conceito de . Esta amizade abrangia níveis tão diferentes quanto são a relação entre o rei e o vassalo, o pai e o filho, o amigo e o amigo, construindo uma relação social fortemente estruturante. Daí que o impensado social que o rodeia deva merecer aqui alguma atenção1131. Nesse interim, a Familiatura Inquisitorial fora ganhando visibilidade dentro do corpo social da Capitania de Pernambuco, devidamente aos privilégios que foram acumulando ao logo dos séculos1132. Além de categorias como o dos artesãos, homens do setor do comércio também foram atraídos pelo cargo de Familiar1133. Paralelamente, o advento do século XVIII fora sem sombra de dúvida o ápice da consolidação do setor mercantil dentro do organograma politico- econômico da Coroa portuguesa, esta, por sua vez oferece seus préstimos: Nesse contexto, é evidente que o século XVIII representa um novo desafio à monarquia. O surgimento dos homens de negócio como parte da elite colonial põe em xeque os equilíbrios sociais cuidadosamente costurados nos séculos anteriores. Trata- se de uma autêntica crise destes equilíbrios. Mas para a Coroa é também oportunidade. Oportunidade de fortalecer- se jogando com as divisões entre a tradicional nobreza da terra e a nova elite mercantil. Oportunidade de fortalecer- se através daquilo que talvez ela fizesse melhor: mediar conflitos1134.

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/11594/1/Da%20Repress%C3%A3o%20Religiosa%20para%20a%20 Promo%C3%A7%C3%A3o%20Social.pdf. p. 122. 1130 SIQUEIRA, Sônia Aparecida. ARTESANATO E PRIVILÉGIOS: OS ARTESÃOS NO SANTO OFíCIO NO BRASIL DO SÉCULO XVIII. Simpósio dos professores universitários de História- de 3 a 7 de novembro de 1965. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Associação dos professores universitários de História; Anais/ Franca 1966. p. 507. 1131 HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: História de Portugal. Direção de José Mattoso, quarto volume O Antigo Regime (1620- 1807). p. 385. 1132 Para o recrutamento de uma milícia indispensável acenava- se com privilégios, mobilizando-se dedicações. Novas isenções de pagamentos foram especialmente consignadas aos familiares. A 20 de janeiro de 1580, D. Henrique lhes deu fôro privativo e a 31 de dezembro de 1584. Filipe III autorizou se passassem em seu favor alvarás de fianças. D. João IV confirmou todos êsses privilégios a 1 de janeiro de 1686. A maior parte das concessões referia-se à fazenda do familiar: isenção de impostos e contribuições existentes ou a serem determinados - e preservação de seus haveres. SIQUEIRA. Idem. op cit. 1133 Ver: MELLO, José Antônio Gonsalves de. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713- 1738. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol. LIII. Recife- 1981. 1134 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negócio e a coroa na construção das hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. In. FRAGOS, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). Na Trama das Redes: politica e negócios no império português, séculos XVI- XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 462.

345 ISSN 2358-4912 Nesse sentido, o setor mercantil em Pernambuco percebendo sua valorização, evento este que também já vinha ocorrendo por toda Europa, procurou beneficiar- se do momento, como nos diz Gonsalves de Mello:

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Em toda a Europa e nas Américas inglesa e espanhola a burguesia empenha- se então para alcançar o poder, afastando a classe senhorial, e recorrendo às vezes a meios brutais para atingir seus objetivos. Em Pernambuco a burguesia em ascensão encontra favor na Coroa e, por isso, foi a classe senhorial que foi levada a recorrer às armas, para conservar seus privilégios1135.

Nesse embate entre comerciantes de um lado, e o poder senhorial do outro, aqueles por meio da Familiatura inquisitorial buscaram inserirem- se no poder local da Capitania de Pernambuco: O primeiro degrau na ascensão social do mascate era o ingresso nas irmandades e confrarias do Recife, criadas e dotadas pela comunidade mercantil. A partir daí, as portas estreitavam- se. A Santa Casa de Misericórdia de Olinda, clube nobiliárquico gerido pelo clero da cidade, não via com bons olhos a presença de mercadores, a menos que se contentassem com a posição de irmãos de “menor” ou de “segunda condição”, no mesmo pé dos artesãos e da gente da plebe. [...] Outro degrau a galgar era o de familiar do Santo Oficio, titulo concedido pelo Conselho Geral em Lisboa com base em investigação rigorosa do candidato, da sua mulher e da ascendência de ambos. No século XVIII, ser familiar compensou a dificuldade da obtenção de hábitos das ordens militares, vedados à grande maioria dos mascates, de vez que El Rei só excepcionalmente relevava os “defeitos mecânicos”, isto é, as incompatibilidades oriundas do exercício do trabalho manual1136.

Acreditamos que a abertura proporcionada pelo Tribunal do Santo Ofício em seus quadros por indivíduos pertencentes a categorias como artesãos, comerciantes, e outros, não corresponderia ao desprestigio daquele referido tribunal perante a sociedade colonial de Pernambuco, mas sim, soube propiciar oportunidades, notadamente a categorias que estavam em pleno desenvolvimento no cenário politico- econômico em todo o Império português. Senado da Câmara: o Santo Ofício no espaço do poder local de Pernambuco Considerado um dos “ofícios de honra”, o cargo de vereador podia ser o começo de uma trajetória de nobilitação ao cabo de algumas gerações. (O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. Evaldo Cabral de Mello, p. 139) Partindo daquela citação torna- se compreensível, notadamente por parte de indivíduos que não pertenciam as famílias tradicionais na América portuguesa, vale dizer, a nobreza da terra, especificamente no caso de Pernambuco, conseguirem o privilégio de obterem cargos e ofícios nas instituições régias. Nas sociedades da América portuguesa, vale dizer, que tivera sua organização social plasmada no modelo de Antigo Regime, fazer parte de instituições era a trajetória planejada por indivíduos que buscaram mobilidade social. No tocante à essa busca Peter Burke argumenta que na Europa préindustrial um dos principais meios de mobilidade social fora a Igreja. Com isso, conclui o historiador britânico: que o filho de um camponês talvez conseguisse terminar sua carreira eclesiástica com o posto de Papa, como o ocorrido com Sisto V, em fins do século VI 1137. Em fim, as instituições régias, isto é, espaços de poderes, se consagraram dentro dos impérios ibéricos importantes pilares, como bem ressaltou Charles Boxer:

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MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713- 1738. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Op cit. p. 117. 1136 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666- 1715. Op cit. p. 143. 1137 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2012 p. 106.

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ISSN 2358-4912 Entre as instituições que foram características do império marítimo português e que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias contavam- se o Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas, a mais importante das quais era a Santa Casa de Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, apenas com um ligeiro exagero, como os dois pilares da sociedade colonial, do Maranhão a Macau. Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não podiam assegurar. Os seus membros provinham de estratos sociais idênticos ou compatíveis e constituíam, até certo ponto, elites coloniais1138.

Dentre as instituições que compuseram o organograma administrativo português, encontra- se o Tribunal do Santo Ofício, instituição para- eclesiástica que perdurou de 1536 a 1821 no caso de Portugal. Também foram por meios das instituições1139 que ocorreu parte da dinâmica envolvendo a relação reis e vassalos em todo Império português. Se por um lado era por meio das instituições que se instrumentalizava o governo dos reinos, por outro, abriam- se oportunidades e benefícios, notadamente aos menos favorecidos, vale dizer, indivíduos que não pertenciam à nobreza. De acordo com Evaldo Cabral de Mello: Em sentido lato, a nobreza apresentava em Portugal uma estratificação ternária, constituída, de cima para baixo, pelos títulos ou grandes casas aristocráticas do Reino; pela fidalguia hereditária (“fidalgos de geração”) ou outorgada por el- rei, [...] e por fim a “nobreza rasa”, cujo poder e prestigio eram puramente locais, sendo designada também por “nobreza da terra” 1140.

O episódio da Guerra dos mascates nos fornece excelente panorama acerca da disputa pelo poder local da Capitania de Pernambuco. De forma maestral Evaldo Cabral de Mello narra os desdobramentos que culminaram com a criação da Vila do Recife, e instalação da Câmara. Como já mencionado, tal fato, isto é, a criação da Vila do Recife foi deveras a aliança entre a Coroa e os mascates. Por conseguinte, o setor mercantil, procurou tirar proveito da situação, vale dizer, percebendo a valorização ocorrida com seu setor, que aos poucos fora ganhando uma posição de status no meio social a custa de alguns serviços prestados à Coroa, com isso, buscou afirmar- se na ocupação dos ofícios régios. Desse modo, por meio da câmara a categoria mascatal empossada nos cargos de vereadores, poderam de forma direta direcionar- se fosse ao Rei, como ao Governador da Capitânia, a defesa dos interesses da categoria e da vila; poderiam também igualar- se no exercício dos cargos da república aos da Câmara de Olinda; e, assim exercerem por meio dos almotacés, a fiscalização dos preços de mercadorias e serviços; poderiam por fim, ou seja, administrar o próprio território onde tinham sua morada. E, principalmente, desfrutar dos privilégios e prestígios de vereador, cargo até então restrito à nobreza da terra. No extremo norte da América portuguesa, vale dizer, na Amazônia, cargos como o de Familiar do Santo Ofício também funcionaram como mecanismo de mobilidade social como no caso do reinol Lázaro Fernandes Borges: [...] que havia sido preterido na eleição de 1742, conseguiu servir na câmara em pelo menos dois mandatos como vereador em 1748 e 1761. Antes, porém, Lázaro Borges buscou outras formas de prestígio social. Através do casamento, uniu-se a uma família cuja descendência remontava ao capitão Aires de Sousa Chichorro, um dos primeiros governadores do Pará. Em 1745, tornou-se familiar do Santo Oficio superando os “defeitos” apontados na sua profissão de cirurgião, provando ser abastado em “bens e fortuna”, o que lhe proporcionava viver com abundante cabedal1141.

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BOXER, Charles R., 1904- 2000. O Império Marítimo Português 1415- 1825. Reimp.- (Extra- coleção; 47) Cf.: HESPANHA, Antonio Manuel. História das Instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Alamedina, 1982. 1140 Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: companhia das letras. 2009.p. 213. 1141 MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Perspectivas sobre a “nobreza da terra” na Amazônia colonial. Revista de História, núm. 168, enero-junio, 2013, pp. 26-68. Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica 1139

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ISSN 2358-4912 Considerações Para finalizar, acreditamos que nossa abordagem aqui apresentada sobre a atuação da Familiatura do Santo Ofício na Capitania de Pernambuco, no período que nos ocupa sob a perspectiva da promoção social, não se esgota aqui. Resta esclarecer que nossa descrição sobre os agentes da fé, ainda carece de pesquisas mais verticalizadas. Também somos conscientes da existência de grandes lacunas que cercam a composição social daqueles homens da justiça inquisitorial. A presença significativa dos Familiares do Santo Ofício na Capitania do açúcar representou o movimento que já havia iniciado na Europa, ou seja, a grande expansão do comércio mercantilista. Contudo, acreditamos que tais vieses, que ainda pretendem enxergar a atuação dos Familiares do Santo Ofício na modernidade sob a perspectiva da repressão religiosa, esbarram- se efetivamente devido a significativa gama de opções que os estudos inquisitoriais abarcam atualmente. Facilitando assim, as pesquisas de historiadores, antropólogos, sociólogos, que buscam nas fontes inquisitoriais precisos materiais à contribuição de seus estudos. Referências Fontes Impressas ou Digitalizadas MELLO, José Antônio Gonsalves de. Nobres e Mascates na Câmara do Recife, 1713- 1738. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano Vol. LIII. Recife- 1981 Livros, Artigos, Teses e Dissertações BOXER, R. Charles. 1904- 2000. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 _____________________________O Império Marítimo Português 1415- 1825. Reimp.- (Extra- coleção; 47) BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora Unesp, 2012 CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSC, 2006 FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Inquisição: Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Phoebus, 2007 HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As redes clientelares. In: História de Portugal. Direção de José Mattoso, quarto volume O Antigo Regime (1620- 1807) ___________________________As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político em Portugal. século XVII. Coimbra: Almedina, 1994 ___________________________História das Instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Alamedina, 1982. MAGALHÃES, Joaquim Romero Magalhães, O poder concelhio: das origens às Cortes Constituintes. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986 MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666- 1715 / São Paulo: Editora 34, 2012 (3ª edição) MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: companhia das letras. 2009 MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e. Perspectivas sobre a “nobreza da terra” na Amazônia colonial. Revista de História, núm. 168, enero-junio, 2013, pp. 26-68. Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. In: Idem. Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negócio e a coroa na construção das hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. In. FRAGOS, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). Na Trama das Redes: politica e negócios no império português, séculos XVI- XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 SIQUEIRA, Sonia Aparecida de. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978

348 ISSN 2358-4912 __________________________ ARTESANATO E PRIVILÉGIOS: OS ARTESÃOS NO SANTO OFíCIO NO BRASIL DO SÉCULO XVIII. Simpósio dos professores universitários de História- de 3 a 7 de novembro de 1965. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Associação dos professores universitários de História; Anais/ Franca 1966 TORRES, José Veiga. Da Repressão Religiosa Para a Promoção Social- A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia. Artigo disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/11594/1/Da%20Repress%C3%A3o%20Religiosa%20para %20a%20Promo%C3%A7%C3%A3o%20Social.pdf V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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TRABALHAR E SER REMUNERADO PELO SANTO OFÍCIO Denise de Carvalho Zottolo1142 Esta comunicação se insere num projeto maior cujo foco principal é a análise da movimentação financeira do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, durante a primeira metade do século XVIII, através da análise dos Livros de receitas e despesas dos Tesoureiros disponíveis no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante denominado de ANTT). Aqui serão apresentadas, de forma geral, as remunerações ordinárias e extraordinárias dos oficiais da Inquisição do referido Tribunal e de que forma elas contribuíram para fortalecer o poder simbólico da instituição inquisitorial. A determinação do recorte espacial deste estudo está mais vinculada ao espaço político/social do que territorial e teve como referência a importância do Tribunal de Lisboa dentro da Instituição inquisitorial. A escolha deste Tribunal está intrinsecamente ligada ao fato de Lisboa ser a principal cidade e capital do Império português, cuja jurisdição, além da região da Guarda também “se estendia às dioceses de Lisboa e Leiria, bem como aos territórios portugueses no Atlântico – as ilhas, o Brasil, as fortalezas e entrepostos na costa noroeste e ocidental da África.” (BETHENCOURT, 2000, p.53). Desta forma, pesquiso o Tribunal de Lisboa como um espaço, fruto de uma construção social, constituído de sentimentos e comportamentos cordatos, mas também por tensões e conflitos1143, onde poder inquisitorial se irradiava até as possessões ultramarinas e ilhas atlânticas, assim como também era um pólo convergente das demandas de outros poderes (Nobreza, Régio e Papal). O recorte temporal baseia-se no fato de ter sido a primeira metade do século XVIII o período que se verificou um aumento no quadro funcional da Inquisição, mesmo se constatando que este aumento se refere basicamente ao número de familiares. Embora não fosse um segmento funcional remunerado ordinariamente, gozava de certos privilégios, onde não se pode perder de vista que [...] obter uma Carta de Familiatura ligava-se, no mais das vezes, ao grande status social e aos privilégios conferidos pelo cargo, adquiridos ainda no século XVI. Eram isentos do pagamento de impostos e recrutamento militar; eram julgados em tribunal especial; tinham porte de armas, alimento e alojamento gratuito em viagens e ganhavam por dia de serviço. (CALAINHO,

2001, p. 2). É fato que pertencer ao quadro de funcionários da Inquisição ou a ela prestar serviços se apresentava como um elemento de status já que era uma sociedade onde os códigos de conduta eram pautados na lógica do Antigo Regime, porém o que está no centro desta discussão é o que representava, em termos financeiros, pertencer ao Santo Ofício, e de que forma a movimentação financeira, que é o poder material, se cruzou e sustentou o poder simbólico da Inquisição. O poder é multifacetado e seu exercício se apoia em várias outras formas de poder. No caso da Inquisição o seu exercício será aqui considerado como um poder de “autoridade tradicionalista” baseado num “conjunto de pautas invioláveis” e apoiado em relações pessoais. (WEBER, 2010, p. 41). Entretanto, esse poder não foi exercido somente por um representante ou grupo, nem “maciço e homogêneo”, mas como uma forma de dominação que se exerceu em rede. (FOUCAULT, 2013, p. 284). O Regimento de 1640 não trata especificamente nem do valor nem a forma de pagamento dos funcionários da Inquisição. Esta lacuna é preenchida pelas “provisões de ordenados e aposentadorias”1144, ordenadas pelo Inquisidor Geral e encontram-se reunidas em dois livros na Série “Provisões de vencimento” do ANTT. Estas provisões deliberavam sobre o pagamento de salários, remunerações extras e aposentadorias a funcionários, e pagamentos a prestadores de serviço, parentes de funcionários, entre outros.

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Mestranda do Programa de Pós Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – Campus V. Orientadora - Suzana Maria de Sousa Santos Severs 1143 Detalhes maiores sobre esta construção de espaço, ver NEVES, Erivaldo Fagundes. História e região: tópicos de História Regional e Local. Ponta de Lança, São Cristóvão v. 1, nº 2, abr.-out. 2008. 1144 ANTT – TSO –IL – 004 , Provisões de vencimento

350 ISSN 2358-4912 O Santo Ofício como uma instituição burocrática, tem nos Livros dos Tesoureiros, principalmente no que concerne ao pagamento dos seus funcionário, uma descrição repetitiva e que obedecia à uma prática do período onde a retórica do pedido e da concessão das mercês apresentava um estilo repetitivo e seguia um roteiro de “comunicação entre o centro político e suas diversas periferias” (KRAUSE, 2012, p. 47). Os pagamentos dos ordenados dos funcionários eram colocados em ordem decrescente de valores, e iniciando, portanto, com o pagamento dos funcionários que ocupavam postos hierarquicamente superiores até o de menor importância na escala interna do Tribunal e eram pagos de forma quadrimestral. Faziam parte dessa lista, entre outros, inquisidores, promotores, deputados, capelães, notificadores, notificadores ajudantes, meirinhos, serventuários, porteiros da mesa, alcaides dos cárceres, solicitadores, guardas dos cárceres, oficiais da vara, despenseiros, médicos, cirurgiões, homens da vara, familiares, escrivães da vara, escrivães de visita, guardas de penitenciárias. Verifica-se, porém, que as despesas com funcionários iam além dos ordenados. No Livro do Tesoureiro Manuel Rodrigues Ramos1145, de 1732, estão registrados pagamentos extras a vários funcionários, por diversas razões, desde eles terem realizado suas funções “com muita lida e trabalho” e também por “exceço de trabalho” até os casos de doença que são a maioria, onde é descrito que se encontram “enfermos”, “sangrado oito vezes”, com “fluxo sufocativo na garganta”. A lógica utilizada para pagamento dos ordenados também era válida para as ajudas de custo no caso de doenças, pois mesmo que os sintomas fossem similares os valores eram diferenciados em função da hierarquia. Algumas dessas solicitações de pagamentos extras enalteciam a grandeza e piedade das autoridades, mas o ponto comum a todas era que finalizavam o pedido com expressões como, “V. Ema costuma em semelhantes ocaziões mandar dar uma ajuda de custo”, fato que denotava o ritual no pedido e concessão de mercês já discutida anteriormente. No Livro 3º de Provisões e Portarias do Tesoureiro Pedro Paulo da Silveira1146, de 1756, também é efetuado um pagamento de 3 mil réis a cada um dos três homens da Vara do Meirinho para pagamento do aluguel de suas casas referente a seis meses “tempo em que se costumão pagar os alugueis das cazas”, o que implica que os seus ordenados estavam livres para outras despesas que não as moradias. As justificativas eram muitas e diversas para se pagar extras a quem trabalhava para o Tribunal. Em alguns Livros, como o de Fabião Bernardes de 17201147, é possível encontrar registros de pagamentos à funcionários tendo como motivo “[....] a carestia dos uzuaes, e limitação dos seus ordenados.”, e o mesmo motivo é colocado 27 anos depois no Livro de Manuel da Silva Diniz1148, onde fica demonstrado que era uma prática regular, utilizando-se, inclusive, a mesma redação das justificativas. O livro do Tesoureiro Manuel da Silva Diniz, de 1747, apresenta no mês de março, dois pagamentos extras, sendo um em função da carestia e outro para compra de carne pela festa da Páscoa1149. Nos registros do Tesoureiro João Berbardes de 17261150, o Inquisidor João Paes do Amaral recebeu de ordenado nesse ano, 200 mil réis, e de extras 60 mil reis, que corresponderam “pela carestia dos uzaes e limitação dos seus ordenados”, pelo São João e pelo trabalho que teve em despacho do Auto de Fé, realizado em outubro do mesmo ano, no qual 68 réus foram sentenciados, sendo 03 relaxados em carne. Em outro livro de Fabião Bernardes1151, no mesmo ano de 1726, foram pagos as despesas dos funcionários do Conselho Geral, Jácome Esteves Nogueira, por exemplo, que já tinha sido tesoureiro da Inquisição de Lisboa no período de 1716 a 1720, agora recebia como secretário do Conselho Geral e teve como ordenado anual 120 mil réis, renda que foi acrescida de 80 mil réis de pagamentos extraordinários, o que corresponde em torno de 60% dos seus vencimentos ordinários. Estes pagamentos extras ocorreram em função de 04 Autos de Fé e também de datas comemorativas da Igreja, que além de serem necessárias para afirmarem cotidianamente a religiosidade, também justificavam e legitimavam os pagamentos extras para seu corpo funcional. Os oficiais da Inquisição também eram remunerados por suas participações nos Autos de Fé e também aqueles que mesmo não compondo o quadro da Instituição, de alguma forma prestavam V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ANTT-TSO-IL-Livro nº 926 ANTT- TSO- IL- Livro nº 872, fl. 35 1147 ANTT-TSO-IL- Livro n° 1005, fl. 25 1148 ANTT-TSO-IL- Livro n° 1055, fl. 19 1149 ANTT-TSO-IL- Livro nº 1055, fls. 19 e 23. 1150 ANTT-TSO-IL – Livro nº 473 1151 ANTT – TSO- IL Livro nº 619 1146

351 ISSN 2358-4912 serviços nessa ocasião. No Livro de Fabião Bernardes no ano de 17201152, podemos comprovar a estrutura burocrática e a quantidade de pessoas que gravitavam em torno do Tribunal, dele se beneficiando e sendo remunerados. Nesse auto, encontramos pagamentos para quem varreu o Secreto a “primeira e segunda vez”, aos dois homens que levaram a padiola para o Auto, “ao homem que levou a arca dos processos”, “da cea dos mariolas” a quem carregou a cadeira de uma mulher, a quem levou a arca dos processos, ao Padre que assistiu à absolvição, ao Ministro da execução, aos vários carretos, inclusive de cera e bandejas para os Inquisidores e Notários, da confecção de 24 sambenitos, aos pintores de seis panos, entre outros. Esses prestadores de serviços aparecem com frequência nos demais autos com poucas variações, por exemplo, se não tiver um réu doente não se terá os homens para carregarem a padiola. O auto de fé de 1725, que foi uma cerimônia pública cujos gastos estão registrados no Livro do mesmo Tesoureiro1153 contou com a presença do Rei e de 47 funcionários . Para estes últimos, só com refeições e tochas foram gastos 263$200 réis (duzentos e sessenta e três mil e duzentos réis), valor que ultrapassou o que se gastou (262$505) para alimentar, cinco anos depois, no mês de julho de 1730, os presos pobres, como demonstrado no Livro de Alexandre Henrique Arnaut 1154. Neste Auto ainda se pagou a quem varreu o Secreto antes e depois da cerimônia, a quem levou a arca dos processos, a confecção dos sambenitos, pintura dos panos, a quem varreu e caiou os corredores e capela, a impressão de listas. As leituras dos sermões nos Autos eram realizadas, na maioria das vezes, por representantes das ordens religiosas, não necessariamente ligados a Inquisição, mas que seguiam as regras eclesiais no momento da leitura onde o conteúdo era “caracterizado pela glorificação da atividade inquisitorial e pelo recurso aos temas da polêmica judaica” (BETHENCOURT, 2000, p.245). Tanto nas despesas do auto de 17251155, quanto em 17261156 , 17281157 e 17351158 encontramos pagamentos diferenciados aos padres que leram as sentenças, recebendo mais quem leu melhor e daí por diante, em valores decrescentes, de acordo a qualidade da leitura. Porém no ano de 1726 chama a atenção o fato de que mesmo reconhecendo que dois padres não executaram a tarefa a contento, foram remunerados, como consta no Livro: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

aos padres que leram as sentenças que foram quatro. Ao primeiro que leo bem 9600, ao segundo que também leo bem 6400, aos outros dois que leram menos bem e tiveram menos trabalho a cada hum meya moeda

Mesmo desconhecendo os critérios utilizados para qualificar as leituras das sentenças e, consequentemente pagar o trabalho realizado, estabelecer os valores diferenciados, possivelmente, passou por avaliações subjetivas. No início do Livro do Tesoureiro Alexandre Henrique Arnaud de 17231159, é apresentado o resumo das despesas referentes as custas dos diversos oficiais vindos de diferentes locais, a exemplo de Covilha, Ilha de São Miguel, Abrantes, Cidade do Rio de Janeiro, Bahia, Castelo Branco, Olinda, Beja, para participação num auto de fé. O auto foi público e aconteceu a 10 de outubro do mesmo ano e os custos desses oficiais totalizaram 1.248$709 (um conto, duzentos e quarenta e oito mil, setecentos e nove réis) Para dimensionarmos a grandeza deste gasto no período basta relacioná-lo ao valor do escravo no mesmo período no Brasil. Com o total gasto daria para comprar aproximadamente 6 escravos, elemento importante na economia da colônia, principal fonte mantenedora do Reino português. Nesse mesmo ano a Câmara de Salvador afirmou que o alto preço e a escassez dos escravos levaram à falência 24 engenhos, e que as safras, que dez anos antes produziam 18 mil caixas de açúcar, agora produziam tão-somente 5 mil, 8 mil em um ano favorável. Os comerciantes agora cobravam 200 mil-réis por um escravo 1152

ANTT – TSO – IL – Livro nº 340 PT - TSO – IL – Livro nº 345 1154 PT – TSO – IL – Livro nº 387 1155 PT – TSO – IL – Livro nº 345 1156 PT – TSO – IL – Livro nº 346 1157 PT – TSO – IL - Livro nº348 1158 PT – TSO – IL – Livro nº 354 1159 PT TSO – IL – Livro 481 1153

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ISSN 2358-4912 que antes custava 40 a 60 mil-réis, e apenas os mineradores podiam comprar cativos a tais preços.(SCHWARTZ,1988:167)

Com relação ao pagamento da participação dos oficiais da Inquisição nos autos temos que ressaltar que conforme o Regimento de 1640 o único funcionário que se fez menção de ser remunerado de forma extra no auto de fé era o médico e cirurgião, como está colocado no Título XX § 3º “[...] serão obrigados a assistir ao tormento, para nele declararem por juramento, se os réus são capazes de os sofrer, e em que grau; e por este trabalho, e assistência terão no fim do Auto a mercê, que parecer conveniente”. Entretanto, diante dos exemplos aqui colocados encontraremos em vários livros pagamentos extras a funcionários por sua participação no auto de fé. Considerações Finais Uma das formas de avaliarmos o impacto da remuneração destes oficiais dentro da sociedade é relacionar o seu ganho ao valor dos bens dos réus descritos nos seus depoimentos. Segundo Braga (2012, p. 260), no século XVIII, alguns animais tinham os seguintes valores por unidade: cavalos – 12 mil réis a 60 mil réis; vacas – 4.700 réis a 7. 500 réis. Desta forma podemos afirmar que Esteves Nogueira, secretário do Conselho Geral, poderia comprar, com seus ganhos extras de 80 mil réis, 1 cavalo e duas vacas ou 10 vacas se considerarmos o maior valor (7$500 réis). O secretário poderia até mesmo arrematar as porcelanas do aparelho de Luísa Maria Pereira, de 44 anos, moradora de Vila Nova de Foz Côa, cujo inventário de 1725, tinha a avaliação do mesmo em 7.200 réis. Ressaltemos aqui que louças e porcelanas eram itens muito valorizados em Portugal, principalmente a partir da expansão ultramarina para o Oriente (BRAGA, 2012, p. 176) Diante destes números fica patente que os ordenados e mercês, além dos privilégios dos oficiais do Santo ofício eram elementos de diferenciação na sociedade do período e que poderiam contribuir para aquisição de bens móveis ou de raiz, podendo inclusive garantir outros tipos de ganhos, como arrendamento e aluguéis, ou mesmo a aquisição de elementos que os distinguissem dentro do meio social, como porcelana ou joias. Numa sociedade pautada pelos códigos exteriores de riqueza, o acesso a elas garantia a reprodução da ordem social. Referências BETHENCOURT, Fernando. Historia das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV – XVIII. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 219 – 273 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Bens de Hereges. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 430 p. CALAINHO, Daniela Buono. Agentes inquisitoriais no Brasil: o medo na colônia. Artigo apresentado no Encontro Regional De História Anpuh-Rj, 2001. FOUCALT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2013 p. 278-295 KRAUSE. Thiago Nascimento. Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares ((Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo, Annablume, 2012, p. 53-92. SIQUEIRA, Sonia. A Disciplina na vida colonial: Os Regimentos da Inquisição. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de janeiro, Ano 157, nº 392, jul/set 1996. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 480 p. WEBER, Max. A sociologia das religiões. São Paulo: Ícone, 2010, p. 9-66

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A CABANAGEM E A LUTA PELA LIBERDADE NO GRÃO-PARÁ (1820-1840) Denise Simões Rodrigues1160 Introdução A Cabanagem foi um movimento de caráter revolucionário que devastou a Amazônia por longos anos, na primeira metade do século XIX. A historiografia oficial registra os anos de 1835 a 1840 como sendo o período de sua efetiva ocorrência. Prefiro trabalhar com um período mais elástico, os anos compreendidos entre 1820/1840, o que possibilita uma visão mais ampla e fiel do que foi a agitação política na Amazônia dessa época. A ampliação do horizonte temporal permite, por exemplo, avaliar os inúmeros atos de rebeldia e insurreição que, antes mesmo da proclamação da Independência do Brasil, antecipam as demandas pela posse do poder político, radicalizadas ao tempo da Cabanagem. Os últimos cinco anos desse período representam o ápice, a crise levada ao seu extremo – a guerra civil, que dramaticamente questionará a legitimidade da nova ordem. Ela expande-se em todas as direções, alcança pontos recônditos, povoados minúsculos. Os saques, as mortes numerosas e violentas, fazem mergulhar a região numa espécie de caos, onde a posse volátil do poder embriaga e atordoa, transfigurando a insegurança quanto ao futuro, em uma forma de enfrentamento radical do medo e da morte, o que acabará redundando na prática de atos de extrema violência, tanto pelos cabanos quanto pelas tropas legalistas, especialmente entre 1835/1840. Nenhum movimento revolucionário no século XIX apresentou, como a Cabanagem, uma vinculação tão nítida quanto intensa e abrangente com as classes subalternas e duramente oprimidas da sociedade e, ao mesmo tempo, conseguiu em alguns momentos seduzir e arrastar pequenos proprietários, artesãos livres, assalariados ligados às diversas atividades mercantis e sacerdotes católicos. O estabelecimento do domínio colonial português na Amazônia se caracterizou pela dura imposição de um modelo civilizatório que pretendia a conversão dos nativos à fé crista e a produção de riquezas exportáveis para a sustentação da coroa. Duzentos anos de sofrimentos inauditos, opressão e privação da liberdade dos mestiços que formavam a maioria da população, cobraria seu preço em uma explosão de violência representada pelos longos anos da luta revolucionária cabana. Rancores e humilhações não esquecidas fermentam as mentes e constituem o combustível que alimenta a prática de atos de vingança contra aqueles que pela cor branca da pele e/ou proximidade do exercício do poder e na condição de posse de riquezas, esses indivíduos assumem o papel de inimigos, de usurpadores. Sejam quais forem, as ideias políticas que circularam na imprensa da época, sofreram interpretações muitas vezes equivocadas ou distorcidas, pela transmissão precária da oralidade. O radicalismo ideológico se amparava na opressão vivida no presente ou pela sua sombra ameaçadora, que tolda o horizonte da autonomia proporcionada pela recém-conquistada independência. Republicanos federalistas, monarquistas constitucionais ou absolutistas se enfrentam com insultos e ameaças, denunciando conspirações imaginárias ou verdadeiras, em busca do apoio popular. No período compreendido entre a abdicação de Pedro I, em abril de 1831, e a tomada de Belém pelos cabanos, em janeiro de 1835, inúmeros são os atos de desafio ao poder instituído. De modo alternado, os principais partidos ocupam a cena política, tentando impor sua hegemonia, sendo apoiados (ou a eles oferecendo sustentação) pelos governantes designados pela regência para dirigir o Pará. A análise completa das causas possíveis da eclosão da Cabanagem não poderia ser realizada nos limites deste artigo, mas ouso propor alguns pontos importantes a seguir. Entre as ameaças à liberdade o recrutamento militar ocupava lugar de destaque. A atuação desastrada de agentes recrutadores nas diversas vilas ou na capital, que exorbitavam de suas funções, cometendo abusos e arbitrariedades, contribuiu para que a revolta fosse alimentada cotidianamente. O recrutamento também visava a retirar de circulação os escravos negros, que, a serviço de seus senhores ou em seus momentos de lazer, se reuniam em locais públicos e defendiam ideias abolicionistas. Como 1160

Universidade do Estado do Pará. Email: [email protected]

354 ISSN 2358-4912 os escravos eram muito mais numerosos do que a população branca, o temor de que ocorresse uma rebelião escrava não era descabido, e a lembrança da revolta do Haiti assustava os proprietários de escravos, que temiam pelo seu patrimônio. O espírito de resistência e luta dos negros é outro elemento importante para a eclosão do movimento revolucionário. Na capital ou em outros locais, os negros sempre estiveram envolvidos nas lutas pela liberdade, qualquer que fosse a origem delas, e os inúmeros mocambos negros da Amazônia atestam o espírito libertário desses indivíduos. Local de refúgio, a floresta foi sempre generosa com aqueles que buscaram, em sua densidade complexa, uma forma eficaz de se proteger da opressão. Outro fator que merece destaque é o papel desempenhado pela imprensa desde sua instalação na segunda década do século, por Filipe Patroni. Um exemplo de sua atuação incendiária da imprensa local no período em questão pode ser constatada pela contestação feita pelos opositores da administração em exercício, quando a notícia da aprovação do Ato Adicional (12/08/1834) chega a Belém. A situação política atravessava outro momento de violência, com a sedição do corpo municipal permanente, por falta de pagamento. O jornal SENTINELA MARANHENSE NA GUARITA DO PARÁ, que defende com exaltação a federação republicana, tem em Batista Campos o seu ideólogo e em Vicente Ferreira Lavor Papagaio, um redator incendiário, passam a denunciar as atitudes autoritárias do Presidente Lobo de Sousa, a criticar a sempre difícil situação econômico-financeira da Província. Esses debates provocados pela imprensa livre sobre a questão republicana e os direitos do cidadão, demarcariam as novas perspectivas que se abriam com as possibilidades políticas oferecidas pela criação da regência eletiva e temporária da menoridade. A perseguição sem tréguas ou limites, a violência do confronto, deixa suas marcas costumeiras, agora ampliadas pela estratégia da terra arrasada, o rastro da destruição que de certo modo anuncia os negros tempos que virão com a guerra civil. O outubro sangrento nos campos e matas do Acará próximo à capital, Belém, e a morte do padre Batista Campos, o grande ideólogo da conspiração, fazem o movimento avançar e incorporar adesões em setores sociais urbanos ligados à pequena burguesia e ao estamento militar.1161 Em uma Belém tomada pelos rebeldes, José Malcher, o proprietário de terra que teve sua fazenda incendiada no outubro sangrento, foi escolhido presidente e começa a enfrentar as primeiras dissenções entre os rebeldes. A anarquia e as desordens provocadas pelos excessos das tropas acabariam levando a novos enfrentamentos das milícias rivais e ao assassinato de Malcher. E o poder volta para as mãos dos irmãos Vinagre e Angelim, chefes militares respeitados pelos cabanos. Em 1835 Belém é bombardeada pelos navios legalistas fundeados na baía de Guajará e o comando rebelde responde com tiros de canhão oriundos do Forte do Castelo. A revolução se espalha pelo interior da província como um rastilho de pólvora. Mas os líderes cabanos queriam o reconhecimento de sua cidadania plena e o direito ao autogoverno e em busca de uma solução de compromisso, devolvem o governo da província às tropas legais. Cerca de um mês depois seu gesto de boa vontade foi retribuído com a prisão dos principais líderes revolucionários pelo presidente da Província designado pelo governo central. Novamente os cabanos retomam a capital e percebem que a luta não admite gestos de boa vontade. A ferocidade dos cabanos provoca o recuo dos legais e expande sua ação deletéria por todo o vale amazônico. A repressão comandada pelo Brigadeiro Soares d’Andreia iniciada em 1836, constitui combate sem tréguas aos cabanos. Equipado com mantimentos, armas, munições e 400 recrutas oriundos das prisões e/ou e sentenciados na Corte em outras províncias por onde passara, em pouco mais de um mês Soares d’Andreia entra na capital acompanhado de seus oficiais e tropas sem maiores problemas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Encontrou na cidade somente mulheres e a guarnição que Eduardo Angelim deixara; não excedia de 200 homens. Ordenou que destes fossem presos os intitulados oficiais, e alistados os demais como recrutas. Por precaução dividiu-os em pequenos grupos, e assim os repartiu pelas diferentes companhias dos batalhões de tropa de linha [...] A cidade despovoada apresentava por toda parte um aspecto sombrio e contristador. (RAIOL, 1970, p. 965).

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Entre as importantes adesões ao movimento, está a dos irmãos Aranha. João Miguel Aranha morou cinco anos nos EUA, estudando matérias ligadas ao comércio e Germano Máximo Aranha era oficial da Marinha Imperial e havia sido comandante dos municipais permanentes alguns anos antes.

355 ISSN 2358-4912 Soares d’Andreia usou do artifício de não publicar a lei que autorizava o estado de guerra (Lei de 22/09/1835) para não ter restrições de prazos na busca e captura dos cabanos, uma vez que essa Lei só autorizava as medidas excepcionais por seis meses. Tendo em vista a dimensão da tarefa de “pacificação”, nesse espaço de tempo muitos rebeldes escapariam de ser presos. O prazo se esgotaria antes que isso pudesse acontecer, o que para ele representava uma forma de anistia geral indesejável, estímulo à prática de novas sedições “para saciar suas almas nunca fartas de maldades” e colocaria em risco a província e a união do Império. São criados os corpos de trabalhadores através de Lei nº2 de 25/04/1838 da Assembleia Legislativa Provincial. Inicia-se o “processo de pacificação” comandado pelo sanguinário brigadeiro e baseado no terror e no trabalho compulsório nos famigerados “Corpos de Trabalhadores” que convocaram todos os homens válidos entre 10 e 50 anos para o serviço de reconstrução econômico-militar da Província, reduzindo-os à condição de trabalho escravo, mesmo os que livres eram pela cor ou pela alforria e cujo crime não comprovado era o de terem participado da revolução. Foi assim que Soares d’Andréia marcou tristemente a história do Pará deixando um rastro de perseguição e injustiças que o tempo e frágil memória sobre uma revolução destinada ao esquecimento pelas elites dirigentes se encarregaram de esconder por largo período. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A educação jesuítica no Grão-Pará: religião, educação e fabricação de bons súditos Na tentativa de elucidar o processo inclusivo de produção do imaginário social-histórico, entendido como base da formação do viver coletivo, a abordagem teórica da educação praticada na Amazônia colonial buscará compreender o processo de fabricação social dos indivíduos1162, para isso levando em conta a produção das significações imaginárias sociais pelos atores sociais envolvidos. Como a educação/evangelização efetivamente contribuiu para a fabricação social desses indivíduos? A igreja católica através das numerosas ordens estabelecidas na região, em especial o trabalho dos jesuítas, será fundamental na produção das significações sociais que serão impostas via evangelização dos índios, na tentativa de obter o controle dos corpos e das mentes e assim torná-los servos de Deus e da Coroa portuguesa. Na Amazônia a carência de mão-de-obra era imensa para todas as tarefas. Talvez o primeiro e mais importante bem a ser produzido na região era o próprio homem, habilitado para vencer o desafio que as terras, águas, matas e animais representavam. Como prioridade estratégica estava a necessidade de criação do "bom súdito de sua Majestade" que deveria de modo pacífico se encarregar do trabalho penoso de produzir as riquezas que a glória do Reino exigia. A natureza do mando econômico-militar motivou a supressão da diversidade cultural que se efetivaria com sucesso a partir da imposição de uma língua comum, o estabelecimento de uma norma culta para essa língua e principalmente, a busca de um valor absoluto e universal – a ideia de um só Deus – e o estabelecimento de práticas e rituais unificadores representados pelo Catolicismo ao assumir o seu papel “civilizador”. O trabalho servil, do nativo ou do negro, foi desde o início imprescindível para conquistar as riquezas na região. A educação pretendia “amansar e/ou civilizar” esses indivíduos para torná-los produtivos para o sistema colonial. As atividades de pesquisa se concentram na análise da educação no decorrer dos séculos XVII e XVIII no Pará, em especial sobre a atuação dos jesuítas até a data de sua expulsão da região, e após sua expulsão, interrogando os documentos sobre os efeitos dessa brusca mudança de rumos efetivada pelo Estado português na Amazônia, portanto direcionando seu foco para a análise das medidas instituídas pela legislação pombalina para a Amazônia. Dois grandes eixos de análise estão sendo utilizados na 1162

Para compreender o conceito de fabricação social dos indivíduos retomo as palavras de Castoriadis: a fabricação dos indivíduos pela sociedade, a imposição aos sujeitos somato-psíquicos, ao longo de sua socialização, do legein, mas também de todo as atitudes, posturas, gestos, práticas, comportamentos, habilidades codificáveis é, evidentemente um teukhein, mediante o qual a sociedade faz serem estes sujeitos como indivíduos sociais, a partir dos dados somato-psíquicos, de maneira apropriada à vida, a sua vida nesta sociedade e com vistas ao lugar que nela ocuparão graças a isso, os indivíduos sociais são feitos, enquanto valendo como indivíduos e valendo para tal “papel”, “função”, “lugar”sociais. (Grifos e aspas do autor). (CASTORIADIS, C. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 302).

356 ISSN 2358-4912 análise: o método de educação jesuítico e a forma como ele se estrutura a partir do trabalho compulsório da população nativa. O sucesso da educação praticada pelos jesuítas se ancorava na busca incessante do conhecimento da natureza indígena e na adaptação de seus métodos europeus de educação às características de seus alunos e à necessidade da missão político-religiosa. Pela evangelização procuraram criar “bons súditos” para Deus e o rei, dosando com eficácia e argúcia a recompensa e a punição. A tarefa de educar era essencial aos objetivos da Companhia de Jesus, a formação de homens bons, tementes a Deus e preparados para desempenhar sua missão evangelizadora como leigos ou religiosos em uma nova sociedade. Ao longo do tempo, os preceitos, procedimentos e recomendações de Santo Inácio, o seu fundador, foram consolidados em uma espécie de regulamento a Ratio Studiorum1163 que deveria orientar a fundação e funcionamento dos colégios mantidos pela Companhia. Os missionários, com o emprego de uma violência mitigada, buscaram a adequação dos indivíduos em relação ao ofício ensinado, tendo em vista a estrutura produtiva, tudo isso redefinido pelos padrões de uma nova sociabilidade, cuidadosamente ensinada, especialmente às crianças de quem se esperava a continuidade da experiência evangelizadora. Eles preferiam trabalhar com crianças e jovens pela óbvia facilidade de manipulação das tenras consciências, o que nos adultos se configurava na maioria dos casos em trabalho penoso e desalentador. Essas práticas dilaceradoras da identidade étnica do nativo pela imposição do novo padrão cultural dominante foram cuidadosamente empregadas pelos jesuítas no desenvolvimento de ofícios associados às atividades que de certo modo também desenvolviam a capacidade artística, como é o caso da carpintaria, da marcenaria, da pintura e da escultura, além, é claro, das atividades da pesca, da agricultura e do extrativismo vegetal e animal em uma região de abundância como é a Amazônia. A rica produção de arte barroca que ainda hoje pode ser admirada no Pará e no Maranhão comprova o sucesso da empreitada amparada no talento e dedicação dos missionários e seus alunos-operários. Seu esforço educacional resultou naquilo que denomino de uma pedagogia da sujeição ou da submissão, uma prática educativa que combinava com sucesso o ensinar a ler, escrever e contar através da repetição exaustiva e/ou cantada das lições e o seu representar, em pequenos autos de fé e exaltação religiosa, mesclada de proibições, castigos e recompensas. Por outro lado, a criança ou o jovem era instruído em artes e ofícios essenciais aos propósitos da empresa colonial capitalista e desde cedo internalizava a obediência fundamental ao seu lugar na sociedade, fosse sob o domínio estrito do patrão religioso, civil ou militar. Ao “libertar” pela evangelização os indígenas, torná-los membros de suas comunidades organizadas em aldeias, povoações ou vilas, tornava-se claro que havia dois tipos de súditos de Deus pelo acesso ou não, em quantidades diversas, aos bens materiais produzidos pelos nativos e comercializados pelos jesuítas. A construção da força e riqueza da Companhia de Jesus exigia a sua inserção no mundo dos homens através do capitalismo e essa inserção é por definição assimétrica quanto ao usufruto dos bens e do poder existente nas comunidades onde estes se originam em relação ao conjunto de seus membros. Tal contradição escamoteada pelos religiosos estava subsumida no conteúdo alienante do processo evangelizador/dominador, mas era bem visível aos colonos que com extremado vigor a contestavam e denunciavam como crime de lesa-majestade, uma vez que as riquezas produzidas pelo trabalho dos índios, alvo da cobiça dos colonos em suas denúncias, deveriam ser contabilizadas prioritariamente a favor da coroa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A luta contra a permanência da opressão de matriz colonial e a imaginação social da liberdade Depois da expulsão dos jesuítas, sem a vigilância religiosa, muitos hábitos que deveriam preparar as gerações para a disciplina e a ordem que serve de sustentáculo à sociedade capitalista foram 1163

Refiro-me a Ratio Studiorum de 1599 que se tornou regulamentação obrigatória e definitiva até a supressão da Ordem em 1773. SCHMITZ (1994, p.83) esclarece que a Ratio é, de certo modo, uma predecessora dos modernos sistemas de educação e ensino, dos diversos países, que estabelecem certas normas gerais e comuns a serem seguidas por todo o sistema do respectivo país. Sem essas normas comuns, difícil seria estabelecer um sistema estável de educação. .

357 ISSN 2358-4912 abandonados. Sob o Diretório (lei de 18/08/1758)1164 ocorreu a mais desenfreada exploração dos índios pelos brancos, com a desculpa de que era impossível proceder com mansidão e justiça com indivíduos tão rudes e ignorantes. Ao final do século XVIII e início do XIX havia na Amazônia a predominância de um habitante típico que morava ao longo das margens dos rios e lagos nas localidades, povoações, vilas e cidades, espraiadas na imensidão da planície, fruto das uniões entre os vários grupos étnicos presentes na região1165. Em duzentos anos os variados matizes da mestiçagem forjaram esse tipo característico que herdara de seus antepassados indígenas uma relação muito particular com a floresta, as águas e o trabalho que possibilita a sobrevivência. E é essa relação primordial que define a forma como o presente e o futuro são propostos e imaginados. O negar-se ao trabalho e não ser passível de punição talvez fosse o único privilégio desses indivíduos, que rigorosamente não poderiam sofrer discriminação racial, mas podiam ser diferentes quanto ao estatuto legal que regia o constrangimento ao trabalho. A forma concreta em que se opera a exclusão que degrada ao máximo, não é ser pobre, não possuir propriedades, mas ser escravo, condição de exclusão definida legalmente. As décadas iniciais do século XIX permitem visualizar esse novo ator em plena emergência política, cuja vivência urbana ou quase urbana e a experimentação daquilo que a elite chamava de “relaxação dos costumes”: um alívio da pressão sociocultural para a obtenção da uniformidade comportamental, e que permitiu acentuar um traço originário nunca esquecido: o apego à liberdade. Esse é o rico período de instituição sócio-histórica que colocará no centro do debate a discussão sobre validade da lei e a condição de ser brasileiro. Todos falam em liberdade, doce palavra que a condição de brasileiro parece enfim tornar realidade. Mas de qual liberdade falam pessoas situadas em lados opostos do conflito? Quem deve ter direito à liberdade? Os despossuídos aqueles que sofrem a exclusão e a opressão do trabalho escravo ou servil ou aqueles, que do alto de suas posições privilegiadas consideram-na ameaçada? A liberdade proposta pelas elites dominantes às classes subalternas no decorrer da luta pela independência no Brasil está, em sua origem, demarcada pelas necessidades de manutenção do poder político por quem já o exercia e necessidade de proteção ao capitalismo mercantil fundado no escravismo. O conservadorismo das elites venceu as batalhas principais – a implantação do império em vez de uma república – e a manutenção do controle total sobre o trabalho e a posse da terra. A liberdade que se institui está contida nos limites estreitos do modelo burguês e jamais atenderia aos anseios da gente amazônida. A visão aristocrática da liberdade, em que se condiciona o seu exercício a certas qualidades do sujeito e de suas posses materiais, praticamente exclui as massas, rudes e ignorantes, e assim incapazes de usufruir tão grande privilégio. A liberdade proposta pelas elites enfim está clara: ela deve ser tutelada sob a “estratégia do favor”, do compadrio, do laço de vassalagem ao senhor, que a autoriza, ou restringe ou a recusa seguindo seus próprios interesses e autorizado por um estatuto que assim a define. Essa concepção contratual de liberdade, originária dos embates europeus, difundida simultaneamente à expansão do capitalismo e de seu ideário burguês, tem o objetivo claro de associar o controle das forças produtivas aos seus princípios de moralidade enquanto classe dominante. A imaginação social de liberdade pelos habitantes despossuídos do vale amazônico está próximo do significado primitivo ao qual se reporta Lalande (1993, p.615): o homem livre é o homem que não é escravo ou prisioneiro. A liberdade é o estado daquele que faz aquilo que quer e não aquilo que outrem pretende que ele faça; é a ausência de constrangimento alheio. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Dom Francisco de Souza Coutinho, lúcido intelectual que governou o Grão-Pará ao fim do século XVIII e a quem coube a missão de corrigir os desmandos autoritários e o excesso de corrupção que assolava a administração local sob o Diretório, escreveu em seu Plano Para a Civilização dos Índios: implica contradição civilizar hum selvagem para lhe fazer sentir todo o pezo da sua dura condição, e portanto fica lugar de inferir pello mesmo esquecimento que aquelle Plano {o Diretório} não devia ter tanta duração como tem tido. 1165 Estes Índios que já hoje não são mestiços e os seos descendentes pella maior Parte, já nascidos de mistura de cores parece terem chegado ao seo ponto de civilização, de que da gente he sucessível nem a ser a mesma, em que se acha toda a gente forra, e Mestiços {pellos} outros Portos do Brasil elles {formão} e tem seos pequenos sitios onde fazem lavouras proporcionadas onde tem das criaçoens (...) Plano Para a Civilização dos Índios do Pará, elaborado por D. Francisco de Souza Coutinho e apresentado em 02/08/1797. Arquivo Público do Pará, Códice 548.

358 ISSN 2358-4912 Na Amazônia revolucionária do século XIX a difícil tarefa será associar e estabelecer práticas políticas e administrativas do estado nascente compatíveis aos discursos opostos: um ator social que entende o momento histórico como a oportunidade de sua valorização como enfim um cidadão livre para decidir sobre si mesmo e sua sobrevivência, e aí se inclui fundamentalmente sua concepção de mundo sobre o trabalho e o ser livre e seus antagonistas – que, de alguma forma, tem a capacidade constrangê-los ao trabalho compulsório e assim à restrição da liberdade.

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ISSN 2358-4912 “QUEM TEM FAMÍLIA, AGRADEÇA NOITE E DIA”: REFLEXÕES PRELIMINARES A RESPEITO DA PLURALIDADE POPULACIONAL E DAS RELAÇÕES FAMILIARES DE PORTO ALEGRE (1772 – 1822) Denize Terezinha Leal Freitas∗ Introdução A História das Famílias é um tema complexo, que exige múltiplos olhares do pesquisador. Neste sentido, nosso objetivo é compreender os diversos arranjos familiares que se constituíram na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, para além daquelas construídas a partir do sacramento matrimonial. É interessante destacar que a pluralidade familiar foi primeiramente verificada a partir da análise dos próprios registros de casamento realizados na freguesia entre 1772-18351166. A diversidade de características que encontramos nos assentos de matrimônio1167 e, posteriormente, a análise dos casamentos “fora do casamento”1168 foram fundamentais para ampliarmos o nosso estudo a respeito da população e das famílias desta localidade. Apenas os registros de casamento não seriam capazes de abarcar a própria complexidade que se identificava nestes registros. Portanto, ampliamos e modificamos nossa linha de investigação. Para o estudo a respeito da História das Famílias desta Freguesia, optamos por reduzir nosso tempo de análise, restringindo para o período compreendido entre 1772-1822, concomitantemente, ampliamos o número de documentos1169 a serem analisados, incorporando à análise dos casamentos, os demais registros paroquiais de batismo e óbito cujos dados se encontram organizados no software NACAOB1170, bem como, o conjunto de Róis de Confessados correspondente ao final do século XVIII e princípios do século XIX. Além disso, o estudo partirá da nossa experiência nas análises de História Demográfica, direcionando-se a História Social. Para tanto, realizaremos um estudo que paralelamente incorpore uma análise mais qualitativa e transversal dos dados. Desta forma, ampliaremos nosso conjunto documental, a fim de verificarmos os acontecimentos históricos, a partir de uma abordagem microanalítica, nas quais extrapolaremos apenas as informações referentes aos perfis dos nubentes, mas sim, partiremos ao encontro das outras formas de uniões que constituíam aquela parcela da população que não contraiu núpcias na localidade. Para esta comunicação, pretendemos apresentar uma reflexão preliminar a respeito da importância destes conjuntos documentais para estudarmos as famílias. Num segundo momento, iremos mostrar como o conjunto documental dos Róis de Confessados podem nos auxiliar neste processo. Sendo ∗

Doutoranda em História do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 1166 Cf. FREITAS, Denize Terezinha Leal. O casamento na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre: a população livre e suas relações matrimoniais de 1772-1835. Dissertação (Mestrado em História) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, São Leopoldo: RS, 2011. 1167 Ibidem. 1168 Em alguns registros paroquiais de casamento encontramos alguns casais legitimando vários filhos que foram frutos desta relação, porém anteriormente do sacramento do casamento. Portanto, denominamos como os casamentos “fora do casamento”, isto é, eram famílias formadas a partir de uniões consensuais. 1169 Além disso, pretendemos analisar outros tipos de documentações como os Autos de Justificações Matrimoniais, os Testamentos ou Inventários, as Atas da Câmara de Vereadores, a Relação de Moradores (1784/1785/1797), entre outras fontes documentais que auxiliaram na recomposição de algumas trajetórias familiares que serão realizadas ao longo da pesquisa. 1170 O programa informatizado foi desenvolvido entre os anos de 1991 e 1992, pelo analista de sistema Dário Scott que integra o grupo de pesquisa “Demografia & História”. Este programa constantemente vem recebendo atualizações importantes que permitem ao pesquisador ter em mãos uma cópia fiel do documento manuscrito original. Cf. SCOTT, Ana Silvia Volpi. SCOTT, Dario. Cruzamento Nominativo de Fontes: desafios, problemas e algumas reflexões para a utilização dos registros paroquiais. XV Encontro Nacional de Estudos de População. Caxambú – MG. Setembro 2006 Disponível In: http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_480.pdf

360 ISSN 2358-4912 assim, trata-se de um primeiro exercícios de cunho teórico metodológico correspondente ao nosso objeto de pesquisa. Mais do que uma prospecção documental, uma análise da sua importância para pensarmos as famílias plurais da Madre de Deus de Porto Alegre.

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O universo dos Róis de Confessados: as famílias plurais de Porto Alegre (1779-1814) Para Sheila de Castro Faria, é impensável tratarmos a História da Família no Brasil Colonial, sem destacarmos sua pluralidade, portanto, da História(s) da Família(s) com as quais o pesquisador encontra na documentação1171. Dos conjuntos documentais que visualizamos esta diversidade, destacamos os Róis de Confessados. Esta relação dos paroquianos que confessaram e comungaram durante os preparativos para a páscoa, encontramos uma série de fogos1172 que são reveladores das múltiplas formas de arranjos e relações familiares (consanguíneas ou não). No que diz respeito a documentação produzida para Porto Alegre, temos acesso a um conjunto composto por 24 Róis que correspondem ao final do século XVIII e primórdios do século XIX, localizados no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Poro Alegre. Esse documento possui em torno de 50 páginas, pelas quais, estão relacionadas o conjunto da população paroquiana, dividas em duas colunas. Cada grupo ou arranjos familiar é divido por uma demarcação do pároco, pela qual, separa um fogo do outro, conforme podemos observar na ilustração a seguir. Ilustração 1: Extrato do Rol de Confessados 1780 e ao lado do Rol de Confessados 1791

Fonte: AHCMPA, Rol de Confessado de 1780, fl. 1v. e Rol de Confessados 1791, fl. 4.

Na imagem à esquerda, correspondente ao Rol de 1780, encontramos uma lógica de listagem dos fogos diferente da usualmente encontrada nos demais Róis de Confessados. Nele, o pároco separa cada fogo em blocos bem definidos, nos quais, encontramos informações mais detalhadas sobre os chefes de família, como por exemplo: a profissão ou qualidade, a idade, os filhos e filhas, a condição matrimonial dos mesmos, etc. Em seguida, separadamente são mencionados os escravos e suas respectivas idades e, por fim, os agregados e suas idades. A indicação daqueles que cumpriram as obrigações pascais são indicados por uma espécie de símbolo semelhante a este: “#” cujo número de traços verticais indica se são crismados, se comungaram e confessaram. Na imagem da lateral direita, observamos o Rol de 1791, no qual, percebermos mudanças contundentes na organização das informações por parte dos párocos1173. Neste existia duas linhas 1171

Cf. FARIA, Sheila de Castro. História da Família e Demografia Histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pág. 252-253. 1172 Pelo termo fogo devemos entender que, assim eram tradicionalmente denominados os domicílios em Portugal e nas colônias portuguesas. Equivalente em outros idiomas também eram utilizados nos países concernentes. O vocabulário de Raphael Bluteau considera como sinônimo de “Família”, muito embora seja bastante ambíguo este conceito, para o século XVIII. Este dicionarista exemplifica, por exemplo, a utilização do termo: “Villa, que tem cem, ou duzentos fogos” [1712], o que reforça a ideia de família como domicílio. NADALIN, Sérgio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas: ABEP, 2004, p.248. 1173 Acreditamos que as mudanças são reflexos nítidos das alterações estruturais na Freguesia. O aumento populacional deve ter interferido diretamente na sistematização e brevidade da coleta das informações para os Róis de Confessados. Lembrando-se sempre ao leitor, a importância de recordarmos o caráter da documentação

361 ISSN 2358-4912 verticais demarcatórias, cuja finalidade era a anotação daqueles habitantes que foram crismados, e também daqueles que confessaram e comungaram. Ao observamos mais atentamente, percebemos que a nomenclatura se altera, como por exemplo: o caso da escrava Domingas do primeiro fogo da primeira coluna, percebermos que ela não é crismada, pois há apenas duas demarcações: “c. c.”. É interessante destacar que o Rol de Confessados revela bem mais do que as relações familiares, mas também, a estrutura econômica e social dos envolvidos, por isso, existe uma organização interna e uma lógica de listagem das informações própria de cada pároco e, sobretudo, de acordo com a disposição dos indivíduos dentro de cada fogo. Desta maneira, estão dispostos hierarquicamente cada pessoa de acordo com a sua função e posição hierárquica dentro do fogo. Assim, preserva-se como primeiro representante, o chefe de família (cabeça do fogo), tanto masculino, quanto feminino. Em seguida, os cônjuges: para os casados há sempre o indicativo “sua mulher” ao final do nome da esposa; no caso dos possíveis coabitados não existe observação alguma, porém na sequencia de ambos os casos estão relacionados os filhos. Após a relação da prole que predominantemente é ordenada de acordo com a idade, ou em outros casos por gênero, isto é: prevalecem uma ordenação decrescente de acordo com a faixa etária e/ou, opta-se por uma organização de acordo com o sexo: primeiro coloca-se todos os filhos, em seguida, as filhas. Por fim, sempre aparecem os agregados e escravos, porém apesar de haver uma tendência a prevalecerem a relação dos agregados primeiramente, existem casos dentro do mesmo Rol – isto é, realizados pelo mesmo escrivão eclesiástico – nos quais, a relação dos escravos aparecem antes dos agregados. Em outros casos, mesmo que o pároco não indique precisamente, encontramos alguns poucos escravos após a indicação dos agregados, pelos quais, a observação recorrente pode nos indicar que havia escravos pertencentes aos agregados. Há, também, a menção dos filhos e filhas de agregados, bem como, dos respectivos cônjuges, observando a regra dos chefes do fogo, isto é, com a indicação “sua mulher” na sequência do nome das agregadas. Quanto à cor dos arrolados, podemos constatar que essa informação era mencionada com extrema escassez, apenas relacionada diretamente a condição jurídica, como por exemplo: “preto forro” e “preta forra” ou “parda forra” e “pardo forro”. Esporadicamente, encontramos alguns casos como o casal Jozé da Silva e Perpetua Roza que são indicados como “pardos”, encontrados no Rol de Confessados de 1800. Outra característica predominante, perceptível na diferenciação de escravos, forros e agregados é o sobrenome, todos os livres ou libertos sempre aparecem com dois ou mais nomes indicados. Os cativos são sempre nomeados apenas pelo prenome, e por vezes, com alguma alcunha. A população indígena é raramente destacada, encontramos apenas nos casos onde há a menção do termo administrados. Outra dificuldade refere-se a padrão de nomes cristãos que acaba diluindo este grupo dentro da população de origem luso-brasileira. A população liberta está presente, sobretudo, há as mulheres chefes de famílias forras que normalmente aparecem próximas ou referidas na sequência de outras mulheres da mesma condição, ou de pobres livres. Apesar da diluição das informações existe uma espécie de atração entre fogos de médios e pequenos portes, isto é, recorrentemente aparecem concentrados na listagem do pároco. Quanto aos casais de forros, apenas o chefe de família aparece referido, sendo a cônjuge – predominantemente “Maria da Conceição” – ser mencionada como “sua mulher”, não há nenhuma denominação da cor e da condição jurídica da esposa. Quanto à condição jurídica podemos perceber que existe uma tendência a seu desaparecimento ao longo do tempo, bem como, da menção da cor para os mesmos conjuntos familiares observados na longa duração. Porém, encontramos também, alguns homens e mulheres com a indicação de forros ou forras relacionados dentro do grupo de escravos, outros com a denominação de agregados. Essa variação é decorrente da posição dos mesmos dentro da hierarquia interna de cada fogo. Os “silêncios” da fonte, ou seja, as omissões do pároco, também, são complicadores fundamentais para os pesquisadores da História da Família, sobretudo, na definição dos laços fraternais, parentais, matrimoniais, de vínculos de camaradagem, amizade, clientelares ou demais vínculos afetivos – sobretudo aqueles referidos as outras formas de uniões. Neste sentido, para estudos posteriores, pretendemos nos valer do cruzamento nominativo de fontes com o conjunto dos registros paroquiais

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que tinha por finalidade um controle dos cumprimentos das obrigações religiosas dos paroquianos e não tinha por objetivo a realização de censo populacional.

362 ISSN 2358-4912 de casamento, batismo e óbitos para compreendermos com maior profundidade a complexidade das relações sociais e familiares entre os envolvidos que compartilham do mesmo fogo. Quanto a qualidade dos arrolados, podemos inferir que aparecem qualitativos referente a patente militar dos chefes de famílias, como por exemplo; “Capitão Mor”, “Sargento Mor”, etc. ou indicativos de profissões ligadas a cargos administrativos, militares ou religiosos, como: “Ajudante”, “Reverendo”, “Cirurgião Mor”, “Marinheiro” etc. Para as mulheres chefes de famílias ou não, em alguns casos é atribuída a qualidade de Dona seguida de nome e sobrenome. Vale destacar que encontramos a partir de 1800 alguns fogos, nos quais Capitães e Donas aparecem com a condição de agregados de outros de seus pares, questão que nos faz repensar a condição do que é ser agregado nesta sociedade conforme exposto por Carlos Bacellar1174, para Sorocaba, e Oliveira1175, para Franca. Quanto à condição dos agregados, podemos perceber que sua condição social pode ser das mais variáveis, isto é, desde um escravo que ascendeu a liberdade; um casal na dependência paterna; uma viúva que abriga suas filhas; sobrinhas ou demais empregadas em busca de melhores condições de sobrevivência; ou, até mesmo, como referido anteriormente, Donas e Capitães em condições subalternas. Estas condições devem ser pensadas como provisórias ou transitórias ao longo da vida, como salienta Bacellar.1176 Por este viés, podemos pensar no contexto dos conflitos militares pela disputa de território entre as coroas ibéricas, pelas quais caracterizaram este período na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822)1177. Mas também, podemos nos valer dos indicativos de Oliveira para Franca, nos quais, para alguns agregados era um modo de vida escolhido ou determinado para toda vida ou para um período bastante significativo da mesma, visto que alguns “não apresentam as relações de parentesco entre o chefe do domicílio e os agregados que residem em seu domicílio”1178. Quanto à idade, são encontrados nos Róis de 1779, 1780, 1781 e 1782 que seguem os mesmos parâmetros indicado anteriormente. No que se refere à condição matrimonial, encontramos para os casados a referência ao lado da esposa “sua mulher”. Contudo, em alguns casos apresenta-se o nome do chefe de família, em seguida, o nome de uma mulher e, na sequência, a relação dos filhos, o que nos permite inferir que pode designar uma família de coabitados, sem os sacramentos do matrimônio. Noutros casos, encontramos a relação de supostos “agregados”1179 ou a sequência de duas mulheres ou dois homens ou mais que podem indicar outros laços afetivos, como por exemplos, os consanguíneos (fraternais, parentais, etc.) e os de camaradagem (clientelares, amizade ou vizinhança). V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A utilização dos Róis de Confessados: exercícios metodológicos Mais do que realizar um trabalho de tipologia dos grupos familiares, pretendemos compreender as dinâmicas familiares, identificar as diferentes formas, arranjos, laços, ampliações, restrições, alargamentos que podemos encontrar nas relações familiares e sociais a partir do estudo destes fogos. Sendo assim, optamos pelo cruzamento nominativo com outros conjuntos documentais (registros paroquiais, relação de moradores, Autos de Justificações, etc.) para ampliarmos nossa perspectiva a fim de enriquecer nosso olhar sobre a complexidade destas alianças familiares e sociais existentes entre a população de paroquianos da Madre de Deus de Porto Alegre. Para tanto, dividimos nosso processo metodológico em três etapas: a primeira, correspondente a averiguação das fontes; a segunda, o levantamento de dados; e a terceira, a alimentação e organização dos bancos de dados. Na primeira etapa, realizamos uma triagem sobre as condições de utilização e manuseio, bem como, das possibilidades de compreensão das fontes. Desta primeira etapa, resultaram alguns dados que podemos observar na tabela a seguir: 1174

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (coord.). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 187-199. 1175 OLIVEIRA, Marina Costa de. Dinâmica Populacional no Sertão do Rio Pardo (1801 1829). 167f. 292f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, UNESP, Franca, 2012. 1176 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Op. Cit., 2001, p. 189. 1177 Cf. BOEIRA, Nelson (Coord.). História do Rio Grande do Sul: Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006. v. 1. 1178 OLIVEIRA, Marina Costa de. Op. Cit. 2012, p. 133. 1179 De acordo com Oliveira “além de irmãos, encontramos sobrinhos, netos, genros e filhos na condição de agregado”. OLIVEIRA, Marina Costa de. Op. Cit. 2012, p. 134.

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ISSN 2358-4912 Quadro 1: Conjunto Documental dos Róis de Confessados de Porto Alegre (1779-1814) Conjunto dos Róis de Confessados (Madre de Deus de Porto Alegre) 1779 Copiado (word) 1780

Copiado (word)

1781

Copiado (word)

1782

Copiado (word)

1790

Copiado (word)

1791

Transcrito (excel)

1792

Copiado (word)

1793

Transcrito (execel)

1796

Fechado

1797

Transcrito (excel)

1798

Transcrito (excel)

1799

Transcrito (excel)

1800

Transcrito excel)

1801

Corroído

1802

Transcrito (excel)

1803

Ok

1804

Ok

1805

Fechado

1806

Corroído

1807

Fechado

1808

Corroído

1809

Fechado

1811

Fechado

1814

Ok

Fonte: AHCMPA, Madre de Deus de Porto Alegre, Róis de Confessados.

Nela podemos perceber que grande parte dos fundos documentais, podem ser utilizados nessa pesquisa, sendo que o aproveitamento das informações legíveis (não corroídas, fragmentadas ou inexistentes) correspondem de 50% a 80% desse conjunto. Dos Róis de Confessados fechados ainda vamos verificar as reais condições que se apresentam as fontes, bem como, a demanda de tempo para executarmos tal tarefa de abertura e digitalização das imagens. Com relação aos transcritos para a ferramenta operacional Word, ainda falta à transferência dos dados para o Excel. A segunda etapa corresponde à digitalização das imagens e organização das imagens de acordo com cada Rol. Observamos que geralmente, o conjunto tem um número de páginas (frente e verso) que variam de 20 a 50 páginas. Após está etapa de organização das imagens em pastas nomeadas com o ano de cada Rol, passamos para a leitura paleográfica e transcrição dos dados na ferramenta Excel. A terceira etapa está sendo executada no momento, isto é, refere-se a construção de diversos bancos de dados, no qual, é criado um arquivo em Excel para cada Rol, conforme podemos observar no quadro 2 abaixo.

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L ? E E E E E L L L L L E E E E L E L L L L

C C C C

C C

PA ? ES ES ES ES ES AGR AGR ES AGR AGR ES ES ES ES PA ES PA MA FO FO

c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c.c. c. c.

c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c. c.

Fonte: AHCMPA, Madre de Deus de Porto Alegre, Róis de Confessados de 1800, fl. 1.

Nesse quadro como pudemos observar, acrescentamos algumas colunas que nos permitirão realizar o levantamento de dados qualitativos e quantitativos referentes as condições jurídicas, matrimoniais, as relações familiares, a cor, a idade e demais informações adicionadas no campo de observações. Quanto à nomenclatura, utilizamos nas relações familiares, as seguintes legendas: PA = chefe de fogo (masculino); MA = chefe de fogo (feminino); FO e FA = filho e filha; NO = nora; AGR = agregados (as); FO AGR e FA AGR = filhos e filhas de agregados; ES = escravos. No campo da condição jurídica: F = forro (a); L = livre; E = escravo(a); No campo da condição matrimonial: C = casado (a);

observações

cor

Idade

Rel. fogo

Cond. Jurídica Cond. Matrimonial

Sexo M ? M M M M M M F F M F M M F F M M M F M M

c.

Antonio C[?]to Jo[?] [?]trio ? J[?] Francisco Francisco Joaquim Paulo [?]nsono [?]a Maria Capitão Francisco das Chagas Sanctos Dona Joana Matildes Manoel Theobaldo Eva Dorothea Sargento Mor Jozé de Almeida e Mota Thomaz Ajudante João Baptista Dona Anna Maria João Antonio

c.c.

1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 3 3 3 3

Nome

1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800 1800

qualitativo

Ano

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22

N° do fogo

Código

ISSN 2358-4912 Quadro 2: Banco de dados do Rol de Confessados de 1800

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ISSN 2358-4912 S = solteiro (a); No campo da cor, optamos por relatar tal como encontramos na fonte: preto, negro, pardo, etc. Considerações Finais De modo geral, acreditamos que a nossa breve exposição dos Róis de Confessados da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre tenha, consequentemente, apresentado um apanhado da pluralidade das relações familiares existente nessa freguesia no extremo sul da América portuguesa. Embora estejamos conscientes que nem todos os arranjos fossem pautados pelos laços de consanguinidade, também, salientamos que nem todas as alianças familiares seguiam estes critérios. Deste modo mais do que uma abordagem documental ou metodológica, pretendemos realizar um exercício para pensar possibilidades para refletir sobre a potencialidade desta fonte histórica para avaliarmos a pluralidade das famílias encontradas nos confins Meridionais da América Portuguesa, sob uma perspectiva da História Social, das famílias e da população. Referências BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Agregados em casa, agregados na roça: uma discussão. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (coord.). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 187-199. BOEIRA, Nelson (Coord.). História do Rio Grande do Sul: Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006. v. 1. FARIA, Sheila de Castro. História da Família e Demografia Histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pág. 252-253. FREITAS, Denize Terezinha Leal. O casamento na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre: a população livre e suas relações matrimoniais de 1772-1835. Dissertação (Mestrado em História) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, São Leopoldo: RS, 2011. NADALIN, Sérgio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas: ABEP, 2004. OLIVEIRA, Marina Costa de. Dinâmica Populacional no Sertão do Rio Pardo (1801 1829). 167f. 292f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, UNESP, Franca, 2012. SCOTT, Ana Silvia Volpi. SCOTT, Dario. Cruzamento Nominativo de Fontes: desafios, problemas e algumas reflexões para a utilização dos registros paroquiais. XV Encontro Nacional de Estudos de População. Caxambú – MG. Setembro 2006 Disponível In: http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_480.pdf

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NORMAS DO BEM CUIDAR: O TRÁFICO NEGREIRO E O GOVERNO DOS ESCRAVOS NOS TEXTOS DE LETRADOS DA ACADEMIA REAL DE CIÊNCIAS DE LISBOA NO FINAL DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX Diego Andrade Bispo1180 As movimentações do período conhecido como “reformismo português” 1181, que compreende o reinado de Dom José I (1750-1777) sob a administração de Sebastião José de Carvalho e Melo (16991782), o Marquês de Pombal, foram marcadas por significativas transformações nas estratégias de gestão das possessões lusas do Novo Mundo, repensadas e formuladas a partir dos então novos princípios ilustrados. Para o desenvolvimento do “programa de revitalização do sistema político e econômico metropolitano português” 1182 Pombal contou com o apoio de um seleto grupo de intelectuais, os chamados “estrangeirados” 1183, conhecidos mais tarde como precursores de uma mudança significativa da produção de saberes até então concentrada nas mãos dos jesuítas. Mesmo com o fim do governo pombalino, esta perspectiva reformista não se enfraqueceu, pelo contrário, encontrou eco na Universidade de Coimbra e também nos esforços que, em 1779, resultou na fundação da Academia Real das Ciências de Lisboa 1184. “A reforma da Universidade de Coimbra e a criação da Academia Real das Ciências de Lisboa podem ser considerados marcos históricos para Portugal em fins do Setecentos” 1185, pois a primeira, “por intermédio de sua reforma em 1772 foi frequentada por estudantes naturais do Brasil o que contribuiu para a formação de uma mentalidade ilustrada também na colônia” 1186, e a segunda, tinha entre seus objetivos a produção de saberes cuja proposta seria a de auxiliar o Império e suas porções coloniais a alcançar estabilidade, crescimento político, econômico e cultural. Os escritos dos intelectuais ilustrados – em sua maioria, filhos de grandes proprietários rurais – figuram como um dos meios privilegiados da propagação de tal movimento renovador. Alunos de “acentuada tendência para os estudos científicos e preocupados com problemas de sua terra” 1187 deixaram em seus estudos a exposição de um conjunto de medidas necessárias ao aperfeiçoamento de diversos setores da economia colonial, entre os quais estava a mão de obra dos cativos africanos e de seus descendentes, que exerciam um importante papel na composição da força de trabalho do período. Nesse sentido, estes textos apresentam-se como fontes privilegiadas para a compreensão da emergência de uma renovada perspectiva — guiada por fundamentos do pensamento ilustrado — do uso considerado adequado do trabalho dos cativos em fins do século XVIII e início do século XIX. Atento ao movimento empreendido por estes homens que buscaram “ser úteis e aproveitar as luzes, voltando seus estudos principalmente para a agricultura” 1188, o objetivo da presente comunicação é 1180

Mestrando do curso de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca. Bolsista de mestrado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e orientando do Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira. UNESP Franca. Email: [email protected] 1181 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do antigo regime português (1750-1822). São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2006. 1182 MAXWELL, Kenneth. “Pombal e a nacionalização da economia luso-brasileira”. In: Chocolate, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 99. 1183 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 1184 FALCON, F. J. C. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. 1185 LIMA, Péricles Pedrosa. Homens de ciência a serviço da coroa: os intelectuais do Brasil na Academia Real de Ciências de Lisboa: 1779/1822. 2009. Dissertação (Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão) Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009, p.25. 1186 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Colonização portuguesa no Brasil. Edições Colibri / Grupo de trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, 1999, apud. Idem. 1187 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 278, jan.- mar. 1968 p. 105-170, p.105. 1188 Idem, p. 110

367 ISSN 2358-4912 analisar os textos dos homens de letras vinculados à Academia Real das Ciências de Lisboa que se dispuseram a escrever a respeito da forma considerada adequada de se tratar os escravos durante a travessia do Atlântico e no cotidiano em cativeiro. Concentrando a análise entre o período de 1779 – quando do nascimento da Academia Real de Ciências de Lisboa e do aparecimento dos primeiros escritos sobre do governo dos escravos sob a perspectiva das Luzes –, e 1826 – momento no qual o cativeiro e o tráfico atlântico ganharam espaço entre os assuntos tratados no âmbito da Câmara dos deputados no Brasil, então independente 1189, pretende-se demonstrar que as medidas prescritas para o cativeiro no século XVIII, mesmo em função dos elementos impeditivos que limitaram seu alcance, não desapareceram das discussões de letrados vinculados à Academia Real das Ciências de Lisboa; pelo contrário, estas não só foram mantidas nos discursos dos letrados no século XIX, como também receberam outras inserções, dotadas de grande especificidades. José da Silva Lisboa (1756-1835), Baltazar da Silva Lisboa (1761-1840) e Luís António de Oliveira Mendes (1748-1817) são os primeiros letrados a admoestar “que as paixões e os abusos dos proprietários de escravos deviam ser controlados não mais pela temperança cristã, mas sim pela lógica das vantagens materiais e da preservação da propriedade” 1190. Em seus textos tinham especial atenção às questões agrícolas; seus estudos resultavam das análises das formas de cultivo na colônia; suas críticas tinham como foco de atenção a parca produtividade proveniente principalmente do desconhecimento técnico e da má utilização dos recursos agrícolas por parte dos proprietários rurais. Em suas orientações ressaltaram que o aprimoramento agrícola desacompanhado de uma revisão da utilização da mão de obra escrava negra africana não resultaria em reformulações permanentes e eficazes na economia colonial. Tal posicionamento está em consonância tanto com o pensamento econômico oriundo dos saberes produzidos ou vinculados à Academia Real de Ciências de Lisboa, quanto à perspectiva do século XVIII, período no qual as “análises reformistas da escravidão parecem ter atingido seu auge no mundo luso brasileiro” 1191. Assim, cada um destes homens privilegiaram determinados cuidados para com os escravos, na intenção de orientar os senhores a empregarem um tratamento pautado na prudência. Sobre a importância destes cuidados, e a negatividade dos maus tratos, José da Silva Lisboa afirmava que “os negros apesar de sua estupidez, conhecem, contudo o preço da liberdade e que justamente não tomam interesse pela fortuna do seu senhor, na certeza de nunca ela lhes ser transcendente” 1192, e acrescentava que os senhores prudentes no trato de seus cativos acabavam por ter “melhores negros e mais duráveis” 1193 para o trabalho. No mesmo caminho, Baltazar da Silva Lisboa defenderia que “devese em primeiro lugar geralmente estabelecer o uso de casar os escravos” 1194. Por esta prática, o letrado acreditava que o escravo teria a possibilidade de constituir uma família, o que consequentemente o ligaria mais ao seu senhor pelo fato de ter que prover cuidados aos filhos e à esposa. Não só a forma de tratamento para com os escravos no cotidiano do cativeiro estava em pauta nos escritos dos letrados do período, mas também as formas de tratamento anteriores à chegada dos cativos em terras brasileiras e foi Luís Antônio de Oliveira Mendes em sua Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre costa d’África e o Brasil, apresentada à Academia Real de Ciências de Lisboa em1793, que se dedicou em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Determinar com todos os seus sintomas as doenças, que frequentemente acometem os pretos recémtirados da África: examinando as causas da sua mortandade depois de sua chegada ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para

1189

PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 1190 PARRON, Tâmis. “A Nova e Curiosa Relação (1764): escravidão e ilustração em Portugal durante as reformas pombalinas”. Almanaque braziliense. nº 8 São Paulo nov/ 2008, p. 94. 1191 SCHULTZ. Kirsten. “A crise do Império e a Questão da Escravidão Portugal e Brasil, c. 1700 – c.1820”. In: Revista Acervo, vol.21 nº1, (jan./jun. 2008), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, p. 69. 1192 LISBOA, José da Silva. “Carta a Domingos Vandelli descrevendo a Bahia, 18 de Outubro de 1781”. In: Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Volume 32, 1910, p. 502. 1193 Idem. 1194 LISBOA, Baltazar da Silva. Discurso histórico, politico, e econômico dos progressos, e estado atual da filosofia natural portuguesa, acompanhado de algumas reflexões sobre o estado do Brasil. Lisboa. Na Oficina de Antônio Gomes, 1786, p. 52.

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ISSN 2358-4912 tanto estrago – além de, acrescenta – indicar os métodos mais apropriados para evitá-lo, prevenindo-o e curando-o. Tudo isto deduzido da experiência mais sisuda e fiel 1195.

A partir do século XIX, mais precisamente na segunda década, o discurso acerca da escravidão seria dotado de outra tonalidade. “As críticas à escravidão no século XIX argumentavam, assim como os textos cristãos do século XVIII, que essa instituição era injusta” 1196. Letrados também vinculados à Academia Real das Ciências de Lisboa formularam críticas a respeito do uso da mão-de-obra negra africana e apontaram os problemas desta instituição ainda se fazer presente no Brasil na emergência das discussões para formação do Estado Nacional Brasileiro. Tratava-se de se repensar a escravidão enquanto um problema moral, econômico e social e não mais – apenas – econômico, como fizeram os letrados do final do século XVIII. Entre os principais opositores da época estavam João Severiano Maciel da Costa, (1769 – 1833), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e José da Silva Lisboa, anteriormente mencionado em conjunto com os letrados do final do século XVIII, cujo discurso “transita entre a conivência com a escravidão e sua negação” 1197. Entre as críticas formuladas, as primeiras são de João Severiano Maciel da Costa. Este considerava que o trabalho feito por homens cativos “ofende os direitos da humanidade, faz infeliz uma parte do gênero humano e põe em perpetua guerra os homens” 1198, além de constituir um “risco iminente e inevitável a segurança do Estado com a multiplicação indefinida de uma população heterogênea, desligada de todo vinculo social, e por sua mesma natureza e condição, inimiga da classe livre” 1199. No mesmo sentido, José Bonifácio de Andrada e Silva também formula uma série de críticas e intenta em seu trabalho “mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos e de promover sua progressiva emancipação” 1200. Por fim, José da Silva Lisboa em seu ensaio Da Liberdade do trabalho publicado pela Revista Artística, Científica e Literária do Rio de Janeiro em 1851 – obra póstuma, e que provavelmente foi escrita entre a década de 1820-1830 – elabora a crítica sobre a escravidão sob aspectos morais e cristãos, bem como demonstra “a inferioridade do trabalho realizado pelo escravo, da qual deduziu a superioridade do trabalho livre” 1201. Todavia, afirma que “onde se tolera ou se considera indispensável ter escravos, é preciso que o jugo seja doce, para não ser inútil” 1202 . Entretanto, em meio a críticas e argumentos contrários à instituição da escravidão, este segundo grupo de letrados não deixa de privilegiar medidas a serem observadas no trato cotidiano para com os escravos, mantendo assim, o cativeiro alocado num lugar de destaque em suas discussões. A diferença está o fato de que estes homens não só propõem ações de cuidado como poupar os escravos do uso desmedido de sua força de trabalho, fornecer-lhes uma alimentação adequada ou cuidados médicos, como defendido nos textos dos letrados do final do século XVIII. Os autores das primeiras falas contrárias à escravidão no Brasil propõem medidas no âmbito jurídico para o cotidiano em cativeiro, buscando assegurar a promulgação de leis que garantissem a integridade humana dos escravos cujo responsável pelo respaldo de tais medidas seria o Estado juntamente com o senhor – posicionamento que difere do que se apresentou “ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, nos quais a Coroa 1195

MENDES, Luís Antônio de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre costa d’África e o Brasil. Lisboa, 1793, p. 25. 1196 SCHULTZ. Kirsten, op., cit, p. 76. 1197 NASCIMENTO, Washington Santos. Resenha de MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. Revista Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista/BA, Edições UESB, v.4, n.1, 2004 p. 248. 1198 MACIEL da COSTA, João Severiano. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução de escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condições com que esta abolição se deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1821, p. 07. 1199 Idem. 1200 SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. Paris. Na Tipografia de Firmin Didot, 1825, p. 5 - 6. 1201 ROCHA, Antônio Penalves. Ideias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira. In: Revista Brasileira de História (Órgão oficial da Associação Nacional de História). Dossiê: Brasil, Brasis. São Paulo: ANPUH/FAPESP/Humanitas Publicações, vol.20, nº. 39, 2000, p. 52. 1202 LISBOA, José da Silva. Da liberdade do trabalho. In: ROCHA, Antônio Penalves. (Org.). José da Silva Lisboa Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001, v. 1, p. 330.

369 ISSN 2358-4912 portuguesa legislou sobre vários aspectos da escravidão, mas nunca chegou a interferir no domínio senhorial” 1203. Dessa forma a disseminação das ideias antiescravistas nas primeiras décadas do século XIX atribui ao cativeiro uma configuração distinta e ao mesmo tempo semelhante àquela que alguns letrados formularam no século XVIII, com a diferença de que aspectos como o caráter humanitário com o qual o escravo deveria ser tratado, leis e novas configurações das relações sociais estariam agora entre as discussões destinadas a elaboração de propostas gradualistas para a extinção do tráfico e abolição da escravatura. Portanto, na demonstração da especificidade de cada uma das obras destes autores, é verificável que suas propostas constituem-se como um conjunto de medidas relativas ao que se considerou pertinente observar a respeito da instituição da escravidão até mesmo no período de crescentes embates políticos nacionais e internacionais – como a pressão britânica – que buscaram mitigá-la e ou suprimi-la 1204. Por fim, no mapeamento destas obras foi possível perceber que tanto no fim do XVIII quanto no início do XIX a preocupação com as discussões acerca da escravidão se fazem presentes nos escritos de letrados vinculados à Academia Real.

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1203

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Companhia das Letras. São Paulo, 2007, p. 152-153. 1204 BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869; tradução de Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro. Expressão e Cultura. São Paulo. EDUSP, 1976.

370 ISSN 2358-4912 NASCIMENTO, Washington Santos. Resenha de MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. Revista Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista/BA, Edições UESB, v.4, n.1, 2004 . PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PARRON, Tâmis. “A Nova e Curiosa Relação (1764): escravidão e ilustração em Portugal durante as reformas pombalinas”. Almanaque braziliense. nº 8 São Paulo nov/ 2008. ROCHA, Antônio Penalves. Ideias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira. In: Revista Brasileira de História (Órgão oficial da Associação Nacional de História). Dossiê: Brasil, Brasis. São Paulo: ANPUH/FAPESP/Humanitas Publicações, vol.20, nº. 39, 2000. SCHULTZ. Kirsten. “A crise do Império e a Questão da Escravidão Portugal e Brasil, c. 1700 – c.1820”. In: Revista Acervo, vol.21 nº1, (jan./jun. 2008), Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do antigo regime português (1750-1822). São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2006. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Colonização portuguesa no Brasil. Edições Colibri / Grupo de trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, 1999. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A ARTE A SERVIÇO DA FÉ E DA COROA NA ARQUITETURA DA BELÉM COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COM A NATUREZA LOCAL Domingos Sávio de Castro Oliveira A arte produzida em Belém, no Pará, durante o século XVIII, foi caracterizada por dois momentos significativos que são estudados de forma separada pela historiografia. Tendo como marcos históricos, a expulsão dos jesuítas em 1759 e a chegada da Comissão Demarcadora de Limites em 1753, é objetivo deste artigo, fazer uma reflexão a respeito do que foi produzido em termos de arte nesses períodos e suas relações com a natureza amazônica, observando relações entre os dois momentos. A vinda da Comissão propiciou a chegada de um grupo de intelectuais europeus à cidade o que, de alguma forma, introduziu costumes e maneiras de pensar daquelas pessoas. Com ela, veio o arquiteto italiano José Antônio Landi, cuja sólida formação, em Bolonha, propiciou a ele desenvolver obras de arquitetura que, ainda hoje, marcam os dois primeiros bairros da cidade (Cidade Velha e Campina). Entretanto, convém observar que, anterior à chegada da Comissão, outro momento produzira arquitetura e arte significativas. Sob o comando das ordens religiosas, nesse período, foram erguidas, por exemplo, a Igreja jesuítica de São Francisco Xavier, hoje, de Santo Alexandre, em cujo interior há exemplares de talha1205 e de pinturas de brutesco1206, e a igreja dos carmelitas calçados de cuja construção, permaneceram só a fachada e a capela-mor1207 com seu retábulo1208 de talha dourada. As obras de arte e arquitetura produzidas em Belém nos setecentos têm características predominantemente do barroco e do barroco tardio, tendo em vista seus autores serem provenientes da Europa. O barroco foi marcado, entre outros, pelo uso de elementos da natureza utilizados como motivos ornamentais na escultura, na pintura e na arquitetura. Partes de vegetais, como folhas e frutos, assim como de animais e de figuras humanas, foram empregados, com frequência, nas elaboradas composições escultóricas de fachadas, paredes e tetos, púlpitos e altares, e no mobiliário, assim como nas pinturas de brutesco. O tardo barroco, por sua vez, ainda que sutilmente, também se valeu das formas da natureza para compor seus ornamentos, assim é que flores, folhas, conchas e pombas são utilizadas como inspiração para os ornatos. Dessa forma, quer nas obras produzidas pelos religiosos, quer nas obras de autoria de Antônio Landi, a natureza está presente, seja como vegetais, seja como animais. A arte a serviço da fé A arte dos jesuítas tinha caráter essencialmente didático, uma característica da ordem, e, certamente, os ornamentos estavam carregados de significados. A cultura barroca difundiu, nas colônias, tradições religiosas, principalmente, o culto aos santos com ladainhas e procissões, que se tornou o centro da religiosidade popular das cidades ali fundadas. O ensino jesuítico se apoiava na catequese nos aldeamentos indígenas e o uso de imagens esculpidas em madeira era o modo frequente da atividade missionária na Colônia, complementada com a intensidade das formas e das cores, peculiar à arte barroca. Bettendorff (1990) faz referências ao uso de imagens na evangelização, mas cita, além das de vulto (estátuas), as pictóricas (estampas e retábulos). A música era outra ferramenta utilizada no ensino religioso na colônia, como coadjuvante na transmissão da mensagem de salvação. Além das imagens de santos, os retábulos, que servem de suporte àquelas nas igrejas, tinham também a função catequética. Os retábulos da Igreja de Santo Alexandre foram produzidos nas oficinas jesuíticas. Sabe-se por Serafim Leite (1953, p. 45) que essas oficinas funcionavam no Colégio 1205

Arte de esculpir a madeira e que, posteriormente, pode ser dourada. Conforme Victor Serrão (1990, p. 113-4), as pinturas de brutesco, assim denominadas em Portugal, são “[...] composições animadas por motivos vegetalistas, simétricos ou estilizados, folhas de acanto enroladas em espirais, frutos, cartelas, pâmpanos, anjinhos, aves, conchas, envolvendo painéis com os símbolos das litanias marianas e da Eucaristia, ou ainda cenas religiosas e trechos de paisagens fantásticas”. 1207 A capela principal de uma igreja. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/capela-mor. Acesso em: 5 ago. 2013. 1208 Numa igreja, construção ornamental, feita de madeira ou de mármore, na parte posterior de um altar. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/retábulo. Acesso em: 5 ago. 2013. 1206

372 ISSN 2358-4912 Santo Alexandre e eram conduzidas pelos irmãos com auxílio de índios e negros. As oficinas de pintura, escultura e entalhe teriam sido instituídas em Belém no século XVIII pelo jesuíta austríaco João Xavier Traer, pintor, escultor e entalhador, pois antes de sua chegada em 1703, não há registros da existência de alguma obra de escultura ou entalhe na igreja jesuítica. A respeito dessas oficinas, especializadas em ornamentação pictórica e escultórica, Karl Heinz Arenz (2011) afirma que têm como base as experiências e os conhecimentos adquiridos ao longo do século XVII. Segundo Bogéa, Brito e Ribeiro (2002), o método de ensino das artes e ofícios dos jesuítas era baseado no “sistema de multiplicadores” que formava indivíduos para a difusão, na colônia, do conhecimento adquirido no colégio dos inacianos. Na igreja dos jesuítas, pode-se observar, por exemplo, nas talhas dos altares e púlpitos, a utilização de folhas de parreira e cachos de uvas - símbolo do sangue de Cristo -, folhas de acanto1209 e festões de flores compondo os conjuntos escultóricos, com pássaros, conchas e figuras angelicais, além das tradicionais volutas1210, das colunas torças1211 e dos atlantes1212. A respeito dos pássaros, Lourdes Sobral (1986, p. 81) identifica como sendo de espécies amazônicas, Myriam Oliveira (2005, p. 79), entretanto, diz serem fênix. A igreja entendia a fênix como a imagem da imortalidade da alma humana, portanto seria mais acertada essa descrição. Porém não se pode descartar a utilização de espécies da região como modelos, tendo em vista que os anjos e os atlantes, por exemplo, têm os traços do homem local e não do europeu (Fig. 01).

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Fig. 01 - Rostos de anjos no altar-mor da Igreja de Santo Alexandre

Fonte: PARÁ, 2005, p. 65

João Xavier Traer é o provável autor do projeto para os dois monumentais púlpitos laterais da Igreja de Santo Alexandre e de um par de anjos tocheiros (Fig. 02), embora não haja documento que confirme isso.

1209

Ornato na forma da folha de certas espécies de acanto, usado em capitéis e decorações de diversos estilos e tradições arquitetônicas. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/acanto. Acesso em: 6 jun. 2014. 1210 Ornato na forma de espiral que se faz no alto das colunas, no arremate dos corrimãos etc. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/voluta. Acesso em: 6 jun. 2014. 1211 Coluna que tem o fuste torcido de maneira helicoidal. [...] Também chamada coluna torcida. Disponível em: http://www.arkitekturbo.arq.br/dicionario_por/busca_por.php?letra=coluna. Acesso em: 6 jun. 2014. Denominada também de coluna salomônica. 1212 Figura ou meia figura de homem, que serve de coluna ou pilastra, para sustentar um entablamento ou cornija. Disponível em: http://aulete.uol.com.br/atlante. Acesso em: 6 jun. 2014.

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ISSN 2358-4912 Fig. 02 - Anjo tocheiro fabricado nas oficinas jesuíticas - séc. XVII/XVIII

Fonte: Domingos Oliveira, 2007

Conforme o relato do padre João Daniel (1841, t. III, p. 40), os púlpitos e os anjos foram confeccionados por indígenas: No colégio dos padres da Companhia, na cidade do Pará, estão uns grandes anjos por tocheiros, com tal perfeição, que servem de admiração aos Europeus, e são a primeira obra que fez um Índio daquele ofício; e se a primeira saiu de tão primor, que obras primas não faria depois de dar anos de ofício? Na mesma igreja se admiram alguns púlpitos por soberbos nas suas miudezas e figuras, obras de outros índios.

A Igreja de Santo Alexandre tem significativas pinturas de brutesco nos tetos da sacristia, do consistório (Fig. 03) e de duas capelas laterais e em um detalhe na parte inferior do altar mor. Os elementos fitomorfos em espiral dominam os conjuntos, predominantemente, nas cores verde, vermelho e amarelo sobre fundo branco. Nestas composições, há folhas de acanto e pequenas flores em profusão. Na composição da sacristia, há, no centro, um brasão com os símbolos da paixão de Cristo (cruz e três cravos), ladeado por dois anjos. Completam o conjunto: quatro medalhões nos cantos, mascarões e elementos vegetalista principalmente flores, em abundância. No consistório, espaço originalmente reservado às reuniões dos membros da Ordem Jesuítica, há, no centro do conjunto, o monograma da Ordem com os três cravos da Crucificação, demonstrando o aspecto básico da ideologia jesuítica. Há também cabeças humanas, conchas, elementos arquitetônicos e flores em profusão. Conforme Myriam Oliveira (2005, p.79), excetuando-se o conjunto central, “[t]udo o mais é mera ornamentação, sem significação simbólica a não ser, talvez, uma alusão à importância da boca e dos ouvidos na pregação da palavra, sugerida pelas hastes de folhas que saem da boca e dos ouvidos dos quatro rostos [...]” (Fig. 03). Fig. 03 - Detalhe da pintura do teto do Consistório da Igreja de Santo Alexandre

Fonte: PARÁ, 2005, p. 220

374 ISSN 2358-4912 O padre jesuíta João Daniel (1841, p. p 39-41), 41), em seus escritos a respeito do trabalho artístico dos índios das Missões, comentou: “Já é tempo de dizermos alguma cousa da grande habilidade dos índios da América para todas as artes e officios da republica, em que, ou vencem, ou igualam os mais destros europeus [...]”. E completou: “se souberam ler os livros, e n’elles as regras de qualquer arte, talvez levariam a palma os mais famigerados mestres do mundo [...]”. Esta habilidade do indígena foi percebida e admirada pelo colonizador europeu, que logo o aproveitou em outros ofícios desconhecidos dos índios: V Encontro Internacional nal de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao a XIX)

E posto entre si e nos seus matos não uzam, nem exercitam officio algum, [...]; com tudo nos mesmos matos fazem algumas curtosidades de debuxos e embutidos só com o instrumento de algum dente de cotia, que não só são estimados dos Europeos, mas também claros indícios de sua grande habilidade. João Daniel (1841, p. 39-41)

Esse talento e essa habilidade para as artes, já evidenciados em séculos de produção de cestaria, tecelagem, pintura corporal,l, arte plumária, cerâmica e artefatos, contribuíram com a arte produzida desde o início da presença dos religiosos na Amazônia. Como citado anteriormente, da Igreja do Carmo, construída nesse mesmo período, hoje, só existe a fachada e a capela-mor com seu retábulo (Fig. 04). Problemas estruturais obrigaram sua demolição e a construção de uma nova edificação sob projeto de Antonio Landi. Embora os desenhos do arquiteto mostrem uma proposta para a capela-mor, capela mor, esta não foi executada. O que se tem hoje é a construção con anterior, com características barrocas, em contraste com o restante da igreja, de características tardo barrocas, e que, embora de repertórios ornamentais distintos, formam um conjunto harmonioso. Fig. 04 – Detalhe do retábulo-mor retábulo da Igreja do Carmo

Fonte: SOBRAL, p. 49

No retábulo-mor1213 talhado em madeira com acabamento dourado, como os retábulos do período, há o escudo da ordem carmelitana, colunas salomônicas1214, anjos, atlantes, aves, festões, vasos com flores, além de outros elementos vegetalistas vegetalistas em abundância (Fig. 04). A respeito dos elementos da natureza utilizados nesse retábulo, Lourdes Sobral (1986, 38) diz: Os motivos florais que envolvem as colunas salomônicas são bastante naturalistas. É interessante notar, nessa talha, a dupla forma de representação do pelicano. Pousados em grossas hastes, aninham-se aninham se pelas colunas do retábulo, ora em correspondência com a sua verdadeira anatomia, ora como araras ou papagaios amazonienses.

1213 1214

Retábulo principal de uma igreja e localizado na capela-mor, capela mor, a capela principal de uma igreja. Também denominada coluna torsa. (Ver nota de rodapé 7)

375 ISSN 2358-4912 A autora lembra que, assim como os jesuítas, também os carmelitas iniciaram o habitante da região nas técnicas escultóricas e formaram mão de obra local. Dessa forma, “ao plasmar na talha um símbolo universal do Cristianismo [o pelicano], o artista-índio atribui a essa forma os caracteres do seu habitat” (SOBRAL, 1986, p. 38). Se as formas da natureza amazônica não permaneceram tão visíveis na arte do período, certamente, ela está presente nos materiais utilizados na sua execução. Para os trabalhos de talha, as madeiras, e, para as tintas (inclusive a dourada), para os vernizes e para as resinas, os troncos, os cipós e os frutos, como cita o padre João Daniel em seu Tratado das Tintas, uma das partes da obra Tesouro Descoberto no Máximo Rio das Amazonas. E nesse ponto, os jesuítas utilizaram o conhecimento do indígena acerca do uso dos vegetais nas construções, na imaginária, nos retábulos e nas pinturas. Seria possível então pensar em um movimento de sentido oposto e que o repertório artístico do europeu, trazido pelos padres-artistas, tenha deixado marcas na produção de artefatos indígenas? Conforme Renata Martins (2009, p. 258; 261), trabalhos como os de Ulpiano de Meneses (1972) e de Frederico Barata (1951, p. 90) chamam a atenção para os cachimbos encontrados em estudos arqueológicos no Pará que apresentam, como elementos decorativos, detalhes de vegetais estilizados – florões e rosáceas – típicos dos objetos, do mobiliário e da arquitetura do colonizador, sugerindo, portanto, a possível influência jesuítica nessas peças. Ainda conforme Martins (p. 261), a partir da imitação de vegetais, entalhados nas obras de Santo Alexandre, dos ensinamentos obtidos nas oficinas jesuíticas, do contato com os mestres artífices, o índio pode ter apreendido esses temas e passou a utilizá-los em seus próprios objetos. Assim, a produção da arte propiciou o trânsito de informações, saberes e experiências nos dois sentidos. É razoável aventar ainda a possibilidade de influências também na pintura corporal. Thekla Hartmann (1975, p. 125-6), ao tratar das contribuições da iconografia para as pesquisas a respeito dos índios brasileiros, cita Francis de Castelnau, seus relatos de viagem pela América do Sul (1850-51) e as iconografias produzidas durante a expedição. Ao comentar a respeito dos índios Kadiwéu, diz o autor (1949, p. 244): “Os Cadiueu pintam o corpo com genipapo, desenhando nele figuras muito regulares, feitas de linhas concêntricas e de bonitos arabescos”. Após análise da aquarela de um índio kadiwéu (Fig. 05) constante do relatório de viagem, percebem-se as figuras descritas pelo autor e é possível fazer relações com detalhes de ornatos utilizados na arte e na arquitetura produzidas na região naquele período, de certa forma, aventando a possibilidade do duplo trânsito de informações anteriormente citado. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Fig. 05 - Detalhe da pintura corporal e os ornatos semelhantes a volutas

Fonte: CASTELNAU (1949, p. 240)

A arte a serviço da Coroa A obra de Antonio Landi é composta por edifícios religiosos e residenciais. Nela, o elemento da natureza tem seu uso mais discreto, complementar, quer sob a forma de vegetais, quer sob a forma de animais. A forma animal mais utilizada na obra é a concha. Suas formas harmoniosas são suficientes para serem usadas como motivo ornamental há muito tempo, justapondo-se a objetos, ou na arquitetura. Landi a utilizou compondo molduras de portas e de janelas e nos retábulos. Sob a forma transformada - os aconcheados -, aparecem nos retábulos, nas molduras de quadros (Fig. 06) e nos púlpitos.

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ISSN 2358-4912 Fig. 06 - Detalhe de aconcheado em uma moldura de quadro na Igreja da Sé

Fonte: Domingos Oliveira, 2011

O termo voluta é originário da Zoologia e denomina um gênero de molusco que apresenta concha aberta e espiralada. Na arquitetura, é utilizada, há séculos, para designar o ornato em forma de espiral que serve de arremate em capitéis e mísulas. Para Chevalier; Gheerbrant (1997, p. 398), a espiral “simboliza emanação, extensão, desenvolvimento, continuidade cíclica, mas em progresso, rotação criacional”. É um símbolo de fecundidade e é encontrada em muitas culturas. Landi utilizou a voluta de maneiras diversas. Um uso frequente é sob a forma de aletas, como visto, entre outros, na fachada da Capela Pombo e nas pinturas de quadratura1215 da Igreja de São João Batista (Fig. 07). Fig. 07 - Volutas na pintura de quadratura da Igreja de São João Batista

Fonte: Domingos Oliveira, 2012

Desde o século X, grande parte das igrejas cristãs concebia Deus sob três formas humanas masculinas distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo – a Trindade, mas em 1745, o Papa Benedito XIV proibiu toda representação humana do Espírito Santo. A partir daí, passou-se a utilizar, entre outras formas, a imagem de uma pomba branca, também símbolo da paz, com as asas abertas, em meio a raios de luz e nuvens e, em alguns casos, entre cabeças de anjos. Na obra de Landi, essa representação é encontrada nos retábulos da Capela Pombo e das capelas laterais da Igreja do Carmo, assim como nos púlpitos dessa última, bem como em vários desenhos para retábulos. Ornatos vegetalistas podem ser encontrados, sob a forma de folhas e flores. De todos os ornamentos com inspiração nas folhas, o acanto é o mais conhecido. Sua aplicação frequente e variada 1215

Pintura que tenta criar espaços virtuais a partir da perspectiva ilusionista.

377 ISSN 2358-4912 é dada às possibilidades ornamentais. O acanto tem um forte atrativo visual e apresenta fácil adaptação às superfícies, gerando uma variedade de usos. Além disso, pode-se transformar em muitos esquemas similares, experimentando metamorfoses vegetais ou animais. No tardo-barroco, foi utilizado envolvendo vasos e bases de pilares (Fig. 08). Landi usou esse ornato nos retábulos e púlpitos, capitéis e bases de pilares, e molduras de portas e janelas.

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Fig. 08 - Folha de acanto em um dos altares laterais da Igreja do Carmo

Fonte: Domingos Oliveira, 2011

As flores são encontradas agrupadas - nos vasos ou nos festões - ou isoladas - as rosetas. A roseta uma flor estilizada - foi comum já na Mesopotâmia. Aparece frequentemente no centro dos enrolados de acanto. São utilizadas em sequência ou separadas por caneluras, cálices, caules e ramos, formando faixas. Landi usa desse elemento em várias composições nos retábulos e púlpitos, agrupadas ou isoladas, em vasos ou compondo festões. Os festões de frutos, folhas e flores são composições distribuídas em curvas ou pendentes. Inicialmente utilizados em festividades profanas, posteriormente, foram transferidos à arquitetura secular. A forma do ornato sugere movimento e ritmo e o conjunto pode ser substituído por tecidos drapeados. Landi utilizou esses ornamentos, predominantemente, nos retábulos, dentre estes os laterais da Igreja do Carmo. A figura humana foi, e é, o objeto favorito de representação na arte. O corpo humano é, muitas vezes, representado sem qualquer significado e apenas para fins ornamentais por conta da beleza da forma. É um elemento pouco utilizado na obra landiana. Cabeças de anjos, com ou sem asas, estão nos altares, isoladas ou formando conjuntos com a pomba do Espírito Santo. Há também, ainda que raramente, figuras alegóricas, máscaras e a “espanholete” - cabeça feminina cercada por uma palmeta, por um feixe de plumas ou por tecidos pendentes. Chama a atenção, a ausência, nesses elementos, de traços visuais da natureza regional. As flores, as folhas e os animais usados não remetem a ela, mas seguem os modelos europeus. Está presente, entretanto, se pensarmos na matéria prima utilizada nas construções como as madeiras, as argilas e os pigmentos usados nas pinturas. Ao analisar os dois momentos aqui tratados, é visível que, em ambos, o que foi produzido é reflexo da sociedade do período. As elites dominantes – ordens religiosas e governo – produziram de acordo com seus interesses. Os religiosos, em particular, os jesuítas, visavam à catequização e, de certa maneira, o controle do índio. Pela arte e pela religião, os missionários dominavam aquela sociedade. Com auxílio da pintura, das imagens, das igrejas, o objetivo foi sendo alcançado. Quando o recurso oral já não dava mais conta, utilizavam-se do visual. No segundo período, o governo português, trouxe a Comissão Demarcadora e seus intelectuais e, na região, fortaleceram os ideais Iluministas do Marquês de Pombal. Nesse período, os elementos eram utilizados com fins ornamentais. Se no período anterior, a igreja era a edificação mais importante, neste, o Palácio, a residência oficial dos governadores, toma este lugar.

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FRONTEIRAS COLONIAIS: CONFLITO, JUSTIÇA E ACOMODAÇÃO NA DEMARCAÇÃO DOS LIMITES ENTRE MINAS GERAIS E SÃO PAULO - 1790-1820 Edna Mara Ferreira da Silva1216 A presente proposta de trabalho tem como finalidade estabelecer, uma reflexão sobre os conflitos e estratégias envolvendo a demarcação dos limites entre as capitanias de São Paulo e Minas Gerais e sua relação com a formação da elite política sul mineira, através da análise da documentação administrativa da região sul da Capitania de Minas Gerais, no período entre os anos de 1790 a 1810. O estabelecimento de limites tanto internos quanto externos e a expansão territorial em fins do século XVIII e inicio do século XIX na América portuguesa seguiu ritmos diferentes, e Minas Gerais como região estratégica do império se inseria nesses movimentos territoriais. O processo de demarcação das fronteiras meridionais entre as Américas portuguesa e espanhola teve em Minas um corolário regional, expresso em uma clara política de expansão territorial e de consolidação dos limites da capitania, que foi conduzida por seus governantes na segunda metade do século XVIII. Tal política se apoiou fortemente na criação de vilas, de freguesias e de sedes de julgados nas zonas periféricas de Minas Gerais.1217

A ocupação do sul de Minas, assim como em outras regiões da capitania onde o ouro não foi encontrado, ou rapidamente se escasseou, se deu de forma mais lenta do que a percebida nas áreas de mineração. A fronteira sul da capitania era aberta ao trânsito dos paulistas e era habitualmente chamada de “sertões” da comarca do Rio das Mortes. Área de litígio entre as capitanias de São Paulo e Minas Gerais, o sul de Minas não era, no entanto, a única região denominada como sertão, como observou Auguste de Saint-Hilaire: O Sertão compreende, nas Minas, a bacia do S. Francisco e dos seus afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira ou, pelo menos, quase a partir dessa cadeia até os limites ocidentais da província. Abarca, ao sul, uma pequena parte do Rio das Mortes, a leste, uma imensa porção das comarcas de Sabará e do Serro Frio, e finalmente, a oeste, toda a comarca de Paracatu situada ao ocidente do São Francisco.1218

Segundo Saint-Hilaire, o nome Sertão ou Deserto (entendido por muitos de seus contemporâneos, como sinônimo de sertão) não indica uma categoria político-territorial, mas sim uma divisão imprecisa assentada na natureza do território e principalmente pelo povoamento escasso ou rarefeito. Esse “sertão” se opõe aos espaços onde se localizaram ouro e se fixaram as primeiras vilas. As paragens mais distantes, de difícil acesso, que recebiam essa denominação. Em Minas Gerais, o sertão estava relacionado às áreas dominadas por índios, áreas por onde se corria um determinado rio, lugares de perigo e de adversidades naturais de toda ordem. A referência ao sertão como lugar distante ou longe do litoral, ou no interior, não está relacionada a realidades geográficas, mas a uma centralidade política, a maior ou menor presença, controle ou proximidade do aparato administrativo, jurídico, militar e eclesiástico. A força da categoria localiza-se não em si mesma, mas no significado que a experiência histórica das sociedades que 1216

Universidade do Estado de Minas Gerais/Unidade Campanha. FONSECA, Claudia Damasceno. Vila da Campanha da Princesa: A Corte, as Minas, a cidade e a memória. In: LIBBY, Douglas Cole, (org.).Cortes, Cidades, Memórias: Trânsitos e Transformações na Modernidade. /organização de Douglas Cole Libby. – Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 2010. vi p.; 217p, página 197. 1218 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000, p. 307. 1217

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ISSN 2358-4912 utilizam lhe conferiu. A idéia do sertão está ligada a “experiências sociais dos sujeitos que o nomeiam, seus sentidos são o amálgama de experiências históricas variadas, muitas vezes quase sempre ambíguas, contraditórias e antagônicas”.1219

O sertão é, portanto a fronteira incerta, imprecisa, mas à medida que a colonização avança, ele se torna território, transformando-se em possibilidade, ou nas palavras Haruf Espindola “o sertão é uma paisagem construída para desaparecer”.1220 Situando-se dessa forma à margem do mundo conhecido e regulado, o sertão, como sugere Adriana Romeiro, é um espaço mais simbólico do que geográfico. A rigor, as fronteiras vão se definindo a partir da imposição, pela permanência e posse de terras num movimento das populações que investem sobre o território de forma abrupta ou mais lentamente. “Daí a mobilidade de uma fronteira, que oscilava à medida que as terras incógnitas e desconhecidas iam sendo devassadas pelo elemento humano”.1221 O Sertão do Rio Verde, como era denominado o território antes de se tornar parte constituinte da Comarca do Rio das Mortes, começou a ser percorrido em 16921222 quando os bandeirantes paulistas deixaram suas terras em busca das riquezas do interior, atravessam a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú e atingiram as cabeceiras do Rio Verde. Esse sertão do Rio Verde era área de fronteira e de disputa entre as autoridades de São Paulo e Minas Gerais. No governo de D. Brás Baltazar da Silveira foram criadas três comarcas para a região das Minas e ficou decretado como limites para a do Rio das Mortes a Serra da Mantiqueira, ao sul, e o sertão desconhecido, a oeste. Como consequência, o termo da vila de São João del Rei foi ampliado, estendendo-se até a Mantiqueira, fazendo com que sua Câmara se tornasse responsável pela administração de toda a região sul do território. Em 1721, D. Lourenço de Almeida, primeiro governador da Capitania de Minas Gerais, informava ao rei que havia uma grande extensão de terras ainda despovoadas, na qual chegavam correições tanto do ouvidor de São Paulo quanto do Rio das Mortes. Este governador expressava ainda dúvidas com relação ao fato de que, se povoada a região, a quem caberia a correição, sendo reiterada a São João Del Rei, por ordem régia de 22 de abril de 1722. A região de Campanha do Rio Verde foi descoberta pelos paulistas por volta de 17201223, tendo pouca divulgação até 1737, quando em 02 de outubro, uma expedição militar sob o comando do ouvidor da Vila de São João Del Rei, Cipriano José da Rocha, com a incumbência dada pelo governador da Capitania, D. Martinho de Mendonça de Pina e Proença, deveria reconhecer a região, desbravar os sítios desconhecidos ao longo da bacia dos Rios Verde, Sapucaí e Palmela e tomar posse do território em nome do rei. No entanto, como aponta Carla Anastasia1224, a ocupação das áreas de fronteira na capitania de Minas Gerais nunca foi consensual entre as autoridades tanto metropolitanas quanto coloniais. A primeira ação do Estado foi a de tornar as regiões limítrofes da capitania áreas proibidas a partir de um bando de 1736 que impendia “lançar posse de terras situadas nas extremidades não povoadas da Capitania sem expressa licença do governador.”1225 Dessa forma com base nesse bando, a expedição chefiada pelo ouvidor Cipriano José da Rocha não deveria fundar uma povoação sem autorização do governador. Ao que tudo indica, o real significado da expedição do ouvidor era regular uma povoação, ou mineração clandestina, mais do que desbravar e reconhecer a região. O ouvidor autoridade máxima da comarca não se deslocaria para uma expedição de simples reconhecimento se não houvesse noticia do mau uso de terras incultas e selvagens do sertão. 1219

ESPINDOLA, Haruf Salmen. Sertão do Rio Doce. Bauru/SP; EDUSC, 2005, p. 76. Idem, p. 73 e 74 1221 ROMEIRO, Adriana. Dicionário Histórico das Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 271. 1222 CASADEI, Thalita de Oliveira; CASADEI, Antônio. Aspectos Históricos da Cidade da Campanha. Petrópolis: Editora Gráfica Jornal da Cidade, 1989 1223 Cópia manuscrita extraída de documentos do Arquivo da Torre do Tombo, existente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Códice Torre do Tombo, vol. 1, 1736-1737, Capitania de Minas. Apud Alfredo VALLADÃO. Campanha da Princesa, vol. 1 (1737-1821), 1942, p. 248. 1224 ANASTASIA, Carla Maria Junho, A geografia do crime: violência nas Minas setecentista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005 1225 Idem, p.36. 1220

381 ISSN 2358-4912 A denominação de arraial de São Cipriano duraria pouco, voltando logo à designação anterior de “Campanha do Rio de Verde”. Com o crescimento e a prosperidade do arraial foi criada por volta de 1739 a freguesia pelo bispado de São Paulo com o nome de freguesia de “Santo Antônio do Vale da Piedade da Campanha do Rio Verde”. Para Claudia Damasceno Fonseca1226 o arraial de Campanha do Rio Verde logo despertou o interesse de autoridades paulistas

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A igreja foi construída em bem pouco tempo, pois já em 1739 o arraial era elevado à condição de sede de freguesia. Nesta época, as fronteiras meridionais da capitania ainda não se encontravam fisicamente delimitadas, e a região de Campanha se tornou objeto da cobiça das autoridades de São Paulo. Como o bispado mineiro ainda não havia sido criado,a nova paróquia foi inicialmente submetida à diocese paulista. As autoridades civis de São Paulo também logo procuraram se apoderar da jurisdição sobre o arraial da Campanha e sobre as terras adjacentes ao Rio Grande.1227

Não obstante, o empreendimento levado a cabo pelo Ouvidor da vila de São João Del Rei, a ocupação do arraial e a tentativa de institucionalização da região, os conflitos entre paulistas e representantes legais da Comarca do Rio das Mortes pelo controle e posse da região das Minas do Rio Verde permaneceriam, a despeito do empenho e das medidas tomadas pelo ouvidor. A divisão das alçadas civil e eclesiástica uma a cargo das autoridades mineiras e outra sob as determinações do bispado de São Paulo, favorecia os conflitos, uma vez que conforme a necessidade dos moradores do arraial deveriam se dirigir ora para as autoridades civis em São João Del Rei, ora para a autoridade eclesiástica em São Paulo. O governo da Capitania de São Paulo disputava com a Câmara da Vila de São João Del Rei o controle desta parte do território. Os conflitos não cessaram rapidamente, fazendo com que o senado da câmara da Vila de São João Del Rei necessitasse em 1743 reafirmar o auto de ocupação de posse da região, devido à presença de um representante do governo paulista no local, reivindicando o direito de posse sobre o arraial1228. De acordo com os registros do relatório da Câmara foi necessário o gasto de 264 oitavas de ouro e a presença de gente armada para se garantir a ocupação da área, pois o Governador da Capitania de São Paulo, D. Luiz de Mascarenhas, havia nomeado Bartolomeu Correa Bueno como superintendente da região. Para ratificar a posse do arraial foram enviados oficiais da Câmara de São João Del Rei. Assim, além das medidas tomadas pela câmara de São João Del Rei com relação à ratificação de posse da região, como meio de defender e assegurar a posse da área, pois, tratava-se de região estratégica, de acesso fácil tanto ao Rio de Janeiro como a São Paulo, e também para impedir o extravio do ouro, o governador das Minas Gomes Freire criou um Julgado na Campanha do Rio Verde. Porém, em 1744, o governador Gomes Freire, que já se mostrava reticente quanto à conveniência de se criar novas câmaras em Minas, preferiu instituir um simples julgado (ou seja, somente um posto de juiz ordinário) na Campanha do Rio Verde, a fim de oficializar o pertencimento dessas terras à comarca do Rio das Mortes e à capitania de Minas Gerais. A partir de então, os moradores do julgado da Campanha não cessaram de solicitar à Coroa a emancipação desta circunscrição do termo da Vila de São João del-Rei.1229

No final do século XVIII, os mais influentes moradores do arraial passam a reivindicar a criação da Vila da Campanha, pois, consideravam como relevantes para este fato o crescimento de sua população, que ultrapassava o número de oito mil habitantes, bem como o desenvolvimento econômico da região. Dessa forma, pelo alvará de 20 de outubro de 1798, D. Maria I concede o título de vila ao arraial, apesar dos protestos da Câmara de São João Del Rei, nomeando-a de “Vila da Campanha da Princesa” e auto de declaração da criação da vila ocorreria um ano mais tarde, a 26 de dezembro de 1799 . 1226

FONSECA, Claudia Damasceno. op. cit. Idem p. 202 1228 Auto de posse do Arraial de Santo Antônio da Campanha do Rio Verde, 1743. Memórias Municipais — V. Campanha. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1: 457-647, 1896, p. 457-458. 1229 FONSECA, Claudia Damasceno. op. cit. p. 203. 1227

382 ISSN 2358-4912 No alvará de elevação à vila, a rainha expõe que, em consulta ao Conselho Ultramarino, foi informada do crescimento do número de habitantes do arraial da Campanha do Rio Verde, comarca do Rio das Mortes, e também de ser esta uma das mais importantes povoações da capitania de Minas Gerais. Além disso, o alvará menciona também a distância entre a Vila de São João del-Rei, cabeça da comarca, e o arraial, de modo que os seus moradores viam-se prejudicados em seus negócios. Mas a batalha com São João del-Rei não chegara ao fim. Graças à habilidade do seu juiz de fora, a nova vila de Campanha da Princesa havia conseguido se outorgar um território municipal imenso, que incluía quase todos os arraiais, freguesias e julgados que até então haviam pertencido à cabeça de comarca. Começava então uma nova disputa entre as duas vilas, que duraria mais de uma década e suscitaria a confecção de diversas representações cartográficas da porção sul da capitania e dos limites entre Minas e São Paulo.1230 A elevação à vila do antigo arraial de Campanha do Rio Verde deve ser entendida como parte de um movimento mais amplo que se inseria no contexto das transformações ocorridas em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, tanto em termos econômicos quanto políticos. Como já se apontou anteriormente, frente às descobertas auríferas e a ocupação do território, o estabelecimento de vilas em Minas Gerais configurou-se como um elemento poderoso de reafirmação da soberania portuguesa, da mesma forma que pode ser percebido também como recurso de organização administrativa. Das cinco novas vilas criadas entre 1789-1798 — São Bento do Tamanduá, Queluz, Barbacena, Campanha da Princesa e Paracatu do Príncipe — apenas esta última vila não pertencia à Comarca do Rio das Mortes e sim à Comarca do Rio das Velhas. Tal dinamismo era indicativo da reorganização da estrutura administrativa dessa região e a confirmação, na esfera política, de sua importância econômica em finais do século XVIII, com repercussões na primeira metade do século XIX. Nesse cenário que se descortina na virada do século XVIII para o XIX, a vila de Campanha da Princesa assumiria progressivamente um lugar de destaque, tornando-se, juntamente com as vilas de São João del Rei e Barbacena, um dos mais expressivos núcleos urbanos da região da Comarca do Rio das Mortes, com vigorosa participação na política imperial. Buscamos justamente relacionar a conjuntura do inicio do século XIX com a capacidade dos membros da elite sul mineira e dos demais moradores do termo de Campanha de se adaptarem as condições surgidas das mudanças históricas. Até que ponto todo processo de afirmação política da região sul mineira em fins do período colonial, marcado pelos embates em âmbito local entre os interesses dos moradores de arraial de Campanha do rio Verde e a vila de São João Del Rey cabeça de comarca, que culminaram com a criação da vila de Campanha da Princesa, que passa a representar Minas nos conflitos com a capitania de São Paulo pela posse do território, não concedeu aos processos políticos, administrativos, jurídicos, maior vigor ou legitimidade? Ao longo do século XIX os reflexos das disputas que marcaram o final do século XVIII, teriam influenciado posicionamentos políticos diferenciados na região? Não obstante as análises pautadas no crescimento econômico, o sul de Minas se adaptou melhor a configuração política do Império do que outras regiões da província de Minas Gerais? É possível perceber o papel da justiça nesse processo? Procuramos, portanto, refletir sobre como os conflitos na demarcação dos limites entre Minas e São Paulo em fins do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX podem representar inflexões ou estratégias de acomodação em relação as transformações que antecederam a constituição do Império. Na historiografia brasileira autores como Maria Odila Silva Dias, José Murilo de Carvalho, István Jancsó e Miriam Dolhnikoff, entre outros, procuraram elucidar de que maneira foi possível manter unido o Brasil do ponto de vista político no contexto do fim da colonização. Apesar dos percursos diferentes, sustentam que a história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do século XIX foi a história da tensão entre unidade e autonomia.1231 Miriam Dolhnikoff aponta que se havia forças poderosas a estimular a fragmentação, como a falta de vínculos entre as diversas regiões que se formaram durante a colonização e a busca de autonomia pelas elites dessas regiões para gerir seus interesses, por outro lado havia também os desafios V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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FONSECA, Claudia Damasceno. op. cit. p. 203 DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005, p.11.

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383 ISSN 2358-4912 atribuídos à conservação da ordem escravocrata e às transformações impostas pela transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808.1232 Em 1808, o Brasil era composto por regiões muito diversificadas tanto pelos aspectos sociais e econômicos como pelas vinculações politicas, resultado como apontou Slemian1233, da própria dinâmica da colonização portuguesa que articulou áreas diferentes à competição europeia, à própria metrópole e aos mercados mundiais, criando zonas e formas de reprodução muito variadas.1234 Segundo Slemian, Minas Gerais já passava por várias transformações quando da chegada da corte ao Brasil em 1808. A Comarca do Rio das Mortes foi a que mais cresceu em fins do século XVIII, reflexo do deslocamento demográfico das antigas áreas de mineração para o sul.1235 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

No contexto da propagação das reformas e princípios ideológicos formulados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho – e a despeito da grande distância entre a “mudança socioeconômica e a elaboração da política” reformista -, as elites mineiras, chamadas a participarem ativamente da reorientação da política imperial, deram transparência a estas demandas locais, cuja contemplação fundava, em último caso, as condições da obediência e unidade. 1236

Muito diferente dos contornos estabelecidos pelos sediciosos de 1789, o que se vê nesse momento, da chegada da Corte são as manifestações de obediência e fidelidade, expressa nas correspondências de várias câmaras mineiras.1237 A estratégia aparentemente contraditória apontada por Ana Rosa Cloclet da Silva “cujo potencial de politização estava fincado nesta invertida forma de negação da dependência colonial, expressa não pela tentativa de ruptura com Portugal, mas pela afirmação das condições da unidade”1238 parece funcionar para as elites políticas mineiras. A questão central é, portanto, refletir sobre se a estratégia da elite politica que se forma a partir das mudanças ocorridas na capitania de Minas em fins do século XVIII e inicio do século XIX, utiliza o espaço da justiça de modo a construir essa afirmação de unidade sugerida por Cloclet, no que tange a delimitação da fronteira entre a capitania de Minas e a de São Paulo. A proposta de estudo ora apresentada está desenvolvida com base nos acervos referentes a administração e justiça do período de 1780 a 1820 nas Minas sob guarda do Centro de Memória Cultural do Sul de Minas – CEMEC-SM. Este arquivo conta com variada e volumosa documentação acerca do universo jurídico dos termos de Campanha e Lavras, constando dentre outros tipos de acervos para o período proposto: acervo do Fórum de Campanha, acervo Forense de Lavras; as Atas da Câmara de Campanha e os inventários e testamentos doados pela Cúria Diocesana da Campanha. Em levantamento preliminar foram arrolados os seguintes documentos para o período proposto em que vislumbramos questões referentes a demarcação dos limites entre as duas capitanias: Acervo de Campanha cartório do 1º Oficio: livro de escritura, certidões e procurações ( e cartas de liberdade) em que consta referência as sesmarias nas áreas limítrofes, no intervalo entre 1803 e 1806. Livro de ação de forças (Nova e Velha) que diz respeito diretamente a recuperação da posse de terras de antigas sesmarias, entre 1814 e 1821. Livros de Sumário de querelas em que sobressaem conflitos com relação ao território entre capitanias de 1798 a 1825. No Cartório do 2º Ofício: Livro de notas, escrituras e procurações entre 1802 e 1803 e Livro de escrituras diversas, entre 1807-1809. E inventários e testamentos que ainda não foram incluídos na coleta de fontes. No acervo forense de Lavras documentos da vara cível: ações de força (velha e nova), a partir de 1792 até 1818; Justificações de remoção de terras; Inventários e Testamentos; libelos cíveis, cartas precatórias, justificação e cobrança de dividas. 1232

Idem. SLEMIAN, Andrea. A corte e o mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo: Alameda, 2008. 1234 Idem, p. 94 1235 Idem, p.100. 1236 SILVA, Ana Rosa Cloclet. Identidades em construção: O processo de politização das identidades coletivas em Minas Gerais, de 1792 a 1831. Almanack Brasiliense, 2005, nº 1, p. 107. 1237 SLEMIAN, op. cit.., p. 101 . 1238 SILVA, Ana Rosa Cloclet. op. cit. p. 107. 1233

384 ISSN 2358-4912 Sobre este corpus documental, é importante dizer que é praticamente inexplorado e nunca foi utilizado da maneira que está sendo proposta. O ineditismo do acervo abre várias possibilidades para a análise, que podem descortinar aspectos importantes da sociedade sul mineira do período. Além da documentação sob guarda do CEMEC-SM, foi feito levantamento inicial junto ao Arquivo Publico Mineiro na Seção Colonial - Secretaria de Governo da Capitania em que consta cerca de 40 documentos sobre Campanha da Princesa ou Campanha do Rio Verde de cerca de 50 documentos sobre Lavras do Funil. E os documentos transcritos publicados pelo arquivo do Estado de São Paulo organizados sob o título “Documentos Interessantes: divisas de S. Paulo e Minas Gerais v. XI de 1896”, também fazem parte do conjunto de fontes consultadas para elaboração desta proposta. Há ainda neste mesmo arquivo as Atas da Câmara Municipal de São Paulo que ainda não foram consultadas. Foram levantados cerca de 20 documentos entre requerimentos diversos e específicos com pedidos de concessão de sesmarias para o termo de Campanha no intervalo temporal proposto do Arquivo Histórico Ultramarino. A forma como a justiça atua em defesa ou detrimento das expectativas, a reação da sociedade à suas ações e a maneira como a população faz uso de suas atribuições, estão contidas nas linhas e entrelinhas desses documentos. Segundo Carlos Bacellar1239: “Os processos crime e cíveis são fonte igualmente abundantes e dão voz a todos os segmentos sociais, do escravo ao senhor”1240, assim, busca-se ouvir, além dos discursos da elite social, a voz dos escravos através dos filtros jurídicos, políticos e sociais que lhes são impostos. A ação do judiciário em Minas Gerais, obedecendo aos códigos morais e legais, procurava afirmar de maneira gradual o poder público como um espaço de mediação e de articulação de interesses os mais diversos. Segundo Ivan Vellasco: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

No que se refere à administração da justiça e sua presença na vida social, vários autores têm revelado que, em que pese seus inúmeros vícios e enviesamentos, ela revestiu-se de funções fortemente reguladoras nas trocas e interações sociais, e apresentava, já na segunda metade do Setecentos, um poder de regulação e contenção dos conflitos interpessoais, ao qual recorriam os diferentes estratos sociais em busca de solução para suas querelas e disputas.1241

O período do Brasil Império é marcado por grandes transformações políticas que se iniciam antes da independência e continuarão após a proclamação da república. A implantação de modelos liberais deve acomodar os interesses dos diversos grupos que compõe o cenário político do Império. As instituições jurídicas terão papel fundamental nessa acomodação. Nossa hipótese central é, portanto que ao longo do século XIX as mudanças sociais, e políticas irão impor mudanças na forma como a justiça lida com os diversos personagens sociais modelando a noção de direito ou direitos. Da mesma forma que ao passo que a justiça assume papel central no jogo político, deixa de ser como no período colonial espaço de negociação e passa controlar a consolidação dessa noção nas estruturas sociais. Referências ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: violência nas Minas setecentista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. BACELLAR, Carlos. In: PINSKY, Carla Bassanzi (org). Fontes históricas. São Paulo: Ed. Contexto, 2006. BOBBIO, Norberto [et al.] org. Dicionário de política. Brasília: Edunb, 1992. CASADEI, Antônio. Notícias Históricas da Cidade da Campanha. Tradição e Cultura, 1987. CASADEI, Thalita de Oliveira; CASADEI, Antônio. Aspectos Históricos da Cidade da Campanha. Petrópolis: Editora Gráfica Jornal da Cidade, 1989.

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PALAVRAS DE ORDEM: ANÁLISE DO VOCABULÁRIO POLÍTICO DE UMA SEDIÇÃO Edna Maria Matos Antonio1242 Em 1654 o Capitão-Mor Manoel Pestana de Brito, nomeado pelo Governador-Geral no Brasil, Dom Jerônimo de Ataíde, Conde de Attouguia (1654-1657), dirigiu-se á capitania de Sergipe. Enviado para administrar a Capitania, sua missão era aplainar os conflitos criados devido à continuidade da finta sobre o gado determinada pelo governo geral, e que tanta insatisfação causou nos homens bons daquela localidade. A partir daqui a história adquire contornos inusitados, pois se inicialmente o capitão hostilizou-se com os grupos dominantes locais da capitania, em pouco tempo o mesmo transformou-se em líder de uma rebelião em 1656 que teve a participação dessa mesma elite. A análise proposta sobre esse episódio beneficia-se do quadro de inovação temática e interpretativa proporcionada pela produção acadêmica das últimas décadas a respeito das rebeliões na América Portuguesa. Rejeitando a tradicional e pouco eficiente explicação que classificava as rebeliões por sua natureza nativista e separatista, os estudos recentes têm buscado analisar o tema do protesto colonial por sua relação com o universo das práticas e valores políticos em Portugal do Antigo Regime e sua irradiação no ultramar. Costumeiramente, aprendemos que as rebeliões nativistas foram movimentos de protesto contra o excesso de exploração colonial, notadamente fiscal, ou efeitos de conflitos internos entre grupos rivais locais, marcados pela ausência de qualquer pretensão de independência em relação à metrópole lusa. Impossível não notar a presença de um argumento de natureza teleológica em que a independência surge como horizonte de transformação histórica, subordinado pela experiência do passado já conhecida pelo presente. Em outras palavras não se explica a rebelião em si mesma, mas em referência a um processo que ocorre em um tempo futuro. Além disso, indica a ideia de inevitabilidade da autonomia das áreas coloniais, como uma espécie de destino inescapável. Por esse viés, o conhecimento sobre as rebeliões coloniais perde a importante dimensão de sua historicidade, elemento fundamental para uma aproximação interpretativa acerca das práticas políticas dos indivíduos que viviam o Antigo Regime na condição de colonos na América. Esta abordagem foi questionada pela realização de estudos fecundos que, marcados pelo refinamento metodológico - e sua atenção aos indícios empíricos - aliada a um trato acurado de conceitos e teorias advindas da nova história política, indicaram novos caminhos de análise. As fontes documentais que nos permitam explorar o enredo dessa história são parcas e fragmentadas cronologicamente. No entanto, seguimos alguns indícios para compor minimamente sua teia de acontecimentos e significados, a partir de documentos transcritos em obras referenciais da historiografia que tratou do período colonial em Sergipe e da documentação digitalizada e disponível por meio do Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Aqui, em particular, pretende-se explorar a análise da correspondência oficial do governo-geral de Conde de Attouguia, na Bahia, para os agentes metropolitanos encarregados de repremir a rebelião ocorrida na vila de São Cristóvão. Para o entendimento do significado das palavras, consultamos o dicionário português de autoria do padre teatino francês Rafael Bluteau, “Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ...” publicado em 1728. Essa operação guiou-se não pelo sentido isolado da palavra, mas seu lugar no contexto da construção discursiva que se apresenta na correspondência. Cabe ainda uma breve consideração acerca do significado das cartas na administração colonial. Único meio de comunicação à longa distância, constituíam no principal veículo de transmissão de informações no período moderno e a prática da escrita foi fundamental para o gerenciamento dos domínios portugueses, pois serviam de instrumento essencial de união entre o ultramar e os domínios, materializando a transmissão de ordens e diretrizes. Esses manuscritos, como são chamadas as obras anteriores à invenção da prensa, por serem escritas a mão pelo próprio autor ou por terceiros, são tomados por sua condição de objetos culturais, numa fase fundamental de difusão da escrita como

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387 ISSN 2358-4912 meio de comunicação em que este passou a ganhar espaço em uma sociedade que transitava da oralidade para o texto e a imagem. Esse aspecto fez Fernado Bouza assinalar que “Durante los siglos XVI y XVII, la presencia de las cartas, no importa si aisladas o transformadas em correspondência regular, alcanzó tales dimensiones sociales, políticas y económicas que sería posible considerar a la alta Edad Moderna como uma cultura epistolar.” ( 2005, p. 11.) Com o mesmo entendimento sobre essa importância, António Manuel Hespanha considera que a comunicação escrita está no cerne de transformações políticas e culturais fundamentais no período moderno. Essa característica decorre do alargamento espacial do poder que a carta permite uma vez que produz efeitos políticos em lugares distantes e do fato de que a escrita vence o tempo, ajudando a construir uma memória administrativa mais concisa e comprovável (HESPANHA, 2001). Na documentação produzida no período colonial, a escrita administrativa irradiava-se de forma ampla por meio de alvarás, regimentos, consultas, petições, provisões, decretos, avisos e ofícios e cartas sob os tipos: carta, patentes, régias, de Lei, de Perdão e de sesmaria. Sob a denominação de “carta” estavam os documentos enviados por autoridade (subalterna ou delegada) da administração pública e eclesiástica ou por um súdito que apresentam estrutura semelhante, tratam de assuntos diversos e está assinado por uma pessoa (BELLOTO, 2001, p.51). As correspondências oficiais, em seus vários formatos, para além de cumprir a função de informar, divulgar e ordenar à população as diretrizes administrativas do Estado metropolitano são portadoras de elementos da cultura letrada do Antigo Regime. Nesse sentido, uma análise acerca das produções textuais nos parece profícua para captar elementos dinâmicos da cultura política lusa da época moderna por meio do modo como dialogam o poder monárquico, seus representantes, seus órgãos administrativos e os súditos. Se consideradas veículos portadores de noções de comportamento, valores e práticas políticas para os colonos no além-mar, as correspondências podem fornecem vestígios úteis para a compreensão de uma atuação governativa bastante peculiar. Isso é possível por se considerar os instrumentos de poder simbólico como elementos de conhecimento e de construção do mundo objetivo, que se manifestam através dos mais diversos meios de comunicação (língua, cultura, discurso, conduta, etc.), garantindo àqueles que os compartilham a manutenção e o exercício do poder. Pois é preciso reconhecer que na produção de significações, ou seja, o sentido, que tanto criadores quanto receptores atribuem aos objetos culturais, ocorre um processo de interpretação que não é absolutamente livre de determinações de variadas naturezas e nem completamente sujeita à elas. Na complexa reflexão elaborada por Pierre Bourdieu, os “símbolos” ou “sistemas simbólicos”, que se materializam de formas variadas como registros escritos ou imagens, se comportam como “denunciadores” de relação de poder. Para o sociólogo francês, “os ‘sistemas simbólicos’, como instrumentos de conhecimento e comunicação, somente exercem um poder estruturante porque são estruturados”. São reveladores dessa relação porque são por ela definidos pois é o universo social que delimita, juntamente com as relações de poder, a estrutura do capital simbólico a ser aceito em seu próprio meio. Assim, o que faz “o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.” (BOURDIEU, 1989, p. 15). Por meio desse conceito teórico e a consideração do papel da linguagem como forma de atuação sobre o real, e, portanto de constituição do real, e não meramente de representação ou correspondência com a realidade, pode-se deslindar instigantes aspectos atuantes da cultura política, objetivo buscado no exame das fontes textuais produzidas devido à rebelião ocorrida na capitania de Sergipe no século XVII. Diante do desafio posto às monarquias europeias de não apenas fundar, mas de administrar domínios de dimensões globais, com distâncias espaciais consideráveis, cabe evidenciar como as comunicações manuscritas foram essenciais para construir, discursiva e instrumentalmente, um modo específico de governar territórios e súditos no ultramar. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Ordens, Palavras e um Motim Parece claro, sem que isso signifique uma explicação cabal, que a eclosão do movimento rebelde envolveu uma intrincada simbiose de elementos relativos ao exercício do mando colonial como o atrito entre funcionários e a localidade e os desentendimentos entre autoridades metropolitanas, situadas

388 ISSN 2358-4912 em níveis hierárquicos diferentes, num contexto muito delicado da colonização lusa: os efeitos da guerra holandesa (1630-1654) e o início do processo de recuperação do domínio luso na região norte na América. A Restauração - etapa histórica de retomada da autonomia política de Portugal em relação à Espanha iniciado em 1640 - afetou também a ação metropolitana para os territórios dominados especialmente no que se refere ao Brasil. Nessa parte do Império luso, nota-se a preocupação da coroa em retomar o controle político e administrativo das atividades econômicas e o domínio formal da região norte, que seria levado a fim com a expulsão dos holandeses de Pernambuco. A intenção da reconstrução do poder monárquico manifesta-se na criação do o Conselho Ultramarino em 1642, órgão metropolitano que buscou centralizar toda a administração do Império português. A burocracia à serviço da atividade econômica, o controle do comércio estrangeiro na colônia e criação de companhias privilegiadas de comércio como a Companhia Geral do Comércio do Brasil em 1649, representam ações para monopolizar o comércio em suas respectivas áreas de atuação. A instalação de práticas centralizadoras de governo e o reforço da autoridade real figuram como estratégias para, naquele momento, aprofundar a referência de Lisboa como o centro de poder imperial ibérico. Para completar, houve um reforço no fiscalismo em que a carga tributária e as restrições comerciais sobre os colonos aumentaram.1243 A elaboração de mecanismo de controle político, objetivando assegurar não somente o provimento das rendas obtidas da produção colonial e da cobrança de impostos da América voltados para a restauração financeira do Reino português, exigia que a ação governativa dos agentes metropolitanos e seu comprometimento com essa orientação do fortalecimento do poder real fossem eficientes. A forma de sua execução pode ter gerado situações de atrito das autoridades metropolitanas entre si e destas com a elite colonial. Em meio à guerra de expulsão dos holandeses e a necessidade de abastecimento das tropas na Capitania de Pernambuco, o capitão-mor daquela capitania, Francisco Barreto, informava da situação gravíssima em que se encontrava ao governador geral: “De Lisboa não tem chegado embarcação alguma”1244. A solução foi estipular, em 1651, uma finta para recolher mil cabeças de gado das províncias próximas. Assim, “com maior brevidade se execute a ordem e possa este povo [o da Bahia] se ver livre da necessidade em que fica que é muito grande”1245, ordenava o Conde Castelo-Melhor aos vereadores da Câmara de São Cristóvão. Assim, da Capitania de Sergipe entre os anos de 1651 e 1652 foram enviadas para a Bahia mais de 300 cabeças de gado. Entretanto, pela continuidade da finta nos anos seguintes, os camarários da Capitania de Sergipe enviaram ao governo da Bahia uma representação para reclamar dessa ordem. Torna-se importante pontuar que a população colonial em Sergipe não contestou a cobrança em si, sugerindo uma postura de consentimento inicial, embora vivesse sobrecarregada com impostos. A questão da continuidade da finta em que algo que deveria se passageiro, parecia se eternizar, sugere ser este o verdadeiro motivo de reclamação, acirrando o atrito entre o Governo-Geral e a elite da capitania. Assim, o Governador-Geral no Brasil, Dom Jerônimo de Ataíde, Conde de Attouguia (16541657) nomeou o Capitão-Mor Manoel Pestana de Brito para administrar a Capitania em 1654 e apaziguar os conflitos decorrentes dessa insatisfação e a dirimir as resistências. Conflitos de poder envolvendo autoridades e comunidade não eram exatamente eventos raros na América portuguesa. Mas nem todos transformavam-se em rebelião. Nesse sentido, o historiador brasileiro Luciano Figueiredo analisa que o tema da tributação por si só “não é capaz de explicar, isoladamente, o fenômeno dos motins”, destacando que a causa das insatisfações pode envolver duas situações fundamentais: a ampliação de carga tributária a níveis insuportáveis diante de uma alegada pobreza e dúvidas acerca da legitimidade da cobrança de um determinado imposto. Aliado a esse V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Jorge Caldeira indica que o aumento da carga tributária pode ser evidenciado nos seguintes dados: “em 1607, os impostos equivaliam a 4,5% do total da arrecadação do Império português e em 1681 correspondiam a cerca da metade das receitas – e isto numa situação em que as exportações não aumentaram em valor real ou volume, nem cresceu a renda total do Império português. Em outras palavras, o aumento dos impostos brasileiro foi de 1000% no período”. (1999, p. 165) 1244 Carta de Francisco Barreto à Câmara de Salvador, 04/05/1651. Documentos históricos do Arquivo Municipal: Atas da Câmara. Salvador: Prefeitura Municipal, 1944-49, v. 3, p. 143. 1245 Carta 16 de outubro de 1651do Conde Castello-Melhor aos oficiais da Câmara da Capitania de Sergipe del Rei. CARVALHO Jr, Francisco Antônio de. Os capitães-mores de Sergipe (15901820). Aracaju: Segrase, 1985.

389 ISSN 2358-4912 quadro, a inabilidade dos governadores e altos administradores da Fazenda Real em lidar com as negociações sobre o lançamento de novos tributos sobre a população local pode constituir fator que nutria a disposição dos colonos para a rebelião (1995, p. 72). Os capitães-mores possuíam competências de largo alcance e no exercício prático do governo sua autoridade colidia com importantes focos de poder local como as câmaras. Foi justamente pela Câmara de São Cristóvão que o governador geral foi solicitado a tomar providências acerca do comportamento considerado indevido de seu subordinado. O governador conta, em carta dirigida ao capitão-mor, que tomou conhecimento dos acontecimentos em Sergipe “(...) dos diferentes excessos que vossa mercê (V. M.) usa nessa capitania” por meio das “várias denúncias da Câmara e da nobreza”, e por isso escrevia para adverti-lo, ameaçando que se não se comportasse com moderação e compostura lhe tiraria o cargo e o faria embarcar para Portugal com queixa a majestade sobre o seu mal procedimento.1246 Para evitar novas queixas devido a “a indecência com que trata os moradores nobres dessa capitania”, em que “indecência” refere-se ao “modo de obrar contra a urbanidade”, aproximando-se do sentido de civilidade, orienta seu comandado sobre a forma de contornar os conflitos e flexibilizar o rigor das normas, habilidades consideradas como ferramentas indispensáveis ao mando de um funcionário real: “A um deixe livremente vender e levar todos os gêneros que quiserem; a outros faça os favores, que é justo”1247. O tom imperativo, áspero e mesmo pedagógico que marca o texto revela o nível profundo de atrito, relaciona-se ainda com a natureza das correspondências que, na maioria das vezes, não eram escritas de próprio punho por aqueles que as assinavam, mas ditadas para escrivães oficiais, aspecto que possivelmente permitia a passassem traços de oralidade para os referidos textos (SOUZA, 2007, p. 35). E nesse caso, a fala podia estar exaltada reforçando a necessidade de obediência ao seu comandado. Não há como saber como a repreensão foi interpretada pelo capitão-mor. Pela sequencia dos eventos fica claro que Manoel Pestana de Brito continuou a se desarmonizar com os representantes da Câmara de São Cristóvão, motivo pelo qual acabou por ser destituído do cargo pelo seu “mau proceder” e mandado que se dirigisse a Salvador para se explicar. Balthazar dos Reis Barrenho foi designado capitão-mor para substituí-lo em Sergipe. Nos entremeios para a posse do novo capitão-mor, em 1656, Manoel Pestana de Britto não retornou à Bahia como ordenado e, mais, chefiou um motim. Apoiado por alguns vereadores e proprietários de currais indignados com o gado fintado e cujos interesses dessa aliança não são insinuados na documentação, o capitão-mor teria incitado, em 26 de agosto de 1656, os habitantes de São Cristóvão a não atenderem às determinações do governo-geral. No movimento, os rebeldes prenderam os vigários Sebastião de Góes Pedroso, considerado como o mais influente conselheiro da Câmara e fiel à autoridade do governador-geral, e Tomé de Aguiar em que para capturá-lo teriam destruídos paredes de uma casa, exibindo o religioso amarrado pelas ruas da Vila para depois mantê-lo em cativeiro. Soltaram alguns presos da cadeia sem terem as precárias milícias locais condições de reagir. Alguns moradores fugiram e os rebeldes teriam tomado o governo da Câmara, assumindo a responsabilidade de governar a sede da Capitania. Em fevereiro de 1657, o Conde de Atouguia enviou o Desembargador Bento Rabelo com o fim de prender Manoel Pestana de Brito e abrir devassa contra os participantes da sedição em Sergipe. Nas correspondências enviadas a ele, exigia-se que sufocasse o movimento enfatizando a necessidade do uso de meios enérgicos “contra aqueles que promovem tantos males, se eles repugnarem as ordens de paz e obediência” 1248. Dirigindo orientações mais severas sobre os acontecimentos, o Conde de Atouguia, explicava: “São tão grandes os desaforos dos moradores dessa capitania que me obrigam a chegar com eles aquele último rigor que até agora repugnei, por esperar se reduzissem ao sossego e obediência que convinha”. A ação dos moradores dizia respeito ao “agravo que se faz contra os foros e leis do reino ou contra a V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Carta do conde de Attouguia para o capitão-mor de Sergipe Manoel Pestana de Brito. 20 de outubro de 1654. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes e Governo do Estado de Sergipe, 1977, p.177. 1247 Carta do conde de Attouguia para o capitão-mor Manoel Pestana de Brito. 20 de outubro de 1654. FREIRE, F. Op. Cit. 1248 Carta de 03 de fevereiro de 1657 do conde de Atouguia para o Desembargador Bento Rabelo. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes e Governo do Estado de Sergipe, 1977, p.179.

390 ISSN 2358-4912 razão” (BLUTEAU, p. 86). Salienta-se o entendimento sobre o colono obediente e sossegado, o comportamento apropriado da população que habitava a colonia, na visão das autoridades metropolitanas. O último recurso de submissão à ordem foi o emprego da violência. Determinou, assim, o uso de força militar, organizando uma tropa com duzentos mosqueteiros para sufocar o movimento. E avisou: “Se ainda continuarem os sucessos e V. M. vir neles movimento algum contra as ordens deste governo [...] os castigue com tal demonstração que sirva de exemplo a todos. E todas as mortes e efusão de sangue que deste excesso resultarem tomo sobre mim para dar conta a Sua Majestade Imperial”. A função do exemplo é destacada uma vez que tratava-se de “coisa proposta para ver ou ser imitada” e a percepção sobre seu papel multiplicador de comportamentos – bons ou maus – considerando que “não há coisa mais eficaz que o bom exemplo e mais perniciosa que o mau”. (BLUTEAU, p. 380), inscreve-se no conjunto de valores da cultura política da época. Por mais que leis escritas determinassem as penas e as consequências dos motins, era a imagem do castigo sofrido que deveria fixar nas mentes dos vassalos o perigo das atitudes rebeldes. O uso de “ações que excedessem os limites preteridos da razão” e severidade nos castigos aplicados como forma de convencê-los a desistir do movimento, deveria ser considerado como legítimo pois “na rebelião fica justificado o rigor que merecem; mas por que esta resolução há de ser no último desengano da obstinação de seus moradores e no cuidado de novas perturbações e tumultos, que seja notória a causa com que Vossa Mercê chegar a ele sobre todos os precedentes. 1249 A necessidade de rigor convinha já que rebelião significava, no vocabulário político da época, “o levantamento de um ou muitos vassalos contra o seu senhor” (BLUTEAU, p. 136), logo era um ataque dirigido ao monarca sendo importante que a razão das punições rigorosas fosse pública, conhecida e, assim, bem compreendida por todos. A atenção redobrada e vigilante do capitão-mor era necessária devido a possibilidade de resistência e rebeldia e sua contenção assume condição de reforço da autoridade e de manutenção de seu oficio, segundo explicava o governador geral: “E para que V. M. possa estar sempre superior no poder e no posto, elegerá o que lhe parecer melhor, estará sempre com a vigilância que pede a natureza dessa gente”, indicando a especificidade na índole dos rebeldes. Com o uso de numerosas forças mandadas da Bahia, o desembargador Bento Rabelo conseguiu sufocar o movimento em março e, finalmente, prender Pestana de Brito. Este teve seus bens confiscados para pagamento das despesas da ação militar, e foi enviado à Salvador com seus principais cúmplices: Philipe de Santiago, o capitão Manuel Rodrigues e Gaspar Maciel Villas Boas, vereador e escrivão da Câmara respectivamente. Na cadeia de São Cristovão ficaram presos um total de 14 pessoas entre elas moradores da capitania (sem identificação de ocupação) mas de lugares como os termos de Itabaiana e Lagarto, militares como sargento e capitão, vereadores da Câmara de São Cristóvão, o procurador do conselho, procurador do povo de Itabaiana, uma mulher e um escravo1250. Reconhecendo as possibilidades fecundas de análise sobre o motim ocorrido em Sergipe, na intenção de realizar uma aproximação interpretativa condicionada pela disponibilidade das fontes que não dispensa a necessidade de um tratamento histórico melhor consubstanciado, os apontamentos são sugestivos da pertinência em refletir acerca das relações políticas entre a Coroa portuguesa e os colonos no ultramar pela perspectiva das rebeliões recuperando seus significados políticos e culturais à época. De qualquer forma, neste texto, o destaque a esta experiência quis dar visibilidade a importância das correspondências manuscritas e sua capacidade de transportar, pela linguagem, conteúdos políticos relevantes ao exercício do poder metropolitano via administração colonial. Mesmo que prescritiva de práticas e condutas, que obviamente podiam ou não se concretizar, as cartas nos conectam a uma visão de mundo codificada em discurso político, mesmo que parcial, fragmentado, de uma autoridade colonial, envolvida com a resolução de um grande problema: o de conter uma rebelião. Aprofundar essa questão e demais aspectos relacionados pode ser útil como contribuição a discussão sobre a efetivação da ordem colonial que envolveu agentes metropolitanos e colonos, as formas de construção da autoridade do mando nos domínios ultramarinos e para a V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Carta de 03 de fevereiro de 1657 do conde de Atouguia para o Desembargador Bento Rabelo. FREIRE, Felisbelo, op. cit., p.180. 1250 Oficio de 31 de março de 1657 do escrivão da alçada Francisco Osório.

391 ISSN 2358-4912 compreensão do modo como os homens dos tempos coloniais viam sua relação com o poder e atuavam com o propósito de intervir na realidade.

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ISSN 2358-4912 DAS TERRAS DOADAS, OUVI DIZER...: O AUTO DE REPARTIÇÃO DAS TERRAS DO RIO GRANDE (1600-1614) Elenize Trindade Pereira1251 O processo de colonização da América portuguesa teve no seu cerne estrutural a política de doação de sesmarias visando o povoamento e o incentivo ao cultivo da terra para o sustento da Coroa. Tal instituto foi amplamente utilizado nos espaços conquistados, influenciando na configuração da organização territorial das diversas colônias no ultramar. Hoje, as informações contidas nas cartas de sesmarias fornecem um panorama geral sobre a dinâmica da vida colonial, constituindo-se assim em documentos importantes para os estudiosos do período colonial. Assim, o objetivo desse artigo é analisar a implementação do sistema sesmarial na capitania do Rio Grande no início do século XVII tendo como base as informações do Translado do Auto de Repartição das Terras do Rio Grande1252, documento detentor de informações privilegiadas sobre as primeiras doações de sesmarias e a formação do espaço colonial da capitania no período Filipino (1580-1640). Tal período foi marcado por uma nova configuração da estrutura institucional colonial portuguesa reforçando a base da estrutura administrativa que vigeu durante séculos1253. Uma dessas mudanças diz respeito ao aumento da fiscalização sobre as doações de sesmarias e a redistribuição de terras não aproveitadas na América portuguesa. A ocupação do imenso território da colônia se deu a partir da divisão em capitanias hereditárias: imensas extensões de terra doadas a particulares que deveriam povoar, proteger e administrar o território. No caso da capitania do Rio Grande, a doação foi destinada a João de Barros, feitor das Casas de Mina e da Índia, em 1535. O donatário e seus filhos tentaram por duas vezes ocupar a capitania, mas não lograram êxito devido a reação dos indígenas que habitavam a terra. Os índios Potiguara dominavam a faixa litorânea da capitania e não estavam sozinhos na luta de resistência. Os franceses exploravam plantações de pau brasil na região e se juntaram aos índios para combater os portugueses 1254. Diante da ameaça estrangeira, o Rei retomou a possessão do Rio Grande, indenizou a família de João Barros e emitiu ordens aos capitães mor de Pernambuco e Paraíba, Manuel Mascarenhas Homem e Feliciano Coelho, para que organizassem uma expedição armada, marítima e terrestre, para a conquista do Rio Grande. A conquista só ocorreu em 1598 e foi consolidada no ano seguinte graças a um acordo de paz realizado entre os chefes indígenas e os colonizadores, na Paraíba em 11 de junho de 1599. Dentre os chefes da expedição terrestre estava Jerônimo de Albuquerque, organizador do processo de paz com os índios 1255. Feita as pazes com os Potiguaras, foi iniciada a construção da Fortaleza dos Reis Magos que teve como primeiro capitão Jerônimo de Albuquerque, nomeado pelo líder da expedição conquistadora, Manuel Mascarenhas Homem, em 15981256. O cargo de capitão mor foi exercido provisoriamente por Mascarenhas Homem que também era capitão mor de Pernambuco. No entanto em 1600, João Rodrigues Collaço exerceu a função de capitão mor do Rio Grande provisoriamente atendendo à ordem do Governador Geral, mas, neste momento quem exercia de fato a função de capitão mor era Jerônimo de Albuquerque. Este pleiteou ao rei o cargo de capitão mor efetivo, conseguindo em 1603 a nomeação1257. 1251

Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A autora também integra o Laboratório de Experimentação em História Social (LEHS) do departamento de história da UFRN. E-mail: [email protected]. Trabalho orientado pela professora doutora Carmen Margarida Oliveira Alveal, professora adjunta do departamento de História da UFRN. 1252 TRASLADO do Auto de Repartição de Terras do Rio Grande. Revista do IHGRN, v.7, n. 1 e 2,p. 5-131, 1909. 1253 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Edições Colibri, 1994. 1254 CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 3; ed. Natal, RN: IHGRN, 1999. (Natal 400 anos, v. 1). 1255 TAVARES DE LIRA, Augusto. História do Rio Grande do Norte. Brasília, Natal: Fundação José Augusto, 1982. 1256 POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1922. 1257 Notas explicativas do Auto de Repartição do Rio Grande. Revista do IHGRN, v.7, n.1 e 2, p. 86-89, 1909.

393 ISSN 2358-4912 Assim, coube ao novo capitão mor cuidar da demarcação da futura cidade e da povoação. Segundo Cascudo, junto com a fundação da cidade em dezembro de 1599, foi fundada a Igreja Matriz em um terreno elevado distante do forte meia légua (na atual Praça André Albuquerque Maranhão). Nesta localidade, Jerônimo de Albuquerque demarcou os limites da cidade com cruzeiros de posse. Cidade aliás, que adquiriu o status de cidade por ter sido fundada no período filipino, já que a Coroa espanhola criava cidades ao invés vez de vilas. A organização política da capitania só foi consolidada com a criação da Câmara para a administração municipal da Cidade do Natal que ocorreu devido aos pedidos dos moradores que recorreram ao Governador Geral Diogo de Meneses (1608-1612) pedindo “modos de governança”. Este indicou um juiz ordinário, vereador, escrivão da câmara, procurador do conselho e o procurador dos índios. A doação de sesmarias foi um incentivo para atrair pessoas de outras capitanias para ocupar o território, cultivar a terra e investir principalmente em cana-de-açúcar. A legislação sesmarial aplicada na colônia, determinava a concessão de terras para pessoas que pudessem povoar e cultivar a terra em determinado período de tempo. No entanto, ocorreram que alguns abusos cometidos por doadores e sesmeiro no que tange ao uso da terra. O Caso da capitania do Rio Grande não foi diferente. O Auto de Repartição consiste no levantamento das 1861258 sesmarias doadas na capitania do Rio Grande de1600 a 1614. A elaboração deste levantamento é resultado de uma averiguação e repartição das terras feita por Alexandre de Moura, capitão mor de Pernambuco no período, pelo ouvidor geral Manuel Pinto da Rocha e pelo desembargador Afonso Garcia Tinoco, por ordem do rei Felipe II (15981621) por meio da provisão1259 real de 12 de setembro de 1612. Na provisão constavam reclamações do rei, que, informado por meio de denúncia, de não se sabe quem, foi informado que alguns moradores da capitania não estavam cumprindo com o dever de cultivar a terra recebida por doação, ocasionando assim prejuízos para a fazenda real tendo em vista o pagamento do dízimo sobre a terra. Além disso, o rei considerou exorbitante a quantidade de terras doadas pelo capitão mor Jerônimo de Albuquerque (1603-1610) aos seus filhos Matias e Antônio Albuquerque, que segundo a denúncia, não cumpriram com a obrigação de cultivar as terras. Desse modo, o rei mandou que se dividissem pela metade estas terras e que a outra metade fosse repartida entre pessoas que pudessem cumprir com a obrigação de cultivá-las. Ainda sobre as reclamações do rei, o mesmo tomou conhecimento de que os religiosos da Companhia de Jesus receberam dez léguas de terra, nas quais somente fizeram dois currais de gado. Cabe salientar que a regulamentação jurídica baseada no Código Filipino, Título XI, permitia que religiosos possuíssem bens de raiz e fossem isentos do pagamento de tributos. No entanto, esta isenção era permitida somente para bens de raiz que garantissem apenas o sustento dos religiosos1260. A quantidade de terras que a Companhia de Jesus recebeu no Rio Grande extrapolava o sustento deles, 10 léguas de terra para manter 2 currais de gado sem o pagamento de tributos representava um prejuízo considerável para a Fazenda Real. Os padres ainda receberam mais 4 doações neste período. Assim, o rei ordenava que se reduzissem as terras dos padres da Companhia e de todos aqueles que tivessem quantidade exorbitante de terras e não as tiverem cultivado devidamente. O rei ainda se mostrou benevolente para com as pessoas que fizeram benfeitorias mesmo que fora do tempo determinado, permitindo que elas ficassem com as terras. A polêmica sobre as terras doadas por Jerônimo de Albuquerque aos seus filhos Antônio de Albuquerque e Mathias de Albuquerque diz respeito à extensão das terras, que, segundo consta no Auto de Repartição, era de 5.000 braças em quadra, na várzea do Cunhaú e também ao fato de a mesma não ter sido cultivada, segundo a denúncia. De acordo com os dados do Auto, a extensão média das terras doadas estava em torno de 600 até 3.000 braças de terra (1 légua). O que chamou a atenção do rei, contudo, não foi exatamente a extensão da terra já que não havia previsão legal para isso, mas o fato de uma imensa extensão de terra não ter sido supostamente cultivada.

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Todas estas sesmarias constam na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro), base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa no mundo atlântico. Disponível em . Acesso em 16 de mar. 2014. 1259 Provisão de Sua Magestade pello Conselho das Yndias sobre a repartição das terras do Ryo Grande. Revista do IHGRN, v.7, n. 1 e 2,p. 5-131, 1909. 1260 CÒDIGO Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Livro II, Título XI, P. 430-1.

394 ISSN 2358-4912 A doação deveria ser de acordo com as reais possibilidades de cultivo do sesmeiro. Nas Ordenações Filipinas não existia nenhuma referência sobre a extensão das terras. Mesmo com esta indicação, muitos sesmeiros possuíam quantidade de terra acima das suas condições de cultivo, deixando-as sem proveito. Para a Coroa, este procedimento gerava prejuízos para a Fazenda Real, já que os sesmeiros pagavam o dízimo sobre a terra recebida. Se eles não produziam nada, não tinham como pagar o imposto e não existia a razão de ser da sesmaria. O aproveitamento da terra estava diretamente ligado à produção de materiais rentáveis aos circuitos da comercialização externa. Portanto, não era a mera produção de alimentos para atender as necessidades dos habitantes da colônia e sim a produção para exportação, mas especificamente de cana-de-açúcar. Aquelas capitanias que mais produziram nesse sentido, ou seja, com excedente, adquiriam o status de centro justamente por reunir mais condições de contribuir com o projeto imperial português. A obrigatoriedade do cultivo remontava a Lei Sesmarial de D. Fernando I, de 13751261. O cultivo era o fundamento jurídico da sesmaria, que naquele momento histórico havia sido determinado devido à grave crise de abastecimento que Portugal enfrentava. A Grande Peste que assolou a Europa no século XIV, causou queda demográfica e escassez de mão de obra, foi determinante para a queda da produção de alimentos e a propagação da fome. O instituto da sesmaria então era um forte incentivo para que a população produzisse alimentos e ajudassem a reerguer Portugal. Sobre a implantação do sistema sesmarial na América portuguesa1262, faz se necessário analisar as diferença entre o conceito e a aplicação da sesmaria em Portugal e na colônia. Em Portugal, segundo a definição das Ordenações Manuelinas (1514-1603), as sesmarias eram terras doadas que pertenciam a um senhorio, mas por não terem sido aproveitadas (lavradas) deveriam ser doadas a quem pudesse aproveitar. Na América portuguesa, devido ao imenso território, a sesmaria era uma porção de terra geralmente nunca cultivada antes, doada aos súditos da Coroa para que povoassem e cultivassem. No entanto, o tempo de cultivo era determinado por lei, nas Ordenações Manuelinas o prazo era de 5 anos. O regimento de Tomé de Souza de 1548, norteou a aplicação da legislação sesmarial na colônia, estipulando 3 anos para o aproveitamento. Ser sesmeiro na América portuguesa estava associado a uma oportunidade de ascensão em uma sociedade tão marcada pela condição hierárquica como a sociedade do Antigo Regime. O pedido davase por meio de uma petição onde o candidato a sesmeiro deveria declarar suas informações, como local de residência e os motivos pelos quais requeria a terra, deveria informar a situação geográfica da terra pedida, extensão, limites bem como deixar evidente a sua condição social, financeira (cabedal) para embasar o pedido. O governador era a autoridade local responsável pelas doações e decidia se seria feita a doação integral tal como foi pedida, se seria parcial ou se não haveria a doação. No caso da capitania não ter governador, o capitão-mor assumia esta responsabilidade. Para o Rio Grande, essas primeiras cartas de sesmarias (pedido) não foram encontradas. O Auto de Repartição reúne estas doações a partir de informações concedidas por antigos moradores da Capitania e por algumas informações que constam nos livros de registros das doações. Estes moradores mais antigos aparecem como protagonistas de um suposto conflito na capitania. É possível deduzir isto a partir da análise da provisão do rei e de alguns dados do Auto de Repartição. Não fica explícito em momento algum a autoria da denúncia: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Eu Elrey faço saber aos que este alvará virem que eu sou ynformado que na capitania do Rio Grande do estado do Brazil se repartiram terras a diversas pessoas com obrigação de as cultivarem e beneficiarem, conforme as condições e obrigações que lhe foram postos com que não tem comprido e em meu serviço e fazenda recebem perda [...]1263

1261

VARELLA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: um Estudo de História do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 1262 A tese de doutorado de Carmen M. Oliveira Alveal apresenta um estudo esclarecedor sobre a implantação do sistema sesmarial no mundo atlântico português. Ver mais em: ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira, Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World. 16 th-18thCentury. 354 p. Tese (Doutorado em História)- Johns Hopkins University. 2007. 1263 Provisão de Sua Magestade pello Conselho das Yndias sobre a repartição das terras do Ryo Grande. Op.cit. p.9.

395 ISSN 2358-4912 Mas, Costa Porto, em sua obra clássica “Estudo sobre o Sistema Sesmarial”, afirma que a denúncia foi feita pelos moradores da capitania e Márcia Motta, em “Direito à terra no Brasil: A gestação do conflito 1795-1824” confirma esta informação. No entanto, de acordo com a leitura do documento não é possível identificar a autoria da denúncia. Mas, é possível levantar algumas hipóteses. Como consta do documento, o capitão mor da capitania do Rio Grande, em 1614, era Francisco Caldeira de Castello Branco. Coube a ele informar aos componentes da diligência quais eram as terras que estavam sendo aproveitadas e quais eram as que estavam sem uso. Segundo as informações do Auto, o capitão mor alegou que estava no comando da capitania há pouco tempo e por isso não tinha notícia destas terras. Então convocaram o padre vigário Gaspar Gonçalves da Rocha, o primeiro padre vigário da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, e o morador Manuel Rodrigues como informantes que ajudaram a reunir as informações sobre as terras, por serem os moradores mais antigos. No Auto, consta o registro das doações recebidas pelo vigário. Ele recebeu 4 doações do capitão mor João Rodrigues Colaço, entre 1601 e 1604, e duas doações de Jerônimo de Albuquerque, em 1604:

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Tabela 1: Sesmarias doadas ao padre vigário Gaspar Gonçalves da Rocha1264 Autoridade Ano Extensão 1. Cap. mor João Rodrigues Collaço 1601 2.000 braças em quadra 2. Cap. mor João Rodrigues Collaço 1601 Chãos no sítio da cidade* 3. Cap. mor João Rodrigues Collaço 1601 1.000 braças em quadra 4. Cap. mor João Rodrigues Collaço 1603 1.500 braças de comprimento e 500 braças de largura. 5. Cap. mor Jerônimo de 1604 300 braças em quadra Albuquerque * Pequena medida de terra doada dentro dos limites da Cidade do Natal.

Nesse sentido uma hipótese viável para o caso é que o autor da denúncia teria sido o padre vigário. No período em que João Rodrigues Colaço esteve no poder da capitania (1600-1603), o vigário foi beneficiado com cerca de 3.500 braças de terra (5.510 hectares) que aproveitou fazendo casas, construiu um trapiche e mantinha a atividade de pesca. Já no longo período em que Jerônimo de Albuquerque esteve no comando da capitania (1603-1610), o vigário havia recebido apenas uma sesmaria de 300 braças. Estaria o vigário ressentido por não ter recebido tantas braças como recebia no governo anterior? Analisando as doações destinadas aos padres da Companhia de Jesus é possível observar a diferença impressionante da extensão das terras doadas. Tabela 2: Sesmarias doadas aos padres da Companhia de Jesus1265 Autoridade

Ano

Extensão

1.

Cap. mor João Rodrigues Collaço

1600

1 légua

2.

Cap. mor João Rodrigues Collaço

1600

Chãos no sítio da cidade

3.

Cap. mor João Rodrigues Collaço

1601

½ légua em quadra

4.

Cap. mor Jerônimo de Albuquerque

1607

14 léguas

Os jesuítas estavam com a posse de boa parte das terras conhecida e explorada da capitania. Diante deste quadro, é possível inferir que havia um cenário propício para a disputa de terras ou desavenças, culminando em uma denúncia ao rei feita pelo padre vigário. Nesse contexto, o aumento do poder dos 1264 1265

TRASLADO do Auto de Repartição de Terras do Rio Grande. Revista do IHGRN, v.7, n. 1 e 2, p. 5-131, 1909. Ibidem.

396 ISSN 2358-4912 religiosos da Companhia poderia ter culminado em uma rixa entre clero secular e regular. As terras que Jerônimo de Albuquerque doou aos seus filhos foram repartidas. Tal fato foi posteriormente esclarecido já que nestas terras estava em funcionamento aquele que veio a ser o maior engenho de cana de açúcar da capitania, o Engenho Cunhaú. Esta constatação leva a crer que a denúncia levada ao rei foi motivada por uma espécie e disputa ou inimizade contra Jerônimo de Albuquerque. Somente em 1628, a Metrópole reconsiderou a decisão da provisão real de 1612 e confirmou a integralmente a primeira doação, desfazendo a divisão que fora feita nas terras dos filhos de Jerônimo de Albuquerque 1266. Na leitura do documento, destaca-se outro episódio que certamente precisa de maiores estudos. O rei já havia mandado um alvará para o Governador Geral D. Diogo de Meneses ordenando que o mesmo realizasse a redistribuição das terras, mas o governador não cumpriu a ordem, cabendo ao seu sucessor Gaspar de Sousa (1613-1617) regularizar a situação. Não se sabe o motivo pelo qual o exgovernador não tenha cumprido a ordem do rei, mas é possível levantar algumas hipóteses. A primeira delas diz respeito à divisão governativa do Estado do Brasil em 1608. O Governador Geral residia na Bahia e governava toda a jurisdição desde as capitanias do sul até as conquistas do norte que chegavam até a capitania do Rio Grande. Com a divisão governativa houve uma divisão entre a Repartição Sul e as capitanias do norte, cabendo ao Governador Geral Diogo de Meneses a jurisdição das últimas. Tal divisão havia sido imposta pelo rei para uma melhor distribuição administrativa, tendo em vista as descobertas de ouro, prata e metais preciosos na Repartição Sul, que ficou sob o comando de Francisco de Sousa. Em carta1267 ao rei, Diogo de Meneses não se mostrou satisfeito com a divisão, já que ele havia sido designado para governar a jurisdição do Estado do Brasil como um todo e por acreditar que as verdadeiras riquezas do Brasil eram o pau-brasil e o açúcar por serem produtos de exportação mais rentáveis. As reclamações de Diogo de Meneses não foram atendidas e a divisão permaneceu até 1612, mas só foi efetivada em 1613 no governo de Gaspar de Sousa. Diante do exposto, a insatisfação do ex-governador poderia ter resultado no descumprimento da ordem expedida na provisão do rei que mandava repartir as terras do Rio Grande. Desse modo, a provisão real foi passada para o Governador Geral Gaspar de Sousa (1613-1617). O mesmo repassou outra provisão ao capitão mor de Pernambuco Alexandre Moura e o desembargador e juiz da fazenda, Afonso Tinoco Garcia, exigindo que anulassem e riscassem dos livros de registros as datas de sesmeiros que não cumpriram com as obrigações de povoamento e cultivo. Em 21 de fevereiro de 1614, o escrivão publicou o traslado do auto que comunicou aos moradores e interessados em obter terras na capitania, a repartição das terras do Rio Grande. Antes disso, tal informação já havia sido repassada ao público na capitania da Paraíba, provavelmente na cidade da Paraíba e também na vila de Olinda, sendo o alvará pregado na porta das igrejas. O escrivão da fazenda, alfândega e almoxarifado da capitania do Rio Grande, Pero Vaz Pinto, confirmou também ter divulgado a informação em lugares acessíveis ao público da capitania e que havia pregado o alvará nas paredes da Igreja Matriz porque a mesma não tinha portas, demonstrando com isso a precariedade estrutural da mesma1268. Cada data de sesmaria doada de 1600 a 1614, deveria ser registrada no Auto de Repartição bem como as particularidades de cada terra, se serviam para cana, roça, pasto, mantimentos, se tinha água, trapiches, escravos, a localização entre outros. Os sesmeiros que tinham terras na capitania, mas não apresentaram os títulos que comprovavam a posse da terra aos componentes da diligência, perderiam a posse da terra que seria considerada devoluta, sem a possibilidade de reaver a mesma. No universo das sesmarias que constam no Auto de Repartição é possível fazer uma avaliação dos primeiros anos de colonização da capitania do Rio Grande. As 186 sesmarias foram doadas para 84 sesmeiros. Muitos receberam várias doações, como foi o caso do vigário Gaspar Gonçalves da Rocha e os padres da Companhia de Jesus, e muitos abandonaram as terras. Para visualizar melhor o conjunto destes dados foram elaboradas tabelas computando estas informações de acordo com os doadores. Durante os 14 anos estudados, 7 autoridades concederam sesmarias na capitania, como mostra o quadro abaixo: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1266

TAVARES DE LIRA, Augusto. História do Rio Grande do Norte. Brasília, Natal: Fundação José Augusto, 1982. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em dez. 2013. 1268 TRASLADO do Auto de Repartição de Terras do Rio Grande. Revista do IHGRN, v.7, n. 1 e 2, p.15, 1909. 1267

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ISSN 2358-4912 Tabela 3: Doações por autoridades1269 Autoridades

Nº de doações feitas

Mascarenhas Homem (cap. mor da conquista) (1600)

2

Cap. mor João Rodrigues Collaço (1600-1603)

54

Cap. mor Jerônimo de Albuquerque (1603-1610)

108

Cap. mor Lourenço Peixoto Cirne (1610-1611)

8

Cap.mor Francisco Caldeira de Castello Branco (1613-1614)

12

Dom Diogo (Governador Geral) (1608-1612)

1

Gaspar de Souza (Governador Geral) (1613-1617)

1

Total

186

Jerônimo de Albuquerque foi o maior doador de sesmarias, levando em consideração o tempo de exercício na função de capitão mor da capitania. A doação feita por Mascarenhas Homem foi destinada a João Rodrigues Colaço, que foi o primeiro capitão-mor da capitania, é a doação de número 1 no Auto. Foram doadas 2.500 braças de terra ao longo do rio Potengi ao primeiro povoador da capitania que em pouco tempo depois tornou-se capitão mor. Com ele houve o início da distribuição de terras para povoamento. Um dado interessante e revelador sobre as doações é o número de terras consideradas devolutas. Após a averiguação, os dados obtidos mostram que 34% das terras foram consideradas devolutas e outros 20% eram terras que segundo os integrantes da diligência, não servia para nada ou não foram feitas benfeitorias nenhuma nas terras. É recorrente também os casos de sesmeiros que abandonaram as terras e foram embora da capitania, muitos ainda construíram casas que caíram e não foram reerguidas. Com relação as atividades econômicas desenvolvidas temos que 6% dos sesmeiros possuíam gado, 6% investiam em pescaria e pouquíssimos plantavam cana de açúcar, a exceção mais evidente era justamente o Engenho Cunhaú que durante muitos anos foi o maior produtor de cana de açúcar da capitania. A produção de mantimentos, a exploração de salinas, olaria e a extração de madeiras são citadas no documento. Pelos dados do Auto de Repartição é possível perceber que a mão de obra inicialmente quase escassa na capitania, pois existe apenas uma referência sobre negros da guiné e outras 5 sobre escravos sem nenhum tipo de especificação. Eles pertenciam a João Rodrigues Collaço, ao padre vigário, ao médico da capitania, aos Jesuítas (4 negros da guiné) e aos senhores do Engenho Cunhaú. O que se pode observar com esses dados é a forma de uma organização inicial da capitania, os agentes envolvidos na colonização e suas estratégias para prosperar em um espaço desconhecido, as levas migratórias e sua influência para a formação do espaço colonial da capitania. O diálogo com outras fontes primárias como os relatos de cronistas e de religiosos bem como a análise da historiografia sobre o tema, irão complementar de forma significativa este trabalho que apresenta possibilidades de estudo variadas e importantes para compreender os primeiros anos da colonização no Rio Grande.

1269

Ibidem.

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ISSN 2358-4912 Referências ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira, Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World. 16 th18thCentury. 354 p. Tese (Doutorado em História)- Johns Hopkins University. 2007. CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 3; ed. Natal, RN: IHGRN, 1999. (Natal 400 anos, v. 1). POMBO, Rocha. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1922. PORTO, Costa. Estudo sobre o sistema sesmarial. Recife: UFPE, 1965. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Edições Colibri, 1994. TAVARES DE LIRA, Augusto. História do Rio Grande do Norte. Brasília, Natal: Fundação José Augusto, 1982. VARELLA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: um Estudo de História do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

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DINÂMICAS POPULACIONAIS NA FORMAÇÃO DE FAMÍLIAS NAS FREGUESIAS DE RUSSAS E ARACATI, CEARÁ – 1770⁄1830: CASAMENTOS CRISTÃOS E NATURALIDADES DOS NUBENTES Elisgardênia de Oliveira Chaves1270 O “Novo Mundo”, nas várias regiões ocupadas por europeus e africanos, que logo no início já se juntavam às populações nativas, foi marcado por conexões e misturas que envolveram “além de corpos, toda existência, abarcando as atividades inerentes à vida e ás formas de organização social dos homens. As trocas culturais verificam-se em todos os aspectos da vida em sociedade, sejam eles políticos, religiosos, econômicos ou mesmo institucionais” 1271. O desenvolvimento desse texto baliza-se nessa concepção de “Novo Mundo”, buscando compreender a formação do Ceará inscrita na perspectiva do trânsito, da mobilidade e das trocas comerciais e culturais com diferentes regiões dos continentes africano, asiático, europeu e americano. Com efeito, a partir dos registros de casamentos das Freguesias de Russas e Aracati, inerentes ao período de 1770 a 1830, o principal objetivo é analisar a formação de famílias relacionada à procedência dos nubentes nesses espaços cearenses. O intercâmbio, seja de indivíduos, de técnicas de flora e fauna, de mercadorias e produtos, seja de línguas, de culturas, de manifestações de fé, de costumes e práticas tradicionais, delineou o universo cultural do Brasil Colonial. Mobilidade, trânsito, maneiras de viver e formas de pensar, de negociar, mesclas biológicas e culturais, proporcionados pelos encontros entre esses distintos elementos étnicos, corroboram para a definição de conceito “dinâmica de mestiçagem”, que, segundo Eduardo Paiva, trata-se de: [...] um conceito que acentua a importância da mobilidade e do trânsito de pessoas, culturas, objetos, fauna, flora, maneiras de viver e formas de pensar, o que produziu mesclas biológicas e culturais, assim como superposições, interseções, discursos e representações de pureza e de impermeabilidade também. Dinâmicas de mestiçagem sublinham a complexidade e o movimento das misturas e de seus produtos em oposição à somatória de raças, cujo resultado é a fusão das partes em uma e outra e única raça, equação quase matemática, que tradicionalmente lastreou-se na evolução rumo ao branqueamento e a civilização 1272.

Esse conceito vem sedimentando estudos historiográficos, nos quais autores como Eduardo França Paiva, Serge Gruzinski, Carmem Bernand, Berta Arres Queija, dentre outros, primam pela análise da complexidade do processo e dos agentes, não necessariamente mestiços, mas que, pelos contatos em diferentes espaços e ocasiões - no ambiente de trabalho, nos caminhos, nos mercados, em festas, em cerimônias religiosas e de diferentes formas: efêmeros, voluntários ou forçados -, fomentaram circulações de ideias, surgimento de relações afetivas, familiares, potencializando misturas biológicoculturais1273. 1270

Universidade Federal de Minas Gerais. Email: [email protected] IVO, Isanra Pereira. “Trânsito externo e o Malogro da interiorização holandesa no Brasil.” In: PAIVA, Eduardo França. “Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo ibérico.” In: PAIVA, Eduardo França e IVO, Isnara Pereira. (orgs.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2008, p. 184. 1272 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012, p. 210. 1273 Dentre outros estudos ver: ARRES QUEIJA, B.; GRUZINSKI, S. (Coord.) Entre dos mundos; fronteiras culturales y agentes mediadores. Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilla, 1997; BERNAND, C.; GRUZINSKI, S. Histoire du Nouveau Monde - Les Métissages, 1550-1640. Paris: Fayard, 1993; PAIVA, E. F. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. Tese (Doutorado em História do Brasil) - Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. 1271

400 ISSN 2358-4912 A questão da mestiçagem como uma das categorias para analisarmos a formação de famílias nas Freguesias de Russas e Aracati no Ceará assenta-se em concepções contemporâneas sobre o termo, já que não se relaciona com as propostas “racialistas” pensadas no século XIX, mas comunga com pontos de vista que analisam a questão sob o prisma do encontro, da mistura, da coexistência entre os elementos étnicos: brancos, negros e índios. A mestiçagem populacional não constitui um fenômeno biológico apenas no que diz respeito ao cruzamento genético como também “não se reduz a uma concepção que valorize uma cultura, etnia ou raça superior por meio do processo eugênico, como foi proposto por alguns viajantes e teóricos dos séculos XVIII, XIX e XX”. Desse modo, “o grande problema do conceito de mestiçagem para seus críticos assenta-se no caráter que associa a mistura biológica entre os seres com a ideologia racial de inferioridade e superioridade, largamente difundida no século XIX”. 1274 A par dessas perspectivas, ao analisarmos a formação familiar legitimada pelo casamento, com ênfase nas procedências, atenta-se para uma definição de família que se pode chamar de mestiça: “uma família proveniente da dinâmica social das diferenças, que não era originalmente nem lusa, nem africana, nem índia, mas derivada do intenso somatório de características” e que, desse modo, “se configurava em um novo lugar sociocultural, político e econômico, comportando tradições que não eram puras nem estáticas, porém identificáveis dentro das próprias configurações mestiçadas”. 1275 Se os espaços ibero-americanos – áreas sob o domínio das coroas portuguesas e espanhola no Novo Mundo1276 - estavam conectados geográfica e culturalmente, como se pode conceber os sertões na América portuguesa sob o prisma do isolamento? Para Isnara Pereira Ivo, a historiografia que retrata o sertão surgiu com relatos sobre sertanistas e bandeirantes nos primeiros anos do século XVIII. Nela, “a categoria sertão foi utilizada para identificar as regiões não litorâneas e referia-se a lugares pouco povoados, nos quais a atividade econômica limitava-se à pecuária”. Nesses estudos, o sertão foi “considerado inculto e cheio de façanhas barbarescas”. Um sertão “concebido como o abrigo da pobreza, da desordem e do isolamento, características opostas à forma de viver das regiões litorâneas, consideradas espaços privilegiadas para a civilização, para a diversidade econômica e para o exercício da política”.1277 Diferente da imagem de fixidez que o sertão do período foi imaginado pela literatura e pela historiografia, estudos recentes, produzidos a partir de uma variada gama documental, têm nos remetido à fluidez das populações, aos constantes encontros e mudanças entre os habitantes de terras diferentes, de cujas motivações ainda pouco conhecemos, mas que de modo algum nos permite pensar esses espaços por seu isolamento e estabilidade, negligenciando a ideia de que suas fronteiras eram muito tênues. A partir do século XVIII, a Capitania do Siará Grande – como ficou conhecida na documentação colonial -, localizada no imenso sertão nordestino, região que vai do médio São Francisco até o rio Parnaíba, nos limites do Piauí e do Maranhão, configurou-se por uma população complexa e de relações múltiplas. 1278 Leia-se população como soma de indivíduos: homens, mulheres, crianças, velhos, livres, escravos, negros, brancos, pobres, ricos. A complexidade na formação dessa população tem na procedência um dos elementos fundamentais. Nas atas paroquiais da Ribeira do Jaguaribe, ficaram evidências da dinâmica sociocultural que caracterizou a formação de famílias nos sertões cearenses. No livro de casamentos número 01, da Freguesia de Russas, página 71, encontramos o registro de Antônio Luís, escravo do Alferes Antônio Alves, natural de Russas, que se casou com Maria, índia, natural da Villa Viçosa (Região da Ibiapaba, onde se localizou o maior aldeamento indígena do Ceará), filha natural de Antônia de Tal, às 11 horas, aos 9 de junho de 1874. Já no assento de casamento referente à mesma

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CERCEAU NETTO, 2010, “População e mestiçagem: a família entre mulatos, crioulos e mamelucos em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX).” pp. 166, p. 168 e 169 1275 Idemt, p. 166. 1276 A União Ibérica - unidade política que regeu a Península Ibérica, resultando da União dinástica entre as monarquias de Portugal e de Espanha, de 1580 a 1640 - promoveram a presença de europeus em solo tropical africano, em terras do mundo asiático e do novo mundo americano. Essa dilatação desencadeada pela Monarquia Católica, fomentou “o teatro de interações planetárias [...]” (GRUZINSKI, 2001, p, 180). 1277 IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012, p. 32 1278 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.62

401 ISSN 2358-4912 freguesia e ao mesmo livro, na página 95, encontramos também indícios de encontros entre pessoas de origens étnicas e espaciais distintas, quando aos 20 de fevereiro de 1787 “Joaó natural do Gentio de Angola e Maria criolla natural desta freguesia escravos de Antônio Soares da Silva morador nesta freguesia ella filha de Thereza natural do Gentio de Angola” uniram-se em matrimônio. A mobilidade socioeconômica e cultural no interior cearense foi impulsionada pelo movimento das boiadas e a implementação das fazendas na capitania, que, além de outras sertanejas, como Piauí, Paraíba e Rio Grande do Norte, foram colonizadas a partir do século XVII, haja vista o desenvolvimento da pecuária. Segundo Capistrano de Abreu, os centros de irradiação das boiadas foram principalmente Bahia e Pernambuco: “pode-se chamar pernambucanos os sertões de fora, desde a Paraíba até o Acaraú no Ceará; baianos os sertões de dentro, desde o Rio São Francisco até o Sudoeste do Maranhão”. A ocupação do Ceará pela pecuária se deu, portanto, por meio de duas rotas diferentes: “uma pela costa litorânea, saindo de Pernambuco em direção ao Maranhão e Pará e outra pelo interior vindo da Bahia e Pernambuco”. 1279 A partir de meados do século XVIII, o espaço físico cearense dividia-se em quatro ribeiras: “a Ribeira do Seará, que fica na Costa no meio da Capitania e que por ser a Capital dá o nome a Ribeira, do Acaracú, que fica ao Norte, a de Jaguarie ao Sul, e a do Icó no Certão ao Poente da Ribeira de Jaguaribe. 1280 A Ribeira do Jaguaribe configurou-se como o principal espaço de conquista e ocupação da Capitania do Siará Grande. A Barra Jaguaribana tornou-se um importante centro de entrada e saída de produtos, de pessoas e, por conseguinte, suas rotas internas e transatlânticas, tornaram-se importantes vetores de mestiçagens. Por um lado, “Aracati era ponto de produção e exportação da carne salgada e dos couros, provenientes das boiadas que desciam o rio Jaguaribe”, sobretudo da região do Cariri e Icó, com os quais fazia o comércio com os portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Por outro lado “servia como ponto de partida para o comércio de produtos manufaturados, muitos deles fabricados em Portugal ou na Inglaterra, conduzidos rio acima e vendidos no sertão pelos mascates”. 1281 Do porto dos barcos em Aracati “se expedião as mercadorias em carros puxados a bois, até o Icó, onde se fasia a distribuição pelos raros povoados da bacia do Jaguaribe, e alguma cousa, pouca, pelas extremas do Piauhi”. Dessa região (Ribeira do Acaraú), os negociantes, “ião por terra, conduzindo, cavallos e bois para as feiras de Pernambuco, e voltavão por mar com artigos para suas lojas”. Já “os negociantes da bacia do Jaguaribe fasião do mesmo modo a viagem a Pernambuco e a volta por mar, armasenando, no entanto, os seos produtos no Aracaty, a fim de seguirem para Pernambuco em sumacas, pacientemente esperando as monções”. 1282 Esse movimento de mão dupla nas atividades comerciais fez da Ribeira Jaguaribana entreposto comercial e de mobilidade social, tendo em vista que as estradas que lhe atravessavam interligavam-na às outras ribeiras, além de ligar a Capitania do Ceará às circunvizinhas e ao mundo atlântico. As embocaduras dos rios maiores eram ligadas por estradas por onde se davam os deslocamentos das boiadas, mercadorias e populações. Pela “estrada geral do Jaguaribe, despejavam-se os bois e as coiramas das ribeiras do Jaguaribe e do Icó, bem como dos Innhamuns, para o ancoradouro de Santa Cruz do Aracati”. 1283 A Estrada Geral do Jaguaribe formou-se com a proliferação das fazendas que margeavam o rio Jaguaribe, no início do século XVIII. “Partia da Vila do Aracati, atravessava a vila de Icó até subir o rio Salgado e suas nascentes”. 1284 Da Bacia do Jaguaribe também se chegava aos campos criatórios de Piauí, passando pelo rio Quixeramobim, através da Estrada Nova das Boiadas. Para além disso, outro escoadouro da produção piauiense no território cearense, foi a estrada das Boiadas que ligava a Capitania do Ceará a Pernambuco e ao Rio Grande do Norte. Como pontos integrantes da bacia do Jaguaribe, Aracati e Russas, no momento, eram integrados pela circunscrição eclesiástica, ou seja, a Vila de Aracati fazia parte da Freguezia de Nossa Senhora do Rozario das Russas. Russas por sua centralização na Estrada Geral do Jaguaribe transformou-se em V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Vol. 2º Série. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, p 172. MENEZES, José Cezar de. Idea da população da capitania de Pernambuco e das suas anexas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da biblioteca Nacional. 1923 (v. XL), p. 1. 1281 VIEIRA JR. A. Otaviano. Op. Cit. p. 61. 1282 BRÍGIDO, João. “A capitania do Ceará.” In: Revista do Instituto Histórico do Ceará - (RIC). Fortaleza, 1910, p. 173. 1283 GIRÃO, Raimundo. Op. Cit. p. 153. 1284 VIEIRA JR. A. Otaviano. Op. Cit. p. 33. 1280

402 ISSN 2358-4912 lugar de passagem das boiadas que vinham do Icó e rumavam para Aracati e, concomitantemente, num lugar de contato entre as vilas e lugarejos do sertão. Para além das ligações geográficas e econômicas entre Russas e Aracati, os trânsitos socioculturais também foram intensos. As Tabelas 1 e 2 nos aproximam um pouco mais das dinâmicas, dos contatos e dos encontros formados, através dos laços matrimoniais, entre pessoas de origens distantes e diversas nas terras da América portuguesa, mais precisamente nas Freguesias de Russas e Aracati, no Ceará. A constituição de famílias, assim como os trânsitos de mercadorias, configurou-se em importante elemento de mestiçagens.

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Tabela 1 - Regiões de procedências dos nubentes arrolados nos registros de casamentos da freguesia de Aracati 1766-1818 PROCEDÊNCIA NOIVO NOIVA Capitania do Ceará Aracati 516 653 Russas 18 32 Aquiraz 47 19 Fortaleza 5 1 Messejana 3 1 Aldeia de Almofala 1 Sobral 4 1 Quixeramobim 1 1 Icó 6 1 Crato 1 Outras capitanias Rio Grande 55 25 Paraíba 8 7 Pernambuco 39 14 Alagoas 4 Sergipe 1 Bahia 7 Outros continentes África 85 42 (Europa) Portugal 30 2 Ilha de São Tomé 1 Ilha da Madeira 2 Fonte: Livro de Casamentos 1 – Freguesia de Aracati, 1776 a 1783; Livro de Casamentos 2 – Freguesia de Aracati, 1780 a 1797; Livro de Casamentos 3 – Freguesia de Aracati, 1797 a 1807; Livro de Casamentos 4 – Freguesia de Aracati, 1807 a 1818.

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ISSN 2358-4912 Tabela 2 - Regiões de procedências dos nubentes arrolados nos registros de casamentos da freguesia de Russa 1775-1835 PROCEDÊNCIA NOIVO NOIVA Capitania do Ceará Russas 322 478 Aracati 21 3 Aquiraz 12 10 Fortaleza 5 2 Baturité 5 1 Granja 1 1 Sobral 2 Viçosa 1 1 Quixeramobim 13 1 Icó 19 2 Crato 19 2 Outras capitanias Rio Grande 15 9 Paraíba 9 3 Pernambuco 11 1 Bahia 2 Outros Continentes África 30 22 Europa (Portugal) 12 Fonte: Livro de Casamentos 1 – Freguesia de Russas, 1775 a 1795; Livro de Casamentos 2 – Freguesia de Russas, 1776 a 1835.

Os dados apontam que a maioria dos casais realizava matrimônios nas próprias freguesias de origens. Por outro lado, a maior inversão de procedências dos imigrados se fazia entre as Freguesias de Aracati e Russas, ou seja, noivos naturais de Aracati que moravam e casavam em Russas e vice-versa, fato que enaltece as ligações entre as duas freguesias. Durante o século XVIII e princípio do século XIX, as migrações se enfatizaram por todo interior da capitania, tendo, em seguida, como principal vetor de expansão Aquiraz, cabeça da comarca, caminhando para as Ribeiras do Ceará (Vila de Fortaleza), Acaraú (Sobral e Vila Viçosa), Jaguaribe (Quixeramobim) e Icó (Vilas de Icó e Crato). Pelos caminhos que interligavam essas ribeiras, por mar (via Aracati, Fortaleza, Granja) ou por terra, (pelas estradas da Capitania do Siará grande), o Ceará conectava-se às capitanias circunvizinhas de onde para cá vieram e aqui construíram famílias, segundo os registros de casamentos, nubentes procedentes do Rio Grande, Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Bahia e Alagoas. Por todas as vias de acesso e trânsitos internos e intercontinentais, vieram homens e mulheres procedentes da África e de Portugal que se juntaram matrimonialmente a povos e culturas que aqui já habitavam como, por exemplo, os índios de Vila Viçosa e da Aldeia de Almofala. Em relação à presença africana é patente, na documentação analisada, a alusão aos gentis da Angola, gentis da Guiné, Costa e Costa da Mina. É importante ressaltar que essas denominações sobre os africanos chegados ao Brasil, durante os séculos XVII e XVIII, de acordo com Parés, são externas ou metaétnicas, isto é: “utilizada para assinalar um conjunto de grupos étnicos relativamente vizinhos, com uma comunidade de traços linguísticos e culturais com certa estabilidade territorial, e no contexto de escravismo, embarcados nos mesmos portos.” 1285 Para o autor, “ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo nação, naquele período, foi utilizado pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais administrativos das feitorias européias da Costa da Mina para designar os diversos grupos populacionais autóctones.” 1286 1285

PARÉS, Luis Nicolau. Entre duas costas: nações, etnias, portos e tráfico. In: A Formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 23 1286 Idem, p. 26

404 ISSN 2358-4912 Assim, “as designações étnicas e de origem, comumente chamadas de nação”, no caso, por exemplo, dos registros paroquiais de Russas e Aracati, “são elementos que mais nos aproxima de uma associação dos indivíduos com seus locais de origem.” 1287 Registros genéricos como Angola podem designar africanos que passaram pelo porto de Luanda, Cassange, Uamba, etc. 1288 Desse modo, a partir dessa documentação onde as denominações são externas ou metaétnicas utilizadas “seja pelos africanos ou escravocratas europeus para designar uma pluralidade de grupos inicialmente heterogêneos”, sob a perspectiva da procedência, não teríamos como identificar denominações étnicas ou internas, “quando apropriadas por esses grupos e utilizadas como forma de auto-identificação” 1289, ou seja, de identidade. De acordo com Júnia Ferreira Furtado, os africanos genericamente chamados de minas ou escravos da Guiné eram oriundos da África ocidental. “O termo da Costa também aparece associado a estes escravos e geralmente refere-se a ‘Costa dos escravos, região africana que corresponde ao Benin e à Nigéria atuais, habitada por grupos sudanês’” 1290 Já os angolanos eram procedentes da África Central. Portanto, de toda África ocidental e Central, provinham os escravos para as Freguesias de Russas e Aracati. Trata-se, então, de regiões amplas e, como todo o continente africano, complexas, plurais, formadas por diversos povos e etnias. Com relação a Portugal, os registros de casamentos apontam naturalidades variadas: Coimbra, Porto, Braga, Lisboa, Algarves, entre outros. Segundo Ana Silva Volpi Scott1291, os emigrados portugueses rumo ao Brasil partiam de todas as regiões, mas era do norte português, mais precisamente das regiões de Entre Douro e Minho, que se deu a maior incidência dos emigrados. Para a autora:

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A emigração funcionava como uma eficiente via para se conseguir o equilíbrio entre o crescimento da população e disponibilidade de recursos, neste caso a terra. Numa região que estava sob a égide de um sistema de herança igualitário, era necessário de alguma forma preservar a propriedade, antes que ela atingisse parcelas tão mínimas que não garantissem a sobrevivência do grupo familiar. Mais do que isso representava uma válvula de escape para a população excedentária, principalmente a masculina, que via na saída da cada paterna uma possibilidade real de não ser obrigada a permanecer sob a autoridade e dependência do herdeiro favorecido com a transmissão 1292 da propriedade.

De fato, observando as Tabelas 1 e 2, acima, podemos perceber uma migração masculina em Russas e Aracati, em todos os segmentos de deslocamentos, seja dentro da própria capitania cearense, seja nas capitanias circunvizinhas, bem como em relação a Portugal e à África, muito mais acentuada do que a migração feminina. Para o caso dos africanos “isso confirma as tendências do tráfico transatlântico de comerciar homens adultos”. 1293 Já para o caso da menor proporção nas migrações femininas entre as ribeiras e vilas no Ceará, nas capitanias circunvizinhas, como também em relação a Portugal e à África, não nos parece absurdo inferir que se deve justamente a essa conjuntura econômica e, na medida em que possibilitou a vinda de significativo contingente populacional masculino externo, proporcionou certa fixação feminina, tendo na constituição familiar, no caso em análise através dos enlaces matrimoniais, elemento fundamental. A dinâmica populacional na Ribeira do Jaguaribe, em grande medida, foi impulsionada pela intensificação das atividades econômicas dos produtos da pecuária, carne de sol, solas, courama, e, em especial, do algodão. Esses produtos dinamizaram a produção, circulação de mercadorias e de pessoas. 1287

MAMIGONIAN, Beatriz. África no Brasil: mapa de uma área em expansão. Topói, n.9, v.5, 2004, p, 39 Idem, p. 40 1289 PARÉS, Luis Nicolau. Entre duas costas: nações, etnias, portos e tráfico. Op. Cit. pp. 25 e 26. 1290 FRUTADO, Júnia Ferreira. “Quem nasce, quem chega: o mundo dos escravos no Distrito Diamantino e no Arraial do Tejuco.” In: LIBBY, Douglas Cole e FURTADO, Júnia Ferreira. (orgs.) Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2006, p. 248 1291 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Familias, formas de união e reprodução social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2012, p. 58. 1292 , Idem, pp. 67 e 68. 1293 FRUTADO, Júnia Ferreira, Op. Cit. p. 249. 1288

405 ISSN 2358-4912 Nesse intercurso, deu-se a intensificação da entrada de escravos africanos que juntamente com a mão de obra livre satisfaziam às necessidades da pecuária, da lavoura e da cultura do algodão, essa em franco desenvolvimento, na passagem do século XVIII para o século XIX. A incrementação dos rendimentos, a produção e o comércio possibilitaram as idas e vindas de pessoas, de diferentes lugares, interessadas na sobrevivência, na produção de mercadorias, na fixação e na constituição familiar. Daí, e a título de conclusão, o processo de conformação socioeconômico da Capitania do Ceará proporcionou encontros, contatos cotidianos entre pessoas de diversas origens e de diferentes posicionamentos sociais. Como parte desses encontros, formaram-se famílias mestiças, que dos contatos com as mestiçagens biológicas e culturais profundamente marcadas pelo processo de povoamento em todo o Brasil elevaram os índices dos mestiços na capitania, a exemplo dos mulatos, pardos, cabras, caboclos, entre tantas outras designações presentes na documentação analisada. Os índices demográficos dessa população mestiça, com ênfase ainda nas “origens”, “cores” e condição social, no entanto, serão discutidos em outra oportunidade. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial. v. 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. BRÍGIDO, João. A capitania do Ceará. Revista do Instituto Histórico do Ceará - (RIC). Fortaleza, 1910. CERCEAU NETTO, Rangel. População e mestiçagem: a família entre mulatos, crioulos e mamelucos em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). In: PAIVA, Eduardo de França, IVO, Isnara Pereira, MARTINS, Ilton Cesar, (Org.). Escravidão, mestiçagens, população e identidades culturais. São Paulo: Annablume, 2010. GIRÃO, Raimundo. História Econômica do Ceará. 2. ed. Fortaleza: Programa Editorial Casa José de Alencar, 2000. FURTADO, Júnia Ferreira. Quem nasce, quem chega: o mundo dos escravos no Distrito Diamantino e no Arraial do Tejuco. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Org.) Trabalho livre, trabalho escravo. Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2006. GRUZINSKI, Serge . “Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories.” In: Revista Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001. IVO, Isnara Pereira. Trânsito externo e o Malogro da interiorização holandesa no Brasil. In: PAIVA, Eduardo França e IVO, Isnara Pereira (Org.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2008. MAMIGONIAN, Beatriz. África no Brasil: mapa de uma área em expansão. Topói, n.9, v.5, 2004. MENEZES, José Cezar de. Idea da população da capitania de Pernambuco e das suas anexas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da biblioteca Nacional. 1923 (v. XL). PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: UFMG, 2012. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. PARÉS, Luis Nicolau. Entre duas costas: nações, etnias, portos e tráfico. In: PARÉS, Luis Nicolau. A Formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. SCOTT, Ana Silvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX). São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2012. VIEIRA JR. A. Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.

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FAZER-SE ELITE: NOTAS SOBRE OS DONOS DO CRÉDITO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1808 – 1821) Elizabeth Santos de Souza1294 Depois do falecimento do cônjuge Manoel Brandão, a viúva Cândida de Jesus tivera que administrar os bens do casal. Negociar com credores do falecido marido, quitar as legítimas paternas no caso da existência de herdeiros e outros arranjos pessoais formam as possibilidades de motivos que impulsionaram Cândida de Jesus, por diversas vezes, sair da Rua de S. Joaquim, onde tinha residência, para procurar crédito com o italiano Alexandre Pancioni na Rua do Ouvidor. Em agosto de 1818, quando o somatório das quantias adquiridas perfazia o total de 1:600$000 (um conto e seiscentos mil réis), dona Cândida e o sr. Pancioni resolveram instituir um acordo público de reconhecimento da dívida. De posse do bilhete de distribuição1295, ambos direcionaram-se ao Primeiro Cartório da cidade do Rio de Janeiro para formalizar o interesse através da escritura pública de dívida1296. A viúva de Manoel Brandão não foi a única a circular pelas ruas da cidade em busca de credores para fornecer recursos monetários a fim de sanar as necessidades postas no cotidiano. O carpinteiro Joaquim Costa vivenciou situação similar ao desejar construir uma lancha e não possuir pecúlio suficiente para adquirir as matérias-primas primordiais para a execução do seu ofício. Morador na zona comercial da Prainha, em outubro de 1808, deslocou-se pelas ruas da região para ir ao encontro do comerciante Paulo Martins, de quem conseguira obter a quantia de 140$800 (cento e quarenta mil e oitocentos réis). Residente em área de grande movimentação de embarque e desembarque de produtos vindos em embarcações que aportavam no trapiche da região, tão logo a lancha construída por Joaquim Costa seria vendida, e parte do dinheiro obtido seria destinada ao pagamento do empréstimo feito junto ao Paulo Martins. Essas condições também foram diretamente reconhecidas e afirmadas pelo Primeiro Ofício de Notas da cidade1297. Certamente, esses episódios voltam a repetir-se de modo frequente na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1808 a 1821, sendo constantemente registrados em um dos quatro cartórios da região1298. Diferentemente de casos disjuntos, as ocorrências de Cândida e Joaquim estavam arraigadas no conjunto de práticas de pedir e emprestar crédito há muito espargido entre distintas sociedades no tempo e no espaço. No entanto, para o caso da cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX, essas relações creditícias encontram-se embasadas nas práticas culturais que privilegiam as hierarquias e as distinções sociais1299. Ciente das representações do mundo social que legitimavam as diferenças entre os indivíduos, este artigo propõe uma análise parcial sobre, exclusivamente, o perfil dos credores, responsáveis por injetar crédito no mercado através da concessão de moedas ou de prazos para algum reembolso financeiro. Desse modo, pode-se dizer que os credores eram os donos do crédito fluminense, constituindo-se como grupo privilegiado por ter condições econômicas favoráveis para a manutenção dos seus arranjos pessoais e para o fornecimento de empréstimos e financiamentos de bens de raiz ou móvel. 1294

Mestranda em História Social no Programa de Pós-Graduação em História/UFF, bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 1295 O bilhete de distribuição é um mecanismo de controle do fluxo de registro público nos cartórios da cidade. Os tabeliães de notas registravam somente as escrituras delegadas pelo distribuidor, caso contrário, estariam sujeitos às penalidades da lei. (Ordenações Filipinas, Livro I, título LXXIX) 1296 Escritura de dívida, livro 218, fl. 115 v, Primeiro Ofício de Notas do Rio de Janeiro (PONRJ) sob guarda do Arquivo Nacional. 1297 Escritura de dívida, livro 219, fl. 26 v, PONRJ. 1298 O objetivo de traçar o histórico dos Ofícios de Notas no Rio de Janeiro permitiu Deoclécio Macedo identificar que, na primeira metade do século XVII, quatro cartórios já estavam em funcionamento na cidade. A obra do autor, intitulada Tabeliães do Rio de Janeiro do 1º ao 4º Ofício de Notas: 1565 – 1822, merece cautela na sua análise porque determinadas informações estão embasadas em documentos não localizados. No entanto, na falta de pesquisas dedicadas ao tema, consideramos válido o trabalho de Deoclécio Macedo para uma discussão inicial. 1299 Segundo Nuno Monteiro (2005), o ethos nobiliárquico nos trópicos passou por limitações não expressivas em Portugal, isto permitiu outra configuração para a nobreza colonial - sintetizada por ser o retrato das trajetórias e estratégias dos vassalos no serviço à Coroa, responsável por distribuir as mercês de reconhecimento da honra.

407 ISSN 2358-4912 Isto significa que os credores estavam inseridos numa pequena parcela da sociedade de Antigo Regime nos trópicos. Parcela esta que alcançava com graça e benevolência algum necessitado de confiança e de recurso financeiro. Todavia, nem todos os homens e mulheres desfrutavam do mesmo prestígio de credor na urbe carioca, pois alguns perfis sócioprofissionais tinham maior reputação no que tange à capacidade de conceder crédito. Então, a reputação e a expressividade do valor emprestado remodelavam a notoriedade da elite desse mercado. Para conhecer a nata proeminente da hierarquia de credores do período joanino na corte, temos o universo documental de 863 escrituras de vendas, dívidas e quitações catalogadas do primeiro cartório do Rio de Janeiro1300. Os livros de notas dos tabeliães que outrora registraram o cotidiano da sociedade fluminense, hoje funcionam como memórias de uma época ao permitirem elencar diversas informações. Nas linhas das escrituras públicas notam-se as distinções sociais que configuravam fragmentos da hierarquia do mercado carioca. Objetivando preservar os títulos dados pelos indivíduos durante as idas ao cartório, esse trabalho pressupõe ampliar os atributos dos homens e mulheres desse mercado e compreender o fazer-se elite creditícia dentro da condição local fluminense. De imediato, os dados de pesquisa permitem averiguar a diversidade do perfil dos credores que circulavam no mercado carioca. Existia uma constante difusão das estruturas econômicas sobre os segmentos da vida humana, de modo que todos manejam as técnicas do crédito, seja o mais abastado ou o mais desprovido de recursos monetários (BRAUDEL, 1995). V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 1: Hierarquia do crédito, em forma escalonada (1808 – 1821)

Vivem de negócio, ONM, negociantes, viúvas e militares

Profissionais liberais e mestres de ofícios, militares com hábito de ordem militar, religiosos, vivem de bens e militares com negócio Fonte: Livros de notas do Primeiro Ofício Cartorial do Rio de Janeiro

O quadro 1 demonstra a diversidade de títulos ligados aos credores locais, são negociantes, nobilitados com hábito militar, integrantes de milícias, forros, mestres de ofícios, mulheres divorciadas e outros atores históricos que estavam inseridos em clivagens sociais distintas. Evidentemente, o tipo da documentação consultada inibe recorrência de alguns perfis de indivíduos, visto que a burocracia para o registro de dívida, venda e quitação gerava custo que o outorgado e outorgante nem sempre estavam dispostos a pagar. Sabe-se bem, que a formalização das práticas de crédito englobava uma simbiose entre a lei costumeira e a lei jurídica, o que faz inteligível a recorrência ao recurso da retórica e da fama para a consolidação das vontades pré-estabelecidas. De modo que, o valor para o registro da escritura pública não exercia exclusividade na escolha da alternativa entre publicitar ou não um vínculo do âmbito particular.

1300

Esta documentação encontra-se sob guarda do Arquivo Nacional.

408 ISSN 2358-4912 Assim sendo, considera-se que a escritura pública não retrata a totalidade da sociedade fluminense, mas funciona como lente para tornar legível uma parcela da interação entre os indivíduos. A vivência na sociedade requeria o manejo da técnica do crédito, mas nem todas as estratégias e vínculos encontraram espaços nos livros de memórias dos tabeliães. Portanto, deve-se ressaltar que a composição hierárquica do crédito no quadro 1 considerou os homens e mulheres que movimentaram quantias acima de 6$000 (seis mil réis) - este valor de corte representa a menor quantia registrada entre as escrituras mapeadas. De acordo com os registros cartoriais, identifica-se que a elite fluminense nem sempre foi responsável por registrar altas quantias de réis nos livros de notas. Pelo contrário, esta circula entre montantes variados, que muito tem relação com o negócio efetuado. Ora portando-se como credora, ora como mutuário, como é o caso do relato a seguir. Deixando a vila de S. João Del Rei, [Freitas] José de Carmo direcionou-se ao primeiro cartório da cidade do Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1814, para receber a dívida de 6$000 que seu falecido pai, José de Brito Ribeiro, tinha em crédito com o coronel Brás Carneiro Leão1301. Na época, o proeminente negociante fluminense já tinha falecido (1808), deixando aos herdeiros a reponsabilidade legal para prosseguir com as negociações paternas. Por este motivo, o testamenteiro do devedor, Agostinho Nunes Martes recebeu a incumbência de liquidar o débito do falecido coronel do primeiro regimento de milícias do Rio de Janeiro, como de fato o fez.1302 Eis a questão, o grupo social em destaque na urbe carioca no início do século XIX é o mesmo grupo que encontra-se no topo da hierarquia do fornecimento de crédito na cidade? Isto porque, não necessariamente, a elite fluminense forjada pelas questões políticas e culturais precisa somar o maior valor de injeção de crédito registrado. Dito de outra forma, um expressivo número de indivíduos de segmentos não privilegiados da sociedade pode gerar quantia em destaque na hierarquia do crédito. Sem dúvida, o quantitativo de homens e mulheres que integravam os grupos sociais aparentes nas práticas creditícias também tem muito a revelar sobre a qualidade dessa elite. Assim sendo, vamos ao quadro 2 que relaciona o número de participante e seu valor de crédito total investido em negociações no Rio de Janeiro. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 2: Perfil sócioprofissional do credor e seu valor total transacionado nas vendas, dívidas e quitações (1808 – 1821) NC % VCT 27 3,1 30:457$289 Funcionários Públicos Instituição 14 1,6 33:970$866 Ilegível 1 0,1 963$000 61 7,1 99:482$828 Militares Militares com hábitos das Ordens Militares 18 2,1 52:147$089 21 2,4 40:187$021 Militares com negócio na Praça Mulheres solteiras, viúvas, divorciadas, casadas e sem IEC 99 11,5 153:122$512 44 5,1 117:554$617 Negociante Pretos forros/livres 4 0,4 585$600 53 6,1 63:140$569 Profissionais Liberais e mestre de ofício Religiosos 42 4,9 48:978$648 Titulados com hábitos das Ordens Militares 10 1,2 34:974$440 30 3,5 23:721$374 Vivem de lavoura Vivem de negócio 204 23,6 358:858$979 29 3,4 45:367$958 Vivem de seus bens Não Mencionado 206 23,9 275:366$050 863 100 --TOTAL 1301

Brás Carneiro Leão era um dos mais notáveis negociantes da praça fluminense, seu reconhecimento e prestígio eram sabidos através da sua trajetória promissora, que englobava influência na Câmara da cidade, a habilitação à Ordem de Cristo e ascensão aos postos de milícias da cidade. Sobre a trajetória de vida de Brás Carneiro Leão ver PORTO, Maria Beatriz Gomes Bellens. “Estratégias de ascensão social e os homens bons: os Carneiro Leão e Velho da Silva” In: Nobres poderes: a atuação do Senado da Câmara Fluminense na economia e os privilégios e deveres dos Homens Bons (1790 – 1807). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2011. 1302 Escritura de quitação, PONRJ, livro 210, f. 96.

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ISSN 2358-4912 Fonte: Fonte: Livros 200, 201, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 126, 127, 218, 219, 220, 221, 222, 223 e 224 do Primeiro Ofício de Notas do Rio de Janeiro. NC corresponde ao número de credores. VCT corresponde ao valor de crédito transacionado e IEC representa identificação do estado civil

No tocante ao quadro 1 e 2, verifica-se que a hierarquia de fornecedores de crédito na cidade do Rio de Janeiro pode ser compreendida através de quatro escalas distintas mediante o valor geral do empréstimo por agente, que varia de 23:721$374 (vinte três contos, setecentos e vinte um mil e trezentos e setenta e quatro réis) a 358:858$979 (trezentos e cinquenta e oito contos, oitocentos e cinquenta e oito mil e novecentos e setenta e nove réis). Nesta configuração, somente cinco nomenclaturas aparecem no topo da hierarquia escalonada do crédito, são elas por ordem decrescente de importância no mercado: “vivem de negócio”, “ONM”, “negociantes”, “viúvas” e “militares”. Observa-se que os indivíduos que atuavam nas milícias da cidade com títulos militares foram representados nas duas últimas escalas da hierarquia, isto é, o somatório dos três perfis demonstrados (militar, militar com hábito de Ordem Militar ou militar com negócio na praça) levaria ao remodelamento da estrutura hierárquica. Todavia, a opção da composição selecionada favoreceu o acatamento das autodefinições expostas nas escrituras cartoriais. Preservar as ocupações ditas pelos indivíduos foi o recurso metodológico para compreender o prestígio de cada título no contexto de identificação do credor. Sabe-se que o perfil da elite fluminense no início do século XIX difere-se daquele dos primeiros anos de colonização portuguesa na América, cuja tendência era a expressividade representativa das famílias vinculadas aos conquistadores, as quais investiam nas atividades agrícolas através da lógica de acumulação senhorial. No interior do espaço colonial, a produção mercantil cresceu paulatinamente ao lado das plantations monocultoras, escravistas e exportadoras. No início do século XVIII, quando o porto mercante do Rio de Janeiro iniciou um percurso de crescente destaque perante o Império ultramarino português, a linha tênue que separava os senhores de engenhos e os homens das atividades mercantis aparentou maior definição ao indigitar a esfera comercial como a responsável pelo aquecimento das altas atividades econômicas. Ao abordar a história do Rio de Janeiro, no que tange as recentes pesquisas sobre a prática mercantil, os trabalhos de João Fragoso (1992), Manolo Florentino (1995) e Antonio Jucá de Sampaio (2003) exercem influência por sistematizar especificamente a atuação dos negociantes de grosso trato seja pela atividade do crédito, do tráfico de “mercadorias vivas” pelo Atlântico ou através das acumulações com a concatenação entre as atividades vinculadas ao mercado interno e ao mercado internacional1303. E partir das pesquisas empíricas executadas pelos autores, tem-se a perspectiva de destacar os negociantes de grosso trato e, de um modo geral, todas as práticas mercantis como principais reguladores da economia colonial no primórdio do Oitocentos. Em relação à hierarquia escalonada, percebe-se que alguns agentes do topo hierárquico eram envolvidos diretamente com a prática do comércio1304, como os negociantes e os que vivem de negócio. Essas duas categorias formavam um pouco mais de 28% dos credores e foram responsáveis respectivamente pelo giro de capital no valor de 117:554$617 (cento e dezessete contos, quinhentos e cinqüenta e quatro mil e seiscentos e dezessete réis) e 358:858$979 (trezentos e cinqüenta e oito contos, oitocentos e cinqüenta e oito mil e novecentos e setenta e nove réis). Tais ocupações

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Os livros “Homens de grossa aventura”, “Em Costas Negras” e “Na encruzilhada do império” referem-se às autorias respectivas de João Fragoso, Manolo Florentino e Antônio Jucá de Sampaio. Evidentemente, nota-se o prestígio dessas obras devido às características citadas, que enfatizam a análise da formação e consolidação da imponente elite mercantil no espaço fluminense. Contudo, essas abordagens foram permitidas por causa dos avanços na análise historiográfica sobre as atividades econômicas nos espaços coloniais. De forma que, o destaque dado às obras inicialmente descritas carece ser aferido no contexto de redefinição do papel das colônias a partir da década de 1950. 1304 Em consonância com o dicionário de Rafael Bluteau (1728), comercio significa “a troca das producções naturaes, ou da arte, por outras da mesma natureza, ou por dinheiro”.

410 ISSN 2358-4912 profissionais referem-se ao envolvimento com atividades que proporcionavam lucro, de acordo com o sucesso das negociações.1305 Indubitavelmente, as várias designações profissionais que aparecem para referendar os envolvidos com as práticas comerciais querem demarcar o espaço de poder e prestígio no mundo mercantil. Tal inferência pode ser validade através das definições do Diccionario do Commercio, de Alberto Jacqueri de Sales (1723), para os termos nobreza e mercador. O mercador seria o comerciante com lojas abertas e vendas a retalho, que tinha técnicas para o comércio muito inferiores a ciência utilizada pelos homens de negócios. Por outro lado, esses últimos compartilhavam de ferramentas complexas para a manutenção dos negócios, o que permitia a seguinte declaração: “[...] o Commercio emgrosso não se considera como imcompativel como a Nobreza herdada [...], mas antes pello contario sera meio proprio para se alcançar a Nobreza adquirida”1306. Desse modo, assumir determinada titulação no mundo do comércio é tracejar os limites numa sociedade hierárquica. Excetuando os enredados claramente com a prática mercantil, os homens com ocupação não mencionada também desempenharam alto papel na concessão de crédito na cidade, sendo 23,9 % dos credores, chegaram a fornecer o montante de 275:366$050 (duzentos e setenta e cinco contos, trezentos e sessenta e seis mil e cinqüenta réis). Em relação a esses agentes, não pode-se fazer muitas inferências por causa da ausência de informações. Todavia, a tipologia das relações estabelecidas por esses homens supõe a diversidade de suas formas de acumulação, pois vendiam terras, bergantins, navios, lojas de fazendas, sítios, etc. No tocante à hierarquia escalonada, também vale ressaltar aqui o papel que as mulheres usufruíam enquanto credoras neste contexto da urbe carioca. Viúvas, solteiras, casadas ou divorciadas, todas encontraram espaços para circular como credoras ou devedoras. O destaque é dado às viúvas, que exclusivamente pertenceram ao topo da hierarquia dos donos do crédito na cidade (quadro 1). Recorrentemente, a lógica de submissão feminina é evidenciada nos estudos da sociedade patriarcal, que caracterizou o Brasil colonial. Pesquisas empíricas sobre a situação da mulher na economia são dificultadas pela omissão dos documentos. Embora, saiba-se que num agregado doméstico, na agricultura, no artesanato, no setor de serviços ou no comércio as mulheres faziam-se presentes. E nas linhas dos livros cartoriais é possível elencar algumas condições femininas que apartavam do legado materno e matrimonial. A compreensão da condição de mulher na sociedade colonial deve ser vista através de duas instituições, da Igreja e do Estado, que reafirmavam sua submissão ao gênero masculino.1307 A princípio tuteladas pelos pais e, posteriormente, pelos esposos. Todavia, o caminho de independência foi trilhado por mulheres que obtiveram sucesso e não ficaram à margem da sociedade, como relatam as escrituras públicas. Não foram muitas, mas 65 viúvas do universo de 863 agentes destacaram-se por permitir o giro de capital no valor de 116:922$158 (cento e dezesseis contos, novecentos e vinte dois mil e cento e cinqüenta e oito réis), ficando entre os cinco maiores credores fluminenses. Decerto, esse destaque ao gênero feminino está vinculado com o status civil anterior à viuvez, visto que o saldo de um bom casamento permitia que o falecimento do cônjuge não deixasse a mulher desamparada financeiramente. Tendo possibilidade de ter cabedal para atuar como credora ou para usufruir desse título como herança matrimonial. Seja qual for o motivo, o fato é que as viúvas formam um caso intrigante quando relacionamos o topo da hierarquia do quadro 1 com o percentual de integrantes de cada categoria através do quadro 2. Análise mais detalhada sobre essas viúvas cariocas e seus falecidos cônjuges precisa ser realizada para aclarar a complexidade da composição hierarquia no mercado de crédito urbano, desafio que ficará para outro momento. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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No objetivo de mapear o perfil sócioprofissional dos que atuavam nas redes comerciais da América portuguesa, é possível averiguar ampla gama de títulos utilizados pelos indivíduos (negociante da praça, mercador, vivem de negócio, com loja de fazenda seca, com loja de secos e molhados, comerciante, vive de sua agencia e outros) para delimitar sua ocupação. Contudo, compreende-se que o background de todas essas atividades é a compra de produções da terra, de indústria ou de outra natureza para repassar por grosso ou a retalho. 1306 Definição de nobreza, segundo o dicionário de Alberto Sales. 1307 Para ampliar a discussão leia: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: USP, 1984. DEL PRIORE, M. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. 2º Ed. São Paulo: UNESP, 2009.

411 ISSN 2358-4912 Por fim, o último grupo com maior destaque no topo da hierarquia trata-se dos militares. Segundo Arno Wehling e Maria José Wehling (2008), a organização militar no império português era composta pelo exército, milícias e ordenanças, tendo cada categoria características específicas que fazem conjecturar que os títulos de serviços militares que apareceram nas escrituras referem-se às milícias da cidade, pois estas não tinham por regra ser compostas pela nobreza aristocrática. Dessa forma, os vários representantes dos cargos do Regimento de Milícias1308 corresponderam ao montante de crédito no valor de 99:482$828 (noventa e nove contos e quatrocentos e oitenta e dois mil e oitocentos e vinte oito réis). No entanto, o quadro 1 e 2 permitem notar que três diferentes categorias de milicianos perfazem os agentes credores, seja com hábito da Ordem de Cristo ou vínculo direto com as práticas mercantis. Por certo, nem todos os apontamentos podem ser realizados e ampliados aqui devido os limites deste artigo, mas reservo as seguintes linhas para elaborar uma síntese sobre a argumentação principal. O ethos da camada privilegiada do Brasil colônia possibilitou que o perfil de liderança mercantil exercesse prestígio entre os homens da sociedade no início do Oitocentos. Assim sendo, verifica-se que os donos do crédito no Rio de Janeiro tinha um envolvimento direto ou indireto com o comércio. De modo que, o cultivo da boa reputação das elites mercantis permitia a reconstituição das hierarquias sociais. No entanto, para além da supremacia do gênero masculino ao falar das transações creditícias, a participação das mulheres, com ênfase nas viúvas, também demarcava uma postura entre os atores sociais desse contexto – vertente que carece ainda de novas pesquisas. Em suma, as informações catalogadas das escrituras apontam para a difusão do crédito na urbe carioca, distintos indivíduos tinham a oportunidade de atuar como credores. Embora, nem todos ocupassem o topo da hierarquia, que era destinado a um seleto grupo. Todavia, neste grupo, eram os negociantes, as viúvas e os militares que destacavam-se por causa do seu pequeno percentual representativo no universo de credores e do investimento expressivo de valor em réis no mercado de crédito urbano. Esses seriam os verdadeiros “donos do crédito” e elites consolidadas na sociedade fluminense entre os anos de 1808 a 1821. Isto é, a todos convém o uso da técnica do crédito, mas o prestígio e alta fama alcançam somente alguns indivíduos.

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Referências BLUTEAU, R. Diccionario da Língua portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1728. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV – XVIII. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. Vol 1. São Paulo: Martins Fontes, 1995. DEL PRIORE, M. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. 2º Ed. São Paulo: UNESP, 2009. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Uma história do tráfico Atlântico de Escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790 – 1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. MACEDO, Deoclécio Leite de. Tabeliães do Rio de Janeiro: do 1º ao 4º Ofício de Notas (1565 – 1822). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. MONTEIRO, Nuno Gonçalves. “O ‘Ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social”. In: Almanack Braziliense, nº 2, 2005, pp. 4 – 20. PORTO, Maria Beatriz Gomes Bellens. “Estratégias de ascensão social e os homens bons: os Carneiro Leão e Velho da Silva” In: Nobres poderes: a atuação do Senado da Câmara Fluminense na economia e os privilégios e deveres dos Homens Bons (1790 – 1807). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2011. SALES, Alberto Jacqueri de. Diccionario do commercio. [Manuscrito]. S.l.: S.n, 1723, 4 vols. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. 1308

Sobre a organização e a composição de Milícias veja o alvará de 20 de dezembro de 1808, Regulamento de Milícias.

412 ISSN 2358-4912 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: USP, 1984. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. “Exército, milícias e ordenanças na Corte Joanina: permanências e modificações” In: Revista DaCultura. Ano VIII, n. 14, 2008, p. 26 – 32.

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EVERYTHING IS CONTRABAND. A READING OF THE DUTCH GAZETTES DURING THE WAR OF THE SPANISH SUCCESSION (1700-1715). TUDO É CONTRABANDO. UMA LEITURA DAS GAZETTAS HOLANDEZAS DURANTE A GUERRA DA SUCCESSÃO ESPANHOLA (1700-1715) Ernst Pijning1309 “The French King felt very dissatisfied after reading the articles of the League between this Crown, the Emperor, England and the Gentlemen Estates General (which were sent to him by one of his friends here). This was especially after reading the article where Portugal was obligated never to accept a French Prince on a Spanish Throne, and His Majesty was said to have burst out in the following words ‘I shall make that ungrateful King feel my hands.’ ”1310 Oprechte Haerlemse Courant, August 28, 1703. Louis XIV’s war mongering statements after the Portuguese king’s entry in the War of the Spanish Succession on the Austrian, English and Dutch side were anticipating a resolute attack on the Portuguese national territory. The Sun king had reason to be upset, because just two years before the French, Spanish and Portuguese Crowns had concluded a treaty of defensive and offensive alliance.1311 At first sight, the Most Christian king’s reaction to the switching of alliances may seem to have little to do with illegal commerce in Brazil, yet everything is related to contraband trade. The choice of alliances was closely related to economic activities in Portugal and its overseas territories. Moreover, wars were a determinant of national identity, and hence the ability to wage wars and defend one’s territory and property were closely related to the power of a state to regulate commercial activities. Illegal commerce can only exist because it is considered to be against the law, and laws mean the establishment of authority. The basis of Portuguese royal authority, and thus future commercial regulations, were born out of the circumstances of this war. Following the day-to-day news during the war provides a sense of the events that led to commercial restrictions between Portugal and Brazil. This analysis is mainly based on contemporary Dutch newspapers, what Michel Morineau titled “Incroyables Gazettes.”1312 Dutch gazettes were generally bi-weekly publications sold to inform their readers about national and international affairs, mostly related to commercial notices, diplomatic events, politics, the condition and whereabouts of the princes, local events, and wars. Often they were based on diplomatic dispatches (sometimes literally transcribed), commercial correspondence, as well as gazettes in foreign countries. The gazettes were read both in the Netherlands and abroad, and should not be taken at face value. As they were printed with the consent of the States of Holland, they

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Minot State University. “Den Franssen Coning, de Artikulen der Ligue tusschen dese Kroon, den Keyser, Engelant en de Heeren Staten Generael gemaekt (die hem door een siner Vrunden van hier toegesonden is) na lessened, heeft sig daer over seer misnoegt getoont, voor namentlyck in her articul, waerin Portugael sig obligeert, noyt te gedogen, dat eene Frans Prins in Spange op de Troon sal komen, waer op die Majesteyt in dese Woorden soude zijn uytgebersten: Ick sal dien ondanckbaren koning van mijne Handen doen gevoelen.” For information on French language newspapers see: http://gazetier-universel.gazettes18e.fr/ In this paper I have used Dutch newspapers (mostly in Dutch but some in French) digitalized by the Koninklijke Bibliotheek (Dutch National Library); they are in open access at http://kranten.delpher.nl/ 1311 The first public mention of this was on April 2, 1701. Parijs de 8 April. “ontfing den Coning den 2 desen een Expresse van Mons. Rouillée, sijn Ambassadeur in Portugael, van Lissabon, met tyding, gelijck men naderhant gedevulgeert heeft, dat d’Of en Defensive Alliantie tusschen Vranckrijck, Spange en Portugael gesloten is.” Extraordinare Haerlemse Courant, April 14, 1701. 1312 For a discussion of the usage of the gazettes and diplomatic correspondence see Michel Morineau, Incroyables Gazettes et Fabuleaux Métaux. Les retours des trésors américains d’aprês les gazettes hollandaises (XVIe-XVIIIe siècles), (Cambridge: Cambridge University Press and Paris: Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1983), 656661. 1310

414 ISSN 2358-4912 were certain not to upset the politicians.1313 Consequently, the gazettes, need to be read as a source of information pertaining to what politicians wanted the well-informed audience to know. They reflect the local mood and fears, and sometimes wishful thinking, of their authors and consumers. The day-to-day content of the gazettes during the War of the Spanish Succession reflected the capacity of the Crown to govern and defend the national integrity of the Portuguese territories. They were therefore closely related to the right to regulate commerce and the right to tax. The French and Spanish government’s challenge to Portuguese territorial integrity forced the Braganza dynasty to defend itself with the aid of other nations’ governments. At first the Portuguese government aligned itself with the Bourbon administrations in France and Spain by means of its economic benefit to each other nations’ merchants.1314 Thus eventually the defensive and offensive treaties concluded with the Austrian, Dutch and English representatives were followed up with commercial treaties with England (1703) and the Netherlands (1705) that facilitated their merchants’ participation in the territories under the Portuguese king’s administration.1315 The treaties were again revised during another war in which the survival of the dynasty was at stake. In 1807 a combined French and Spanish invasion forced the Portuguese sovereign to move to Brazil and leave the Portuguese defenses in the British government’s hands leading to new commercial treaties and regulations that changed the nature of illegal trade especially concerning British nationals.1316 The War of the Spanish Succession restricted foreign nationals’ access to Portuguese and Brazilian markets. During the war, foreign nationals were either expelled or forced to integrate, while their property was confiscated. After the conclusion of the Portuguese treaty with France and Spain, this became a serious challenge, and could lead to painful consequences. In the period leading up to the treaty and the war, Portuguese-based foreign merchants started to sell off their goods.1317 After the alliance was made public and rumors of its ratification spread, the Portuguese king and his ministers made clear to the English and Dutch envoys that the state of Portugal would stay neutral in case of war and that all Dutch and English merchants were encouraged to stay. More precisely, the Portuguese king stated that if the French and the Spanish regimes started the war, the Portuguese state would remain neutral. If the Dutch and English governments started the war, all Portuguese harbors would be closed to their war vessels.1318 As for Dutch and English nationals in Portugal, the Portuguese king reassured that the commercial treaties with their nations would be maintained. Indeed, the Portuguese intention was not only to keep this trade but even extend it.1319 Commerce and especially overseas trade became crucial to the changing of alliances lest it would challenge king Pedro’s authority. At least according to the Dutch gazettes, the public in the port city of Lisbon was not amused with the Bourbon alliance. Even though the content of the treaty was kept in secret, “it looked like the public was not very satisfied, for the fear that the commerce of this V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Otto Lankhorst pointed out that newspapers could be banned or made to pay a penalty when they published against the will of the local, provincial or federal authorities, “Newspapers in the Netherlands in the Seventeenth Century,” in Brendan Dooley and Sabrina A. Baron eds., The Politics of Information in Early Modern Europe, (London and New York: Routledge, 2001) 156. 1314 Parijs den 15 July. “Het Tractaet tusschen Vrankrijck, Spange en Portugael is voor 20 Jaren gesloten.” Oprechte Haerlemse Courant, July 21, 1701. 1315 For the Dutch treaty see A.D. Francis, The Methuens and Portugal, 1691-1709, (Cambridge: Cambridge University Press, 1966) 208-211. However, the treaty was never fully ratified. The best recent publication on the Commercial treaty is José Luís Cardoso et al eds., O Tratado de Methuen (1703). Diplomacia, Guerra Política e Economia, (Lisbon: Livros Horizonte, 2003). 1316 For a discussion of British political thought towards Brazil see José Jobson de Andrade Arruda, Uma Colônia entre dois Impérios. A Abertura dos Portos Brasileiros, 1800-1808, (Baurú, SP: Editora EDUSC, 2008). 1317 De Lisbonne le 29 Mars. “Les bruits de guerre font que plusieurs marchants Etrangers commencent à disposer de leurs effects,” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, April 28, 1701. 1318 Lissabon den 5 July. “indien het tot een Rupture komt, het zy of Spaanse en Vrankryck d’eerste aggresseurs zijn, wy Neutraal sullen blijven, en dat indien Engelant en Hollant eerst den Oorlog tegen Spange en Vrankryk declareren de Portugeese Havens voor hare Oorlogschepen gesloten sullen zijn.” Oprechte Haerlemse Courant, August 2, 1701. 1319 Lissabon den 5 July. ”tot geen nadeel strect van d’Alliantie, die hy met Engelant en Hollant heeft, noch oock van de Commercie, die sy op Portugael drijven, en dat hy van intentie, deselve niet alleen te continueren en mainteneren; maer oock meerder uyt te breyden.” Oprechte Haerlemse Courant, August 2, 1701.

415 ISSN 2358-4912 kingdom will suffer.”1320 Another newspaper described this more pointedly with a typical Portuguese public form of discontent “the population of this city and all the realm continue to murmur about this Treaty, as they are afraid that it is against the Nation’s interests and will be prejudicial to its commerce.”1321 Yet it was sheer the fear of the English and Dutch forces, and for possible loss of trade that turned the negotiations around. This fear became real on September 27, when a combined English and Dutch war fleet of about 60 war vessels apperently arrived of Lisbon. Even two weeks earlier when the fleet was first announced, the city of Lisbon panicked. In light of these fears, the French envoy promised the Portuguese First Minister that a French fleet of 16 vessels would arrive soon to protect the city.1322 Now with the seeming arrival of the English and Dutch fleeta new wave of panic flew through the city. With alarms sounding, the king called together his privy council. He personally encouraged 20000+ troops to patrol along the river banks all through the night, with his two sons riding on horse-back to lend support. Only the next day did the troops and militia under the leader ship of the Duke of Cadaval learn that the fleet was actually from Denmark and Hamburg.1323 Fortunately, the promised French help was on the way, and before the combined English Dutch fleet arrived the French vessels were there to defend the Portuguese Capital. The Portuguese court was delighted, and the king felt reassured.1324 With Lisbon no longer vulnerable, the combined English-Dutch fleet stayed away from the port, instead sending a single English war vessel with a letter for the king. In response, the king replied that he would uphold the French and Spanish treaty, but assured the English and Dutch commanders that no direct action would be forthcoming against the two countries, except that no war vessels would be allowed in Portuguese ports.1325 With that, the fleet left, including the French war vessels, leaving much for the Portuguese king to think about. Ironically, the French’s presence in Lisbon had turned the Portuguese public even more against them as English and Dutch merchants were withdrawing their funds and leaving the country, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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De Lisbonne le 19 Juillet. “il paroît que le public n’est pas trop satisfait, par la crainte qu’il a que le Commerce du Royaume n’en souffre.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, August 18, 1701. 1321 De Lisbonne le 19 Juillet. “Cependent le Peuples de céte Ville & de tout le Royaume continuent de murmurer de ce Traité, de peur qu’il ne soit contraire aux interrets de la Nation & prejudicable à son Commerce.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, August 18, 1701. 1322 De Lisbonne le 13 Septembre. “Monsr. Rouillé Ambassadeur de France en notifiant de puis peu à la Cour, que le Comte de Château-Renaud estoit parti de Brest avec 16 Vaisseaux de Guerre François pour venir joinder ceux du Roy afin de veiller ensemble à la seureté & principalement de céte ville, assura aussi le Duc de Cadaval premier Ministre d’Etat, que la flotte combinée d’Anglettre & Hollande s’estoit mise en mere pour nous bombarder, & qu’elle estoit compose d’environ 60 Navires de Guerre, outre plusieurs Brulots & Galiotes à bombes.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, October 13, 1701. 1323 De Lisbonne le 13 Septembre. “La nuit suivante, les Gouverneurs des Châteaux donnerent avis par le signal de quelques coups de Canon, qu’il paroissoit une Flotte sur la Côte, & que même elle en étoit fort proche. Cela causa dabord ici un grande consternation. Le Roy fit assembler son Conseil privé; Et après une courte deliberation, on commencea par ordre de Sa Majesté, à sonner la grosse Cloche d’allarme, & a battre la caisse pour toute la Ville, afin que tout ce qu’il y avoit de troupe reglée & de milices, prit les armes & se mit sur pié; Ce qui dura depuis une heure jusqu’au lendemain à la pointe du jour. Le Duc de Cadaval general de la Cavallarie & plusieurs autres haut Officiers, monterent alors à Cheval & marcharent le long de la Riviere jusqu’auprés de Cascais avec leur monde, ensorte qu’a aube du jour il y eut plus de 20000 Hommes de troupes reglées ou de milices postées sur le Port & aux deux bords de la Riviere. Le Roy alla aussi jusques à Alcantara avec les deux Princes ses premiers Enfans, & fut 4 heures durant à Cheval, pour mieux animer chacun à defender le Poste qui lui avoit esté confié; Aprés qu’on fut mis dans un bon posture, en égard peu de tems qu’on avoit eu pour cela, on attendoit à voir entre dans la Riviere la Flotte en question; Mais sur le 10 heures du Matin, on revint de céte tereur de panique, par l’avis qu’on eut que c’estoit un Convoy de Vaisseaux Danois et Hambourgeois qui parressouit sur la Côte.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, October 13, 1701. 1324 De Lisbonne le 27 Septembre. “cela causa une grande joye à la Court & rassura le Roy ensorte.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, October 27, 1701. 1325 De Lisbonne le 27 Septembre. “que Sa Majesté vouloit s’en tenir au Traité conclu avec la France & l’Espagne; Que dans ce Traité il n’y avoit rien contre l’Angleterre et la’Hollande” (…) “Et que cependent Sa Majesté declaroit qu’en case de rupture entre les deux Roys unis & l’Angleterre & la Hollande, Elle soustiroit point qu’aucuns Vaisseaux de Guerre Anglois ou Hollandois vinrent mouiller dans quelque Havre de son Royaume.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, October 27, 1701.

416 ISSN 2358-4912 unsettling the city’s economy. The Portuguese court also became less than pleased with the French commander, even after giving him a wonderful fare well gift. The problem was that Louis XIV wanted the Portuguese king to commit completely to the Bourbon cause. First he asked that the Portuguese king prohibit any trade in Dutch and English goods, and second he asked that Portuguese war vessels join the French fleet to protect Cadiz and the Spanish silver fleets.1326 And beyond this, Louis XIV wanted the Portuguese king to recognize the son of the disposed late James II as king of England, Scotland and Ireland, which would have put Pedro II on a collision course with William III of Orange. Pedro II flatly refused exclaiming that “I have recognized the king of England, and as long as he is alive, I will recognize no other. I want calm and not war.”1327 Therefore, one way or another the integrity of the Portuguese kingdom and its commerce was dependent on the aid of either the French/Spanish military or the English/Dutch forces. Neutrality, then, was the best option, but it seemed that neither the French/Spanish coalition nor the English/Dutch alliance would allow the kingdom to remain neutral. Moreover the inhabitants of Lisbon were not pleased by the current state of affairs, and Pedro II was well aware of this. After the rather humiliating false alarm, the population of Lisbon openly started to show signs of rebellion. “After the neutral fleet arrived on the bar, the spirits calmed down and the Bourgeois and the garrison reentered the city. Yet, the people made it more than ever clear during this alarm that they were discontented about the Alliance concluded with the crowns of France & Spain.”1328 According to the Dutch gazettes, they were happy to see the French fleet go since they had “almost every evening trouble with the French sailors.”1329 These outside pressures and internal opposition forced Pedro II to conduct negotiations with the English, Dutch and Austrian representatives. These talks included the topic of a marriage between the Portuguese crown prince with one of the Austrian’s emperor’s daughter and a sister of the Habsburg pretender of to the Spanish throne.1330 The readers of the gazettes were reminded that the forth coming War of the Spanish Succession was after all a dynastical issue in which the House of Braganza was also a party.1331 Yet this war was also about trade, as the readers of the gazettes and the Portuguese king especially noticed when the fleets from Brazil started to arrive. In the autumn of 1701 no war had been declared as yet. However, the show of force from both the French/Spanish and English/Dutch sides showed what could happen. War needed to be financed by hard cash, and this cash came with the silver fleets from Buenos Aires and Havana. When the English/Dutch fleets left the port of Lisbon, they did not turn to Cadiz, as the French and Spanish had feared but to the Atlantic to wait for the New World fleets to arrive. Since there was no war yet, the V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Lissabon den 18 October. “dese Kroon te solliciteren, onse Armade met hem te laten seylen” (…) “doch men heeft deselfs Voorslagen van de kant gewesen.” (…) “Oock heeft sijn Excellentie ordre ontfangen, met dit Rijk over en verbod van alle Engelse en Hollantse waren te handelen” (…) “doch dat heeft men mede verworpen.” Extraordinaire Haerlemse Courant, November 17, 1701. 1327 Lissabon den 22 November. “Op het herhalen van d’instantie van den Ambassadeur van Vrankrijck, om den Coning te erkennen van den soogenaemde Prince van Wales voor Coning van Engelant te disponeren, soude sijn Majesteyt rontuyt gesegt hebben: Ik hebbe een Coning van Engelant erkent; soo lang die leeft, erkenne Ik geen ander: Ik soecke de Rust en geen Oorlog.” Oprechte Haerlemse Courant, December 20, 1701. 1328 “Et ce Convoy estant venue dans nôtre Rade, cela acheva de calmer les Esprits, en sorte que nos Bourgeois & nôtre Garnison rentrerent dans la Ville. Cependant, le Peuple a donné pendant céte alarme de plus grandes marques qu’il na’voit encore fait, de son mécontentement de l’Alliance conclude il y a queque tems avec les Couronnes de France & Espagne.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, October 27, 1701. 1329 “On dit qu’il doit retourner à Brest, ce qui ne sera pas désagreable au people, ni aux Mariniers Portugais, qui ont presque tous les soirs du bruit avec les Matelots Français.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, November 1, 1701. 1330 Lissabon den 22 November. “Tusschen de Ministers van de kroon en die van den keyser, Engelant en haer Hoog Mog. zijn verscheyde Conferentien gehouden. En men begint van eenige Onderhandelingen over een Huwelijck tusschen onse Croon-Prinsen en een van d’Aerts Hertoginne van Oostenrijck te spreken.” Oprechte Haerlemse Courant, December 20, 1701 1331 The marriage to the daughter of Joseph I was long envisioned. For Information concerning this and other Portuguese dynastical thoughts concerning the Spanish Succession are spelled out in Luis Birot, “Portugal y la Sucesión de España a finales del siglo XVII,” in: David Martín Marcos ed., Monarquias Encontradas. Estudios sobre Portugal y España en los siglos VXII-XVIII, (Madrid: Silex Ediciones, 2013) 95-137.

417 ISSN 2358-4912 only thing that the fleets could do was to escort the West and East India vessels safely home. At this point the only adversaries were the Barbary pirates, who were cruising around the Iberian Peninsula. Every year the gazettes dutifully reported the cargo of the Brazilian vessels. Dutch and other merchants wanted to know the size of the sugar harvests, what the vessel from Goa would bring, how many vessels were sailing, and how many had sunk. This information was crucial especially to those who are had vested financial interests in insurance and in the commodity market. However, every year the vessels from Brazil added one more commodity of crucial importance during war fare: gold. In 1701 expectations were low. A Dutch gazette reported in August that “A vessel that landed on the 15th of August in Belem, the crew reported that it had met with another vessel coming from the Strait of Magellan, and sailing to Brest. They carried a letter dated May 15 from Rio de Janeiro where it had called. In the letter it was stated that all vessels of the fleet had arrived safely, but that business was bad; it could not sell any of the goods they had brought, and the sugar harvest was low, and that as a consequence many vessels will stay over the winter, and others will sail back with little cargo.”1332 Such rumors had their effect on commerce and politics. In October the same gazette wrote that “and people ascertain that the fleets from Brazil will arrive by the end of November, though some think that they may stay there this year.”1333 These low expectations may have well be a contributing factor in the Braganza administration’s decision to sign the treaty with the Bourbon kings. After the foreign fleets had left the port and bar of Lisbon, the fifty vessels from Brazil arrived with a decent cargo of 18000 chests of sugar, 41000 roles of tobacco furs, cacao, cloves, but most importantly 150 arrobas (about 2250 kilos) of gold. Sailing with the fleet this came a vessel from Goa, loaded with many diamonds, pearls and other precious merchandise.1334 Although one always has to take the gazettes with a grain of salt, still the general point was very clear. As the same gazette pointed out in a message from Paris, “This news had greatly rejoiced our [French] merchants who trade with the Portuguese, because they have not met with and were taken by the different squadrons that the English have sent to the West Indies. But it also looks like a panic reaction, especially since no war has been declared between England and Portugal.”1335 The message did not fall on deaf ears with Lisbon merchants, Pedro II, and his ministers. War against England and the Netherlands meant that the increasingly rich treasure fleets would be interrupted, and might also result in attacks on V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Lissabon den 30 Augusti. “Een Scheepje, dat den 15 te Bellem gearriveert, heeft uyt een ander, het geen door hem in Zee ontmoet is en uyt de Straet Magellanes near Brest zeylde, een brief van den 10 Mey uyt Rio de Genero, alwaer het aengeweest was, overgenomen en herwaerts gestuurt: sy behelst, dat alle onse Schepen aldear wel aengekomen waren, toch dat het met de negotie slecht stont; dat sy van hare overgebrachte Goederen niets hadden konnen verkopen; dat geen abundant gewas van suyker gevallen was, end at by gevolge enige Schepen moeten blyven overwinteren en d’andere slecht geladen, herwaerts konnen retourneren.” Oprechte Haerlemse Courant, September 27, 1701. 1333 Lissabon den 18 October. “en men stelt vast, dat de Vloten uyt Brasil in ‘t latest van de Maent November te gelijck staen te arriveren, hoewel eenige noch meenen, dat sy dit Jaer wel willen achterblyven.” Extradordinaire Haerlemse Courant, November 17, 1701. 1334 De Lisbonne le 22 Novembre. “La Flotte qu’on attendoit du Bresil, arriva heureusement ici le 12 du courant, composée de 50 Vaisseaux qui ont apporté 150 Arrabs de poudre d’or, 18000 caisses de sucre, 41000 Roulleaux de Tabac, une grande quantité de Peaux, avec beaucoup de cacao & de clouds de gerofle; il est aussi revenue de Goa un Navire, avec beaucoup de Diamans, de perles & d’autres Marchandises precieuses de compagnie avec cette Flotte.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, December 22, 1701. The reports on this differed. The French representative in Lisbon, Delacalles, wrote an official dispatch destined to the Count of de Pontchartain in Paris dated November 11, 1701, that “the Rio de Janeiro vessels were charged with 83 arrobas for the king and the various private persons in this town” to which he added, “this was what registered, but one does not need to doubt that there was much more in hiding.” “Que l’on a chargé sur les vaisseaux du Rio de Janeiro 83 arrobes d’or tant pour le Roy que pour les divers particuliers de cette ville” (…) “cecy est registré, il ne faut pas douter que l’on n’en aye embarque outre cela beaucoup en cachette.” Archives Nationalles (Paris) Affaires Étrangères, BI 651, fl. 249r. The best measurement of gold entered in the Lisbon Mint, see Rita Martins de Sousa, Moeda e Metais Preciosos mo Portugal Setecentista, 1688-1797, (Lisbon: Imprensa Nacional de Casa de Moeda, 2006) 266-270. 1335 De Paris le 12 Decembre. “Céte nouvelle a fort rejoui nos marchands qui ont commerce avec les Portugais, parce qu’ils aprehendoient qu’elle n’eut esté recontrée & prise par les diferents Escadres que les Anglois ont envoyé aux Indes Occidentales; Mais il semble pourtant c’a esté une terreur panique, dautant plus qu’il n’y a point d’aperence de rupture de l’Angleterre & le Portugal.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, December 20, 1701.

418 ISSN 2358-4912 Brazil. It was also unclear if the still unpublished stipulations treaty with Louis XIV and Philip V would allow the Portuguese inhabitants stay neutral.1336 What to do? Pedro II and his councilors did not take half measures: they started to increase the navy with ten war vessels,1337 in the Spring of 1702 they petitioned to get French support as was promised by treaty,1338 and at the same time they negotiated with the English and Dutch representatives.1339 Obviously, Pedro II wanted to keep his country out of the war and neutral, as well as continue to have commercial relations with all nations involved. Yet circumstances were changing. The Stadhouder-King William III died rather unceremoniously by falling off his horse and was replaced by Queen Anne. Louis XIV declined to recognize her, and the French ambassador again pressed Pedro II to do the same. Instead, the Portuguese court went in mourning and recognized Queen Anne as the legitimate sovereign. Suggested in the Amsterdam gazette was a sense that the Portuguese king and his court was starting to think differently about the alliance, “Although the French Ambassador and the most important persons of that country have very much tried to stop the king recognizing Princess Anne as Queen of Great Britain, they have not succeeded, because it has pleased his Majesty to recognize as Queen of England, Scotland and Ireland, and to congratulate her by official letter; so too, did his Majesty explain to the English Envoy, during an audience, that he was of the opinion that he will punctually keep himself to all treaties made with the English kings and the Gentlemen Estates General, and that he will make sure that one did not have to complain about his acts; to all of this the French Nation objected. The king and the whole court has taken to mourning over King William III.”1340 At first the Portuguese Braganza dynasty felt itself safe with the Bourbon alliance, but this did not hold true for long. As David Martín Marcos pointed out in his recently published book on SpanishPortuguese relations, “In August 1701, various images of Philip V were published in Paris with the title King of Portugal. This happened shortly after Louis XIV had received the notice that Pedro II and his grandson had signed the peace treaty, for which his ambassador worked so hard.”1341 At first the V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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The treaty stipulations remained a mystery, at least for the general audience. In a Dutch gazette mentioned the cloud of mystery around it, as “daily so called copies and extracts of the Treaty appears but within a very few days proved untrue.” “Dagelijksx werden soogenaemde Copyen en Extracten uyt het Tractaet tusschen dese Croon, Vrankrijk en Spange gesloten in het licht gegeven, maer gedurig weynig dagen vals bevonden.” Oprechte Haerlemse Courant, September 27, 1701. 1337 Lisabon den 17 January. “By den Raads des Conings wert dienstig geoordeelt, 7 nieuwe Oorlogschepen te bouwen.” Oprechte Haerlemse Courant, January 14, 1702. 1338 Lisbon den 18 April. “Den 12 deses is de Courier, na ‘t Franse hof gesonden, om de beloofde 30 oorlogschepen te eyschen, hier terug gekomen, maer hy hefty geen voldoenend antwoord met sig gebracht, dewyl men ons niet meer als 14 schepen wil senden en tot Madrid had men ook geen genoegen hebben.” Amsterdamse Courant, May 18, 1702. 1339 Lissebon den 23 May. “De Heer Schonenberg, Afgesant van de Heeren Staten Generael, dese Week alhier van Madrid aangekomen zynde, is nevens de Heer Methwin Extr. Envoyé van de kroon Engeland met des Konings Raed dagelyks in conferentie.” Amsterdamse Courant, June 17, 1702. 1340 Lissebon den 25 April. “Alhoewel de Fransche Ambassadeur en de voornaemste van die natie seer geyvert hebben om te beletten, dat de koning de Princes Anna voor koningin van Groot Brittannien soude erkennen, so hebben sy egter daer ontrent niet konnen teweeg brengen, want het heeft sijn Majesteyt behaegt die princes voor Koninginne van Engeland, Schotland en Ierland te erkennen, en daer over by missieve te feliciteeren; ook heeft sijn Majt. aen den Engelsen Envoye, wanneer hy audientie hadde betuygt, dat hy van meening was om alle Alliantien en Tractaten met de koningen van Engeland en de Heeren Staten Generael gemaekt, opregtelyk te onderhouden en daervan niet in ‘t minste af te wyken, en dat hy ook sorg soude dragen, dat men over sijne conduit niet te klagen hadde; al het welke de Fransche Natie seer heeft verset. De koning en het gansche Hof heeft den rouw over de koning William aengenomen.” Amsterdamse Courant, May 23, 1702. 1341 “En Agosto de 1701, poco después de que llegaste hasta Luis XIV la noticia de que Pedro II y su nieto habían suscrito el tratado de paz en que tanto se habia empañado ssu embajador, se publicaron en París varias estampas de Felipe V con la leyenda Rey de Portugal.” David Martín Marcos, Península de Recelos. Portugal y España, 1668-1715, (Valladolid and Madrid: Instituto Universitario de Historia Simancas and Marcia Pons Historia, 2014) 153. A simular letter has been reproduced in: José da Cunha Brochado, Cartas, António Álvaro Dória ed., (Lisbon: Livraria Sá da Costa Editora, 1944) 133-134.

419 ISSN 2358-4912 Ambassador in Paris, seem to put this down to ignorance of local printers.1342 However, two more incidents added to the suspicion. First, French coins were minted with the Portuguese arms.1343 The Spanish administration alleged that this was done by a painter without its knowledge and was purely ornamental.1344 In July 1702 the reaction of the Portuguese ambassador in Rome was swift. “The Portuguese officials were pressing the Pope, to talk to the Spanish Ambassador, that the Portuguese king did not understand, that the Catholic Majesty [King of Spain] calls himself the King of Portugal. This led to the removal of all the titles from the publications.”1345 The second incident came after an announced double marriage with the Habsburg monarchy in Austria and the death of William III. When Pedro II marched with the Austrian Habsburg pretender, Carlos III, into Spain as a Dutch gazette reported that Philip V declared that Pedro II should be referred to as Duke of Braganza, since he (Philip V) also claimed to be “King of Portugal, the Algarve &a”.1346 Thus the war of the Spanish Succession called the legitimacy of the Braganza Dynasty into question. Still the switch of alliances appeared to be extremely popular, as it was not only related to just sheer preservation of the dynasty, but also to what extent the alliance could preserve the dynasty’s life lines (military and cash), which was increasingly about commerce, and especially about Brazil. Pedro II sought protection from infraction of the Portuguese national integrity from three sides: the maintenance of the life line to the colonies, protection of Portugal by sea, and prevention of invasion over land. On May 30, 1702 when the Dutch Republic and England war declaration to the kings of France and Spain reached Lisbon, the Portuguese government prepared for the consequences.1347 The French government had promised to maintain Portuguese neutrality, hence French protection combined with Portuguese defenses, the Portuguese government reasoned, would maintain the integrity of Portugal. To that end “all the Portuguese military moved to the Sea, installed cannons on the banks of the river Tagus, and in the harbor had arrived six French war vessels with 1800 soldiers.”1348 For the second year in a row, it was the combined English/Dutch fleet that panicked Lisbon. Again, the French command promised to send in a protective fleet to oppose English and Dutch power. “The English and Dutch community are here at this moment in very high spirits concerning the general state of affairs in Europe, as in this country people are looking forward to the arrival of the combined English and Dutch fleet; when (as people see this) the negotiations will take another turn, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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“La novidad fue, esplicó el portugués en su correspondencia privada, de los grabadores parisinos, y nada tuvo que ver el Rei Sol, quien de hecho, había ordenado de inmediato al magistrado competente que secuestrase la desafurtunada produción y rompiese los moldes de la imprenta donde habían visto la luz.” David Martín Marcos, Península de Recelos, 153. 1343 De Paris le 14 Fevrier. “On apprend de Madrid que nonobstant les remonstrances de l’Envoyé de Portugal on continoit de mettre les armes de cette Couronne dans l’Ecu de celles d’Espagne.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, February 21, 1702. 1344 De Madrid le 10 Février. “il n’est pas vrai que la Régence ait fait mettre les Armes de Portugal dans l’Ecu d’Espagne, & ce qu’il y a eu sur ce sujet, n’est arrivé que par esprice d’un Peintre, qui avoit fait quelques ornemens, sur quoi la Junte a déclaré que cela avoit été fait sans son ordre, & qu’elle n’y avoit aucune part.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, March 3, 1702. 1345 Roomen en 1 July. “Den Amtenareen van Portugaal zyn den Paus zeer lasting geweest, om den Ambassadeur van Spanjen aan te zeggen, dat zyn Majesteyt van Portugaal niet verstond, dat zyn katholyke Majesteyt zig koning van Portugaal zoude laten noemen, en heft dit zoveel vermogt, dat men deeze Naam in verscheyde alhier gedrukte Tytels heft uytgeschapt.” Opregte Leydse Courant, July 21 1702. 1346 Nancy den 13 Mey. “Volgens de brieven van den 10 deser van Parijs had men aldaer van den 28 passato tyding uyt Madrid dat sijn Cathol. Majesteyt Philipus V niet alleen den Koninkl. Titul van Portugael, Algarve, &c. aengenomen; maer daer en boven geordoneert heeft sijn Portuguese Majesteyt voortaen niet Koning van dat Koninkrijck, maer Hertog van Braganze te noemen.” Oprechte Haerlemse Courant, May 20, 1704. 1347 Lissabon den 30 May. “dat den 15 deser in dat Koninkrijck den Oorlog tegen den koningen van Vranckrijck en Spanje gedeclareert is; t’ welck hier een groote opschudding veroorsaekt heeft, en waer op al eenige RaetsVergaderingen gehouden zijn, om te beramen, wat mesures dese kroon moet nemen.” Extraordinaire Haerlemse Courant, 29 juni 1702. 1348 Londen de 28 July. “dat de krijgsmacht van de Coning van Portugael na de Zeekant afsackte en verscheyde Batteryen op de Banken van de Rivier Tagus gemaekt waren; dat 6 Franse Galeyen met 1800 Franse aldaer gearriveert zijn.” Oprecht Haerlemse Courant, August 1, 1702.

420 ISSN 2358-4912 and not to the liking of the French, unless the French send their promised fleet of war vessels.”1349 The problem was that the size of the fleet was a far cry from the thirty war vessels that the Portuguese king had originally demanded. In stead, Louis XIV had promised fourteen ships, and the French navy could not send even that diminished amount of vessels to protect Portuguese territory.1350 Indeed, the rest of the squadron was send to Spain, first in Cadiz, later in Vigo to unload the Silver Treasure fleet that had arrived from Havana. Upon the arrival of the large English and Dutch fleet, the French envoy protested their open reception in Lisbon. To which the king replied “that this Court has asked for several months now that the stipulations of the negotiated alliance would be executed, otherwise we [Portugal] would not be able to defend itself. Nevertheless the French side remained wanting. Moreover, the tales of victories [of France] that were spread out here proved to be untrue. Therefore, the French have lost their creditability and we need to look for protection of our persons and and of our property elsewhere.”1351 The message that the Dutch gazettes brought to their readers was that the Portuguese court openly admitted their inability to protect its own inhabitants and their property during the coming war, even if it remained neutral. Given the state and politics of the French/Spanish alliance versus the Austrian/Dutch/English alliance, the latter was most likely to maintain Portuguese integrity. The French tales of victory were indeed shattered very quickly. After an abortive attempt to take Cadiz, the combined English and Dutch fleet sailed to Vigo (Galicia), where they famously captured the silver fleet in the harbor and destroyed the part of the French fleet that was not in Lisbon.1352 The destruction was complete, bringing in hard coin to pay for the Grand Alliance soldiers, and the Spanish would be incapable of sending a new fleet for the next year. Only a small part of the silver from Havanna (Mexico, Tierra Firme) was unloaded, yet the Spanish government could still have the silver from the Buenos Aires (Peru) treasure fleet at its disposal since that had landed in Cadiz.1353 Of course, this was completely destructive to Spanish commerce and their foreign interests.1354 According to the talks from Cadiz “This enormous defeat means that the Galleons will for the first time not be send to the Spanish American Mainland, for which many commercial contracts were already

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Lissabon den 27 Juny. “onder d’Engelsen en Hollantse Natien zijn hier tegenwoordig goede Opinien omtrent de gemene Saken van Europa, doordien bespeurt men wel, dat in dit Rijck see gewenst wert na de komst van d’Engelse en Hollantse Oorlogs-Vloot; wanneer (soo men vast stelt) de Saken een geheelse andere keer en niet na de sin der Fransse, sullen nemen, vermits tot nu toe haer beloofde Esquadre Oorlogsschepen noch niets tevoorschijn komt.” Extraordinaire Haerlemse Courant, July 27, 1702. 1350 Lisbon den 18 April. “den 12 deses is de Courier, na t’ Franse hof gesonden, om de beloofde 30 oorlogschepen te eyschen, hier terug gekomen, maer hy heeft geen voldoenend antwoord met sig gebragt, dewyl men ons nier meer als 14 schepen wil senden: en tot Madrid had men ook geen genoegen gegeven.” Amsterdamse Courant, May 18, 1702. 1351 Lissabon den 19 August. “dat van wegens dit Hof al voor eenige maenden are t’ Fransche versogt was, dat men de condition van de gemaekte alliantie wilde nakomen, dewyl men hier anders niet in staet zou zyn om deselve te onderhouden, met byvoeging dat men In sulcken gevalle aen de gedane beloften niet wilde gehouden zyn; en dat men van de kant van Vrankrijk des niet tegenstaende, in gebreke was gebleven: en nadien alle de tydingen, die de Franschen hier van haer victorien uytgestroyd hebben, waer bevonden worden, vervalt haer crediet t’eenemael; so dat zy voor hare persoonen en goederen bekommerd worden.” Amsterdamse Courant, September 20, 1702. 1352 A complete story about the destruction of the silver fleet in Vigo and the French squadron was published in the Dutch gazettes. Londen den 17 November, Oprechte Haerlemse Courant, November 28, 1702. 1353 Parijs den 8 December. “Hy heeft mede tyding van ‘t arrivement van de vloot van Buenos Ayres met 8 millioenen stucken van Achten en voor 25000 aan goederen meegebracht.” Extraordinaire Haerlemse Courant, December 14, 1702. About the small part that was saved, according to a Dutch gazette, this was only the quinto “onze jongste brieven uyt Lissabon melden dat er uyt de Galjoenen geen ander Zilver, als des konigs van Spanjes gedéélte was aan land gebragt geweest.” Opregte Leydse Courant, December 4, 1702. 1354 Dutch merchants, for instance, immediately claimed their loss of property. Londen den 17 November. “onse koopluyden dewelcke eenige Effecten in deselve Vloot hadden, waren voorlede Woensdag by den Hertog van Nottingham.” Oprechte Haerlemse Courant November 28, 1702. Henry Kamen argued that this was not really a disaster for the Spanish government, but mostly for Spanish and foreign merchants “Certainly the private merchants of Seville, and no less certainly the merchants of England and Holland with a share in the cargo, suffered heavy losses. But the Spanish crown profited immensely.” The War of the Spanish Succession in Spain 1700-15, (Bloomington and London: Indiana University Press, 1969) 179.

421 ISSN 2358-4912 concluded; and everybody depended on the incoming and destroyed fleet so that all our commerce has been destroyed, leading to the ruin off all inhabitants of this realm, and the French are blamed for this.”1355 Obviously this defeat was not good for the alliance, and the local population in Lisbon expressed itself forcefully. “The consternation of the burning of the French and Spanish vessels by Vigo, is among the French here so big, they hardly want to show themselves. Yet in contrast our community here is full of joy about this, and very much embittered against this nation, calling and wishing for nothing else as a war with France and Spain.”1356 The changes were felt progressively through the next few months. In September the Portuguese king had declared himself neutral.1357 In October many fleeing Spanish Noblemen settled themselves in Portugal.1358 In November a Dutch gazette printed the rumor that the Portuguese king was considering to enter the Alliance in exchange for the Spanish Extremadura region.1359 By the end of November the marriage contract between the Portuguese crown prince and the Austrian Grand Duchess was signed.1360 By late December 1702, a gazette speculated that as soon as the Brazil fleet would arrive, the Portuguese king would officially enter the Grand Alliance.1361 The Portuguese state seemed to be heading into a war, yet still the Portuguese government acted deliberately and cautiously. Nevertheless, its probable entry into the Great Alliance immediately had commercial consequences. After the Portuguese government declared itself in favor of the Great Alliance, even before the war was declared, they felt the price of their decision. Already in January 1703, the Spanish administration under the Bourbon king Philip V declared that all commerce was forbidden on penalty of death.1362 Still Spanish merchants continued to trade in Portugal. While the Portuguese state did not yet participate in the war, rumors abounded that Spanish merchants continued to buy Dutch and English goods as the fleet readied to sail to Brazil.1363 Moreover, French merchants were still present in Lisbon, despite the fierce local intimidation.1364 The Portuguese population felt the pinch too, since it was dependent on its food supply on outside sources, and in 1703 there was not enough grain available. To

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Cadix den 6 November. “Dese groote Nederlaeg veroorsaeckt, dat de Gallioenen oock voor eerst niet na d’Terra-Firma sullen gedepecheert warden, waer van voor desen al eenige Uytroepingen sijn gedaen en al soo veel van afgesproken is; doch alles heeft gewacht na de komst der veroverde en vernielde Vloot sulks dat onsen Handel nu t’eenemael bedurven is, streckende tot ruine van alle ingeseten van dit Rijck; van welcke Ongelucken de Fransse de schult gegeeven wert.” Oprechte Haerlemse Courant, December 5, 1702. 1356 Lissabon den 12 November. “De consternatie over ‘t verbranden der Fransche en Spaensche schepen by Vigos, is onder de Fransche alhier soo groot, dat se naeuwlyks te voorschijn derven komen; maer in tegendeel onse gemeente daer over vol vreugde en seer tegen deselve natie verbitterd, roepend en wenschende niet anders dan om een oorlog met Vrankryk en Spanjen.” Amsterdamse Courant, December 5, 1702. 1357 Lissabon den 26 September. “Voor 3 Dagen is de neutraliteyt bekent gemaakt, zoo me zegt als die van ‘t Jaer 1661.” Opregte Leydse Courant, October 23, 1702. 1358 Lissabon den 10 October. “Veele Grandes, die uyt Spanje in dit Rijck geweken zijn, hebben huysen Port a Port ingehuurt.” Oprechte Haerlemse Courant, November 7, 1702. 1359 Berlyn den 31 October. “Van Wenen heeft men dat ‘er een courier van den Prince van Hessen Darmstad uyt Lissabon was aengekomen, met tyding dat den konig van Portugael zig mede in de Groote Alliantie wilde begeeven, en zo wanneer den keyzer aan hem het landschap Extramadure in Spanje wilde afstaen.” Extraordinaire Leydse Courant, November 8, 1702. 1360 Londen den 8 December. “Van Lisbon heeft men van 24 November, dat het tractate van een huwelijk ntusschen den Prins van Brasil en der Aertshertoginnen soude geslooten zyn.” Amsterdamse Courant, December 14, 1702. 1361 Londen de 29 December. “en dat men niet twijfelde, of hij soude in de Groote Alliantie treden, soo haest als sijne Oost-Indische schepen en Brasilsse Vloot gearriveert sullen zijn.” Extraordinaire Haerlemsche Courant, January 4, 1703. 1362 Bilbao den 28 December. “Van ‘t Hof van Madrid heeft men hier tyding dat aldaer de Commercie op Portugael op levenstraf verboden was,” Oprechte Haerlemse Courant, January 18, 1703. 1363 “Met brieven van den eerste deser van Lissabon” (…) “nochtans eenige Spaniaerds in dat Rijk waren geweest, en aldaer Engelse en Hollandse waren hadden gekocht en na Spange vervoert” Oprechte Haerlemse Courant, May 31, 1703. 1364 “Il semble bien que seule une minorité de Français fut expulsée.” Jean-François Labourdette, La Nation Française a Lisbonne de 1669 à1790. Entre Colbertisme et Liberalisme, (Paris: Foundation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1988) 16-17.

422 ISSN 2358-4912 that end a Genovese relief ship (Genoa was neutral) was intimidated by the French envoys not to sail through the Strait of Gibraltar as the vessels would be confiscated.1365 During any war the belligerent powers confiscate each other vessels and this war was no exception. As vessels from Portugal sometimes had to flee from bad weather into Galician ports, and Buenos Aires ships called at Rio de Janeiro, this could become a problem. With war was about to break out, the Spanish authorities in Galicia held up Portuguese vessels.1366 Of course, the Portuguese crown protested, and the French and Spanish tried to put a good faith into this. Yet it was held as a bargaining chip. The royals who were about to declare war on each other still pretended to be on reasonable terms. For instance, a ship from Leghorn captured by a British privateer because it flew the French flag was set free.1367 Indeed, the Portuguese administration tried to keep as cordial relations as possible with the French, up to giving a new diamond jewel to four French commanders of galleons who had stayed in the port of Lisbon until May 1703.1368 Only slowly did the situation deteriorate, most likely to gain time for everyone to prepare for war. The Portuguese king had signed the treaty with the Great Alliance on May 16, and now he also prohibited all trade with Spain and France.1369 In July a gazette mentioned that the Portuguese king still claimed that his problems were with the acceptance of Philip V as the king of Spain, not with the king of France.1370 Even in late July, a gazette published that the king of Portugal did not want war with Spain and France.1371 Still yet in November Louis XIV commanded the French ambassador to ask Pedro II for a statement of neutrality within 14 days.1372 Nevertheless the consequences of the war and the Portuguese king’s signing were felt immediately. A Dutch fleet, for example, sailing with the Austrian ambassador, the Count of Waldstein and his family encountered French war ships. The Count, the marriage contract, rich presents from king Pedro II and Crown Prince João, as well as an

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“den Fransen Ambassadeur had aen de Republijk bekent gemaeckt, dat sij geen granen of Contrabande waren na Portugael soude hebben te senden of dat de schepen, met deselve voor ‘t Naeu van de Straet willende passeren, door sijn Conings schepen genomen en voor goede Prijs verklaert soude werden.” Oprechte Haerlemse Courant, September 8. 1703. 1366 Lissabon den 18 Maert. “Ten hove is men zeer onvergenoegd, dat de Portugeeze Scheepen, die in Galicien of Vigos door storm ingeloopen, als Vyanden worden gehandeld, en met confiscatie worden gedreygd, onder voorwendzel dat zy Vyandelijke goederen in hebben; dog zyn Majesteyt heeft aan zyn Ministers daar over na Madrid geschreven, te klaagen, en om te verzoeken aanstonds de Scheepen mogten gereclameerd worden, of een Catagoris antwoord, dog de Spaanse en Franse Ministers alhier, zoeken na hunne oude gewoonte dit voorval wat te bewimpelen, om aan t’ Hof de gunst by eenige Ministers te behouden.” Opregte Leydse Courant, April 9, 1703. 1367 Lissebon den 3 April. “Deser dagen is het advys uyt Galicien gekomen dat het Portugees Schip dat men over eenge maanden gelegd heeft in, gearrerteerd te zijn geweest” (…) “door Order van het Hof in Madrid ontslagen was” (…) “Deser dagen quam alhier en Engels schip met een Livornees, in onze Zeen genomen, also den Kaper pretendeerde met een Fransse vlag te weer gestalt hadden” (…) “omdat hij het goet pretendeert, soo hy het schip los moet laten, om dat hy susteneert, dat het selve goet aen Vyanden toekomt.” Extraordinaire Haerlemse Courant, May 3, 1703. 1368 Lissabon den 8 May. “De Capiteynen van de 4 Franse Galleyen alhier overwinterd, en gisteren van de koning afscheyd genomen hebbende, wierden door syn Majest. Ieder met een juweel met diamanten vereerd.” Amsterdamse Courant, June 5, 1703. 1369 Londen de 5 Juny. “Saturday arriveerd hier een Expresse van Lissabon met de groote tyding, dat het Tractaet tusschen den keyser, de koningin van Engelant, den Coning van Portugael en de Staten Generael aldaer den 16 passato getekent was. “ (…) “dat den Coning van Portugael alle commercie met Vrankrijck en Spange verboden had.” Oprechte Haerlemse Courant, June 9, 1703. 1370 Lissabon 10 July. “dat hy de Vriendschap van den Coning van Vrankryck altijt hoog geestimeert had en wenste, deselve lang te mogen genieten; maer, als den ambassadeur in de name van Philippus V quam, soude den coning syn Excellentie gerecommendeert hebben, daer van niet spreken.” Oprechte Haerlemse Courant, August 11, 1703. 1371 Lotharingen den 24 July. “Den 19 was een expresse uyt Portugael aen ‘t Fransche Hof gekomen, desselfs aenbrengen weird regt verkeerd verspreyd, namentlyk, dat de Portugeezen geen oorlog tegen Vrankryk en Spanjen in den sin hadden.” Amsterdamse Courant, July 31, 1703. 1372 Lissabon den 25 November. “De koning van Vrankrijk heeft, om te sien of noch eenige verandering in Onsen koning te brenegen was, nochmaels aen syn Ambasadeur “ (…) “ordere gesonden, om sijn Majesteyt af te vragen een catagoris Antwoort binnen 14 dagen, of sijn Majesteyt aen de 2 kroonen genegen is de Neutraliteyt toe te staen.” Extraordinaire Haerlemse Courant, December 13, 1703.

423 ISSN 2358-4912 estimated one million pieces of eight, fell into French hands.1373 Yet still the Portuguese state was not at war, and Portuguese vessels technically could not attack Portuguese vessels. Of greatest importance were the Brazilian fleets, and Pedro II took care to send as many fleets as quickly as possible to and from Brazil, Africa, and India before the war was officially declared. When the Brazilian fleets arrived in February 1703, the Chamber of Commerce insisted that they be immediately unloaded and reequipped. Though the Customs did not have enough room for this undertaking, the king ordered the goods unloaded on the Terreiro da Paço outside of the building.1374 The first ship to leave was on March 11, an advising vessel to Salvador da Bahia.1375 Two weeks later another fleet with three vessels to Goa and some others to Brazil set sail.1376 Two months later another small fleet departed; two vessels with two convoy ships, who needed to wait in Salvador da Bahia to accompany the return vessels from Goa.1377 Next came a fleet of about twenty merchant vessels and one warship sailing to Rio de Janeiro on June 21.1378 On July 14, another four vessels sailed out of the harbor: one to Angola, one to the Gold Coast, one to Salvador da Bahia, and one to Rio de Janeiro.1379 On September 9, there arrived a vessel from Madeira with letters from Rio de Janeiro and Buenos Aires.1380 Two weeks later a fleet, about to sail to Brazil, was stopped for a moment to add two war vessels with soldiers for Buenos Aires.1381 In November there arrived one vessel from Rio de Janeiro and Salvador da Bahia, while five others from Rio were on the bar as well as one from Goa..1382 The Portuguese king was apparently in need of money, as a small fleet of five vessels had arrived in January 1704 from Rio de Janeiro with a quinto of about 250 kilos gold.1383 By the end of January arrived the

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Londen den 11 Juny. “den Grave van Wallensteyn, op een der Hollantse Oorlogschepen zijnde, soude behalven sijn eyge effecten seer rijcke presenten van den Coning van Portugael, en den Prins, sijn oudste soon, voor den keyser en outste Aerts-Hertoginne by sig gehad hebben. Oock soude op de vloot een Millioen stucken van Achten geweest zijn.” Oprechte Haerlemse Courant, June 19, 1703. 1374 Lissabon den 21 February. “Dewyl de kamer van Commercie, op herhaelde aanhoudingen verworven heeft, de Scheepen van de uyt Bresilien aangekomen Vloot zonder uytstel te mogen lossen, en in het Tolhuys geen ruimte genoeg is om er alle de goederen in te brengen, heeft den konig haar toegestaan een loos op de Plaats Tereir op te slaan en Commissarissen benoemd, om het daar in gebragt word op te reekenen.” Opregte Leydse Courant, March 26, 1703. 1375 Lissabon den 13 Maert. “Eergisteren vertrok het gepriviligeerde schip Princesse del Cielo van hier na de Bahia de Todos los Sanctos.” Amsterdamse Courant, April 10, 1703. 1376 Lissabon den 27 Maart. “4 Onser Oostindise Schepen zijn naer Goa vertrokken nevens ser weynige na Brasilien.” Oprechte Haerlemse Courant, April 24, 1703. 1377 Lissabon den 8 Mey. “Tot nu toe zijn noch maer 2 Schepen met 2 convoyers na Brasilien vertrocken” (…) “De convoyers hebben ordre, om aen de Bahia de Todos los Sanctos soo lang te blijven vertoeven, tot dat onse noch verwacht werdene scheepen uyt Oost-Indiën daer geretourneert zijn om deselve verder herwaerts te convoyeeren.” Oprechte Haerlemse Courant, June 5, 1703. 1378 Lissabon den 2 July. “Den 21 passato zijn in de 20 schepen na Brasilien, meest na Rio de Genero, onder Convooy van een Oorlogschip” (…) “’t zeyl gegaen.” Oprechte Haerlemse Courant, July 31, 1703. 1379 Lissabon den 22 July. “Den 14 zijn 4 schepen van dese Natie in Zee gelopen. 1 na Angola, 1 na de Gout-Kust, een na de Bahia en een na Rio di Genero.” Extraordinaire Haerlemse Courant, August 23, 1703. 1380 Lissabon den 9 September. “Voor 3 à 4 dagen is alhier een Schip van Madeira gearriveert, met brieven van Rio de Genero van den 3 en 10 Mey; alsmede van Buenos Ayres voor sijn Majesteyt.” Oprechte Haerlemse Courant, October 6, 1703. 1381 Lissabon den 23 September. “De Vloot na Brasil, die op sijn Vertreck stont, is opgehouden, om eenig Volk en nodige Oorlogs Behoeften , welcke na de nieuwe Colonie by Buenos Ayres met 2 Oorlogschepen gevoert sullen werden in Compagnie mede te brengen.” Oprechte Haerlemse Courant, October 16, 1703. 1382 Lissebon den 7 December. “Het gepriviligeerde schip Santa Maria Major, is van Rio de Janeyro en de Bahia de Todos los Sanctos met 60 kisten suyker en 2000 rollen Tabak hier aengekomen.” Amsterdamse Courant, December 27, 1703. Amsterdam den 12 December. “Van den 21 passato werd van Lissabon geschreven, dat daer dien dag een Schip van Rio di Genero met 600 kisten Suyker arriveerde, en noch 5 Schepen uyt Brasilien met een van Goa voor de Rivier.” Extraordinaire Haerlemse Courant, December 13, 1703. 1383 Amsterdam den 12 December, “Volgens de brieven van Lissabon was de Franse Ambasadeur reeds van daana na huys vertrokken.” Amsterdamse Courant, December 13, 1703. “Twee oorlogschepen en 3 koopvaardyschepen zyn alhier van Rio de Janeyro gearriveerd, dien behalve een goed deel gout en kostelyke goederen voor byzondere, ook voor des konigs vyfde déél 17 Arobes en 7 ponden Goud, vry van alle lasten, hebben mede gebragt.” Opregte Leydse Courant, Feburary 4, 1704.

424 ISSN 2358-4912 big fleet of Salvador da Bahia with 16 vessels and the vessel from Goa, with so much sugar that the prices were bound to go down. 1384 These reports from the gazettes indicated a more than usual communication between Portugal and its overseas possessions. A reader of the gazettes might conclude that it was very likely that Portuguese merchants and the Portuguese administration wanted to profit from uninterrupted trade with the colonies as much as possible. Yet, even though the war had not officially broken out, it had already started in Colônia do Sacramento (in the River Plate near Buenos Aires). This Portuguese outpost close to Buenos Aires was guaranteed its existence under Portuguese administration by the Spanish authorities as a part of the 1701 treaty. The Spanish Bourbon king now took an aggressive stand against this colony once that the Portuguese king terminated that agreement.1385 Once war was declared though, all was a free for all, and the impact on the Trans-Oceanic trade and casualties were experienced by both sides.1386 Two Buenos Aires treasure vessels with no knowledge of the state of war were confiscated by the governor in Rio de Janeiro.1387 Similarly when the rest of the fleet from Buenos Aires returned to Cadiz, the main vessel stranded near Faro, the vessel was confiscated and the governor of Buenos Aires and his family captured, along with enormous booty filling about twenty carriages with silver.1388 If anyone had any doubt about the perils at sea, they were quickly enlightened. In August a Dutch gazette, for instance, announced that some vessels which sailed to Brazil were captured, but then fortunately recaptured.1389 As countries waged war against each other, merchants who were more multinational were the casualties. Dutch merchants had invested heavily in the Spanish colonial trade, and they were now feeling the consequences of the war with Spain. They had lost money after the Grand Alliance capture of the Spanish American treasure fleet in 1703. These merchants also had investments in the silver galleons from Buenos Aires that were confiscated in Rio de Janeiro. As evidence of this, when the vessels and their content finally arrived with the 1706 fleet from Rio de Janeiro, a Dutch gazette put out an advertisement for Dutch merchants who might have a financial interests in its cargo.1390 The Estates General intervened at the Portuguese court, so that private merchants could reclaim their property. War was a balancing act in commercial activities. Internationally oriented merchants stood to lose from this, and the state proved their value by protecting their merchant’s interests to avoid V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Lissabon den 27 January. “Oock is behouden binnegekomen een seer rijck geladen Oostindisch Schip, hebbende onder anderen veel Diamanten in; en die selve Compagnie 16 Schepen van Bahia de todos los Sanctos, nevens een convoyer, medebrengende omtrent 500 kisten Suyker, en 23000 rollen Tanback: men segt, dat van de vorige Saffra nog wel 12000 kisten overgebleven zijn; soo dat met de groote Vloot apparentie is, dat de Prijsen zullen dalen.” Oprechte Haerlemse Courant, February 21, 1704. 1385 Lissabon den 9 September. “Zedert heeft sig het gerucht verspreyt, dat de Spangiaerden in Buenos Ayres onder een Fortres, dat dese Kroon op syn Limietseyding heeft, twee andere forten opgeworpen, en aen de Portuguesen geinjungeert hebben, geen beesten in all lantstreeck meer te dooden: Men voegt er oock by, dat sy de Portugesen uyt haer sterckte soude gejaegt hebben; doch vereyscht confirmatie.” Oprechte Haerlemse Courant, October 6, 1703. 1386 The message that the war declaration was published in Spain came in on April 14, 1704. De Lisbonne le 14 Avril. “La Declaration de guerre contre nous a ëtë enfin publiëe en Espagne.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, June 12, 1703. 1387 Lissabon den 29 October. “Een schip, van Rio de Genero hier gearriveert bericht,” (…) “dat 2 Schepen van Buenos Ayres, zijnde deselve Spaense, die voor ‘t vertrek van de laeste vloot uyt Rio, aldear ingevallen waren, weynig dagen voor dat sy meenden t’ zeyl te gaen, gearresteert zyn.” Oprechte Haerlemse Courant, November 20, 1704. 1388 Amsterdam den 29 Aptil. “Volgens de brieven van de 18 passato van Pharo wierden aldaer dien dag van op ‘t strant gejaegde Spaens Schip zowel 20 karren met Silver verwacht: De Gouverneur van Buenos Ayres, met sijn Familie met het selve overgekomen, bevont sig te Pharo aen lant, van waer hy verder na Lissabon soude vertrecken.” Oprechte Haerlemse Courant, May 30, 1704. 1389 Lissabon den 4 Augusti. “Van eenige Schepen, sonder convoy van hier na Brasil geseyt, zijn 2 a 3 door de Fransse genomen; doch een der selver door een Engels hernome Schip door 3 Zeeuwen hier binnen gebracht.” Oprechte Haerlemse Courant, September 2, 1704. 1390 ’s Gravenhage de 15. Octobre. “Alsoo ‘t haer Hoog. Mog. Heeren Staten Generaal gelieft heeft aen haer E. Onderdaenen, de geinteresseerden by de schepen Capiania en Patache” (…) “tot reclame van het Intrest van d’Ingezetene van deze landen.” Oprechte Haerlemse Courant, October 16, 1706.

425 ISSN 2358-4912 interruption of fleets and the capture of vessels. Wars also had a destructive influence on foreign merchant communities in host countries. The government of Philip V moved quickly against Portuguese merchants. As the war started all trade with Portugal was considered “contraband.” Subsequently, Portuguese merchants’ goods were confiscated, at least if they were not married to Spanish women, because “they were considered naturalized.”1391 War forced people to choose sides, to admit to a nationality, and therefore suffer the consequences. French merchants in Portugal had similar problems. They could stay only if they were married, that is with a Portuguese woman, and if they did not exhibit public opinion about the war itself.1392 French merchants were often challenged in Portugal, and upon leaving some were arrested for espionage.1393 Eventually the French merchants left with passports signed by Carlos III, the Habsburg pretender to the Spanish Crown, Pedro II of Portugal, and John Methuen, the English ambassador, but were forced to return in retaliation for the French navy’s interruption of Italian vessels.1394 When they did leave again, their vessels were stopped, the passengers were put on land, seemingly deprived of their goods taken under order of the British Admiral Rooke.1395 These measures seemed to be quite harsh, but what was considered to be illegal always had some ways out. Governments did impose rules, and these regulations legitimized their existence. In a case of war these rules determined what it was to be Portuguese or loyal to “Portugal,” and thereby signified acceptance of the state of Portugal and its royal rulers. Despite these measures, trade did continue. Portuguese merchants were not opposed until December 1704. Indeed in July of that year, Louis XIV made a special agreement that Portuguese merchants could continue to trade in France, as long as French merchants could trade in Portugal.1396 At the same time Spanish merchants petitioned to continue trade to Portugal in order to receive products like sugar and tobacco.1397 That trade continued between the warring nations went without saying. Trade between the Netherlands and France continued, and according to Henry Kamen, the Estates General even purposely obstructed the ban of commerce between the two countries.1398 In England private merchants sought their way around the ban of commerce with France. In 1707, for instance, English merchants trading with Spain, Portugal and Italy protested against the competition of French wines and other products that had reached the English markets via Scotland.1399 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1391

De Madrid le 10 Fevrier. “En consequence d’un ordre du Roy, on a commence à saisir des effects des Portugais dans toute l’entendue du Royaume, à la reserve de ceux qui sont épousé des Espagnoles & que on regarde comme naturels; et l’on a aussi arrêtê touts les Vaisseaux Portugais qui êtoient dans nos Ports en Galice.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, March 6, 1704. 1392 Lissabon den 14 Juni. “De ongetrouwde Fransse, en selfs eeninge met Fransse vrouwen getrout, continueren sig to haer Vetreck te prepareren.” Oprechte Haerlemse Courant, July 8, 1704. 1393 Lissabon den 31 May. “Eenigen der selven, die met een Genouees Vaertuyg stil meenden weg te varen, zijn gevangen genomen, en seer nau opgesloten.” Oprechte Haerlemse Courant, June 24, 1704 1394 Lissabon den 18 Augusti. “Met den paspoort en van den Coning van Portugael en Spange en den Engelsen Ambassadeur voorsien is.” Extraordinaire Haerlemse Courant, September 11, 1704. 1395 Lissebon den 24 September. “dog welcke hen te Aimante en Kadiks aan land hadden laaten zetten, is met een zeer ryke lading door den Admiraal Rooke genomen.” Oprechte Leydse Courant, October 13, 1704. 1396 Amsterdam den 17 December. “De koning van Vrankryk heeft de vryheid om in de havene van sijn Ryk te varen, welcke door een ordonantie van den 24 July laastleden aen de Portugeesen was verleent, ingetrokken, en bevolen dat men hare schepen sal opbrengen en confisqueeren; op voorwensel dat de Portugeesen diergelyke vreyheid aen de Franschen in Portugael hadden beloofd; maer sulks niet naegekomen.” Amsterdamse Courant, December 18, 1704. 1397 Lissabon den 19 December. “De Spangiaerts solliciteren, om door alle bedenckelijke middelen te effectueren, dat sy de commercie met dit koninkrijck wederom mochten open krijgen, door ‘t gebreck, dat sy aen Taback, Suijker en andere waren hebben.” Oprechte Haerlemse Courant, January 8, 1705. 1398 “France still continued (notably after 1704, when the Dutch refused to renew the recently expired AngloDutch agreement banning trade to France) to trade with the United Provinces.” Henry Kamen, The War of Succession in Spain 1700-15 (Bloomington, IN: Indiana University Press, 1969) 141. For a discussion on the trade with the enemy and its effectiveness see J. Th.H. Verhees - van Meer, De Zeeuwse Kaapvaart tijdens de Spaanse Successieoorlog 1702-1713 (Middelburg: Koninklijk Zeeuws Genootschap der Wetenschappen, 1986), chapter 10. 1399 De Londres le 29 Avril. “Une Requëte des Marchands interessés dans le transport des Vins, & Eaux de Vie d’Espagne, de Portugal & d’Italie, & d’autres marchandises d’Hollande, se plagnent qu’une grande quantité de

426 ISSN 2358-4912 Privateering, restrictions on foreign merchants, and sheer confiscation of foreign goods definitely restricted commerce between the belligerent countries. Yet, the state’s authority to restrict all commercial activities was not complete and even challenged by private merchants who had too much to loose. The goods were mostly transported by sea, and these were subject to attack. Brazilian fleets now needed to be protected with war vessels. The authority of the Portuguese king depended on the dispatch of its own vessels. This varied very much from year to year. In 1704, ten English, Dutch and Portuguese vessels awaited the fleet at the Island of Terceira (Azores).1400 The next year the fleet again had four Portuguese war vessels, and it was actually delayed because the Portuguese king had first sent his war vessels to aid an allied fleet in Gibraltar.1401 Similar fleets left for Brazil under guard of Portuguese war vessels only.1402 Yet on its return the French struck. Three French war vessels attacked the fleet from Salvador da Bahia, Pernambuco and Paraiba. Two Portuguese captains died in the encounter, although the attackers failed to take their target, one of the convoy vessels.1403 Fortunately, the fleet from Rio de Janeiro avoided this, safely excorded by six war vessels two of which were English.1404 The arrival of such a rich fleet mostly under the authority of the Portuguese king was indeed a cause for celebration. According to a Dutch gazette “the arrival of the fleet from Rio de Janeiro has caused an exuberant joy, both at Court as well as among the inhabitants of the capital of Lisbon. This fleet was the richest ever to arrive from Brazil in human memory, as it had with it more than 20 million of cruzados, both in gold as well as in silver, and merchandise, for the account of the king, and many private merchants. Moreover it brought one and a half million prices of eight that were confiscated from the two vessels from Buenos Aires.”1405 This double fleet (for 1705 and 1706) was a high point for Portuguese authority and according to the gazettes, “never was there so much Gold and Silver as in the present.”1406 Still the privateers were on the lookout, and when the ships sailed to the different port cities around the coast, a Spanish privateer managed to capture one Brazil vessel.1407 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Vins de France, Eaux de Vie, soyes, Prunes, Raisins &c.” (…) “sont deja directement apportées en Escissse, où d’autres seront encore apportées.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, May 6, 1707. 1400 Lissabon den 18 Augusti. “De Brasilsse vloot wert alle momenten verwacht onder het Convooy van 10 Engelsse, Hollantse en Portugeesse Oorlogschepen die by d’Eylanden van Tercera op haer gekruyst hebben.” Extraordinaire Haerlemse Courant, September 11, 1704. 1401 Lissebon de 7 Mey. “Een Oostindis Schip, na Goa, de Vloot, na Rio de Genero, en verscheyde Schepen, na onser Conquesten gedesitineert, zyn de 29 passato onder Convoy van 4 Portugeese Oorlogschepen vertrocken.” Oprechte Haerlemse Courant, June 2, 1705. Lissebon den 23 April. “Men meend dat met het arriveeren van onze Oorlogscheepen, in 4 a 5 Dagen de Vloot na Brazil, nevens de scheepen na Oost-Indien zullen vertrekken.” Opregte Leydse Courant, May 18, 1705. 1402 Lissebon den 9 Juni. “Onze Vlooten na de Baija en Pernambuk, vertrekken morgen onder geleyde van 9 onzer Oorlogscheepen.” Opregte Leydse Courant, June 29, 1705 1403 Lissabon den 16 Mey. “Gisteren arriverden hier de Vlooten van Bahia, Fernambucq en Paraiba nevens 2 Schepen uyt Oostindien; gelelte schepen zijn oock door 3 Fransse Schepen geattacqueert geweest, in welck gevecht een Capiteyn van een Concoyer en een van een Coopvaerden gesneuvelt zijn; sonder dat men verneemt, dat de Fransse iets opgedaen hebben.” Oprechte Haerlemse Courant, June 19, 1706. 1404 Lisabon den 4 Juny. “Den 28 passate arriveerde onse Vloot van Rio de Genero, bestaende in 36 Coopvaerdyschepen en een schip van Goa, onder Convooy van 4 Portugeese en 2 Engelse Oorlogschepen, sonder Vyand ontmoet te hebben.” Oprechte Haerlemse Courant, July 6, 1706. 1405 De Lisbonne le 18 Juin. “L’heureuse arrivée de la Flotte de Rio de Janeiro” (…) “ont causé une joye inexprimable, tant à la Cour que parmi les Habitants de céte Capitale de Lisbonne. Cette Flotte esta la plus riche que soit revenüe du Brezil de memoire d’homme, jusques là qu’on conte qu’elle a aporté plus de 20 millions de Croisades, tant en Or, qu’en Argent, & en Marchandises, pourr le conte du Roy & de beaucoup Particuliers, outre un Million 500 mille Pieces de huit qu’on a trouve à bord de 2 Prises Espagnoles qu’elle a amenée ici, revenant de Buenos-Ayres.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, July 6, 1706. 1406 Lissabon den 13 juli. “Nooit weet men in dit Ryk zo veel Goud en Zilver gezien te hebben, als tegenwoordig.” Opregte Leydse Courant, August 2, 1706. 1407 Madrid le 30 Novembre. On mande de St. Sebastien, “a pris à l’abordage un batiment Portugais venant du Bresil avec la flotte de Lisbonne: il étoit chargé de sucres, de cuirs & d’autres marchandises de la valeur de quatre vingt mil écus.” Gazette de Rotterdam, December 23, 1706.

427 ISSN 2358-4912 The spring fleet to Brazil sailed with a combined war fleet, one vessel shipwrecked but all others arrived safely.1408 Yet it was not until a year later, August 1707 that a new fleet sailed for Brazil. They were lucky not to get captured. The fleet had to return with contrary winds, while a merchant vessel entered the port mentioned that six French war vessels were cruising in sight of the city.1409 The French squadron basically blocked the port of Lisbon, and no ship could sail in and out of the harbor. This stopped both the fleet going to Brazil, and the incoming fleet from Salvador da Bahia as well as the main fleet sailing for England.1410 Du Guay-Trouin, one of the commanders of the fleet, did return to Brest with two captured vessels only to turn around and block the port again.1411 The admiral did not catch the fleets from and to Brazil, neither did he encounter the English fleet from Lisbon, demonstrating how difficult it was to intercept the combined fleets. However, Du Guay-Trouin and two colleagues did hit the bull’s eye, when a new one hundred-sails English fleet with five warships sailed to Lisbon. The encounter was fierce several English vessels were heavily damaged, one exploded, and one with the governor of Virginia was captured, and about 40 vessels were taken 1412 Obviously, this was a worrying signal that fleets going to and from Portugal were now becoming more unsafe. Whereas before 1707 the Brazil fleets were deemed to be secure, and therefore the Portuguese government and merchants could receive their property in safety, this situation increasingly deteriorated. Consequently the internal situation in Portugal as well as in Brazil and other colonies became more challenging. Safety was never complete, and the first rumors about this started in 1704. Upon the Habsburg king’s entrance into Portugal, he was rumored to have doubted the whole enterprise. “People speculated that Charles III, had thoughts that, in stead that the Portuguese king would help him, would pack his valuables, to flee from this Realm to Brazil.”1413 Pedro II died in December 1706, succeeded by his son João V. Yet this was not completely without incident. Indeed the rumor was that “even though the throne belonged to him without any contest, one had said that nevertheless the French Party had tried to elevate the second son of the late king to the throne, and give the regency to a high nobleman of this kingdom. Yet this design fell through because of the great

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1408

Lissabon den 21 April. “de Portugueeze scheepen na Oost Indiën en Brazil gaande, zyn met dezelfden vertrocken.” Oprechte Leydse Courant, May 16, 1707; Amsterdam den 30 December. “dat de schepen van daer in de Maend na de Bahia de Todos los Sanctos vertrocken aldear behouden gearriveert waren: 20 Mijlen van daer was een Schip van haer Compagnie gestrant en het Volk miraculeuselijk gesalveert.” Oprechte Haerlemse Courant, December 21, 1707. 1409 Lisbonne, le 6 Août. “La Flotte destinée pour le Bresil, est encore retenue dans nôtre rade par les vents contraires, et l’on regarde cela comme un grande bonheur pour les interessés, parce que le Maître d’un Bâtiment marchand arrivé ici depuis 2 jours, raporte que 6 Vaisseaux de Guerre François sont venues croiser sur notre Côtes.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, August 26, 1707. 1410 Lissabon den 2 September. “De vyandelyke 6 Oorlogschepen en 2 kapers, kruysten gisteren nog voor onze wal. Zy belemmeren de commercie zéér. Sedert zy daar gekruyst hebben, zyn van hier geen Schepen uytgelopen nóg binnengekomen.” (…) “De Engelse Oorlogschepen leggen met de koopvaarders nog hier, onzeker wanneer zij vertrekken zullen.” Opregte Leydse Courant, September 26, 1707. 1411 De Paris le 19. Septembre. “Par les lettres de Brest du 14. On apprend, que le jour précédent Mr. Dugué Trouin étoit entré dans ce port avec deux prises, après avoir croisé pendant quelques semaines sur les côtes de Portugal. Il doit bientôt se remettre en mer.” Gazette de Rotterdam, September 26. 1707. 1412 Parijs den 4 November. “dat d’Escadres van Mr. du Cassé, Mr du Gué Trouin en de Chevallier de Fourbin” (…) “den 21 aen de Caep Lizard ontmoet hadden een Engelschen Vloot van over de 100 zeylen, gaende na Portugaal onder het escorte van 5 oorlogschepen” (…) “de Heer du Gué Trouin attacqueerde met sijn schip de Lelie, ‘t Fregat de Glorie en een ander de Cumberlant echaperen; maer wijl onse Oorlogschepen tegen soo veel niet bestand waren, en de Cumberlant haer masten afgeschooten wierden, meent men, dat sy de Chester en Ruby, op welcke laetste de Colonel Hunter, Gouverneur van Virginien, is, genomen is, de Devonshire, die al retirerende met 7 Oorlogshepen en Schutgevaer hielt is eyndelijk gesprongen; de Royal Oack heeft haer boegspier verloren, en 12 Dooden en 24 Gequesten bekomen.” (…) “Men segt dat omtrent 40 Coopvaerders nevens een transportschip met Paerden in Valant ingenomen zijn.” Oprechte Haerlemse Courant, November 10, 1707. 1413 Lissabon den 24 April. “Oock spagneerde men, dat Carel III, van hartseer de Teering had geset, alsoo de koning van Portugael in plaats hem te helpen, sijn kostelijckheden liet inpacken, om uyt sijn Rijck na Brasil te vluchtten.” Oprechte Haerlemse Courant, May 31, 1704.

428 ISSN 2358-4912 superiority of the other party, which is very close to the reigning ruler.”1414 Of course the whole point was that the succession would not change the Portuguese administration in the war, which the Dutch gazettes made a special note to confirm.1415 Although rumors, they still contributed to some loss of legitimacy of the monarchy and its continuation of the war. It was this continuation of the Portuguese government’s policies as well as the restoration of the French navy after the 1702 destruction of one squadron in Vigo that may have contributed to increased pressure on the Portuguese population. As a consequence the grumbling started, not only in Portugal, but also in Brazil. As of 1708 the French attacks started moving into the Atlantic. Before this time the Bourbon countries’ capture of Brazilian bound and incoming vessels had been modest. Obviously it was hard to capture ships in the middle of the Atlantic, and the usually unsafe spots around the Atlantic islands as well as near Lisbon itself were decently well defended. The worst that might have happened is the capture of some stray ships. Yet the most treasure was carried by war vessels, which offered strong resistance. In 1708 French squadrons attacked the Atlantic islands. In the spring it was the outbound island of Madeira that was the casualty. A small French fleet landed, demanded supplies, was refused and subsequently pillaged a town.1416 In the fall the island of São Jorge in the Azores was the casualty of a French visit.1417 At the same time French warships and privateers showed up in front of Salvador and Rio de Janeiro, where they almost took a vessel from Goa and another Portuguese ship.1418 After João V decided to continue the war in full, the Sun king reacted by sending in the full force of the French navy. Cruising near the Azores were five men of war, three English vessels and two Portuguese. They came in sight of eleven French men of war, which belonged to the squadron of Du Guay-Trouin, threatening the return fleet from Brazil. This threat could not go unanswered and a joint eight vessel Portuguese/English squadron sailed to meet the French men of war. The French had the superiority. The English admiral Bing wanted to attack, but his Portuguese colleague refused. Instead the fleet departed, leaving the return fleet from Brazil open to French attack.1419 One may understand how upset the merchant community was in Lisbon upon the return of the five war vessels. Yet, against all odds the extraordinary rich fleet escaped the claws of the French squadron, thought to be commended by Du Guay-Trouin. According to the gazettes part of the fleet from Salvador da Bahia worth six million “pesos” in gold, 50000 roles of tobacco and 36000 chests of sugar arrived safely. Admiral Bing set sail with a new war fleet to convoy the rest of them.1420 The escape was narrow. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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De Lisbonne le 13 Decembre [1706]. “Quoi-que ce droit lui appartienne sans contestation, on dit neanmoint que le Parti Français avoit tâché de faire élever au Thrône le second Fils du Roi défunt, & de donner la regence a un Grand du Royaume; mas ce dessein a echoüé par la grande superiorité de l’autre Parti, qui est très-affectioné pour S.M. Regante.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, January 18, 1707. 1415 De Lisbonne le 13 Decembre.[1706] “En sorte que les affaires generalles ne soufriront aucune alternation par la mort du Roy Don Pedro.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, January 18, 1707. This is very likely just a rumor, nothing about this is mentioned in Maria Beatriz Nizza da Silva, D. João V. (Casais de mem Martins: Circulo dos Leitores, Temas e Debates, 2009) 24-27. 1416 De Madrid le 14 Fevrier. “Les lettres de Cadix portent, que deux Armateurs François étant arrivez à l’ile de Madére, qui apartient au Roi de Portugal, & les Habitans leur aient refusé de fair aiguade, & même tiré sur eux, ils avoient debarqué 400 hommes, qui s’étoient emparez de la Ville, & l’avoient abandonnées au pillage.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, March 9, 1708. 1417 De Lisbonne le 8 Octobre. “Nous aprenons par un vaisseau arrivé de Tercéres qu’une escadre de vaisseaux François croise dans ces Iles & a pris cele de St. George.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, November 12, 1708. 1418 Amsterdam den 3 October. “Met de laatste Brieven van Lissabon wert geschreven dat de Viceroy van Goa, Don Conjetano de Mitra” (…) “schrijft, dat hy voor de Baer van de voorn. Bahia met een Frans schip van 28 Stucken in gevecht is geweest; en dat voor Rio di Genero 2 Fransse Capers ‘t Portugees Schip de Bon Jesus van Bontas hadden genomen, ‘t welck door een Portugees Oorlogship was hernomen.” Oprechte Haerlemse Courant, October 4, 1708. 1419 Lisbon den 8 October. “Kapiteyn Bucays Commandeur der drie Engelsche Scheepen zegt, dat hy alle kragten in ‘t werk had gesteld om onzen Admirael te bewegen tot het aentasten van de vyanden; maer dat die zulks niet gerade vindende een schoot had gedaen om het gevegt te myden en naer huys te keeren.” ’s Gravenhaegse Courant, November 12, 1708. 1420 Lissabon den 30 October. “het selve bestaet uyt noch in omtrent 100 Zeylen, daer onder 3 Oost-Indise schepen; en om deselve sooveel als ‘t mogelijck is voor Vyandl. Ontmoetingen te beschermen is d’Englese Admirael Bing met sijn Esquadre gisteren uytgelopen om daer op te kruyssen: Dese vloot brengt aen Gout alleen

429 ISSN 2358-4912 Again the French squadrons were unable to do great harm, but the threat had definitely increased. Moreover it was more and more obvious that without the English war vessels the Portuguese fleets would be unsafe. English men of war only convoyed the Brazil fleets to the Atlantic islands. The relationship between the British and Portuguese administrations was positive, and if the Dutch gazettes were to be believed, the British customs also reaped their profits from the Brazil and East India fleets.1421 The year 1708 showed the vulnerability of the Portuguese trade with Brazil. In individual cases tensions rose concerning the British. One vessel was stranded in a Portuguese port after being attacked by an enemy vessel and liberated by an English one. Eventually the Captain of the English ship could conduct the Pernambuco ship to Lisbon, but would not set it free until receiving the necessary acknowledgment for this deed.1422 Worse though, the main battlefield of Brazilian commerce was moving towards the Western Hemisphere. Dutch gazettes reported relatively little about Brazil. Sometimes this transpired through some letters that became public, but always, or mostly always they were brief towards the happenings on that continent. The main issues of interest to their audience were the mining and transport of silver and gold. Silver came mostly through the Colônia do Sacramento at the River Plate, which was guaranteed Portuguese as part of the Bourbon-Braganca alliance treaty in 1701.1423 It did not take until 1703, after Pedro II nullified the treaty, that stories came in about a Spanish blockade that stopped the inflow of hides.1424 The Portuguese government sent new troops to the River Plate to prevent a Spanish takeover.1425 This was to no avail, as two years later a message arrived in Lisbon that the Colônia do Sacramento had been surrendered to Spanish forces, and that its garrison had moved to Rio de Janeiro.1426 This did not go well for the governor of Rio de Janeiro, who was send to Portugal, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

mede 6 Millioenen Pesos, 50000 Rollen Taback; 360000 kisten Suyker, en een grote quantiteyt huyden en andere Coopmanschappen.” Oprechte Haerlemse Courant, November 12, 1708. “Cet Admiral aïant eu avis il y a deux jours par quelques fregattes qu’il avoit laissées en mer, que quatre gros vaisseaux dont l’une étoit à trois ponts, avoient été vus a l’hauteur de Burlings, jugea qu’ils étoient de Mr. Dugué Trouin.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, November 19, 1708. Another gazette estimated that the fleet brought 10000 arrobas in gold. (1 arroba is about 15 kilos). De Lisbonne le 10 Novembre. “Elle y a aporté dix mille arrobes de or.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, November 30, 1708. 1421 Vaelmuyden den 20 December. “Men seekert, dat ‘er dit jaer een groote somme van Inkomste regten aen de Tolen zullen worden betaeld, door d’arriveeren van verscheyde vlooten; want die van Brazil bestaet na 97 scheepen en zederd 4 of 5 maenden zyn er na 14 Oostindse Scheepen aengekomen.” ’s Gravenhaegse Courant, December 29, 1708. 1422 Lissabon den 8 Maart. “Ons schip met tabak, door de Engelse van de Vyanden hernomen, is nog in handen van den Admiraal Jenkins, die het niet wil overgeven, ten zy men een vereering aan den kapit. die het hernomen heeft, geve.” Oprechte Leydse Courant, April 1, 1709. 1423 Lissabon den 21 Juny. “en een vrije commercie in het Eylant Gabriel op de Rivier van Buenos Ayres toegestaen wert.” Oprechte Haerlemse Courant, July 19, 1701. 1424 Lissabon den 9 September. “Zedert heeft zig het gerucht verspreit, dat de Spangiaerden in Buenos Ayres onder een Fortres, die des Kroon op sijn Limietscheyding heeft tween andere Forten opgeworpen, en aen de Portugese geinjungeert hebben, geen beesten in alle lantstreeck meer te doode. Men voegt er oock by, dat de Portugeesen uyt haere sterkte sounde gejaegt hebben; doch dit vereiyst confirmatie. Dit is seker, dat den handel der Huyden, die in die Quartieren van groot belang was, gestremt is.” Oprechte Haerlemse Courant, October 6, 1703. 1425 Lissebon den 23 September. “De Vloot na Brasil, die op sijn Vertreck stont is opgehouden, om eenig Volck en noodige Oorlogs-Behoeften, welcke na de nieuwe Colonie by Buenos Ayres met 2 Oorlogschepen gevoert sullen werden in Compagnie mede te brengen. Oprechte Haerlemse Courant, October 16, 1703. 1426 Madrid den 14 November. “Zedert is over Portugael tyding van ‘t confisceeren deser Colonie leggende op ‘t Noorder gedeelte van Rio de la Plata tegenover ‘t Eyland St. Gabriel gekomen: Het Portugees Garnizoen is in Schepen na Rio de Janeiro gekomen.” Oprechte Haerlemse Courant, December 15, 1705. Luís Ferrand de Almeida wrote that this was already evident by 1703 in the Dutch gazettes and mentioned by, amongst others, Francisco de Sousa Pacheco, Portuguese envoy to the Estates General. A Colonia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha (Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1973) 267.

430 ISSN 2358-4912 and together with several other officials put in the tower of Belem upon arrival on the accusation of malversation.1427 The increased output of gold also resulted in local problems. News of the sending of new troops is always a message that something is happening in Brazil. According to a Dutch gazette in 1700, the Governor of Rio de Janeiro wrote that he opened a new road with the help of Paulistas. The Portuguese administration subsequently decided that is was time to send fresh forces that can curb the “Idolatrous Indians” and to defend the “Christian inhabitants” who were troubling the Indians with their pillages.1428 Meanwhile new people kept entering Brazil, whom a Dutch gazette described as “vagabonds and tramps,” picked off the street and sent on the fleet.1429 As messages such as this one “and that in the future even more riches will reach us from Brazil, since a new Gold mine has been discovered” became commonplace, so would eventually the problems how to govern the mines.1430 It was not until 1709 that all of this came together in an ever increasing sense of loss of royal control. In 1709 three critical messages reached Lisbon from Rio de Janeiro that would presage future problems. The spring brought the message that French troops had occupied and plundered a small island inhabited by fishermen.1431 The fall brought news that there was a revolt around Rio de Janeiro and “the inhabitants have taken up arms in various regions and have committed great disorders.”1432 And in the winter came a message that a Danish ship had called in the Port of Rio de Janeiro and was said to have taken in more than one million (probably cruzados) in gold dust as well as in other goods. The Council of Trade objected to this affront, and it was said the king did send a message to the Court of Denmark.1433 This was a breakdown of Royal authority, and more authoritarian measures were necessary. The last part of the War of the Spanish Succession was the most challenging. First, the governments of France and the United Kingdom started peace negotiations, much to the chagrin of their allies in the Netherlands, Austria and in Portugal. This meant that subsidies for the war, as well as military assistance on the ground became more challenging. This again meant that the Portuguese administration needed to raise taxes, both in Brazil as well as in Portugal itself. King João V felt strong enough that he did not call the Cortes (Estates) to ask for new taxes, rather he farmed out the sale of tobacco in Portugal to two very rich merchants and increased ecclesiastical taxes on Portuguese villages.1434 However, did the king really have this authority? It was immediately challenged. Then the administration announced that “before the departure of the Brazil fleet a prohibition was published V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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De Lisbonne le 19 Juin. “Celui qui etoit ci-devant Gouverneur de Rio Janeiro, a été amene ici, avec d’autres personnes acusées de malversation, & on les a envoiées à la Tour de Belem.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, July 6, 1706. 1428 Parijs den 10 November. “Uyt Portugael wert geschreven, dat den Coning op het ontfangen van Schrijven van de Gouverneur van Rio di Genero (dat hy met de Paulisten, een volck in die Quartieren woonachtig, het openen van een bequamer Weg na de Gout-Mijnen geconcerteert heeft) van Resolutie geworden is, een Terce Voetvolk na dat Gewest over te stuuren en d’idoltrise Indianen van de nabuurschap, welke de Christene Inwoonders door hunne Stroperyen seer lastig vallen, te doen beteugelen.” Extraordinaire Haerlemse Courant, December 2, 1700. 1429 Lissebon den 14 February. “en de Gerigt-Dienaers dagelijcks bezig, met Landloopers en Schooyers te ligten, om met de Vloot na Brasilien gezonde te worden.” Extraordinaire Leydse Courant, March 15, 1702. 1430 Lissabon den 13 February. “en dat na desen noch meer Rijckdom uyt Brasilien sal komen, vermits noch een Gout-Mijn tusschen Rio di Genero en de Bahia de Todos os Sanctos ontdeckt is.” Oprechte Haerlemse Courant, March 13, 1703. 1431 De Lisbonne le 8 Mars. “que les Armateurs François avoyent ravagé & ruiné dans le Rio de Janeiro, une petit Isle où habitoient des Pêcheurs.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, March 29, 1709. 1432 De Lisbonne le 7 Août. “On a receu avis que les Habitants de Rio de Janeiro ont pris les armes en divers lieux & ont commis des grands desordres.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, September 6, 1709. 1433 De Lisbonne le 4 Decembre. “Sur l’avis qu’on a eu, qu’un Navire Danois a été trafiquer au Brezil, d’ou il y a emporte pour un Million de Poudre d’Or & beaucoup des marchandises. Le Consul de Commerce en a fait de grande plaintes au Roy, et l’on dit que Sa Majesté aen envoyera faire autant à la Cour de Danemarc.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, December 14, 1709. 1434 De Lisbonne le 2 Decembre. “Le Roi a fait demander un Don gratuit aux Ecclésiastiques de son Roiaume: Quelques ont déjá cointribué. Les Curez & les Prieurs des Villages ont été taxez à une certaine somme. La Ferme de Tabac a été conservée à deux riches Marchands de la Ville de Porte, pour plus d’un Million de Crusades par an: Une partie de ce Fonds est destiné a prier ce qui dû à l’armée, & le reste est assigné pour autres besoins.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, December 27, 1709.

431 ISSN 2358-4912 that no foreigners could sail with it.” Whereupon “the British Envoy sent protests that the merchants of Great Britain though the Peace and Commercial Treaties should be allowed to found at least four houses of commerce in Brazil” which led to embarkation of some British merchants on the fleet anyway.1435 Now it became more difficult to sail to Brazil, as passports were for the first time required.1436 These measures showed that trouble was ahead on the other side of the Atlantic. Eight men of war accompagnied the fleet, and for the first time, it seems, three of those were not financed by the Royal Treasury, but by the Commerce Company.1437 In other words, like with the tobacco contract, the Crown privatized authority to merchants. Messages out of Brazil also showed a decline of Royal authority. On board the outgoing fleet were four regiments to quell the internal revolts in the Mining district because “the Paulistas (being the people of the land) impeded the labor of the Mines, for which reason a regiment of well experienced soldiers were sent and part of them were already scattered.” Obviously this did not have the desired effect and thus new regiments were sent with the more peaceful goal “to facilitate an agreement between the inhabitants of Rio de Janeiro and those of the City [Ville] of São Paulo, whose differences are about the issue of the Mines, of which the latter would not like to give away the position in which they have been for a long time.”1438 The prior contributions to the discovery of the Mines and services to the crown had given entitlement and authority to the Paulistas. News of a similar challenge to Royal authority reached the Dutch gazettes at the same time as the news of the French attack on Rio de Janeiro under the leadership of Mr. Du Clercq.1439 “Today a message from Bahia arrived with the news that the community of Pernambuco revolted against the governor, over the issue of the appointment of a new Municipal Court, which forced him to withdraw to the governor of Bahia.”1440 Again this was a direct challenge to Royal authority, as the population took it upon themselves to appoint a new governor. Indeed the local population not only elected its own governor but also set its own terms on how to resolve the issue. “One heard that those of Pernambuco have written to this Court that they would not mind to admit and obey a new Governor, if he brings with him a Royal General Pardon. At the same time, it is understood that they have appointed a new Governor, being a son of the late Marquis de Montebello, whose Marquisette existed at the time when this Realm was under Spain.”1441 Thus this was a direct challenge, especially at the V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Lissabon den 14 December [1709]. “Voor het Vertreck der Brasilse Vloot was een verbod gepubliceert, datgeen Vreemdeling mede mogten gaen; maer op de Remonstrantien van den Brittisen Minister, dat de Coopluyden van Groot-Brittannien uyt de kraght van de Vredes-en Commercie Tractaten ten minsten 4 Factoiren in Brasilien mogten oprechten, zijn echter noch eenigen Engelse Coopluyden met die Vloot vertrocken.” Oprechte Haerlemse Courant, January 7, 1710. 1436 De Lisbonne le 2 Decembre. “Tous ceux qui sont embraquer sur la Flotte ont été obligez de prendre des Passaports, ce qui s’étoit pas pratiqué ci-devant.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, December 27, 1709. 1437 De Lisbonne le 2 Decembre. “y compris 8 Vaisseaux de guerre, savoir 5 de la Couronne & 3 de la Compagnie du Commerce.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de West-Frise, December 27, 1709. 1438 Lissabon den 14 Maart. “Om dat de Paulisten, (zynde het landvolk) het arbeyden in de Mynen zéér verhinderde, waaron hen dan een Detachement geoeffende Soldaaten was toegezonden, dat ‘er ook al een gedeelte van had verstrooid.” Oprechte Leydse Courant, March 31, 1710. De Lisbonne le 2 Decembre. “On assure que les Troupes que la Cour envoie au Brezil, sont destinées à faciliter un accomendement entre les Habitans de Rio de Janeiro & ceux de la Ville de S.t Paul, qui sont en differend au sujet des Mines, don’t les derniers ne veulent pas ceder la Direction qu’ils ont euë depuis longtems.” Avec Privilege de Nos-Seigneurs les Etats d’Hollande & de WestFrise, December 27, 1709. The best book on this is Adriana Romeiro, Paulistas e Emboadas no Coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII, (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008) 70-71 where she points out the jurisdiction conflicts between officials in Rio de Janeiro and São Paulo. 1439 Maria Fernanda Bicalho’s A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII, (Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2003), 52-54, 268-292 discusses both the consequences of the War of the Spanish Succession and the issue of fear and authority. 1440 Lissabon den 16 February. “Heden is het Advys uyt de Bahia gearriveert, met de tyding; dat de gouverneur gerevolteert is over het willen aenstellen een nieu Camer-Gericht, ‘t welck sy genootsaeckt hebben, om sig nevers den Gouverneur na de Bahia te retireren.” Oprechte Haerlemse Courant, March 24, 1711. 1441 Lissabon den 14 April. “men verneemt, dat die van Phernambucq aen dit Hof geschreven hebben, wel een nieuwen Gouverneur te willen admiteren en gehoorsamen, mits dat hy een Conincl. Generael Pardon medebrengt ondertuschen verstaet men, dat reets een nieuwe Gouverneur daer toe benoemt is, zijnde de Soon

432 ISSN 2358-4912 time of the dynastical issues related to the Spanish succession. The call for a new governor as a mediator in the conflict between the populations of Olinda and Recife seemed to present a possibility to reestablish royal authority.1442 Indeed, upon arrival of the new governor the peace and quiet seemed to be restored.1443 But the mood changed when the new governor arrested those involved in the rebellion.1444 Subsequently, his successor in 1714 was reportedly refused, not by the local people, but those of the Mines, because he was too young. Thus they kept the former governor until the king would send a person who was more advanced in age.1445 Although the gazette may have been wrong about the location, still the belief that Pernambucans may actually have refused this was telling. The deterioration of royal authority had gone so far that the Pernambucans felt entitled to judge a candidate for governor on his merit. This was partly due to the French assaults on Rio de Janeiro. In three consecutive years warning signs went out that French squadrons were to attack Brazil, and in particular Rio de Janeiro.1446 The first attack was defeated with many casualties. The second ended in the ransoming of the city of Rio de Janeiro, and the third was a false alarm. According to the report from Rio de Janeiro the assault by Du Clercq was treacherous. After being advised of a possible French naval attack the local authorities were surprised to see a squadron of six vessels with English flags at the entrance of the Bay of Guanabara. They refused entrance, and after the fleet took a local vessel, it was clear that this was the enemy. According to the report, the French fleet landed troops away from the city, after consulting with runaway Africans. Du Clercq’s troops landed about 1100 persons, attacked the city, and occupied its center. After very bloody combat, only 610 enemy forces survived unharmed to surrender, while the others were either wounded or dead.1447 The fleet left after they saw that the attack had failed, but not without a bombardment of the city, which did not cause much harm. The inhabitants of Rio de Janeiro had won the fight, but at great cost, and they were extremely embittered about this. According to the report there were five hundred casualties (deaths and wounded) on the defenders’ side.1448 The local mood was foul, and this was understood even in Lisbon. Upon the reception of the news there still was much joy, though the victory’s celebration was V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

van een gewesen Marquis de Montecello, which Marquisaet plats had, als dit Rijck onder Spange stont.” Oprechte Haerlemse Courant, May 5, 1711. 1442 Amsterdam den 19 December. “De onlusten tusschen de Inwoonders van ‘t Recife en de Stad Olinda, nog continueerden, dog men hoopte dat de aenkomst van de Vloot, de nieuwe gouverneur de oneenigheyd wel in der minne byleggen zoud.” ’s Gravenhaegse Courant, December 21, 1711. 1443 Amsterdam den 30 Maert. “De inwoonders van Phernambucq waren nad de aenkomst van de Vloot en eenen nieuwen Gouverneur, in rust geraekt.” ’s Gravenhaegse Courant, April 1, 1712. 1444 Lissabon den 15 Juny. “Diy advys is oock te Fernambucq aengeweest, alwaer de Beroertens wel gestilt, maer door het gevangen setten van verscheyde der voornaemste Persoonen de Gemoederen gelatereerd bleven.” Oprechte Haerlemse Courant, August 9, 1712. 1445 De Lisbonne le 4 Janvier. “Le nouveau Gouverneur de Fernambouc y avoit trës-bien reçu, mais ceux qui travailler aux mines ne vouloient pas le reconnoître en cette qualité, à cause de sa jeunesse, demandant que l’ancien Gouverneur y demeure jusqu’à ce que Sa Majesté ait fait choix d’une personne plus avancée en âge pour remplir ce poste.” Gazette de Rotterdam, January 9, 1714. It is unclear if this relates to Pernambuco, given that the new governor, D. Lourenço de Almeida arrived in 1715. Evaldo Cabral de Mello, A Fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates, Pernambuco 1666-1715 (São Paulo: Companhia das Letras, 1995) 439. 1446 For the attacks on Rio de Janeiro see: C.R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750. Growing Pains of a Colonial Society, (Berkeley, Los Angeles,and London: University of California Press, 1962), chapter 4. 1447 Lissabon den 16 February. “dat me aldaer in de Maent Juny door een Advys gewaarschout was, dat in Vranckrijck eenige Schepen geepiqueert wierden, die mogelijck het oog op die Plaets mochten hebben, dat daerop in in Augusti 5 Oorlogschepen en een Fluyt met Englesse Vlaggen voor de Haven quamen.” (…) “Eyndelijck hadden sy op aenraden van 4 Negers, die by haer aen Boort gevlucht waren, omtrent 14 Mijlen van de Stad 1000 à 1100 Man aen lant geset.” (…) “waarop de Vyanden sig in de Stad begaven, en meester wierden van 2 Straten en ‘t Paleys van den Gouverneur, alwaer het gevecht op ‘t heeft wiert; maer sy wierden eyndelijck genootsaekt sig te retireren in een groot packhuys” (..) “na eenige resistentie, wierden sy aldear gedwongen sig alle krijgsgevangen over te geven, zijnd desselfs getal 610, en d’overig alle gedoot of gequetst.” (...) Oprechte Haerlemse Courant, March 24, 1711. 1448 Lissabon den 16 February. “De Schepen” (…) “vergenoegde sig met het werpen van eenige Bomben, sonder effect van schade te doen, en waren daerop vertrocken.” (…) “De Portugeesen sounde in dese actie oock 500 soo Dooden als gequetsten bekomen hebben.” Oprechte Haerlemse Courant, March 24, 1711.

433 ISSN 2358-4912 described as “solemn,” out of consideration for the consequences of this enterprise.1449 The violent expedition led to other acts of violence. Du Clercq was imprisoned in a local house, and he was murdered by three unknown persons. The governor was embarrassed, another break down of authority, and offered a 1000 crusados reward for the discovery of the perpetrators.1450 The mood remained bad, and this was reflected in an exchange of letters between Du Guay-Trouin and the governor of Rio de Janeiro a year later. In reply to Du Quay-Trouin’s letter concerning the murder of Du Clercq and the maltreatment of the French prisoners the governor wrote, “The mercifulness of the local population led them to feed the prisoners, even though they did not merit this, given the way in which they had attacked this country.”1451 Four war vessels and military were sent to Rio de Janeiro to protect the port from a possible new attack.1452 What followed in the gazettes was a case of emotional roller coaster. The name Du GuayTrouin was not unknown to the Portuguese, the admiral who had been sailing along the Portuguese coast trying to intercept the vessels to and from Brazil, where he had attacked two fleets from Portugal going up and down from the Channel. He was feared, and when his squadron was preparing news got out. So it was that in June 1711 messages came that he had been ready to sail from Brest, waiting for instructions from Spain, but was ready to sail to an unknown destination in the Americas.1453 Just before the French authorities falsely announced that Du Guay-Trouin’s fleet was sailing to Santo Domingo and from there to New England or Jamaica, the Portuguese administration, not fooled, sent warning signs to Rio de Janeiro that the French were preparing a fleet which was officially said to be going to the West-Indies.1454 Brazil was on high alert. The governors of Rio de Janeiro, Bahia and other places were preparing for an attack. Not only did the governors strengthen defenses, they also called upon the “mountaineers to come down and defend the cities.”1455 Again it is important to notice that if one calls upon other persons to participate in the defense of the city, this will translate to a shift in royal authority to the “mountaineers,” giving them leverage to negotiate over taxes such as the quinto. The three main cities in Brazil were in a state of panic. “In Brazil everyone was under arms, should the French squadron want to attack: the fleet from here has not arrived in Bahia yet; the Rio de Janeiro fleet was laying in combat position in the harbor, should the French V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Lissabon den 16 February. “Uyt consideratie van de geduchte gevolgen des Ondernemingene heeft men hier veel Vreugde over den gewenste uytslag getoont, en den 14 deses plechtig gevierd.” Oprechte Haerlemse Courant, March 24, 1711. 1450 Lissabon den 4 September. “Mr. de Clerc, die d’Expeditie vam de Maendt April van voorleden Jaer gevangen is, en zedert in ‘t Huys van een Portugees Adjudant te Rio de Genero bewaert wiert, was door 3 onbekende Persoonen, die in ‘t Huys quamen, als d’Adjudante uyt was, vermoort; waerover de Gouverneur seer geraekt zijnde, had een premie van 1000 Crusades, voor die Daders ontdeckte, belooft.” Oprechte Haerlemse Courant, October 1, 1711. 1451 De Paris le 22 Fevrier. “La pieté des gens du païs a engagé de leur fournir, quoi qu’ils ne le méritassent pas, vu la maniére don’t ils ont attaqué ce païs.” Gazette de Rotterdam, February 24, 1712. 1452 Lisbon den 15 April. “De Vloot na Brazil en de scheepen na Goa gedestineerd, zyn den 2 dezen met 4 Oorlogscheepen van onze Rivier in zee gelopen. Deze scheepen hebben ook eenig krygsvolk aen boord om het garnizoen te Rio de Janeiro te versterken.” ’s Gravenhaegse Courant, May 4, 1711. 1453 Parijs de 12 Juny. “en dat met een courier uyt Spangie verwacht met sekere Instructien, die nog manqueren, sulcks doet sekelijck geloven, dat dit esquadre na America gedestineert is.” Oprechte Haerlemse Courant, June 18, 1711. The memoires of Du Guay-Trouin were posthumously published in 1740 and translated into Portuguese in the 21st century. René Du Guay-Trouin, O Corsário. Uma Invasão Francesa no Rio de Janeiro. Diário de Bordo, Carlos Ancedê Nougué transl. (1st ed. 1740; Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002). 1454 Parijs den 17 July. “Men heeft eyndelijk aen ons Hof publyk gemaekt dat de Vloot onder den Heer Gue Trouin van Brest vertrokken” (…) “na de West-Indien geseyld is” (…) “en na Jamaica en Nieuw-Engeland te gaen.” ‘s Gravenhaegse Courant, July 22, 1711. Amsterdam den 8 July. “Van Lissabon wort geschreven dat een advysjagt den 8 Juny daer na Rio de Janeiro zoud vertrekke met eenige depeches van het Hof en met waerschouwingen dat de Fransse hunne Zeehavens grote toerustingen maekckten en voorgaven als of zy na de West-Indiën wilden.” ’s Gravenhaegse Courant, July 10, 1711. 1455 Lissabon den 13 November. “’En dat dewyl de Gouverneurs van Rio, van Baya de Todos los Santos en andere Fortressen reets gewaarschuwd waren van het vertrek van het vyandelyk Esquadre van Brest, zy niet alleenlyk die Plaetsen in goeden staet van tegenweer hadden gesteld, maer het landvolk en de Bergluyden ook op ontboden door welk middel met het gedreygde gevaer meend te zullen kunnen afweeren.” ’s Gravenhaegse Courant, December 4, 1711.

434 ISSN 2358-4912 arrive there; and it will not return until it knows where the squadron had sailed; those in Pernambuco were still in a mess; and the inhabitants were in arms against each other; so that most of the sugar fields will be spoiled.”1456 Rumors started to arrive about an attack on Brazil in Lisbon. A Genovese vessel sailing past the Cape Verde Islands saw Du Guay-Trouin taking in provisions, and according to the report “the people of the vessels did not make it a secret of their pending attack, that is to Brazil” which “gave Court some anxiousness.”1457 The rumor mill was wide open. The Dutch gazettes first recorded a message from Paris that Du Guay-Trouin had taken the Brazil fleet and burned the Brazilian capital, Salvador da Bahia.1458 Yet next came more concrete news from Lisbon, as a messenger vessel had arrived from Salvador da Bahia telling that the attack before the city had fallen into French hands. The report came from Gaspar da Costa, commander of the squadron of Portuguese war vessels in the Port of Rio de Janeiro, which legitimized his actions in the port. The messages and reports did change over time, and they remained overtly optimistic until the complete story actually came out. The story of Du Guay-Trouin’s squadron’s entry in the Bay of Guanabara through the fog is well known and described in detail in the gazettes. The shock of seeing eighteen men of war with their canons facing the city was tremendous. Instead of fighting, the commander put all his people on land, burned four vessels and stranded the fifth, so that the battle could continue from the city fortifications. He also reported about an aborted landing of the French troops.1459 To this message was added news from the governor of the nearby town of Cabo Frio, namely that the French squadron did conquer the city, but not before the inhabitants had all left. So the positive thinking (from Brazil?) was that the French forces had to leave town soon without much booty since they would be without provisions.1460 This was a disastrous defeat of the king’s navy and the reaction in Lisbon was one of sheer consternation. How could 16 warships enter the well defended harbor through a very narrow entry without any opposition? Why did not warships, one of which had 100 canons, not take up the defense? Moreover, would French troops now burn the city, occupy the gold mines, and attack Salvador da Bahia’s open bay filled with merchant vessels?1461 Panic and speculation abounded. One

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Lissabon den 24 December [1711]. “In Brasil was alles in de Wapenen, in geval het uygeloope Franse Esquadre al daer iets soude willen ondernemen: De Vloot van hier was in gemelde Bahia noch niet aengekomen; Die van Rio lag in ordre van Bataille gerangeert, of de Fransse ook daer mogten verschijnen; en soude nier herwards komen, voor dat men sekere tyding had, verwaerts de vyanden het gewent hadden: In Phernambucq lag alles noch overhoop; en waren d’Inwoonders tegens malkander in de Wapenen, waer door de meeste Suycker landen bedorven wierden.” Oprechte Haerlemse Courant, February 6, 1712. 1457 Lisbon den 13 November. “Hier onder is gearriveerd een Genuees Schip van onze Eylanden, welkers kapiteyn verhaeld, dat wanneer hy te Kabo Verde was, het Frans Esquadre van Mr. Gué-Trouin daer lag, beesig zynde met het inneemen van leevsn-middelen, en dat het volk van de scheepen gheen geheym meer maeckten van hunnen aanslag, namentlijk tegens Brazil, het welk aen ons al eenige bekommering veroorzaeckte.” ’s Gravenhaegse Courant, December 4, 1711. 1458 De Paris le 15 Janvier. “Le bruit court de plus en plus que Mr. du Gué Trouin a enlevé la flote du Bresil, & brulé San Salvador Capitale du Pais.” Gazette de Rotterdam, January 25, 1712. 1459 Lisbon den 18 January. “Den 12 in den morgen had men eene Oostelyke wind met zeer dikken nevel, en wanneer die opklaerde zag men to grote verbaastheyd 16 Fransse oorlogschepen in de Have” (…) “De Portuggeese Admirael die met 5 Oorlogscheepen in de Have was, had ter nauwer noot tyd om het Volk daer uyt aen lant te steeken, hebbende het vyfde sig zelfs op strand gezet, waerna zyne manschap in de Kasteelen wierp.” (…) “De Franssen warene den geheele volgende nacht yverig beesig met het maken van een brug van een kleyn Eyland in de Have daer sy wandelen, na het vaste -land, maer een kanon van de Stad regt op de arbeyders spelende, wierden zy genootzaekt hun oogmerk te steken, en hare brug haestelyk te ruineren.” ’s Gravenhaegse Courant, February 15, 1712. 1460 Lisbon den 18 January. “Met Brieven die naderhand van den Gouverneur van Rio Frio gekomen zijn, heeft men bericht dat de Franssen zig niet voor den 21 September meester maekten van de Stad St. Sebastian, en dat de Inwoonders ondertusschen tyd gehad hadden om zig met hunnen kostbaerste goederen landwaerts in te begeven, hoewel de vyanden voor eenige millioenen aen schade zouden hebben gedaen; men geloofde echter niet, dat de Franssen uyt gebrek aen levens-middelen te St. Sebastiaen zouden gebleven zyn.” ’s Gravenhaegse Courant, February 15, 1712. 1461 Londen de 9 February. “Dat Mr. Gue Trouin den 2 September des voorleede jaers met 16 oorlog en verscheide transportscheepen zonder verhindering in de Rivier van Janeiro was gekomen, hoewel men zegt, dat maer een schip te gelyk door de mond passeeren kan; dat de Portugeesen daer op 4 van hare oorlogscheepen waer van ‘er

435 ISSN 2358-4912 story told that Rio’s population feared that the Paulistas, called “banned Missionaries, Monks or Priests,” would come down with 8000 men and deliver the city and the mines to the French, who they had invited themselves.1462 The good news though was that troops were under way, about 7000 people were coming from the Mines, and with 12000 strong men in Rio de Janeiro, that would be more than enough to defend the city.1463 Yet Du Guay-Trouin had returned to Brest, so now the rumors spread about Du Guay-Trouin’s glorious defeat.1464 The story was that Du Guay-Trouin “could not stay for longer than two months in Rio de Janeiro, because of the changing climate, as well as the attacks by the people of the country through which he had lost 900 men.” 1465 Then the French published Du Guay-Trouin’s story and the news became worldwide. After the landing of the French troops and the cutting of the Portuguese soldiers near the city, he noticed that the city was abandoned. The fortifications were easily occupied and he offered a ransom in cash and goods so that the city would not be burned. The 40 vessels in port were either sold or burned and thus he arrived back with a large treasure of gold, silver sugar and cannons.1466 This report basically meant that the inhabitants surrendered the city to inferior forces and subsequently negotiated with and provisioned the enemy fleet. First, the fact that the soldiers and inhabitants were incapable of putting on a strong resistance meant a deep failure of Portuguese authority. Moreover, after provisioning the French fleet would be able to make other assaults for instance on the Capital City of Salvador da Bahia. Not unsurprisingly, it was now the turn of the population of that city to rebel. “In the Bahia was a kind of a revolt, the king wanted to put a 10 percent tax on all dry goods at the same level as in Portugal, however such was ended by the withdrawal of the measure.”1467 By now all the three major Brazilian port cities as well as the Mining district had been in dire straits. Authority to tax depended on a strong government, which had the support of all the people. The last years of the War of the Spanish Succession delegitimized the Portuguese royal regime, and it showed. In 1712 another false alarm went off by means of a French Squadron.1468 It was announced that it would go to Brazil, instead it ended up ransoming Surinam.1469 Nevertheless, the fleets were V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

een 100 stuk kanon was, hadden verbrand en een ander doen stranden” (…) “dat zy de Pleats hadden geplunderd; dat ze vreesden dat zy wel na de Mynen mogten gaen, maer nog meer na de Bahia de Todos los Santos, alwaer eene grote Vloot scheepen lag en welke plaets genoegzaam open was.” ’s Gravenhaegse Courant, February 15, 1712. 1462 Lissabon den 18 January. “Nademael men segt dat de Paulisten die gebannen priesters en Monnicken in dat lant zijn en Missionarissen genaemt werden (door de welcke men al voor desen gesegt heeft, dat de Franse zijn genodigt, om derwaers te komen) omtrent 8000 man hadden, op weg waren om met de Fransse te conjuncteeren.” Oprechte Haerlemse Courant, February 16, 1712 1463 Lissabon den 18 January. “De Portugeese Generael was met 7000 man van omtrent de Mijnen uytgetrocken, om die Plaets te secoureren, alwaer, volgens het geen men rapporteert, 1 2000 weerbare Mannen inwaren, ‘t welck meer als genoeg is om de Stad te defendeeren.” Oprechte Haerlemse Courant, February 16, 1712. 1464 Suite des nouvelles de Paris du 12 de ce Mois [February 12, 1712]. “Le Comte de Toulouse a reçu un Expres de Port Louis avec un gros paquet de Mr. Dugué Trouin qui arriva le 5 a Brest avec son expedition au Bresil.” Gazette de Rotterdam, February 18, 1712. 1465 Amsterdam den 20 February. “Dat hy niet langer als 2 maenden in Rio de Janeiro had kunen bestaen, zo door ‘t veranderen van ‘t klimaet, als door afbreuk die ‘t landvolk hem had gedean; dat zy omrent 900 man hadden verloren.” ’s Gravenhaegse Courant, February 22, 1712. 1466 Parijs den 19 Februari. “Kreeg hy de kondschap dat dezelve neffens de stad verlaten waren; zo dat men zig daer van daer zowel als van de Forten meester maekte. Mr. du Guay Trouin deed den Gouverneur stellen of hy de brand van de stad wilde afkopen: hy nam dat aen; en het accoord weird gesloten voor 600000 cruzades, een grote quantiteyt Suyker, koopmanschappen en Vee” (…) “daer en boven meer als 40 Portugeese koopvaerders die in de Baey lagen verbrand of verkogt.” ’s Gravenhaegse Courant, February 24, 1712. 1467 Lissabon den 18 January. “In de Bahia was een soort revolte geweest, dewijk de Coning daer oock had willen doen invoeren de Contributie van den 10 penning op de vaste goederen op gelijcke voet als hier geheven wert, doch sulcks was door ‘t intrecekn van dese Ordonantie weer gestilt.” Oprechte Haerlemse Courant, February 16, 1712. 1468 The two messenger vessels to warn the governors of Bahia and Rio de Janeiro for the new French attack were actually taken. Amsterdam den 13 July. “Men had te Lisbon tyding dat haere 2 Advys jagten na Rio de Janeiro en de Bahia gezonden om de Gouverneurs aldaer te waerschouwen voor den nieuwe aenslag der Franssen, door de vyanden genomen waren.” ’s Gravenhaegse Courant, July 15, 1712. 1469 A description of the activities in Surinam can be found in: De Surinam le 18 Decembre 1712, Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, February 21, 1713.

436 ISSN 2358-4912 delayed and English men of war were needed to help to get the fleets home. Moreover, the war itself had taken a completely other turn. After Carlos III’s brother died, he became emperor of Austria, and this meant he would not be the king of Spain at the same time.1470 The English government concluded a truce and a peace with the French king, and that meant the withdrawal of all English forces from Portugal.1471 Hence Portuguese territory itself became vulnerable, since the French and Spanish threatened to attack Portuguese territory. Fortunately, Portuguese representatives could conclude a Treaty with the French emissaries, but the Spanish refused to bow.1472 Indeed, the peace was only concluded with the aid of the French king’s mediation in 1715, which meant other commercial concessions that legitimized contraband trade.1473 This became João V’s war, and commerce suffered, especially from Brazil. Foreign help was needed for the golden convoys and if it was not the French anymore, there were always new enemies in the form of the Barbary corsairs.1474 So how does this relate to contraband trade? Some last words from the Dutch gazettes will provide an answer. Upon arrival of the 1714 fleet from Rio de Janeiro something was missing: the quintos from Rio de Janeiro. In fact they had been missing for the past three years. The reason being that “some say that they had not arrived from the Mines when the fleet departed, others that the inhabitants of Rio de Janeiro have withheld them, to compensate themselves from the loss they had suffered from the last invasion of the French.”1475 The same fleet carried the message that “the Paulistas had found new gold mines, which are about 200 miles [lieues] away, but they pretend that they are the property of them alone and would not give anything of it to the king.”1476 And if this was not enough, the former Governor of Rio de Janeiro was said to be on board the fleet, however, the people in Rio de Janeiro wanted to keep him there, because that is where he should be put on trial.1477 The war made king João V and his ministers understand that control over Brazil would be difficult for the time being. Taxation and the lack of taxation, hence contraband, was negotiable; it depended on the effectiveness of the Portuguese administration in Brazil which reached a low point by the end of the war. For the time being this was challenged, the famous “internal and external dangers” as one advisor once wrote

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The Portuguese king actually kept the death of the emperor hidden from his wife (the emperor’s sister), because she was pregnant. Lisbon den 20 July. “De koning heeft eyndelyk aen de Koningin (hoewel ze zwanger is) het overlyden van den keyzer haer broeder bekend gemaekt,” ’s Gravenhaegse Courant, August 12, 1711. 1471 Paris den 2 January. “4 Engelsche regimenten te Lisbon ingescheept waierden, om na hun land te keeren, en dat de 3 overige regimenten van die Natie mede na de gemelde stad in marsch waren om scherp te gaen, over welk vertrek de Portugeezen zeer verslagen waren.” ’s Gravenhaegse Courant, January 8, 1712. 1472 About the publication of the peace in Portugal, Lissabon den 18 July. “Den 4 deses is de Vrede met Vrankrijck alhier met de gewoonlijke Solemniteyten gepubliceert.” Oprechte Haerlemse Courant, August 15, 1713. In the House of Lords, one person saw through the negotiations and remarked that “Portugal seems to be left completely in the hands of Spain.” Londen de 29 Juny. “Portugael schynt ganselyk aen de macht van Spanje overgelaten.” ’s Gravenhaegse Courant, July 6, 1712. 1473 Lissabon den 14 February. “Den 8 deses arriveerde hier per Expresse een bediende van de Graaf van Ribeyra, Ambassadeur van dit Hof tot Parijs, met d’aengename tyding dat eyndelijck door bemiddeling van de Coning van Vrankrijk de Vrede tusschen dese Croon en Spange gesloten en tot Utrecht getekend was op approbatie van dit Hof.” Oprechte Haerlemse Courant, March 19, 1715. 1474 See for instance in 1712 “that the Robbers are cruising between the Azores and the Coast for the Brazilian vessels. Lissabon den 2 September. “Dat dese Rovers” (…) “tusschen de Eylanden en desse Rivier op de Brazilse schepen kruyssen.” Oprechte Haerlemse Courant, September 22, 1712. 1475 De Lisbonne le 5 Janvier. “Mais elle n’a point apporté les droits de 25 pour 100, que le Roy a levé sur l’or, qui est sortí de ce Païs-la pendent 3 ans, quelques uns disant, que cet Or n’etoit pas encore arrivé des Mines au depart de la Flotte, d’autres, que les habitants de Rio de Janeiro l’ont retunu, pour se dedomager de la perte qu’ils ont soufette dans la derniere invasion des François.” Nouvelles Extraordinaires de Divers Endroits, February 6, 1714. 1476 De Lisbonne le 4 Janvier. “Les Paulistes avoient encore découvert de nouvelles mines d’or de l’entendue d’environ 200 lieues, mais il en prétendent la proprité pour eux seuls, sans en rien donner au Roi.” Gazette de Rotterdam, January 29, 1714. 1477 De Lisbonne le 4 Janvier. On croïot que le Gouverneur qui commendoit lors l’attaque des François, seroit venue avec ces vaisseaux, mais l’on a su que la peuple vouloit qu’en lui faire son procès sur les lieux.” Gazette de Rotterdam, January 29, 1714.

437 ISSN 2358-4912 reflecting back on this turbulent time.1478 It was also shared with those countries’ merchants that contributed and protected the Portuguese and Brazilian economies and societies, it was also shared with the local inhabitants as long as they eventually did recognize or were recognized by the authority of the king. From a distance Dutch gazettes offered diplomats, officials, merchants, and kings an oversight into how the different governments tried to press their authority over commerce. Given that the fleets continued to sail annually with some success dispite some internal troubles, that in the Atlantic world, trade with the Portuguese territories was not such a bad investment. The question was, how risky would it be to trade directly with Brazil, skipping Portugal. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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António Rodrigues da Costa, see a discussion of this in Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “António Rodrigues da Costa e os muitos perigos de vassalos aborrecidos (notas a respeito de um parecer do Conselho Ultramarino),” in: Ronaldo Vaifas et al eds., Retratos do Império. Trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX, (Niteroí, RJ: Editora Universidade Federal Fluminense, 2006), 187-203.

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MEMÓRIAS ENTRE RELATOS: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM ÀS MARGENS DO RIO PARAGUAÇU Evelyne Enoque Cruz1479 O tema viagem sempre me foi aprazível. Desde criança fui posta a viajar, e depois de tantas mudanças a vida me fez conhecer alguns lugares. Quando na graduação, durante o curso Arquitetura e Urbanismo | Universidade Federal de Alagoas, inserida no grupo de pesquisa Estudos da Paisagem1480 me vi a descobrir paisagens coloniais. A pesquisa vem sendo desenvolvida até hoje, cujo tema geral é análise da paisagem como base para estudos urbanos de vilas e cidades do período colonial. Embora sediado em Alagoas, o trabalho se estende para além do Estado, já que se trata de uma análise comparativa. Abordando cerca de 20 cidades compreendidas na região que vai da Paraíba até o sul da Bahia, o Grupo vem estudando mais especificamente a produção do espaço destes núcleos antigos, privilegiando as bases iconográficas dos séculos XVI e XVII. Busca-se enfocar a paisagem das cidades como um grande quebra-cabeça: o traçado, o natural, a relação entre o vazio e o edificado, e de que forma a paisagem auxilia na construção da arquitetura. Busca-se também entender a ação dos atores sociais expressos através dos personagens que compõem o cenário colonial: portugueses, holandeses e índios. Em se tratando da história da ocupação territorial do Brasil, partindo do estudo das gêneses das vilas e cidades coloniais nordestinas, busca-se, também, analisar o desenho urbano colonial e seus vínculos com a matriz portuguesa, no caso, realizando comparações com a cidade de Lisboa. A pesquisa se volta a responder a indagações quanto a possíveis modelos transplantados da Coroa para o Brasil. Modelos estes de traçado urbano, racionalização do espaço, semelhanças arquitetônicas, entre outros aspectos. E foi nestas andanças, após estudar por cerca de 4 anos a cidade de Salvador na Bahia, descobri o seu Recôncavo, a cidade de Cachoeira e um grande rio, o Parauaçu, ao qual a cidade se coloca à margem. E nas leituras sobre estas referências – Salvador, Cachoeira e o Paraguaçu - aparentemente esparsas, me deparo com os relatos de viajantes e religiosos a descrever as conquistas das terras desconhecidas ao Rei. Um destes é Gabriel Soares de Sousa, viajante inquietado pela paisagem, que se coloca a descrever com minucias o que o olhar colonizador destaca num relato datado em 1587. Com uma linguagem detalhista e curiosa, o texto de Gabriel Soares de Sousa de tão elucidativo, faz com que o leitor crie imagens, visualizando tudo que o mesmo descreve. Esse seria o principal argumento para a escolha deste relato, a nortear a pesquisa contida nessa dissertação. Além disso, pouco se saber sobre o autor, o seu relato permanecer inédito por mais de 200 anos, e por fim, a sensibilidade e a riqueza do relato em destacar a paisagem natural e edificada. Passado e presente se unem a declarar memórias sobre o Rio Paraguaçu e toda a paisagem que o cerca. O fio condutor para tal estudo é o próprio rio que dá caminho, na tentativa de criar links entre as edificações aparentemente singulares e isoladas ao longo da margem, mas que compõem uma teia urbana. O tema ganha corpo com a participação de alguns agentes, que junto com o próprio relato compõem as fontes inspiradoras para a discussão que se propõe: palavras, imagens e o sensível. Quanto às palavras, foram selecionadas e extraídas do texto de Gabriel Soares de Sousa, a fim de que 1479

Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Alagoas - Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem Mestranda pela Universidade Federal da Bahia (Trancado) - [email protected] 1480 O Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, trata dos temas da memória e da experiência espacial considerando os elementos materiais e imateriais da cultura paisagística. Enfatiza a diversificação das ferramentas metodológicas, entre elas a imagem e a fruição dos ambientes urbanos com o engajamento do corpo. Atento às demandas da contemporaneidade, tem se movido no sentido de realizar proposições de reuso e reapropriação de lugares urbanos. A pesquisa,o Grupo atua no campo do design gráfico, das artes audiovisuais e na geração de produtos culturais, através do Laboratório de Criação Tabaêtê, expressão cunhada pelospovos nativos do litoral do Brasil Colonial, reunindo vocábulos para nomear “cidade”. Durante o tempo que participei do grupo obtive em 2002 e 2003 Melhor Trabalho apresentado na Área de Ciências Humanas, Sociais, Aplicadas, Linguística, Letras e Artes, Universidade Federal de Alagoas - XII Enocontro de Iniciação Científica.

439 ISSN 2358-4912 sejam entendidas no conceito da época, e, além disso, sejam também norteadoras da visão colonizadora. As imagens participam de forma atestar o relato, o qual é bastante imagético. Apesar de não haver nenhuma representação ou figura, através da descrição do autor poderíamos desenhar o que ele está a ver. Desta forma foram selecionadas registros de expedições, sendo tratadas como fontes de pesquisa e conhecimento, retratando o período colonial, além de representar e interpretar os focos de desenvolvimento. Já o tema do sensível, esta presente tanto em Gabriel Soares de Sousa da forma com que observa a realidade e a descreve, bem como no relato atual, através da experiência pessoal que tive ao visitar a região por três vezes. A costura dos retalhos de dois tempos dá voz a um dos capítulos que versa sobre essa experiência entre a voz do autor no século XVI e a voz no presente em uma narrativa contemporânea através de um diário de bordo. Relatos duais unidos pelo fio condutor o Rio Paraguaçu. Justifica-se o tema paisagem na própria apresentação do trabalho, que se fará neste formato mais horizontal e alongado, com a interface e o uso das imagens (antigas e atuais), herança dos trabalhos da pesquisa Estudos da Paisagem/UFAL. Mapear as memorias do Paraguaçu fez reascender a sua importância, como grande patrimônio edificado e natural. Do passado ao presente, os fragmentos evidenciam a importância deste rio para a construção e ocupação do interior do território do Brasil. Salientando ainda, a paisagem lida e compreendida como a montagem de um grande quebra-cabeça, onde se juntam animais, plantas e arquitetura, todos os elementos ligados à agua. Um sítio que traduz memorias, o qual pode ser experienciado por qualquer individuo disposto a ler as suas margens, num percurso de barco. Sendo assim, pode-se vencer mais de 400 anos, desde que o relato de Gabriel Soares foi escrito, e se surpreender com tantas permanências. O percurso é sim chave para o conhecimento de um patrimônio que parte se deteriora, parte se encontra preservado. O rio Paraguaçu é o tradutor desta enxurrada de memorias, dando entendimento e razão a existência de cada uma delas. Há vida nas margens do Rio Paraguaçu, bem como vestígios de praticas realizadas no leito a tempos. O universo humano que depende das suas aguas, sobrevive da relação com o rio, de forma intimista que parecem morar dentro dele. A descrição do barqueiro Joca que nos auxiliou na expedição ao Paraguaçu traduz isso: “Nasci do próprio rio, como muita coisa por aqui. Somos filhos de Beija-flor.” O que faz do Paraguaçu um cenário de tamanha beleza, é o choque entre a arquitetura e a paisagem natural. A forma com que as construções interagem com o meio onde estão inseridas é sem interrupção. Num contraste chocante a arquitetura relata memorias, tendo que o observador apenas silenciar, e deixar ser envolvido pela ambiência do lugar. A mais pura verdade sobre o conceito de memoria é a capacidade de conviver com o passado através do presente, e poder ser experimentado para traçar outras histórias. Além disso, a valorização de uma memoria coletiva, que se relaciona com a conservação e manutenção, garante uma identidade cultural, dando continuidade ao patrimônio, tentando preserva-lo para o futuro. A construção deste patrimônio nomeado de Paraguaçu deve ser entendida como um processo, que culmina na formação de um grande centro histórico. Onde o papel fundamental para a vida acontecer nas margens são os ribeirinhos, que perduram as memorias, bem como fazem com que as relações com os monumentos aconteçam. Seja por saudosismo, ou apenas um conhecimento passado de geração a geração, os ribeirinhos vivem do Paraguaçu, vivem nele e vivem para ele. A importância deste tema se dá em tratar o Rio Paraguaçu como elemento tradutor de memórias, através do estudo da sua paisagem natural e massa edificada, considerando o rio relevante no início e expansão da colonização do Brasil (séc. XVI). É com este intuito que se propõe um registro e mapeamento deste patrimônio que ainda vive e se faz presente nas margens do Paraguaçu, entendendo as edificações como objetos singulares, mas quem compõem uma rede urbana que têm como elo de ligação o rio. O estudo do rio como elemento da história do urbanismo vem salientar essa atração em discutir como as vias navegáveis podem auxiliar a entender a ligação entre edificações aparentemente esparsas. No caso do Paraguaçu, com a instituição de engenhos de cana-de-açúcar, se inicia a formação de uma nova fase do urbanismo no sentido de expansão territorial que se queria na época.

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440 ISSN 2358-4912 Nascido em 1540, Gabriel Soares de Sousa embarcou em 1569 em direção à Mocambique (na época conhecida como Monomotapa), e esta expedição arrematou todos os interessados nas riquezas africanas. Além disso, já havia sabido sobre os descobrimentos na “Terra Brasilis”, através de uma carta que recebeu enviado por seu irmão João Coelho de Sousa. Mensagem de um moribundo vinda lá dos fundões da Bahia, que fez com que Gabriel se assanhasse por também meter-se sertão adentro. Ele mencionava nas linhas escritas a punho vestígios de ouro e até de diamantes que o irmão desbravador encontrara em suas andanças de três anos pelos rios e selvas do Brasil. 1481 Dentre os tripulantes, Gabriel Soares foi surpreendido pelo mistério do alto mar, que fez com a nau que embarcara se perdesse vindo parar na Bahia, onde atracou em porto seguro e a salvo. Na Bahia Gabriel preferiu ficar, onde prosperou tornando-se senhor de dois engenhos na região do Recôncavo, além dos animais, escravos, moveis e índios, terras e casas na cidade de Salvador. Foi durante o tempo em que esperava, em Madri, o despacho real a respeito de suas solicitações que, no intuito de reforçar a importância de seu plano e demonstrar conhecimento sobre a colônia, Gabriel Soares tirou a limpo em um caderno suas lembranças do tempo em que viveu no Estado do Brasil, como relata em carta de 1º de março de 1587 enviada ao valido do rei Cristóvão de Moura, a qual precedia os manuscritos. Na primeira parte, Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa do Brasil, seu autor descreve a costa brasileira desde o Maranhão até o Rio da Prata; na segunda, Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua fertilidade e das notáveis partes que tem, um texto mais longo, oferece um minucioso relato das plantas, animais, rios, relevo, povos nativos, povoações, vilas e engenhos da capitania da Bahia, especialmente do Recôncavo. 1482 Em seu relato, Gabriel Soares nos conduz a um detalhado e maravilhoso passeio por aquele Brasil dos primórdios. Entendeu-se seu olhar a correr do Rio Amazonas até o Rio da Prata. Tal qual um memorial de concessão, apresentado ao Governo, o relato do autor se justificava na exploração das terras, senso a sinceridade da sua longa e minuciosa informação, reflexo da busca aventurosa e dura das riquezas nativas da terra que se propunha a explorar. 1483 E esta é a mais pura verdade sobre a memória: a capacidade de conviver com o passado através do presente, pois a partir do que foi descrito podemos experienciar as margens do Rio Paraguaçu, assim como fez Gabriel Soares no século XVI. Atualizando impressões e informações passadas, transformamos em continuidade. O ato de rever o caminho percorrido por Gabriel Soares é mais do que observar novamente as margens do Paraguaçu, é fazer pensar. Valorizar uma memoria coletiva, que se relaciona com a conservação ou não conservação, a manutenção ou a não manutenção, a fim de garantir (ou não) uma identidade cultural. Propõe-se desde o início entender o Rio Paraguaçu através das memorias, evidenciando a multiplicidade das mesmas, reestabelecendo um novo diálogo entre espectador e a arquitetura das suas margens, transformando a passividade entre os mesmos numa aproximação integrada, tendo como fio condutor o relato de Gabriel Soares. Para auxiliar nesta pesquisa, bem como identificar e localizar o que Gabriel Soares esta a descrever, foi reunido um conjunto de imagens que nos auxilia no entendimento dos indicativos de ilhas, engenhos, igrejas, nominações e posses de terras, bem como os primeiros assentamentos urbanos. Somadas às informações de cunho documental, a iconografia se torna uma aliada nas descobertas sobre o Rio Paraguaçu. Em seu próprio conceito a palavra iconografia se traduz como “escrita da imagem”. 1484 As iconografias foram selecionadas não para ilustrar e sim para documentar o relato de Gabriel Soares, a fim de atestar à sua descrição. Carregando impressões e traços pessoais de seus autores, a iconografia por muito tempo foi marginalizada no campo da pesquisa histórica, por ser considerada V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Nascido em Portugal por volta de 1540, aos trinta anos está no Brasil e instala-se na Bahia, tornando-se senhor de engenho. IN: BARBOZA, Dr. A. da Cunha. A Litteratura religiosa barroca no Brasil. IN: Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador, , 1899, v.20, página 03. 1482 Citação de Fernanda Trindade Luciani é doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo. Artigo intitulado: Tratado Descriptivo do Brazil em 1587. IN: http://www.brasiliana.usp.br/node/495 1483 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, 1915. Página 12. 1484 Palavra que vem do grego: eikon (imagem) e grafia (escrita).

441 ISSN 2358-4912 um produto de vivencia direta, sem a intermediação dos documentos e principalmente por revelar o produtos de descobertas recentes, o novo e o inédito. 1485 Somando-se às informações de cunho documental, a iconografia é aliada à pesquisa como um texto literal. No seu próprio conceito etimológico, iconografia vem do grego eikon (imagem) e grafia (escrita), ou seja, traduz-se literalmente como sendo “escrita da imagem”. Assim sendo o registro visual dessas viagens são fontes documentais para a historia, tendo na iconografia documentos que revelam à atualidade um mundo não conhecido e não experimentado. Apesar de serem constituídas por uma ação seletiva, onde se prioriza as informações que se deseja passar, o espaço representado num mapa traduz a intenção do autor de transmitir uma mensagem, tornando-se um relatório visual de um momento histórico. Retratam acontecimentos da nossa historia, tais como guerras, ataques, invasões, cotidiano urbano, etnias, arquitetura e cidades. Especificamente sobre o Recôncavo e a região do Rio Paraguaçu, o material é composto basicamente por mapas do século XVI e XVII, desenhos geográficos, representações esquemáticas e cartas náuticas. De autores portugueses e holandeses, fruto de uma vasta pesquisa realizada em arquivos na Cidade de Salvador – Instituto Histórico do Estado da Bahia e Arquivo Público – e no Rio de Janeiro – na Biblioteca Nacional, Biblioteca da Marinha, Biblioteca do Exército, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Mapoteca do Itamaraty. A busca nestes locais teve como objetivo analisar os originais ou edições fac-símiles destes registros. Sob um olhar minucioso sobre os mesmos, através do uso da lupa foi possível compreender seus detalhes, sendo também auxiliada pelos recursos de fotografias e computador para a descoberta de informações. Sendo o natural sendo representado pela Baia de Todos os Santos e o Rio Paraguaçu, os mapas são importantíssimos documentos para o estudo das primeiras edificações à margem, um patrimônio edificado esparso ao lindo da costa da baía. As iconografias configuram-se em registros com ricas informações para dar entendimentos ás primeiras ocupações na região do Paraguaçu. Através dos mapas datados entre os séculos XVI e XVII pode perceber as edificações nas margens do rio, além da identificação das formas de ocupação, tais como engenhos, capelas, currais além da nominação dos possuidores das terras. O escolhido para esta publicação é o mapa datado de 1586, intitulado Mapa da Bahia de Todos os Santos . Como se demonstra em um grande arco tudo que se pode ver a partir da cidade de Salvador, o autor corre a descrever ao longo da baía as principais localidades, bem como dá indicações de porto e atracamento para pequenas e grandes embarcações. A grande bussola desenhada ao mar, fora da Baia de Todos os Santos, parece indicar o caminho da expansão para o interior através das entradas de rios, um deles o Paraguaçu. Na ponta direita, a Cidade de Salvador é representada através de grande aglomeração de edificações. Além disso, ainda se destaca a vila a que se deu o inicio da ocupação para após se tornar a primeira cidade, a Vila Velha. O conjunto de ilhas é identificado com os seus nomes, bem como regiões de currais e casebres esparsos sobre à terra seca. A região do Paraguaçu se coloca à esquerda do mapa, na parte superior, a partir da sua boca, ou seja, “Barra do Paraguaçu”. Com características de paraíso, descritas por Gabriel Soares em seu relato, as margens do Paraguaçu são escolhidas para os primeiros assentamentos através das premissas utilizadas pelos portugueses: água, boa terra, bons ares e vegetação. Com sítios bem escolhidos, na bagagem da memória está sempre o exemplo da primeira Cidade, a de Salvador, distante dali algumas centenas de quilômetros, construída com estas premissas, de utopia urbana portuguesa. Desde o seu descobrimento o Paraguaçu é caminho navegável, e justamente por esta razão a ocupação das suas margens virgens se fez acontecer no século XVI pelos portugueses. Antes disso, os nativos já viviam na região, como já vimos anteriormente. Para dar conta da região do Paraguaçu se faz necessário primeiro dar cabo ao entendimento da Bahia de Todos os Santos, lugar onde as margens convergem a se vigiar, em caráter defensivo. Seu dimensionamento, fertilidade e beleza estão reunidos juntamente com as ilhas, rios, solos a se tornar a mais formosa do mundo, segundo Gabriel Soares. A relação com a água é tamanha que, se observarmos as datas da elevação das primeiras freguesias à vila são os principais portos do séc. XVI e XVII. Nas margens é que se semeia o início da ocupação da

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LEITE. I. B. O Brasil sob o olhar estrangeiro. IN: LEITE, I.B. Antropologia da viagem; escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte. UFMG, 1996. Página 38 a 53.

442 ISSN 2358-4912 região. As memórias e o patrimônio às margens destas vias aquáticas são de suma importância para o entendimento da complexa rede de conexão criada para o desenvolvimento do Brasil Colônia, nos séculos XVI e XVII. No caso do Recôncavo, a partir da Capital, a cidade de Salvador, partiam as embarcações, atravessando a Baía de Todos os Santos, interior adentro, pelos rios navegáveis, um deles o Paraguaçu. É desta forma que se entende a região do Paraguaçu. O rio contém o passado, e ao se transitar por ele, podemos ler as suas margens, com patrimônio visível e invisível, tocado ou intocado, edificado ou natural. Os fragmentos de memorias que compõem o Paraguaçu, podem ser entendidos como intervalos ou estilhaços de variadas épocas, aparentemente esparsas. O rio Paraguaçu é um caminho livre, formado por margens naturais e edificado, comparado às laterais de uma grande rua, por onde é possível navegar ou transitar. A rua que dá acesso ao recôncavo da Bahia, e que construiu a passagem à conquista do interior do Brasil. A função de rua pode ser vista no dicionário do inicio dos setecentos, o qual possui um sentido físico da sua função. Expressões ligadas ao efeito de agua estão presente na conceituação do autor, sendo rua um espaço que corre agua, o curso da gente, caminho público ladeado de edificações existentes em seus lados, um caminho livre... O futuro que Gabriel Soares escreveu a 400 anos atrás começa a ser um novo interesse do IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, querendo tornar patrimônio da humanidade. A proposta de tombamento foi apresentada no ano de 2009, quando a presidente da lista dos Itinerários Culturais da Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Maria Cecilia Calderon, esteve na Bahia. Na região do Paraguaçu o IPHAN reconheceu: “... um contexto singular, formado por igrejas, aquedutos, fortificações, núcleos urbanos e rurais de expressivo valor cultural, onde se manifesta ainda um extra- ordinário patrimônio naval, formado pelos famosos saveiros e canoas baianas, e expressões culturais únicas relacionadas às tradições de origem africana, como o candomblé, o samba de roda e uma culinária peculiar, estabelecendo uma rota que propiciou importantes intercâmbios na região e desta para o mundo...” 1486 Em meio às leituras sobre a cidade de Salvador, no período da minha graduação, me deparo com um trecho de um relato de Gabriel Soares de Sousa, a descrever as ruas e a arquitetura da cidade em pleno meado do século XVI. A escrita contida no “Tratado Descritivo do Brasil em 1587” traduzia um olhar sagaz sobre a cidade, discorrendo sobre os detalhes que eu conseguia identificar até mesmo nos dias atuais, tais como o traçado da cidade e algumas edificações existentes até hoje. A forma de escrever, o sentimento narrador e o senso aguçado do autor observador me cativou.

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em:

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Legendas e descrições de Gabriel Soares: (A) Ponta do Padrão | (B) Morro de Tinharé. (C) Paraguaçu | (D) Ilha dos Frades – “...é de um João Nogueira, lavrador, o qual está de assento nela com seis ou sete lavradores, que nela têm da sua mão, onde têm suas granjearias de roças de mantimentos, com criações de vacas e porcos; a qual

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OS “FUNDOS VIVOS DA CONTRAVENÇÃO”: O CONTRABANDO DE ESCRAVOS NA COLÔNIA DO SACRAMENTO (1740-1777) Fábio Kühn1487 Após o final do Asiento britânico no Rio da Prata, ocorrido no final da década de 17301488, os portugueses estabelecidos na Colônia do Sacramento passaram a contrabandear para os domínios espanhóis uma crescente quantidade de escravos africanos, enviados para a praça platina desde a Bahia e o Rio de Janeiro. O trabalho pretende explorar alguns aspectos desse comércio ilícito, analisando em primeiro lugar as dimensões desse tráfico, a partir de algumas estimativas contemporâneas. Um segundo ponto procura analisar as formas de introdução dessa peculiar mercadoria em Buenos Aires, discutindo questões como a existência da corrupção e a conivência dos agentes da administração colonial que, em tese, deveriam reprimir tais atividades. Por fim, utilizando os dados dos registros de óbitos de escravos, pretende-se evidenciar quais eram os agentes mercantis envolvidos no comércio dos “fundos vivos da contravenção”. Estimativas sobre o tráfico ilícito de escravos A partir de meados do século XVIII, além dos gêneros tradicionais, como produtos do Brasil (aguardente, açúcar e tabaco) e fazendas europeias, que faziam parte do comércio da Colônia com Buenos Aires desde os seus primórdios, a praça portuguesa especializou-se no fornecimento de escravos africanos para a região platina. Conforme um autor anônimo, que em 1766 escreveu um documento intitulado Discursos sobre el comercio legítimo de Buenos Aires com la España y el clandestino de la Colonia del Sacramento, a média de escravos introduzidos a partir da praça lusitana nunca era inferior a seiscentos por ano: Todos son animados, y viven del comercio clandestino que hacen con la ciudad de Buenos Aires y su jurisdicción comprendida en la Provincia del Río de la Plata de donde se interna a las Provincias del Tucumán, Chile y jurisdiccción de la Audiencia de Charcas a expensas de nuestros contravandeos en ellas que, por la vía de sobornación contraen de la Colonia toda especie de mercaderías europeas y Caldos de Portugal, con otros frutos corrientes en Comercio Europeo y de los que produce Brasil, azúcar de tabaco torado, y aguardiente de caña que cumulo crecido y gran cantidad de negros que por vía de Geneiro conducen de Guynea, en que hacen un considerable comercio pues un año con otro de presente de esta especie, que son fondos vivos de la contravención no disminuye el número de contracción de aquella Plaza de 600 que se distribuyen en la Capital de Buenos Aires, y se internan en las referidas províncias.

No período entre 1740 a 1760, o comércio clandestino se realizou sem quase nenhuma repressão, sendo que nesse período o número de escravos introduzidos havia sido no mínimo o dobro, ou seja, cerca de mil e duzentos escravos por ano. Esse comércio movimentava anualmente de dez a dezoito navios de 100 a 300 toneladas, além de muitas embarcações menores, sendo que o grosso das cargas era de manufaturados europeus, produtos brasileiros (como açúcar e tabaco) e negros da Guiné. Em troca, os espanhóis levavam à Colônia a desejada prata, além de víveres, carnes, trigo, farinha e couros.1489 1487

UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil). Email: [email protected] Para o asiento inglês em Buenos Aires, ver STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata durante el siglo XVIII. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires-Departamento Editorial, 1958, p. 147-238; DONOSO ANES, Rafael. “Un análisis sucinto del Asiento de esclavos con Inglaterra (1713-1750) y el papel desempeñado por la contabilidad en su desarrollo”. Anuario de Estudios Americanos. 64, 2. Jul-dez. 2007, p. 105-144. 1489 O texto dos Discursos foi divulgado em um artigo publicado em 1980 pelo historiador argentino Enrique Barba intitulado Sobre el contrabando de la Colonia del Sacramento (siglo XVIII). Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia – Separata Investigaciones y Ensayos, nº 28, p. 57-76. O documento original pertence a Colección Ayala da Biblioteca do Palácio Nacional de Madri e foi transcrito pelo referido pesquisador, que depositou uma cópia 1488

445 ISSN 2358-4912 O autor do Discurso procurou identificar as causas do contrabando de escravos, apontando para a ineficácia do ainda vigente sistema de asientos. Este alto custo dos escravos trazidos legalmente deviase a dois motivos principais: em primeiro lugar, os elevados gastos com armamentos e habilitações dos navios em Cádiz, ao que acresciam os soldos dos oficiais e a tripulação abundante das embarcações, necessária “pois os europeus demorando-se algum tempo [na África] se corrompem”. O segundo motivo residia na constatação de que os espanhóis não dispunham na costa da África de nenhum estabelecimento próprio, “que servisse de caixa ou acumulação dos mesmos negros”, o que os obrigava a comprar cativos de segunda ou terceira mão, através dos préstimos dos traficantes ingleses, portugueses, franceses e holandeses. Este processo era demorado, elevava os gastos e nem sempre era garantido, pois muitos navios dos contratadores voltavam para Buenos Aires sem a sua carga humana. Tirando-se os custos da operação, que incluiriam 10% de mortalidade durante a travessia e considerando-se um “navio regular que leve 500 negros”, o valor de um escravo posto em Buenos Aires chegava a no mínimo 250 pesos, dependendo do tempo que demorassem as embarcações na África. Assim, para obter algum lucro, os comerciantes de escravos locais teriam que vendê-los por no mínimo 300 pesos. Enquanto isso, no comércio clandestino, se comprava os mesmos escravos por 100 a 120 pesos na Colônia do Sacramento, sendo revendidos por 180 a 200 pesos na praça buenairense, daí que “se compreenderá que se preferiam estes aos adquiridos legitimamente”. Este comércio ilegal era alimentado pela demanda da América hispânica, pois os escravos comprados a preços atraentes na Colônia do Sacramento, eram introduzidos com “ganhos exorbitantes” no Chile, Tucumán e no Perú, atingindo o valor de 400 a 500 pesos. Exibindo um pragmatismo notável, o autor anônimo do Discurso ponderava que o contrato legítimo de escravos para Buenos Aires seria, dadas as condições, sempre desfavorável aos tratantes espanhóis, pela oposição que lhes faziam os traficantes da Colônia do Sacramento. Propunha que “para não perder o todo do lucro que isto faz”, se estabelecesse uma companhia que contratasse a aquisição de escravos na própria Colônia do Sacramento. Assim, se evitaria os danos para a Coroa de tantos escravos entrando ilegalmente nos domínios espanhóis, pois somente em Buenos Aires, Tucumán e Paraguai eram consumidos anualmente 400 cativos e outros 200 que eram internados no Chile e Potosí, todos de forma ilícita. Caso o trato fosse lícito e se permitisse sua livre introdução pelos domínios sul-americanos, poderiam ser vendidos anualmente pelo menos 1000 escravos. Argumentava, por fim, que do jeito que as coisas estavam, o negócio somente beneficiava os tratantes portugueses da Colônia, além dos contrabandistas espanhóis e daqueles que acobertavam os tratos ilícitos. Entre 15 e 30 mil escravos podem ter sido vendidos para a América espanhola, via Buenos Aires, entre os anos de 1740 e 1777, no período posterior ao final do Asiento britânico. Se consideramos os números mais conservadores das fontes lusas (400 escravos por ano), temos uma estimativa mínima de cerca de 15 mil cativos contrabandeados. Mas se levamos em conta as cifras apresentadas nas fontes castelhanas (que talvez estejam superdimensionadas), podemos provavelmente duplicar essa quantia. No seu auge, o comércio clandestino de africanos poderia envolver até 1200 escravos por ano, ou cerca de 100 traficados por mês). Alguns trabalhos recentes tem reconhecido o papel da Colônia no trato negreiro, embora continuem subestimando o seu papel no tráfico ilícito de escravos praticado no Rio da Prata. Os autores do TSTD reconhecem, no entanto, que “no século XVIII, a presença portuguesa na Colônia do Sacramento facilitou um tráfico de escravos intra-americano com o Brasil (não incluso nas estimativas aqui apresentadas)”. O problema parece ser justamente a ausência de informações acerca deste tráfico “intra-americano”, pois em comparação com o tráfico transatlântico, ele parece ser pouco expressivo. Todavia, no caso da Colônia do Sacramento, o contrabando via Rio de Janeiro ou Bahia foi muito mais importante do que o tráfico negreiro feito diretamente da África. Enquanto que os desembarques transatlânticos foram muito pouco frequentes, introduzindo menos de dois mil escravos na Colônia, o tráfico “intra-americano”, segundo estimativas recentes, pode ter trazido cerca de vinte mil escravos ao longo do período de ocupação portuguesa.1490 Um indício desse fluxo negreiro foi o crescimento notável da população escrava de Buenos Aires, que quadriplicou entre 1744 e 1778,

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datilografada na biblioteca da Academia Nacional de la Historia. Consultamos somente a transcrição existente em Buenos Aires. 1490 ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade, p. 262; BORUCKI, Alex. “The Slave Trade to the Río de la Plata, 1777-1812: Trans-Imperial Networks and Atlantic Warfare”. Colonial Latin American Review. Vol. 20, n. 1, april 2011, p. 85 e 103.

446 ISSN 2358-4912 atingindo mais de cinco mil indivíduos neste último ano, lembrando que somente um quarto dos cativos de origem africana vendidos para essa cidade ali permaneciam, o restante sendo vendido para o Chile e Peru. 1491

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Conivência e corrupção no rio da Prata A Coroa espanhola buscava alternativas para o problema do contrabando de escravos. Uma das opções foi estimular que comerciantes metropolitanos assumissem os contratos, como no caso daquele que seria administrado por D. Miguel de Uriarte, que obteve por Real Cédula de 14 de junho de 1765 o direito de introduzir escravos nas possessões americanas pelo prazo de dez anos.1492 Durante a vigência do contrato, chegou a ser proposto a Uriarte um “asiento de negros para Buenos Ayres”, provavelmente por homens de negócio buenairenses. Ele propunha que os escravos deveriam preferencialmente ser conduzidos em embarcações portuguesas desde a Costa da África ou desde o Rio de Janeiro até os portos de Montevidéu e Maldonado, de onde seriam introduzidos em Buenos Aires. O contratador poderia despachar um ou dois feitores via Colônia do Sacramento ou Rio Grande de São Pedro para o Rio de Janeiro, “para ali fazer as compras dos Negros e demais diligências correspondentes da negociação”. Mais ainda, os escravos introduzidos em Buenos Aires poderiam ser internados até o Chile, Lima, Potosí e todo o Perú, o que tornava o negócio ainda mais atrativo. No final da década de 1760, os proponentes desse asiento escreveriam ao contratador Uriarte, chamando-lhe a atenção para a conveniência que havia para o Real Erário em estabelecer o “Asiento dos Negros tratado com os Portugueses”. Diziam que seria possível introduzir de quatrocentas a quinhentas peças por ano, mas advertiam que deviam lhe expor como funcionava o “clandestino negócio”, praticado pelos portugueses estabelecidos na Colônia do Sacramento, pois por mais rigor e zelo que se pusesse no combate ao contrabando, nunca havia sido possível evitar a introdução dos escravos africanos em Buenos Aires, “por ser o mais fácil de disfarçar de todos os gêneros que se traficam da Colônia”. Em seguida, descreviam como funcionava o comércio clandestino de escravos para Buenos Aires: Saltando en tierra caminam con sus Negros hasta encontrar qualquier estância de las immediatas; alli piden por favor al Dueño que le reciva algunos Negros, y este lo hace com facilidad y aun con gusto por que mesclandolos con los suios tiene buen disfraz, y disfruta de su travajo por algunos dias, y al cavo de ello los van introduciendo en esta ciudad en las carretas que trahen sus frutos con la figura de ser sus criados, y tambien las Mugeres conducen las Negras como si fuesen sus criadas quando vajan a la ciudad; en la que despues se buelben a distribuir por las casas, y los admiten con el fin de servir algun tiempo de ellos mesclados con sus esclavos; (...) por fin el contravandista los vende, y si es a algun forastero, para internalos tierra a dentro.1493

Existem evidências de que o comércio ilegal de escravos era realmente muito lucrativo, dando origem a redes mercantis e de poder que perpassavam o rio da Prata. Em 1764, com a prisão em Buenos Aires de Domingo Lagos, um marinheiro e comerciante galego, foi desvendada uma complexa articulação que dava sentido a uma poderosa rede atuante no comércio ilícito, que era formada por 1491

SOCOLOW, Susan. “Buenos Aires: Atlantic Port and Hinterland in the Eighteenth Century” in: (ed.) KNIGHT, Franklin & LISS, Peggy. Atlantic Port Cities – Economy, Culture and Society in the Atlantic World. Koxville: Tennessee University Press, p. 240-261. A população escrava de Buenos Aires passou de 1266 cativos em 1744 para 5100 em 1778. Durante o período do Asiento inglês (1722-1738), somente 25% dos escravos trazido para o porto buenairense ali permaneciam. Ver FRADKIN, Raúl & GARAVAGLIA, Juan Carlos. La Argentina colonial – El Río de la Plata entre los siglos XVI e XIX. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2009, p.91. 1492 STUDER, Elena. La trata de negros en el Rio de la Plata durante el siglo XVIII. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires-Departamento Editorial, 1958, p. 258. Miguel de Uriarte era um comerciante espanhol, sediado em Cádiz, que juntamente com outros sócios esteve á frente da Compañia Gaditana, responsável pela tentativa de introdução de escravos na América. 1493 “Contrato de negros para Buenos Aires e considerações sobre as vantagens desse contrato dirigida por um anônimo a D. Miguel de Uriarte” in: CORTESÃO, Jaime. Do Tratado de Madri à Conquista dos Sete Povos (1750-1802). Manuscitos da Coleção De Angelis, VII. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Divisão de Publicações e Divulgação, 1969, p. 371.

447 ISSN 2358-4912 altos oficiais da Fazenda Real espanhola (Martin de Altolaguirre, Pedro Medrano e Juan de Bustinaga) e homens de negócio de Buenos Aires (Martin de Sarratea), além de comerciantes atuantes na Colônia do Sacramento (Antônio Ribeiro dos Santos e Manuel da Cunha Neves). Os negociantes sacramentinos que faziam parte dessa rede de contrabando eram figuras de destaque na praça platina. Antônio Ribeiro dos Santos aparece nas fontes paroquiais designado simplesmente como mercador, mas era um homem muito bem relacionado na sociedade sacramentina, pois casara em 1761 com Ana Joaquina Kelly, filha do prestigioso tenente de mar e guerra Guilherme Kelly. Em 1762 era considerado um dos homens bons da praça, tendo participado do conselho reunido pelo governador Vicente da Silva Fonseca para decidir acerca da capitulação da Colônia, ocorrida naquele ano.1494 O tenente Manuel da Cunha Neves, por seu turno, era personagem importante na sociedade local, estabelecido na Colônia desde pelo menos 1749, tendo permanecido na praça praticamente até a rendição final. Era possivelmente associado do homem de negócios fluminense, capitão João da Cunha Neves, assistente na Colônia do Sacramento e um dos maiores contrabandistas do rio da Prata. Manuel foi um dos apoiadores do governador Luiz Garcia de Bivar, quando este foi acusado de envolvimento em negócios ilícitos. Sua trajetória de mais de duas décadas na Colônia do Sacramento lhe conferiu certo prestígio na praça platina, muito embora não tenha aparentemente se casado.1495 Domingo Lagos era o broker que havia sido destacado para ir até a Colônia nos anos de 1761 e 1762, servindo de mediador e estabelecendo os contatos com os comerciantes da praça portuguesa, verificando o carregamento das mercadorias (principalmente tecidos e escravos) e sua descarga em Buenos Aires. Por seu turno, Martin de Altolaguirre era o responsável pelos barcos corsários que supostamente reprimiam o contrabando. Do outro lado do rio da Prata, na praça portuguesa, os comerciantes envolvidos atuavam como “intermediários obrigatórios”, pois obtinham as autorizações do governador da Colônia, indispensáveis para os embarques simulados.1496 Essa prática reiterada do comércio ilícito nos mostra que os conceitos de contrabando e corrupção precisam ser repensados para as sociedades de Antigo Regime, onde a separação da esfera pública e da esfera privada era praticamente inexistente.1497 As ações corruptas não eram praticadas somente pelos governantes, mas também por aqueles que se serviam destes funcionários para obter benefícios econômicos ou sociais, como alguns membros das elites locais.1498 A própria distinção entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós considerarmos o universo do contrabando não como um mundo delituoso, mas como uma espécie de fronteira social em relação às representações jurídicas, com suas regras bem estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas descritas podem revelar uma lógica social global partilhada pelos súditos dos Impérios ibéricos que somente nosso olhar contemporâneo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1494

ACMRJ. Notação 734. Livro 1º de Casamentos da Colônia do Sacramento (1721-1762). AHU-Nova Colónia do Sacramento. DECRETO do rei D. João V promovendo o mestre de bergantim da Nova Colónia do Sacramento, Guilherme Keli, para a patente de tenente de mar-e-guerra da Coroa. Lisboa, 26.05.1737. Cx. 3, D. 330; Breve notícia da Colônia do Santíssimo Sacramento e Diário do seu último ataque pelos Castelhanos – Ano de 1762 in: SÁ, Simão Pereira de. História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 165-192. 1495 BNL (Biblioteca Nacional – Lisboa). Cód. 10855. Em uma inquirição de testemunhas realizada em 20.02.1776, Manuel da Cunha Neves declarou-se capitão de ordenanças, com 64 anos, “morador da praça a 27 [anos]”. João da Cunha Neves fazia parte de uma ativa rede de negócios, sendo considerado um “famoso contrabandista” do rio da Prata. Ver PRADO, Fabrício. “A carreira trans-imperial de Don Manuel Cipriano de Melo no Rio da Prata do século XVIII”. Topói. V. 13, n. 25, jul/dez. 2012, p. 173. Manuel da Cunha Neves foi um dos signatários da “atestação” passada pelos comerciantes da praça platina em apoio ao governador Bivar em 1754. Para detalhes, ver KÜHN, Fábio. “Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760)” Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, v. 13, n. 24, jan-jun. 2012, pp. 29-42. 1496 MOUTOUKIAS, Zacharias. “Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIII siècle” in: Annales ESC, nº 4-5, 1992, p. 896-897 e 903-904. 1497 FERREIRA, Roquinaldo. “’A arte de furtar’: redes de comércio ilegal no mercado imperial ultramarino português (c. 1690-c.1750)” in: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes – Política e negócios no Império Português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 221. 1498 PERUSSET, Macarena. Contrabando y Sociedad en el Rio de la Plata colonial. Buenos Aires: Dunken, 2006, p. 116.

448 ISSN 2358-4912 dissocia.1499 No mundo português setecentista, os contrabandistas seriam empreendedores que pertenciam ao sistema, com boas conexões com as elites governantes. O comércio ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas mesmas pessoas cujas funções oficiais pressupunham exatamente combatê-lo. Mais ainda, “a ideia de que o comércio ilegal era imoral e errado era vista com perplexidade. Se o comércio ilegal era por vezes estimulado pela Coroa portuguesa, como no caso do comércio com o rio da Prata, como poderia ser considerado imoral?” 1500

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Traficantes coloniais Mas qual seria o envolvimento direto dos homens de negócio e mercadores da Colônia do Sacramento no contrabando de escravos? Foi possível identificar a presença de ao menos 34 traficantes nos livros de óbitos de escravos entre 1738 e 1752, ou seja, cerca de 30% da comunidade mercantil atuante na praça entre os anos de 1737-1777, estimada em pouco mais de uma centena de indivíduos.1501 Esse grupo de traficantes, apesar de relativamente pequeno, tinha entre seus componentes alguns dos principais homens de negócio da Colônia: capitão Antônio da Costa Quintão (cavaleiro da Ordem de Cristo), capitão Bartolomeu Nogueira (homem bom), capitão João de Freitas Guimarães (homem bom), capitão Manuel Gomes dos Santos Lisboa (homem bom e escrivão da Fazenda Real) e capitão Manuel Pereira Franco (almoxarife da Fazenda Real). Os registros de óbitos de escravos indicam a existência de estreitos contatos com traficantes da Bahia e do Rio de Janeiro, as principais regiões de onde vinham os escravos que eram revendidos aos domínios espanhóis. Entre 1735 e inícios de 1752, pelo menos 250 cativos que faleceram na Colônia foram objeto de negociação entre interessados do Rio e da Bahia e moradores e traficantes da praça platina. Um exemplo, no registro feito em 17 de abril de 1748: “Francisco, moleque boçal, que declarou Tomé Barbosa lhe tinha sido consignado no Rio de Janeiro por conta do capitão Domingos Vieira Pinto. Foi sepultado no cemitério desta Matriz”. Porém, nem todos os consignatários de escravos da Colônia eram necessariamente comerciantes, o que demonstra que o trato negreiro não era exclusividade do grupo mercantil. No termo de óbito feito em 26 de maio de 1748, o vigário anotou que o “moleque boçal” Cristóvão era “da conta de Manuel Gomes dos Santos, capitão de uma galera vinda da Bahia e de Manuel Álvares Monteiro, morador na dita cidade”. Dos cerca de 120 consignatários registrados nas fontes, pouco mais de um quarto deles foram identificados como mercadores ou homens de negócio, entre os quais se destacavam – devido ao número de registros – alguns dos negociantes atuantes na praça. Entre 1748 e 1752, o capitão Manuel Coelho Rosa compareceu nada menos do que 17 vezes diante do pároco local, informando a morte de escravos que estavam em seu poder. Atuando na rota que ligava a Colônia do Sacramento com Salvador, ele se casaria na praça platina em 1751 com Dona Vitória Silveira de Lacerda, tendo por testemunhas ninguém menos do que o governador Luiz Garcia de Bivar e o traficante Antônio da Costa Quintão. A maioria dos proprietários dos cativos que ele levou à sepultura residiam na Bahia, entre eles o poderoso Luís Coelho Ferreira, um dos maiores traficantes soteropolitanos. Ferreira foi um dos negociantes mais atuantes tanto no comércio atlântico de escravos quanto na sua redistribuição para as áreas mineradoras da América portuguesa. Era tido 1499

Para uma discussão sobre o tema da corrupção no mundo ibérico, ver o trabalho pioneiro de PIETSCHMANN, Horst, “Burocracia y corrupción en Hispanoamérica colonial: una aproximación tentativa”, Nova Americana, 5, 1982, p. 11-37. Segundo este autor, a corrupção seria sistemática na América hispânica, devido a uma tensão permanente entre o Estado metropolitano, a burocracia real e a sociedade colonial. Ver também os trabalhos de MOUTOUKIAS, Zacharias. “Power, corruption, and commerce: the making of the local administrative structure in seventeenth-century Buenos Aires” in: Hispanic American Historical Review. 68:4, 1988, p. 771-801 e “Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIII siècle” in: Annales ESC, nº 4-5, 1992, p. 889-915. Uma reavaliação do tema pode ser encontrada em PIETSCHMANN, Horst, “Corrupción en las Indias españolas: Revisión de un debate en la historiografía sobre Hispanoamérica colonial”, in: Manuel González Jiménez, Horst Pietschmann, Francisco Comín y Joseph Pérez (coords.), Instituciones y corrupción en la Historia, Instituto Universitario de Historia Simancas, Universidad de Valladolid, 1998: 31-52. 1500 PIJNING, Ernst. “Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII” in:Revista Brasileira de História. São Paulo, Vol. 21, nº 42, 2001, p. 398-399 e 407. 1501 ACMRJ. Colônia do Sacramento Livro 2º de Óbitos de livres e escravos, fls. 91-137v (1735-1747) e Livro 6º de óbitos de negros, índios, mulatos e cativos (1747-1774), fls. 1-54v (registros de 1747 a 1752). No total, identificamos 116 comissários, mercadores e homens de negócio.

449 ISSN 2358-4912 como um dos “homens de negócios em que na cidade da Bahia se considera maior inteligência nos preceitos mercantis, e capacidade para frequentar o comércio”.1502 O capitão Rosa também recebeu escravos do traficante Paulo Ribeiro do Vale e seu sócio, o armador de navios Antônio Vaz de Carvalho.1503 Em dois registros constavam os nomes dos compradores dos escravos em Buenos Aires, como um certo Dom Pedro Coelho, que não chegou a receber os moleques angolanos que havia comprado do capitão Manuel Coelho Rosa. Os registros informam, ademais, sobre as origens dos africanos traficados: em nove casos havia identificação, sendo seis originários de Angola e três da Costa da Mina. Outros traficantes sacramentinos tinham vínculos mais intensos com os homens de negócio cariocas, como foi o caso do capitão Bartolomeu Nogueira, que entre 1741 e 1752 sepultou 11 cativos em Colônia do Sacramento. Destes escravos, nove pertenciam a negociantes ou interessados no Rio de Janeiro, sendo que nos casos em que foi possível identificar a origem dos traficados, ficou patente que o fornecimento fluminense se fazia via África Centro-Ocidental (Angola, Benguela, Congo e Ganguela). Já no caso do capitão José da Costa Pereira, que foi almoxarife da Fazenda Real, nove cativos foram sepultados entre 1743 e 1748, cinco deles pertencentes a comerciantes do Rio, como Anacleto Elias da Fonseca, um dos principais personagens da cena política e econômica fluminense durante fins do século XVIII, que no começo da sua carreira mercantil atuava na Colônia do Sacramento.1504 Outros quatro escravos falecidos eram de propriedade de interessados que moravam em Buenos Aires, mostrando que as redes do tráfico tinham conexões que principiavam nos portos africanos e terminavam no Rio da Prata. No caso do Rio de Janeiro, os dados que temos para as décadas de 1740 e 1750 mostram a participação de diversificados agentes sociais no tráfico fluminense para o Rio da Prata, onde se destacavam evidentemente alguns dos homens de negócio da praça carioca, além de indivíduos simultaneamente ligados aos ofícios da Fazenda e à arrematação dos contratos régios.1505 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1502

Além da sua atuação como homem de negócios e traficante de escravos, o capitão Luís Coelho Ferreira foi procurador da Câmara de Salvador entre 1748 e 1767 e Guarda-Mor da Alfândega da Bahia em 1761. Para maiores detalhes a seu respeito, ver RIBEIRO, Alexandre V. “O comercio das almas e a obtenção de prestígio social: traficantes de escravos na Bahia ao longo do século XVIII” in: Locus – Revista de História. Vol. 12, nº 2, Juiz de Fora, 2006, p. 23; XIMENES, Cristiana Ferreira L. Bahia e Angola: redes comerciais e o tráfico de escravos (1750-1808). Niterói: PPG-História/UFF, tese de doutorado, 2012, p. 144; ADELMAN, Jeremy. Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton University Press, Princeton and Oxford, 2006, p. 81. 1503 XIMENES, op. cit. p. 254. Antônio Vaz de Carvalho consta da “Relação dos Armadores de Naus que faziam o comércio com os porto da Costa d’África”. 1504 PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte – A economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 126-130. 1505 Entre 1738 e 1752 foram registrados 154 óbitos de escravos na Colônia do Sacramento cujos proprietários residiam no Rio de Janeiro. Foi possível identificar 95 nomes diferentes, sendo que sobre pouco mais da metade deles obtivemos alguma informação biográfica. A tabela acima selecionou alguns dos indivíduos ligados ao trato mercantil, que também aparecem ocupando os ofícios fazendários ou arrematando contratos. Sobre os comerciantes fluminenses desse período, ver SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos” in: (org.) FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio. Conquistadores e negociantes – Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos: América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 225-264 e “Os homens de negócio e a coroa na construção das hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII” in: (org.) FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. Na Trama das Redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 459-484.

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ISSN 2358-4912 Agentes do tráfico Rio de Janeiro-Colônia do Sacramento (meados do século XVIII) Nome do traficante Agostinho de Faria Monteiro Antônio Álvares de Oliveira Antônio de Oliveira Durão Antônio Lopes da Costa Bernardo Pereira de Faria Domingos Correia Bandeira Domingos Ferreira da Veiga João de Oliveira Cardoso José Francisco Ferrão Manuel de Moura Brito

Ofícios/contratos Recebedor da Fazenda Real Almoxarife da Fazenda Real Procurador do cabido da Casa da Moeda Porteiro e guarda da Alfândega Escrivão da balança da Alfândega Almoxarife da Fazenda Real Contratador da Dízima Guarda-Mor dos navios da Alfândega Guarda-Mor da Alfândega Provedor da Casa da Moeda

Anos 1755-1757 1758-1775 1756-1764 1747-1756 1749-1756 1735-1761 1740-1757 1743 1746 1726-1754

Fontes: ACMRJ, livros de óbitos de escravos da Colônia do Sacramento e AHU-RJ, documentação avulsa.

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HIERARQUIAS SOCIAIS E CONDIÇÕES DE TRABALHO: AS ARTES MECÂNICAS EM MARIANA E AS COBRANÇAS DE OFÍCIO (1745 – 1808) Fabrício Luiz Pereira1506 O objetivo da presente comunicação é discursar sobre a inserção do oficialato mecânico nas sociedades setecentistas, mais especificamente na cidade de Mariana e debater sobre as hierarquias e condições de trabalho nas quais estavam submetidos. As fontes utilizadas foram consultadas no conjunto de ações cíveis disponíveis no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Das técnicas de exploração do metal à formação de uma aristocracia ociosa e de uma camada considerável de letrados, Sérgio Buarque de Holanda estabeleceu os vínculos entre a descoberta das jazidas de ouro nos sertões e a formação da sociedade mineira ao longo do século XVIII, no célebre capítulo “Metais e pedras preciosas”. Texto clássico pertencente à obra História da Civilização Brasileira coordenada pelo próprio autor. Descobertas as primeiras jazidas no sertão, em fins do século XVII, a região mineradora tornou-se um atrativo a homens de diferentes castas e procedências. Em 1711, quando publicada a obra Cultura e opulência do Brasil, Antonil, com base em informações de terceiros, estimava que cerca de 30.000 almas haviam se estabelecido naqueles sertões. A rápida ocupação do sertão e a grande quantidade de ouro encontrado fizeram das Minas um lugar único na América Portuguesa. A tão sonhada terra do Eldorado, enfim, fora descoberta e cabia nesse momento um efetivo controle administrativo e fiscal daquelas terras. Holanda, atento a essas questões, retorna aos regimentos das minas, de 1603 e 1618, os quais se apresentavam ineficazes àquela realidade. O novo regimento de 1702, nas palavras do autor, impunha “uma vigilante atenção das autoridades, que assegure os privilégios da Coroa na exploração de veeiros ricos (...)”.1507 Para manter seus privilégios, a Coroa criou os cargos de Superintendente das Minas e de Guarda-mor, cada um, a sua maneira, era responsável por fiscalizar as novas lavras que iam sendo descobertas e da divisão das datas minerais. Nesse momento, Holanda chama atenção para a tese central de “metais e pedras preciosas”, na qual a sociedade mineira, oriunda de um meio aluvial, propiciava uma mobilidade social muito maior do que em outros lugares do Império português. Ao destacar o novo regimento, o historiador ressalta que dentre as medidas de regulamentação das minas, o número de escravos era fator determinante para o tamanho da lavra concedida ao minerador. Entretanto, como atesta Holanda: “mineiros houve que tiraram de poucas braças enormes quantidades de ouro, ao passo que outros não chegaram a extrair senão escassas faíscas de muitas”.1508 A facilidade de enriquecimento, nos primórdios da civilização nas Minas do Ouro, seria um fator determinante que moldaria a realidade daquela sociedade. Esta busca por enriquecimento rápido traria também a Minas diferentes tipos de contrabandistas, apontados por Holanda, na figura de frades e mercadores. A Coroa teria, durante o começo do século, dificuldade em fiscalizar o contrabando, sobretudo, devido aos caminhos abertos no sertão, principalmente, no leito do Rio São Francisco. Além do contrabando, a administração régia preocupava-se também com a sedução dos mineradores pelo comércio e o abandono das minas.1509 No entanto, conforme demonstra Sérgio Buarque de Holanda, a fácil aquisição de instrumentos de minerar facilitaria o encanto de muitos às possibilidades de enriquecimento geradas pela mineração. Nesse sentido, Holanda retoma a Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga, para afirmar que: “mais 1506

Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Esse texto possui trechos e partes da dissertação defendida, por mim, em 23/07/2014, sob a recomendação de publicação: “Officios necessarios para a vida humana”: a inserção social dos oficiais da construção em Mariana e seu termo (1730 – 1808), no prelo. 1507 HOLANDA, Sérgio Buarque. Metais e pedras preciosas. In: História Geral da Civilização Brasileira – A época colonial: administração, economia e sociedade. 3a ed. São Paulo: DIFEL,1973. t. 1, v.2. p 269. 1508 Ibdem, p.271. 1509 Conferir, Ibidem, p. 281.

452 ISSN 2358-4912 depressa do que em outras partes, a escala social [da Capitania de Minas Gerais] vem a ser determinada pela posse maior ou menor de bens da fortuna.” No jogo de interesses de uma sociedade que se pretendia estamental, uma lógica de mercado começava a se instaurar, advindo assim a crítica de Gonzaga, na qual a honra estava sendo substituída pela riqueza.1510 Em meados do século, Holanda observa uma mudança nas atividades econômicas, assim, um terço da população, ou bem menos, dedicava-se à mineração. A grande maioria seria composta por oficiais mecânicos, mercadores de tenda aberta, boticários, advogados, clérigos, tropeiros, soldados da milícia, dentre outras atividades, superando, com isso, o tumulto inicial da exploração do mineral. Por fim, Holanda debate acerca da distinção social dos aristocratas e letrados. Dessa forma, o acréscimo de estudantes de Minas a Coimbra se deu principalmente durante o auge da produção do metal. Holanda termina “Metais e pedras preciosas” situando a produção artística mineira: “o fato é que, menos de um século depois de começado o trabalho áspero das lavras, Minas Gerais tomava a posição dominante em nossa paisagem intelectual e artística”.1511 Inspirada nessa concepção de uma democratização da sociedade mineira, Laura de Melo e Souza apresenta, em Os desclassificados do ouro, a importância da ostentação da riqueza através das celebrações do Triunfo Eucarístico (1733) e a festa do Trono Episcopal (1748). As festividades religiosas trazem à tona o poder simbólico do ouro naquela sociedade, visto que, afirma Souza, o fausto era falso e que a ostentação do ouro representado nas festividades esconderia uma mobilidade social que estaria guiada não pela riqueza, mas pela pobreza. Dessa maneira, a sociedade mineira, do século XVIII, foi marcada pelo baixo poder de concentração de renda e por uma pequena dimensão econômica. Em resumo, “a constituição democrática da sociedade mineira poderia se reduzir numa expressão: um maior número de pessoas dividia a pobreza”.1512 Contudo, se por um lado Laura de Melo e Souza argumenta sobre a mobilidade social pautada na pobreza, os estudos de Carla Almeida caminham para outra direção, a de que nas Minas Gerais prevaleceu uma polarização dos níveis de riqueza e pobreza dos homens livres. Com o declínio da mineração, Almeida detectou uma redistribuição interna da população e dos recursos econômicos, por conseguinte, as atividades agrícolas ganham maior destaque e a Comarca do Rio das Mortes teve um aumento significativo do número de habitantes. Além disso, a autora traçou um perfil socioeconômico da população mineira e detectou que poucos homens eram proprietários de um grande número de escravos, enquanto muitos possuíam de 1 a 2, de acordo com os dados arrolados pela historiadora, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

entre os mais pobres, uma parcela considerável dos inventariados não possuía escravo (22,6%). Este número é muito superior do que o percentual geral de não proprietários que é de 10,25%. Eram indivíduos que vendiam sua força de trabalho para outros ou que desenvolviam algum tipo de atividade produtiva com base na mão-de-obra familiar. Quase metade dos proprietários desta faixa de fortunas (49,4%), possuíam de 1 a 2 escravos, 36,5% tinham plantéis de 3 a 5 escravos e, somente uma pequena parcela destes homens eram possuidores de 6 a 9 cativos (14,1%).1513 1510

A representação dos valores estamentais é um dos temas latentes em sua sátira contra o Fanfarrão Minésio (pseudônimo do governador Luis da Cunha Pacheco e Meneses: 1783 – 1788). Chegando ao limite de comparar o fidalgo com a figura de um oficial mecânico, desqualificando o governador, questionando a nobreza do mesmo. No trecho Gonzaga escreveu: “Ah! Dize, Doroteu, porque motivo // O Pai de Fanfarrão o não pôs antes // Na loja de um hábil sapateiro // C’os moços aprendizes deste ofício? // Agora dirás tu: ‘Nasceu fidalgo, // E, as grandes personagens não se ocupam // Em baixos exercícios’. Nada dizes. // Tonante, Doroteu, é Pai dos deuses; // Nasceu-lhe o seu Vulcano, e nasceu feio.// Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um couce //Que o pôs do Olimpo fora; e o pobre moço // Foi abrir uma tenda de Ferreiro”. No processo de ridicularização da figura do governador, Gonzaga acaba por rebaixá-lo não somente a um membro do Terceiro Estado, no caso um “hábil sapateiro”, mas também dentro das hierarquias próprias do universo mecânico, sugerindo-lhe que abrisse uma tenda de ferreiro. Para toda uma analise do trecho citado ler: ALFAGALI, ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Em casa de ferreiro pior apeiro: os artesãos do ferro em Vila Rica e Mariana no século XVIII. Campinas, UNICAMP, 2012. (Dissertação de Mestrado). pp. 01 -10. 1511 Ibdem, p. 310. 1512 SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. p. 29-30. 1513 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750 – 1822. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001. P. 221.

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ISSN 2358-4912 Em oposição, as maiores fortunas registradas eram marcadas pela predominância dos grandes plantéis de escravos: 48,8% dos proprietários possuíam mais de 30 escravos e 22% tinham entre 21 a 30 escravos. 22% dos homens mais abastados eram detentores de plantéis de 10 a 20 escravos. Somente 7,2% destes inventariados possuíam pequenos plantéis, todos comerciantes. Ou seja, nessa sociedade, o tamanho do plantel e a dimensão da fortuna eram expressão de uma mesma hierarquia socioeconômica.1514

A hierarquização, demonstrada por Carla Almeida, foi motivada por uma restruturação do quadro econômico da Capitania, antes marcado pela exploração aurífera, e posteriormente por uma diversificação econômica, caracterizada pela forte presença da agricultura e das relações comerciais. No entanto, no contexto urbano, as modificações da estrutura econômica e as alterações das camadas sociais, marcadas pelo crescimento da população parda, forjaram um rearranjo para a inserção social do terceiro estado. Para Marco Antônio Silveira, “o mercado adquiriu importância na estrutura social porque permitiu também a integração de grupos menos “legítimos” como os pardos vinculados aos ofícios e as pretas forras das vendas”.1515 A escravidão teve um impacto profundo nas relações sociais e econômicas que se firmavam. As formas representativas de ações judiciais, que envolviam os negros, chamaram a atenção de Silveira para as práticas cotidianas, que forjavam a oportunidade de mobilidade social dentro do sistema escravocrata. A possibilidade de quartação, a relação existente entre comerciantes e quilombos, e as diferentes chances de trabalho presentes no universo urbano, como os jornais em ofícios mecânicos garantiram certa mobilidade. Sendo assim, o “aluvisionismo social” se fazia presente mais uma vez, num jogo paradoxal integrava e desintegrava as relações entre negros, mulatos e brancos, ora propiciando certa liberdade entre os cativos, ora sendo efetivadas medidas jurídicas que restabeleciam a ordem estamental. Dessa forma, em um universo urbano a mobilidade social era marcada por múltiplas possibilidades, ou ainda; era exatamente nesse ponto que se estabelecia a indistinção: embora se tratasse de uma sociedade permeada pelos valores estamentais, a lógica do mercado e da urbanização, assim como o modo particular assumido pelo escravismo fazia com que a vida social oscilasse entre referenciais variados.1516

Posto isto, numa sociedade marcada pela pobreza e escassez, na qual a maioria buscava diferentes maneiras de inserção social e econômica, as atividades mecânicas tornaram-se uma alternativa possível para a sobrevivência. Em Mariana durante o século XVIII, o levantamento das cartas de exame indica que determinados ofícios mecânicos retiravam mais cartas de exame que outros. No caso da cidade de um total de 360 cartas concedidas entre os anos de 1737 a 1806, 42% da documentação foi retirada por oficiais da lide do ferro, 40% dos oficiais da vestimenta (alfaiates e sapateiros), e somente 13% dos trabalhadores da construção, pedreiros e carpinteiros, retiraram o documento. A organização dos outros ofícios frente aos oficiais da construção pode ser justificada pela própria fiscalização camarária nas lojas e tendas, visto que, os carpinteiros e pedreiros possuíam fábricas móveis, no próprio canteiro de obra. Ainda assim, é um número baixo de cartas de exame expedida para tais trabalhadores. Visto que, em nossas pesquisas conseguimos detectar cerca de 395 homens que se dedicavam a esses ofícios entre os arrolados das testemunhas de ações cíveis da cidade e seu termo. O baixo número de expedição de cartas de exame de carpinteiros e pedreiros, sendo 35 para o primeiro grupo e 13 para o segundo nos levaram a pensar na possibilidade de uma forte concorrência no setor de arrematação de obras públicas, na qual os grandes mestres, com fábricas bem equipadas e um plantel significativo de escravos tinham a possibilidade de arrematar mais obras. Nesse sentido, os demais artesãos buscavam no serviço a jornal a sobrevivência diária. Dessa forma, o trabalho de 1514

Ibdem, p. 222. Ibdem, p. 94. 1516 SILVEIRA, SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735 – 1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997.p.116. 1515

454 ISSN 2358-4912 jornaleiros, bem como de escravos, surgiu como alternativa para a compreensão das hierarquias próprias do oficialato mecânico. Desse modo, ao analisarmos 103 processos de ações cíveis do Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana, procuramos entender como se dava a inserção social e econômica dos artífices e as condições de trabalho. Tal conjunto documental abrange uma variedade de fontes de cunho jurídico, que eram utilizadas para a promoção da garantia ou defesa de um direito de ordem civil. Assim, nas folhas dos autos constam, normalmente, petições ou requerimentos, através dos quais se reivindicavam medidas judiciais sobre os mais variáveis assuntos, como: direito ameaçado, recebimento de dívidas atrasadas, permuta de bens, procurações e certidões. Dos milhares de autos encontrados no arquivo, pesquisamos somente aqueles que tinham relação direta com as construções de obras, cobranças de serviços e de materiais.1517 A grande maioria das fontes encontradas referia-se a cobranças simples que, em sua estrutura, contêm um auto de abertura, com dados como autor, réu, data, local e motivo da cobrança. Já na folha que segue, encontramos o depoimento do réu informando o motivo de tal querela, conforme elucidado abaixo: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Diz João Lopes Romão morador desta cidade que sendo senhor de um esteio de braúna para uma obra que pretendia fazer, com largura de um bom palmo em quadra e vinte e cinco de comprido, lhe pediu por empréstimo de baixo da palavra de no trato de oito dias lhe dar outro por ele ou duas oitavas de ouro, Antônio Carlos Cardozo, e como o dito trato seja passado e não trate este de lhe dar comprimento o que o suplicante fazer citar para no prazo de três dias restitua o semelhante pau, com condição de que não o fazendo no dito prazo em sua costumancia [sic] ser condenado na dia quantia o preço dele, e juntamente para no prazo de oito dias remir uns penhores de ouro e prata que tem posto na mão do Suplicante pela quantia de 47 oitavas e meia de ouro, com condição de que não o fazendo mandarem a quem por eles mais der para pagamento do tal quantia e custas.1518

E, por fim, na última folha, escrevem as “custas” dos processos e solicitam que o réu pague o autor. No documento transcrito, percebemos que tal ação foi gerada pela quebra da palavra, nos dizeres do autor, o réu Antônio Cardozo “lhe pediu por empréstimo de baixo da palavra”. Nesse sentido há nos processos a ruptura da palavra (falada ou escrita), o que levava às formalidades da justiça. Com a ineficácia da circulação da moeda, era através de créditos escritos e da palavra que se forjavam as transações diárias.1519 Os valores das cobranças nas ações cíveis são variados, de 202/8ª a 2/8ª de ouro, e dezenas de oficiais mecânicos buscavam reaver o ganho de seus serviços.1520 O alcance da justiça também ganha destaque nas ações consultadas. Encontramos processos nos mais diferentes locais do termo de Mariana, tais lugares demonstram não só o número de oficiais mecânicos do termo, mas também a extensão do direito no século XVIII. Geralmente, quando o autor da ação não morava nas proximidades da cidade, era através de procurações que ele buscava sua representação. Outro ponto de destaque desse conjunto documental são os reflexos encontrados sobre a constituição racial daquela sociedade. Frequentemente, os autores das ações cíveis não são categorizados por nenhuma cor, já o mesmo não ocorre com os réus. Quando o acusado era negro ou forro, tal identificação vinha em sequência após seu nome. Demonstrando, a nosso ver, uma preocupação em demarcar as distinções sociais típicas de uma sociedade de pretensões estamentais. O mesmo parâmetro não foi identificado para as testemunhas. Na relação dos oficiais mecânicos, que testemunharam nos mais diferentes processos, não houve uma obrigatoriedade em identificar a cor. No entanto, isso não significava que o envolvido fosse necessariamente branco. O carpinteiro José 1517

O conjunto documental é marcado por 2706 documentos no I ofício e 20270 no II ofício. As datas limites dos documentos são de 1709 a 1887. Como o AHCSM está integrado ao IPHAN, nos catálogos continham informações sobre ofício mecânico, obras e materiais. 1518 AHCSM. Códice: 502. Auto: 17195. II ofício, 1761. 1519 De acordo com Marco Antônio Silveira, “o fiado e a dívida eram generalizados. Na grande quantidade de ações cíveis, devassas e correspondências particulares do período, encontram-se referências a acordos estipulados há anos ou mesmo papéis assinados representando empréstimos ou vendas a prazo.” SILVEIRA, op. Cit. P.99. 1520 As palavras serviço, trabalho e ofício aparecem como sinônimas nas ações cíveis consultadas.

455 ISSN 2358-4912 Fernandes Lavado, por exemplo, morador em Antônio Pereira, foi encontrado como testemunha em dois processos. No primeiro não há nenhuma menção à cor, já no segundo ele aparece como pardo.1521 As marcas da escravidão, segundo Marco Antônio Silveira, “embora assentada em bases institucionais, dependia em larga escala da legitimação cotidiana expressa por meio de gestos e comportamentos”.1522 Portanto, a condição social não era expressa pela cor, mas sim pelo reconhecimento social. Dessa forma, três carpinteiros arrolados como testemunhas em processos, durante o período consultado, tiveram a cor modificada com o passar dos anos. Em 1793, Manoel Teixeira Sampaio, morador da cidade de Mariana, aos 50 anos de idade foi considerado pardo.1523 Após 12 anos, em 1805, o mesmo carpinteiro aparecera como branco em outro processo.1524 Manoel Pimentel das Flores, residente em arraial de São Caetano, alcançou a mesma distinção. Em 1806, era um pardo forro, de 64 anos.1525 Dois anos depois, já era considerado um carpinteiro branco.1526 E por último, o caso mais enigmático encontrado, o carpinteiro Francisco Xavier Pedroso, em 1799, testemunhou como branco, aos 56 anos de idade.1527 Um ano depois, o mesmo homem foi considerado pardo em outro processo.1528 Nos dois primeiros casos, possivelmente houve um processo de inserção social, no qual os oficiais mecânicos abandonam as marcas do cativeiro e foram reconhecidos juridicamente como brancos. Já no último caso, provavelmente o carpinteiro estava passando por este processo de identificação social e jurídico, ou ainda, em todos os casos o reconhecimento cotidiano era passível de alterações. Ainda assim, nota-se uma subjetividade, por parte do tabelião, na descrição de pardo e/ou branco, ressaltando que tais mudanças dependiam em alta medida de uma legitimação social que talvez demandasse um tempo para a aceitação da modificação do status do indivíduo. Quanto ao universo do trabalho havia uma minoria de homens brancos, de origem metropolitana, que garantiam um maior volume de arrematações de obras públicas. No entanto, o ofício mecânico possibilitava, sobretudo ao homem pardo, uma ascensão social, o que talvez tenha garantido a aceitação de outra cor, como nos processos citados acima. De acordo com Marco Antônio Silveira, o desejo de distinção era marca de vários grupos sociais, os pardos talvez fossem os que representassem mais ativamente esta tendência, embora acusassem no tom da pele a origem escrava. Nesse sentido, citando o Desembargador Teixeira Coelho, Silveira sugere uma integração social subsidiada pelo trabalho mecânico, assim: “Teixeira Coelho se queixava do baixo nível dos pretendentes ordenados na década de 1770, acusando que alguns, ‘(...) havendo aprendido ofícios mecânicos e servindo de soldados na Tropa paga, se acham hoje feito sacerdotes’.”1529 A vontade de distinção fazia com que a ordem social, típica de uma sociedade estamental, entrasse em conflito, pois “muita desenvoltura com que vivem os mulatos, sendo tal atividade que não reconhecendo superioridade nos brancos, se querem igualar a eles.”1530 A possibilidade de trabalhar como jornaleiro ou sublocação de contratos em obras arrematadas, por outros oficiais mecânicos, era comum durante o período colonial. De acordo com Fabiano Gomes da Silva, na prática das arrematações de obras civis e eclesiásticas: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O contrato era uma peça jurídica firmada entre o arrematante e o cliente, em que cada um assegurava o cumprimento das condições acordadas, sendo omitidos os nomes da maior parte dos oficiais jornaleiros, cativos e livres, que atuavam nas obras, pois os contratos limitavam a informar quem arrematava e quem fiava, quando era o caso. Nem sempre os próprios arrematantes executavam as obras pessoalmente. Era costume que outros oficiais fossem sub-contratados para executarem o conjunto ou determinada parte da obra, acordos, às vezes, firmados simplesmente pela força da palavra fiada. Além disso, o arrematante poderia colocar escravos especializados,

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AHCSM: Códice: 385. Auto: 10475. II ofício, 1792. AHCSM: Códice: 428. Auto: 12937. II ofício, 1792. SILVEIRA, op. Cit. p. 124. 1523 AHCSM. Códice: 268. Auto: 6604. II Ofício, 1793. 1524 AHCSM. Códice: 435. Auto 13345. II ofício, 1805. 1525 AHCSM. Códice: 435. Auto: 13348. II ofício, 1806. 1526 AHCSM. Códice: 378. Auto: 10127. II ofício, 1808. 1527 AHCSM. Códice: 336. Auto: 7973. II ofício, 1799. 1528 AHCSM. Códice: 320. Auto 6904. I ofício, 1800. 1529 SILVEIRA, op. Cit., p. 170. 1530 TEIXEIRA COELHO, op. Cit. p. 449. Apud. SILVEIRA, op. Cit. p. 170. 1522

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ISSN 2358-4912 seus ou alugados, sob sua supervisão ou de algum oficial de confiança, o que dificulta bastante o trabalho de atribuição de autoria.1531

Sendo assim, essas práticas favoreciam a continuidade das hierarquias dentro do universo do oficialato mecânico. Por fim, o presente texto buscou apontar alguns elementos e dados encontrados sobre os oficiais mecânicos na cidade de Mariana durante o século XVIII. Sabemos que existem diversos outros aspectos que relacionam com tal problemática, o que não é possível discursar somente em um artigo. Elementos como o aprendizado do ofício, as festividades locais, entre outros são fundamentais para a compreensão das hierarquias existentes na sociedade setecentista. Referências AHCSM. Códice: 502. Auto: 17195. II ofício, 1761. AHCSM: Códice: 385. Auto: 10475. II ofício, 1792. AHCSM: Códice: 428. Auto: 12937. II ofício, 1792. AHCSM. Códice: 268. Auto: 6604. II Ofício, 1793. AHCSM. Códice: 435. Auto 13345. II ofício, 1805. AHCSM. Códice: 435. Auto: 13348. II ofício, 1806. AHCSM. Códice: 378. Auto: 10127. II ofício, 1808. AHCSM. Códice: 336. Auto: 7973. II ofício, 1799. AHCSM. Códice: 320. Auto 6904. I ofício, 1800. ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750 – 1822. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2001. ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Em casa de ferreiro pior apeiro: os artesãos do ferro em Vila Rica e Mariana no século XVIII. Campinas, UNICAMP, 2012. (Dissertação de Mestrado). HOLANDA, Sérgio Buarque. Metais e pedras preciosas. In: História Geral da Civilização Brasileira – A época colonial: administração, economia e sociedade. 3a ed. São Paulo: DIFEL,1973. t. 1, v.2. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735 – 1808). São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

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SILVA, Fabiano Gomes da. Pedra e cal: Os construtores em Vila Rica no século XVIII (1730-1800). Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.p. 18-19.

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CONSIDERANDO OUTROS AGENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AMAZÔNIA PORTUGUESA NO SÉCULO XVII1532 Fernando Roque Fernandes1533 A Amazônia, sob o domínio português, ocupou lugar não somente sob os olhos econômicos1534 da exploração lusitana ou de suas representações religiosas, materializadas por missionários de diversas ordens. Ela também foi criadora de um novo imaginário. Ao se transformar em um ambiente influenciador de novas representações, acabou por impactar profundamente nos modos de vida das diversas sociedades nativas. Nesse caso, é possível dizer que o imaginário europeu encontrou lugar para sua materialização, justamente no solo amazônico, na parte mais densa e desconhecida de suas matas e que nesse processo de adaptação, pelo europeu, acabou ocorrendo uma reconfiguração não só do ambiente ou das práticas1535 do lugar, mas do próprio estilo de pensar, tanto desse colonizador, quanto dos nativos que já habitavam a região há milhares de anos e que haviam desenvolvido um complexo Sistema Político ao longo dos rios amazônicos1536 e por toda a extensão desse imenso território em litígio. Esse local foi cenário propício não somente ao espanto pelo novo, foi também espaço para o direcionamento do discurso necessário a subjugação dos povos habitantes dessa região. Foi por causa desse ambiente e dos grupos nativos moradores nele, que houveram intensos debates e conflitos entre colonos leigos e missionários a respeito da humanidade e espiritualidade desses indivíduos. Este espaço já era testemunha de calorosos conflitos intertribais que tradicionalmente ocorriam nesta região. Na verdade, a principal atividade do mundo amazônico pré-colonial, era a arte da guerra. Diversas tribos indígenas disputavam territórios e mantinham relações de poder fundamentais às suas sobrevivências, o conhecimento desse aspecto torna-se fundamental para a compreensão das relações de alianças desenvolvidas entre indígenas e europeus. É incorreto dizer que muitos grupos indígenas não resistiram de diversas formas, à imposição colonizadora, mas é que a resistência de alguns deles não pôde prevalecer definitivamente contra tamanha desigualdade de condições em que se encontravam frente às estratégias de que se utilizaram os portugueses para subjugá-los.1537 Aliás, sem a ajuda dos nativos, com suas técnicas e conhecimento do lugar, dificilmente os colonos, leigos e/ou missionários, conseguiriam desestabilizar milhões de indígenas em sua própria região e forçar um processo de reconfiguração do espaço amazônico. No mínimo, ao perceberem o engano pelo qual eram cooptados, certamente estes desencadeavam 1532

Este artigo é parte do Capítulo I de minha Dissertação de Mestrado que está sendo financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas - Fapeam. [email protected] 1533 Mestrando em História Social pela Linha de Pesquisa Cultura e Representação do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Amazonas – Ufam. Desenvolve pesquisas com o tema: “Regulamentar para coexistir: A normatização dos Aldeamentos indígenas através do Regulamento das Aldeias (1653 – 1661)”. Atualmente é Professor Titular de História Geral e do Brasil no Centro Metropolitano de Ensino – Cemetro. 1534 SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da Conquista – Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina – Cap. I: Amazônia, uma Colônia portuguesa diferente na América, pag. 17-18. 2 ed. Manaus. Ed. Universidade do Amazonas, 2002. Santos comenta acerca das riquezas extraídas da Amazônia que dentre as principais estavam: “... o cacau selvagem, a canela do mato, o cravo, a salsaparrilha, a castanha do Pará, a piaçava, as sementes oleaginosas (andiroba e copaíba), o gengibre, o puxuri, a baunilha, a tinta de urucum, o anil,a madeira e produtos do reino animal...”. 1535 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro; Ed. Vozes, 1998 1536 PORRO, Antônio. O Povo das Águas: Ensaios de Etno-História Amazônica. Rio de Janeiro; Vozes, 1995. Capítulo 1 – Os Povos da Amazônia à Chegada dos Europeus. Publicado em História da Igreja na Amazônia (org. Eduardo Hoornaert). Petrópolis, Vozes, 1992. “...Cacicados Complexos...”. 1537 FREIRE, Ribamar Bessa. (org.) “A Amazônia Colonial (1616 – 1798)”. Manaus; Ed. Metro Cúbico, 2005. (...quando os índios se recusaram a trocar os prisioneiros de guerras intertribais por objetos, como aconteceu com os Tapajós e os Omáguas, segundo atestam os padres Acunã e Samuel Fritz, os resgates deixavam de ser uma operação de troca para se transforarem numa operação de guerra. Os portugueses, no dizer de Vieira, metiam a “pistola no peito dos índios”, invadiam suas aldeias queimando as malocas e prendendo todos aqueles índios que encontravam.”(pg. 43).

458 ISSN 2358-4912 inúmeras subversões, frente ao que lhes era proposto, bem como desenvolviam diversas táticas1538 para alcançarem a liberdade neste de jogo interesses. Apesar de o europeu ter conseguido certo “êxito” na construção da Amazônia portuguesa, esse processo não ocorreu de forma passiva e diretamente ligada à questão da escravidão ou da religiosidade, mas foi muito mais complexo e meticuloso do que as teorias reducionistas afirmaram durante muito tempo. A Colônia também é espaço das apropriações do modo de pensar europeu pelo nativo, que se utiliza dessa mentalidade estrangeira para se desvencilhar dos laços que minavam sua liberdade nesse incerto projeto colonial. Ocorreram casos em que indígenas fizeram uso de meios legislativos para protestar perante a Lei portuguesa acerca de sua autoridade e influência dentro do espaço colonial1539. A própria questão da conversão indígena deve ser entendida algumas vezes como a única forma de esse indivíduo se inserir nesse mundo cristão e ter seus direitos de liberdade “respeitados” dentro da Colônia e, ao mesmo tempo, servia como um passaporte para sua inserção nessa atmosfera em configuração1540 da qual também era um construtor em potencial. Pois como observa Almir Diniz: “ ...tornar-se cristão para eles [os índios] era uma escolha e, ao mesmo tempo a sua única opção segura... é engano considerar os “índios cristãos” como o resultado de uma integração perfeita.”1541 Mesmo sendo obrigados a uma nova forma de convivência que lhes forçava a lidar com uma nova visão de mundo muito diferente da qual estavam acostumados, houve certa originalidade na inserção e apropriação desse novo cotidiano, à revelia do poder que os enquadrou, “...tornando-se também construtores do novo mundo, no qual foram obrigados a viver...”.1542 A propósito dessa forma de inserção munida de resistência e de certa aceitação ao que lhes era proposto, Almir Diniz também observa que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

...os “índios” tinham “existência concreta” [nesse mundo colonial por causa da generalização do termo “índio”], e passaram a agir e se autodenominar como tais. Além do seu enquadramento na visão que deles se tinha, afirmaram a sua diferença por contraste àqueles com quem foram forçados a conviver.1543

A conversão do índio ao cristianismo, muitas das vezes, era a forma mais segura de sobrevivência nesse espaço colonial em desenvolvimento e, nesse sentido, podemos concluir que a integração destes indivíduos ao processo de cristianização pode não ter acontecido pelo resultado positivo do processo catequético mas, muitas vezes, pela capacidade de leitura deste nativo, que media aquilo que poderia ganhar com essa aceitação consciente, mas nem um pouco passiva, a qual se submeteram. Mesmo após o batismo, o índio jamais perde sua identidade, o que ocorre, na verdade, é um processo de apropriação que se desenvolve através do uso de elementos da cultura europeia pela indígena, criando novas possibilidades de convivências cotidianas e de práticas sociais. Observe a conclusão de Certeau acerca deste assunto: A partir do momento em que os princípios se relativizam e se invertem, a pertença a uma igreja (ou a um “corpo”) tendem a fundamentar a certeza, mais do que o conteúdo ( que se tornou discutível, porque parcial, ou comum mas oculto, “místico”) das verdades próprias de cada um.1544

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Fugas, suicídios, rebeliões, abortos, assassinatos de suas lideranças, articulações sutis, conversões superficiais, migrações internas, ausências físicas e espirituais nos aldeamentos. Eis algumas das subversões propostas pelos indígenas dentro dos espaços de missionação. 1539 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. “Líderes Indígenas no mundo cristão colonial”. In.: Canoa do Tempo – Revista do Programa de Pós-Graduação de História, Manaus. V1, nº1 – jan/dez. 2007. Ler também: MELLO, Márcia Eliane Alves de Souza. “Para servir a quem quiser”: apelações de liberdade dos índios na Amazônia Portuguesa in SAMPAIO, Patrícia Melo. Rastros da memória: histórias e trajetórias... 1540 Acerca da questão da conversão como forma de emancipação dentro do cotidiano da colonização ler: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 1982. 1541 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. “Líderes Indígenas no Mundo Cristão Colonial”. In Canoa do Tempo – Revista do Programa de Pós-Graduação de História. Manaus; Vol. I Nº 1 – Jan/Dez. 2007. 1542 Idem (pg. 123). 1543 Idem (pg. 124). 1544 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro; Ed. Vozes, 1998.

459 ISSN 2358-4912 O processo de missionação não foi incapaz de anular os traços culturais das sociedades indígenas, ocorrendo, nesse caso, uma espécie de reconstrução deste espaço a partir da inserção de novos elementos culturais na região e da manutenção de elementos tradicionais das culturas do próprio ambiente1545. A introdução de uma nova cultura nesse espaço o transforma, forçando os agentes sociais a criar um novo cotidiano, obrigando os grupos locais em conflito a ressignificarem diversos elementos culturais para que também possam atuar como construtores deste novo espaço e garantir a manutenção de suas tradições.1546 É preciso dar um novo papel ao índio e a própria representação do Principal1547, no processo de reconfiguração deste espaço – através da implantação dos aldeamentos – passa a ter nova representatividade e sua participação simbólica, passa a ter existência concreta.

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O Índio Principal O cargo de Principalato não é algo que se desenvolve de uma especificidade puramente portuguesa através do processo de colonização. Instituído pela Coroa a partir da necessidade de se desenvolver um processo de institucionalização de cargos políticos foi, na verdade, um processo de oficialização, junto à máquina político-burocrática portuguesa, de uma função que já era realidade das sociedades indígenas antes do contato com os europeus. Vale a ressalva de que o significado de tal status e a sua representação, eram distintas entre as culturas e que cada lógica política das diversas etnias nativas, entendiam de uma forma bastante particular a questão das lideranças de suas aldeias. Nesse sentido, observa-se que ocorreu uma tentativa de articular politicas entre portugueses e nativos, talvez bem sucedida, na pretensão de desenvolver alianças mais sólidas junto a estas lideranças, que desempenhavam um papel original de administração de seus subordinados. Sua função não se resume ao papel simbólico e/ou místico das representações. Essas lideranças, por vezes, atuavam como líderes religiosos, militares de alta e baixa patente, intermediadores entre culturas, tanto Inter étnicas, quanto entre os nativos e os europeus e se beneficiavam das benesses que o cargo lhes dava o direito, mas fundamentalmente dentro da lógica colonial, eram os responsáveis por administrar e distribuir a mão-de-obra necessária para o manutenção econômica da Colônia. Tais lideranças foram fundamentais no processo de distribuição de mão-de-obra, e também capazes de estabelecerem-se como agentes coloniais indispensáveis a uma relação menos desequilibrada entre colonos e nativos. O Índio Principal desempenha um papel fundamental no desenvolvimento das relações sociais que ocorrem dentro do espaço de missionação ao se tornar, por força de Lei1548, o responsável pela administração temporal dos aldeamentos jesuítas e ser o intermediador cultural desse espaço. Tal é o papel de destaque dessa liderança indígena, que se fez necessária a criação de uma espécie de legislação específica para nortear o trabalho de catequese dentro dos Aldeamentos, dada a dificuldade que os jesuítas enfrentaram para missionar a população ameríndia que estava submetida à autoridade de sua própria liderança. A partir das das cartas de Vieira1549, podemos obter relevantes informações acerca da influência percebida pelos jesuítas, acerca desse índio Principal. Mais do que uma 1545

Não queremos aqui afirmar que antes da chegada dos europeus não havia diversidades étnicas, mas ponderar acerca de tamanha divergência das pretensões culturais do ocidente em relação aos ameríndios. 1546 FERNANDES, F. R. . 'A Manutenção das Tradições: O papel do Índio Principal no processo de colonização da Amazônia (1640-1661). Embornal: revista eletrônica da ANPUH-CE, v. 3, p. 3-25, 2013. 1547 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. “Líderes Indígenas no mundo cristão colonial”. In.: Canoa do Tempo – Revista do Programa de Pós-Graduação de História. Manaus.Nº1 – jan/dez. 2007..”...o cargo ou função de Principal correspondia, naquele contexto, a uma multiplicidade de papéis que iam desde aliados militares de grande prestígio dos primeiros anos da conquista, até simples chefes de grupos que não faziam mais do que gerenciar o processo de repartição dos trabalhadores indígenas sob seu comando...”(pg. 150). 1548 Lei de 09 de Abril de 1655 – Passa a responsabilidade temporal sobre os Aldeamentos indígenas aos índios Principais e a responsabilidade espiritual aos missionários jesuítas. 1549 Cartas do Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus. Tomo I. Lisboa Ocidental. Redigido na Oficina da Congregação do Oratório. 1735. (arquivo em PDF baixar do site: [email protected]). A fonte a que o texto se refere seria a Carta de XII ao Rei de Portugal: “Maranhão, 06 de Abril de 1654 – trata acerca da administração indígena feita pelos colonos e dispõe XIX pontos de se tratar os indígenas e transformar o modo como é administrada a grande quantidade de mão de obra utilizada na Colônia.”

460 ISSN 2358-4912 representação dentro do aldeamento, este indivíduo deve ser levado em consideração, como o próprio Vieira deixa bem claro, quando observa que o cargo dessa liderança deveria ser visto como “... mais do que uma simples nomeação...”1550. Muitas leis foram emanadas da Coroa portuguesa com o intuito de regulamentar a vida nos aldeamentos missionários, no entanto, a realidade de cada Colônia era específica – as características dos aldeamentos de São Paulo, por exemplo, eram distintos das grandes missões empreendidas no Maranhão e Grão-Pará - e a legislação geral não atendia às necessidades específicas de cada região. Por outro lado, muitas dessas normas tornavam-se letra morta. A “Amazônia [era] uma Colônia Portuguesa diferente na América”1551 e necessitava de leis específicas para regular seu cotidiano. Devemos considerar também, por outro lado, que a permanência de mulheres e crianças nos aldeamentos era uma das estratégias utilizadas pelos missionários jesuítas para garantir a volta de seus parceiros que saiam das aldeias para serem utilizados como mão de obra em diversas atividades pelos colonos e que muitas vezes fugiam na tentativa de se verem livres do jugo opressor do colonizador europeus. A saudade de sua amada e filhos fazia com que muitos índios aceitassem a sua condição de trabalho compulsório e em muitos casos, era a única alternativa para manter as relações de poder que se estabeleciam entre o processo de catequese desenvolvido pelos missionários e o uso da mão de obra indígena por parte dos colonos. Os aldeamentos indígenas em muitos casos também eram cativeiros de mulheres e crianças1552. As crianças são direcionadas para o processo educacional, estão isentas de qualquer obrigação secular, assim como os idosos. A educação delas passa a ser a peça chave para a continuidade dos aldeamentos e para a conversão dos índios, pois era mais difícil converter o índio adulto por sua inconstância e resistência política às relações de poder estabelecidas; tanto que no parágrafo §27 de sua “Visita”1553, Antônio Vieira chama a atenção para o batismo dos adultos e adverte que:

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§27 Descendo do Sertão alguns índios gentios, de que haja provável [temor] de que poderão tornar às suas terras, ainda que digam que querem ser cristão, se não batizarão nem os adultos, nem os inocentes deles, senão em perigo de morte, pela experiência que há da pouca constância de algumas destas nações. 1554

Entendido como um projeto de conversão a longo prazo, o processo da catequese feito através das crianças tinha como objetivo desenvolver desde a tenra idade os ideais e a moral cristã idealizados pelos jesuítas como elemento fundamental para o estabelecimento de um império cristão nas Américas. A figura do Principal tem forte destaque nesta legislação interna e é mencionado em muitos dos parágrafos da “Visita”. Um bom exemplo deve ser observado quando verificamos que estes índios, tinham o privilégio de serem enterrados dentro das demarcações do aldeamento, coisa que era proibida a outros índios que viessem a falecer conforme atesta o §35, mas proibia-se, sempre que possível, certos excessos nos funerais “...porque no modo de amortalhar, há nações que usam algumas coisas supersticiosas e ainda alguns excessos com que costumam chorar os defuntos (...)”1555. Dentro dos aldeamentos, ocorriam diversos delitos em que era necessário fazerem-se julgamentos e deliberar sobre as penalidades que deveriam ser aplicadas aos “delinquentes”. Os padres jesuítas tinham total autoridade para mandar castigar aqueles que infringiam as ordens do lugar, conforme atestam os

1550

MAIA, Lígio de Oliveira. Regulamento das aldeias: Da Missio ideal às experiências coloniais. Revista Outros Tempos. Vol. 5, nº 6. Dezembro de 2008 – Dossiê religião e Religiosidade; UFF. “Com o avanço dos missionários ao norte do Brasil, ficou decidido pela Lei de 09 de abril de 1655 para o estado do Maranhão, que os jesuítas ficassem com o governo espiritual...que não se colocasse capitão, mas que o temporal, ficasse com os principais índios das Aldeias.” (pg. 189). 1551 SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. 2ª ed. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2002. (Título do capítulo 1). 1552 FERNANDES, F. R. . 'A Manutenção das Tradições: O papel do Índio Principal no processo de colonização da Amazônia (1640-1661). Embornal: revista eletrônica da ANPUH-CE, v. 3, p. 3-25, 2013. 1553 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Vols. I – X. Lisboa, Rio de Janeiro; Livraria Portugália. Ed. Nacional do Livro, 1938 – 50. 1554 Idem (pag. 115) § 27 – [Baptismo de adultos]. 1555 Idem (pag. 118) § 35 – [Funerais].

461 ISSN 2358-4912 parágrafos §37 e §381556. No entanto, “... o castigo que merecerem se lhes dará por meio dos Principais,... os quais com isto se satisfazem, e nos acrescentamos respeito e autoridade...”. Somente os Principais poderiam aplicar os castigos em seus pares, pois do contrário, os missionários poderiam colocar em risco todo um processo de conversão e facilitar rebeliões dentro dos aldeamentos. Agindo de acordo com a “Visita”, o jesuíta acabava por ganhar estima e passava uma boa imagem aos moradores do aldeamento. Vale ressaltar que quando o castigo era direcionado ao Principal, o máximo que o missionário poderia fazer era admoestá-lo; caso as repreensões não resolvessem o problema, o padre deveria dar ciência do ocorrido ao seu Superior e este avisaria ao Governador e Capitão-Mor para que estes deliberassem, conforme o parágrafo §391557. Em relação ao Governo temporal dos Aldeamentos, toda a responsabilidade pelos ofícios e provisões estava a cargo do Principal conforme atesta o parágrafo §41: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Os provimentos dos outros ofícios da Aldeia, ou sejam de guerra, ou de República, principalmente depois da nova Lei, basta que os façam [os] Principais com direção e aprovação do padre e [pôsto] que diz a Lei que os Párocos com os Principais das suas nações governem as suas Aldeias...1558

O Principal é mais do que uma liderança indígena dentro do aldeamento, mais do que um administrador de mão de obra, mais do que uma intermediação cultural ou o canal de ligação entre o colono, o missionário e o indígena. Ele é fruto da representação da coletividade do aldeamento e as suas ações refletem as formas de resistência indígena ao novo modelo cultural que lhe era proposto, pois ele é fruto da reconfiguração deste espaço e criação da nova estrutura estabelecida acabando por atuar como limitador da implantação de uma cultura colonizadora. Os choques culturais ocorridos nesse período proporcionaram um ambiente de incertezas acerca do futuro deste espaço. Com o andar da carruagem, ou melhor dizendo, com o deslizar da canoa sobre as águas, este espaço foi se remodelando gradativamente para compor o novo quadro que se estabelecia nesse Novo Mundo. Não é somente a Amazônia que estava mudando, o próprio mundo estava vivendo uma transformação de mentalidade e os homens eram os principais agentes dessas mudanças. Cada lugar tinha uma especificidade e a da Amazônia gira em torno do estabelecimento de novas formas de fazer com: usos e táticas, parafraseando Certeau1559. O aldeamento passou a ser o reflexo das transformações deste espaço. Estratégias, subversões, táticas, práticas sociais, cotidiano, relações de poder, resistências... O espaço tornou-se um lugar de sobrevivências, dos usos dos meios mais subjetivos para permanências neste novo espaço. Fazer valer as intenções de liberdade, fazer valer a vida era a única motivação. A religião passa a ser fruto de uma esperança e para ela retorna, tanto quanto a compreensão for capaz ou permitir, pelo menos ao ponto de ser o canal para alcançar a liberdade dentro de um espaço onde o que caracterizava a condição social do indivíduo era o grau de inserção em uma cultura exterior. Apropriar-se e reutilizar-se de aspectos simbólicos da alteridade tornou-se uma característica fundamental para a sobrevivência neste espaço. Os outros agentes defenderam suas diferenças e se utilizaram das articulações políticas dos próprios portugueses, as quais tinha acesso, para legitimar sua autoridade dentro da máquina burocrática colonial. E mesmo sendo ofuscado pela historiografia tradicional, acabaram deixando seus rastros nas entrelinhas das fontes históricas...

Referências AZZI, Riolando. Razão e Fé: O discurso da Dominação Colonial. SP, Paulinas, 2001. _____________ “A Teologia Católica na Formação da Sociedade Colonial Brasileira.”Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. 1556

Idem (pag. 119) §37 – [Correção dos delinquentes] e § 38 – [Regime Paternal]. Idem (pag. 120) §39 – [Correspondência com as Autoridades Civis]. 1558 Idem (pag. 120) §41 – [Outros ofícios e Cartas Patentes]. 1559 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro; Ed. Vozes, 1998. 1557

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PODERES LOCAIS NA CAPITANIA DE SÃO VICENTE E NO PARAGUAI: REFLEXÕES SOBRE UMA ABORDAGEM TRANSNACIONAL (SÉC. XVI-XVIII) Fernando V. Aguiar Ribeiro1560 A proposta dessa comunicação é discutir os poderes locais na porção sul da América Portuguesa durante os séculos XVI e XVIII através de uma abordagem transnacional. Para tanto, iremos esboçar a criação de vilas no planalto da capitania de São Vicente e suas relações com os caminhos que ligavam essa região ao Paraguai. A partir dessas conexões iremos conceber a criação de um espaço fluído, correspondente aos sertões da América portuguesa. Antes de 1765 foram fundadas dez vilas no planalto, Mogi das Cruzes, Santana de Parnaíba, Jacareí, Taubaté, Jundiaí, Itu, Guaratinguetá, Sorocaba, Curitiba e Pindamonhangaba1561. Depois do início do governo do Morgado de Mateus inúmeras vilas foram fundadas, as quais destacamos, somente no século XVIII, São José dos Campos, Itapeva, Atibaia, Mogi-Mirim, Itapetininga, São Luís do Paraitinga, Apiaí, Cunha, Lorena, Campinas, Porto Feliz e Bragança Paulista1562. Dessa forma, antes do governo do Morgado, a criação de municípios no planalto não ocorreu por ação de poder central ou intermediário, mas de acordo com lógicas internas às vilas já existentes. Sobre esse panorama, Bellotto defende que, antes de 1765, “o aparecimento de povoados sem ligação a um povoamento sistemático seria como 'tradição' paulista”1563. Verificamos a delimitação de dois momentos de povoamento colonial, um entre 1532 e 1765, marcado pela ausência de uma política de criação de vilas e outro posterior a 1765, marcado por uma clara política de urbanização. A ideia de nossa pesquisa de doutorado é que a criação de vilas no planalto correspondeu a um movimento entre as elites locais, visando a manutenção de um equilíbrio político. O conflito entre os Pires e Camargo, pelo controle político da Câmara de São Paulo marcou a dinâmica local e reforçou a ideia de que a criação de novos municípios no planalto levaria a uma distensão nas possíveis tensões entre os grupos que desejavam controle político. A circulação dessas elites durante o processo de criação de vilas levou a uma intensificação dos contatos entre as partes do sertão, notadamente entre a vila de São Paulo e o Paraguai, possibilitados pela rede de caminhos existentes. Ramón Cardozo, em El Guairá: história de la antigua provincia (1554-1676), descreve inúmeros caminhos que ligavam Assunção ao litoral do Brasil. Afirma que existia o “camino de los guaraníes llamado Peabiru (Pe, camino, abirú, mollido) de 200 leguas, de San Vicente, costa del Brasil, al Paraná, con un ancho de ocho palmos y cubierto de un pasto muy menudo”1564. A região do Guairá, que corresponde atualmente ao estado brasileiro do Paraná, pertencia à Coroa castelhana. Cardozo a descreve como “una de las más pobladas de todas las tierras ocupadas por los guaraníes. Solamente en los alrededores de la Villa Rica del Espíritu Santo existían más de doscientos mil indios, poblados así por ríos y montañas, como en los campos y piñales que corren hasta San Pablo”1565. 1560

Bolsista CNPq. Pesquisa contou com apoio da CAPES para etapa de doutorado sanduíche no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) em 2012. Universidade de São Paulo. [email protected] 1561 Fernando V. Aguiar Ribeiro. Poder local e patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, 2010. Dissertação de mestrado (História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 165. 1562 Aroldo de Azevedo. Vilas e cidades do Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1956, p. 43-45. 1563 Heloisa L. Bellotto. Autoridade e conflito no Brasil colonial. O governo do Morgado de Mateus (1765-1775). São Paulo: Alameda, 2007, p. 147. 1564 Ramón Cardozo. El Guairá: historia de la antigua provincia (1554-1676). Asunción: El Arte, 1970, [1a edição, 1938], p. 16. 1565 Idem, p. 17.

465 ISSN 2358-4912 Essa alta concentração demográfica de guaranis na região do Guairá atraiu os bandeirantes paulistas. E com seus ataques às missões jesuíticas apropriaram-se do contingente populacional como mão de obra. No entanto, Carlos Jensen aponta que, no período anterior aos ataques paulistas às reduções do Guairá, a tensão entre jesuítas e povoadores paraguaios já era crescente1566. Jensen atribui como justificativa para os ataques dos paulistas às missões jesuíticas, não somente fatores econômicos e políticos, mas principalmente a existência de uma ampla rede de caminhos que ligavam o Paraguai com o litoral de São Vicente. Washington Luís, em Na capitania de São Vicente, descreve as bandeiras comandadas por Antônio de Raposo Tavares e suas ações de destruição das missões do Guairá e captura de guaranis1567. Em 1623 o ataque maior é concretizado e com ele a estruturação das missões jesuíticas no Guairá é completamente desestruturada pelos paulistas, visto que a solução encontrada pelos missionários foi a mudança das reduções para uma região mais setentrional1568. Ramón Cardozo, sobre os ataques às missões jesuíticas, relata que

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cuando Antonio Raposo Tavares llegó con sus huestes a San Ignacio y Loreto de las márgenes del Paranapané, las encontró desiertas. El ‘bandeirante’ se llenó de cólera por habérsele escapado el rico botín. Entonces, avanzó hacia la Villa Rica del Espíritu Santo para hacerle pagar este fracaso. Hallábase en la Villa el Obispo Aresti como ha visto más adelante. La resistencia fue inútil, por lo que por consejo del prelado, los guaireños también optaron por la fuga y el abandono de sus hogares1569.

A partir desse contexto de interação contínua entre a capitania de São Vicente, Guairá e Paraguai, nos leva a questionarmos a estruturação da história dessas dentro dos quadros nacionais. Assim, para pensarmos a parte meridional da América de forma global, isto é, inserida nas relações internacionais, é fundamental que questionemos por que as histórias do Brasil e Paraguai são definidas pelos quadros nacionais. Isso se dá, principalmente, pelo fato da historiografia brasileira e paraguaia terem se constituído a partir do século XIX com a Independência política em relação a suas metrópoles. A nova produção historiográfica deveria, portanto, se preocupar com a criação de uma tradição que justificasse a existência da nova nação. Dessa forma, no contexto de ascensão do nacionalismo, principalmente no século XX, observamos que, apesar do que se produzia à época, “nations emerge over time as a result of numerous historical processes. As a consequence, it is a pointless undertaking to attempt to locate a precise moment when any particular nation came into existence, as if it were manufactured product designed by an engineer”1570. Por conta disso, a construção de uma história nacional, dentro dos quadros que delimitam o novo país é tão importante. Steven Grosby ressalta que “nation are human creations. However, a proper understanding of the nation requires that it be distinguished from other forms of human creation. The nation has the form of a ‘social relation’”1571. A partir dessa ideia de construção de histórias nacionais no século XIX nos leva a necessidade de pensarmos a história da colonização na América dentro de outra chave interpretativa. Com o fenômeno da globalização, intensificado a partir da década de 1970, e com estudos que advogam perspectivas multiculturalistas1572, a história pautada na descrição de impérios entra em crise. Os estudos que tinham grandes espaços geográficos como objeto, no caso, os impérios europeus, 1566

Carlos Ernesto Romero Jensen. El Guairá: caída y éxodo. Asunción: Academia Paraguaya de la Historia; FONDEC, 2009, p. 41. 1567 Washington Luis Pereira de Sousa. Na capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 229. 1568 Idem, p. 351. 1569 Ramón Cardozo. La antigua provincia de Guairá y la Villa Rica del Espíritu Santo. Buenos Aires: Jesús Menéndez, 1938, p. 147. 1570 Steven Grosby. Nationalism. A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 7. 1571 Idem, p. 27. 1572 Para um esforço de definição de multiculturalismo, ver Marilyn Edelstein. “Multiculturalism Past, Present and Future”. College English, vol. 68, n. 1, 2005, p. 14-41 e David Palumbo-Liu. “Multiculturalism Now: civilization, national identity, and difference before and after September 11th”. Boundary 2, vol. 29, n. 2, 2002, p. 109-127.

466 ISSN 2358-4912 passam, em uma perspectiva fortemente influenciada pelo discurso da globalização, a adotar uma perspectiva global. No entanto, apesar de vários estudos recentes serem feitos a partir de uma perspectiva global, carecem análises que conceituem a história global. Em um esforço de reflexão, Bruce Mazlish define o contexto historiográfico no qual a história global emerge. Define que

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the emergence of globalization was not simply a matter of science technology, and economics; political developments were also requisite. First, the competition between the Soviet Union and the United States in space was essential for the creation of our increasingly satellite-dependent world, with its attendant communications revolution. Furthermore, the decline of communism eroded the old political-ideological divisions, leaving the way open for a genuinely global society in which all countries can and must participate, though differentially1573.

Em um artigo recente, Dominic Sachsenmaier estabelece a história global inserida no contexto de crítica às perspectivas ocidentais, superando as formulações apresentadas por Mazlish. Apresenta que “during the early 1970s, sociological titles referring to the term ‘globalization’ were still about the same in number as historiographical publications. In 2001, by contrast, the former outweighed the latter by 800-900%”1574. A partir desses estudos, “the situation is beginning to change. During the past few decades many historians have come to regard the close entanglements between their discipline and the nation-state with greater suspicion. More recently debates on how to internationalize or globalizate historiography have greatly intensified”1575. Além da perspectiva global, Dominic Sachsenmaier defende a necessidade da superação do discurso eurocêntrico. Afirma que “in that manner research on transcultural issues is beginning to move from the peripheries of the historians’ guild to the centre”1576. Dessa maneira, “the debate on global history or new forms of transcultural history have been emerging simultaneously in different parts of the world. For this reason it would be inadequate to characterize the turn to global history as yet another wave of Eurocentism or western imperialism in disguise”1577. Define, portanto, a história global como uma perspectiva para o estudo de fenômenos históricos que transcendam os limites dos Estados nacionais, isso porque “global perspectives can be applied to all epochs of the human past, but if we understand the global history instead as the history of globalization, the timeframes of the field become narrower”1578. Em Global perspectives on Global History, theories and approaches in a connected world, Dominic Sachsenmaier propõe retomar a discussão sobre a conceituação e os limites da história global. Destaca que “in a recent years, most branches of historiography have increase spatial concepts be they transnational, transregional, or transcontinetal in nature, have become more clearly visible in very different sub fields of historiography, ranging from the complex landscapes of ‘cultural history’ to the equality multifaceted of ‘economic history”1579. A partir dessa concepção de que os elementos históricos não podem ser definidos por restrições das fronteiras dos estados-nacionais, podemos conceber o território do interior da capitania de São Vicente como elemento de integração com os domínios castelhanos na América, notadamente o Paraguai.

1573

Burce Mazlish, “Comparing Global History to World History” Journal of Interdisciplinary History, vol. 28, n. 3, 1998, p. 392. 1574 Dominic Sachsenmaier. “Global history and critques of western perspectives”. Comparative Education, vol. 42, n. 3, 2006, p. 45. 1575 Idem, p. 452. 1576 Idem, p. 452. 1577 Idem, p. 453. 1578 Idem, p. 454. 1579 Dominic Sachsenmaier. Global perspectives on Global History. Theories and approaches in a connected world. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 1.

467 ISSN 2358-4912 Mais que uma crítica às histórias fundamentadas nos quadros nacionais, a história global permite, através de uma nova abordagem em relação às fronteiras, novos entendimentos no processo de colonização do continente americano.

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A CAPITANIA DO MARANHÃO E PIAUÍ NA POLÍTICA ILUSTRADA DE D. RODRIGO DE SOUSA COUTINHO (1798-1801) Flávio Pereira Costa Júnior1580 O iluminismo lusitano tinha como características a difusão de conhecimento por meio de impressos voltados para o utilitarismo-naturalista. Ou seja, o conhecimento que a coroa desejava que fosse perpetuado pelo Império Lusitano era o que pudesse divulgar e conhecer as potencialidades econômicas das diversas regiões ultramarinas e da própria metrópole a partir do uso racional da natureza, da agricultura, e do desenvolvimento do comércio em geral. Para tanto, foi implementado uma política que promovesse o conhecimento do próprio território com fomento à pesquisa e à educação. Neste último caso com concessão de bolsas para se estudar em Portugal. Ao analisar a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) referente às trocas de correspondência de documentos oficiais entre D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro da Marinha e Ultramar (17961801), e D. Diogo de Sousa, governador e capitão-general da capitania do Maranhão (1798-1806), notase o interesse de realizar no Maranhão uma política que se pode considerar ilustrada. Tal pressuposto se evidencia pelos assuntos tratados como o envio de ervas medicinais, remessa de livros, fomento a pesquisadores e bolsas para estudantes. As práticas ilustradas no Império Português foram realizadas desde Sebastião José de Carvalhos e Mello, o Marquês de Pombal, como é mais conhecido. A queda do mesmo, no período que ficou conhecido como “viradeira”, ou seja, a morte de D. José I (1777), rei de Portugal, a subida ao trono de D. Maria I, a perseguição ao ministro Marquês de Pombal não destronou as ideias ilustradas do mesmo. O período mariano ficou por muito tempo estigmatizado pela historiografia como de dogmatismo, ignorância e fanatismo. Mas como destaca Novais, mais do que rupturas houvera continuidades nas políticas pós-pombalinas: [...] a queda do marquês de Pombal , que se seguiu a morte de José I, sua perseguição, a libertação dos presos políticos, enfim a “viradeira”, não passa de fenômenos conjecturais. A equipe dirigente, de índole ilustrada, continuou basicamente a mesma, com novos acréscimos 1581

Assim também corrobora Luiz Carlos Villalta sobre o continuísmo da ilustração lusitana no período pós-pombalino: O reinado de dona Maria I (1777-1792) não significou uma ruptura radical com o que lhe antecedera. Embora tenha constituído uma reação, pautou-se, em linhas gerais, pela continuidade de princípios e nomes, pela inovação e reparação. Preservou a orientação absolutista e manteve em seus cargos — ou guindou a outros — pessoas que participaram do reinado de d. José I.1582

E longe desde obscurantismo, há uma cientificidade clara na visão política nos períodos mariano e joanino. Sendo que neste momento surgem dois lugares de saberes fundamentais na história do conhecimento em Portugal: a Academia Real das Ciências (1779) e a Real Biblioteca Pública da Corte (1796)1583. Mas essa ciência e esse conhecimento, como lembra Munteal Filho1584, era para a glória da

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Formado em história licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão e atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História pela Universidade Federal do Maranhão (PPGHIS-UFMA). Orientado pelo professor Alírio Carvalho Cardoso (PPGHIS-UFMA) e tem como co-orientador o professor Marcelo Cheche Galves (PPGHEN-UEMA). Email: [email protected] 1581 “O Reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos”. Revista Brasileira de História. São Paulo, n.7, 1984, p. 106. 1582 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (Virando séculos), p. 19-20. 1583 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008, P. 66-67.

469 ISSN 2358-4912 coroa, e não para o questionamento das balizas que a sustentavam. A ilustração lusitana “rechaçou as idéias ilustradas que questionavam as prerrogativas absolutistas do trono, o domínio colonial e a religião católica”1585. No final dos setecentos vai se formando uma consciência de que para explorar o império lusitano, se deveria, antes de tudo, conhecê-lo. Isso implica dizer que se deveria estudá-lo. Sob esse aspecto, os sócios da Real Academia de Lisboa vão construir um conhecimento pragmático, que desse conta da demanda técnica que se fazia necessária , para então explorá-las. Vai gestando-se uma História Natural do Império, em que pretendia-se descrever as parte importantes do mesmo. Para Munteal Filho: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Cada “capítulo” da história natural das colônias, divulgado de uma maneira geral nos impressos e coleções de Memórias da Academia Real das Ciências de Lisboa, tratava de uma capitania ou área mais extensa do império ultramarino, enfatizando o relevo, as condições climáticas, fluviais e o perfil dos habitantes. Os bosques também constituíam uma preocupação dos naturalistasutilitários que se agregavam em torno dos estabelecimentos especulativos em Portugal e nas colônias, o que pode ser percebido numa Memória de Joaquim José Lobo da Silva sobre a utilidade dos estudos que dizem respeito à conservação das matas, florestas e bosques.1586

O conhecimento produzido pelos naturalistas-utilitários tinham em seu desenvolvimento prático, o interesse a busca por características naturais da colônia, e logo de propor a melhor forma de utilizalos para desenvolvimento econômico. 1587 Maria Odila Dias, no clássico artigo “Aspectos da ilustração no Brasil”, trata de tema que nos interessa. Neste texto evidencia como as ciências naturais vão ser fundamentais neste momento da administração das colônias. A necessidade de saber para melhor dominar é a síntese de sua tese. O Estado terá o papel de fomentador dos estudos sobre a agricultura e natureza das colônias. Os pedidos de estudo de exemplares da flora brasileira e de se levantarem produtos interessantes e comerciáveis, até então ignorados ou inexplorados, que Pombal dirigiu aos governadores e capitães-generais das principais capitanias foi o estímulo inicial para as ciências naturais no Brasil. As dificuldades dos portuguêses em seus domínios do Oriente provocara uma valorização crescente no Brasil, cuja natureza tropical e desconhecida parecia ofertar enorme manancial de tesouros ocultos1588.

O conhecimento torna-se essencial para a política portuguesa a partir da metade dos setecentos. Mas este conhecimento era bem específico, ligado à natureza, as técnicas de agricultura. Dos 883 impressos que vieram por ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho em 1800 para a capitania do Maranhão todos eram ligados à temática do comércio e da agricultura. Oswaldo Munteal Filho destaca a política naturalista-utilitária, da formação de conhecimento prático em que pese à necessidade de entender a colônia em seus aspectos naturais. Os naturalistas da Academia Real das Ciências de Lisboa, inspirados pelas potencialidades dos “usos e das virtudes” das plantas tropicais, enviaram exploradores às colônias com o fito de avançar sobre o conhecimento da natureza, a fim de que estes remetessem gêneros exóticos e até então desconhecidos aos Museus de História Natural de Coimbra e de Lisboa, promovendo assim

1584

“O liberalismo num outro Ocidente: política colonial, idéias fisiocratas e reformismo mercantilista”. In. GUIMARÃES, Lucia M. Paschoal; PRADO, Maria Emília (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e práticas. Rio de Janeiro: REUAN: UERJ, 2001. 1585 Villalta, op. cit., p. 17-18. 1586 MUNTEAL FILHO, op. cit, 2001, p. 36. 1587 Idem. “Política e Natureza, no reformismo ilustrado de D. Rodrigo d Souza Coutinho”. In. O Estado como vocação: idéias e práticas políticas no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Access, 1999, p. 99. O conceito de naturalismo-ultilitário é de Munteal Filho e que é pertinente para esta pesquisa, pois indica que o estudo da natureza tinha um objetivo prático que era de determinar a sua (possível) utilização econômica. 1588 DIAS, op. cit, p. 113.

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ISSN 2358-4912 um programa de aclimatação de plantas úteis nos territórios que compunham o Império Colonial Ultramarino1589.

Era de interesse de Portugal em sua política colonialista a partir de viés ilustrado o investimento em conhecimento científico. Na capitania do Maranhão e Piauí estavam inseridas neste contexto. Política Ilustrada no Maranhão e Piauí A política pós-pombalina se manteria ilustrada. Isso é significativo para entendermos a gestão de D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1795-1801), que será ministro da Marinha e Ultramar, e em especial as suas ações governamentais ligadas ao fomento, às pesquisas, ao envio de livros para a colônia, no caso estudado, para a Capitania do Maranhão e Piauí. D. Rodrigo era afilhado do Marquês de Pombal e almejava reformar a forma de governar e de sustentar a colonização das possessões ultramarinas. Era sócio e fundador da Academia Real das Ciências de Lisboa. Para o mesmo estas possessões tinham fundamentais importâncias para manter o império lusitano, ao ponto de propor para D. João a transferência da corte para o Brasil em 1801, “no seu entender, o príncipe regente tinha muito pouca escolha em caso de conflito. Se os franceses ocupassem Portugal, os ingleses ocupariam o Brasil e melhor seria antecipar-se a ambos tomando a iniciativa”1590. Ao se tornar ministro da Marinha e Ultramar, traz para seu governo a burocracia estatal, composta por um séquito de funcionários que estavam ligados a sua visão ilustrada. Nesse contexto, escolhe D. Diogo de Sousa para ser governador e capitão-geral do Maranhão e Piauí. Este tinha o perfil acadêmico e estava em consonância com a política ilustrada conforme aquele preferia para a ocupação de cargos importantes. D. Diogo era doutor em matemática pela Universidade de Coimbra. Mediante a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino pode-se notar no envio de ofícios e correspondências entre D. Diogo de Sousa e D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o interesse de conhecer melhor a capitania do Maranhão mediante pesquisas e análises das potencialidades econômicas da região. Questões relativas às matas,1591 salitre1592, plantas medicinais1593 e aves1594 são temas de discussões entre os dois. Há também o fomento a bolsa de estudos para ser realizado na Universidade de Coimbra.1595 Tudo isso está em correlato com o que foi apresentado pela historiografia que discute sobre o iluminismo como prática política realizada na gestão de D. Rodrigo. O investimento na coleta dos produtos naturais, para além de um movimento de ruptura com o isolamento cultural dos portugueses relativamente ao continente, estava associado às demandas do Estado burocrático e ao projeto dos intelectuais ilustrados luso-brasileiros que acabaram por conduzir ao reconhecimento e conquista metódica do território ultramarino. Este investimento, que tinha como eixo as pontecialidades do mundo natural das colônias, referia-se também aos métodos de classificação e de acondicionamento das remessas oriundas do mundo natural das colônias, que acabavam por redundar em mecanismos de elaboração de um conhecimento útil e esclarecido aos intelectuais luso-brasileiros.1596

D. Rodrigo de Sousa Coutinho tinha como meta difundir o conhecimento de agricultura e natureza através da vinda de livros de interesse da coroa. Na gestão de D. Fernando Antonio de Noronha como

1589

2001, p. 55-56 MAXWELL, Kenneth. “Acomodação”. In. A devassa da devassa: A inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 17501808. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 258. 1591 AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 102 doc.: 08262; AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 102 doc. 08264. 1592 AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 102 doc.: 08263; AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 105 doc.: 08378. 1593 AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 111 doc.: 08653; AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 113 doc.: 08792. 1594 AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 115 doc.: 08933. 1595 AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 109 doc.: 08578; AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 109 doc.: 08586; AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 109 doc.: 08587. 1596 MUNTEAL FILHO, op. cit., 2001, p. 55. 1590

471 ISSN 2358-4912 capitão-general e governador do Maranhão e Piauí é ordenado à distribuição gratuita de 90 exemplares de um livro de comércio entre os principais da terra1597. A venda de livros para o local acontece quando D. Rodrigo de Sousa Coutinho determina a vinda de impressos para o Maranhão e de que tais deveriam ser vendidos na Casa de Correio. Este órgão é formado e regulamento através do alvará régio de 20 de fevereiro de 1798 e era diretamente controlado pelo ministério da Marinha e do Ultramar. Além do mais, estes impressos seriam vendidos na Casa do Correio da cidade. Formado na gestão de D. Diogo de Sousa tinha a tripla função de envio, recebimento de correspondências e venda de livros. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Data ainda da administração de D. Diogo a instalação dos serviços de correio no Maranhão, solicitada por seu antecessor, D. Fernando de Noronha, e autorizada finalmente pela Provisão Régia de 5 de março de 1788. É interessante ressaltar que os serviços postais incluíam, ao tempo, o da venda de livros e que os primeiros que chegaram a São Luís, em dezembro de 1799, foram dez exemplares de um Curso de estudos para uso do comércio, ao preço unitário de Rs. 1$200.1598

Assim, o uso dos impressos e as vendas dos mesmos eram realizados num órgão do governo e tinham o intuito de trazer este iluminismo para a colônia. O envio de impressos para o Maranhão tinha o objetivo de estimular a cientificidade na forma de se gerir a economia local, por isso estes livros tinham temas bastante delineados: comércio e culturas agrícolas (tradicionais como a cana-de-açúcar e o algodão e promissoras como pimenta da índia e a canela). As culturas que já eram praticadas eram estimuladas a serem melhoradas, e as que demonstravam potenciais, incentivadas a serem realizadas.1599 Não há nesta documentação analisada referências às obras de caráter ficcional.1600 Ainda que em outras partes da América portuguesa se notasse este tipo de livros1601. Isso ocorre porque não é de interesse dessa política ilustrada a difusão de literatura, que não teria valores práticas e estavam “meramente” voltadas para o entretenimento. Para além, por muito tempo este tipo de leitura seria desaconselhável, inclusive com diagnósticos médicos desfavoráveis. São predominantes obras voltadas para a agricultura, com títulos Fazendeiro do Brasil, Memórias sobre a plantação de algodão, Curssos de-Estudos do Comercio e fazenda, entre outros análogos.1602 Ademais alguns livros que vinham para o Maranhão na gestão de Diogo de Souza eram para ser distribuídos gratuitamente: Fiz repartir os quatro exemplares da Instrucsão sobre a cultura das Batatas por igual nume-ro de pessoas, que me parecem mais aplicadas á Agricultura, como V.Ex.a me determinou em o seu Avizo de 17 de Julho do corrente ano, que a companhou os ditos exemplares1603.

Essa prática de distribuição de impressos sem vender entre os habitantes já tinha ocorrido na capitania de São Paulo. Isso porque os livros vendiam pouco1604. E talvez esse seja um problema que 1597

AHU-ACL-CU – 009 Caixa: 99 doc.: 08018. MEIRELES, Mário M. Dom Diogo de Sousa: governador e capitão-general do Maranhão e Piauí (1798-1804). São Luís: SIOGE, 1979, p. 63, grifo do autor. 1599 GALVES, Marcelo Cheche. “Cultura letrada na virada para os oitocentos: livros à venda em São Luís do Maranhão”. Disponível em: . Acesso em: 15 de jul. de 2014. 1600 No entanto, Marcelo Cheche Galves em sua tese, vale-se da pesquisa de Villalta para sustentar que a partir de 1795 veio uma grande quantidade de romances para o Maranhão (GALVES, Marcelo Cheche. Ao Público sincero e imperial: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826), Niterói, 2010 – Tese (doutorado em história)- UFF, 2010, p. 27). 1601 ABREU, Márcia (org.) Leitura, história e historia da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999. ABREU, Márcia (org.). Trajetória do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008. VILLALTA, op. cit. 1602 “Estudos dedicados ao Maranhão no período colonial reservam lugar de destaque para o papel da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada em 1756, como dinamizadora das atividades de agro-exportação, principalmente relacionadas ao algodão e ao arroz” (GALVES, op. cit. p. 38). 1603 AHU, D. 8.832 1598

472 ISSN 2358-4912 ocorreu na capitania do Maranhão, pois Meireles1605 cita que a venda de livros fracassara e que perfazia o prejuízo de 2:401$478 rs. Mário Meireles (1979) fez uma biografia de D. Diogo de Sousa no período que este esteve como governador e capitão-general do Maranhão e Piauí. Há pontos importantes na obra do Meireles para esta pesquisa como o que discorre sobre a proposta de D. Diogo para que se acrescentasse uma quarta cadeira no ensino da capitania, que era composta até então por filosofia, retórica e gramática latina. Somaria com estas a disciplina História natural e química.

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A sugestão da criação desta aula se nos faz bastante compreensível quando nos é fácil comprovar o interesse de D. Diogo no conhecimento e exploração das riquezas naturais de que estava sempre enviando à Metrópole mudas ou sementes dos vegetais e amostras dos minerais, [...]. Aliás da própria Coroa viera o estímulo quando, pelos avisos de 15 de agosto de 1799 e de 23 de junho de 1800 fora recomendado remeter a Lisboa, todas as cascas, sementes, raízes, gomas e plantas reputadas medicinais; depois, pelo Aviso de 12 de novembro de 1801, seria determinado enviar, para o Jardim Botânico da Ajuda, as sementes de todas as plantas que vegetam nessa capitania, acompanhadas do catálogo dos nomes das mesmas plantas.1606

Conclusão Ao analisar a documentão do AHU referente ao período que coincidiu as gestões de D. Rodrigo e D. Diogo é notável que havia uma prática política que conforme a bibliografia estudada fazia parte de um conjectura ligada ao pensamento ilustrado. Isso é notável pelo interesse científico e econômico na fauna, flora e recursos minerais da capitania do Maranhão e Piauí. A educação também era importante neste contexto que se voltava para a história natural, perceptível com a vinda de impressos com esta temática por ordem direta do Ministro e pela proposta do governador de se constituir uma disciplina exclusiva para este tipo de conhecimento.

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RITOS FESTIVOS, CULTURA POPULAR E REVOLTA EM VILA RICA, MINAS DO OURO Francisco Eduardo de Andrade1607 Historiografia e traçado do poder no Estado republicano: significações da revolta de Vila Rica Nas suas Efemérides Mineiras, obra publicada em 1897, José Pedro Xavier da Veiga, diretor do Arquivo Público Mineiro, assinala, na data de 28 de junho de 1720, o acontecimento da “revolta de Vila Rica. Entre onze horas e meia noite, um “motim” anunciou uma “formidável revolta popular”, tendo como cenário a vila, que se fundara em 1711. O motim começou com “alguns grupos de mascarados descidos do morro do Ouro Podre, com séquito numeroso de pretos armados e de populares que se lhes agregavam”. Para Xavier da Veiga, embora executassem um plano previamente definido, o “maior número” dos amotinados seguia “inconscientemente, como elemento subalterno ao serviço dos cabeças”. Na vila, os sublevados invadiram a residência do ouvidor da Comarca, Martinho Vieira, juiz considerado iníquo e arbitrário. Não encontrando a autoridade, que fugira, apregoaram a sua morte e destruíram os papéis de justiça e os livros da fazenda real encontrados na casa. O ataque servia ao propósito de “levantamento do povo”, atendendo à estratégia de oposição ao estabelecimento das casas de fundição no território das Minas. O motim capitaneado pelos mascarados, conforme Xavier da Veiga, “foi somente um mero episódio inicial da revolta”. O “fim principal” da revolta foi amplo, e mais judicioso, pois foi uma reação à opressão fiscal, agravada por novo modo de tributação régia do quinto do ouro. Assim, o motim, em 28 de junho, representou um “ruidoso começo da revolta popular, revolta natural que era um brado mineiro genuíno e vivaz, e não simplesmente uma trama de interesse ou reivindicação local”. Os revoltosos acamparam na praça da vila, junto à casa da Câmara. Nesse lugar discutiram, elaboraram e encaminharam ao Conde de Assumar, governador da capitania de São Paulo e Minas, suas reivindicações contrárias ao fisco. Os oficiais da Câmara, cuja administração fiscal também causou insatisfação popular, e por seu compromisso com o governador “déspota”, foram presos pelos revoltosos, guiados por Felipe dos Santos. No dia 2 de julho, os revoltosos buscaram tratar com o Conde de Assumar em seu palácio, na Vila do Carmo. O povo numeroso coagiu a Câmara para acompanhá-lo, e exigiu do governador o deferimento dos “artigos” sobre os seus direitos fiscais e político-jurídicos. O primeiro artigo pediu a suspensão da instalação da casa de fundição do ouro dos quintos e da moeda (mantendo o pagamento do quinto por bateia de escravos). Outro artigo, mais conclusivo, exigiu a concessão de um perdão geral para os revoltosos. Todos os artigos foram deferidos, numa espécie de conselho no interior do palácio. Xavier da Veiga ressalta que o fato recorda a aristocracia britânica impondo ao Rei as suas “liberdades” cívicas. Página memorável, como o autor parece concluir, das raízes do liberalismo brasileiro, que impôs, no século XIX, o constitucionalismo monárquico.1608 No entanto, a pretensão de poder de alguns “cabeças” portugueses do movimento vitorioso – Pascoal da Silva, Manuel Mosqueira e Sebastião Cabral – afetou o sentido da revolta, pois, assumindo “nova face”, passou a significar uma luta pessoal por posições de governo. O apoio paulista ao Conde governador, devido ao antigo ressentimento com o grupo emboaba, promoveu a concepção dessa face marcada por interesses individuais, como Xavier da Veiga parece concluir. Ainda assim, Felipe dos Santos, expressão máxima da “vontade do povo”, “tribuno e seu fervoroso defensor”, tendo alcançado o seu intento desinteressado de aliviar as Minas “das extorsões fiscais e outros abusos revoltantes”, entendeu que se chegara ao “fim da luta”. Enganara-se, no entanto. Entre 13 e 14 de julho, o governador, apoiando-se nas tropas militares dos Dragões, mandou prender, em Vila Rica, os “cabeças” e os seus parentes eclesiásticos, frei Vicente Botelho e frei Francisco do Monte Alverne. Estes foram mantidos presos na Vila do Carmo. Escapando a essa detenção, Felipe dos Santos rumou para Cachoeira do Campo (paróquia do termo de Vila Rica), 1607

Universidade Federal de Ouro Preto. VEIGA, 1998. p. 601. Diogo de Vasconcelos também sugere, mas com ironia, certa ambiência constitucional na negociação imposta pelos revoltosos do “povo”, ou melhor, da “multidão”. Cf. VASCONCELOS, 1999. p. 372.

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475 ISSN 2358-4912 e “aí reúne amigos, convoca o povo, concita-lhes os brios em sua linguagem rude mais sincera, inflamada e assim eloquente”. Mas, em Cachoeira, o agitador popular foi atacado pelas tropas do governador e, apesar da resistência corajosa, acabou também sendo preso (juntamente com outro revoltoso destacado, Tomé Afonso). A vitória do Conde de Assumar fora completa. Entrou em Vila Rica em 16 de julho, com seu exército de cavalaria de Dragões e com uma tropa de negros armados. O governador mandou botar fogo nas casas de Pascoal da Silva e dos outros sublevados, incêndio que se espalhou por todo o morro de Ouro Podre (ou de Pascoal da Silva), onde morava a grande maioria dos “conjurados”. Antevendo o martírio do Tiradentes, o que (re)significou, para Xavier da Veiga, o protagonismo de Felipe dos Santos – mineiro, propagandista, chefe popular - e a natureza da revolta, este herói figurou como a “única vítima de pena capital”, resultado de um “processo sumaríssimo” promovido pelo Conde. Contudo, “não era, nem podia ser, portanto, movimento político, emancipador e republicano a revolta mineira de 1720; mas gerou-a um [...] sentimento de justiça postergada pelo despotismo dominante”. Xavier da Veiga parece concluir que se não fora republicana em sua essência – como se deu com o fato capital da singularidade mineira, a Inconfidência de 1789 -, a revolta fora, ao menos, liberal nas suas concepções e propósitos. Assim, os dois fatos, convergentes, remetem à suposta evolução política brasileira entre os séculos XVIII e XIX. Mesmo porque, a vitória do Conde não conseguira suplantar a latente rebeldia, que ainda se manifestava nos ataques ao governo por meio de “pasquins sediciosos”.1609 Diogo de Vasconcelos avança nas conclusões de Xavier da Veiga. O historiador distingue os protagonistas do conflito: “potentados”, “povo”, autoridade régia. Mais do que compreender a revolta considerando o seu pretexto imediato - oposição ao plano régio de instalação da casa de fundição -, Diogo relacionou a sedição à constituição do Estado, isto é, ao processo político-jurídico de restrição governamental decisiva ao “poderio soberano” dos moradores poderosos e à soltura dos clérigos.1610 Assim como Xavier da Veiga, a entrada em cena dos chefes integrados ao povo, como Felipe dos Santos, “agitador único popular”, redimensionou o movimento, pois eles capitanearam a justa reação do povo citadino (ou da plebe) à opressão fiscal, pactuada pelos potentados.1611 “Não fosse o plebeu de Antônio Dias [Felipe dos Santos], pobre rancheiro mas talento próprio da popularidade, aqueles homens [os chefes] não justificariam a revolta na história nem pelas causas nem pelos fins”.1612 No início da década de 1930, Teófilo Feu de Carvalho, outro diretor do Arquivo Público Mineiro (entre as décadas de 1920 e 1930), divulgando as fontes documentais relacionadas à revolta de 1720, buscou apresentar uma revisão historiográfica de maior amplitude. Este outro diretor do Arquivo Público Mineiro refaz a narrativa heroica do acontecimento e nega, em parte substancial, a explicação ideologizada de Xavier da Veiga. Os protagonistas, para Feu de Carvalho, foram os chefes que, dissimulados, buscaram simplesmente auferir vantagens pessoais. Os agitadores populares, por sua vez, espécie de marionetes, foram meros instrumentos da sustentação do poder local (ou privado). Todos os envolvidos nasceram V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Cf. VEIGA, op. cit. p. 597-612. Laura de Mello e Souza mapeia a tradição historiográfica, cindida, sobre o “levante” de 1720, em Vila Rica, que inclui Sebastião da Rocha Pita, no livro História da América portuguesa de Sebastião da Rocha Pita, ainda na primeira metade do século XVIII, Couto de Magalhães, no texto Um episódio da história pátria (1720), publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1862), e, sobretudo, uma historiografia mineira – Xavier da Veiga, Diogo de Vasconcelos, Feu de Carvalho, cônego Raimundo Trindade, Waldemar de Almeida Barbosa – MELLO E SOUZA, 1994. p. 17-25. O Discurso histórico e político sobre a sublevação é o texto fundamental do século XVIII, mas há referências factuais no relato do padre Manuel da Fonseca (Vida do venerável padre Belchior de Pontes), no Códice Costa Matoso (organizado pelo ouvidor de Vila Rica) e na Instrução do intendente José João Teixeira Coelho (1782). 1610 VASCONCELOS, op. cit. p. 352. 1611 Os historiadores discutiram a dupla face, que Diogo de Vasconcelos indicou, da sedição de Vila Rica: luta relacionada aos direitos sociais e fiscais dos moradores (“dentro das regras do jogo colonial”) ou conflito político resultante da reação dos potentados à instituição determinada da soberania régia, isto é, da estruturação do Estado português – cf. ANASTASIA, 1998. p. 49-50; FIGUEIREDO, 1993, p. 106-107. A manipulação semântica, que pretendeu substituir “rebelião” (subversão da ordem política, conforme a designação do governante régio) por “motim” (forma de protesto popular, conforme o uso dos mineiros) foi denunciada no Discurso histórico e político sobre o levante, no século XVIII – MELLO E SOUZA, op. cit. p. 44-45. 1612 VASCONCELOS, op. cit. p. 376.

476 ISSN 2358-4912 em Portugal, não havendo, portanto, nenhuma aliança entre os nativos (ou mineiros) e os reinóis, como Xavier da Veiga supôs. Felipe dos Santos Freire, proveniente da vila de Cascais, foi tropeiro, ferrador e, “nas horas vagas – cômico; nos seus bens sequestrados, foram encontradas as peças com que se caracterizava para estes exercícios, como cabeleira e diversas vestimentas de homem e de mulher”. Assim – por sua origem portuguesa, suas ocupações e seu intelecto (cuja escrita mostra-se bem rudimentar) -, Felipe dos Santos não podia ser guia ou tribuno da causa popular. Ao invés disso, ele desempenhou o papel de simples serviçal dos interesses dos seus “patrões ou mandatários” – os verdadeiros guias ou “cabeças”.1613 O tropeiro possuiu um rancho coberto de telhas, detrás da matriz de Nossa Senhora da Conceição, uma casa, em Antônio Dias (na mesma paróquia), e cinco escravos (quatro africanos e um crioulo).1614 Embora tenha salientado, nos motins, a orquestração empreendida por seus “cabeças”, Feu de Carvalho não contradiz a interpretação geral de Xavier da Veiga sobre as suas motivações, mas procura distingui-las, conforme uma informação do governador Lourenço de Almeida, em 1721.1615 Silva Guimarães, opulento, “chefe supremo”, pretendeu “mandar como potentado”, opondo-se à autoridade do governador, e, endividado, buscou impedir as execuções com o “triunfo de um motim”. Mosqueira da Rosa, “chicanista e trapaceiro”, quis reaver o antigo cargo de ouvidor de Vila Rica. Veiga Cabral, antigo governador da colônia de Sacramento, planejou, através dos motins, tornar-se o governador das Minas.1616 Por outro lado, de acordo com Feu de Carvalho, o Conde foi o administrador metropolitano experiente, com a necessária visão de Estado, que, ao fim, garantiu a ordem numa sociedade em formação. Não foi, assim, um déspota, arbitrário e violento, como Xavier da Veiga descreveu, e nem um governante que deteve poder ilimitado, conforme a acepção de outro autor.1617 Ao contrário do partido dos rebeldes, o Conde, agente da dimensão pública, atraiu “bons elementos” de todas as vilas, principalmente na comarca do Rio das Mortes. “Nem era possível, que a maioria não prestigiasse a autoridade constituída”.1618 O movimento revoltoso, conforme Feu de Carvalho, não foi de caráter patriótico (os agentes não eram nativos ou mineiros) e nem envolvia valores nativistas, no caso de um suposto confronto entre os ressentidos paulistas (em torno do governador) e os portugueses rebelados. Ademais, estiveram ausentes os valores democráticos (notados por Diogo de Vasconcelos e Xavier da Veiga) ou os propósitos republicanos, já que os rebeldes do “povo” propuseram conservar os poderes de Sua Majestade.1619 Para o autor, configurou-se meramente uma sedição, isto é, um atentado dos agentes privados aos supostos benefícios públicos engendrados pela ordem estatal (cuja feição repercute o Estado brasileiro autoritário que se apresenta a partir de 1930), antídoto à cultura dos motins.1620

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Entre a vila e os morros: negros e mascarados na cena dos motins Ainda que a renovação da história política tenha permitido rever as significações do movimento revoltoso em Vila Rica no final da década de 17101621, a narrativa – notadamente, a relação dos agentes, a natureza das ações dos protagonistas e a lógica dos acontecimentos - pouco se alterou, se comparamos com as interpretações dos historiadores convencionais do tema. Observa-se a 1613

Cf. CARVALHO, s/d. [Preliminar], p. 227. Ibidem, p. 167-170. 1615 Ibidem, p. 13-17. 1616 Cf. ibidem, [Preliminar]. 1617 Ibidem, p. 174-177. 1618 Ibidem, p. 227. 1619 Nessa passagem, Feu de Carvalho concebe a oposição entre os regimes republicano e monárquico, com fundamentos distintos de soberania. Ibidem, p. 105-106. 1620 Cf. ibidem, 268. As conclusões esquemáticas (com eixo narrativo determinante), e mais usuais, são ainda mantidas: “Essa sedição, ocorrida entre 28 de junho e 16 de julho de 1720, foi um movimento dos potentados locais, todos portugueses, que procuravam manter seu poder diante de um governador que tinha vindo a Minas para fazer exatamente o contrário, ou seja, estabelecer o poder da Coroa portuguesa” – FONSECA, 2007. p. 551. Ainda, ver MONTEIRO, 2001. p. 132-134. 1621 ANASTASIA, op. cit. p. 45-59. 1614

477 ISSN 2358-4912 consolidação do quadro descritivo que compõe a explicação da revolta. Contudo, notam-se pistas de outra abordagem nos relatos marcantes que se integram à tradição historiográfica, com a sua tessitura de fontes documentais. Para a recomposição dessa narrativa, parece fundamental integrar ao enredo os “atores” supostamente menores - os “negros” e os “mascarados”, estes como sujeitos populares – e os seus planos específicos nas Minas, inscritos nas concepções festivas da cultura dos motins. A festa religiosa e profana, assim, torna-se o palco necessário e eficaz da negociação política da revolta para esses agentes. Mas, não se trata, nesta perspectiva, de compreender esse tempo festivo do movimento revoltoso meramente como evento introdutório do discurso de reivindicação política ou social (que se atribuiu aos grandes senhores), mas como um dispositivo de apropriação (sendo crítica, reforço ou acomodação) do “mundo às avessas”, diferente, mutável, operando os princípios de legitimidade social.1622 De acordo com Thompson, “assim como os governantes afirmavam a sua hegemonia por um estudado estilo teatral, os plebeus afirmavam a sua presença por um teatro [ou por um “contrateatro”] de ameaça e sedição”.1623 A protestação popular, na imaginação da festa, pode, então, não se traduzir numa lista reivindicatória. Os negros e mestiços, escravos e libertos, guardaram o costume de morar no morro de Ouro Podre ou de Pascoal da Silva, defronte à Vila Rica. Não somente neste morro, mas no conjunto montanhoso, passando por Catas Altas do Mato Dentro, e prolongando-se até imediações da Vila de Caeté, houve espaço para as organizações comunitárias (irmandades), associações difusas de trabalho dos negros e mestiços (gandaias) e formas autônomas de subsistência (vendas, comércio ambulante, tratos de jornais). Entre esses espaços, persistiram as formas convencionais (e regimentais) específicas das lavras de ouro. O cenário da mineração desses morros foi de disputa e integração (o mineral que escapava das lavras poderia ser recuperado por jornaleiros escravos ou libertos) entre a exploração itinerante dos jornaleiros, a extração de ouro nas faisqueiras do povo, incluindo nesta categoria pequenos proprietários de escravos e libertos, e as lavras senhoriais (por concessão de carta de data, especialmente).1624 Tal cenário de vivência e trabalho indica que os negros e os mestiços do morro do Ouro Podre – calculou-se que cerca de quatro mil escravos trabalhavam nesse morro no final da década de 1710 – não foram apenas uma multidão para usos estratégicos dos detentores de séquito. Surpreendentemente, a historiografia ainda não articulou organicamente a sedição de Vila Rica aos conflitos e tensões dos negros e mestiços, com a ameaça constante de uma revolta da população escrava das Minas, ainda que de origem africana, notável nos anos do governo de Assumar e naqueles mesmos lugares onde explodiram os motins populares – principalmente no morro de Ouro Podre.1625 Parece que, embora situados num mesmo contexto geral de violência e de construção da ordem estatal, os dois movimentos não estariam interligados, a não ser com a subordinação de um a outro, pois teriam conotações essencialmente diferentes: um reuniu os potentados e os seus clientes populares e o outro congregou os escravos, que almejaram forjar uma ordem social oposta a todos os brancos, uma espécie de “‘república’ negra”.1626 A reação dos escravos e libertos nos morros de Vila Rica repercute, com efeito, a normalização promovida por agentes institucionais - o Conde governador, o Ouvidorsuperintendente Martinho Vieira e da Câmara, apesar dos impasses desta -, atingindo os modos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Foi denunciada por governantes a alteridade radical e a fluidez na colonização: “não se lêem em muitos séculos na Metamorfose de Ovídio tantas mudanças, como destas transformações se admiram cada dia nas Minas. E se os homens assim andam trocados, não é possível que deixe de andar nelas tudo às avessas, e fora do seu lugar” – DISCURSO, op. cit. p. 64. 1623 THOMPSON, 1998. p. 65. 1624 Disputa que se traduz na observação comum de que os “negros”, mais eficientes naquele contexto de exploração aurífera das Minas, conseguiam um jornal (lucro diário) mais seguro do que os mineiros, que faziam grandes serviços de lavras, com resultados demorados – [Carta da Câmara da Vila do Carmo ao Rei, 5 de julho de 1720], Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, v. IV, 1955-1957, p. 61-63. Cf. ANDRADE; REZENDE, 2013. p. 382-413. 1625 Arquivo Público Mineiro [APM], Sobre a sublevação que os negros intentaram fazer a estas Minas [20 de abril de 1719], Secretaria de Governo, códice 04, f. 587-596. 1626 Daí, a seguinte conclusão, que supõe a rigidez da classificação social escravista: “Não obstante o número dos escravos nas Minas tenha sido um recurso importante para o enfrentamento tanto das autoridades quanto dos seus senhores, a possibilidade de os negros concentrarem recursos de poder para disputarem um lugar na sociedade era, pelas características do sistema escravista, inviável” – ANASTASIA, op. cit. p. 125.

478 ISSN 2358-4912 costumeiros de trabalho e a liberdade dos moradores. As leis publicadas um pouco antes e depois dos motins, buscando agir sobre os focos de tensão e precaver-se de novas reações populares e escravas, fornecem as indicações do confronto político-administrativo: a ordem ao Guarda-mor geral para repartição das águas de mineração conforme a “possibilidade de minerar” (nas datas de terras), buscando impedir as apropriações abusivas (que garantiam as cadeias de dependência e os ajustes) e a dispersão dos recursos que fossem necessários aos serviços de porte1627; o edital, em 12 de agosto de 1720, que dispôs “não ficarem no morro mais que os moradores que usarem de minerar e não de vendas de molhados e de fazenda seca”, impondo a proibição do comércio escravo, fixo ou ambulante1628; e, enfim, os bandos do sucessor do Conde de Assumar, Dom Lourenço de Almeida, que consolidaram os direitos de exploração nos morros realengos e o uso comum de todos os moradores dos núcleos urbanos adjacentes.1629 A nova lei dos quintos, com a cobrança na casa de fundição, não parece atingir os usos dos pequenos exploradores, dos libertos e dos escravos jornaleiros, ao contrário do que se previu no caso dos mineradores, cujas dívidas aumentaram com os acréscimos dos valores dos quintos, impostos aos pagamentos. No entanto, a proibição da circulação de ouro em pó e a intromissão da rede do extravio – que, na prática, não se efetivaram - atingiram os tratos dos pequenos exploradores e dos vendeiros. Ademais, a especulação mercantil, abusando dos preços dos gêneros de abastecimento, foi sempre fator de descontentamento coletivo.1630 Além dos atores negros, os mascarados, que, num sentido esquemático da historiografia, parecem articular as duas dimensões opostas do levante de Vila Rica - a dos “cabeças” e a dos negros, peças dos séquitos senhoriais. Sugere-se que eram agentes populares, mas liderando os negros, foram, no máximo, agitadores de motins, com papeis político e social restritos. Talvez, por isso, ninguém ainda se perguntou sobre a identidade destes homens. Felipe dos Santos (o agitador mais ou menos heroico de Diogo de Vasconcelos) não estaria entre eles? A não ser que se mantivessem entre os agentes populares do termo legal imposto ao governo, quando o levante teria alcançado o nível da sedição ou do protesto social, os mascarados constituiu um grupo (ou categoria) sem identidade social, somente assinalado pela violência e temor que promovia nos lugares urbanos. A primeira menção aos mascarados surge numa noite, 24 de junho, quando João da Silva Guimarães, juiz ordinário em Vila Rica e filho do poderoso Pascoal, em denúncia ao governador, relatou: “achando-me na rua fora de horas” junto com o primo, fora chamado por “um negro” para ir até uma esquina onde havia alguns homens que desejavam falar-lhe. Com receio, “chegaram-se à esquina aludida, onde encontraram uns mascarados que pediram-lhes a si e a seu primo José Guimarães – quisessem entrar em um motim e favorecer aos agentes dele”. Os mascarados ainda avisaram que o motim era para matar o Ouvidor e expulsar o Conde governador das Minas.1631 Quatro dias depois, na noite do dia 28 de junho, começou nova movimentação dos ranchos ou cortejos de mascarados no morro do Ouro Podre. Um dos bandos – seis mascarados que dirigiam muitos negros armados - desceu para Antônio Dias, paróquia de Vila Rica, e depois de arrombar as portas das casas dos moradores e chama-los para integrar os bandos rumou para a casa do Ouvidor e para as casas de dois amigos dos magistrados. Os dois bandos encontraram-se em frente à casa do Ouvidor (que, avisado por um mascarado, fugira horas antes do ataque). Depois de invadir o recinto, onde remexeram e destruíram os documentos judiciais, fizeram gracejos sobre os ritos de justiça do Ouvidor. Por fim, a multidão dirigiu-se à praça defronte à casa da Câmara. Ali solicitaram que um letrado redigisse um pleito ou requerimento, a ser encaminhado ao governador. Os amotinados requereram procedimentos fiscais (dos quintos e dízimos), supostamente mais justos e legítimos, a diminuição dos salários dos oficiais de justiça e das taxações camarárias e a anulação do contrato de gêneros de abastecimento (carne, fumo e sal). Concluíram o texto do pleito, com o pedido de perdão.

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Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Regimentos para as minas de ouro do Brasil, Ordem sobre a repartição das águas, f. 23v-25v. Ver, Diário da Jornada, que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro [...], Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 1939, p. 316. 1628 Apud CARVALHO, op. cit. p. 195-198. 1629 Os moradores, com a criação de Vila Rica (1711), já haviam buscado esse estatuto dos morros – para a “exploração livre do povo” -, junto ao governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho. Cf. REZENDE, 2013. 1630 SILVA, 2007. p. 363. 1631 CARVALHO, op. cit. p. 54.

479 ISSN 2358-4912 Desdobra-se o motim popular, que a historiografia especificou, sem notar os mascarados: luta por direitos sociais básicos da pequena política. Ao fim, sem a leitura pública do termo que se pretendia, encarregou-se um cavaleiro de entregar o papel ao Conde, o ele fez alçando o documento no percurso e anunciando o levantamento das Gerais. Este primeiro termo foi uma espécie de minuta do termo abrangente e pretensioso que se negociou no palácio, em junta de autoridades e procuradores do povo.1632 Contudo, a gramática e o vocabulário da sedição de Vila Rica, cujos protagonistas agiram publicamente até o dia 16 de julho, buscou sustentarse numa ambiência festiva popular. O concerto do motim foi proposto no dia da natividade de São João Batista, quando os fieis deviam fazer as suas fogueiras, acender archotes, dançar e beber. O convite (quase casual) para amotinar, embora fosse denunciado por João Guimarães, aparentemente não assustou o Conde, que atribuiu o temor de Guimarães às “indigestões da cachaça” naquele momento e local.1633 Esses festejos joaninos tinham relação significativa com o solstício de verão no hemisfério norte, quando os mascarados – jovens rapazes que participavam das mascaradas como ritos carnavalescos de passagem – atuavam nas comunidades, gracejando e atacando os desvios sociais, e assim, concebendo laços comuns, herança imemorial dos cultos agrários de purificação e renovação.1634 No meio das festividades de São João e São Pedro - 29 de junho, dia seguinte à noite de explosão do motim -, legitimou-se o espaço público dos populares e dos escravos. Assim, não foram as reivindicações econômicas e políticas que os promoveram a atores, mas a visibilidade e a identidade alcançadas na cena pública tensionada pela imaginação festiva. Felipe dos Santos, cômico e festeiro (artesão que ajudou a organizar as cavalhadas; prático do teatro popular), desempenhando certamente o papel de agitador mascarado, logo seria acusado pelo governador de ser um dos agentes principais da ameaça à soberania da Coroa portuguesa.

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Referências ANASTASIA, Carla M. Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. ANDRADE, Francisco E. de; REZENDE, Dejanira F. de. Estilo de minerar ouro nas Minas Gerais escravistas, século XVIII, Revista de História, São Paulo, n. 168, jan.-jun. 2013. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CARVALHO, Feu de. Ementário da História de Minas. Felipe dos Santos Freire na sedição de Vila Rica. Belo Horizonte: Edições Históricas, s/d. FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. Tributação, sociedade e a administração fazendária em Minas no século XVIII, IX Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, 1993. FONSECA, Alexandre Torres. A Revolta de Felipe dos Santos. In: REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v. 1. KROM, Maria Johanna C., Dances of Moors and Christians: history, legend and practice in three contemporary performances in Portugal, Spain and Brazil, Antropolítica, Niterói, n. 33, 2. semestre 2012.

1632

Ibidem, p. 71-76, 95-104. Feu de Carvalho afirmou que depois da noite de 14 de julho, presos os chefes da revolta, os mascarados desapareceram do espaço urbano da vila - ibidem, p. 136. 1633 Ibidem, p. 55. 1634 BURKE, 1989. p. 205. Mas, no hemisfério sul a festa joanina marcava o início do inverno, o que pode remeter à carnavalização dos mascarados como os caretos – personagens que portam máscaras grotescas e demoníacas -, próprios das festas ligadas ao solstício de inverno no nordeste de Portugal. É significativo comparar com a descrição da festa dos caretos: “Por tradição, a liderança da festa cabe aos rapazes solteiros, cujo espírito de grupo é fomentado por provas de resistência física, roubos simbólicos, peditórios e ofertas a Santo Estêvão, considerado o seu patrono. Participam ainda em missas e nas loas, récitas públicas também designadas de comédias ou colóquios, e que se traduzem em versalhadas satíricas de críticas e maldizeres a deslizes comportamentais ou a situações caricatas da vida social” – PAIS, 2009, p. 375. Tudo indica ainda que, nas cavalhadas (luta ritual entre cristãos e mouros) da festa do Divino e de Corpus-Christi, havia mascarados – KROM, 2012, p. 135.

480 ISSN 2358-4912 MELLO E SOUZA, Laura de. Estudo crítico. In: DISCURSO histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Entre festas e motins: afirmação do poder régio bragantino na América portuguesa (1690-1763). In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo: Hucitec; Editora da USP; Fapesp; Imprensa Oficial, 2001. PAIS, José Machado. A juventude como fase de vida: dos ritos de passagem aos ritos de impasse, Saúde Soc., São Paulo, v. 18, n. 3, 2009. REZENDE, Dejanira F. de. Mineração nos morros das Minas Gerais: conflitos sociais e o estilo dos pequenos exploradores (1711-1779). Mariana: ICHS/UFOP, 2013. (Dissertação, mestrado em História). SILVA, Flávio Marcus da. Práticas comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII. In: In: REZENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos. História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. v. 1. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1999. VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides Mineiras. Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos Culturais, Fundação João Pinheiro, 1998. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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DE TERRA DE SENHORES A TERRA DE MASCATES: A ELITE DE SANTA CRUZ DO ARACATI E O ACESSO A REFERENCIAIS DE NOBREZA (1748-1804) Gabriel Parente Nogueira1635 Nas duas últimas décadas, a historiografia sobre a América portuguesa tem tido no estudo das elites locais uma de suas principais abordagem. Em meio às discussões e análises desenvolvidas nestes estudos, a identificação de perfis sócio-econômicos de determinados grupos, bem como a análise de trajetórias de ascensão social, seja de grupos ou de determinados indivíduos, têm se configurado, nos últimos anos, como referenciais de análise de destaque no desenvolvimento de muitas pesquisas. Trabalhos como os desenvolvidos por João Fragoso1636 sobre as elites fluminenses de perfil senhorial e mercantil nos século XVII e XVIII, além de exemplos da abordagem historiográfica mais recente sobre as elites coloniais, constituem-se como referencias indispensáveis às discussões sobre as elites locais na América portuguesa em meio a uma renovação da percepção sobre a sociedade colonial que vem se processando na historiografia brasileira desde a década de 1970 e que ressalta sua maior complexidade em confronto com uma abordagem tradicional que focava suas discussões essencialmente na dicotomia entre senhores de terra e escravos1637. Constituindo-se em parte como fruto dos diálogos estabelecidos com a historiografia sobre os Impérios do período moderno, com destaque para a historiografia sobre o Império português e o Portugal do Antigo Regime, essa nova abordagem sobre as elites coloniais se desenvolve dentro de uma nova percepção acerca das relações de poder existentes entre os espaços constituintes dos impérios mercantis, por meio da qual, mais do que vista simplesmente como colônia, a América portuguesa passa a ser percebida como parte de um império pluricontinental com o qual compartilhava uma série de interesses e valores. Dentre os valores compartilhados entre as sociedades que fizeram parte do Império português moderno, a historiografia vem ressaltando o conceito de “nobreza civil”, valor típico das sociedades de Antigo Regime da Europa moderna que foi incorporado e apropriado, a partir de adequações inerentes às realidades e valores locais, pelas elites dos diversos espaços que compuseram o império, sendo, nesta medida, um dos elementos a conferir identidade a elites com perfis tão diversos entre si, seja em termos sociais, espaciais ou temporais. Em trabalho no qual discute o conceito de nobreza civil adotado pelas elites locais na América portuguesa, Maria Beatriz Nizza da Silva1638 ressalta que este conceito, apesar de constante ao longo de séculos, sofreu transformações ao longo do tempo, no que se refere aos elementos que, isolados ou 1635

O presente texto foi produzido a partir de algumas constatações elaboradas ao longo da pesquisa dsenvolvida sobre a elite da vila de Santa Crus do Aracati da qual resultou a dissertação de mestrado: NOGUEIRA, Gabriel Parente: Fazer-se nobre nas fímbrias do Império: práticas de nobilitação e hierarquia social da elite camarária de Santa Cruz do Aracati (1748-1804). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em História. UFC. Fortaleza, 2010. Universidade Federal do Ceará. Email: [email protected] 1636 FRAGOSO, João Luis Ribeiro. A nobreza da República: notas sobre a formação da elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi Revista de História do Programa de Pós Graduação Em História da Ufrj, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, pp. 45-123, 2000; FRAGOSO, João Luis Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992 1637 Na década de 1970 deu-se início a um processo de renovação historiográfica denominado por Stuart Schwartz como “virada pós-dependentista” que correspondeu a uma ampliação da percepção e análise acerca do período colonial, até então fortemente centrada em discussões acerca da economia agro-exportadora e em uma analise social que privilegiava a dicotomia entre senhores de terras e escravos. Além dos trabalhos do próprio Schwartz, destacam-se nessa “virada” historiográfica, no que se refere à sua abordagem social, as dissertações de Riva Gorenstein sobre o papel dos negociantes de grosso trato do Rio de Janeiro no processo de independência do Brasil, defendida em 1978; e a dissertação de Laura de Mello e Souza sobre a população pobre-livre nas Minas setecentistas, defendida em 1980, na medida em que tais trabalhos destacavam sujeitos até então pouco ressaltados na historiografia. 1638 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser Nobre na Colônia: São Paulo: Editora UNESP, 2005.

482 ISSN 2358-4912 combinados, conferiam o status de nobreza civil aos membros das elites locais que com eles se identificassem. Tais transformações são entendidas como fruto das mudanças vivenciadas no Império português, dentre as quais a política de fomento ao comércio no Império a partir do ministério pombalino em meados do século XVIII, é um ponto de destaque, por encontrar-se diretamente associada à atribuição do estatuto de nobreza civil àqueles que desempenhassem a atividade mercantil de grosso trato, algo de grande representatividade no que se refere às transformações do conceito de nobreza civil ao longo do tempo, se levarmos em conta que a atividade mercantil, desde o medievo, era tradicionalmente identificada em grande parte da Europa cristã como algo vil, percepção esta que perdurou, em maior ou menor grau, ao longo do período moderno, a despeito de os impérios ultramarinos europeus terem tido no comércio um de seus principais fundamentos. Além das transformações vivenciadas pelo conceito de nobreza civil ao longo do tempo, cabe ressaltar que este tipo de nobreza diferia da nobreza de sangue, entre outros aspectos, pelo fato não ser hereditária. A nobreza civil era de caráter pessoal, não transmitida por nascimento e sim conquistada por meio do acesso a determinados espaços de poder e privilegio, dentre os quais, os postos de oficiais nas Câmaras e Companhias de Ordenanças e Milícias gozavam de destaque como referencias para o acesso a este estatuto de nobreza compartilhado pelas elites locais dos vários espaços que compuseram o Império português moderno tanto no reino quanto no ultramar. Tendo em vista que a nobreza civil, além de seu caráter pessoal, pautava-se pelo acesso a espaços de poder e privilégios, mais nobre considerava-se aquele indivíduo que tivesse acesso ao maior número de espaços de poder e distinção. Nesta lógica, para além do acesso aos principais postos das Câmaras e forças de Ordenanças e Auxiliares locais, o acesso a espaços como as irmandades (especialmente as identificadas com os estrados socialmente mais elevados) bem como a concessão de hábitos de Familiar do Santo Oficio e das Ordens Militares do reino compunham um coletivo de espaços que, além de conferir o estatuto de nobre aos sujeitos que a eles tinham acesso, reforçavam este estatuto dos indivíduos que com um maior número deles se identificassem. Desta feita, a identificação do acesso combinado a estes espaços que conferiam nobreza, dentro de uma sociedade pautada pela hierarquização – como era o caso da América portuguesa – constitui-se como um referencial de destaque para percebermos a correlação de poderes e hierarquias entre grupos que compunham as elites de uma dada região. Ao levarmos em conta que a segunda metade do século XVIII configura-se como um período em que ocorre um alargamento da noção de nobreza civil, na medida em que a política pombalina passa a identificar o comércio de grosso trato como uma atividade enobrecedora, entendemos que a vila de Santa Cruz do Aracati se configuraria como um espaço privilegiado para a discussão do conceito de nobreza civil na capitania do Siará grande durante a segunda metade do século XVIII. Situada à margem direita do rio Jaguaribe, próximo à desembocadura do dito rio, Santa Cruz do Aracati foi criada em vila no ano de 1748. Durante o século XVIII, Aracati foi o principal centro econômico da capitania do Siará grande, e um dos mais importantes dentre os “portos do sertão” da capitania geral de Pernambuco. A importância desta localidade, que se expressava antes mesmo da sua elevação à categoria de vila, se dava pelo fato de constituir-se em um centro no qual concentravam-se uma série de interesses que tinham como base a produção e a comercialização de carnes secas e couros. Desenvolvidos nas oficinas instaladas à margem do Jaguaribe, a produção de carnes secas e o beneficiamento local dos couros extraídos dos rebanhos abatidos na vila, serviram de base para o desenvolvimento de um intenso comércio que fez do Aracati o principal empório da ribeira do Jaguaribe, abastecendo assim a região mais importante da capitania do Siará grande com produtos trazidos nos barcos que – oriundos do Recife e de outras praças da América portuguesa, como Salvador e Rio de Janeiro – vinham para a localidade para nela carregar-se de carnes secas e couros. A representatividade do comércio para o desenvolvimento da localidade do Aracati, inclusive para a sua elevação à categoria de vila em meados do século XVIII nos levou a entender que esta vila se constituiria em um espaço de destaque para a análise das práticas de nobilitação de uma parcela de destaque da elite da capitania do Siará grande em uma época em que o conceito de “nobreza civil” passou a vivenciar uma nova fase, na medida em que neste período o comércio de grande monta passa a ser identificado como atividade enobrecedora, passando a fazer parte de um rol composto por outros espaços e práticas cujos acessos e desempenhos tradicionalmente já se associavam ao estatuto de nobreza civil. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

483 ISSN 2358-4912 Ao pensarmos em discutir as práticas de nobilitação desenvolvidas pelos membros da elite de Aracati, um dos primeiros questionamentos levantados foi o de definir qual referencial adotaríamos para classificar quem viria a ser a elite da vila, uma questão de grande relevância em se tratando de um trabalho de história social, onde a identificação dos sujeitos configura-se como uma questão central. A câmara da vila, tendo como referência os sujeitos que tiveram acesso aos postos de Juiz Ordinário Vereador, Procurador e Escrivão, foi o espaço escolhido, por entendemos que as Câmaras, além de representarem a base da comunidade política do império português (e de constituírem-se em si como uma das instituições a cujo acesso conferia-se nobreza) desempenhavam um papel destaque no controle ao acesso de outros espaços de poder e distinção, como os dos principais postos das tropas de Ordenanças, já que às Câmaras cabia a prerrogativa de indicar os postulantes às principais patentes das forças que se encontrassem em seus respectivos termos de jurisdição. Na medida em que a historiografia recente sobre as elites tem dado destaque à análise das relações, muitas vezes conflituosas, entre membros de elites de perfil senhorial e mercantil no que se refere às disputas pelo acesso a referenciais de nobreza e poder, tivemos como um de nossos principais objetivos identificar o perfil sócio-econômico dos membros da elite camarária de Aracati. A identificação destes perfis se mostrava relevante, pois, além de Aracati se tratar de uma vila na qual o comércio desempenhava um papel central, pudemos identificar, na análise de documentos referentes às disputas pelo acesso a dois postos militares de destaque entre membros da elite de Aracati com perfis sociais distintos, que essas diferenças de perfil entre uma elite senhorial e uma elite mercantil entre membros da elite da vila, era bastante representativa da transformação na correlação de forças entre os membros destas elites no acesso aos referenciais de poder e distinção ao longo da segunda metade do século XVIII.

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* No ano de 1804, o Capitão João de Castro e Silva (que nos anos de 1794, 1800 e 1802 serviu no Senado da Câmara de Aracati no posto de Juiz ordinário) envia um requerimento ao Conselho Ultramarino1639. O requerimento em questão tratava-se de uma queixa de João de Castro Silva, segundo o qual, após ter seguido ao longo de 30 anos as hierarquias de seu regimento nos postos de: Soldado, Cabo de Esquadra, Alferes e Capitão, e sendo o capitão mais antigo, fora preterido em favor de José Fidelis Barroso de Mello na promoção para o posto de tenente coronel. Como justificativa para suas queixas, Castro e Silva argumentava que, além de servir a Sua Alteza Real por todos estes 30 anos no Regimento “com honra zelo, actividade e desempenho de seus deveres”, teria desempenhado em Aracati cargos da República e descenderia: de huma das mais nobres famílias da Va., tratando-se por isso á Lei da Nobreza, abundando em bens e comportando-se em todas as suas acções com morigeração, e bons costumes, sem ter delinqüido contra as Leis de V.A.R. nem haver cometido culpa , que o obrigasse a Livram.to

Para fazer valer o seu discurso, Castro e Silva indica que dedicara sua vida ao serviço à Sua Alteza e à República, além de exaltar a sua distinta ascendência que, juntamente com sua conduta, o fariam homem honrado e, portanto, merecedor do provimento no posto ao qual fora preterido. Já sobre a indicação daquele que foi efetivamente provido no posto de tenente coronel, Castro e Silva diz que: José Fidelis Barroso de Mello, pella proposta do Coronel seo Sogro pelo m.mo provido escripto como consta no reconhecimento do Tabelião e feita contra as Reais Ordens de V.A. porque devendo propôr três Officiais , dando preferência aos que fossem da capitania na conformidade do Decreto constante da [ __ ] e tivessem mais tempo de Serviço, tudo inverteo e postergou, propondo unicamente o Genro

1639

AVISO do [secretario de estado dos negócios da Marinha e ultramar], ao conselheiro do Conselho Ultramarino, barão de Moçamendes, [Manoel de Almeida Vasconcelos], para que se faça consulta sobre o requerimento de João de Castro Silva, Capitão do Terço de Infantaria Auxiliar das Marinhas do Ceará e Jagoaribe em que pede promoção para Coronel. 1804, Novembro, 24, Lisboa. AHU_CU_006, Cx. 18, D. 1065.

484 ISSN 2358-4912 Sobre José Fidelis, Castro e Silva ainda diz que: “nem he natural da capitania, nem serviu Posto ou nas Ordenanças ou nos Auxiliares della” e que José Fidelis é homem: “sem mais merecimentos do que ser Mercador de Vara e Côvado de que ainda presentemente uza por si próprio, sendo por isso notado por todos.” Podemos perceber que Castro e Silva, como forma de destacar seus méritos em relação à José Fidelis Barroso para o provimento do posto de tenente coronel, ressalta a nobreza de sua de sua família, cuja ligação com a vila, conforme pudemos identificar no estudo de sua ascendência, ligava-se aos primeiros sesmeiros do Jaguaribe, dentre os quais, os senhores do sítio no qual se desenvolveu o Aracati. Já sobre, José Fidelis Barroso, além de destacar que não era natural da capitania e indicar que o provimento se dera em decorrência de favorecimento, já que o Coronel do regimento era sogro de José Fidelis, Castro e Silva se utiliza da atuação de José Fidelis como mercador na vila de forma a desmerecê-lo. O discurso de Castro e Silva, conforme percebemos, indica que o acesso a postos de destaque, que conferiam e reforçavam o caráter de nobreza àqueles que a eles tivessem acesso, encontrava-se pautado por uma série de requisitos constituídos a partir de uma experiência construída ao longo do tempo e que encontrava referência nos valores compartilhados pelas elites locais do império português. Na disputa em questão, que confirmou José Fidelis Barroso no posto de Tenente coronel, percebemos que, no início do século XIX, em uma disputa pelo acesso a um dos postos de maior destaque da forças auxiliares em um dos regimentos da capitania, a correlação de forças que indicavam a hierárquica entre os membros da elite de Aracati favoreceu a um membro da elite mercantil local, oriundo do Recife, em detrimento a um membro da elite tradicional, ligada ao processo de conquista da terra. Vista dentro de um contexto posterior ao ministério pombalino – época na qual conferiu-se um série de privilégios aos grande comerciantes do império, especialmente para os grandes comerciantes do reino1640 – a disputa pelo posto de tenente coronel representa uma mudança na correlação de forças dentre os grupos que compunham a elite da vila de Aracati ao longo da segunda metade do século XVIII especialmente quando comparada a um caso semelhante que envolveu a disputa pelo posto de Capitão mor da vila do Aracati quatro décadas antes. A morte de José Pimenta de Aguiar, o primeiro Capitão mor das Ordenanças da Vila do Aracati, ocorrida no final do ano de 1759 abriu uma disputa que, assim como o caso relativo ao posto de tenente coronel no início do século XIX, envolveu dois membros da elite da vila com perfis sociais distintos, sendo eles o Sargento mor Matias Ferreira da Costa e o também Sargento mor José Rodrigues Pinto. No ano de 1760, o Sargento mor Matias Ferreira da Costa, envia um requerimento ao rei como forma de justificar suas pretensões em ocupar o posto máximo das Ordenanças locais. Este requerimento configura-se como uma referencia de grande valor para podermos pensar o que era considerado viver nobremente nos sertões do gado, e que valores eram definidos por parte da elite de Aracati como referenciais de nobreza poucos anos após a criação da vila. A justificação, movida a dois de abril de 1760, iniciava-se pela apresentação do justificante, Matias Ferreira da Costa, onde dizia que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

(...) elle justificante he homem branco filho legitimo do Coronel que foi do Regimento da Cavallaria da Ribeyra Freguezia das RuSsas, o qual Servio a S Magestade no dito posto como constara da sua patente com muita honra e ainda com despezas de sua fazenda e sérvio de Juiz ordinario e mais cargos da governança da Villa do Aquiraz e Juiz Pedanio nesta Ribeira de Jagoaribe com honra do pRvimento (...) (Matias Ferreira da Costa) exerceo o posto de Capitão de cavallos desta mesma Villa do Regimento de que foi coronel Domingos Tavares da Fonceca Tio do Justificante como tambem o posto de Sargento mor das ordenanças desta mesma villa como constará de uas Patentes sempre com honrado pRocedimento, (...) e todos os Irmãons e Parentes do justificante tem servido os cargos de Governança e postos de ordenanças cavallarias e auxiliares sempre com muito zello e fidellidade 1641

1640

PEDREIRA, Jorge. M. Negócio e capitalismo, riqueza e acumulação Os Negociantes de Lisboa (1750-1820). Tempo, v. 8, n. 15, p. 37-69, jul/dez 2003. 1641 REQUERIMENTO do sargento-mor Mathias Ferreira da Costa, morador na vila de Aracati, ao rei [D. José I] a pedir provimento no posto de capitão de Cavalaria da referida vila. (ant. a 28 de julho de 1761) AHU_CU_006, Cx. 8, D. 491. (OBS: apesar do titulo atribuído a este documento indicar que o posto em questão era o de capitão de

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ISSN 2358-4912 Na apresentação que faz de si, o Sargento Mor Matias Ferreira da Costa menciona que tanto ele quanto os membros de sua família destacavam-se na capitania pelo exercício de cargos da República, que envolviam tanto o exercício dos postos de oficiais das instituições camarárias da capitania quanto a atuação em postos militares nos corpos de Ordenanças e Auxiliares, tendo até mesmo seu pai (o Coronel Antonio Nunes Ferreira) efetuado despesas de sua própria fazenda em favor do bom exercício de sua função como Coronel que fora do Regimento da Cavalaria da Ribeira das Russas, o que demonstraria o bom procedimento dos “seus” nos exercício dos postos da República. Acerca de sua origem e “trato”, Matias Ferreira da Costa identifica-se, além de morador, como natural da vila do Aracati, onde: “Sempre se tratou a Ley da nobreza sem exercer officio vil, e mecânico e Sempre teve cavallos na estrebaria, e pages que o acompanhavão”. A ligação com a terra e a limpeza de mãos – tanto no que se refere ao não exercício de atividades mecânicas, que eram consideradas aviltantes, quanto no fato de ter pessoas a seu serviço – representavam alguns dos principais referenciais de nobreza adotados pelas elites tradicionais, geralmente identificadas como “nobreza da terra” 1642, identificação que se dava, em muito, como contraposição aos membros das elites mercantis que ao longo do século XVIII passaram a disputar com os membros destas elites tradicionais, em toda a colônia, o acesso aos principais meios de distinção e poder locais. O Sargento Mor José Rodrigues Pinto, concorrente de Matias Ferreira da Costa na disputa pelo posto de Capitão Mor, identificava-se como membro desta elite mercantil que no Aracati ligava-se às atividades de produção e comercialização do charque e do couro produzidos nas oficinas da vila, perfil este que é mencionado por Matias Ferreira da Costa como forma de desqualificar seu concorrente. Sobre José Rodrigues Pinto, Matias Ferreira da Costa dizia que: (...) o Sargento mor actual das ordenanças que existe nesta Villa não he natural della, nem nunca viveo a Ley da nobreza pois sempre vendeo fazendas Secas e molhadas medindo por vara e côvado e ainda depois de exercer o dito posto está exercitando o mesmo officio mecânico vendendo, e medindo fazendas secas e molhadas em hua officina por sua própria mão sendo caixero de Antonio Gomes Ramos morador em Pernambuco qual lhe Remete fazendas para lhas vender e com ellas lhe fazer Barcos de Carnes e couros nesta Villa e lhe da de paga por cada Barco de carnes que faz Sincoenta mil Reis aLem dos ganhos da fazenda que tira sobre os presos da carregação como he publico e notório, e nunca Logrou nobreza algua, além do que he pouco Respeitado (...)

Como se pode perceber, a desqualificação promovida por Matias Ferreira da Costa contra o Sargento Mor José Rodrigues Pinto, tem como referenciais dois elementos principais: o fato de José Rodrigues não ser natural da terra1643 e de não “viver à lei da nobreza”. Sobre a dimensão patrimonial de José Rodrigues Pinto, Matias Ferreira da Costa mencionava que: (...) não poSue bens alguns mais que tão Somente hua morada de cazas nesta Villa que valerá quatrocentos mil Reis e alguns escravos e movens de caza, e deste modo sem ter as quallidades e Requizitos necessários para poder exercer o posto de Capitão Mor desta Villa nem ainda outro inferior posto por lhe faltarem as circunstancias que manda o novo Regimento das ordenanças(...)

A despeito de Matias Ferreira da Costa ter indicado que José Rodrigues Pinto seria detentor de um patrimônio relativamente reduzido, o que pudemos constatar em relação a Rodrigues Pinto é que quando fora provido no posto de Sargento Mor das Ordenanças de Aracati, a 19 de junho de 1759 fora

Cavalaria constatamos, pela leitura da documentação que tal dado incorre em erro sendo o posto em questão o de Capitão mor das Ordenanças de Aracati 1642 Cabe mencionar que – apesar de não termos encontrado referências nos documentos consultados que nos indicasse uma auto-identificação dos membros desta elite tradicional como “nobreza da terra” – esta noção pode ser bem aplicada à alguns de seus membros, como é o caso do Sargento Mor Matias Ferreira da Costa, cujo perfil sócio econômico descrito no requerimento nos indicam padrões e referenciais de poder com base nos quais entendemos que ele, assim com sua parentela possam ser identificados como “nobreza da terra”. 1643 Segundo dados indicados pelas testemunhas arroladas neste ato de justificação, o Sargento Mor José Rodrigues Pinto seria natural do Recife de Pernambuco

486 ISSN 2358-4912 indicado como um dos sujeitos mais afazendados da vila, característica que lhe conferia a possibilidade de cumprir com as obrigações das atividades inerentes ao posto no qual fora provido1644. Apesar de a documentação não dos indicar o desfecho da questão – e termos referencia de que a 22 de dezembro de 1760 o Capitão Mor/Governador do Siará grande, João Baltazar Quevedo Homem de Magalhães, dava conta à Lisboa de haver impugnado o processo de escolha, tendo em vista ter ocorrido suborno na proposta efetuada pelos oficiais da Câmara1645 – sabemos que, a 31 de maio de 1765, José Rodrigues Pinto era reafirmado, em carta patente, como Sargento Mor das Ordenanças do Aracati1646, enquanto a 29 de abril de 1765, Matias Ferreira havia sido provido no posto de Capitão Mor das Ordenanças da vila do Aracati, pelo fato de:

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(...) concervarem na sua peçoa as circunstancias necessárias pª ocupar o dº posto p.r ser dos de maior capacid.e e nobreza daquele destrito onde exerceu o posto de Sarg.to Mor das mesmas ordenanças (...) sendo Filho de An.tº Nunes Fer.ª q’ foi Coronel da Cavalaria nesta Cap.nia abastado de bens e de onrado procedim.to dando aos d.os empregos q’ tem exercido mostras da activd.e, zelo e satisfação com q’ se emprega no Real Serv.º (...)1647

Associando as dinâmicas de poder local na vila ao contexto de transformações no que se refere às praticas de nobilitação, entendemos que se o século XVIII constituiu-se como um momento que caracterizou-se pelo processo de crescimento do poder e ascensão do limiar distintivo dos homens de negócios que atuavam nos mercados do Império português – o que propiciou aos agentes mercantis a possibilidade de disputar juntamente os membros das elites tradicionais o acesso a meios de poder e distinção que até então eram de acesso exclusivo da “nobreza da terra” – sabemos que tal processo ocorreu lentamente, havendo grande diferença na proporção na incorporação dos agentes mercantis como elites locais (com base no acesso a postos de poder e mando) entre a primeira metade do século, quando se mostrou mais acanhada, e a segunda metade, onde Pombal, com sua política de valorização das atividades comerciais, consolidou, através de uma série de medidas, a elevação do status distintivos dos homens de negócio. Apesar de haver se dado em um período em que ocorria esta “virada” que favoreceu o acesso de membros do setor mercantil a espaços de poder e distinção como as Câmaras e os postos de destaque dos corpos de Ordenanças e Milícias, a confirmação de Matias Ferreira da Costa ao posto de Capitão mor, em detrimento de José Rodrigues Pinto, nos indica que na vila do Aracati, em meados do século XVIII, a elite tradicional ainda gozava de grande prestígio e poder de mando e influência, conforme se pode perceber pelo desfecho do caso. * A análise destes dois casos nos indicam que o acesso a espaços de poder de distinção entre os membros da elite da vila de Aracati estava pautado em padrões e modelos de nobreza compartilhados em todo o império que levavam em consideração, entre outros aspectos a limpeza de sangue, de mãos, e o costume de “viver à lei da nobreza”. Os desfechos dos dois casos nos indicam uma transformação no eixo das relações hierárquicas de poder que envolvia os membros da elite tradicional e da elite mercantil da vila do Aracati entre meados do século XVIII e início do século XIX. Vistos de forma associada com o acesso a vários outros referenciais de nobreza que tivemos a oportunidade de analisar

1644

Registro do de provimento de José Rodrigues Pinto no posto de Sargento Mor das Ordenanças da Vila do Aracati de 19/06/1759 (In): APEC – Setor Histórico. Livro 11: Registro de patentes (1759-1765) fl.05v-06v. Comparando alguns registros de Patentes dispostos no mesmo livro, pudemos perceber que a referencia acerca do beneficiado com a patente tratar-se de um dos sujeitos mais afazendados da vila, não era regra para todos os ocupantes dos postos, sendo esta menção basicamente restrita aos homens que desempenharam os principais postos da Região que se tratavam, em grande parte, de membros da elite camarária de Aracati da qual tanto Matias Ferreira da Costa quanto José Rodrigues Pinto faziam parte como membros de grupos com perfis sócioeconomicos distintos. 1645 STUDART, Guilherme. Datas e Fatos para a História do Ceará. Ed. Fac-sim. Fortaleza. Fundação Waldemar Alcântara 2001, Tomos I p. 292. 1646 APEC – Setor Histórico. Livro 11: Registro de patentes (1759-1765) fl.104-104v. 1647 APEC – Setor Histórico. Livro 11: Registro de patentes (1759-1765) fl.82v.

487 ISSN 2358-4912 em nosso trabalho1648, (com destaque para os principais postos camarários, de oficiais das Ordenanças e Milícias e os hábitos de Familiares do Santo Oficio e das ordens militares), pudemos constatar que, se em meados do século XVIII a elite de perfil tradicional da vila de Aracati – na qual destacava-se a grande parentela da qual fizeram parte João de Castro e Silva e Matias Ferreira da Costa – exerceu um grande poder na vila refletida no acesso e controle de espaços de poder e distinção como a Câmara da vila e os principais postos militares das forças locais; o período que vai da década de 1770 ao início do século XIX, foi marcado por uma presença mais forte dos membros da elite mercantil de Aracati, no controle destes espaços, bem como no acesso a referenciais de nobilitação tais como o Hábito de Familiar do Santo Oficio que, conforme pudemos identificar, na vila do Aracati, só foi conferido a membros pertencente à elite mercantil.

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A ILEGITIMIDADE DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA: VASCO DE QUIROGA E A INFORMACIÓN EN DERECHO (1535) Geraldo Witeze Junior A tragédia da conquista e colonização da América pelos ibéricos foi bastante divulgada tanto no momento em que acontecia quanto posteriormente. Cronistas e historiadores se surpreendem desde o fim do século XV com o encontro entre culturas tão diferentes, isoladas umas das outras por tanto tempo. O maior destaque cabe à magnitude da conquista e aos milhões de mortos decorrentes dela. Astecas e incas foram derrotados com certa facilidade pelos espanhóis, mas a imagem resultante da conquista foi sobretudo a da leyenda negra devido à crueldade com que os europeus trataram os povos conquistados, conforme relatou o frei Bartolomé de Las Casas em sua Brevisima relación de la destrucción de las Indias. Las Casas é sem dúvida o mais famoso defensor dos índios, mas muitos outros se dedicaram a essa tarefa inglória, dentre os quais está Vasco de Quiroga. Uma das características mais marcantes da colonização foi a busca incessante por ouro e a escravização dos índios, nem sempre de acordo com a legislação vigente, que ora permitia ora proibia a prática. A despeito de permissões ou proibições, os espanhóis exploraram a mão de obra indígena incessantemente com o objetivo de adquirir a riqueza fácil provinda dos metais preciosos. Outro fator importante para que a escravidão se generalizasse foi a desvalorização europeia do trabalho manual: os que pretendiam ascender socialmente almejavam, como na península, não trabalhar. O debate provocado pela conquista da América é imenso já no século XVI e a escravidão sempre foi um tema importante. Las Casas chegou a questionar a própria legitimidade da posse do continente americano pelos ibéricos, conforme esclareceu Hector Bruit (2003). Se mesmo a legitimidade da colonização era questionada, quanto mais a escravidão indígena! E de fato Las Casas dedicou todos os seus esforços para denunciar as incontáveis crueldades europeias, para defender a humanidade dos índios e combater a escravidão e o sistema de encomiendas. Houve porém estratégias diferentes para defender os índios e combater a escravidão, sem que fosse necessário questionar a colonização. Vasco de Quiroga optou por esse caminho. Nomeado ouvidor da Segunda Audiência da Nova Espanha, foi para o México em 1531, quando já contava com idade avançada1649 e possuía experiência jurídica à serviço da coroa. Posteriormente se tornou o primeiro bispo de Michoacán, sob a autoridade do arcebispo humanista Juan de Zumárraga. Quiroga aceitava a colonização porque via nela a possibilidade de renovação do cristianismo e da construção de uma nova igreja com aqueles homens novos que haviam sido encontrados. Muitos religiosos europeus compartilhavam dessa visão, baseada no humanismo cristão de Erasmo e em sua tentativa de reformar o catolicismo. Na Información en derecho (2002, p. 200) lemos o seguinte sobre os índios convertidos: Porque éstos son los que aman y desean mucho los santos sacramentos de la Iglesia, y los que confiesan y casan y hacen las disciplinas con fervor y devoción y humildad, y en número increíble a quien no lo ha visto, y los que aman a los cristianos y sustentan la tierra, y los que son de increíble obediencia y humildad y de quien se esperaba y espera en estas partes y Nuevo Mundo una muy grande y reformada iglesia, si nuestros pecados y astucias y cautelas del antiguo Satanás que tanto los persigue los dejase vivir y no diese con todos al través.

No Novo Mundo seria possível o que no Velho se tornara inviável: retomar os valores da igreja cristã primitiva. Isso porque os índios eram, de acordo com o pensamento dos primeiros missionários, muito mais propensos a praticar o evangelho, sem a hipocrisia reinante na cristandade europeia e denunciada em obras célebres como O Elogio da loucura, de Erasmo. 1649

Não há plena certeza com relação ao ano de nascimento de Quiroga, mas os mais prováveis são 1470 ou 1478 (SERRANO GASSENT, 2001; VERÁSTIQUE, 2000). Assim, veio para a América com 53 ou 61 anos de idade.

489 ISSN 2358-4912 A cobiça desenfreada dos espanhóis era um formidável empecilho a esse projeto humanista. Os índios estavam sendo escravizados e levados para trabalhos forçados nas minas de ouro e prata sem nenhuma preocupação com sua sobrevivência. Além da guerra de conquista e das doenças, a escravidão nas minas ia ceifando incontáveis vidas. As mortes dos índios convertidos impossibilitava, é claro, o projeto de construção da igreja renovada na América, daí que tantos missionários tenham se levantado contra a escravidão. A estratégia adotada por Vasco de Quiroga foi a de propor uma forma de colonização distinta: organizou comunidades de índios chamadas de pueblos-hospitales cujas regras se baseavam na Utopia de Thomas Morus e propôs que fossem o modelo da colonização da América. Apesar de não ter obtido sucesso em seu objetivo maior, que era o de mudar os rumos da colonização, fundou alguns povoados que se mantiveram até o início do século XIX. O argumento central de Quiroga aponta para a necessidade de estabelecer um ordenamento jurídico e político para aquele Novo Mundo em resposta ao desregramento generalizado então reinante. Assim, deveriam ser fundados povoados para agrupar os índios, dispersos pela derrocada de seu antigo mundo, o que permitiria um maior controle social, impedindo os abusos cometidos pelos espanhóis. Nesses locais os nativos seriam instruídos e catequizados, não haveria propriedade privada e todos trabalhariam em prol do bem comum. Era uma utopia social cristã, como bem colocou Stelio Cro (1978). Apesar de não condenar o sistema de encomiendas, a escravidão indígena era um grande problema para o projeto de Quiroga. Durante sua vida ele de fato teve diversos enfrentamentos com os encomendeiros pelo fato de ser contrário à escravidão indígena e lutar pelo seu fim. Além da compaixão cristã e do sonho utópico1650 de renovação da igreja, uma questão central se manifesta na argumentação do ouvidor: trata-se do problema jurídico da escravidão indígena. Como jurista, Quiroga deu especial atenção para a questão da legalidade da escravidão indígena. Sem questionar o ordenamento jurídico espanhol, que conhecia muito bem, procurou mostrar que a escravização dos índios era contrária às leis. Assim, tratou de desmantelar as justificativas legais dessa prática, que se baseavam nos institutos da guerra justa e da escravidão de resgate. Sustentou que nenhuma das duas poderia ocorrer no Novo Mundo. O assunto é por demais complexo para ser explorado à exaustão, de forma que darei apenas alguns apontamentos. Quiroga confiava na razoabilidade da coroa e no humanismo do imperador Carlos V, de forma que pretendeu informá-lo sobre o que de fato acontecia na América. Somente informações falsas poderiam levar o monarca a decidir pelo retorno da escravidão e os responsáveis por essas informações só poderiam ser pessoas mal intencionadas que se beneficiariam da escravidão indígena, submetendo o bem comum aos interesses individuais. Isso seria ruim para os índios, para a igreja e para a coroa, beneficiando apenas alguns poucos cobiçosos ávidos por ouro e desprovidos de bons valores. A guerra justa era uma das condições para aprisionar os índios e torná-los escravos. Sobre isso lemos o seguinte: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Porque en cuanto a los esclavos de guerra, no se hallará, en hecho de verdad, para que se pueda justificar la guerra contra estos naturales, como la provisión lo requiere, que ellos nos infesten, molesten ni impidan paso, ni recobranza de cosa nuestra, ni se rebelen, ni resistan la predicación evangélica, si esta les fuese ofrecida con los requisitos necesarios como tengo dicho [...] (QUIROGA, 2002, p. 92)

Quiroga acreditava na eficiência da pregação evangélica e via os índios bastante propensos à conversão. Por isso justificava qualquer possível rejeição deles ao cristianismo como responsabilidade dos espanhóis, que não davam bons exemplos nem se esforçavam para que a pregação fosse compreensível aos índios. Já no século XVI criou-se um mal-estar devido ao fato de as comunicações oficiais serem feitas aos nativos numa língua que não compreendiam (ELLIOTT, 1998), o que, claro, não faz o menor sentido caso o objetivo seja o entendimento mútuo. Na prática essas comunicações serviam apenas como justificativa tosca e infundada para fazer-lhes guerra. Os motivos considerados válidos para a guerra justa estão listados acima: hostilidade aberta, impedir a passagem, roubos, rebeliões e resistência à pregação evangélica. A última é o assunto mais 1650

Utópico porque vinculado à Utopia de Morus, não porque fosse impossível ou inverossímil.

490 ISSN 2358-4912 espinhoso e não se resolveu facilmente: no debate da época muitos afirmaram que os índios tinham inclusive o direito de rejeitar a fé cristã ainda que outros tenham entendido que deviam ser obrigados a aceitá-la. Quiroga não se aprofundou na questão, mas sua visão se distancia da ideia de compelir os índios ao cristianismo. Isso se deve à sua prática cotidiana, em que via os índios aceitando de bom grado a pregação e a instrução dos primeiros missionários. Consequentemente, constatava que não havia rejeição ao evangelho. Quanto aos demais motivos Quiroga afirma que nenhum deles era cumprido, portanto a guerra contra os índios não era legítima. Poderíamos discutir detidamente cada um deles, mas sobretudo a ideia de rebelião soa no mínimo problemática, afinal só pode se rebelar aquele que está sujeito a algo ou alguém. No entanto, em que se baseava a sujeição dos índios aos espanhóis? Apenas nas bulas papais que garantiam a Castela a posse do Novo Mundo. Ora, a legitimidade da colonização, conforme as bulas, estava condicionada à evangelização dos índios – o que Quiroga lembra incessantemente. Diversos juristas e teólogos espanhóis salientaram ainda que a validade das bulas papais estava condicionada à aceitação do evangelho pelos índios e a sua submissão voluntária à coroa de Castela (ELLIOTT, 1998). Sem evangelização não haveria submissão nem à igreja nem à coroa, de forma que a acusação de rebelião perderia todo o sentido. Por isso, diferente do que acontecia, a evangelização dos índios deveria ser a principal preocupação dos que fossem para a América. Quiroga não está preocupado com o aspecto negativo do assunto – a possível rejeição dos índios ao evangelho –, insistindo antes na defesa de sua solução: a pregação amorosa e inteligível do evangelho, as obras de misericórdia, a construção dos povoados, a instrução sob a tutela dos frades. Não tinha dúvidas do sucesso de suas propostas, pois aqueles índios, feitos de cera mole para todo bem, como dizia, não rejeitariam a boa mensagem cristã. Como homem eminentemente prático concentrou-se na situação concreta daqueles índios comuns que andavam espalhados pelos montes fugindo dos espanhóis que lhes ofereciam apenas a escravidão e a morte nas minas. A conquista e a colonização eram fatos dados que não fazia sentido discutir. Não se interessava em discussões teológicas infindáveis sem vínculo com a vida concreta: entendendo os índios como seres humanos ontologicamente iguais aos europeus, era preciso levar-lhes o evangelho e garantir que tivesse uma existência digna. Por isso os argumentos estão todos voltados para a resolução dos problemas práticos, o que passava pela revogação da nova permissão para escravizar os índios. Além da guerra justa havia também outra justificativa para a escravidão: a alegação de que os índios já eram escravos e tinham apenas sido vendidos aos espanhóis. A isso Quiroga (2002, p. 100) responde de forma bastante clara insistindo que sob seus antigos senhores os índios não eram escravos: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Aunque, en la verdad, como adelante diré, estos no son esclavos ni lo pueden ser, antes se quedan en su libertad, lugar y familia, y lo retienen todo, salvo cuando los acuden solamente con algún género de servicio o tributo en cada año, o de ciertos en ciertos días con algunas obras como gente alquilada.

A escravidão entre os índios não era como a praticada entre os espanhóis porque o escravo não se tornava propriedade do seu senhor, devendo-lhe apenas tributos ou serviços. Os “escravos” mantinham sua vida normalmente, com suas famílias e posses, vivendo no mesmo lugar. Ou seja, não era de fato escravidão. Partindo de informações sobre as práticas indígenas obtidas de relatos de terceiros e da própria observação, Quiroga explora a legislação hispânica para mostrar as distinções entre a prática indígena que define como “aluguel de obras” e a escravidão. Os índios vendiam suas obras e não sua liberdade. E perder a liberdade era a condição básica para a escravidão conforme praticada entre os espanhóis. Homens livres não podiam ser vendidos como escravos pois “el hombre libre no es mercancía” (QUIROGA, 2002, p. 133). Isso significaria uma mudança arbitrária na natureza de sua condição jurídica, assim a escravidão dos índios se tornava ilegal. Na Información en derecho Quiroga desenvolve longamente os seus argumentos, dando extraordinária ênfase às diferenças entre as práticas indígenas e espanholas. Destaca sempre que entre os índios os que alugavam suas obras, mesmo perpetuamente, conservavam a liberdade, a cidade, a família e a ingenuidade – condição de liberdade. Essa prática era quase como um contrato, tinha regras definidas e estava bem distante da superexploração praticada pelos espanhóis – tão grande que as minas se

491 ISSN 2358-4912 tornaram sinônimo de morte e foram comparadas com o inferno. Os serviços prestados pelos índios uns aos outros eram bastante leves e alteravam pouco a vida ordinária daqueles que deviam prestá-los. Quiroga (2002, p. 155) explica a incompreensão, decerto bastante conveniente aos encomendeiros e colonos, que levou os índios a serem tidos por escravos, chamando a atenção para um problema linguístico: “entre ellos no saben que cosa sea [a escravidão] ni lo entienden ni se les puede dar a entender, porque, como entre sí no lo usan, no hay vocablo propio para ello”. A dificuldade para compreender a língua e as formas de comunicação do outro é uma das marcas da conquista e colonização da América, como apontou Todorov (2010). Essa confusão de idiomas levava os índios a afirmarem, quando indagados pelos espanhóis, que eram escravos, isso porque se baseavam no seu próprio vocábulo que não era equivalente ao termo esclavo. O ponto aqui destacado é este: a tradução mal feita de uma palavra espanhola sem equivalente na língua indígena levava à afirmações falsas com consequências terríveis. Quiroga sustenta que um mal entendido idiomático não poderia legitimar de forma alguma a escravidão. Procura de um lado mostrar a inocência dos índios, sem se aproximar da ideia do bom selvagem, e do outro evidenciar a malícia dos espanhóis, pouco preocupados com a eficiência da comunicação ou com a obediência às leis. Vasco de Quiroga é um legalista. Não abre mão das minúcias jurídicas para defender os seus pontos de vista. Sua forma de proceder é acima de tudo interpretativa. Sem questionar o ordenamento jurídico espanhol, atenta para as obrigações éticas, morais e legais dos espanhóis para com os índios. Talvez soubesse que questionar a conquista e a colonização teria efeitos nulos, preferindo partir da história para defender os argumentos – e os índios, por quem mostrou tanta admiração. A solução proposta por tato Vasco, forma carinhosa como é lembrado pelos índios de Michoacán, é sem dúvida conciliadora. Menos radical que Las Casas, foi ao menos um pouco mais eficaz. O mais famoso defensor dos índios fracassou na sua tentativa de colonização harmônica entre camponeses europeus e índios, ao passo que os povoados de Quiroga sobreviveram por três séculos. É pouco, porque o massacre indígena não cessou até hoje, mas pode ser, como a utopia, uma mensagem na garrafa que podemos resgatar e que talvez nos faça sonhar, como ele, não com um mundo perfeito, mas pelo menos melhor. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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OS INDÍGENAS E A LITERATURA: IMAGENS E DISCURSOS DE VIAJANTES E CRONISTAS EM ALAGOAS (SÉCULOS XVI-XIX)1651 Gilberto Geraldo Ferreira1652 Introdução Alagoas do Século XVI até a segunda década do século XIX era integrada a Pernambuco, sua emancipação política ocorreu em 18171653 no contexto da Revolução Pernambucana datada no mesmo ano. Parte da documentação do período está referenciada ao Sul de Pernambuco, produzida por viajantes, como também escritores de classes sociais variadas, profissões e formações intelectuais diversificadas, que descreveram aspectos do Brasil, por meio de relatos de viagem, crônicas, correspondências, diários, memórias, álbuns de desenhos. A presença de viajantes estrangeiros e seus relatos publicados sobre o Brasil datam desde o Século XVI. Depois da vinda da Família Real Portuguesa, quando o Rei Dom João VI decretou Abertura dos Portos brasileiros em 1808, houve um incremento da navegação e o consequente aumento da presença estrangeira no país1654. Nas obras de viajantes, muitas publicadas em várias línguas, assim, como escritores, cronistas e literatos, os autores falam dos habitantes, da vida social, dos usos, dos costumes, da fauna, da flora e de outros aspectos da antiga colônia portuguesa, principalmente durante o Século XIX. O conjunto de obras deixadas por esses viajantes e escritores integra a chamada literatura de viagem e se constitui numa literatura de testemunhos, cujos registros e observações ajudam a conhecer o Brasil da época. É na condição de retratistas que inauguraram uma representação do país. Suas narrativas não procuraram corroborar um projeto maior, porque residiam nas experiências individuais, compondo mais diários do que um tratados ou história descritiva1655. Portanto, não se pode deixar de considerar nos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, tanto o contexto histórico, como toda a carga de conceitos éticos, morais, religiosos e estéticos, com que descreveram suas primeiras impressões1656. A História do Brasil tem se pautado em construir uma ideia de nação, muitas vezes negando, omitindo outros povos que viveram no mesmo espaço, a exemplo dos afrobrasileiros e indígenas. Quando se buscou contemplar esses povos, geralmente, construiu-se um lugar de inferioridade sociohistórica. O projeto colonial não seria possível sem os conhecimentos dos indígenas e posteriormente, dos afrobrasileiros. Essa história é do Brasil e por sua vez, alagoana. Os cronistas e viajantes descreveram o espaço nordestino e alagoano se utilizando de uma ideia ocidental e cristã, como referência do estágio civilizacional, o que evidencia preconceitos e minimização das experiências elaboradas durante uma vida que não pode ser medida pelo tempo cronológico europeu e na maioria das vezes tão curto de observações. Todavia, esse comportamento se repete aos dias atuais na medida em que pesquisas isolam as perspectivas de produção e projeto de vida dos indígenas no Brasil Colonial. As visões sobre o indígena é reduzida a grupos que praticam a caça e pesca, sem articular ao universo sagrado, a beleza, a estética, a arte, o lazer, o prazer, a dor, as dimensões das sociodiversidades inseridas em contextos históricos, as projeções e ao existir enquanto povos diferentes. Segundo os autores, não produzir para além do sustento físico é respeitar a 1651

Este texto é parte integrante de um projeto de iniciação científica desenvolvido no Curso de História do Centro Universitário Cesmac/Maceió, financiado pelo PSIC/FAPEAL. Participaram como bolsista Andrezza Correira Ferro Almeida, aluno voluntário Ismaque Zeferino dos Santos, Profº Colaborador Dr. Edson Hely Silva. Email: [email protected] 1652 Doutorando em História PPGH-UFPE, Professor no Curso de História no Centro Universitário CESMAC/Maceió e Técnico Pedagógico da Gerência de Diversidade/SEE/AL. 1653 COSTA (1967). 1654 GASPAR (2009). 1655 RINALDI (2007). 1656 NETO (2006).

493 ISSN 2358-4912 Natureza. Produzir para o outro, seria uma agressão. Não se pode negar os avanços produzidos pelas pesquisas científicas, mas também não é possível esconder a devastação ambiental. A postura de projetar ou ocidentalizar uma visão sobre os indígenas e/ou apresentá-la como única alternativa para seus projetos de futuro é um equívoco, pois nenhuma história é dualista, que segue um movimento ou outro, com perdas ou ganhos, o que nesse caso, equivaleria a civilizar-se ou manter-se preso num dado espaço e tempo. O tempo do indígena seria substituído por outro cronológico. E qual seria o tempo do indígena para os “civilizados”? Certamente, permanecerem em grande medida, no período colonial caracterizado pela suposta selvageria e incivilidade: canibais, antropófago, incapazes. O ato da civilização se transformaria numa espécie de salvação ou de humanização, um ato de bondade1657. A História é sempre do presente. A relação entre o passado se dá pelas tensões do presente, o que justifica a realização desta pesquisa, pois, reescrever a História de Alagoas é reconfigurar o lugar dos sujeitos em seu tempo. Não seria possível reescrever a história de Alagoas Colonial e Imperial sem considerar a presença indígena dentro e fora dos projetos de Estado. Certamente, qualquer escrita, com este recorte temporal não deve deslumbrar-se com o progresso produtivo ocidental como única perspectiva possível para sociedade alagoana e brasileira. O objetivo principal deste texto foi identificar, sistematizar e analisar as obras literárias de cronistas e viajantes que fazem referência a Alagoas, buscando suprir lacunas históricas e historiográficas. O projeto foi desenvolvido entre os meses de junho de 2013 a junho de 2014. De várias obras identificadas foram analisadas Viagem ao Brasil de Staden (2006) e Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Souza (1587) por apresentar referência sobre Alagoas ou Sul de Pernambuco em algumas passagens de suas narrativas, as demais contribuíram para uma discussão mais ampla sobre o Brasil. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Resultados e Discussão Inicialmente os relatos sobre a nova terra eram escassos, como afirma João Neto1658, as correspondências eram poucas, com exceção da carta de Caminha, vieram dos Padres da Companhia de Jesus. Só a partir da chegada de franceses e holandeses é que os relatos se tornam mais consistentes. A documentação que trata sobre Alagoas do Século XVI ao Século XIX, às vezes faz referência ao Sul de Pernambuco, tendo em vista que a emancipação política ocorreu em 1817. Na documentação há poucas referências aos indígenas e africanos, o que pode evidenciar pouco conhecimento dos viajantes, mas também a falta de valorização dessas populações por parte dos viajantes. Apesar de descrever aspectos do Brasil, os relatos estão carregados de crenças e valores éticos, principalmente no que diz respeito à religiosidade, o que de algum modo, influencia a percepção, e, por consequência, os relatos. Essa crença aparecia até mesmo na relação entre os viajantes e os indígenas, como demonstra a passagem de Staden, Disse-lhe mais, que não se afligisse porque, se lhe comiam a carne, sua alma ia para outro lugar, onde vão também as almas da nossa gente, e ali há muita alegria. Então perguntou-me se isso era verdade. Eu respondi que sim, e ele me disse que nunca vira a Deus. Respondi que na outra vida havia de vê-lo; e quando acabei de lhe falar, deixei-o (STADEN, 2006, p. 96).

Os relatos contribuem para a construção da imagem do indígena local. Sobretudo a visão de um nativo selvagem, antropófago, que a todo o momento estava em guerra com os estrangeiros, como afirma Staden (2006, p. 37) em uma passagem de sua narrativa, diz que tinham sitiado tão bem, que não podiam sair nem entrar. Aproximavam-se do povoado; atiravam flechas para o ar, visando na queda alcançar o alvo; atiravam fogo com o fim de incendiar os tetos das casas e combinavam já de antemão o modo de devorar quando houvessem colhido. O Brasil era considerado um país selvagem e pouco explorado, que oferecia ao mesmo tempo oportunidades e perigos diversos. Uma terra onde selvagens nativos viviam em constantes guerras com os colonizadores, ao passo que, as cidades se desenvolviam. Soares retrata essas duas situações quando fala da capitania de Pernambuco, 1657 1658

FERREIRA (2012, pp, 26-38). NETO (2006).

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ISSN 2358-4912 Desta terra saíram muitos homens ricos para estes reinos que foram a ela muito pobres, com os quais entram cada ano desta capitania quarenta e cinqüenta navios carregados de açúcar e paubrasil, o qual é o mais fino que se acha em toda a costa; e importa tanto este pau a Sua Majestade que o tem agora novamente arrendado por tempo de dez anos por vinte mil cruzados cada ano. E parece que será tão rica e tão poderosa, de onde saem tantos provimentos para estes reinos, que se devia de ter mais em conta a fortificação dela, e não consentir que esteja arriscada a um corsário a saquear e destruir, o que se pode atalhar com pouca despesa e menos trabalho (SOUZA, 1587,

p. 56). A Região Sul da Capitania de Pernambuco ou Alagoas é pouco mencionada, embora haja bastante referencias a Capitania como um todo que foi descrita por Souza (1587), como um local bem desenvolvido, com destaque para Olinda, que a vila é a cabeça da capitania de Pernambuco, a qual povoou Duarte Coelho, que foi um fidalgo e como a este valoroso capitão sobravam sempre espíritos para cometer grandes feitos, não lhe faltaram para vir em pessoa povoar e conquistar esta sua capitania. Acrescenta ainda que fosse povoado por homens ricos, o que tornaria uma “terra poderosa”. A Capitania de Pernambuco foi descrita por Standen como privilegiada, sobretudo por conta de sua localização e portos. Contudo, aponta como área de grande ocorrência de conflitos com os nativos locais, relatando inclusive a luta que ocorreu quando de sua chegada nessas terras. Há relatos que descrevem algumas tribos ou etnias eram tidas como amigas, seja por serem pacíficos ou manter contato com os colonizadores. Entretanto, a maior parcela dessa representação do indígena por esses viajantes é que era considerada uma ameaça, um problema a ser resolvido, a nação de selvagens que se chama Carios (Carijós), usam peles de animais ferozes, as quais eles preparam bem para com elas se cobrirem. [...] A gente tem a pele de cor vermelha parda, por causa do sol que a requeima. Há neste país frutas da terra e das árvores, de que a gente e os animais se nutrem. É povo bem parecido, muito ladino no praticar o mal e propenso a perseguir e devorar os seus inimigos” (STADEN, 2006, p. 131).

A visão que foi formulada desde os primeiros contatos que os europeus tiveram com nativos em Pernambuco, descrevendo os nativos como selvagens, guerrilheiros e antropófagos, tendeu a permanecer até o século XIX. Em viagem ao Brasil, Staden aportou em São Vicente, e mais uma vez faz menção aos indígenas como agressivos, pois narra que ficou prisioneiro em uma tribo por cerca de oito meses, sendo ameaçado de ser devorado, afirma inclusive, que presenciou rituais antropófagos. Discussão que segue em Souza, Aqui se perdeu o bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, com sua nau vinda da Bahia para Lisboa, em a qual vinha Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor que fora do Brasil, e dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos, a qual escapou toda deste naufrágio, mas não do gentio caeté, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba; depois que estes caetés roubaram este bispo e toda esta gente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua, filho do meirinho da correição

(SOUZA, 1587, p. 61). A questão apresentada sobre o Bispo Sardinha produziu efeitos de punição na suposta matança de europeus por grupos indígenas nomeados genericamente de Caetés. Notadamente, a visão europeia justifica a presença portuguesa no espaço indígena utilizando referenciais religiosos, políticos, econômicos e culturais como superiores a nova gente “descoberta”. A visão poderia ser lida inversamente caso a escrita tivesse a percepção dos nativos. Os livros didáticos reproduziram esse episódio como verdade absoluta sem questionar ou mesmo sem evidenciar as razões históricas entre indígenas e europeus. Ideologicamente a visão sobre os indígenas que viviam na região que corresponde ao Sul de Alagoas, nas proximidades ou mesmo ao curso do Rio São Francisco, foram caracterizado como seres

495 ISSN 2358-4912 que apresentavam dificuldades ao projeto colonial. As populações ribeirinhas experienciaram contatos com europeus e outras nações indígenas, vezes como aliados, mas também, como inimigos dos que tentavam defender o espaço como estratégia de manutenção da vida nativa. Ao mesmo tempo em que indígenas são descritos como ingênuos, paradoxalmente, são apresentados como selvagens e perigosos.

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Parece que não é bem que passemos adiante do rio de São Francisco sem dizermos que gentio é este caeté, que tanto mal tem feito aos portugueses nesta costa, o que agora cabe dizer deles. Este gentio, nos primeiros anos da conquista deste estado do Brasil, senhoreou desta costa da boca do rio de São Francisco até o rio Paraíba, onde sempre teve guerra cruel com os potiguares, e se matavam e comiam uns aos outros em vingança de seus ódios, para execução da qual entravam muitas vezes pela terra dos potiguares e lhes faziam muito dano (SOUZA, 1587, p. 61).

Descrever o espaço e a gente que vivia nas Alagoas era também uma maneira de registrar as possibilidades econômicas, incluindo aí, os nativos como negócios, visto que não só, poderiam executar tarefas, mas principalmente detinham conhecimentos capazes de manter a si e aos outros – europeus. Sem as experiências de produção alimentar poderia ser quase impossível a permanência de colonos por muito tempo em determinadas áreas desta região. Ao longo deste rio vivem agora alguns caetés, de uma banda, e da outra vivem tupinambás; mais acima vivem os tapuias de diferentes castas, tupinaés, amoipiras, ubirajaras e amazonas; e além delas vive outro gentio (não tratando dos que comunicam com os portugueses), que se atavia com jóias de ouro, de que há certas informações. Este gentio se afirma viver à vista da Alagoa Grande, tão afamada e desejada de descobrir, da qual este rio nasce. E é tão requestado este rio de todo o gentio, por ser muito farto de pescado e caça, e por a terra dele ser muito fértil como já fica dito; onde se dão mui bem toda a sorte de mantimentos naturais da terra (SOUZA, 1587, p. 64).

A geografia foi traduzida como uma espécie de curiosidades, mas ao mesmo tempo produziu a identificação dos rios, lagoas, lagos, fauna, flora e a fertilidade da terra como possibilidades para produção agropecuária que nela pudesse ser desenvolvida. Foi necessário a apropriando dos saberes nativos, mas incrementando conhecimentos europeus, não só para a subsistência colonial, mas principalmente suscitar possibilidades reais de desenvolver o projeto colonial através do gerenciamento de atividades que gerassem lucros e o enriquecimento de famílias ou grupos que acreditavam na condição da superioridade histórica e natural europeia. Essa perspectiva única de apresentar a supremacia europeia em detrimento dos nativos parece perdurar até recentemente, meados do século XX, por parte da escrita sobre o período colonial e imperial. Embora, do final do século XIX para início do século XX, construiu-se uma positividade dos povos indígenas como aqueles que poderiam ser o “verdadeiro” brasileiro nativo capaz de representar uma identidade nacional, não modificou a forma de apresentar o sujeito histórico. A visão negava todo processo histórico dos povos indígenas, conduzindo-os a leitura como grupos homogêneos, atemporais, sem presente e sem futuro, só passado, neste caso, o colonial. Os viajantes e cronistas foram capazes de identificar as redes que construíam os indígenas como sujeitos históricos, as evidências podem ser lidas a partir da dependência dos europeus para conhecer e sobreviver no espaço novo. Os mesmos foram incapazes de reconhecer nos nativos uma diversidade capaz de resistir para além do tempo colonial. Talvez o que foi nomeado como “incapacidade” europeia pudesse ser entendido como mérito dos povos indígenas. Um importante papel foi desempenhado pelos cronistas e viajantes na história colonial e imperial do Brasil. Os relatos compõem material valioso para pesquisa histórica, a exemplo da carta de Caminha, que constitui uma primeira impressão do novo mundo, mas também, revela as intenções com a nova terra e a nova gente. Sejam relatos da terra, de seus habitantes, dos costumes locais, todos têm em comum a descrição minuciosa, buscando descrever aspectos diversos da vida na colônia. Deve ser ressaltado que os relatos, em sua grande maioria, foram escritos por pessoas comuns que se aventuravam no novo mundo. A literatura sobre os povos indígenas até recetentemente é fomentadora de uma visão estereotipada e de minimização das suas vidas. Notadamente, foi um projeto do europeu

496 ISSN 2358-4912 para dominação em todos os aspectos do ser indígena. A literatura formula e projeta o pensar sobre os povos indígenas no Brasil que repercute negativamente até os dias atuais.

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Considerações Finais O elogio a astúcia e a bravura dos colonizadores são evidenciadas em quase todos os textos produzidos no período. Os ataques aos nativos são descrito como ato de heroísmo, como uma espécie de justiça ou benfeitoria na medida em que salvaria os selvagens do seu atraso histórico/natural. Os critérios para elaboração de uma suposta incivilidade dos nativos são baseados, evidentemente, em modelos europeus. As estratégias dos povos indígenas para existirem nos espaços que correspondem ao atual Estado de Alagoas são apresentadas como rebeldia, selvageria ou práticas demoníacas. As guerras entre os nativos e os europeus não são traduzidas como defesa de território, assim como qualquer grupo humano lutaria para defender os espaços que consideram como necessário para manutenção e reprodução de suas espécies, mas produziram uma história linear fadada a um único fim, a extinção. Os espaços políticos, ideológicos, econômicos, religiosos e culturais tenderam massificar um ideário de ser indígena no Brasil colonial, imperial e republicano como homogêneo e inerente a determinado tempo que se transformaria num ser civilizado “menor”, capaz de obedecer às regras impostas pelas elites através das instituições criadas, organizada, administradas e coordenadas pelo Estado. O episódio dos caetés com Bispo Sardinha, por volta de 1550, “narra o banquete antropofágico promovido pelos índios caetés, quando na costa alagoana, “saborearam” em ritual antropofágico o bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha1659”, adquiriu um significado particular e histórico para os povos indígenas que viveram e vivem em Alagoas as margens do Rio São Francisco, mas repercutem na formação da sociedade brasileira, através das escritas e dos ensinos escolar e acadêmico, quando reproduziram as narrativas por uma única versão da história, nesse caso, a oficial. Referências COSTA, Craveiro. A emancipação das Alagoas. Maceió, Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Cultura, Arquivo Público de Alagoas, 1967. FERREIRA, Gilberto Geraldo. O ensino da história indígena: uma análise sobre os livros didáticos de história em Alagoas e em Pernambuco. Revista de história [7] Petrolina, jun./nov 2012. Pp. 26-38. GASPAR, Lúcia. Viajantes (relatos sobre o Brasil, Século XVI a XIX). Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: . Acessado em 06/08/2009. NETO, João Lima Sant´anna. Alegres trópicos: primeiras impressões dos cronistas e viajantes sobre o tempo e o clima no Brasil Colonial. Revista Bibliográfica de Geografía y CienciasSociales (Serie documental de Geo Crítica), Universidad de Barcelona. Vol. XI, nº 691, 5, 2006. p. 71-92. RINALDI, Lucinéa. Cronistas de viagem e viajantes cronistas: o pêndulo da representação no Brasil Colonial. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2007. (Tese de Doutorado em Letras). SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=38095. Acessado em: 28/07/2014. STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Editora Martin Claret Ltda., São Paulo, 2006.

1659

Almeida (2011, pp. 22-23).

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AS TROPAS REGULARES DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO CONTEXTO DA GUERRA DOS SETE ANOS Giovane Albino Silva1660 A segunda metade do século XVIII representou um importante momento para as forças militares de Portugal. A ascensão do marquês de Pombal, principal ministro no reinado josefino, foi acompanhada por reformas que acarretou uma série de transformações em diversas esferas do governo, inclusive a militar. A instabilidade política das primeiras décadas foi caracterizada, em parte, pela participação lusitana na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), a qual demandava esforços para o estabelecimento de suas tropas tendo em vista defenderem as fronteiras das ameaças e ataques dos inimigos1661. A guerra encabeçada pela França e Inglaterra, forçou a entrada dos portugueses ao lado dos britânicos contra os franceses e, sobretudo, os espanhóis, seus vizinhos territoriais e também antigos concorrentes das possessões ultramarinas americanas. A facilidade pela qual as tropas espanholas invadiram Portugal em 1762 evidenciou as condições deploráveis em que se encontrava o sistema defensivo lusitano e a precariedade da sua estrutura militar. Por indicação de Jorge II, rei da Inglaterra, a Coroa portuguesa contratou o general prussiano Guilherme Ernesto, conde reinante de Schumbour-Lippe, a fim de reorganizar as tropas através de sua experiência com o exército da Prússia, tido, na época, como um dos mais modernos e eficientes1662. Apesar do governo administrado por Pombal ser considerado importante por estabelecer diretrizes de reformulação militar é importante perceber que até meados de 1759, “o governo de d. José não tivera qualquer preocupação militar. E, seguindo, os passos de seu pai, d. João V, não tivera também qualquer cuidado em manter uma organização de tropas por mínima que fosse”1663. As mudanças, portanto, surgiram diante da conjuntura bélica vivenciada por Portugal, mediante o quadro de instabilidade política que estivera mergulhado, necessitando, para tanto, fortificar sua estrutura militar. As tensões procedentes da guerra na Europa envolveram também os espaços coloniais. Na América portuguesa havia a preocupação com os territórios tendo em vista sua proximidade com possessões espanholas no continente e as batalhas que se desenvolveram nas fronteiras entre as regiões de Portugal e da Espanha. Como afirmou Fernando Novais, se desenvolveram “áreas de tensões” paralelamente aos conflitos ocorridos no reino, que exigiram atenções e preparações das autoridades lusitanas com suas terras americanas1664. Dessa forma, a guerra inflamara batalhas na colônia,

1660

Mestrando em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob a orientação da professora Dra. Kalina Vanderlei Silva. 1661 Para mais detalhes sobre a conjuntura política vivenciada por Portugal no governo de d. José I e do marquês de Pombal, ver as seguintes obras: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José. Na sombra de Pombal. 2ª ed. revista e ampliada. Lisboa: Temas e Debates, 2008; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: o Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 1662 “O conde de Lippe era um discípulo de Frederico II da Prússia, o rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios. A técnica usada nos famosos regulamentos prussianos, que a Europa toda imitou depois das vitórias de Frederico II, constava de uma decomposição do tempo: quanto mais se multiplicaram suas subdivisões, melhor se articulava, desdobrando seus elementos internos sob um olhar que os controlava”. COTTA, Francis Albert. A fabricação do soldado português no século XVIII. In: POSSAMAI, Paulo (Org). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na idade moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 52. 1663 SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: História de homem, militarização e marginalidade na capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, p. 56. 1664 Como bem observou Fernando Novais, ao lado das zonas de tensão instauradas entre as potências dominantes (França e Inglaterra) na Europa, nas colônias ibéricas foram se constituindo outras áreas de conflitos, sobretudo na região platina. Eles ocorreram paralelamente e se inter-relacionavam continuamente. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 51.

498 ISSN 2358-4912 demandando a mobilização de homens de diversas capitanias e ordenando cooperação militar para a sua defesa1665. A Capitania de Pernambuco embora não estivesse centralizada nas grandes áreas de tensões emergidas na Guerra dos Sete Anos, fora importante pela sua posição estratégica entre as capitanias situadas ao norte do Estado do Brasil, sendo requerida pela Coroa para empreender esforços a fim de reestabelecer suas fortificações e estruturar suas tropas para a defesa do nordeste da América portuguesa1666. Nesse sentido, este artigo analisa a maneira pela qual a Capitania de Pernambuco estivera inserida no contexto bélico da Guerra dos Sete Anos, observando a disposição da sua organização militar, a situação das tropas regulares1667, estabelecendo um diálogo com as reformas militares ocorridas em Portugal. Buscamos entender, também, se as tropas regulares da Capitania estiveram alinhadas com as reformas militares instituídas no reino a partir dos esforços empreendidos com a contratação do conde de Lippe. As tropas regulares presentes em Pernambuco estiveram dispostas da seguinte forma: dois Regimentos de infantaria e um do corpo de artilharia, distribuídas na vila do Recife (Regimento e artilharia) e na cidade de Olinda (Regimento), sob a supervisão dos governadores, cuja formação, manutenção e administração estiveram sob sua responsabilidade. Na missiva enviada em março de 1759 ao secretário de Estado do Reino e Mercês, Sebastião de Carvalho e Melo, o então governador da Capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, discriminou as tropas das “nove Capitanias Mores deste governo”, expondo o número dos homens alistados em cada corpo militar sob sua jurisdição, conforme descrito no quadro: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

QUADRO – ANO DE 17591668 NÚMERO DE CORPOS

MILITARES

2 Regimentos de Infantaria

1.304

1 Companhia de Artilharia

121

4 Terços Auxiliares

2.136

1 Terço de Henrique

1.323

9 Corpos de Ordenanças

9.618

4 Regimentos de Cavalaria

2.123

1 Corpo de Pardos

1.401

TOTAL

18.026

1665

Essa ajuda militar não fora específico dessa época, tendo ocorrida em diversos momentos mediante a necessidade de contingente militar para a defesa de determinada região. Um dos espaços que recebeu mais assistência militar foi a colônia de Sacramento. Ver POSSAMAI, Paulo César. Soldados do norte nas guerras do sul: o recrutamento militar na Bahia e Pernambuco para a Colônia do Sacramento. CLIO. Série História do Nordeste (UFPE), v. 29, p. 1-20, 2011. 1666 Ao longo da segunda metade do século XVIII, a Capitania de Pernambuco foi aumentando sua jurisdição nas regiões situadas ao norte, ampliando seu poder administrativo nas chamadas “capitanias anexas” (Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará). Mais detalhes ver SALGADO, Graça (Coord). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1667 Entende-se por tropa regular, também conhecida como tropa de linha, a principal força da Coroa portuguesa nos territórios ultramarinos, sendo as únicas que eram ao mesmo tempo permanentes, pagas e profissionais. SILVA, Op. Cit., p. 77. 1668 Quadro constituído a partir dos dados retirados da seguinte fonte: AHU_ACL_CU_015, Cx. 89, D. 7194.

499 ISSN 2358-4912 As chamadas “nove Capitanias Mores” retratada neste ofício e no qual se fez referência às suas guarnições eram: Olinda, Recife, Igaraçu, Goiana, Itamaracá, Serinhaém, Porto Calvo, Alagoas e Penedo1669. O quadro expôs um “rezumo geral de toda a infantaria, artilharia, auxiliares, Henriques, ordenanças de pé, cavallo e pardos” presentes nas regiões explicitadas, somando 18.026 homens aptos para as atividades militares passíveis de “poder cada huma socorrer proporcionalmente aquella que se achar ameaçada ou no receyo de invazão”1670. Os Regimentos de infantaria, abarcando 1.304 militares, eram formados por 24 companhias, divididas igualmente entre a vila do Recife e a cidade de Olinda, auxiliadas por um corpo de artilharia constituída por 121 pessoas, totalizando 1.424 homens, que compunham as tropas regulares da Capitania. Segundo os dados fornecidos na documentação, essa era a força militar do exército português disponível em Pernambuco anos antes da explosão da Guerra dos Sete Anos em Portugal. É importante ressaltar que os conflitos haviam sido iniciados em 1756, mas o efetivo envolvimento dos lusitanos ocorreu somente nos últimos anos, sobretudo a partir de 17621671. No início da década de 1760 as tensões acerca da guerra foram crescendo e as ordens para se reparar, completar e preparar as tropas foram sendo intensificadas. Em Pernambuco, uma carta enviada pelo Conselho Ultramarino à Luís Lobo da Silva, em 21 de abril de 1762, solicitava a arregimentação de militares entre seus moradores em virtude do “atual estado em que a maior parte das potencias da Europa se acha embarassada com uma sanguinolenta guerra e a diversidade de interesses que por ella se podem suscitar”. E assim requereu o governador nos cuidados e com a segurança da marinha tendo em vista a proteção dos territórios costeiros: “com que repentina e inopinadamente possa sem justa causa infringir o socego publico alguma das potências beligerantes”, além de exigir a ajuda dos habitantes com a doação de diversos utensílios, tais como cavalos, carroças e até mesmo escravos para auxiliarem as tropas da Capitania1672. E dessa forma Luís Lobo foi discorrendo acerca dos seus empenhos para abastecer militarmente sua região mediante as informações sobre a intensificação dos conflitos provenientes da Guerra dos Sete Anos em Portugal. Dessa forma, percebe-se a preocupação e a necessidade do governador em fortalecer a região marítima lusitana que beirava a orla de Pernambuco e suas anexas, visto que os ataques das potências beligerantes só poderiam se suceder pelas vias fluviais. E como resposta à solicitação da Coroa Luís Lobo reiterava, em primeiro de agosto do mesmo ano: “não haverá falta em serem rebatidas as nações que como inimigas nos procurarem, por me ter adiantado no preparo, segurança das fortalezas e marinhas de sorte que não omito instante de tempo no que julgo necessario para a melhor defeza”1673. Ele demonstrava os esforços empreendidos na sua administração, evidenciando a constante disposição para proteger o litoral. É interessante observar que todo esse discurso desenvolvido por Luís Lobo se inseria dentro de uma conjuntura política que buscava valorizar os feitos e os exercícios dos oficiais representados pelas prestações de serviços à Coroa. As intencionalidades na escrita para demonstrar a dedicação do governador em relação às solicitações enviadas do reino fazia parte de uma relação, cujos fins específicos eram obter proveitos numa lógica de recompensas através de tensas, mercês ou honrarias. Os “serviços das armas” era uma das formas para obtenção de prestígio social onde os exercícios militares numa campanha ou as conquistas territoriais em determinada conquista poderia representar ganhos como formas de retribuição pelas atividades realizadas1674. Nesse sentido, não é de se estranhar que o governador de Pernambuco quisesse impressionar o rei ao demonstrar sua dedicação para as V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1669

Estas regiões eram mantidas pelo governo de Pernambuco. Para além delas havia também as “da Barra do Rio de Sam Francisco do Sul e das tres da Parahiba, Rio grande do Norte e Cyarâ que tendo Cappitaes Mores com Patentes Regias pelas quais lhe competem o governo econômico de cada huma não deyxão de ficar subordinada ao de Pernambuco”. Idem. 1670 Idem. 1671 Para mais detalhes, ver: MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças militares no Brasil colonial. In: POSSAMAI, Paulo (Org). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na idade moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. 1672 AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7668. 1673 Idem. 1674 O livro de José Eudes Gomes mostra a relação da prestação de serviços militares em consonância com retribuições e recompensas oferecidas pela Coroa na América portuguesa. GOMES, José Eudes. As milícias d’el Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

500 ISSN 2358-4912 tarefas solicitadas por d. José I, valorizando seus exercícios na defesa do território e na preparação de suas tropas, o que, no entanto, poderiam não corresponder com a realidade traçada por Luís Lobo nesses documentos. A sua extrema dedicação aos requerimentos régios em relação à urgência na reparação das fortificações e os cuidados com as tropas é constante nos escritos analisados, como poderemos observar nos relatos seguintes. Antes mesmo da Coroa enviar a carta que exigia a mobilização militar em Pernambuco para os conflitos que poderiam ocorrer em sua costa, Luís Lobo, em abril de 1762, havia adiantado informações sobre a situação de suas tropas reinterando o preparo que existia na conservação do seu território, afirmando que estavam abastecidas dos apetrechos, munições e tudo mais necessário para sua defesa e que os Regimentos, auxiliares, Henriques e cavalaria estavam “geralmente completos [...] da mesma sorte que as ordenanças”. O governador continuou relatando que: “toda a extensão desta grande costa [...] se acha guarnecida de gente competente a embarca-lo [nas embarcações lusitanas] e destruir todas que o intentarem”1675. Luís Lobo não cansou de reiterar o preparo militar da Capitania e em agosto do mesmo ano enviou outro ofício ao secretário de Estado do Reino e Mercês, Sebastião José de Carvalho e Melo, ressaltando os esforços empreendidos para defender a região costeira, no qual dizia:

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Os portos, barras e surgidouros capazes de desembarque da dilatada marinha deste governo que não comprehende menos de quatrocentas legoas de extensão se acham cobertos com as trincheiras e fortificações que mostram as plantas que na dita conta remeto com guarnições destinadas a defendê-las quando sejam invadidas e quantos proporcionados a renderem os primeiros nomeados a defeza dellas; os regimentos completos, e as fortalezas e prezidios reforçados com as que eu julguei precizas e ordem distribuídas a serem aumentadas ao primeiro sinal de rebate com as milicias, na parte que para a ocaziao eu contemplo necessario alem de estarem surtidas dos apetrexos, municoens, armas, e mantimentos que o estado do paiz me permitio1676.

A imagem transmitida pelo governador ao Conselho Ultramarino reflete um cenário de organização das forças militares luso-brasileiras na Capitania de Pernambuco e dos seus cercos, montados para resistir aos ataques marítimos com o estabelecimento de fortalezas e trincheiras espalhadas pelo litoral além do apoio que as milícias poderiam oferecer às tropas regulares para conduzir os conflitos armados contra os inimigos. Contudo tal situação não se prolongou por muito tempo, pois, em 14 de agosto de 1762, novamente o governador enviou uma missiva onde destacou “o estranho procedimento com que a monarquia da Espanha se tem havido e efetivamente entrou no empenho de perturbar o nosso socego”, e fez questão de lembrar uma solicitação que havia requerido sobre os “apetrexos, armas e muniçoens”, solicitando que enviasse o mais rápido “possível na primeira embarcação que sair desta Corte”1677. Dessa forma é necessário refletir sobre toda a pretensa preparação militar desenhada por Luís Lobo, observando-a como uma forma de impressionar o rei em relação aos serviços prestados na defesa da colônia, chegando, quando possível, a maquiar os problemas que afligiam as tropas na sua Capitania. O requerimento de auxílio, citado acima, em relação aos materiais como “apetrexos, armas e muniçoens” fora feito quatro meses depois de ele ter falado sobre as qualidades de suas tropas e dos elementos necessários para enfrentamento de batalhas estando, inclusive, “surtidas dos apetrexos, municoens, armas”. É possível que ele almejasse criar uma imagem sobre as tropas regulares de Pernambuco que não correspondia à realidade e da qual não conseguiu sustentar por muito tempo, findando, para tanto, em solicitar auxílio régio para abastecer seus regimentos. É notório que este período, assim como os outros contemporâneos de guerra, fora caracterizado por intensas mobilizações militares, efetivadas na tentativa de preenchimento dos corpos, na organização das forças que atuavam em momentos de necessidade e, sobretudo, por tentar restabelecer as capitanias com mão de obra guerreira para defender as fronteiras coloniais dos ataques inimigos. As tropas eram a maior preocupação da Coroa portuguesa nesse momento, sobre elas eram despejadas a responsabilidade de assegurar o domínio dos territórios e, portanto, foram alvo central de discussão

1675

AHU_ACL_CU_015, Cx. 97. D. 7658. AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7688. 1677 AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7699. 1676

501 ISSN 2358-4912 entre as autoridades do período, embora as precariedades e as dificuldades fossem imensas para manter as dispendiosas tropas regulares em condições estáveis de sustentação1678. Luís Lobo ressaltou nos movimentos finais da guerra em 1763 as vitórias que permitiram aos portugueses garantir seu território na Europa, especialmente contra os espanhóis. Destacou a rapidez das reorganizações das tropas, sob a égide da disciplina militar comandada pelo conde de Lippe e a eficácia no manejamento dos corpos que “não só fortaleceo o seu exército chegando ao mais crescido que jamais se viu em Portugal”, possibilitando os “venturosos succesos” na guerra e fazendo “evacuar as provincias de traz os montes, beira e contido nos limites dos domínios da Espanha sem se animarem a continuar as injustas inspecoens com que nos invadiram”1679. Impressionado com os resultados obtidos pelas tropas portuguesas no reino o governador retratou a importância da contratação de militares estrangeiros experientes em guerras, como o conde de Lippe, para os sucessos lusitanos na Guerra dos Sete Anos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A política que S. Magestade teve de puxar para seu Real Serviço o grande numero de officiaes criados na guerra de Alemanha, foi tão necessária que sem ella seria impraticável conseguisse em tão dilatado tempo infundir nos nacionais a inteligência e pratica de a fazer com o acerto competente1680.

Ao mesmo tempo ele não hesitou em solicitar à Coroa a transferência de oficiais engajados nas reformas e conhecedores das artes de guerra introduzidas em Portugal e que modificaram a situação das suas forças militares, afirmando que, Não deixaria de ser conveniente que o mesmo se destinasse para as capitais dos governos da América alguns dos referidos officiaes que lhe não fossem suspeitozos para ensinarem as tropas que nellas entrarem, e facilitar lhes o conhecimento do útil serviço da Artilharia, minas e mais partes de que se compõem esta necessária ciência sem a qual se não pode consolidar com segurança a preciosidade da paz1681.

A chegada desses oficiais seria, no dizer do governador, bastante importante para “consolidar com segurança a preciosidade da paz” na Capitania, possibilitando o domínio do território americano, o qual não recebera, até esse momento, ajuda militar. Segundo a historiadora Christiane Pagano a transferência de oficiais estrangeiros a pedido do marquês de Pombal para efetivar mudanças estruturais nos corpos militares na América portuguesa foi promovida em 1767, com o comando do general austríaco Johann Heinrich Böhm1682. O comentário de Luis Lobo é interessante na medida em que demonstrava a preocupação com a organização de suas tropas, solicitando a vinda de oficiais experientes na guerra e que pudessem ensiná-las, dando-lhes uma configuração diferente e mais aproximada das táticas empreendidas pelos exércitos europeus. Dessa forma, observa-se que as reformas militares empreendidas pelo conde de Lippe em Portugal não havia chegado à Capitania de Pernambuco no tempo da Guerra dos Sete Anos e muito provavelmente não foram implementadas nos anos posteriores uma vez que não encontramos registros que permitissem observar a reformulação das táticas nas tropas regulares de Recife e Olinda sob supervisão de oficiais europeus e a regência da Coroa, com o intuito de “atualizar” os corpos militares. Diante dessas análises percebemos que as mobilizações dos Regimentos ocorrido nesse contexto, com o preenchimento das tropas e uma tentativa de militarizar a sociedade, reforçando o litoral contra 1678

Para observar outros momentos de mobilização militar e a precariedade das tropas regulares na Capitania de Pernambuco durante o período colonial, ver: SILVA, Op. Cit., O miserável soldo. 1679 AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7767. 1680 AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7767. 1681 AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7767. 1682 o general austríaco Johann Heinrich Böhm, que desembarcou no Rio de Janeiro no início de 1767, nomeado por Pombal e “encarregado do comando geral de todas as tropas existentes no Brasil, que devia unificá-las e organizá-las de acordo com as instruções estabelecidas pelo conde de Lippe”. MELO, Op. Cit., MELLO, Christiane Figueiredo Pagano. Forças militares no Brasil colonial: Corpos de Auxiliares e Ordenanças na segunda metade do século XVIII. Rio de Janeiro: E-Papers, 2009, p. 128.

502 ISSN 2358-4912 investidas dos inimigos, seguiram o movimento que ocorreu em outras épocas, ou seja, foram reflexos do momento de guerra vivenciado por Portugal e não necessariamente fruto das reformas militares desenvolvidas pelo conde de Lippe. Além do mais, a situação das tropas regulares desenhada por Luís Lobo merece algumas relativizações, especialmente acerca da pretensa organização e preparação relatada sobre os corpos militares tendo em vista que estariam servindo aos interesses discursivos com objetivos recompensatórios e, portanto, poderiam maquiar problemas existentes no cotidiano dos soldados.

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O CÁLICE PROIBIDO: CONTATOS INTERÉTNICOS ENTRE MISSIONÁRIOS CARMELITAS E INDÍGENAS TARAIRIÚ NA CAPITANIA DA PARAÍBA Gláucia de Souza Freire1683 Introdução Corria o ano de 1739 quando Frei Luís de Santa Teresa, que há pouco tempo ocupava o cargo de Bispo de Pernambuco1684, soube de certos eventos que ocorriam no aldeamento de Boa Vista, na região de Mamanguape, localizado no litoral da capitania da Parahyba. Tratava-se de um ritual mantido entre os indígenas que ali deviam, segundo o projeto colonial, aprender os dogmas católicos, converterem-se à Igreja e tornarem-se súditos de El Rei, abandonando os antigos costumes, praticando em seu lugar os ritos que lhes eram ensinados. Tais indígenas procediam dos interiores da capitania, pertenciam à família linguística Tarairiú, sendo os líderes do ritual integrantes de dois povos: os Kanindé e os Xukuru. Acontece que eles mantiveram seus antigos costumes, mesmo diante dos missionários carmelitas descalços que administravam Boa Vista e catequizavam seus aldeados. O ritual tinha por base a acácia jurema, planta típica de climas áridos e semiáridos que tem propriedades enteógenas, possibilitadoras segundo seus adeptos, de comunicar as esferas humana e divina, transcendendo as barreiras entre estes universos, aproximando-os, contatando-os, tornando-os íntimos1685. O transe místico – ao qual apenas os escolhidos pelas entidades da Jurema Sagrada poderiam participar – ocorria a partir da mistura de uma beberagem produzida das raízes da acácia, beberagem fermentada, tomada pelos líderes, somada ao fumo proveniente das cascas da mesma planta. Em um círculo, ao som dos cânticos que aprenderam com seus pais, seus antepassados, aqueles Tarairiú adentravam ao território mítico conhecido apenas por eles próprios, caminho encontrado somente em presença e comunicação com as divindades. A partir do ritual, tinham visões de seus encantados, de seus mestres1686, formas espirituais desconhecidas para os missionários, para a Igreja Católica, para os colonizadores. Neste artigo, objetivamos entender como se processou essa face da circularidade cultural no Brasil Colonial, no sentido em que não apenas conviviam nos aldeamentos, neste caso o de Boa Vista, indivíduos que integravam diferentes povos indígenas, como também missionários carmelitas, que permitiram a continuidade do ritual, como consta na denúncia do então capitão-mor da Parahyba, Pedro Monteiro de Macedo, que escrevera ao rei D. João V, em 17401687. A carta de Pedro Monteiro de Macedo ao rei está entre os documentos digitalizados pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco, ligado ao Ministério da Cultura brasileiro, que reúne pesquisadores brasileiros e portugueses na tarefa 1683

SEEPB. Email: [email protected] Desde 1676, quando fora instituído, o Bispado de Pernambuco era o responsável pelos assuntos eclesiásticos não apenas da capitania de mesmo nome, mas também de suas vizinhas, entre elas a da Paraíba. 1685 A Jurema tem, aplicado sobre si, um caráter simbólico e polissêmico. Como ciência, é o conhecimento que sobre suas propriedades têm os mestres; como árvore sagrada, é o ícone de um culto mágico-religioso que guarda segredos desde tempos pré-coloniais; como cidade, constitui um só pé ou vários deles, onde os mestres fizeram morada eterna. Atualmente a jurema se encontra presente em cultos umbandistas, essencialmente sincretizada com elementos de religiosidade africana e católica, além de manter contato cada vez mais próximo com a doutrina espírita (LUZURIAGA, 2001). 1686 Os encantados eram reinos idealizados pelos adeptos dessa prática religiosa. Alguns deles: Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Josafá e Fundo do Mar. Ver: BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil (1971). Por sua vez, os mestres são como guias para que os humanos escolhidos pelos encantados adentrem esse reino místico. Geralmente, os mestres vivos em matéria humana, incorporam aquelas entidades, também mestras, vivas apenas espiritualmente. Exercem outros papéis além de guias espirituais por ocasião ritualística: atuam cotidianamente, orientando cura para doenças que porventura aflijam seus adeptos. A acácia jurema tem propriedades terapêuticas, além das enteógenas (ASSUNÇÃO, 2010). 1687 Carta de Pedro Monteiro de Macedo ao rei. In: CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V. 1740, julho, 9, Lisboa; AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 920. 1684

504 ISSN 2358-4912 de preservar a documentação ascendente e descendente do período colonial (ascendentes são os documentos que iam da colônia à metrópole, fazendo assim, informes ou pedidos a El Rei, enquanto os descendentes faziam o caminho inverso, anunciando, geralmente, as decisões do rei de Portugal, seu cumpra-se). O projeto conseguiu microfilmar e digitalizar as referidas documentações de todas as antigas capitanias lusas, sendo que a dita carta, bem como o parecer do Conselho Ultramarino e parte das explicações do governador de Pernambuco estão catalogadas na documentação desta capitania. As correspondências entre o governador de Pernambuco, o capitão-mor da Parahyba e o Conselho Ultramarino, constituem nossas fontes principais. A Nova História Cultural contribuiu para o fortalecimento de um método investigativo que primaria por objetos, temporalidades e espacialidades recortadas de maneira a valorizar pequenos eventos, embora com pretensões analíticas amplas, contextuais, como é o caso da Micro-História. Para analisar as fontes, portanto recorremos ao paradigma indiciário, um estudo a partir das pistas, dos detalhes, em prol da narrativa que, longe de pretender a verdade dos fatos, aponta uma visão sobre os eventos, um olhar, entre inúmeros que são ou serão lançados. O conceito de circularidade cultural possibilita-nos refletir acerca dos contatos, em relação com a idéia transculturação (GINZBURG, 1987). Refletir sobre as sensibilidades e as subjetividades presentes entre indígenas e missionários que integraram o ritual da Jurema Sagrada, traz a possibilidade do diálogo com estudos de Sociologia e Antropologia, suscitando discussões acerca da transcendência e das identificações entre os códigos interculturais (GEERTZ, 1989).

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De contextos e contatos: primeiros olhares Após a Junta das Missões de 1739, o Bispo de Pernambuco apressa-se em mandar à Parahyba, um visitador, frei Félix Machado Freire, indo juntamente com Francisco Ferreira Pires, capitão da Ordenança, e o padre Ignácio Gonçalves Requião ao aldeamento investigado. Como a Inquisição não teve tribunais implantados no território brasílico, as Juntas das Missões, compostas pelas autoridades seculares, eclesiásticas e representantes das instâncias inquisitoriais, eram convocadas quando da necessidade de discutir, investigar ou punir casos suspeitos de heresia ou heterodoxia. O visitador deveria justamente investigar se o ritual consistia em feitiçaria e em qual instância deveria ser julgado. Em Portugal, a feitiçaria, tomada como uma heresia, passa a ser jurisdição do Santo Ofício, aí instaurado entre 1536 e 1540. Ocorre que ela era julgada não só inquisitorialmente, mas também nas esferas civil e eclesiástica (FEITLER, 2007: 163), passando assim a ter foro misto. Um dos principais objetivos das visitações era combater o judaísmo, religião condenada, práticas vigiadas e consequentemente punidas como, bigamia, adivinhação, feitiçarias, deixavam um tanto mais movimentadas as Mesas, enquanto a luta entre as “forças divinas” e as “forças diabólicas” passava pelo primeiro grande enfrentamento. Acontece que Félix Machado Freire age com rigidez e, no parecer desfavorável do Conselho Ultramarino, imprudência1688. Ao chegar a Boa Vista e anunciar a prisão das lideranças indígenas, acusadas de feitiçaria, os demais aldeados empreendem uma reação, enfrentada pela Ordenança que acompanhava frei Félix Machado. Do embate, que feria os princípios da guerra justa1689 – segundo a norma estabelecida pela Coroa lusa, o enfrentamento bélico aos indígenas só deveria ocorrer em caso de resistência à conversão, sendo que a maior parte dos missionários apoiava os conflitos armados apenas assim – resultaram oito mortes e quatro indígenas feridos gravemente. Assim escreve Pedro Monteiro ao rei, dando queixa do equivocado proceder do frei. Ao Bispo, o capitão-mor retira toda culpa, atribuindo o insucesso da missão do visitador ao próprio e ao governador de Pernambuco, Henrique Luís Pereira que, segundo ele, estava a invadir os limites da capitania da Parahyba sem lhe informar ou pedir a devida licença, em desrespeito às suas funções, de braço do rei em terras coloniais. É válido salientar que, como informa Irineu Ferreira Pinto em “Datas e notas para a História da Paraíba”, em 1746 eram doze aldeias sendo duas administradas por missionários beneditinos (Jacoca e 1688

Carta do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. 1741, julho, 1, Recife.; AHU_ACL_CU_015, Cx. 56, D. 4884. 1689 A guerra justa fora aprovada no Regimento de 1548, de Tomé de Souza e seria a responsável pela justificativa à destruição de diversas aldeias. A opressão seria intensificada por Duarte da Costa e também por seu sucessor, Mem de Sá.

505 ISSN 2358-4912 Utinga, ambas unindo caboclos de língua geral), três por carmelitas (duas pelo Carmo da Reforma – Baía da Traição e Preguiça ambas povoadas por caboclos de língua geral – e uma por religioso de Santa Teresa – Boa Vista, na qual viviam indígenas Canindé e Xucuru), duas por capuchinhos (Cariris e Brejo, a primeira povoada por índios Tapuia e a segunda por indivíduos Fagunde), uma por religiosos do Hábito de São Pedro (Campina Grande, sendo povoada por Tapuia caucheentes [Kavalcante?]), uma por jesuítas (Corema, povoada por índios Tapuia), e três sem missionários1 (Panati, Pega e Icó Pequeno, todas povoadas por Tapuia) (PINTO, 1977: 149). Indicativo de que a situação missionária não era das mais saudáveis na Paraíba, pela escassez de regulares e seculares dispostos a se responsabilizarem pelos aldeamentos em troca das côngruas que recebiam, o que ocorria desde o início do século XVIII. É também devido a tal fator que se proporia a união de aldeias na Paraíba por essa época (MEDEIROS, 2009: 13-17). O sentimento, contudo, de pertença e de filiação às tradições acabaram por legitimar e intensificar, em muitos indivíduos, a resistência. É válido destacar que essa resistência não era unânime, havendo conversões sinceras ao catolicismo, arrependimento por aquilo que era considerado pecado pela Igreja Católica e ocorreu também das crenças se misturarem, se interpenetrarem, códigos criados e recriados, adaptados, como nos fala Roger Bastide (1971) ao descrever o culto à Jurema Sagrada, no Toré, no começo do século XX. As heranças e as renúncias demonstram as possibilidades de crença individual e coletiva, onde apenas uma religião era aceita pelo poder e (im)posta, mas onde também se desenvolviam sentimentos de fé e espiritualidades destoantes, que sofriam perseguições, mas que eram abrigadas pelo cotidiano, cotidiano que ora legitimava ora burlava as normas e instaurava uma cumplicidade entre estas crenças e seus adeptos. Esses sentidos não apenas prestados, mas imanentes ao campo do religioso, nos possibilitam entender a necessidade que sentiam os adeptos do ritual da jurema de mantê-lo, apesar de estender seu conhecimento e a intimidade de sua prática aos representantes católicos no aldeamento. Possivelmente enxergaram nessa alternativa o caminho para a sobrevivência de seus costumes: permitir que os carmelitas conhecessem parte de seus segredos rituais, enquanto os mesmos missionários adentravam a esses segredos, escapando aos princípios da catequese colonial, tornava estes dois grupos cúmplices. O contato com o sagrado, como reflete Peter Berger (1985), um contato próximo, no sentido em que era possível contemplar o divino, ao fugir do cotidiano. O cosmos religioso transcende e inclui o homem, faz-se realidade e atribui sentido à existência humana – como atribuía aos adeptos da jurema não apenas um acolhimento diante dos enfrentamentos militares, mas uma sensação de poder, porque conheciam aquele universo, diferente dos colonizadores. Então estariam os carmelitas em busca de conhecer o ritual para dominá-lo e extirpá-lo, sendo sua interatividade com a jurema um jogo político? Ora, sabemos que as missões tinham funcionalidades para além da educação religiosa, mas atuavam politicamente. Acontece que os carmelitas não comunicaram ao Bispo este procedimento, Bispo que pertencia à mesma ordem. Este fator aponta para outra possibilidade: a de que houve uma aproximação com o místico por parte daqueles missionários, místico que é característico dos ensinamentos e das experiências da principal reformadora da ordem, Santa Teresa D’Ávila. Assim, cabe aproximar os indícios e analisar, pelas fontes, as subjetividades que envolveram tanto aqueles indivíduos Tarairiú quanto os missionários de Boa Vista.

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Sobre transcendências e adaptações Nascida aos 28 de março de 1515, na cidade de Ávila, Espanha, Teresa de Ahumada Sanchez e Cepeda, se tornaria uma bela e polêmica jovem. Descendente de judeus, seu pai comprou um título de nobreza que cuidava em não desonrar, ao que era desafiado cotidianamente pela filha. Devido a isso fora levada ao convento das agostinianas, consagrado a Nossa Senhora das Graças, onde se recusa a permanecer, diante das regras rígidas. Daí sairia para o Convento da Encarnação que mantinha certos traços mantenedores da hierarquia social entre as irmãs, além de não exigir a clausura. Até aqui, os sacrifícios de Teresa não eram tão severos. Apenas aos 39 anos ela converte sinceramente sua alma, entregando-se a Cristo. É também com esta idade que passa a ter experiências de êxtase cada vez mais intensas e a atuar dentro da Ordem do Carmelo também em disposições políticas, sugerindo reformar a Ordem, fazê-la voltar às regras primeiras, propondo aquilo que tinha reprovado entre as agostinianas: a rigidez, o sacrifício das próprias vontades para honra e louvor a Deus. Santa Teresa se entrega a Cristo e o sente em espírito de tal forma que estas experiências se transpõem ao corpo físico,

506 ISSN 2358-4912 material, mas que se faz morada, castelo interior de Jesus, a quem se consagra, nome que adota e ao qual se doa1690. A Ordem Carmelita recebe esse nome em função de seu patrono, Santo Elias que, segundo crêem os cristãos foi arrebatado aos céus, livre da morte terrena. O local onde teria ocorrido esse evento é o Monte Carmelo, em Samaria, na Palestina. É apenas no século XII que um grupo de cruzados resolve assumir a postura de eremitas, junto ao Monte Carmelo, o que origina a ordem, que tinha por madrinha de sua fundação, a Virgem, Nossa Senhora do Carmo. Diante de reformas e dissensões, acaba por se dividir em três grupos: os Observantes (fiéis às antigas regras), os Descalços (incorporam a reforma de Santa Teresa d’Ávila, com regras mais rígidas) e os Reformados (seguiam a reforma turônica) (ALBUQUERQUE, et al, 2005:23-5). Na capitania da Parahyba, os primeiros carmelitas chegam em 1591, sendo ligados à antiga Observância e à Reforma de Turon (COSTA, 1976). Vieram com o objetivo de implantar e desenvolver missões, sendo que nos anos subseqüentes, estas receberam também carmelitas descalços, religiosos de Santa Teresa. Pereira da Costa caracteriza-os como pertencentes a uma “Ordem mendicante, e não podendo possuir bens de raiz, segundo a sua regra, não tinham os religiosos renda alguma e viviam de suas missões e esmolas e de uma ordinária (...) que recebiam da fazenda real, por concessão régia” (COSTA, 1976: 55). Antes disso, o autor destaca a ação dos carmelitas descalços como missionários empenhados em transmitir os ensinamentos católicos pelas possessões lusas no ultramar. Dessa forma, apegados a seus dogmas e a sua crença, os missionários de Boa Vista empreenderam catequese aos indígenas ali aldeados. O que singulariza essa missão é justamente o envolvimento deles com o ritual da jurema, como revela Pedro Monteiro de Macedo ao Conselho Ultramarino:

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transportando-os do seu Sintido ficão como mortos, equando entrão emSi dabebedeira, Contão as vizoens que o diabo lhes Reprezenta [aos índios], Senão he que emSpirito os Leva as partes deque dão noticia (...) clerigos, Frades, Secullares, Sevallem defeiticeiros para as Suas curas, eos que menos peccão neste particullar uzão depallavras depanos, edeoutras superstiçoenz deque Sevalle toda esta gente 1691

O contato com o místico, portanto, caracteriza tanto as experiências de Santa Teresa de Ávila, que é madrinha e inspiradora dos missionários em questão, quanto a prática ritualística conhecida e mantida pelos indígenas Kanindé e Xukuru. Ambos os grupos crentes que pelo transe místico era possível o contato com o divino. Como diz Santa Teresa, após uma de suas experiências, o êxtase não se pode definir, nem aquele que não o vivenciou, descrever (SANTA TERESA DE JESUS, 2008: 83). Mas, se como disse Simmel, o sentimento individual precede o coletivo inclusive no que compete ao campo do religioso, Peter Berger acrescenta que “a exteriorização é uma necessidade antropológica” (1985: 17), portanto, o ritual da jurema sagrada representa justamente essa necessidade de comunhão e relacionamento entre um grupo, sendo este uma união de individualidades e experiências. Aqui, a prática mantida no aldeamento remete tanto às permanências, já que era uma continuidade de tradições ritualísticas Tarairiú, quanto a rupturas de pensamento e comportamentos – dos indígenas que alargam a participação para abarcar também os missionários, e destes, que desafiam suas próprias consciências, também por sua vez alargadas. Os limites de ambos os grupos litigados, em uma aceitação e readaptação dos valores do outro. Considerações finais Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e todavia relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência. (...) Historicamente considerados, os mundos do homem têm sido, na sua maioria, mundos sagrados.

Peter Berger, in: O dossel sagrado, p. 38; 41. 1690

Os Carmelos, instituições religiosas carmelitas, se propagaram no Brasil, sendo que o principal Carmelo de Ordem Terceira está localizado em Belo Horizonte. Muitos deles alimentam blogs e sítios na internet, de forma a informar aos interessados em filiar-se à Ordem e aos fiéis, como está estruturada a instituição, as principais características e históricos desde a fundação até os trabalhos atuais. Nesses suportes também encontramos as histórias das reformas internas e, no caso dos carmelitas descalços, de Santa Teresa D’Ávila. Ver: http://www.carmelo.com.br/. Acesso aos 25 de fevereiro de 2012, às 18hs17min. 1691 Carta de Pedro Monteiro ao rei. In: CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V. 1740, julho, 9, Lisboa; AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 920.

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ISSN 2358-4912 Conhecer o que está além das barreiras do humano. Entender como se processam as “coisas do espírito” ou até mesmo se elas existem e, a partir daí, tomar partido para o bem ou para o mal. Eis algumas questões que perturbam o homem desde o desenvolvimento de sua racionalidade. Quantas vezes recorreram justamente à razão para colocar essas inquietações no plano do conjectural, para desprezá-las ao fanatismo, ridicularizá-las como ilusão, devaneio, fuga da realidade, conformismo? Em contrapartida, quantos não apresentaram argumentos lógicos para mostrar a não-existência das divindades, do sobrenatural? Quantos não se lançaram sobre essas indagações, deparando-se com um abismo que levou a uns ainda mais dúvidas e a outros certezas? Tais indagações podem ser consideradas, para os religiosos mais fervorosos, verdadeiras injúrias, pois têm seus dogmas como inquestionáveis, o que os coloca face ao fanatismo e ao preconceito. Esta ânsia pelo que está além do humano, pela identificação com o sagrado, foi um dos fatores responsáveis pela manutenção do ritual, que não se encerrou no período colonial, sendo a jurema cultuada atualmente não só por grupos indígenas, mas também nos terreiros de umbanda. Em 1758, um ano depois de ser aprovado o Diretório dos Índios1692, e dezoito anos após a Junta das Missões convocada pelo governador de Pernambuco e liderada pelo Bispo Frei Luís de Santa Teresa, é aplicada a Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas, incluindo e sua área de atuação, portanto, a capitania da Parahyba. A Direção demonstra como a permanência da jurema nos rituais de alguns grupos ainda era um incômodo às normas oficiais, como está expresso no parágrafo dezoito: “não consentindo o uso de aguardente mais do que para o curativo, e abolindo inteiramente o uso das juremas contrário aos bons costumes e nada útil, antes prejudicialíssimo à saúde das gentes” 1693. Mesmo com a substituição do controle eclesiástico nos aldeamentos, controle que agora era feito por vereadores, braços políticos do rei, as preocupações com relação à manutenção dos costumes indígenas eram intensas e compreensíveis, já que se havia uma herança no campo religioso, também poderia haver em outras esferas, como a política. Além disso, tais costumes eram um contra-senso ao modelo de civilidade propagado pelo Estado português, que mantinha a tradição católica, apesar de ter afastado seus líderes da política administrativa, diminuindo sua influência, mas não extirpando-a. O cotidiano colonial se fizera cúmplice de práticas sincréticas, heréticas, guardando segredos entre estas e seus adeptos. A religiosidade popular em permanente contraponto ao Santo Ofício mantinhase, mesmo vigiada, atuante e arregimentando seguidores. Vemos, a partir desse caso, como o contato entre indígenas e europeus não resultava necessariamente na concretização dos objetivos do projeto colonizador: domesticar os nativos, não só economicamente e politicamente, mas também culturalmente. Nesse contexto, entendemos que se processou uma reação à dominação, ações que encontraram diversas maneiras para se propagar, questionando, assim, a pretensa hegemonia lusa. Tais fatores produziram, no Brasil, uma intensa hibridização cultural, pois se de um lado tínhamos a conquista do território ameríndio, de outro, encaramos esse próprio território, habitado por cerca de quatro milhões de nativos no século XVI, adaptando-se às investidas dos colonizadores enquanto estes também reagiam e eram influenciados a partir do contato. Referências Manuscritas CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V. 1735, fevereiro, 8, Lisboa. AHU_ACL_CU_014, Cx. 9, D. 769. CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V. 1740, julho, 9, Lisboa; AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 920.

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O Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, foi elaborado em 1755, mas apenas se tornou público dois anos depois. Ele compõe parte das medidas do Marquês de Pombal. 1693 Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, XLVI, 1883, p. 121-171.

508 ISSN 2358-4912 CARTA do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. 1741, julho, 1, Recife.; AHU_ACL_CU_015, Cx. 56, D. 4884.

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VIEIRA E O CORPO VIVO DA PREGAÇÃO Guilherme Amaral Luz1694 Sem o Espírito Santo, escreve Vieira em seu sermão a Ele dedicado, até o dizer mais divino é tão somente dizer. Ele é a “luz interior” que ilumina por dentro (do ouvinte) o que o pregador diz por fora. O que “Cristo disse, os evangelistas escreveram e os pregadores repetem” é o Espírito Santo que ensina. Ille vos docebit omnia, repete o jesuíta a mesma fórmula, retirada do Evangelho do dia (Jo 14: 26) ao fim de cada parte do sermão. Eis o centro do exórdio do Sermão do Espírito Santo, pregado na Igreja da Companhia de Jesus, em São Luís, em 1657, no dia de Pentecostes1695. Era uma festa importante. Para a Companhia de Jesus, o apostolado era mais do que um conceito distante, reservado às primeiras comunidades cristãs, das quais Roma era herdeira. Para os inacianos, ser apóstolo era ser Igreja e ser Igreja era o mesmo que ser. Inácio de Loyola e seus seguidores abraçam uma nova mística inseparável da ética sobre o mundo criado, assumem-se como agentes ativos na temporalidade, compromissados com a cristianização dos povos. Trata-se de uma ética missionária, universal, não restrita ao clero, social e politicamente abrangente e que se manifesta na história como obrigação humana de cooperar na dinâmica providencial da salvação. Se há uma única meta-narrativa bíblica da concepção jesuítica de sua atuação missionária no mundo, é a do Atos dos Apóstolos. Se há um grande modelo de santidade a ser perseguido, é o modelo paulino. Se há um sujeito para esta história, é o Espírito Santo, recebido pelos apóstolos no seu “batismo de fogo”, os lançando pelo mundo a fim de anunciarem a Boa Nova a todos. O dia de Pentecostes, neste sentido, é o dia da própria fundação mítica da Companhia de Jesus. É um dia forte na construção simbólica da espiritualidade e da ética jesuíticas e, por extensão, dos sentidos profundos que viam na expansão portuguesa para o Novo Mundo e no deslocamento missionário em direção a novas terras, onde viviam “povos ignorantes da palavra de Deus”. Por este e muitos outros motivos, o Sermão do Espírito Santo é um dos mais fundamentais para o entendimento de questões chaves do “pensamento” e da oratória sacra de Antônio Vieira. Se tomarmos como referência o Índice das Coisas Mais Notáveis, na entrada “pregação”, observaremos que, dentre os vários sermões referidos por Vieira, dois se destacam pelo número de tópicas que apresentam: O Sermão da Sexagésima e o Sermão do Espírito Santo. Separados entre si por aproximadamente dois anos, estes dois sermões juntos praticamente podem ser tomados como síntese da parenética de Vieira. O primeiro tem como âmago a pregação particular, de pregador de púlpito, voz semeadora da “palavra de Deus”, desenganadora das vaidades e dos vícios, semente de conversão. O Sermão da Sexagésima focaliza o decoro próprio desta voz, as condições da sua eficácia e o compromisso do pregador com a missão apostólica, com os “passos”. O Sermão do Espírito Santo fala bem menos da “palavra de Deus” do que do “amor de Deus”, menos da “voz do pregador” do que do “ofício dificultoso do apóstolo”, menos das “particularidades do púlpito” do que da “universalidade da missão”, menos da “semente de conversão” do que dos “princípios e dinâmicas do aprendizado”, menos de “dizer” e mais de “fazer”, de “agir”, de “atuar”1696. Três lugares 1) A dificuldade Um dos lugares estruturantes mais fortes da invenção do Sermão do Espírito Santo é o da “dificuldade”. Das tópicas referentes à pregação que constam sobre ele no Índice das Coisas Mais Notáveis, quatro supõem o lugar da dificuldade: “há três gêneros de empresas no ofício de pregar” (a saber: fácil, 1694

Universidade Federal de Uberlândia. Email: [email protected] Trata-se de: VIEIRA, 2003: 415-440. A partir de então nos referiremos a esta edição de forma abreviada: SES, seguida do número da página. 1696 Cf.: VIEIRA, 2010: 297-8. 1695

511 ISSN 2358-4912 dificultosa e dificultosíssima...); “grande rigor que usa Deus com os pregadores”; “por que razão não infunde Deus já hoje nos pregadores a ciência das línguas”; “não há dificuldade que não vença a indústria do pregador com a graça de Deus para recolher o fruto de seu trabalho”. Outras duas possuem uma dificuldade subentendida: “hão-se de haver os pregadores na conversão do mundo, como Deus se houve na criação dele”; “por que razão disse a Deus aos apóstolos: ‘Ide pregar a toda criatura’”. No primeiro caso, a dificuldade está suposta na própria analogia entre o papel dos pregadores (com suas forças humanas) na conversão do mundo e a criação do mundo por Deus. No segundo, está na abrangência daqueles a quem os pregadores devem levar a Palavra: não somente todos os povos, mas toda a criação. Apenas uma tópica não está atrelada ao princípio da dificuldade: “também as mulheres podem pregar; e como”1697. A “dificuldade” se desdobra, no caso da pregação aos índios, em duas dimensões: a bestialidade dos costumes, a dureza de entendimento e a inconstância da fé, por um lado; por outro: a enorme pluralidade, obscuridade e barbaridade das línguas a serem aprendidas, sistematizadas, dominadas e utilizadas na pregação. Nesta direção, abundam as hipérboles e as comparações entre as dificuldades da terra e referências bíblicas. O Rio Amazonas torna-se um “mar” ainda mais ignoto e cheio de povos pagãos do que o Mediterrâneo dos primeiros apóstolos. A “Babel amazônica” tem ainda mais línguas do que a Babel do livro Gênesis (SES, p. 428). A dificuldade desdobra-se, ainda, no fluxo temporal, entre o tempo dos profetas do Antigo Testamento, o tempo da encarnação de Jesus, o tempo dos primeiros Apóstolos da Nova Aliança e o tempo presente. Na máxima dificuldade do presente, na dificultosíssima empresa dos portugueses e dos missionários inacianos, Vieira amplifica o papel do Espírito Santo como “docente”. Ele não infunde mais línguas de fogo, mas o “fogo de línguas”: amor vivo, ardente e manifesto de Deus, que produz a “maravilha” de o homem querer, com enorme trabalho, superar as dificuldades impostas e “colher o fruto do trabalho”. Na ampliação de Vieira, a “ausência do milagre” (as “línguas de fogo”) é tratada como “milagre ainda maior”: o “fogo de línguas” (SES, p. 427431).

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2) A iluminação Nihil potest homo intelligere sine phantasmate, conforme a tópica tomista. Esta primazia da imagem para o aprendizado das “coisas invisíveis”, segundo uma clássica hipótese de Francis Yates, encorajou o uso da imaginação para finalidades mnemônicas e de “pedagogia religiosa” na Idade Média, potencializando a formação de um verdadeiro sistema de imagens ao serviço da fé1698. Muito antes de São Tomás de Aquino, Tertuliano, a partir das epístolas de Paulo, defendia que o conhecimento das “coisas invisíveis” revela-se nas “visíveis” e que a própria dinâmica da revelação bíblica se dá por meio de figuras, enigmas e alegorias, ou seja, por meio de uma “linguagem figurada”, própria tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Autoridades como Tertuliano e Gregório Magno defenderam a imagem como meio de gravar os ensinamentos da fé na memória, iluminando o entendimento. Este “dar a conhecer o visível por meio do invisível” foi condensado na expressão dare faciem ou “dar a face”, rosto ou aparência de uma verdade oculta1699. Diversos estudos recentes têm enfatizado o papel das imagens também na oratória sacra. Lina Bolzoni (2004), ao estudar os sermões de Bernardino de Siena, demonstra como o Franciscano desenvolve uma técnica por meio da qual evoca imagens no seu discurso em perfeita correspondência com as suas palavras. Marina Massimi refere-se a este estudo para lembrar que a “fonte teórica” de Bernardino de Siena foi Boaventura da Bagnoregio, igualmente franciscano, para quem “o mundo sensível é considerado como ‘um espelho pelo qual chegamos a Deus criador’”, tese que, segundo a autora, influenciaria também o jesuíta Roberto Belarmino e não seria em nada estranha ao bispo de Bologna, Gabriele Paleotti1700. Anne Régent-Susini, a respeito disso, enfatiza o poder da oratória sacra em excitar a imaginação dos ouvintes com vista a gerar um “espetáculo interior”:

1697

Idem Ibidem. YATES, 2007: 138. 1699 Cf.: ALBERTE, 2011: 126-7. 1700 MASSIMI, 2012: 40. 1698

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ISSN 2358-4912 (...) O espetáculo não foi sempre em torno do pregador, com acessórios ou por um cenário que o cercava; ele poderia ser despertado mentalmente pelo poder visual do discurso, pela riqueza imaginativa de uma fala não inscrita em um dispositivo visual, mas que originava o espetáculo dentro da imaginação dos ouvintes.1701

Vieira não parece em nada distante dessas teorias ao afirmar, desde o exórdio, que as “línguas de fogo” são línguas que falam e fogo que ilumina. Conforme o pregador, “para converter Almas, não bastam só palavras, são necessárias palavras e luz”. Isto é: “se quando o Pregador fala por fora, o Espírito Santo alumia por dentro: se quando as nossas vozes vão aos ouvidos, os raios da sua luz entram ao coração, logo se converte o mundo” (SES, p. 415-418). A luz do Espírito Santo serve para dar visibilidade ao que não se vê por meio dos olhos, mas no coração, enquanto as palavras entram pelos ouvidos. É a “luz eficiente” que converte e que verdadeiramente ensina, Ille vos docebit omnia... Para além de serem ouvidas, as palavras do sermão buscam fazer com que o auditório veja, na imaginação, iluminada pelo Espírito, aquilo que elas dizem. 3) O corpo O terceiro lugar fundamental é o corpo. Trata-se de uma noção complexa, abrangendo pelo menos cinco dimensões. A primeira é a do corpo como mediação sensível e esfera pré-racional, que interfere no entendimento e no livre-arbítrio humanos. Trata-se do corpo como “apetites sensitivos”, para usar uma terminologia própria da síntese aristotélico-tomista. Neste corpo, a própria imaginação e a memória, ligadas ao lugar da “iluminação”, fazem parte dos “sentidos internos”, que processam os “dados” obtidos pelos “sentidos externos” (visão, audição, paladar, tato e olfato), gerando os “fantasmas” que permitem a intelecção, conforme a fórmula tomista que vimos mais acima1702. A segunda, inseparável da primeira, é a do corpo como a “inteireza irredutível do homem”, com seus dotes intelectivos, sensíveis e ativos; em outros termos, uma humanidade em que corpo e alma estão unidos ontologicamente para o cumprimento da sua finalidade salvífica natural1703. A terceira dimensão é a do corpo como presença física (do apóstolo ou do pregador). Este corpo presente que se faz visto funciona como a “estrela que iluminava os Reis Magos” (SES, p. 422-424). A quarta dimensão é a do corpo como espaço do sofrimento amoroso. É este corpo entendido como “inteireza irredutível do homem” que sofre o fastio decorrente do “fogo de línguas”1704. Por último, a dimensão do corpo como ordem social hierárquica e coesa. Tal dimensão é a mais forte das partes V e VI do sermão, quando a missão apostólica é universalizada para todos os setores da sociedade cristã colonial, sendo evidenciados os papéis dos padres, dos pais de família, dos soldados e capitães e das mulheres na educação religiosa dos gentio. O corpo, seja como “apetites sensitivos” ou como “inteireza irredutível do homem” é um elemento central da mística inaciana. Ela também pressupõe o colocar-se em presença diante de mistérios que se atualizam na imaginação do exercitante1705. Nos sermões do franciscano português, Santo Antônio de Lisboa (ou Pádua), bem conhecidos e apreciados por Vieira, os “sentidos exteriores” também se confundem com os “interiores” em benefício da revelação divina e da correção moral dos ouvintes: (...) No sol há três propriedades: claridade, alvura e calor; e vê quão bem elas convêm aos três (...) sentidos da alma. A claridade do sol convém à vista da fé, que divisa e crê as coisas invisíveis pela claridade da sua luz. Alvura, isto é, a mundícia ou pureza, convém ao olfato da discrição; e com acerto, porque assim como fechamos e viramos o nariz dum objeto mal cheiroso, assim nos devemos afastar da imundícia do pecado com a virtude da discrição. Também o calor do sol convém ao gosto

1701

RÉGENT-SUSINI, 2009: 57. Tradução nossa. A respeito deste assunto, cf.: MASSIMI, 2012: 39. 1703 A propósito, cf.: PÉCORA, 1994: 76. 1704 Além do “fastio”, as metáforas gustativas de Viera indicam o tipo de sofrimento físico ao qual o “fogo de línguas” estaria ligado, “adocicando” o “azedume” do aprendizado dificultosíssimo ao qual estariam expostos os novos Apóstolos, cf.: SES, pp. 426-427. 1705 Cf.: YATES, 2007: 96-101; SPENCE, 1986: 32-33; SAN IGNACIO DE LOYOLA, 1963: 167-290. 1702

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ISSN 2358-4912 da contemplação, na qual verdadeiramente há o calor da caridade. Escreve S. Bernardo: É, de fato, impossível ver o sumo bem e não amar, pois que o próprio Deus é caridade.1706

A “luz/claridade da fé”, que faz ver o “invisível”, e o “calor da caridade” são atributos do sol de Santo Antônio que também se reconhecem no Espírito Santo de Vieira. Tratam-se de propriedades espirituais, mas que se percebem por canais análogos aos sentidos corporais, como o “ver” e o “sentir”. “Ver”, “ouvir”, “cheirar”, “provar”, “tocar/sentir” os mistérios sobre os quais fala o pregador são atividades estimuladas por imagens sensíveis, vívidas e corporificadas, trazidas à vida pelo engenho do orador sacro. Tais imagens compõem o centro da elocução presente no Sermão do Espírito Santo e precisam ser observadas em detalhes para que possamos compreender o que Vieira entende como sendo a tarefa e o modus operandi do pregador/apóstolo. Imagens: uma “doutrina da encarnação” Os que andastes pelo mundo e entrastes em casas de prazer de Príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de Estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A Estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão, sempre conserva e sustenta a mesma figura: a Estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos; mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. (SES, p. 424)

Jardim de um palácio onde se encontram estátuas de mármore e de murta. Conforme os ensinamentos da Rhetorica ad Herenium, a “memória artificial constitui-se de lugares e imagens”. Sobre o “lugar”, explica ser “aquilo que foi encerrado pelo homem ou pela natureza num espaço pequeno inteira e distintamente”. Já as imagens são “determinadas formas, marcas ou simulacros das coisas que desejamos lembrar”1707. A fim de construir sua alegoria da pregação como análogo à arte da escultura (e da modelagem), Vieira elabora um esquema mnemônico artificial e o evidencia, por meio da écfrase, aos seus leitores/ouvintes. Seu lugar é dúbio. Predomina como algo engendrado pelo homem, mas não sem a presença da natureza: um jardim, que é tanto parte arquitetônica de um palácio, quanto um retiro ameno, propenso à contemplação. Suas imagens são simulacros da nova cristandade sob a forma de estátuas de mármore ou de murta. Na comparação entre a estátua de mármore e a de murta, Vieira retoma um elemento importante dos debates quinhentistas em torno do paragone da pintura versus escultura. Apoiados na autoridade de Plínio, artistas/doutrinadores como Vasari, Leonardo, entre outros, veem, na modelagem, uma arte que dá origem tanto à pintura quanto à escultura. Em termos materiais, a modelagem trabalha sobre elementos plásticos, tais como argila ou madeira, em que a resistência é pequena e, por isso, bastante maleáveis. A escultura, por seu lado, operaria sobre materiais duros e resistentes, inflexíveis. Por isso, a arte da escultura seria propriamente de subtração, em que a forma se constrói exclusivamente pela retirada de matéria, enquanto a modelagem poderia incluir subtração e adição. Consequentemente, a modelagem seria também próxima à pintura, arte exclusivamente aditiva e que, na época, buscava gerar efeitos plásticos por meio da imitação de corpos esculturais, seja pela observação de esculturas antigas ou pelo preparo de modelos em madeira, argila ou similares1708. Mas a modelagem a que se refere Vieira é distinta daquela de que falam os artistas. Trata-se de uma modelagem sobre madeira viva. O artista/pregador de Vieira é um jardineiro. Isso quer dizer que ele modela os seus objetos sem extinguir a fonte que faz nascer indefinidamente, enquanto há vida, nova matéria bruta. Isso exige dele, mais do que trabalho de modelador, um constante trabalho de escultor, ou seja, um contínuo trabalho de subtração. Pela ação da natureza, a modelagem do pregador se torna extenuante escultura:

1706

SANTO ANTÔNIO DE LISBOA, 1987: 117-138. Cf.: [PSEUDO] CÍCERO, 2005: 182-183. 1708 Para uma síntese a respeito do paragone em questão, cf.: RAGAZZI, 2010: 268-294. 1707

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ISSN 2358-4912 Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo, que lhe atravessa os olhos; sai outro, que lhe decompõe as orelhas; saem dois, que de cinco dedos lhe fazem sete; e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. (SES, p. 424)

A forma é o “homem”; a matéria, uma “confusão verde de murtas”. Ser “homem” e ter forma é ter olhos, orelhas e dedos, o que, por sinédoque, indica o corpo na sua “inteireza”, conforme desenvolvemos mais acima. Indica, igualmente, os sentidos do “ver”, do “ouvir” e do “sentir” ou todos os sentidos internos e externos do homem em sua plenitude corporal e anímica. Na “confusão verde de murtas”, estado “natural” de vida “selvagem”, sem “polícia”, o índio/homem não é capaz de “ver”, “ouvir” e “sentir” como deve. Suas potências racionais, portanto, são interditadas desde as suas origens “préracionais”, nos sentidos externos e internos. O trabalho do jardineiro/escultor é, portanto, primordialmente sobre a base sensível que dá forma ao homem. É um trabalho de correção da natureza por meio da arte. Implica uma ação disciplinadora da matéria em uma forma polida, “civilizada”1709. Quanto a isso: ... [os índios do Brasil] recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta, que em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas, uma vez que lhe corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez que lhe cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados outra vez que lhe decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros de Gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural e compostura dos ramos. (SES, p. 425)

É pela confusão dos sentidos que a “bruteza” naturalizada dos índios estorva a sua evangelização. O trabalho constante do “jardineiro” é arrancar tudo aquilo que esteja impedindo a vivência sensível da fé. É preciso abrir os seus olhos para que “creiam o que não veem”: é preciso dar visibilidade às coisas invisíveis... É preciso abrir as orelhas, para que “não deem ouvidos” e liberar mãos e pés para que “se abstenham das ações”. As antíteses presentes nesta formulação reafirmam o sentido subtrativo da pregação em analogia com a arte da escultura. É necessário arrancar suas histórias e seus costumes, suas tradições arraigadas (hábitos) e tudo aquilo que não permita ao índio ter uma experiência visível e tangível da “verdadeira fé”. Abrir as orelhas para não ouvirem ou liberar mãos e braços para não agirem é ensinar constantemente a Palavra, exortando-os à conversão, excitando-lhes, na “correta direção”, os mesmos sentidos que lhe estorvam o aprendizado. A isso, eles não resistem, não replicam, não duvidam, mas aceitam com grande facilidade e docilidade. Em outros termos, é preciso pregar, pregar e, obstinadamente, pregar a eles, de forma fastigiosa, sem descanso e apelando aos seus sentidos, viva e animadamente, atingindo o seu “dinamismo psíquico”, desde a base pré-racional. Dizei-me: qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude, seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arroga, acolá recama: e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode por no altar. (SES, p. 434)

A analogia entre escultura e pregação é retomada no trecho acima, que compõe uma das últimas partes do sermão. Confrontando a tese de que, por serem duros e bestiais, os índios são incapazes de 1709

Sobre o papel da disciplina e da “civilização” na missão jesuítica, cf.: AGNOLIN, 2011: 47.

515 ISSN 2358-4912 receberem a fé, tomando, por conseguinte, a pregação por inútil; Vieira construirá, neste momento, a natureza do índio não mais como “murta”, mas como “pedra”. Sendo a pedra a matéria mais dura, mostrará que a arte (da escultura) é capaz de fazer com a pedra aquilo que a graça, aliada ao fazer obstinado e caridoso dos “apóstolos”, é capaz de fazer com as mais rudes criaturas: homens, ou ainda, santos. Novamente aparece a imagem do corpo, no qual não faltam olhos, nariz, boca e dedos. O resultado é a “encarnação”, por meio da arte, de um “homem perfeito”, como “vivo” e, na sua máxima dignidade humana, um santo.

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O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um Cristão, e pode ser que um Santo. (SES, p.

434-435) “Aplicar o cinzel” e “martelar” são atividades subtrativas, típicas da escultura. Elas indicam, na analogia com a evangelização, um trabalho de disciplina, arrancando do índio tudo aquilo que estorva a sua “humanidade”, potencialmente cristã e naturalmente voltada à salvação/santidade. Eis o cuidado que competiria a todos que tinham responsabilidade por “almas” da terra. Com estas metáforas, Vieira prescreve um esforço obstinado e cotidiano (“um dia e outro dia”) na tarefa de ensinar a doutrina cristã aos índios. O resultado do trabalho, por mais que possa parecer infrutífero, é certamente promissor1710, tal como Vieira o percebe ao comentar uma “profecia” de São João Batista: Não é menos que promessa e profecia do maior de todos os profetas: Potens est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae: poderoso é Deus a fazer destas pedras filhos de Abraão. Abraão é o Pai de todos os que têm Fé: e dizer o Batista que Deus faria de pedras filhos de Abraão, foi certificar e profetizar que de Gentios idólatras, bárbaros, e duros como pedras, por meio da doutrina do Evangelho havia Deus de fazer não só homens, senão Fiéis, e Cristãos, e Santos (...). Assim o profetizou o Batista; e assim como ele foi o Profeta deste milagre, vós sereis o instrumento dele. Ensinai e doutrinai essas pedras, e fareis de pedras, não estátuas de homens, senão verdadeiros homens, e verdadeiros filhos de Abraão por meio da Fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a resistência e a bruteza. (SES, p.

435) Esta “forma de homem” ou “forma de santo” – que poderia ser esculpida na matéria bruta de homens de duro coração (pedras) ou de coração inconstante (feito murtas) – é uma imagem corpórea que se pensa como símile do corpo de Cristo, ou seja, do “divino feito corpo”, do “verbo encarnado”. O santo, conforme esclarece Massimi, é aquele que se identifica amorosamente com Cristo promovendo uma “segunda encarnação”. Nem tanto aquela primeira do Verbo no ventre de Maria, mas a de Cristo como “impressão” ou “estampa na carne do coração do santo”. Como símile do corpo de Cristo e sua “encarnação” afetiva, o santo não é mais apenas si, mas um corpo relacional por meio do qual toda a “família espiritual” da Igreja repousa em comunhão. É um corpo universal, cujas partes encontram-se em perfeita relação harmônica e hierárquica. Mas sobre este corpo recai um pesado fardo, que confere um “caráter heroico da santidade”: a constante vigília em relação às artimanhas do diabo, visando submeter “os movimentos corporais e anímicos ao dinamismo do espírito que anseia por seu destino”, qual seja: o bem, a salvação. Sem um governo dos apetites, das paixões e da vontade, este corpo tornase inimigo do homem. Mediante a luta e a graça, esposa-se com Cristo, que o faz triunfar, fazendo, assim, de pedras, filhos de Abraão.1711 Em suma, a arte de pregar, como análoga à escultura de santos, é uma arte de criar imagens para a encarnação de Cristo no coração dos homens. Imagens que imponham, pela força de sua evidência sensível, uma disciplina de vigilância em relação à natureza vacilante da matéria bruta do corpo; que arranquem dessa matéria tudo aquilo que ela remete como resistência ao trabalho da conversão. Imagens, portanto, purgativas, geradoras de penitência, de conversão e de santificação. Seus efeitos 1710

Vieira apresenta-se, nesta passagem, em posição muito semelhante a de Manoel da Nóbrega, por meio da personagem Matheus Nogueira, no Diálogo sobre a conversão do Gentio. A propósito, cf.: LUZ, 2006: 120-121. 1711 Cf.: MASSIMI, 2005: 205-217.

516 ISSN 2358-4912 são como os de golpes de cinzel e martelo e cortantes feito tesouras de jardinagem. Exigem força, energia, fadiga, constância no trabalho. Agem sobre os afetos, o entendimento e a vontade por meio dos sentidos externos dos ouvintes, os quais mobilizam com “fogo de línguas”. Criando-as, os pregadores dão arranjo artístico fecundo para a ação do Espírito Santo, do Qual, eles próprios, no seu esforço amoroso de proclamar a palavra, são aprendizes. Os pregadores devem operar, assim, diante dos ouvintes, o mesmo que operam no silêncio de suas meditações e exercícios espirituais: uma dramatização visual que, mobilizando todo o corpo e a alma, os leve dificultosamente a encarnar no coração o Cristo, esposando-O, em direção à santidade.

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CONCUBINATOS, VIOLÊNCIA E SOLICITAÇÃO NO COTIDIANO DO CLERO SECULAR DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1750 – 1800) Gustavo Augusto Mendonça dos Santos1712 Na América portuguesa o clero secular era o grupo composto pelos membros da Igreja diretamente subordinados aos bispos e responsáveis pela administração dos sacramentos à população colonial. Estes clérigos recebiam os três graus das ordens sacras, os quais eram os de subdiácono, diácono e presbítero. O primeiro grau das ordens era de subdiácono e, aqueles que almejassem esse estado seriam “examinado[s] dos mistérios de nossa Fé, Latim, Moral, Reza e Canto, e além de haver de ter primeira tonsura, e os quatro graus de Menores”. Além disso, faziase necessário passar pelos processos de inquirição de genere e moribus1713. O segundo grau das ordens sacras era a de diácono, que deveria ser examinado no latim, casos de consciência, reza, canto, e ter exercido por um ano a ordem de subdiácono além da sentença de genere1714. A maior de todas as ordens era a de presbítero, que deveria ser examinado com mais rigor no latim, moral, reza, canto e depois de ter exercido por um ano a função de diácono1715.

Os sacerdotes do hábito de São Pedro, como também eram chamados os clérigos seculares, poderiam exercer nas freguesias de Pernambuco as funções de párocos colados, os quais recebiam um benefício vitalício pago pela coroa, ou, em caso de falta desse, o bispo poderia enviar um padre encomendado, que deveria exercer a função de vigário de forma interina, mesmo podendo permanecer longos anos nessa situação. Além dos encomendados, havia os padres coadjutores que auxiliavam os párocos das freguesias maiores e eram muitas vezes pagos com a arrecadação do próprio vigário colado. Já os capelães eram aqueles que atendiam a população dos sítios mais afastados, nas irmandades, nas tropas ou nos navios e eram, normalmente, sustentados pelos integrantes dos grupos aos quais assistiam1716. Estruturado desta maneira o clero do hábito de São Pedro deveria atender às necessidades espirituais da população das freguesias próximas ao litoral da capitania de Pernambuco, ambiente que escolhemos como recorte espacial devido a sua importante dinâmica social e econômica na região durante o período colonial. Na segunda metade do século XVIII, a capitania de Pernambuco mantinha na produção de açúcar para o mercado externo a base da sua economia e eram nas freguesias próximas ao litoral onde se encontravam a maioria dos engenhos de açúcar, caracterizando a região como de grande importância econômica para a capitania. Nosso estudo está concentrado em 12 freguesias1717 e entre elas foi possível contabilizar, no ano de 1761, um total de 97 engenhos moentes para a produção de açúcar e 14 em fogo morto1718. Também vale ressaltar que outros artigos eram produzidos e comercializados pelas freguesias do litoral de Pernambuco no contexto do Império português, como era o caso do couro1719 e do tabaco1720. Por fim, entre 1749 e 1788 a população destas freguesias cresceu 1712

Doutorando em História UFPE. Email: [email protected] VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia / feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, 2007. p. 88-89. 1714 Idem. p. 89. 1715 Ibidem. p. 89-90. 1716 NEVES, G. P. C. P. das. E receberá mercê: a Mesa de Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil – 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p. 67. 1717 As 12 freguesias por nós estudadas são as seguintes: Sé da Cidade de Olinda, São Pedro Mártir de Olinda, São Pedro Glorioso do Recife, Santíssimo Sacramento do Recife, Santo Amaro de Jaboatão, Nossa Sra. da Purificação e S. Gonçalo de Una, Nossa Senhora do Rosário de Sirinhaém, Santo Cosme e Damião da Villa de Igarassu, Nossa Senhora do Rosário de Goiana, Nossa Senhora do Rosário da Várzea, Santo Antonio do Cabo e S. Lourenço da Mata 1718 RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 1976. p. 70-71 1719 SOUZA, George Felix Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710 – 1822). 2007. 698 páginas. Tese – Programa de Doctorado Fundamentos de la Investigación Hisórica. Salamanca, 2007. p. 144. 1720 Seu principal valor consistia como mercadoria exportada para troca por escravos nos mercados da África. Segundo Alencastro, a posição geográfica de Pernambuco facilitava a sua inclusão no comércio negreiro, pois se zarpava com facilidade de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro para Luanda ou a Costa da Mina e vice1713

518 ISSN 2358-4912 92,81%, passando de 53.626 para 103.401, fato que pode ser tomado como indicativo de um desenvolvimento local1721. Por outro lado, o recorte temporal ao qual dedicamos o nosso estudo é importante porque na colônia a política tridentina só chegaria de forma sistemática no século XVIII, apesar de seus princípios estarem presentes desde o início da colonização1722. Entre as medidas adotadas por esta política estava a formação de um clero apartado da vida mundana por meio da educação e da observância dos preceitos da religião católica, uma vez que o clero constituía o próprio corpo da Igreja e deveria servir de exemplo de comportamento. Esse aspecto é próprio do espírito de Trento, sendo conhecido como clericalismo. Tratava-se de uma concepção da Igreja como fundamentada principalmente na instituição clerical1723. Em Pernambuco durante o século XVIII uma das principais formas de enquadramento do clero dentro destas normativas foi a aplicação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia1724, no Livro terceiro e Título I das Constituições podemos ver o que se esperava dos sacerdotes: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quanto mais elevado e superior o estado dos Clérigos, que são escolhidos para o Divino ministério, e celestial milícia, tanto é maior a obrigação que tem de serem varões espirituais e perfeitos, sendo cada Clérigo que se ordena tão modesto, e compondo de tal sorte suas ações, que não só na vida, e costumes, mas também no vestido, gesto, passos, e praticas tudo nele seja grave, e religioso, para que suas ações correspondam ao seu nome, e não tenham dignidade sublime, e vida disforme; 1725 procedimento ilícito, e estado santo; ministério de Anjos e obras de demônios .

Neste ponto as Constituições refletiam as determinações do Concílio de Trento (1545 – 1563), o qual afirmava que “admoestarão os Bispos a seus clérigos, de qualquer ordem que sejam, para que com o trato, palavras, e sciencia presidão ao Povo de Deus, que lhes he comettido: lembrados do que está escrito: sede santos, por que eu sou santo.”1726. Na busca por construir um clero exemplar a reforma tridentina objetivou afastar os presbíteros de todas as práticas que caracterizavam os leigos de modo a torná-los “Santos” na terra, atitude que afetou mesmo a participação nas festas. Como afirma Peter Burke, durante o movimento de reforma o clero foi proibido de participar de festas populares à versa (ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 63.). Podemos constatar esse comércio com base no requerimento feito pelos oficiais da Câmara de Goiana solicitaram na década de 40 do setecentos autorização para fazer comércio com o reino de Angola e Costa de Mina, utilizando o tabaco na aquisição de escravos para os engenhos de cana-deaçúcar (Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 55, doc. 5508 – 25/01/1747). 1721 SANTOS, G. A. M. dos. Transgressão e cotidiano: a vida dos clérigos do hábito de São Pedro nas freguesias do açúcar em Pernambuco na segunda metade do século XVIII (1750 – 1800). 2013. 181 páginas. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura Regional da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife, 2013. p. 50 1722 LAGE, L. As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil. In: FEITLER B; SOUZA E. S. (Org.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. p. 147-148. 1723 HOORNAERT, Eduardo; AZZI, Riolando (Orgs.). História da igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: primeira época. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1992. p. 156. 1724 É importante notar que antes da elaboração das Constituições Primeiras eram aplicadas na América portuguesa as Constituições de Lisboa, documento normativo que deve ter servido de referência na elaboração do texto do sínodo diocesano da Bahia. Assim, é possível observar alguns paralelos entre as duas Constituições, como no tratamento do batismo, presente no “Título Primeyro do Sacramento do Baptismo” das Constituições de Lisboa na qual se afirma: “primeiramente do sancto baptismo: que he porta e fundamento dos outros sacramentos: sem ho qual nenhua pessoa pode ser salva.” (Constituicoens do arcebispado de Lixboa. Lisboa: per Germam Galharde, Frances, 22 Março 1537. fl. ii.). Já nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em seu Livro Primeiro e Título X sobre o batismo vemos uma construção muito similar na qual se afirma que “O Baptismo é o primeiro de todos os Sacramentos, e a porta por onde se entra na Igreja Catholica, e se faz, o que recebe, capaz dos mais Sacramentos, (...)” (VIDE, op. cit., 2007. p. 12) 1725 VIDE, op. cit., 2007. p. 175. 1726 O sacrosanto e ecumenico concilio de Trento em latim e português: (...)Lisboa: Na officina patriarc. de Francisco Luie Ameno, 1781. p. 365.

519 ISSN 2358-4912 maneira tradicional, dançar e usar máscaras como os leigos1727. No que se refere ao celibato o Concílio de Trento pretendia realizar sua reafirmação e reprimir as transgressões1728 sexuais praticadas por sacerdotes. Desta forma, no texto do Concílio vemos em sua sessão XXV e Capítulo XIV “Preserve-se o modo de proceder nas Causas dos Clérigos Concubinarios”, ficou estabelecido que “prohibe o Santo Concílio a quaisquer clérigos, se naõ atrevaõ a ter em casa, ou fóra della Concunbinas, ou outras mulheres de que possa haver alguma suspeita, (...): de outro modo sejaõ castigados com as penas estabelecidas pelos sagrados Canones, e Estatutos das Igrejas.”1729 O período de 1750 até 1800 também é caracterizado por um maior controle da Coroa sobre a Igreja. Em 1750 morre o monarca de Portugal D. João V e é aclamado rei o seu filho D. José I, iniciando um reinado marcado pela atuação do secretário de Estado dos Negócios do Reino Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, até a década de 1770. Período no qual ocorreu um processo de secularização de Portugal, reduzindo-se o papel da Igreja a qual foi submetida cada vez mais ao Estado1730. Em Pernambuco isso significou um controle maior da Coroa sobre o clero, como no caso da proibição de ordenações de clérigos por determinação do rei D. José I em carta de 1768 devido à grande quantidade de padres já ordenados na capitania, ação que parece ter surtido efeito nas freguesias do litoral de Pernambuco que sofreram uma redução de 46,5% no número de sacerdotes seculares entre os anos de 1749 e 1777, enquanto a população cresceu nos mesmos anos 35,7%1731. Por fim, em 1800 é fundado pelo bispo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho o Seminário de Olinda, o qual deveria servir para formar “sujeitos dignos de nossa expectativa, e que sirvam de glória ao Colégio, de ornamento à Pátria, de utilidade à Igreja e de bem ao Estado”1732. Combinando ideais tridentinos de formação do clero e também de utilidade ao Estado português a construção do seminário episcopal buscou auxiliar na formação e disciplina do clero local. De forma que tentamos em nossa pesquisa verificara quais eram as transgressões das normas tridentinas mais praticadas pelos presbíteros seculares nos 50 anos anteriores à fundação do Seminário de Olinda e se estas ações eram práticas sociais aceitas ou rechaçadas pela população de Pernambuco. Dedicamos o presente artigo especificamente a três práticas que transgrediam as normas vigentes na América portuguesa. Primeiramente o concubinato, transgressão prevista nas Constituições Primeiras no seu Livro quinto e Título XXII, onde o concubinato está caracterizado da seguinte maneira: “o concubinato, ou amancebamento consiste em uma ilícita conversação do homem com mulher V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1727

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 290. 1728 Adotamos o conceito de transgressão, que para nós seriam os desvios da norma moral existente na colônia ou crimes do foro civil e eclesiástico que estavam previstos na legislação ibérica e nos códigos elaborados na América portuguesa. Na utilização do termo transgressão pretendemos evitar anacronismos seguindo uma definição presente no século XVIII da palavra, pois, segundo o dicionário de Bluteau, transgredir seria “Passar além (...). Não observar, quebrar, violar. Transgredir uma lei, um mandamento.” e transgressão seria “A ação de transgredir no sentido moral, a transgressão de uma lei” (BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino (17121727). Coimbra: 1712. p. 244). Portanto, adotamos uma terminologia que tinha sentido empregado no contexto pesquisado. Além disso, a historiografia nacional também vem se utilizando ao longo das décadas da nomenclatura transgressão para se referir a desvios de conduta moral ou crimes praticados pelos habitantes da América portuguesa. Ver: LIMA, L. L.da G. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial. 1990. Tese – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1990; MOTT, Luiz. Bahia: inquisição e sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010; VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997; ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. 1729 O sacrosanto e ecumenico concilio de Trento em latim e português: (...) op. cit., 1781. p. 461. 1730 SCHWARCZ, Lilia Mortiz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 103. 1731 SANTOS, op. cit., 2013. pag. 60 – 63. 1732 ESTATUTOS, do Seminário Episcopal de N. Senhora da Graça da Cidade de Olinda de Pernambuco ordenados por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho XII Bispo de Pernambuco do Conselho de S. Majestade Fidelíssima fundador do mesmo Seminário. In: NOGUEIRA, op. cit., 1985. p. 318.

520 ISSN 2358-4912 continuada por tempo considerável”1733. Em segundo lugar nós estudamos a solicitação, o crime de solicitação ocorria quando os sacerdotes requisitavam aos fiéis durante a confissão favores sexuais. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, na colônia “solicitar era, (...), um enorme pecado e um grave crime de religiosos ou clérigos que, a partir do século XVI, também seria assimilado à heresia”1734. Finalmente, dedicamos nossa atenção às “atos de violência”, expressão que utilizamos para nos referir a atos como tentativa de homicídio, espancamento ou outras formas de agressões físicas que eram punidas tanto pelas Constituições Primeiras quanto pelas Ordenações Filipinas1735. Para verificar a ocorrência dessas transgressões nos utilizamos das seguintes fontes: pedidos feitos por clérigos seculares de cartas de perfilhação e legitimação1736 presentes no Arquivo Histórico Ultramarino, avulsos de Pernambuco; denúncias e traslados de processos contra padres também presentes no AHU: e dos processos do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa contra presbíteros de Pernambuco, material depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Assim, com base nessas fontes foi possível criar o seguinte QUADRO I: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

QUADRO I: TRANSGRESSÕES DE CLÉRIGOS SECULARES DE PERNAMBUCO (1750-1804)1737 1733

VIDE, op. cit., 2007, p. 338. VAINFAS, op. cit., 2010. p. 260-261. 1735 Um dos principais códigos de leis aplicados ao Império português durante o período colonial foi o Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, também chamado de Ordenações Filipinas, o qual, mesmo sendo um conjunto de leis laicas, também apresentava determinações destinadas a regular o modo como os clérigos deveriam ser tratados no reino e seus domínios. As Ordenações Filipinas surgiram no bojo da reforma judicial e administrativa que Felipe II realizou em Portugal no momento da União Ibérica, uma vez que os costumes locais diferiam das formas legais previstas nos antigos códigos (SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: A Suprema Corte da Bahia e seus juízes: 1609-1751. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. p. 38). 1736 As cartas de perfilhação serviam para tornar herdeiros aqueles que teriam mais dificuldades em ser considerados sucessores legítimos, protegendo essas pessoas de contendas familiares no momento da divisão dos bens, como no caso de mulheres ou filhos ilegítimos. Já as cartas de legitimação tinham por objetivo o reconhecimento das crianças nascidas fora de uma união nos moldes tridentinos (o casamento), ato que poderia ser realizado na colônia Brasil “através do casamento, testamento ou escritura pública” (ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no império Português, XVI-XVIII. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. p. 123-126). 1737 Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 83, doc.6928 – 1757. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 109, doc.8452 – 26/07/1770. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 224, doc. 15154 – ant. a 21/02/1801. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 225, doc. 15182 – ant. a 03/03/1801. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 105, doc. 8166 – 30/05/1768. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 109, doc. 8433 – ant. a 60/07/1770. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 211, doc. 14339 – ant. a 30/10/1799. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 251, doc. 16839 – ant. a 24/10/1804. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 163, doc. 11652 – ant. a 01/04/1788. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 112, doc. 8618 – ant. a 31/01/1772. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 194, doc. 13310 – ant. a 01/07/1796. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 130, doc. 9825 – ant. a 27/07/1778. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 216, doc. 14607 – ant. a 28/04/1800. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 127, doc. 9635 – ant. a 09/07/1777. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 137, doc. 10203– ant. a 15/07/1780. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 115, doc. 8790 – ant. a 01/07/1773. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 217, doc. 14734 – 07/07/1800. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 219, doc. 14819 – ant. a 07/08/1800. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 210, doc. 14300 – ant. a 16/10/1799. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 187, doc. 12940 – ant. a 23/09/1794. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 194, doc. 13335 – ant. a 26/07/1796. Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 119, doc. 13207 – ant. a 21/01/1796. 1734

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ISSN 2358-4912 NOMES DOS CLÉRIGOS Bernardo da Silva do Amaral

CRIME/ACUSAÇÃO Proposições heréticas e de solicitação

PERÍODO

Manuel Mendes de Queirós

Solicitação

1763

João Pinto de Moura

1772 – 1782

José da Silva Gama

Atos de violência: açoitou violentamente sua amásia Maria da Anunciação. Atos de violência: andava armado, espancou um leigo e furtou uma moça donzela. Concubinato

Francisco Alves Barbosa

Concubinato

1801

Ildefonso de Figueiredo Falcão

Concubinato

1768

João de Albuquerque Falcão

Concubinato

1770

Manoel Ribeiro de Oliveira

Concubinato

1799

João Álvares de Sousa

Concubinato

1804 1778

Santos Meneses e Abreu

1770 1757 1801

João Manoel Clemente

Concubinato

Antônio de Siqueira Varejão

Concubinato

1772

Caetano Alves Correia

Concubinato

1796

Clemente Fernandes de Moraes

Concubinato

1778

João Maurício Vanderley

Concubinato

1800

Manoel Garcia Velho do Amaral

Concubinato

1777

Simão Ribeiro Riba

Concubinato

1780

Vasco Vaz da Silva

Concubinato

1773

Francisco Xavier da Costa

Concubinato

1800

Francisco Alves Barbosa

Concubinato

1800

Joaquim Cavalcanti de Albuquerque

Concubinato

1799

Manoel Alves Correia

Concubinato

1794

Manoel Teotônio de Freitas Sacotto

Concubinato

1796

Vicente Ferreira de Melo

Concubinato

1796

Com base no QUADRO I pudemos considerar que, de longe, o crime mais comum dos sacerdotes era o concubinato, pois entre 1768 e 1804 pudemos registrar 20 pedidos de cartas de perfilhação e legitimação que indicam a formação de sacrílegas famílias como algo constante. Por outro lado, registramos apenas dois casos de solicitação e igual número de atos de violência praticados por presbíteros seculares, fato que coloca estas duas transgressões em segundo lugar entre as mais cometidas pelos sacerdotes das freguesias do litoral de Pernambuco. A grande ocorrência de sacrílegas famílias em Pernambuco na segunda metade do XVIII seria um indício de que o concubinato era uma prática difundida no clero secular. Mas será que a sociedade colonial considerava o concubinato uma transgressão como era previsto nas Constituições Primeiras ou convivia com esta pratica de outra forma? Existe grande dificuldade em responder esta questão, pois mesmo que nos utilizássemos de relatos diretos para respondê-la sempre se questionaria a possibilidade de tratar a realidade sobre a qual estes testemunhos falam. Porém, como afirma Carlo Ginzburg “entre os testemunhos, sejam os narrativos, sejam os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada”1738. De tal forma que não podemos nos abster de submeter os testemunhos existentes a nossa análise, por isso nos utilizaremos aqui dos depoimentos arrolados nos pedidos de cartas de legitimação e perfilhação além de registros de cronistas que escreveram sobre a América portuguesa, de modo a esclarecer como a sociedade local lidava com o concubinato dos clérigos. Existe o problema de que esta documentação foi “construída” para outros fins e não é a “voz” direta população que está nela, uma vez que “os pensamentos, crenças, esperanças dos camponeses e artesãos do passado chegam até nós através de filtros e intermediários que os deformam (...) Mas não é preciso exagerar quando se fala em filtros e intermediários deformadores. O fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ não significa que seja

Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 1772-04-23 a 1782-01-29 . PT-TT-TSO/IL/28/8759. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 1763. PT-TT-TSO/IL/28/5840. 1738 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.8.

522 ISSN 2358-4912 inutilizável.”1739. O que torna os pedidos de cartas de legitimação e perfilhação assim como os relatos de cronistas uma fonte útil e muito válida. Como já mostrou Carlo Ginzburg a respeito dos processos de bruxaria, “escavando os meandros dos textos, contra a intenção de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”1740. Como no caso do processo de legitimação perfilhação dos filhos do padre Clemente Fernandes Moraes, no qual foi necessária a inquirição feita pelo corregedor da Comarca de Pernambuco Antônio José Pereira Barros de Miranda Leite em 14 de novembro de 1778. Nela foi testemunha o alferes Gabriel dos Anjos de Vasconcelos, homem branco, que afirmou ter conhecido quando era viva dona Ana Ferreira de Carvalho e que ela “concebeu e pariu” no estado de solteira vários filhos do padre Clemente e que “sempre os tratou como trata o padre”, ou seja, como filhos. Já a testemunha João Luis da Serra Cavalcante afirmou ser notório que Ana Ferreira de Carvalho concebeu e pariu no estado de solteira vários filhos do padre Clemente, a quem sustentava e sempre educou1741. A inquirição apontou então para a notoriedade do concubinato do padre e para um cuidado que este tinha com sua prole, a quem não deixou faltar o necessário, fato que não parecer ter causado maiores problemas para o clérigo e seu convívio social. Já o francês L. F. Tollenare, que esteve em Pernambuco entre 1816 e 1817, realizou observação sobre o clero de Pernambuco no início do XIX, clero este que não se diferencia muito dos sacerdotes do século XVIII. Segundo Tollenare, “frades ricos e os cônegos pouco observam o voto de castidade; tem mulheres e filhos naturais, o que provoca pouco escândalo; mas coisa surpreendente! Chegam a fazêlos legitimar a fim de conseguir a entrada nas ordens”1742. Esse relato de Tollenare se torna fidedigno quando verificamos os pedidos de cartas de legitimação e perfilhação do reverendo doutor Simão Ribeiro Riba, que teve no estado de clérigo do hábito de São Pedro, de Maria José Lacerda, mulher solteira, dois filhos – sendo um deles o reverendo Simão Ribeiro Riba Júnior1743. Não sabemos se o padre Simão Ribeiro Riba ordenou seu filho no bispado de Pernambuco, mas, se isso ocorreu, não parece ter sido exceção na América portuguesa, basta ver o caso de São Paulo no século XVIII, onde os filhos de padres que passavam pelos Processos de Habilitação de Genere, Vitae et Moribus recebiam dispensas de sua ilegitimidade para que pudessem tomar ordens1744. Vemos então que o concubinato praticado por clérigos seculares e a composição de sacrílegas famílias era um fato notório nas freguesias do litoral de Pernambuco na segunda metade do século XVIII, porém, essa notoriedade não se revertia em uma forte censura por parte da sociedade colonial. Pelo contrário, filhos sacrílegos chegavam mesmo a tomar ordens sacras, assim como seus pais. Desta forma, acreditamos que a população das freguesias de Pernambuco tratava o concubinato dos clérigos seculares como uma prática social relativamente aceitável, diferente das Constituições Primeiras, que sendo a lei aplicada tratava o concubinato como uma transgressão que deveria ser evitava e punida. Assim, a pratica social não seguia estritamente a orientação da legislação. Por outro lado, ao registrarmos apenas 2 casos de solicitação e 2 casos de atos de violência praticados por clérigos seculares fica mais difícil considerar que estas práticas recebiam o mesmo tratamento que o concubinato. Mesmo que solicitar e praticar atos de violência fosse ações adotadas pelo clero secular de Pernambuco, estas deveriam ser mais facilmente tratadas como transgressões pela sociedade e censuradas, ultrapassando os limites do “aceitável” e se aproximando do que exigiam as Constituições Primeiras e o Tribunal do Santo Ofício. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1739

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 17-20. 1740 GINZBURG, op. cit., 2007. p. 11. 1741 Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 130, doc. 9825 – ant. a 27/07/1778. 1742 TOLLENARE, L. F. Notas dominicais. Recife: SEC; Departamento de Cultura. 1978. p. 94. 1743 Arquivo Histórico Ultramarino – Avulsos de Pernambuco – cx. 137, doc. 10203– ant. a 15/07/1780. 1744 LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo: Annablume: FAPESP, 1998. p. 252-253.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

523

ISSN 2358-4912

O CARGO DE JUIZ DE FORA EM VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Gustavo Balbueno de Almeida1745 O cargo de juiz de fora em Portugal se associa à administração da justiça no termo da municipalidade e a sua criação remete ao período medieval. Stuart Schwartz1746 aponta como ano exato de sua criação o de 1352. As funções relativas ao cargo, no período do medievo, estavam relacionadas à execução dos testamentos no período da peste negra. De acordo com Suely Cordeiro de Almeida, “Os juízes de fora foram um instrumento da coroa que impediu que uma grande quantidade de terras e riquezas passasse para os eclesiásticos, ficando isentas de pagamento de impostos”.1747 A partir de 1550, os juízes de fora ganharam o poder de presidência das câmaras municipais1748 e sua popularização no reino se deu a partir da segunda metade do século XVII1749. Na América Portuguesa, segundo Maria Fernanda Bicalho, os primeiros juizados foram criados nos últimos anos do século XVII nas capitanias de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia.1750 A escolha das cidades em questão para a criação do cargo não aconteceu por acaso, afinal, nesse momento, a criação desse ofício se aplicava apenas para as localidades mais importantes do reino.1751 Em se tratando dos casos específicos da criação dos cargos para a América Portuguesa, Nuno Camarinhas faz uma relação completa das cidades e/ou vilas nos quais eles foram criados. Os primeiros foram Salvador (1696), Olinda (1700) e Rio de Janeiro (1701), seguidos de “outros municípios menores, mas estratégicos do ponto de vista do comercio do ouro e dos diamantes”: Santos (1713), Itú (1726), Ribeirão do Carmo (1731), Mato Grosso (1748), Maranhão (1753), Cachoeira (1758), Pará (1758), Cuiabá (1760), Paracatu do Príncipe (1799), Rio Verde (1799) e São Salvador do Campo dos Goitacazes (1802).1752 Maria Fernanda Bicalho apresenta uma posição semelhante à de Camarinhas ao afirmar que [...] no caso das cidades marítimas mais importantes da América Portuguesa, uma das razões mais importantes para a criação do cargo de juiz de fora foi, sem duvida, a necessidade sentida pela Coroa, de intervir nas funções administrativas e financeiras – especificamente tributárias – das câmaras coloniais, para controlar os descaminhos e os possíveis prejuízos da Real Fazenda.1753

No entanto, há que se destacar que a criação do cargo de juiz de fora na América Portuguesa não está relacionada apenas com questões financeiras e fiscais. Em decorrência da autonomia das câmaras municipais nos dois primeiros séculos de ocupação, a partir do século XVIII, a Coroa sentiu necessidade de cercear as atividades dessas instituições e de seus representantes, fruto de uma política que objetivava uma maior centralização. Uma das formas encontradas foi justamente a popularização do cargo de juiz de fora que, como presidente da câmara, viria representar os interesses metropolitanos frente à população local.1754 O cargo de juiz de fora foi criado na fronteira oeste em 1748, embora pedidos para sua criação na Vila do Cuiabá – até então única vila da futura capitania do Mato Grosso – existissem desde meados 1745

Mestre em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD). Professor do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), campus Amambai. 1746 SCHWARTZ, S. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial, p. 29. 1747 ALMEIDA, S. C. C. As peripécias do magistrado: Juízes de fora e um cotidiano nada tranquilo entre Recife e Olinda. Mneme – Revista de Humanidades – UFRN, p. 1. 1748 BOXER, C. O Império Ultramarino Português (1415-1825), p. 288. 1749 Nesse sentido ver: MONTEIRO, N. G. As comunidades e os concelhos. In: HESPANHA, A. M.; MATTOSO, J. História de Portugal - o Antigo Regime (1620-1807) 1750 BICALHO, M. F. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: BICALHO, M. F; FRAGOSO, J; GOUVÊA, M. F. (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVII), p. 200. 1751 SALGADO, G. Fiscais e meirinhos. A administração no Brasil colonial, p. 72. 1752 CAMARINHAS, N. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime, p. 123. 1753 BICALHO, M. F. A cidade e o império – O Rio de Janeiro no séc. XVIII, p. 349. 1754 BICALHO, M. F. As câmaras municipais no Império português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História.

524 ISSN 2358-4912 da década de 1730. Segundo Nauk Maria de Jesus, ainda em 1735, o conde de Sarzedas já havia solicitado o cargo para “melhor administrar a justiça das partes que se queixam, porque para ser assessor tinha que ser letrado de profissão”.1755 Em 1738, o intendente da Vila do Cuiabá encaminhou novo pedido ao rei, devido a diversas irregularidades que estavam acontecendo na localidade.1756 Apesar dos pedidos, o cargo só foi criado na capitania de Mato Grosso, no ano de 1748, juntamente com o de governador. Na tabela abaixo, apresenta-se a relação dos juízes de fora, os anos de cada um na atuação do cargo na capitania de Mato Grosso, a vila de atuação – levando-se em conta que houveram cargos tanto em Vila Bela, quanto em Vila do Cuiabá – e o ano em que efetuaram as leituras de bacharéis. Essas leituras constituíam em um teste realizado pelo Desembargo do Paço, a que submetiam todos os formados em Direito que se interessassem em trabalhar nos cargos letrados oferecidos pela Coroa.1757 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Juiz de fora Teotonio da Silva Gusmão Manuel Fangueiro Frausto Constantino José da Silva Azevedo João Batista Duarte José Carlos Pereira Antônio Rodrigues Gaioso Diogo de Toledo Lara Ordonhez Luiz Manoel de Moura Cabral

Ano de atuação 1752-1756 1756-1759 1762-1766 1766-1775 1775-1781 1781-1786 1786-1792 1792-1799

Vila de atuação Vila Bela Vila Bela Cuiabá Cuiabá Cuiabá Cuiabá Cuiabá Cuiabá

Ano da leitura 1741 1745 1756 1754 1771 1778 Ant. a 1784 1787

Fontes: JESUS, N. M. A administração da justiça: Ouvidores e regentes na fronteira oeste da América portuguesa. In: GUEDES, R. (org.). Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados, p. 181. LEVERGER, A. Apontamentos cronológicos da província de Mato Grosso; AMARAL, L.; MATOS L. C.. Leitura de bacharéis – Índice dos processos, p. 33; SUBTIL, J. Dicionários dos desembargadores, p. 108.

Na capitania de Mato Grosso, o primeiro oficial nomeado para o cargo, em 1748, foi Teotônio da Silva Gusmão, sobrinho do embaixador Alexandre de Gusmão. No momento de sua indicação, Teotônio Gusmão era juiz de fora na Vila de Itú.1758 Sua trajetória pessoal e administrativa merece ser mais bem estudada, apesar da dificuldade em se arrolarem fontes em diversos arquivos espalhados em vários pontos do Brasil e no reino. Não se tem informação sobre o ano exato em que esse oficial formou-se em Direito, mas, em 1741 realizou a leitura de bacharel. Sabe-se, apenas que, no ano de 1735, Teotonio da Silva Gusmão era fiscal do ouro em Goiás, onde atuou de dezembro do mesmo ano até

1755

JESUS N. M. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778), p.

193 1756

Idem, Ibidem, p. 196 Stuart Schwartz analisa minunciosamente o processo da Leitura dos bacharéis. Ele consistia em uma pesquisa para que ficasse provada a “pureza de sangue e de mãos” dos candidatos. Para isso era mandado ao juiz da localidade de nascimento dos pais e avós do futuro oficial uma ordem para que se pesquisasse a fundo os antepassados desses e seus antecedentes, e se certificasse que não havia sangue mouro, negro ou judeu no passado da família. A ocupação profissionais dos pais e avós também era ponto importante, já que apenas os descendentes daqueles que não trabalharam com trabalhos manuais poderiam atuar como funcionários do rei. Após comprovada essa “limpeza”, o candidato faria uma prova para mostrar seu conhecimento em conteúdos jurídicos. Se fosse bem nessa etapa, entraria em uma espécie de lista de espera de nomeação para ocupar o cargo em algum lugar dos domínios portugueses. SCHWARTZ, S. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial, p. 81. 1758 Requerimento do juiz d fora de Itu, bacharel Teotônio da Silva Gusmão, nomeado para o Mato Grosso ao rei, [D. João V], em que pede seja graduado o lugar que vai criar com o titulo de ouvidoria, com o mesmo ordenado e aposentadoria que tem o da Vila do Cuiabá, e juntamente administre as ocupações de intendente ao provedor real com propina anual, ajuda de custo, e vença seu ordenado desde o dia do embarque em Itu. 21/01/1751. AHU. Projeto Resgate-MT. Cd 02. Pasta 005. Subpasta 002. Fotos 275-282. 1757

525 ISSN 2358-4912 junho de 1737.1759 Nesse período “foi mandado pelo mesmo governador [Conde de Sarzedas] a criar a Intendência das minas do Tocantins, cujo emprego serviu até setembro de 1738”.1760 Após um período de dez anos, em que provavelmente tenha advogado no reino, Teotonio da Silva Gusmão, em 1747, chegou à Vila de Itú para assumir o posto de juiz de fora.1761 Em carta de 1748 chegou uma ordem do Conselho Ultramarino para que o cargo de juiz de fora fosse extinto na Vila de Itú e para que se criasse um na Vila de Guaratinguetá, com alçada nas vilas vizinhas de Pindamonhangaba e Taubaté. Ordenou-se também que o juiz de fora que então estivesse atuando em Itú – no caso, Teotônio da Silva Gusmão –, realizasse as eleições para juiz ordinário e que passasse

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logo para a vila do Mato Grosso a servir de juiz de fora com a mesma carta e provisões que foi para aquela vila [de Itú], e vença o mesmo ordenado que tem na Provedoria de Santos e na nova vila com as mesmas propinas e aposentadoria que tinha na Itú com a promessa de atender aos seus acrescentamentos no serviço que lhe fizer no estabelecimento da nova vila, e mandando-lhe dar por uma vez 500 mil réis de ajuda de custo para se transportar à Vila do Cuiabá e dali à do Mato 1762 Grosso, que se pagará na provedoria das mesmas minas.

De acordo com a referida carta do Conselho Ultramarino, o cargo de juiz de fora na Vila de Itú havia sido criado à época do governador Rodrigo César de Meneses, quando se iniciaram a descoberta e a exploração de ouro na Vila do Cuiabá, em 1722. Momento esse em que havia o excesso de gentes que embarcavam pelo porto de Araritaguaba para chegarem até às minas do Cuiabá. Essa intensa movimentação de pessoas tornava impossível a orientação de um juiz ordinário, sendo necessária a presença de uma figura letrada para resolver as dúvidas e as contendas da população1763. Segundo Silvana Godoy, em 1653, a Vila de Itú tinha 444 casais e, em 1725, ano de criação do cargo de juiz de fora nessa localidade, havia o dobro de habitantes1764. Ainda segundo o mesmo documento, a descoberta das minas de Goiás, na década de 1720, e a abertura de caminhos ligando o interior de São Paulo a Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro teria causado a diminuição de viajantes dispostos a embarcarem nas monções e tornando desnecessária a presença de um juiz de fora na Vila de Itú. Afinal, quanto menos pessoas, menor a incidência de crimes e, naturalmente, menor a necessidade de um oficial de justiça. O golpe final teria sido a abertura do caminho de terra que ligou Cuiabá à Goiás, a partir de 1736, que teria diminuído a procura das pessoas pela navegação monçoeira. A consequência disso foi que o juiz de fora de Itú ficava em total “ociosidade”, e nos auditórios havia apenas “duas ou três causas de pouca importância”. A Vila de Guaratinguetá, por se situar no norte dos limites de São Paulo, no limiar entre as capitanias das Minas Gerais, do Rio de Janeiro, da região do Goiás e de seus caminhos de terra seria, por sua vez, sempre um território com um contingente populacional para suportar um cargo como o de juiz de fora1765. Vale registrar que, apesar de o documento do AHU mencionado passar a impressão de que o caminho fluvial ligando Itú a Cuiabá estivesse sendo cada vez menos usado no fim da primeira metade do século XVIII, acredita-se que tais afirmações não procedem. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, afirma que o caminho das monções era o mais usado, afinal, cada embarcação levava entre 50 1759

Carta do governador e capitão general da capitania do Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura Tavares, ao rei, [D. José], sobre o merecimento do juiz de fora, Teotônio da Silva Gusmão, ao pedido de ajuda de custo para as grandes despesas na criação da vila de Mato Grosso. Vila do Cuiabá, 04/07/1751. AHU. Projeto Resgate. Cd 2. Pasta 006. Subpasta 001. Fotos 0087-0096. 1760 Idem. 1761 Carta do governador e capitão general da capitania do Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura Tavares, ao rei, [D. José], sobre o merecimento do juiz de fora, Teotônio da Silva Gusmão, ao pedido de ajuda de custo para as grandes despesas na criação da vila de Mato Grosso. Vila do Cuiabá, 04/07/1751. AHU. Projeto Resgate. Cd 2. Pasta 006. Subpasta 001. Fotos 0087-0096. 1762 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei, D. João V, sobre a conveniência de se mandar o juiz de fora de Itu para a Vila de Mato Grosso a servir no mesmo posto. AHU. Projeto Resgate. Lisboa, 09/09/1748. Cd 002. Pasta 004. Subpasta 002. Fotos 331-339. 1763 Idem 1764 GODOY, S. A. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838), p. 56. 1765 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei, D. João V, sobre a conveniência de se mandar o juiz de fora de Itu para a Vila de Mato Grosso a servir no mesmo posto. AHU. Projeto Resgate. Lisboa, 09/09/1748. Cd 002. Pasta 004. Subpasta 002. Fotos 331-339

526 ISSN 2358-4912 a 60 arrobas de mantimentos ou outros objetos, enquanto que, para se levar a mesma quantidade de mantimentos dos caminhos de terra seria necessária a utilização de muitas mulas. Holanda afirma que, enquanto a rota das monções foi ativa, até 1838, o transporte por terra foi apenas um complemento do comércio fluvial.1766 Em relação ao juizado de fora de Guaratinguetá, cuja criação foi proposta no documento mencionado, não se sabe se ele foi mesmo criado. O mesmo não consta na relação elaborada por Nuno Camarinhas, cuja menção fizemos acima. Voltando à trajetória de Teotônio da Silva Gusmão há que assinalar que, enquanto ele esperava pelo período das monções, organizou a expedição que acompanharia o governador Antônio Rolim de Moura para a capitania de Mato Grosso. De acordo com o governador, além de preparar a viagem, responsabilizou-se ainda “por sua conta acompanhar as canoas que depois de mim saíram daquele porto [Araritaguaba] com cargas de munições e fardos pertencentes à Real Fazenda” 40.1767 Na Vila do Cuiabá, a despeito de estar doente, realizou “várias diligencias do serviço de Vossa Majestade”, e, a mando do governador, foi designado a escolher o sítio mais oportuno para a nova vila que o rei havia mandado erigir para cabeça de governo. Após chegar ao termo do Mato Grosso continuou a procura pelo local adequado descendo o Rio Guaporé, “o que nenhum sertanista até aquele tempo tinha feito, pelo temor das cachoeiras e outros perigos” naturais dos caminhos fluviais. Os aventureiros tinham como parâmetro de comparação o caminho de Araritaguaba, no porto de Itú, até o porto geral da Vila de Cuiabá, que era repleto de perigos naturais e humanos, e imaginavam que o caminho novo conteriam as mesmas dificuldades. Até então apenas um criminoso havia feito o percurso do Rio Guaporé, e o resultado dessa viagem era desconhecido. Teotonio Gusmão realizou a viagem por rio e, para sua surpresa, encontrou apenas uma cachoeira no inicio da viagem, sem que houvesse maiores dificuldades posteriores. Encontrou “o melhor caminho para comunicação com aquelas minas [distrito do Mato Grosso] com a do Cuiabá, e tendo também achado um sítio muito próprio para a fundação da nova vila que a criou o governador (...)”.1768 Após a ereção de Vila Bela pelo governador Antonio Rolim de Moura, em março de 1752, e a realização da eleição dos pelouros, Teotonio da Silva Gusmão assumiu suas funções como juiz de fora. O tempo de sua atuação como juiz de fora de Vila Bela pode ser considerada desde dois anos antes, ainda em Itú, quando se extinguiu o cargo desta vila e o oficial começou a organizar a comitiva que o levaria juntamente com o governador para a Vila do Cuiabá.1769 Contudo, logo após o seu estabelecimento em Vila Bela, o procurador da fazenda da capitania de Mato Grosso e o Conselho Ultramarino punham em questão a necessidade de se manter o juizado de fora em Vila Bela. A justificativa para manter o cargo em atividade era a de que, assim como no caso da Vila de Itú que, no início das navegações monçoeiras necessitava de um juiz de fora por conta do excesso de população que trafegava por aquela região, os privilégios e isenções dados à vila que se fundaria no distrito do Mato Grosso estimulariam a vinda de pessoas de tal maneira, que os juízes ordinários não teriam condições de atender a tantos processos.1770 Apesar disso, o Conselho Ultramarino determinou que, em matérias de justiça, a nova vila e seu juiz de fora ficariam compreendidos na ouvidoria do Cuiabá enquanto não houvesse o aumento populacional que permitiria criar uma nova ouvidoria com cabeça em Vila Bela da Santíssima Trindade.1771 Em 1753, em consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. José, após uma carta recebida do provedor da fazenda do Mato Grosso, a questão em torno da manutenção do cargo de juiz de fora em Vila Bela reapareceu. Para o provedor, a vinda de um novo juiz de fora a essa capital não era necessária, “porque são ainda tão poucos os moradores de Vila Bela e os seus interesses e dependências de tão pouca consideração, que não necessitam de um ministro que se não pode mandar para aquele distrito grande despesa da fazenda”. Ao fim do documento tem-se o parecer do Conselho sobre o assunto: “não parece

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1766

HOLLANDA S. B. Monções, p. 114. Sobre o fluxo das monções, ver: GODOY S. A., Itu e Araritaguaba na rota das monções, p. 74 1767 Carta do governador e capitão general da capitania do Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura Tavares, ao rei, [D. José], sobre o merecimento do juiz de fora, Teotônio da Silva Gusmão, ao pedido de ajuda de custo para as grandes despesas na criação da vila de Mato Grosso. Vila do Cuiabá, 04/07/1751. AHU. Projeto Resgate. Cd 2. Pasta 006. Subpasta 001. Fotos 0087-0096. 1768 Idem. 1769 Idem. 1770 Idem. 1771 Idem.

527 ISSN 2358-4912 ao Conselho que se extinga este lugar de juiz de fora como aponta o procurador da fazenda, antes agora parece mais necessário que na sua criação”. Infelizmente, não aparecem os motivos pelo qual o Conselho considerava necessária a manutenção do cargo.1772 Assim, a decisão da continuação do cargo de juiz de fora em Vila Bela se manteve e, em 1756, chegava à capital da capitania do Mato Grosso Manuel Fangueiro Frausto (1756- 1759), que sucedeu a Teotonio da Silva Gusmão. Durante o mandato de Fangueiro Frausto ocorreram mudanças significativas no interior do aparelho administrativo da capitania de Mato Grosso: a sede da ouvidoria foi transferida da Vila do Cuiabá para Vila Bela da Santíssima Trindade em 1759. Esta, enquanto vilacapital e, portanto, cabeça de governo, deveria congregar os poderes régios – a intendência e a provedoria. Os cargos relativos a esses poderes também foram transferidos para Vila Bela no mesmo período.1773 O cargo de juiz de fora foi extinto na capital nesse mesmo ano. Cabe aqui efetuarem-se observações com relação à lista da criação dos cargos feita por Nuno Camarinhas. O autor cita que foi criado dois cargos na capitania de Mato Grosso: um no distrito de Mato Grosso, em 1748, e um no distrito de Cuiabá, em 1760. O que o autor não salienta é que o cargo de Vila Bela, no distrito do Mato Grosso, foi extinto antes da criação do da Vila do Cuiabá. A leitura de sua obra pode dar a entender que a capitania de Mato Grosso contou com dois cargos, um em cada termo que a compunha. O que se há de se considerar é que houve a extinção do cargo de juiz de fora em Vila Bela, em 1759, e a criação de um novo cargo na Vila do Cuiabá em 1760.1774 Após a transferência da ouvidoria para Vila Bela em 1759, o rei determinou que o ex- juiz de fora Teotonio da Silva Gusmão assumisse o cargo, alegando que este tinha experiência nos meandros da justiça e ainda se encontrava em Vila Bela da Santíssima Trindade.1775 Nauk Jesus argumenta que o oficial recusou o cargo por estar ocupado com a ereção da igreja da Nossa Senhora Mãe dos Homens e por ter sua saúde debilitada. Em vista disso, indicou o intendente Francisco Xavier para assumir o cargo.1776 Complementando essas informações, pode-se dizer que, nesse momento, também havia por parte de Teotonio Gusmão a preocupação com a fundação do povoado de Nossa Senhora do Salto Grande, localizado na fronteira da capitania do Mato Grosso com o Pará. Vale lembrar que, apesar de, haver requerido, diversas vezes, o cargo de ouvidor, o ex-juiz de fora abdicou desse cargo a favor da ereção do povoado e contou com o apoio do governador.1777 Renata Malcher Araújo argumenta que o governador Antônio Rolim de Moura promoveu, junto com o oficial, a criação do povoado que faria ligação com Nova Borba, na capitania do Grão Pará.1778 Coube, então, ao juiz de fora Manuel Fangueiro Frausto assumir o cargo de ouvidor, em 1759. A partir desse momento, o juizado de fora deixou de existir em Vila Bela da Santíssima Trindade, sendo transferida a ouvidoria do Cuiabá para essa vila. Nos três anos seguintes, entre 1759 e 1762, as duas vilas contaram com a atuação de juízes ordinários presidindo as câmaras municipais. Apesar de não se ter encontrado documentação determinando novamente a criação de um juizado de fora, dessa vez em Cuiabá, nem qualquer carta que especifique as funções do oficial, o fato é que, em 1762, o cargo de juiz de fora foi criado em Vila do Cuiabá. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1772

Consulta do Conselho Ultramarino ao rei, [D. José], sobre o pedido do juiz de fora na vila de Mato Grosso, Teotonio da Silva Gusmão, de ajuda de custo. Vila do Cuiabá, 11/08/1753. AHU, Projeto Resgate – MT. Cd 3, pasta 007, subpasta 002. Fotos 208-213 1773 O processo de criação da ouvidoria em Vila Bela e do juizado de fora em Cuiabá ocorreu no período de suspensão do ouvidor João Antonio Vaz Morilhas, acusado de envolvimento em contrabando de diamantes. A reconstituição de seu mandato e conflitos pode ser conferida em JESUS, N. M., Na trama dos conflitos. Ver especialmente cap. 6: Falsidades, baratarias, cavilações e subornos. O caso João Antonio Vaz Morilhas. 1774 CAMARINHAS, N. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime, p. 123. 1775 Oficio do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura, ao Secretario da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real sobre a povoação de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande, estabelecida por Teotônio da Silva Gusmão, e outros assuntos. Vila Bela, 28/11/1758. AHU. Projeto resgate. Cd 3. Pasta 009. Subpasta 003. Fotos 495-498. 1776 JESUS, N. M. de. Na trama dos conflitos, p. 226. 1777 Oficio do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura, ao Secretario da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real sobre a povoação de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande, estabelecida por Teotônio da Silva Gusmão, e outros assuntos Vila Bela, 28/11/1758. AHU. Projeto resgate. Cd 3. Pasta 009. Subpasta 003. Fotos 495-498. 1778 ARAÚJO, R. M. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: Discurso e Método, p. 117.

528 ISSN 2358-4912 Em carta enviada ao rei, em que pede que lhe seja paga a ajuda de custo, o primeiro juiz de fora nomeado a Vila do Cuiabá, Constantino José da Silva Azevedo (1762-1766), alega a rapidez com que se deslocou da Corte para a capitania de Mato Grosso. De acordo com o oficial, ele teve poucas horas entre a ordem para assumir o cargo e o momento de partir para a Vila do Cuiabá. Por isso, argumenta que não teve tempo para reunir os documentos necessários para que pudesse pedir, ainda no reino, a ajuda de custo de 600 mil réis pelo qual tinham direito os oficiais de justiça da capitania do Mato Grosso. O pedido foi feito, portanto, extraordinariamente, na colônia.1779 A partir dessa carta, em que se verifica o imediatismo da viagem realizada pelo juiz de fora, considera-se a importância do cargo para a capitania de Mato Grosso. Supõe-se que, assim que tenha chegado a notícia à corte de que Manuel Fangueiro Frausto havia assumido a vara da ouvidoria e de que havia sido extinto o cargo de juiz de fora na capital, foi necessária à Coroa tomar atitudes rápidas para que se criasse novamente o cargo de juiz de fora, dessa vez em Cuiabá. Imagina-se que a rapidez da viagem fosse para que o oficial nomeado pudesse chegar a tempo da partida de Lisboa para a colônia. Caso parecido ocorreu com o governador da capitania de São Paulo, Rodrigo Cesar de Meneses, que recebeu a nomeação em 28 de março de 1721, à meia noite e, no dia primeiro de abril já estava embarcando para a viagem que o traria a São Paulo.1780 Sobre a transferência do cargo de ouvidor para Vila Bela da Santíssima Trindade e sobre a criação do novo juizado de fora na Vila do Cuiabá, salientem-se algumas ponderações. Considera-se que eram necessários longos anos para que as instituições fossem devidamente absorvidas ao cotidiano das localidades e se “enraizassem” enquanto um espaço de poder em meio aos outros. Só assim os ocupantes do cargo teriam maior possibilidade de ação no âmbito de sua jurisdição para interferirem com maior rigor na vida pública de sua população. Era necessária também a construção de relações com os membros dos outros polos de poder, assim como a sua aceitação pela população da localidade que, nas horas de apuros, poderia ter e ver o oficial como alguém que poderia representá-las. Por isso o estabelecimento do cargo de juiz de fora, por menos de dez anos na capital, Vila Bela da Santíssima Trindade, não possibilitou o “enraizamento” de poder, e sua transferência para a Vila do Cuiabá pôde acontecer de forma mais facilitada, não resultando em conflitos e insatisfações por parte de setores da sociedade de Vila Bela, como no caso da vila mais antiga, quando esta não foi escolhida para ser capital da capitania. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro. As peripécias do magistrado: Juízes de fora e um cotidiano nada tranquilo entre Recife e Olinda. Mneme – Revista de Humanidades – UFRN. Vol. 9, n24, set/out 2008. Disponível em: www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais. Acesso em: 21/02/2011. AMARAL, Luís; MATOS, Lourenço Correia de. Leitura de bacharéis – Índice dos processos. Lisboa: Guarda-mor, 2007[?]. ARAÚJO, Renata Malcher. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII: discurso e Método. 2000. 603 f. Tese (Doutoramento em História da Arte), FCSH, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império – O Rio de Janeiro no séc. XVIII. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2003. ________. As câmaras municipais no Império português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História, vol. 18. nº 36. São Paulo, 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010201881998000200011&script=sci_arttext. Acessado dia: 13\05\2010. _______. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; Gouvêa, Maria de Fátima (Orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVII). Rio de Janeiro. Civilização brasileira, 2010. BOXER, Charles. O Império Ultramarino Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das letras, 3º reimpressão 2002.

1779

Requerimento de Constantino José da Silva Azevedo, nomeado juiz de fora, ao rei, D. José, em que pede ajuda de custo e mantimento. Lisboa, ant. a 10/02/1770. AHU. Projeto resgate. Cd 4. Pasta 13. Subpasta 003. Fotos 490491. 1780 SOUZA, L. M. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII, p. 314- 315.

529 ISSN 2358-4912 CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da justiça no Antigo Regime. Portugal e o império colonial, séculos XVII e XVIII. Lousã: Fundação Calouste Gulbekian, 2010. GODOY, Silvana. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). 2002. 235 f. Dissertação (Mestrado em História). UNICAMP, Campinas. HOLLANDA, Sergio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1980. JESUS, Nauk Maria de. A administração da justiça: Ouvidores e regentes na fronteira oeste da América portuguesa. In GUEDES, Roberto (org.) Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2011. _______.Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778). Tese (Doutoramento em História). UFF, Rio de Janeiro, 2006. LEVERGER, Augusto de. Apontamentos cronológicos da província de Mato Grosso. Cuiabá: IHGMT, 2001. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As comunidades e os concelhos. In: HESPANHA, Antonio. M; MATTOSO, José. História de Portugal - o Antigo Regime (1620-1807), volume IV. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos. A administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985. SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das letras, 2011. SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SUBTIL, José. Dicionário dos desembargadores (1640-1834). Lisboa: EDIUAL, 2010.

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OS IMBRÓGLIOS EM TORNO DE UM PADRE PREGADOR E O REGALISMO DO OUVIDOR DO ESPÍRITO SANTO Gustavo Pereira* No dia nove de setembro de 1770, o padre Manoel Furtado de Mendonça pregou um curioso sermão de São Pedro na igreja do Seminário de Nossa Senhora da Lapa, na vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes. Algumas semanas mais tarde, ele foi preso e suas palavras, consideradas críticas ao monarca, foram devassadas por representantes das justiças eclesiástica e régia, repercutindo pela região e chegando, por vias da correspondência oficial, a Lisboa. Nesta breve apresentação, parte-se da perspectiva de que os referidos autos de devassa (que incluem, anexada, a ementa do sermão) são um corpus de grande interesse para se analisarem a articulação de ideias, alguns aspectos de sua percepção e também os efeitos de seu contínuo recontar. Ademais, acredita-se que as relações estabelecidas entre as críticas pronunciadas pelo padre e outros documentos coetâneos possibilitam refletir sobre alguns aspectos das políticas reformistas havidas no reinado de D. José (1750-1777). Trata-se, em suma, de indícios sobre como as diretrizes regalistas pombalinas repercutiram na região. A partir da referida documentação, busca-se refletir, aqui (a despeito do interesse nas palavras então pronunciadas e nos ecos que elas tiveram na região1781), sobre aspectos das ações e dos esforços argumentativos do ouvidor do Espírito Santo, José Ribeiro de Guimarães Ataíde, que orquestrou a prisão e a condenação do padre, mobilizando rumores e se apresentando em sintonia com as diretrizes regalistas pombalinas. Passados apenas dois dias da festividade em que pregou o padre Manoel, o ouvidor Guimarães Ataíde, em carta ao vice rei do Estado do Brasil, Marquês de Lavradio, informou-lhe suas impressões a respeito do sermão de São Pedro, destacando que: quase no fim do sermão, [o padre] se avançara substancialmente a proferir, = que o estado da Igreja se achava hoje dominado pelos príncipes e juristas seculares contra as suas isenções e liberdades = e outras mais algumas expressões que não poderá entregar a memória, pela perturbação interior que me suscitara aquele tão horrível e tão inopinado insulto.1782

O vice rei, por sua vez, respondeu-lhe, em carta do dia oito de outubro: recebi a carta de v. mercê de onze do mês passado em que me dá conta da escandalosa e abominável proposição que proferira o padre Manoel Furtado de Mendonça [...] no sermão que pregara [...], dizendo que o estado da Igreja se acha hoje dominado pelos príncipes e justiças seculares, contra as suas isenções e liberdades, além de outras semelhantes expressões.

E depois de lhe ordenar a imediata prisão do padre – enviando-o com todos os cuidados para a capital –, a apreensão de seus papéis e a arrecadação de seus bens, Lavradio informou-lhe a orientação precisa que deveria ter a inquirição que então lhe ordenava executar. Havia de ser, de acordo com suas palavras, uma exata averiguação, para vir no conhecimento das sinistras circunstancias que poderão haver para o mesmo padre proferir semelhantes blasfêmias ou se tinha alguma oculta comunicação com algum dos indivíduos da perniciosa companhia denominada de Jesus ou sócios da sua confraria e *

Mestre pelo PPGH-UFF. O trabalho é um resumo de parte de um capítulo da dissertação defendida sob orientação do Prof. Dr. Guilherme Pereira das Neves, com auxílio de bolsa FAPERJ nota 10. E-mail: [email protected] 1781 Para uma análise extensa sobre o sermão e suas repercussões, ver, deste autor: PEREIRA, G. O deplorável estado da Igreja neste século corrupto e rebaixado: repercussões de um sermão de São Pedro e das políticas regalistas pombalinas. Dissertação de Mestrado. Niterói: PPGH-UFF, 2014 (sobretudo os capítulos III, IV e V). 1782 O trecho, na verdade é de uma referência do próprio ouvidor acerca do conteúdo da carta. O ouvidor inicia seu ofício relatando “em onze de setembro do ano corrente representei a V. Exa...” Ofício do Ouvidor ao vice rei... 21.11.1970. AHU_CU_017, cx. 93, Doc. 8059.

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ISSN 2358-4912 também se nas conversações em que se achava, assim públicas como particulares, tem costumado proferir aquelas ou outras fanáticas expressões. E de tudo o que achar, me dará conta, com aquela clareza e individuação que se faz preciso, para chegar à real presença de El Rei meu Senhor.1783

A despeito do tom notado na correspondência oficial entre a cidade do Rio de Janeiro e a vila de São Salvador dos Campos, pode-se dizer que o sermão, de modo geral, pouca impressão causou na região. Passadas mais algumas semanas, contudo, quando, na noite do dia 21 de outubro, realizavam-se óperas na praça da vila de São Salvador por ocasião da festividade das Onze Mil Virgens,1784 o padre Manoel Furtado, por ter sido preso na frente de todos,1785 tornou-se o foco das atenções e das murmurações. Afinal, “prendendo o doutor corregedor [ouvidor] da comarca [...] ao dito padre pregador, ninguém dava na causa da sua prisão, fazendo sobre isso vários juízos”.1786 Ao se remeterem ao episódio, algumas testemunhas apontaram que “sua prisão causou uma grande novidade nesta terra por se ignorar a causa dela, de sorte que sobre isso se fizeram vários juízos”,1787 e, no mesmo ímpeto, que a “prisão deu muito que falar a esta terra, por se ignorar totalmente a causa dela e somente depois de serem passados vários dias é que se veio a divulgar que a culpa da referida prisão procedera de um sermão que havia pregado na festividade de São Pedro”.1788 Considera-se que tais informações acerca das repercussões do sermão devem ser levadas em conta, no esforço para compreender o episódio e suas possíveis articulações com a política coetânea – tanto as diretrizes pombalinas quanto as ações do maior representante da autoridade régia na comarca, o ouvidor Guimarães Ataíde. Deve-se, ademais, ter em mente que, após a prisão do padre Manoel, realizaram-se dois autos de averiguação – um ordenado pelo vice rei, Marquês de Lavradio (que inclui uma devassa feita em Campos e autos de perguntas feitas ao padre na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro), e outro, pelo bispo do Rio de Janeiro, D. frei Antônio do Desterro. A esse respeito, cabe recordar que a Igreja, ao longo da Época Moderna, dispunha de certa autonomia jurisdicional – valendo-se de um direito próprio, o canônico, e também de autonomia dogmática, de governo e disciplinar, o que a habilitava a, desde que respeitado o processo devido, “impor penas canônicas e temporais nas matérias espirituais [...] e eclesiásticas”, devendo recorrer ao braço secular para aplicar determinadas penas.1789 Dentre outros aspectos, percebe-se, a cerca de tal questão, que o regimento do auditório eclesiástico de 1704 (que regulamentava questões da justiça eclesiástica no arcebispado da Bahia), confere destacada importância ao vigário-geral, a quem cabia a efetiva administração da justiça no âmbito do tribunal episcopal. Tratava-se de um cargo de grande autoridade e prestígio, sendo, por isso, bastante disputado entre os clérigos mais experientes e doutos do bispado.1790 Nas áreas mais distantes da diocese, a justiça eclesiástica era exercida pelo vigário da vara, representante da autoridade do bispo (e de seu tribunal) nas respectivas comarcas e responsável pelo julgamento de causas menores, agindo, pois, em auxílio do tribunal episcopal.1791 1783

Ofício do Vice Rei ao Ouvidor Geral da Comarca, 08.10.1770. AHU_CU_017, cx. 93, doc. 8059. A respeito da referida festividade, ver: PEREIRA, G. O deplorável... (capítulo III) 1785 Carta do vigário colado... ao Bispo do Rio de Janeiro, de 26.10.1770: AHU_CU_017, cx. 91, doc. 7957. 1786 Depoimento de Braz Domingues Carneiro ao juízo eclesiástico. AHU_CU_017, cx. 93, doc. 8059. 1787 Depoimento de Dionísio Pereira Lobo ao juízo eclesiástico. AHU_CU_017, cx. 93, doc. 8059. 1788 Depoimento de João da Costa Luz ao juízo eclesiástico. AHU_CU_017, cx. 93, doc. 8059. 1789 HESPANHA, A. M. “O poder eclesiástico. Aspectos institucionais”. In: MATOSO, J. (dir.) História de Portugal – vol. IV. Lisboa: Estampa, 1997, p. 257. 1790 MENDONÇA, P. G. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial. Tese de doutorado. Niterói: PPGH-UFF, 2011, capítulo I. 1791 As comarcas eclesiásticas eram subdivisões do território do bispado, compreendendo diversas paróquias/freguesias – estas, comandadas pelos párocos (que não tinha funções judiciais; apenas administrativas). Apesar de a nomenclatura ser a mesma, não se devem confundir, pois, as comarcas eclesiásticas e as comarcas da administração régia, cujas delimitações territoriais nem sempre correspondiam. Por exemplo, as vilas de São Salvador e São João faziam parte da comarca eclesiástica de São Salvador, capitaneada pelo vigário da vara, sufragânea do bispado do Rio de Janeiro. As mesmas vilas, no entanto, eram parte da capitania do Espírito Santo, estando, deste modo, submetidas às correições do ouvidor geral do Espírito Santo – que respondia, no que diz respeito ao aspecto político-jurídico, ao vice rei do Estado do Brasil, remetendo-se, como instância superior, ao tribunal da Relação do Rio de Janeiro, e, no que diz respeito ao aspecto militar, à Bahia. No quotidiano, contudo, tais formalidades e jurisdições nem sempre eram observadas. 1784

532 ISSN 2358-4912 No que diz respeito à comarca de São Salvador dos Campos, sabe-se que, no conjunto de edifícios construídos a partir dos esforços do padre Ângelo de Siqueira em meados do século XVIII, além da igreja e do seminário de Nossa Senhora da Lapa, foram construídas “residências para toda a justiça eclesiástica” – o que, de acordo com testemunho coetâneo, incluía “o vigário geral, o da vara, escrivão, promotor e aljubeiro”; havia, ademais, casas para as audiências publicas e um aljube [prisão].1792 O conjunto onde se realizou a referida festividade de São Pedro, portanto, além de importante local de culto, era a sede da justiça eclesiástica na comarca, capitaneada pelo vigário da vara. No que diz respeito ao foro civil, a região de Campos dos Goytacazes, de acordo com normas e procedimentos estabelecidos ainda em 1603 pelas Ordenações Filipinas, apresentava, em meados do século XVIII, uma estrutura que tinha como principal oficial de justiça, no nível das respectivas vilas, o juiz ordinário, escolhido localmente no âmbito das eleições para o Senado da Câmara.1793 Paralelamente ao juízo ordinário, encarregado das causas cíveis e criminais, havia o dos órfãos, encarregado das tutorias, curadorias e bens dos órfãos, e o da provedoria dos defuntos, ausentes, capelas e resíduos, encarregado dos inventários e bens dos ausentes. No período em pauta, a região não dispunha do cargo de juiz de fora (estabelecido apenas em 1803). Desse modo, o principal ofício de nomeação régia – e nível judicial imediatamente superior ao juízo ordinário – era o de ouvidor. Assim, dada a incorporação jurisdicional da antiga capitania da Paraíba do Sul à comarca do Espírito Santo em 1753, cabiam ao ouvidor geral, cuja cabeça era a vila de Vitória, a primeira instância de apelação e as funções de controle sobre as justiças locais – funções desempenhadas durante as visitas de correição (quando o magistrado visitava as vilas sob sua jurisdição). No caso do ofício na referida capitania, é importante apontar que, como se pode notar pelo requerimento aprovado em 22 de maio de 1765 pelo Conselho Ultramarino,1794 o bacharel José Ribeiro Guimarães de Ataíde,1795 quando pediu ao rei D. José a mercê de lhe fazer ouvidor da capitania do Espírito Santo, demandou-lhe que lhe passasse “as mesmas provisões que se expediram a seu antecessor, que são as que verificam na certidão junta”. Nos anexos ao requerimento, encontram-se, transcritas do livro de provisões da secretaria do conselho ultramarino, as cartas de provisão de uma série de outros indivíduos que ocuparam o mesmo cargo que o bacharel pleiteava. Assim, faz-se referência não só a ordenados e direitos novos que lhe seriam devidos, mas também a um aspecto de particular importância: o fato de que, de acordo com o decreto de criação da ouvidoria do Espírito Santo, ao ouvidor caberia o ofício de provedor da fazenda da mesma capitania. Por costume e por direito, portanto, Guimarães Ataíde, ao pedir provisão no ofício de ouvidor, pediu também a mercê de acumular o ofício de provedor da fazenda – como fizeram outros seus antecessores. Entende-se, de tal modo, que, além da aprovação de seu requerimento inicial, conste, entre as provisões, anexos e pareceres que compõem o documento, o trecho seguinte: “ao Bacharel José Ribeiro Guimarães de Ataíde se há de passar provisão para servir por tempo de três até o mais, em quanto lhe não for sucessor, o ofício de provedor da Fazenda Real da Capitania do Espírito Santo e de pagar o novo direito que dever”.1796 É preciso ter em mente, portanto, que quando se refere ao ouvidor geral do Espírito Santo, faz-se referência ao magistrado que, nomeado inicialmente ouvidor da capitania do Espírito, desempenhava as referidas funções – de ouvidor e de provedor da fazenda – sobre o território sob sua jurisdição, que, à época, já incluía a região de Campos dos Goytacazes, antiga capitania da Paraíba do Sul, anexada à V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1792

REPRESENTAÇÃO dos moradores da Villa de S.S. dos Campos... 1754 AHU_CU_017, doc. 1877. De acordo com Silvia Lara, o senado era composto por três vereadores, um procurador do conselho, dois juízes ordinários, um escrivão e um tesoureiro, eleitos anualmente e com direito a voto. Abaixo dos juízes ordinários, estavam os juízes de vintena, providos pela Câmara para agir no âmbito dos termos da vila. LARA, S. H. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 358. 1794 No referido documento em que se dá parecer favorável ao requerimento, lê-se “passe as provisões que se passaram a seu antecessor, não sendo de graça especial”. REQUERIMENTO do Bacharel José Ribeiro Guimarães de Ataíde, ao Rei... AHU_CU_007, cx. 04, doc. 350. 1795 Como consta em documentação na Torre do Tombo, Guimarães Ataíde fizera leitura de Bacharel no ano de 1752. ANTT, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis. M. 20, nº 17. 1796 REQUERIMENTO do Bacharel José Ribeiro Guimarães de Ataíde, ao Rei... AHU_CU_007, cx. 04, doc. 350. 1793

533 ISSN 2358-4912 ouvidoria do Espírito Santo em 1753.1797 Já no Rio de Janeiro, então capital do Estado do Brasil, localizavam-se os desembargadores que compunham o tribunal da Relação do Rio de Janeiro, última instância de apelação para as capitanias do sul da América portuguesa.1798 As perguntas feitas pelo ouvidor, nas inquirições a que procedeu, foram antecedidas por um auto bastante explícito, em que, após discorrer sobre a festividade, relatou a seus inquiridos de forma clara e sumária, em tom quase didático (apresentando os conteúdos recriminados em forma de tópicos), do que pregara o padre Manoel no fim do seu sermão. Trata-se de um elencar meticuloso do parágrafo penúltimo do panegírico de São Pedro. A seguir, em uma declaração que não deixa espaço a dúvidas quanto à origem do elencado no auto que lhes era lido, Guimarães Ataíde ainda informou às testemunhas que “tudo consta no tal parágrafo final do dito original sermão de sua própria letra que lhe fora achado entre os mais papéis que depois de preso lhe foram apreendidos e remetidos ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor vice rei do Estado”. O ouvidor, então – depois de já ter afirmado que padre agira com “escandalosa temeridade”, avançando “fanática e sediciosamente” em suas palavras –, apresentou seu parecer sobre o episódio:

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todas aquelas expressões eram [dolosas] e fraudulentas na aparência e na sustância enquanto com elas supôs e fingiu o dito padre caluniador sem maior fundamento que o da sua artificiosa malícia fatos afetados e falsos que não só nunca existiram mas respiram os rebeldes infames e reprovados com vícios injuriosos ao trono e à nação que tem defendido os perniciosos jesuítas.1799

Após arguir as trinta testemunhas arroladas nos autos de devassa de que ficou encarregado, Guimarães Ataíde, ao escrever seu ofício conclusivo endereçado ao Marquês de Lavradio, insistiu na gravidade das acusações que repetidamente fizera ao padre Manoel. Nesse sentido, após relatar que envolve o parágrafo penúltimo [...] duas partes ambas sediciosas, blasfemas e infames; na primeira, representa ele dito padre o deplorável estado em que diz se acha hoje a Igreja e na segunda, deprecia àquele Santo Apóstolo a mudança do mesmo presente estado, o que chama deplorável; com uma e outra supondo e fingindo fatos que nunca existiram e incandescendo as imaginações do povo com declarações sinistras e sugestões patéticas, pias no modo, e dolosas na substancia.

O ouvidor afirmou ao vice rei que Furtado de Mendonça inseriu sem mais fundamentos que o da sua artificiosa malícia e temerária ousadia, tantos e tão repetidos convícios, injúrias e calúnias contra o sagrado do trono e contra a pura e ilibada religião dos tribunais e ministros seculares, que enfim vem formalmente a conter as mesmas diabólicas maquinações e rebeldes estratagemas dos perniciosos jesuítas, manifestas ao público nas Divisões X e XI da primeira parte da Dedução Cronológica e Analítica e acusadas nas doutíssimas propostas dos meritíssimos deputados da Real Mesa Censória respectiva à pastoral do bispo de Coimbra de 8 de Novembro de 1768.1800

1797

Em torno da atuação do magistrado enquanto provedor da fazenda, deram-se alguns conflitos com o corpo eclesiástico da comarca. Ver: PEREIRA, G. O deplorável... capítulo V. 1798 Acerca dos tribunais da Relação na América portuguesa, são referências importantes os estudos de Stuart Schwartz sobre a Relação da Bahia e de Arno e Maria José Wehling sobre a Relação do Rio de Janeiro. É importante, ademais, para compreender mais profundamente a conformação e a configuração dos magistrados e de suas jurisdições na capital do Estado do Brasil no período, o estudo de Isabelle Melo, que se debruça sobre o cargo de ouvidor geral do Rio de Janeiro, e se remete às conflituosas relações entre ouvidores, juízes de fora e desembargadores. Ver: SCHWARTZ, S. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; WHELING, A, & WHELING, M. J. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004; MELLO, I. M. P. Magistrados a serviço do Rei: a administração da justiça e os ouvidores gerais na comarca do Rio de Janeiro (1710-1790). Tese de doutoramento. Niterói: PPGH-UFF, 2013. 1799 Auto de Averiguação... 09.11.1970. AHU_CU_017, cx. 93, doc. 8059. 1800 Ofício do Ouvidor ao vice rei... 21.11.1970. AHU_CU_017, cx. 93, Doc. 8059.

534 ISSN 2358-4912 Se a relação com os jesuítas, expulsos e desnaturalizados do reino de Portugal e de seus domínios a partir da lei de três de setembro de 1759, e com outros episódios importantes do período havia sido apenas aventada ao longo dos autos de pergunta dirigidos por Guimarães Ataíde (a partir de colocações por ele mesmo desenvolvidas), no referido parecer ela emerge não apenas confirmada, mas supostamente embasada – nos depoimentos e em textos que, importantes e reconhecidos pelas autoridades régias, indicavam o teor das afirmações do ouvidor. Ao relacionar explicitamente o sermão aos dois documentos mencionados – a Dedução Cronológica e Analítica e as Sentenças Proferidas nos casos da Infame Pastoral do Bispo de Coimbra –, Ataíde enquadrou o episódio ocorrido em São Salvador dos Campos no âmbito geral da política régia no Império, concluindo que

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se deve reputar este caluniador por um rigoroso parcial dos ditos jesuítas, por um aderente sequaz do mencionado bispo; cuja Sentença ele não podia ignorar, por haver sido afixada no lugar público; 1801 e acostumado da cabeça desta comarca, segundo consta da certidão.

A despeito de indicar que “não consta pelas testemunhas que para o dito sermão ocorresse algum terceiro, ou que depois de pregado fosse aprovado por pessoa alguma e muito menos que o pregador tivesse correspondência com os indivíduos expulsos da perniciosa Companhia e seus confiados”, o ouvidor – ainda que aponte que “se persuadem as testemunhas que o estimulo daquele escandaloso rompimento foi o de querer dar prova de literatura, sem advertência do errado modo que pretendeu ostentar” – insiste em acentuar as culpas do padre. Acerca de Furtado de Mendonça e de suas prédicas, Guimarães Ataíde conclui, portanto, que, constatado o confronto por ele aventado entre o sacerdócio e o império, opondo-se aos esforços de harmonia entre ambos, por parte de Sua Majestade, “me não fica lugar senão para suspeitar que as ditas patéticas expressões contêm refinado, pestilento e infesto veneno”. De modo que, referindo ao vice rei “tudo quanto pôde chegar ao meu conhecimento sobre o abominável atentado daquele façanhoso eclesiástico”, o ouvidor afirma que lhe expunha a satisfação de suas ordens com tudo cuidado, remetendo-lhe o ofício de “diligência tão delicada” que fazia “até tremer a mesma pena que a relata”. Assim, relatou-lhe que o padre Manoel devendo ser sal e luz para preservar os povos da corrupção e os alumiar nas trevas da ignorância, chegou a precipitar-se degenerando em venenoso e névoa negra para intentar corromper e cegar aqueles mesmos que devia dirigir, servindo-se do malvado instrumento do fanatismo e abusando do seu sagrado ministério para pretender revoltar a imaginação dos ignorantes e sublevar a constante fidelidade o inalterável amor e a cega obediência dos menos instruídos.1802

À exceção de Guimarães Ataíde, tanto as autoridades quanto as testemunhas apenas acusaram as palavras do padre quando formalmente confrontadas com as diretrizes que as informavam como repreensíveis. Assim, parece ser possível apontar as prisões e as múltiplas acusações e inquirições como tendo sido deflagradas não pelo conteúdo do sermão de São Pedro, e sim pela denúncia do ouvidor. Mobilizando os tópicos do panegírico – fundamentalmente relacionados à exaltação do poder eclesiástico/espiritual em detrimento do secular/temporal – em função de um enquadramento previamente elaborado e divulgado por todo o império português, Guimarães Ataíde deu ensejo aos rumores e ao forçoso posicionamento de todos os envolvidos: autoridades, acusados e testemunhas. Desse modo, deflagraram-se críticas (diretas e indiretas) ao padre e ampliou-se a força da rede de comentários e juízos que se estabeleceu sobre o episódio, mobilizando a população – que, inquieta, pôs-se a murmurar, a conjecturar e a, após muito ouvir e também muito dizer, assentar as razões do ocorrido, de certa maneira apaziguando-se. Ademais (o que desponta como corroboração dessa perspectiva), todos os envolvidos, quando formalmente se manifestaram, não fizeram mais que confirmar acusações, restando a inadvertência como possibilidade única de defesa do pároco. A um conivente (ou mesmo indiferente) silêncio, seguiram-se as denúncias mais, ou menos, abrasadas – repetindo, invariavelmente, um enquadramento de antemão disponibilizado pelo ouvidor.

1801 1802

Ofício do Ouvidor ao vice rei... 21.11.1970. AHU_CU_017, cx. 93, Doc. 8059. Ofício do Ouvidor ao vice rei... 21.11.1970. AHU_CU_017, cx. 93, Doc. 8059.

535 ISSN 2358-4912 A divulgação dos referidos diplomas e obras condenatórios e críticos aos inacianos, que se fizeram manifestar por todo o império, possibilitou seu uso pelo ouvidor da comarca do Espírito Santo, quando de seu esforço por condenar as palavras de Furtado de Mendonça. Afinal, tratava-se de uma política assaz importante, para a qual o governo pombalino investiu uma série de recursos. Ao estabelecer relações entre o sermão de São Pedro e os condenáveis e “façanhosos” ideais jesuíticos citando parágrafos da Dedução e indicando o padre como “sequaz” do bispo de Coimbra, Guimarães Ataíde enquadrou o episódio no âmbito maior da política regalista pombalina. Cabe considerar, acerca de tais questões, que o monarca se fazia representar por todo o império por meio de seus colaboradores: vice reis, governadores, capitães-generais, desembargadores, ouvidores, juízes de fora e outros magistrados. No que diz respeito a grande parte dos territórios ultramarinos, distantes das Relações do Rio de Janeiro ou da Bahia, instâncias superiores da justiça régia na América portuguesa, o principal magistrado que representava o monarca e zelava pelos seus interesses e dos de seus súditos era o ouvidor. Tratava-se de um agente da Coroa com considerável parcela de poder, a quem cabia, por meio das correições, percorrer as vilas sob sua jurisdição pelo menos uma vez por ano. A ele competia receber ações novas e recursos de decisões judiciais, supervisionar a aplicação da justiça em sua comarca, fiscalizar as ações das câmaras e receber queixas dos súditos régios – cabendo-lhe, ainda, presidir devassas em diversos casos. Como parte do processo de fortalecimento do poder régio, fortaleceu-se, também, o dos representantes da autoridade régia no império. Assim, condizente com as demais políticas regalistas que se percebem no período, o alvará com força de lei de 18 de janeiro de 1765, que estabelecia as juntas de justiça nas comarcas, presididas pelo ouvidor, é indício importante para se compreenderem as relações entre as justiças eclesiástica e régia – e os seus embates no período, que ecoaram no sermão de São Pedro, de certo modo conformando sua repercussão e condenação. Afinal, o alvará informa a vontade régia de, por meio de seus magistrados, regular e controlar a aplicação da justiça por parte dos juízes eclesiásticos, limitando sua jurisdição a episódios de matéria espiritual, condicionando a aplicação das penas cabíveis e facilitando os recursos dos vassalos diante do que poderia ser considerado abuso de jurisdição. É também nesse sentido de um fortalecimento do poder régio e de um maior controle sobre os corpos políticos que se pode compreender os conflitos com os jesuítas – e, dado o volume de obras em que se divulgaram as orientações antijesuíticas do governo pombalino, não surpreende que as diretrizes condenatórias (que faziam ver em tudo e em todos que se opusessem aos objetivos reformadores suspeita de jesuitismo) tenham sido mobilizadas nas acusações a Furtado de Mendonça. Acerca dos conflitos com os inacianos destaca-se, em particular, que, além de disporem de grande poder sobre territórios e pessoas (sobretudo em suas reduções) – e de se oporem, inclusive fomentando resistência com armas, nas Guerras Guaraníticas, às reformas pombalinas –, também dispunham de grande influência intelectual e de consciência, uma vez que eram responsáveis pela maior parte das instituições de ensino do império, além de serem confessores de muitos, sobretudo de poderosos na corte. Ademais, estavam sobremaneira relacionados às formulações então consideradas temerárias e façanhosas (por informarem condicionamentos e limitações ao ideal de soberania régia – como as particulares concepções de pacto político, a proposição do direito divino como padrão de legitimidade de uma lei positiva e também a ideia de resistência a um governo tirano, conformadas por Suárez) a que se opunham em muitos aspectos os esforços regalistas pombalinos. Tratava-se, portanto, de uma ordem que representava o baluarte mais evidente do que se pretendia modificar – e das resistências que se necessitava eliminar –, opondo-se de maneira flagrante aos esforços de centralização e de mudança empreendidos. Tendo em vista esse ambiente, marcado pela confluência de políticas reformistas e de obras propagandísticas – condenando uns, exaltando outros, mas quase sempre visando a justificar alterações que se faziam patentes –, as palavras de Furtado de Mendonça reassumem dimensões de sua substância crítica. O que parece emergir da documentação acerca do episódio, no entanto, é uma tendencial posição intermediária, caracterizada pelo silêncio nas fontes. Afinal, à exceção do ouvidor, que agiu energicamente para condenar as palavras do pároco – enquadrando-as a partir dos documentos regalistas pombalinos, dados a conhecer por todo o império –, as autoridades e os assistentes não comentaram o episódio, senão quando formalmente instados a isso. O que, na interpretação aqui ensaiada, credita-se não apenas ao desconhecimento ou à não compreensão das V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

536 ISSN 2358-4912 palavras e das críticas então pronunciadas, mas também a uma possível concordância tácita de alguns – sobretudo do corpo eclesiástico.1803 Ao silêncio, seguiram-se, pois, as condenações, confirmando a versão oficial elaborada pelo ouvidor, explicitamente condizente com as diretrizes regalistas pombalinas. Desse modo, acredita-se muito ter contribuído para a dimensão tomada pelo episódio (e para o volume de documentação acerca do sermão produzido) a concomitância do ambiente conflituoso caracterizado pelas políticas regalistas com conflitos locais entre o ouvidor e o corpo eclesiástico da região1804: as críticas ao “deplorável estado da Igreja”, portanto, não se pautariam apenas em uma constatação do que ocorria ao longo do império, em um “século corrupto e rebaixado”, mas também em manifestações particulares desse conflito antigo (acentuado no período pombalino) entre os representantes da justiça régia e os homens da Igreja. Assim, a percepção de que a crítica estava sendo a ele dirigida pode ter estado por trás dos esforços do ouvidor, que se mostrou, então, um grande regalista – para, condenando o pároco, ver reafirmadas suas prerrogativas, que haviam sido postas em questão. Entende-se ser necessário, para encerrar, retomar mais um trecho sermão. Após as muitas críticas que apresenta, o padre Manoel propõe que “o direito natural se ponha independente de exemplos, que se confirme nos Palácios o que se ordena nos Santuários [...], que as Leis dos Príncipes não se armem mais, que para fazer observar as Leis de Deus, e que qualquer Prelado obre o bem e emende o mal sem oposição”. Furtado de Mendonça, portanto – que chega a declarar: “a Cristo e só a Cristo respeito: aos mais, sejam quem quer que forem, respeito nem muito nem pouco” –, em contraste flagrante com a afirmação do poder régio como superior e absoluto em seu território, reclama o predomínio do direito natural1805 e a afirmação das Leis de Deus pelas mãos de seus prelados. A dimensão que a condenação ao padre Manoel e a suas palavras assumiram atesta a relevância e o potencial de mobilização das questões então postas em pauta: a possível influência dos jesuítas recém expulsos, a “perda de poder da Igreja” e a “interferência dos ministros seculares”. Acredita-se ser justamente a percepção de como se deu a relação estabelecida entre um sermão pregado em uma vila da América portuguesa e políticas elaboradas em Lisboa, e válidas para todo o império – nomeadamente o regalismo pombalino (e o antijesuitismo que lhe era diretamente vinculado) – que faz relevante o exercício aqui proposto.

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1803

Nesse sentido, cabe destacar o fato de o sermão ter sido pregado na festividade de São Pedro, organizada pela irmandade de São Pedro, que reunia o corpo eclesiástico secular da comarca e era comandada, à altura, pelo vigário da vara. Ademais, a festividade ocorreu na sede da justiça eclesiástica de São Salvador dos Campos, reunindo muitos párocos e demais autoridades – como o ouvidor, representante da justiça régia. 1804 Referidos na documentação, tanto pelo ouvidor quanto pelo referido padre e também pelo vigário da vara. 1805 É importante ressaltar a não univocidade da expressão direito natural. Assim, por um lado, os textos normativos pombalinos mobilizam a expressão no esforço para fortalecer o direito pátrio – limitando a aplicação do direito romano, dos costumes, da jurisprudência e do direito canônico. Por outro lado, contudo, no texto do sermão de São Pedro advoga-se a independência do direito natural como caminho para a independência da aplicação das leis pelas mãos dos prelados – o que levaria a uma submissão da justiça régia à eclesiástica. Tal mudança possibilitaria, nessa lógica, que os pecadores fossem afinal punidos sem interferências de uma justiça estranha. Entende-se, assim, que, se no discurso pombalino mobilizam-se conceitos próximos ao jusracionalismo, no discurso do padre Manoel os conceitos aproximam-se de um jusnaturalismo mais escolástico – em que o direito natural, afim à ideia da vontade e das leis divinas, serviria de critério de legitimidade para a lei positiva. Sobre essas questões, ver: PEREIRA, G. O deplorável... (sobretudo o capítulo V).

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A ALFÂNDEGA DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DA ECONOMIA E PODER NO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS (c.1600-c.1700) Helena de Cassia Trindade de Sá∗

O terceiro meo do nosso poder e opulencia e o principal com quem começou e cresceu Portugal he o comércio.1806

A citação acima demonstra com exatidão a importância da atividade mercantil para o economia de Portugal durante os tempos modernos. Já no início dos Seiscentos nota-se a importância do Brasil nos negócios coloniais, o que pode ser comprovado pela documentação coeva: Notória couza he que hua das melhores que Vossa Magestade possue pela Coroa de Portugal he o estado do Brazil, neste se mostrara o quanto rende assy os dízimos delle como os direytos que suas alfândegas se lhe pagão

O comércio externo, aí incluindo o colonial, “foi o setor mais dinâmico da economia e o principal responsável pela criação de riquezas.”1807 Neste cenário, pode-se inferir, que as conquistas ultramarinas foram fundamentais para a economia lusitana. No que diz respeito a América, a colonização portuguesa, processada nos quadros do Sistema Colonial, visava a construção de uma estrutura produtiva voltada para o abastecimento do mercado europeu gerando lucros que aceleraria a acumulação primitiva de capitais, beneficiando não só a aristocracia como também a burguesia mercantil lusa.A relação estabelecida entre a metrópole e a colônia regia-se pelo “exclusivo comercial”1808 que garantia o “fluxo mercantil reservado unicamente para a adoção de uma forte política protecionista que exigia ações de natureza fiscal e militar para sua plena comercialização.”1809 Garantia-se dessa forma, a exclusividade da compra de produtos produzidos na colônia a preços o mais baixo possível, contrastando com os altos preços da revenda. Completando o circuito, os produtos metropolitanos, ou os adquiridos em outros reinos eram comercializados na colônia sob a mesma égide do exclusivismo. Importante ainda ressaltar que a centralidade da América lusitana foi acentuada com a anexação da Coroa Portuguesa pela Monarquia Hispânica dos Habsburgo. A união dos dois reinos teve aspectos positivos para ambos, com Portugal mantendo seu estatuto de reino e um grau de autonomia, tanto no nível prático quanto simbólico, que “não [se] permite falar de anexação deste reino por Castela.”1810 O contrato firmado entre o monarca e os Estados por ocasião das Cortes de Tomar(qual seja, em ∗

Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Vinculada ao grupo de pesquisa reconhecido pelo CNPq, MANTO, Núcleo de Estudos Coloniais. Está sob a orientação da Professora Doutora Maria Isabel de Siqueira. Agradeço ao Professor Valter Lenine Fernandes pelos comentários e indicação de documentos. E-mail: [email protected] 1806 Arbitrista anônimo do século XVIII, publicado por Godinho,1990,p.119. Citação contida em: SERRÃO, José Vicente. O quadro econômico. In: MATTOSO, José. História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa,Estampa,1998.p.89 1807 Ibid.p.89 1808 Luiz Felipe de Alencastro observa que “de fato o chamado ‘exclusivo colonial’ só se define após 1580. Unido ao trono espanhol, Portugal será arrastado para os conflitos europeus e, por ricochete, atacado no ultramar. Para combater as heresias, mas também por ser ‘contra toda a razão e bom governo’ o fato de que mercadores estrangeiros causassem danos ao comércio do Reino, a ida às conquistas ultramarinas é proibida a partir de 1591.” ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.p.22 1809 NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudo de história e historiografia. São Paulo, Cosac&Naify, 2005.p.4 1810 ANÁLISE SOCIAL, n.167,v.XXXVIII, 2003.p.2

538 ISSN 2358-4912 1581)proporcionaram também uma base de integração, na medida em que foi criado um arcabouço jurídico, que permitia o estabelecimento de confiança entre os súditos e o novo monarca. Tal contrato definiu o lugar ocupado por Portugal no conjunto das possessões hispânicas, “garantindo-lhe larga autonomia em diversos campos[...] e respeitando a organização administrativa já existente, ao manter as funções de todos os tribunais e ao criar o Conselho de Portugal.”1811 A ligação entre Portugal e Espanha envolve também interesses de uma atuante burguesia lusa que detinha negócios como o tráfico negreiro para a América, além de armação de “barcos de transporte, de cuja falta ressentia a Espanha”1812 e que em Portugal já eram empregados largamente no comércio ultramarino. A Restauração, em 1640, foi acolhida favoravelmente por parte de um grupo de comerciantes espanhóis que pretendiam livrar-se dos concorrentes lusitanos, expulsos então, das colônias castelhanas. É inegável, que tal ruptura acarretou, da mesma forma, prejuízos a vários homens de negócios dos dois reinos, com destaque os envolvidos no comércio de escravos. Sob a administração de D. João IV, um Bragança, foram implementadas várias mudanças na condução econômica, tanto na metrópole quanto na colônia americana, aumentando, em relação a esta última, a exploração de recursos e promovendo transformações na esfera administrativa e política, a fim de confirmar o seu poder. Surgem dessa forma, os primeiros sinais que apontam a necessidade de novas configurações para o sistema colonial na medida em que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] rompe-se o monopólio da produção açucareira, acirra-se a competição entre as metrópoles, internacionaliza-se o capital mercantil, amplia-se o consumo pela baixa de preços, ao mesmo tempo em que cresce o consumidor colonial para os produtos manufaturados vindo das metrópoles.1813

Cria-se então, o Conselho Ultramarino1814, que de acordo com Victor Hugo Abril, “foi uma instituição que auxiliou a Coroa a administrar o Império Marítimo Português”1815 e desempenhou relevante função na coordenação da política nos domínios lusitanos.Dentre suas competências destacam-se:a administração da fazenda, a decisão sobre o movimento marítimo para a Índia definindo embarcações, o equipagem e as armas, o provimento de todos os ofícios de Justiça e Fazenda e a orientação dos negócios tocantes à guerra. Até a criação desse Conselho, o Conselho da Fazenda, instituído por Regimento de novembro de 1591 era o órgão máximo que controlava todos os bens reais tanto no reino quanto nos domínios ultramarinos, além do tráfico comercial, tendo por uma das suas atribuições recolher os capitais resultantes da exploração das riquezas do ultramar. Era tal sua importância, que em 28 de setembro de 1623 foi expedida Portaria para que seus membros se reunissem semanalmente em sessão extraordinária para discutir exclusivamente os negócios atlânticos. Em 1649, outra medida iria ratificar o interesse crescente pela exploração colonial: a expedição do alvará pela Coroa, garantindo a criação da Companhia de Comércio, que tinha por objetivo fazer frente à Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e, desta forma, facilitar a retomada das terras das capitanias do Norte ocupadas pelos Holandeses. Para a viabilização dessa empreitada foi então utilizado o recurso da isenção do confisco de bens dos cristãos novos processados pela Inquisição, desde que estes investissem seus cabedais nessa nova Companhia. Era pretensão da Coroa que os homens de negócio financiassem, sem nenhum ônus para a Fazenda Real, os gastos com trinta e seis galeões de guerra que teriam como objetivo guardar as fazendas e embarcações de ataques inimigos, preservando dessa forma a arrecadação de impostos junto as Alfândegas. Os produtos oriundos do Brasil tinham obrigatoriamente que serem embarcados

1811

Ibid.p.3 HOLLANDA, Sergio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo I(A Época Colonial). São Paulo, Bertrand Brasil,2004, v.1.p.178 1813 RICUPERO, Rodrigo. Diretrizes coloniais: legislação e prática de dominação. Anais.XXVI Simpósio Nacional de História. ANPUH. São Paulo,2011,p.3. 1812

1815

ABRIL, Victor Hugo. Governança no ultramar: conflitos e descaminhos no Rio de Janeiro(17251743).2010.251f.Dissertação(Mestrado em História). Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2010.p.4

539 ISSN 2358-4912 para a Europa nos navios da Companhia, pois “nenhum armador mandaria embarcações trazer mercadorias ao Brasil desde que aqui não pudessem obter carga de retorno”. 1816 Sendo assim, pode-se constatar que as diretrizes do chamado Antigo Sistema Colonial foram sendo desenvolvidas no decorrer do processo e de acordo com Rodrigo Ricupero, “nas instruções aos administradores coloniais e na legislação elaborada pela Coroa, que [...] [procurava] responder aos problemas encontrados e enquadrar o processo em curso aos interesses da Coroa.”1817

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O Rio de Janeiro no século XVII No Rio de Janeiro, o século XVII inicia-se com a cidade voltada para a produção agrícola, com o estabelecimento de engenhos de açúcar1818, mas ainda com menor “expressão econômica que Bahia e Pernambuco, principais centros produtores de gêneros de maior valor no comércio [...]”.1819 Com a ocupação holandesa nas capitanias do Norte, gradativamente a cidade vai se constituindo em um entreposto comercial, [...] acarretando a consolidação da vida urbana, [...] o crescimento de sua população de burocratas, eclesiásticos e comerciantes[...] provocando o deslocamento do eixo baiano cuja importância entra rapidamente em declínio.1820 Sendo assim, a cidade passa a ganhar importância, “desempenhando papel central nas relações atlânticas”1821 devido sua localização estratégica, qual seja, no meio da “rota entre as possessões espanholas no estuário do Prata e os enclaves africanos onde os europeus iam buscar escravos.1822 Esta intensificação com o comércio de angola devia-se a necessidade da mão-de-obra escrava para o desempenho de tarefas nos engenhos que se multiplicavam no entorno da cidade. O intercâmbio entre os “platenses” e os fluminenses foi consolidado por casamentos entre oligarquias das duas regiões . Salvador Correia de Sá e Benevides, nomeado governador do Rio de Janeiro em 1637, de ascendência materna espanhola e casado com Carolina de Velasco, viúva de um rico proprietário espanhol no Prata, possuía muitos bens na região platina. “Todo esse poderio oligárquico acoplava –se ao triângulo RioLuanda-Buenos Aires, base de uma rede mercantil cuja atividade interessava Lisboa”1823 Vivaldo Coaracy afirma que o supracitado governador, “era do número dos fidalgos portugueses que sob domínio dos Filipes, estabeleceram intimas ligações em Castela, onde lançaram raízes e não ocultavam sua dedicação a Espanha.”1824Entretanto, mesmo com a recuperação da autonomia portuguesa em relação à Espanha, e aclamação do novo rei,D. João IV, Salvador Correia de Sá e Benevides se manteve no cargo. Em 1642, o monarca concede aos cidadãos e moradores da cidade as mesmas “honras, privilégios e liberdades que gozavam os cidadãos da cidade do Porto”1825, o que torna o Rio de Janeiro a primeira cidade da América portuguesa a receber tal privilégio. 1816

COARACY. Op cit.p.137 Ibid.p.3 1818 Cf. Frédéric Mauro assegura, diz-se que o século XVII foi de depressão em relação as trocas intercontinentais. E, com efeito, se considerarmos a Ásia, verificamos que ela não desempenha nem de longe, na economia europeia, o papel que desempenhou no século XVI[...]. Quanto a América espanhola, encontra-se um recuo, estudado por François Chevalier, corresponde a uma depressão econômica e uma regressão monetária. A América do Norte mal começa a se desenvolver. Nesta situação, o Brasil, goza de um lugar privilegiado. Sua expansão açucareira, mais tardia no século XVI do que outras expansões, atinge o século XVII, seu pleno florescimento[...] o açúcar desempenhou aí uma força motriz dominante, mesmo, porém não a função única. Ao menos deu vida a uma grande prte dos colonos e comércio português. MAURO, Frédéric. Nova História e Novo Mundo. São Paulo, Perspectiva, 1973.p.108 1819 SANCHES, Marcos Guimarães. A administração fazendária na segunda metade do século XVII: ação estatal e relações de poder. RIHGB. Rio de Janeiro, jul/set,2006.p.174. 1820 COARACY, Vivaldo.O Rio de Janeiro no século dezessete. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1965.p.XXXI 1821 Ibid.p.174 1822 BICALHO, Maria Fernanda. Redesenhando fronteiras, ampliando jurisdições: o Rio de Janeiro no período filipino. Anais.XVII Simpósio Nacional de História. Natal, 2013.p.1 1823 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes:formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.p.202 1824 COARACY, Vivaldo. Op cit.p.89-90 1825 COARACY, Vivaldo.O Rio de Janeiro no século dezessete. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1965.p.111 1817

540 ISSN 2358-4912 A economia fluminense também se ressentiu dos efeitos da crise econômica que assolava a Europa, em meados do século XVII, enfrentando carência de recursos para a manutenção de suas despesas 1826, principalmente no que dizia respeito à defesa do território. Tal situação foi agravada pela criação da Companhia de Comércio, que trouxe prejuízos a cidade, uma vez que seu regulamento retirava da Câmara a competência para o estabelecimento dos valores do frete, fator que era usado em benefício dos interesses do comércio. Uma outra medida que visava à manutenção dos lucros da supracitada Companhia de Comércio, mas que trouxe grande prejuízo para a capitania fluminense foi a proibição do fabrico de aguardente, o que representava um golpe para os engenhos. A bebida “era produzida não apenas para consumo local, mas principalmente para a exportação para Angola, onde a mercadoria tinha grande aceitação para o pagamento de escravos.1827 Uma outra questão relevante, também gerada pela referida Companhia foi a insuficiência de gêneros para o abastecimento da cidade trazidos pela primeira frota. Neste contexto, devido a pouca oferta houve um aumento do preço dos produtos o que trouxe consequências econômicas. Na mesma época, uma outra crise envolvendo o açúcar abateu-se sobre a capitania fluminense. Vale lembrar que o açúcar era utilizado desde o governo de Constantino Menelau como moeda. Assim, de acordo com Vivaldo Coaracy:

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Oficialmente o açúcar corria no rio de Janeiro com o valor arbitrado de 1$200 a arroba. Convertido em dinheiro, entretanto nesta praça ninguém pagava por ele mais que $700, embora em Lisboa estivesse cotado a 3$200.[...] Também os impostos eram pagos em açúcar, àquela base de 1$200, e a Fazenda Real assim os recebia , pois só com essa condição encontrava arrematante ou contratantes para a arrecadação. Via-se assim, o governador da cidade na mesma situação em que achava o povo, isto é, lutando com a falta de numerário, ao passo que os açucares de propriedade da 1828 Fazenda se acumulavam nos depósitos.”

No final do século XVII, com a descoberta das minas, a cidade passa a ganhar cada vez mais proeminência no Império Ultramarino. Torna-se assim, um centro cosmopolita, com imensa circulação de pessoas, navios e mercadorias o que fez com que assumisse importância e centralidade no Atlântico Sul, com destaque para seu porto, que se tornou o principal escoadouro do ouro e receptor de produtos oriundos da metrópole que iriam abastecer as cidades mineradoras. A Alfândega do Rio de Janeiro durante e após o período filipino Os portos “configuram-se como peças centrais para o comércio entre a metrópole e a colônia.”1829 Sendo assim, eram fundamentais para o sustento do processo exploratório colonial e de comunicação entre as diversas partes do mundo, sendo parte integrante da cadeia econômica que se fazia entre a metrópole e a colônia. Neste sentido, podem-se destacar as Alfândegas como repartições essenciais para a política colonial da Coroa, uma vez que eram responsáveis pela arrecadação de direitos sobre a entrada e saída de mercadorias. Na concepção de Joaquim Romero Magalhães, as alfândegas eram essenciais no processo de rendimentos da Coroa portuguesa, pois abaixo dos tratos ultramarinos eram destas instituições que provinha a maior parte dos reditos da Coroa.1830 A preocupação pela instalação de postos alfandegários data do inicio da colonização. No Rio de Janeiro a alfândega foi instalada logo após a expulsão dos franceses, na segunda metade dos

1826

SANCHES, Marcos Guimarães.A administração fazendária na segunda metade do século XVII: ação estatal e relações de poder.RIGHB, Rio de janeiro, jul/set.2006.p177 1827 COARACY, Vivaldo. Op.cit.p.138 1828 Ibid.p.147 1829 FERNANDES, Valter Lenine;ABRIL, Victor Hugo. Portos e cidades: comércio, política e sociedade no Rio de Janeiro colonial. Estudos Históricos, n.3, dez.2009.p.1 1830 MAGALHÃES, Joaquim Romero. 1997.p.100 apud FERNANDES, Valter Lenine. As condições do contrato da dízima da Alfândega e as bases da dinâmica comercial no Rio de Janeiro(1700-1750).Anais.XXVII Simpósio Nacional de história.Natal,2013.p.1

541 ISSN 2358-4912 Quinhentos. Ela fazia parte da Provedoria da Fazenda Real da Capitania, permanecendo assim até o ano de 1704 quando foi transformada em instituição autônoma.1831 Posto isso, em relação aos cargos, o Provedor exercia também a função de Juiz da Alfândega. O quadro dessa instituição no século XVII era modesto, contando com um número reduzido de funcionários. Além do Provedor/Juiz da Alfândega, possuía ainda, almoxarife, escrivão, rendeiros e guardas.1832 Com a proeminência cada vez maior nos negócios ultramarinos, o Rio de Janeiro gradativamente vai se consolidando como a principal praça do Centro-Sul da colônia, e contando na “segunda metade dos Seiscentos com a segunda maior frota da América portuguesa, só perdendo para a de Salvador.”1833 No final do século XVII, com a descoberta do ouro nas Minas, inicia-se um período de muita prosperidade para a cidade e de aumento exponencial das transações alfandegárias, na medida em que o Rio de janeiro transformou-se, como afirma Maria Fernanda Bicalho,“[...] no principal receptor de escravos e mercadorias europeias e asiáticas, assim, como no maior escoador das riquezas coloniais,.1834 A cidade foi se destacando como um centro cosmopolita, com intensa circulação de pessoas, navios, mercadorias, o que fez despertar a cobiça de corsários e contrabandistas. Nireu Cavalcanti afirma que esta: “se tornou o principal escoadouro da produção aurífera das Minas Gerais, incorporando o comércio cisplatino e de outras regiões da colônia.”1835, o que certamente exigia precauções em relação a defesa. Nesse contexto passa a ser instituído no final desta centúria a Dízima da Alfândega, ou seja, um imposto de dez por cento sobre mercadorias que entravam e saíam do porto, possuindo uma finalidade fiscal, sendo balizada pelo Foral da Alfândega de Lisboa, certamente com algumas adaptações para a realidade da colônia. Criado pelos cidadãos da Câmara, tal imposto seria destinado a pagar toda a infantaria da guarnição da praça. 1836 Logo este se transformou numa das mais importantes fontes de arrecadação e transferência de recursos para a Coroa. Outro ponto que merece realce são as relações sociais estabelecidas no interior da Alfândega, o que revela uma rede de sociabilidade importante para os negócios particulares e a política (local e no Reino). Contudo, isso não impediu constantes conflitos entre os agentes que nela perpassavam com as demais autoridades, o que pode ser exposto pela reclamação feita através de carta datada de 14 de maio de 1619, do Provedor da Fazenda Real Diogo Lopes de Bulhão ao Rei D. Filipe II sobre o procedimento adotado pelo Governador Rui Vaz Pinto cuja intromissão em matéria da Fazenda prejudicava ao exercício do seu cargo.1837 Tal fato demonstra um jogo envolvendo os poderes locais e metropolitanos no espaço urbano da cidade e o exame dessa hierarquia indica a existência de vários conflitos e o estudo desses agentes pode evidenciar aspectos da vida cotidiana da sociedade colonial. Por fim, não poderia deixar mencionado que a alfândega também era palco de atividades ilícitas. Carta ao Rei D. João de 29 de maio de 1642 expedida pelo Provedor da Fazenda do Rio de Janeiro Domingos Correia, que foi nomeado para tal cargo como reconhecimento pelos serviços prestados durante a guerra contra os holandeses, denunciava os descaminhos praticados na alfândega envolvendo o Governador e Capitão-mor Salvador Correia de Sá e Benevides e o ex-Provedor da Fazenda Pedro de Sousa Pereira. Dizia a referida carta: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1831

Carta Régia de 4 de setembro de 1704(Arquivo Nacional, códice 60,vol.28,f.113v) mandou que o governador nomeasse pessoa para o cargo de Juiz da Alfândega, distinguindo-o do cargo de Provedor da Fazenda.(SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.p.287)

1832

Cf. SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos.: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.p.227-228 1833 SANTOS, Núbia Melhem;LENZI, Maria Isabel(org.) O porto e a cidade. Casa da Palavra,2005.p.34-35 1834 BICALHO, Maria Fernanda. O Rio de Janeiro no século XVIII:A transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa.p.7. Disponível em: www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1.pdf 1835 CAVALCANTE, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesaaté a chegada da corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004.p.77 1836 FERNANDES,Valter Lenine. Os contratadores e o contrato da dízima do Rio de Janeiro (1723-1743).2010.234f. Dissertação(Mestrado em História)-Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.p.155 1837

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ISSN 2358-4912 [..]hera tempo de se extinguirem alguns abuzos e insolências que a cobiça dos Ministros do Brazil havião introduzido appontando todos os meyos, como se havia de proceder, que herão declarar e dar regimento aos ministros e officiaes da fazenda para que se não oprimão os navegantes com mimos e precalços, entradas e sahidas das embarcações, e porque os Provedores da Fazenda della, desde 636 para cá, transidirão com excesso e nota, os costumes antigos e pedião aos navegantes e seus navios e barcos direitos intoleráveis, dando campo a seus excessos, e não haver na alfândega da ditta capitania regimento que se limite o que deve levar os despachos, entradas e sahidas das embarcações.1838

Faz-se necessário esclarecer ainda que infere-se que o supracitado denunciante, Domingos Correia, tenha sido deposto do seu cargo pelo grupo aliado do Governador Salvador Correia de Sá e Benevides , e substituído por Pedro Sousa Pereira, parente afim do referido governador, personagem controverso do Rio de Janeiro seiscentista, com inclusive várias acusações de assassinatos de adversários.1839 Toda essa celeuma demonstra as relações conflituosas e o envolvimento de interesses de grupos de colonos na administração da capitania. Conclusão Evidencia-se dessa forma ser a Alfândega uma instituição, ou melhor, uma organização social inserida numa cultura política e econômica própria do Sistema Colonial. Tal instituição é de grande importância para o entendimento dos mecanismos da estrutura colonial, uma vez que no seu interior pode ser visualizar uma dinâmica de contradições concomitante com uma flexibilização, mas nem por isso deixando de seguir a regra geral do que estabelecido para seu funcionamento, ou seja, estar a serviço dos interesses econômicos metropolitanos. Referências ABRIL, Victor Hugo. Governança no ultramar: conflitos e descaminhos no Rio de Janeiro(17251743).2010.251f.Dissertação(Mestrado em História). Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2010. ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes:formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000 ARRUDA, José Jobson de A. O sentido da colonização:rediscutindo o Antigo Sistema Colonial.In: TENGARRINHA, José(Org.)História de Portugal. São Paulo, UNESP, 2000. BICALHO, Maria Fernanda. Redesenhando fronteiras, ampliando jurisdições: o Rio de Janeiro no período filipino. Anais.XVII Simpósio Nacional de História. Natal, 2013 _________________. O Rio de Janeiro no século XVIII:A transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa.p.7. Disponível em: www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1.pdf _________________. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003 CAVALCANTE, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesaaté a chegada da corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004. COARACY, Vivaldo.O Rio de Janeiro no século dezessete. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1965. FERLINI, Vera Lucia Amaral. Açúcar e colonização. São Paulo, Alameda,2010 FERNANDES, Valter Lenine. As condições do contrato da dízima da Alfândega e as bases da dinâmica comercial no Rio de Janeiro(1700-1750).Anais.XXVII Simpósio Nacional de história.Natal,2013 __________________. Os contratadores e o contrato da dízima do Rio de Janeiro (1723-1743).2010.234f. Dissertação(Mestrado em História)-Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. FERNANDES, Valter Lenine;ABRIL, Victor Hugo. Portos e cidades: comércio, política e sociedade no Rio de Janeiro colonial. Estudos Históricos, n.3, dez.2009. 1838 1839

AHU-ACL-N. Caixa 2, doc.268. Cf. GODOY, José Eduardo Pimentel de. Alfândega do Rio de Janeiro.Brasília, ESAF,2002.p.18

543 ISSN 2358-4912 FRAGOSO, João Ribeiro;GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil Colonial.v.2(ca.1580-ca.1720). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,2014 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Alfândega do Rio de Janeiro.Brasília, ESAF,2002 MAGALHÃES, Joaquim Romero. 1997.p.100 apud FERNANDES, Valter Lenine. As condições do contrato da dízima da Alfândega e as bases da dinâmica comercial no Rio de Janeiro(17001750).Anais.XXVII Simpósio Nacional de história.Natal,2013.

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MAURO, Frédéric. Nova História e Novo Mundo. São Paulo, Perspectiva, 1973. NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudo de história e historiografia. São Paulo, Cosac&Naify, 2005. SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos.: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. SANCHES, Marcos Guimarães.A administração fazendária na segunda metade do século XVII: ação estatal e relações de poder.RIGHB, Rio de janeiro, jul/set.2006. SANTOS, Núbia Melhem;LENZI, Maria Isabel(org.) O porto e a cidade. Casa da Palavra,2005. RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial:Brasil c.1530-c.1630. São Paulo, Alameda, 2009. ____________________. Diretrizes coloniais: legislação e prática de dominação. Anais.XXVI Simpósio Nacional de História. ANPUH. São Paulo, julho,2011.

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DIÁLOGOS, DISPUTAS E CONJUNTURAS NAS ATAS DA CÂMARA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (1646-1654) Helidacy Maria Muniz Corrêa1840 Na capitania do Maranhão a intalação da Câmara motivou uma série de diálogos entre as elites do poder local, bem como com a administração central. Dentre os principais diálogos travados no âmbito interno da câmara dois chamam atenção: o compromisso dos oficiais em garantir a ocupação, aumento e organização da Conquista e as eleições. A preocupação com os aspectos do crescimento da terra esteve presente desde os primeiros momentos da fundação da câmara. Na explicação ao rei sobre a instalação da Câmara os agentes revelam o envolvimento com a política defendida pela Coroa ibérica de povoamento, aumento e organização da terra. “A criação desta Câmara – iniciavam - teve princípio com a chegada de Jorge de Lemos de Betancor1841 e da gente que Vossa Majestade por ele mandou trazer a esta conquista”. “E – diziam - e sentaram o capitão mor dela Diogo da Costa Machado e o provedor da Fazenda Luiz de Madureira e juntamente os homens bons da conquista que convinha ordenasse Republica e cidade para o aumento da conquista e bom governo dos moradores”. E concluíam: “o que até agora não havia feito por estarem as cousas muito nos princípios posto que havia para isso muitas ordens de Vossa Majestade, do Governador Geral deste Estado comunicando-se isto com o dito Jorge de Lemos o aprovou e com sua assistência e intervenção se ordenou a Câmara.1842 Preocupada com a ocupação da terra, a Coroa portuguesa estimulou as iniciativas de conquistadores interessados em promover o povoamento no Maranhão e Pará. Por isso, os “homens bons da conquista” especificavam a finalidade da instalação da Câmara naquelas paragens, isto é, “para o aumento da conquista e bom governo dos moradores”. Promover o aumento da Conquista significava organizar a vida local de modo a que tivessem acesso basicamente à terra e mão de obra. A instalação da Câmara em São Luís foi uma decisão régia como expressaram os próprios camaristas: “posto que havia para isso muitas ordens de Vossa Majestade”. A determinação régia visava a promover a organização da Conquista e a regulamentação da vida política e administrativa da cidade. A urgência se dava em razão da necessidade de organizar política e administrativamente o território. Após justificarem a importância do Senado, os oficiais se ocuparam de informar ao monarca como procederam para organizar politicamente o território. O cuidado com a descrição da composição do corpo político é uma das tópicas mais recorrentes nos documentos da câmara de São Luís. Pelo zelo na descrição entende-se a profunda vinculação desses oficiais com os preceitos políticos régio. “Procedendo - diziam - chamar-se o povo com bando público e tomaram todos três os votos em que saíram por eleitores Ruy de Sousa e o capitão Pero da Cunha d’Avilla e o seu alferes Simão da Cunha e Álvaro Barbosa de Mendonça.” Explicavam que “estes – eram - da companhia do dito Jorge de Lemos e da terra o sargento mor desta conquista Afonso Gonçalves Ferreira e o capitão Bento Maciel Parente”.1843 Em São Luís, durante o século XVII, poucos assuntos ocuparam o mesmo espaço nos livros de registros da Câmara que as eleições para os cargos camarários. O único tema a disputar tal espaço, certamente, foi a questão indígena. Essa fixação excessiva com o ritual escriturário eleitoral coloca a política num lugar central na vida concelhia. Tratada de forma minuciosa, a redação das eleições traz as sutilezas de um texto aparentemente árido pela repetição do ritual. Chega a parecer uma oração. Por outro lado, nas fissuras do ritual, quando os acontecimentos obrigam o escrivão a quebrar a rotina da escrita, o texto expõe um quadro complexo e variável da dinâmica política da principal instituição municipal naquele recém-domínio ultramarino português. Ainda que o escrivão fosse econômico nos relatos por motivos práticos ou por dificuldades no desenhar das letras, as eleições invariavelmente ocuparam espaço de destaque no cenário político local.

1840

Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Email: [email protected] AHU_ ACL_CU_009, Caixa1, Doc. 109. 1842 Carta dos Camaristas de S. Luiz a El-Rei, de 9 de dezembro de 1619. STUDART, op. cit., p.237. 1843 Carta dos Camaristas de S. Luiz a El-Rei, de 9 de dezembro de 1619. STUDART, op. cit. 1841

545 ISSN 2358-4912 Por que manter uma solenidade que beirava ao “sagrado”? O processo de formação do corpo político de São Luís iniciou com a participação popular. O “povo” foi convocado em pregão, isto é, bando público, para escolher os eleitores para a referida eleição do Senado. Em seguida os eleitores escolheram dentre os elegíveis, os que iriam compor o Senado: “e por votos destes que se ordenaram na forma da ordenação em que saíram por juízes para este ano os capitães Simão Estácio da Silveira e Jorge da Costa Machado e por vereadores o dito Álvaro Barbosa e o sargento mor Antonio Vaz Borba e por procurador saiu Antonio Simões.”1844 Infelizmente, na carta de fundação da câmara, os oficiais não revelam a lista com os nomes dos elegíveis e nem detalham os critérios adotados para escolha dos eleitores ou dos elegíveis. Suponho tratar-se dos de “melhor qualidade” da terra. O cenário eleitoral acomodava três importantes atores no processo: os eleitores, aqueles escolhidos pela população local para eleger os oficiais que disputariam os cargos da Câmara; os elegíveis, os candidatos escolhidos pelos eleitores para submeter seu nome ao pleito, e os eleitos, os mais votados para exerceram o ofício para o qual foram eleitos1845. Além destes oficiais foi nomeado para escrivão da Câmara João Barbosa de Caldas. Como se percebe, os “homens bons do povo” que compuseram o corpo político da República eram cuidadosamente escolhidos entre os locais. De modo geral, os termos de vereação registram os nomes dos eleitos que iriam servir no triênio seguinte. Nas documentações da Câmara de São Luís para o período deste trabalho encontrei alguns termos nos quais o escrivão se refere à nomeação de eleitores para fazer a eleição e outros em que havia pequenas listas de elegíveis para os cargos de juiz e vereador, respectivamente. Acredito que pela raridade dos referidos documentos eles mereçam uma análise. O primeiro a se referir aos eleitores é de 26 de dezembro de 1647. Nele o povo foi convocado a comparecer ao Senado “para se fazerem os eleitores por quando de presente não havia corregedor da comarca”.1846 Do mesmo modo, em 26 de dezembro de 16501847 o corpo político da Câmara de São Luís se reuniu para eleger eleitores, a saber, o juiz ordinário Bartholomeu Lopes Florença que presidia a sessão, os vereadores Bartolomeu Ribeiro, Antonio Pereira e Fernão Mendes Gago, o procurador Pero de Aguiar. Nesses documentos, a participação popular no processo eleitoral do Senado ocorria somente na primeira etapa do pleito, ou seja, quando os populares eram convocados para, juntamente com os camaristas, escolher os eleitores. Outro aspecto é que a escolha dos “homens bons” do povo efetivamente era realizada por um seleto grupo de pessoas pertencentes ao Senado. Os termos acima revelam ainda que a presença dos eleitores nos pleitos da Câmara não parou na década de quarenta. Na realidade, em 1650, o processo de escolha dos eleitores continua. Analisando-se mais detidamente os documentos percebe-se que a questão é complexa. No final do ano de 1647, quando se aproximava o tempo de fazer eleição geral, o procurador da Câmara, João Gonçalves Trovisco fomentou o debate na Casa. O envolvido era o próprio ouvidor geral e corregedor da Comarca, Antonio Figueira Durão. A situação se apresentou quando o procurador, lembrando aos membros da Casa de que era tempo de fazer eleição, requeria que mandassem chamar ao referido ouvidor geral e corregedor da Comarca “para se fazer a dita eleição como Sua Majestade ordena em suas Ordenações por quando o dito ouvidor geral e corregedor da Comarca fez deixação da vara em esta Câmara como consta do termo que disso se fez”.1848 O que motivava a convocação de Durão ao Senado era basicamente um problema: a quem cabia o carrego da eleição na ausência do ouvidor geral? Porém, se o ouvidor geral já havia registrado sua desistência no cargo, por que a Casa insistia em ouvi-lo? O Senado não estaria se aproveitando da situação para fazer uma exposição vexatória do ouvidor geral? V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1844

Ibidem. MONTEIRO, Nuno G. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. In: ______. Elites e Poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismos. 2. ed.. Lisboa: ICS, 2007. 1846 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 26 de dezembro de 1647, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f. 64 a 67, APEM. 1847 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 26 de dezembro de 1650, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f. 21 a 22, APEM. 1848 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 26 de dezembro de 1647, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.64 a 66v, APEM. (destaques meus). 1845

546 ISSN 2358-4912 O tempo das eleições se aproximava e, pela legislação, a Câmara precisava realizá-las. No entanto, o ouvidor geral não exercia mais o cargo. Os camaristas convocaram-no para informá-lo do requerimento e para que apresentasse aos membros da Casa, explicações relativas às eleições que estavam prestes a acontecer. Atendendo à convocação o ouvidor compareceu à Câmara e se dirigiu aos presentes esclarecendo que “fizera deixação do cargo de ouvidor geral muito contra sua vontade, mas que o fizera por se lhe impedir o curso da Justiça no dito cargo de ouvidor geral”.1849 Explicou ainda que estava determinado a “ir em pessoa dar conta a Sua Majestade de semelhantes excessos e que ordenando-lhe o dito Senhor tornaria a este Estado a servir seu cargo se o dito Senhor assim o ordenasse”. O ouvidor geral reportou-se ao problema da eleição apenas observando: “e no tocante a eleição podiam suas mercês ordenar o que mais fosse serviço de Sua Majestade. O ouvidor geral se desobrigava de estar presente na eleição e deixava a Câmara livre para fazê-la como conviesse. Somente após essa declaração os oficiais procederam à eleição. Primeiro mandaram chamar o povo à Câmara “para se fazerem seis eleitores por quanto de presente não havia corregedor da Comarca”. Apurada a pauta pelo juiz, “saíram a mais votos por eleitores Augostinho Corrêa e João da Silva e Bartolomeu Lopes Florença e Paulo Gomes Beirão e Manoel Freire Louzada”. Após o povo ter escolhido os eleitores, o juiz ordinário lhes deu juramento. Cumprida a segunda parte da eleição, ou seja, a votação de dezoito pessoas elegeram os “homens bons” que serviriam no triênio1850 seguinte. Limpa a pauta, lacrados e guardados os pelouros1851 foi chamado o juiz mais votado. Ao chegar ao Senado, o eleito Antonio Dias, disse “ao dito juiz que ele estava servindo a Sua Majestade e tinha praça assentada o que visto pelo dito juiz o houve por desobrigado [e] em seu lugar saiu João da Silva”.1852 As medidas tomadas pelos camaristas visavam a resguardar o princípio legal da eleição para o triênio seguinte. Ao convocar o ouvidor geral para prestar esclarecimentos à Câmara sobre seu afastamento, os oficiais estavam preocupados com a legalidade e legitimidade do pleito. A declaração de Durão de que podiam proceder conforme o que fosse mais conveniente ao serviço régio era uma garantia de que o processo não seria questionado futuramente. A respeito da eleição dos eleitores em 26 de dezembro de 1650, a sessão foi aberta com o requerimento do procurador pedindo para que houvesse eleição, tendo em vista que o triênio finalizava. O juiz Bartolomeu Lopes Florença “foi tomando os votos em companhia de mim escrivão para se fazer a eleição dos eleitores”. Em seguida, “sendo tomados os ditos votos pelo dito juiz mais velho Bartolomeu Lopes Florença foi apurada e limpa a dita pauta [e] deles saíram por eleitores a mais votos as pessoas abaixo nomeadas”. Os eleitores eram Thomé Faleiro e João Gonçalves Trovisco e Simão Pereira, Agostinho Correa e Antonio Dias e Frutuoso Pereira.1853 Escolhidos os eleitores, o juiz Bartolomeu Florença “lhes encarregou que debaixo do juramento que recebido tinham fizessem eleição de dezoito [pessoas] para haverem de servir estes três anos”, distribuídas em “seis juízes e nove vereadores e três procuradores da Câmara”. Desse modo, “sendo feito eleição pelos ditos eleitores dos oficiais que hão de servir estes três anos seguintes” foi limpa a pauta pelo juiz ordinário. No dia 28 de dezembro de 1650, o pleito foi questionado pelo ouvidor geral, Antonio Fernandez do Amaral. Os camaristas reunidos sob a presença do ouvidor, escutaram dele que a eleição feita pelo juiz mais velho, Bartholomeu Lopes Florença, era improcedente tendo em vista que o pleito pertencia ao V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1849

Termo de Vereação do Senado de São Luís, 26 de dezembro de 1647, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.66, APEM. 1850 A cada três anos os camaristas se reuniam em vereação para a eleger os oficiais que deveriam servir na Câmara por um período de um ano cada um. 1851 Pelouros de vereação, pelouros de justiça ou, simplesmente pelouros eram três pequenas bolas de cera onde se introduziam os papéis contendo as listas com os nomes escolhidos para ocupar os cargos de Juiz Ordinário, Vereador e Procurador no triênio seguinte. Ao fim de cada ano, cada bola, ou pelouro com os nomes dos indivíduos era sorteado para servir no respectivo cargo no ano seguinte. Em geral, pelouro designava a lista ou bilhete de eleição, o voto do eleitor. Fazer pelouro era fazer eleição da Câmara sair nos pelouros significava sair nomeado, eleito. CÓDIGO FILIPINO, op. cit, p. 147. Ver também BLUTEUA, op. cit., p. 384, t. VI. 1852 Ibidem. 1853 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 26 de dezembro de 1650, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f. 21 a 22, APEM.

547 ISSN 2358-4912 ouvidor da capitania e não ao juiz que a realizou. Lembrava aos demais que o ouvidor fazia ofício de corregedor da comarca. Acrescentava ainda que mesmo que o ouvidor não estivesse na cidade e o juiz fizesse a eleição, este “tinha obrigação junto com o juiz, seu companheiro, e os vereadores [de] verem o rol dos votos e deles escolherem para eleitores os que mais votos tivessem na conformidade que Sua Majestade ordena”1854, o que o referido juiz não fez. O juiz Bartholomeu Florença não tinha chamado o outro juiz, seu companheiro, nem os vereadores para verem o rol e escolherem os eleitores. Nesse momento, o procurador da Câmara interveio e justificou o modo pelo qual a eleição fora realizada, argumentando que a maior parte dos membros da Casa “era recolhida para suas fazendas” distantes da cidade “e que não seria possível fazer-se dita eleição a tempo” de os oficiais servirem o ano seguinte. Por isso, pedia ao ouvidor que fosse considerado “ que o erro que na dita eleição houvera não foi ordenado de malícia senão por ele dito juiz não ser letrado nem saber o entendimento necessário à Ordenação”. E “pediam ao digníssimo Senhor Governador fosse servido em nome de Sua Majestade suprir e o qual erro que na dita eleição houvesse por esta vez somente”. O procurador alegou que desse modo se atalhava a moléstia do povo e dava “remédio a este negócios por não haver falta na eleição de necessidade”. Convencido de que o erro não fora intencional, o ouvidor acatou o pedido do procurador, mas desde que os “ditos oficiais da Câmara prometessem que nas semelhantes eleições ou jurisdição que tocar aos ouvidores [não o] impedirão [de] fazer sua obrigação e logo pelo dito ouvidor foi confirmada a dita eleição como se por ele fora feita e a ela assistira”. Os demais oficiais que também deveriam estar presente na eleição aceitaram a sua confirmação. O documento, assinado por todos, finalizava afirmando: “Confirmo a dita eleição na maneira declarada em nome de Sua Majestade vista a conformidade do ouvidor e mais oficiais da Câmara”.1855 Tanto em 1647 quanto em 1650, assim como ao longo dos processos eleitorais no século XVII, a presença do ouvidor geral era imprescindível para a legitimidade da eleição. Os momentos de sua ausência no processo eleitoral devem ser compreendidos como mais um dos inúmeros casos em que as circunstâncias locais imprimiram um ritmo peculiar ao quadro político geral, mas legalmente, as eleições somente poderiam ser realizadas com a presença do ouvidor geral. Outro aspecto a observar em 1650 é que o erro foi motivado em razão de o juiz ordinário não ser letrado, isto é, o oficial não era um magistrado de carreira. O pouco conhecimento ou mesmo desconhecimento das leis do Reino de Portugal fez com que o juiz ordinário se equivocasse. Portanto, imprevisibilidades do processo eleitoral como essas eram reflexos do perfil do quadro político local. Poucos homens letrados e homens sem conhecimento das leis faziam compunham as autoridades locais. Por isso, a razoabilidade ou mesmo flexibilidade das autoridades régias, como a do ouvidor Antonio Fernandez do Amaral diante das situações locais era quase um imperativo na tentativa de diminuir as tensões locais. Mas a complexidade das eleições na Câmara de São Luís não parava por aí. Em outro termo - muito revelador dos métodos empregados no processo eleitoral da Câmara de São Luís - encontrei pequenas listas de elegíveis ao cargo de juiz e de vereador. A primeira lista é datada de 7 de janeiro de 1651, quando os oficiais se reuniram em vereação sob a presidência do vereador mais velho, João Gonçalves Trovisco, além dos vereadores Valentim Baldez e Manoel Baião e do procurador João Pereira Borges, para elegerem um juiz ordinário, visto o eleito, Paulo Gomes Beirão, estar impedido por não ter completado os dois anos de interregno necessários entre o primeiro e segundo exercício. A eleição foi conduzida pelo juiz Amaro Gonçalves e pelo escrivão. Convocados os “homens bons do povo” procederam à votação. Os nomes dos elegíveis foram listados um abaixo do outro e, ao lado de cada nome foi feita uma linha horizontal na qual cada eleitor individualmente marcou com um pequeno traço vertical o seu voto ao lado do nome escolhido. A lista era composta de cinco elegíveis, a saber, Antonio Dias, Antonio Lopes Sampaio, Paulo Gomes Beirão, João Pereira Cáseres, Brás Reixa Castelo Branco e Manoel Freire Louzada. Ao lado dos nomes de Brás Reixa Castelo Branco e Manoel Freire Louzada aparece um traço, indicando o número de votos obtidos. Antonio Dias, Antonio Lopes Sampaio e Paulo Gomes Beirão apresentam dois traços. E o nome de João Pereira Cáseres foi marcado com quinze traços ou votos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1854

Termo de Vereação do Senado de São Luís, 28 de dezembro de 1650, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.22v a 23v, APEM. 1855 Ibidem.

548 ISSN 2358-4912 Constam ainda no corpus documental duas outras pequenas listas de elegíveis. Uma no termo de 27 de maio de 1653, também para o cargo de juiz ordinário, no qual disputavam Agostinho Corrêa, Herônimo Gonçalves Maceiro, Manoel Nunes e Simão Pires, sendo o segundo da lista o mais votado.1856 Em 29 de julho de 1651 o termo apresenta uma pequena lista de elegíveis para vereadores. Os candidatos foram: Frutuoso Pereira, Manoel Pires e Sebastião Gonçalves, sendo eleito o segundo. A recorrência aos traços ao lado dos nomes dos elegíveis nas listas de juízes e vereadores para indicar os votos resultava de um método prático para contagem dos votos ou indicava que alguns dos “homens bons” não sabiam escrever? Nos processos de eleições, fosse de pelouro ou de barrete, uma preocupação que acometia os camaristas e, sobretudo, os procuradores, dizia respeito ao grau de parentesco entre os eleitos. Em 1647, a Câmara de São Luís precisou eleger um vereador para substituir Manoel de Carvalho que tinha ido servir no Pará. Sendo eleito Agostinho Correa, este recusou o cargo justificando que tinha “praça de soldado e assim um partido de cana no rio Itapecuru de que pagava dízimo a Sua Majestade” e por isso não podia assumir o cargo de vereador na eleição de barrete a qual tinha saído.1857 A Câmara nomeou para seu substituto Paulo Gomes Beirão.1858 Porém, o então procurador João Gonçalves Troviscos questionou a consangüinidade do nomeado alegando que “porquanto o dito Paulo Gomes Beirão é casado com a sogra do juiz Tomé Faleiro e padrasto da [ilegível] mulher do dito juiz Tomé Faleiro e por que a sua dúvida [era]se podia servir com o juiz Tomé Faleiro sendo padrasto de sua mulher acordaram a mandar chamar o doutor e ouvidor geral Antonio Figueira Durão para resolver a dúvida.1859 O procurador debatia saber os limites da consanguinidade. Ou seja, queria saber se podia ou não haver parentes exercendo cargos na Câmara. Além de debater sobre a legalidade de uma situação, o tema certamente interessava a muitos na Casa. Até que ponto era permitido o parentesco na Câmara? Cabia à assembleia recorrer a um letrado para dirimir tal questão. O Senado imediatamente convocou o ouvidor geral Antonio Figueira Durão. Na assembleia, ao ser inquirido, o ouvidor geral foi enfático: “Paulo Gomes Beirão podia mui bem servir de vereador com o dito juiz Tomé Faleiro porque além de que o dito juiz não tem afinidade alguma com o dito Paulo Gomes mas somente sua Mulher”. E continuou: “ainda que tiveram(sic) parentes com consanguinidade ou afinidade podia ambos servir na forma sobredita”. Isto “porque a Ordenação que proíbe a tais parentes ou cunhados no Concelho se entende nesta forma a saber que dois parentes ou cunhados não podem ambos ser juízes nem ambos vereadores”. E concluía: “porém um juiz e um vereador podem servir por toque sejam parentes ou cunhados como se tem julgado na Casa da Suplicação Del Rei Nosso Senhor como refere o doutor Graviel Pereira na decisão oitenta”. Dessa “forma houve o dito ouvidor geral por respondido a proposta da pergunta que se lhe fez”. O debate suscitado era de fato complexo e importante para o processo eleitoral e os interesses dos presentes. A questão foi contemplada pelo ouvidor em três partes, a saber, a afinidade entre os eleitos, o que determinavam as Ordenações e a interpretação da lei feita pelos letrados do Reino. Na primeira parte, o ouvidor foi categórico em negar quaisquer parentescos entre o vereador eleito e o juiz. Isto porque não havia parentesco, em linha direta, entre Paulo Beirão e Tomé Faleiro. Portanto, pela via direta o grau de parentesco não constituía impedimento para o vereador assumir o cargo, visto que ele não era parente do juiz, mas de sua mulher. Na segunda parte o ouvidor recorreu às legislações do Reino. As Ordenações Filipinas eram claras quanto à existência de parentescos nos cargos de juízes e vereadores: “E nos pelouros dos juízes e vereadores não ajuntará parentes, ou cunhados dentro do dito quarto grau, para em hum ano haverem de servir”.1860 De fato, o ouvidor estava correto sobre a consanguinidade dos oficiais. A lei previa ainda

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1856

Termo de Vereação do Senado de São Luís, 27 de maio de 1653, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.61v, APEM. 1857 Ver termos de Vereação do Senado de São Luís dos dias 19 de janeiro, f. 35v; 11 de agosto, f. 51v. e 28 de setembro de 1647, f. 55 do Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, APEM. 1858 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 3 de outubro de 1647, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.55, APEM 1859 Termo de Vereação do Senado de São Luís, 12 de outubro de 1647, Livro de Acórdãos da Câmara de São Luís, f.55v a 57, APEM. 1860 CÓDIGO, op. cit., p. 155.

549 ISSN 2358-4912 parentescos por afinidades, uma vez que cunhado é parente por afinidade. Ainda assim, mais uma vez o ouvidor estava certo ao negar o parentesco entre o vereador e juiz. Na terceira parte Antonio Figueira Durão foi ainda mais profundo em sua análise sobre o limite da participação de parentes na Câmara. De acordo com o letrado, ainda que Paulo Gomes e Tomé Faleiro fossem parentes, mesmo assim não constituiria impedimento uma vez que o entendimento da lei na Assembleia era o de que só haveria impedimento se os dois fossem eleitos para exercer o mesmo cargo. Neste tema, o Senado, segundo o ouvidor-geral, seguia o entendimento e prática da Casa da Suplicação, órgão jurídico e administrativo ao qual o Estado do Maranhão e Grão Pará estavam subordinados diretamente. Segundo a interpretação corrente no Reino sobre esses casos, a proibição do parentesco só valeria para os cargos individualmente. Ou seja, não poderia haver dois juízes parentes, assim como não seria permitido dois vereadores parentes, até o quarto grau, no mesmo exercício. Por este entendimento do ouvidor e, segundo ele, da Casa da Suplicação estava resguardada a legalidade das parentelas nas funções mais elevadas do poder local, desde que fossem para cargos diferentes. Como foi assinalado atrás, o critério para participar do Senado era pertencer às redes familiares que tivessem ocupado cargos na municipalidade. Assim, a despeito de algumas variantes no processo eleitoral, durante o século XVII é sintomático que a solenidade das eleições ocupasse um espaço tão largo nos livros de registros da Câmara de São Luís. O cuidado na descrição do processo eleitoral tal qual na carta dos primeiros fundadores da Câmara de São Luís, em 1619 era reflexo de que a manutenção do rigor da solenidade representava, além da garantia de legalidade e legitimidade do processo, o lugar central reivindicado pelas municipalidades, desde a sua fundação, na organização política do território. Essa organização não se limitou ao aspecto da formação da municipalidade ou aos jogos políticos internos em torno dos cargos. Ela se materializou também nos debates estabelecidos entre membros da Casa. Por meio dos debates, os camaristas de São Luís elegeram assuntos para enfatizar ao rei que o “aumento” da Conquista dependia das prioridades locais. Sem ela, a ação político-administrativa da governança local não teria bons resultados.

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O GOVERNO GERAL DO ESTADO DO BRASIL E A ORGANIZAÇÃO DA INSURREIÇÃO PERNAMBUCANA (1642-1645) Hugo André Flores Fernandes Araújo No presente artigo analisaremos como a articulação entre o governo geral e os moradores de Pernambuco, possibilitou o desenvolvimento de um plano de insurreição contra o domínio holandês no nordeste do Estado do Brasil. Objetivamos expor e analisar as estratégias adotadas para a realização da insurreição, que contava com apoio velado de D. João IV. Um novo governador geral chegou à Bahia em 1642, António Teles da Silva, que tomou posse do governo em 30 de Agosto, desfazendo a junta de governadores interinos que haviam deposto o vice-rei, Marquês de Montalvão 1861. Seu governo se iniciou em um período de “paz”, que fora inicialmente acordada entre o Marques de Montalvão e o Conde de Nassau e posteriormente formalizada entre os Estados Gerais e o Reino de Portugal. O tratado assinado em Haia teria validade de dez anos e previa a paz entre Holandeses e Portugueses e o combate de seu inimigo em comum, o rei de Castela 1862. Evaldo Cabral de Mello indicou que para ambas as partes tinham interesse na paz definitiva, fosse alcançada por acordo ou pelo desfecho da guerra, pois as tréguas não eliminavam as altas despesas do conflito e não trariam as vantagens do butim. O tratado de tréguas “congelava o statu quo territorial” 1863 , uma vez que a cessão de hostilidades também representava, em teoria, a manutenção do controle sobre os territórios que ambas partes detinham naquele momento. Segundo Evaldo Cabral de Mello a Companhia das Índias Ocidentais (W.I.C.) aproveitou-se do tempo que as notícias do tratado levaram para chegar até a América, de modo que ainda em 1641 os holandeses investiram sobre os territórios de Sergipe, despovoado pela guerra, e conquistando Angola, para evitar que a colônia se declarasse em favor do rei de Castela, privando o Brasil holandês de escravos bantos, mais baratos e mais resistentes do que os da costa da Minam além de Benguela, das Ilhas de São Tomé e Ano Bom, do forte de Axim (Guiné) e de São Luís do Maranhão1864.

O descontentamento com o tratado de tréguas que não conseguiu assegurar a restituição de Pernambuco, o principal anseio da Coroa em sua missão diplomática, somado as perdas sofridas na África e na Ásia em 1641, geraram insatisfação na corte portuguesa, onde “uma cabala de cortesãos * Doutorando em História Social pela UFRJ. Bolsista CAPES. 1861 Apesar das demonstrações de fidelidade à nova dinastia, o primeiro vice-rei do Brasil, o Marquês de Montalvão, foi deposto em 16 de Abril de 1641. O jesuíta Francisco Vilhena veio embarcado na mesma nau que trouxe ao Estado do Brasil as notícias da restauração, trazia consigo “ordens secretas” que deveriam ser cumpridas “caso o Marquês de Montalvão ainda não houvesse aclamado D. João IV como rei de Portugal, ou se houvesse alguma suspeita de que este fidalgo assumisse o partido de Castela, o irmão Vilhena deveria instituir uma Junta Governativa, composta pelo Provedor Mor da Fazenda, do Mestre de Campo mais velho e pelo Bispo do Brasil e, após isso, declarar deposto o Vice-Rei em exercício” SANTANA, Ricardo George Souza Santana Lourenço de Brito Correa: o sujeito mais perverso e escandaloso. Conflitos e suspeitas de motim no segundo vicereinado do Conde de Óbidos. (Bahia 1663-1667). Feira de Santana: Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Feira de Santa, 2012, p. 33. 1862 Como consta no primeiro item do tratado: “Primeiramente foi assentado, verdadeiro, firme puro, e inviolável concerto de tregoas, e suspensão de todo o acto de hostelidade, entre o dito Rey, e as Ordens Géraes, assi por Mar, e todas as mais agoas, como por terra, em respeito de todos os subditos, e moradores das Provincias unidas, de qualquer condição que elles forem, sem excepção de lugares, ou de pessoas, as quais defendem contra el Rey de Castella, as partes de Sua Magestade, e daqui por diante, se achar que as vão defendendo, e isto em todas as terras, e mares, de hua, e de outra parte da linha conforme as condições, e limitação por ambas as partes abaixo declaradas, por tempo de dez annos”. J.F. Borges de Castro. Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente. Tomo I, Lisboa, 1856, p. 29. Disponível em: Acesso em: 18 de mar. 2013. 1863 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 1998, p. 33 1864 Loc. cit.

551 ISSN 2358-4912 ligados a D. João IV desde seus tempos de Duque de Bragança” 1865 começou a se desenvolver uma alternativa para reaver o nordeste Estado do Brasil. Estes nobres e fidalgos começaram a articular uma resposta à investida dos Países Baixos, buscando agir “informalmente à margem do sistema institucional, eles planejaram reaver o Nordeste mediante uma insurreição luso-brasileira no Brasil Holandês” 1866. Um dos principais agentes desse grupo1867 foi António Teles da Silva, aclamador de D. João IV:

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um dos vários fidalgos que participaram do 1º. de Dezembro de 1640, que segundo os relatos de época, foi o único destes que ficou ferido na ação. Em decorrência de sua participação António Teles da Silva foi nomeado em 1641 para mestre de campo general do Alentejo, para o Conselho de Estado e Conselho de Guerra. Em 1642 a dinastia Bragantina lhe passava a patente de seu primeiro governador geral do Estado do Brasil. 1868

No próximo tópico analisaremos os primeiros anos do governo de António Teles da Silva, identificando as principais ações governativas que visavam fortalecer a defesa da praça da Bahia, bem como as principais dificuldades inerentes a esta questão. Os apertos da fazenda: os meios para a defesa da Praça da Bahia Entre as primeiras ações de governo, António Teles da Silva representou ao Monarca português o estado em que encontrou a Praça 1869 da Bahia, conforme estava previsto no 4° item de seu regimento, que ordenava ao governador geral tomar ciência das fortalezas, soldados e artilharia e enviar relatório ao Reino 1870. O relatório enviado ao reino era também uma resposta a uma ordem que recebia do Conselho da Fazenda, para a redução do número de soldados naquela praça para dois mil. A esta ordem o governador geral respondeu, “esta Praça senão poderá sustentar com dous mil homens: porque senhor estas couzas nam tem meyo” 1871, pois esse número era insuficiente para a defesa da Praça, caso os holandeses fizessem uma investida. António Teles da Silva argumentava para que se cuidasse não só dos preparos com a tropa, mas com a estrutura e a organização da defesa: “Que agora haja mais vigia, & que esteja esta Praça forteficada de maneira, que o Inimigo perca as esperanças.” 1872. Em seu relato António Teles da Silva informou que encontrou uma fortificação em construção, com a maior parte feita, mas que para guarnecê-la seriam necessários três mil homens, sendo que justificou sua proposição afirmando que “para ter dous mil homens effectivos, he necess.rio. haver tres mil homens, porque doentes, impedidos, & os q assitem nos Ilheos, Morro, & Rio Real levam grande parte” 1873. Segundo a certidão de Gonçalo Pinto de Freitas, escrivão da Fazenda Real, em novembro de 1865

MELLO, Evaldo Cabral de “O sinal verde d’El Rei”. In: Um imenso Portugal: história e historiografia. 2ª. Ed. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 224. 1866 Loc. cit. 1867 Segundo Evaldo Cabral de Mello o grupo era composto pelo “conde de Penaguião, camareiro-mor, a quem El Rei doara o engenho do Moreno em Pernambuco, (...) António Pais Veiga, secretário particular do monarca, D. Henrique da Silva, marquês de Gouveia e mordomo-mor, o secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva, e um parente de Penaguião, Antônio Teles da Silva, nomeado governador-geral do Brasil com vistas à execução do plano.” Loc. cit. 1868 ARAÚJO, Hugo André F. F. “Um Império de Serviços: ofícios e trajetórias sociais dos governadores gerais do Estado do Brasil no século XVII”. Anais da XXIX Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora Monarquias, Repúblicas e Ditaduras: entre liberdades e igualdades. Juiz de Fora, 2012. p. 132-133. Disponível em: Acesso em: 22 de jan. 2014. 1869 Segundo D. Raphael Bluteau este é um termo Militar que se refere a “qualquer lugar fortificado com muros, reparos, baluartes flanqueados, &c. em que a gente se pode defender do Inimigo.” BLUTEAU, Vol. VI, p. 666. 1870 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Administração Central (ACL). Avulsos da Bahia, Conselho Ultramarino (CU). 005, Cx.1, D. 40 1871 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 976. 1872 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 976. 1873 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 976. - A importância do forte do Morro de São Paulo “é mais resultado da importância da zona produtora de alimentos, ao sul do Recôncavo, do que como ponto estratégico para a defesa da Baía e de Salvador”. PUNTONI, Pedro. “O ‘mal do estado brasílico’: A Bahia na crise final do

552 ISSN 2358-4912 1642 a Praça da Bahia contava com 2455 homens, sendo que 2238 eram efetivos, 129 estavam no hospital ou no quartel e 88 estavam no Rio Real 1874. Alimentar esse efetivo custava à fazenda real, por dia, mais de 80$000 1875. A carta do governador geral também informou sobre a “disposição” dos moradores em ajudar no sustento e ampliação da defesa: “Os moradores vendo quanto convem para segurança desta Praça, haver tres mil homes, elles mesmos, se querem fintar para a sustentação delles, pelos meyos mais suaves de q ficão tratando” 1876. António Teles da Silva conseguiu o apoio da Câmara durante os primeiros dias de seu governo, uma vez empossado encaminhou uma portaria ao conselho municipal de Salvador informando as dificuldades da fazenda Real em sustentar os soldados e a necessidade de fortalecer aquela praça terminando as obras de fortificação e guarnecendo a com três mil soldados. O governador geral apresentou aos oficiais camarários a sua justificativa para tomar essas medidas: “a pouca comfiansa que se ha de ter da amizade dos olandezes pois a esperiensia nos tem mostrado que se o tempo ou nosso descuido lhes ofereser coalquer ocazião nam hão de perder” 1877. Devemos lembrar que a conjuntura do século XVII foi extremamente crítica para a Monarquia Portuguesa, sobretudo para a Fazenda Real, onerada com elevadas despesas militares, fruto dos conflitos por todo o império ultramarino português. Na análise de Evaldo Cabral de Mello a monarquia lusa não interveio com mais ênfase no conflito, na sua fase inicial, por não dispor de

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forças navais suficientes, tendo de manter as poucas de que dispunha na defesa do Tejo contra um ataque espanhol, nem recursos com que financiar uma armada restauradora, e, mesmo se tivesse podido aprestá-la, não se arriscaria a fazê-lo em face da implicações internacionais para sua relações com as Províncias Unidas e com a França.1878

Neste cenário, a contribuição das povoações locais e de suas elites cresceu gradativamente, pois tiveram que arcar quase inteiramente com os custos da defesa, recaindo sobre suas rendas – ou sobre as rendas arrecadadas pelas câmaras – a obrigatoriedade do fardamento, sustento e pagamento dos soldos das tropas e guarnições, a construção e reparo das fortalezas, o apresto de naus guarda-costas contra piratas e corsários, a manutenção de armadas em situações especiais e em momentos de ameaças concretas, a execução de obras públicas e outros melhoramentos urbanos.1879

Em setembro de 1642 António Teles da Silva enviou relatório ao Reino dando conta das despesas e rendas da Fazenda Real do Estado do Brasil. Nesta relação constam os valores das despesas com a defesa da Praça: o custo por dia dos soldados das vinte praças da Bahia ($35,51880 por soldado, sendo século XVII”. In: Segundo Congresso Latinoamericano de História Económica (CLADHE-II): Simpósio “Guerra y fiscalidad em La América Colonial (Siglos XVI-XIX)”. México, 2010, p. 14. Disponível em: http://www.economia.unam.mx/cladhe/registro/ponencias/357_abstract.pdf. Acessado em: 25/02/2013. 1874 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 996. 1875 “para se dar Ração aos soldados, são necessários oitenta mil rs cada dia”. AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 979. 1876 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 976. – Segundo D. Raphael Bluteau finta é um “Tributo, que se paga ao Principe do rendimento da fazenda de cada súbdito. (...) Costumão os Principes por fintas em occurrencia de alguma necessidade, ou utilidade, como quando he preciso fazer guerra, fabricar hua ponte, ou outro edifício publico, & cada hum esta obrigado a contribuir segundo a fazenda, que possue.” BLUTEAU, D. Raphael. Vol. IV, p. 127 1877 Documentos Históricos do Arquivo Municipal de Salvador (DH-AMS) Atas da Câmara, (1641-1649). Vol. II. Salvador: Prefeitura do Município de Salvador, 1942, p. 120-121. 1878 MELLO, Evaldo Cabral de Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 3ª edição. São Paulo: Editora 34, 2007, p. 49. 1879 BICALHO, Maria Fernanda Baptista “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João Fragoso, Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa. (Orgs) O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 199. 1880 A título de comparação percebemos que os soldados que lutavam nas Guerras da Restauração recebiam um valor um pouco maior que os soldados que “sentavam praça” no Estado do Brasil, $40 por dia mais alojamento. Cf:

553 ISSN 2358-4912 que desse valor $30 são em dinheiro e o restante correspondia a um alqueire de farinha para trinta dias 1881 ) o que por ano totalizava em 25: 968$000; os soldos de dois mestres de campo, um tenente de mestre de Campo General, um engenheiro, dois sargentos mores, oito ajudantes, dezoito capitães, vinte alferes e vinte sargentos totalizavam por ano 4: 488$000. Assim sendo as despesas com “as gente de guerra”, tanto os custos dos soldados como os soldos dos oficiais maiores, eram de 30:456$000 (o que representa 70,37% do total das despesas). Adicionado a esse valor os 12: 800$000 de despesa com as folhas ordinárias do assentamento eclesiástico e secular finalizava a despesa total, por ano, de 43: 274$000. Conforme podemos observar na tabela 1 as rendas por ano totalizavam 37: 373$322, o que nos evidencia que em 1642 o déficit da fazenda perfazia o total de 5: 900$6681882. No relatório ainda consta a informação de que para se criar mais um terço com mil homens, para totalizar os três mil que António Teles da Silva recomendava, seriam necessários mais 12: 993$000 por ano, com os oficiais maiores desse terço se gastariam 2:004$000 para ter um mestre de campo, um sargento mor, dois ajudantes, nove capitães, dez alferes e dez sargentos1883. Por fim, temos a indicação de que para guarnecer a Praça como recomendava o governador geral seria necessário a soma de 20: 897$688, sendo que se excluía dessa conta V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

as mais despezas meudas extraordinárias q são muitas e de necessidade se fazem assy no sustento e reparo dos Indios do Camarão, e Negros de Henrique Dias, gastos meudos e concerto de embarcações e das Armas com q servem os soldados e cura delles no ospital e outros m.tos. doentes, fretes e carretos alugueis de almazens, Reparos da Artelharia, Refino de pólvora 1884.

O estado da Fazenda Real não era dos melhores, o que levou António Teles da Silva a ter constante negociação com o reino e com as elites locais em busca de sanar questões fundamentais como o sustento da gente de guerra e a estrutura física de defesa da praça. Entre motivos que explicam o aperto financeiro em que se encontrava a Fazenda Real podemos ressaltar a falta de moeda, como por várias vezes informou o governador geral, também podemos inferir que as ações dos governadores interinos debilitaram as rendas, sobretudo pela retirada de 9.000 cruzados da “finta q. o Povo fazia para sustento dos soldados” 1885.

HESPANHA, António Manuel “As finanças da Guerra”. In: Manuel Themudo Barata, Nuno Severiano Teixeira. (Dir) Nova História Militar de Portugal. Vol. 2. Coord: António Manuel Hespanha. Lisboa: Circulo de Leitores, 2004, p.177. 1881 Segundo Stuart Schwartz um alqueire correspondia a 36,27 litros. Cf: SCHWARTZ, Stuart; PÉCORA, Alcir (Orgs.) As excelências do governador: O panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676) São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 324. 1882 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977 1883 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977 1884 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977 1885 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 970. - A junta interina de governadores havia deposto o Marquês de Montalvão, vice-rei do Estado do Brasil, por “suspeitar” de sua lealdade com a nova dinastia. António Teles da Silva havia recebido instruções para averiguar os procedimentos da junta interina, dada a informação que havia no Reino de que os ordenados da junta foram retirados da finta que o povo havia feito para o sustento, correspondendo à soma de 9000 cruzados. Cf: MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias “Equus Rusus”: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654). Salvador: Tese de Doutorado em História, Universidade Federal da Bahia, 2010. p. 208.

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ISSN 2358-4912 Tabela 1 - Despesas e Rendas para o ano de 1642 (AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977)

Relação de Despesas e Rendas da Fazenda Real em 1642 Despesas Soldo e Ração para soldados – 25:968$000 Soldos dos oficiais maiores – 4:488$000 Folhas ordinárias – 12:800$000

Total: 43:274$000

Rendas Dizimas dos açúcares1886 – 14:666$666 Pesca das baleias – 1:866$666 Terças do Conselho – 230$000 Vintenas das caixas de açúcar – 1:000$000 Dizimas da alfândega – 0 1887 Dizimas da Chancelaria – 0 1888 Estanco do Sal – 1:600$000 Foro de Casas – 10$000 Imposição do Vinho1889 – 16:000$000 Vinho de Mel e Água Ardente – 2:000$000 Total: 37:373$332

A questão da falta de moeda no Estado do Brasil nesse período pode ser explicada pelas mudanças na geopolítica com o fim da União Ibérica, dado o rompimento do comércio com o Rio da Prata, uma das principais fontes de moeda para o Estado do Brasil e a perda de Angola em 1641 para os holandeses, a principal fonte de mão de obra escrava, comercializada na América Portuguesa. Lembramos aqui a famosa constatação do padre jesuíta António Vieira, que através de suas observações ressaltou as implicações destas mudanças para o Reino: “porque sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros” 1890. O jesuíta buscou alertar o monarca D. João IV sobre essa matéria, explicando-o que

1886

Como explica Wolfgang Lenk os “Tributos diretos, como os dízimos ou a vintena, eram separados do total produzido por cada proprietário de lavouras ou engenhos de açúcar, ou (com muito menor importância) do lavrador escravista de tabaco e outros gêneros e do produtor direto ou prestador de serviços livre.” LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração colonial da Bahia (1624-1654). Campinas: Tese de Doutorado em Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2009. p. 214. 1887 “As dizimas da Alfandega Rendião os annos atrás pouco mais ou menos duzentos mil rs em consideração de entrarem neste Porto m.ts. navios de Canaria e do Rio da prata q pagavão dizimas das fazendas q. traziaõ e agora não rendem nada por falta dos ditos navios”. AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977. 1888 “As dizimas da Chancelaria Rendião os annos atrás trez.tos. mil rs com q se pagava o ordenado do ouvido geral e de prez.te. não rende nada e se lhe paga dos mais effeitos q há da fazenda real”. – AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 977. 1889 De acordo com Wolfgang Lenk “a imposição dos vinhos, o direito dos escravos, o direitos sobre o óleo de baleia e as aguardentes, bem como a taxa de embarque do açúcar incidiam todos sobre o preço pago pelo comprador, que sofria o encargo em última instância” LENK, Wolfgang. Op. cit. p. 214 1890 “Carta XLVI – Ao Marquês de Niza- Haia, 12 de Agosto de 1648.” VIEIRA, Antônio. Cartas do Padre Vieira. coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo. Tomo I. Coimbra, Imprensa da Universidade. 1925. p. 243. Sobre essa passagem de Vieira, Charles Boxer inferiu que “Os holandeses estavam tão cientes disso quanto o perspicaz jesuíta”, considerando esse o principal motivo da ocupação de Luanda e Benguela. Cf: BOXER, Charles Ralph Salvador Correia de Sá e a luta pelo Brasil e Angola: 1602-1686. Tradução de Olivério M. de Oliveira Pinto. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1973. p. 252-253

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ISSN 2358-4912 O Brasil (que é só o que sustenta o comércio e alfândegas, e o que chama aos nossos portos esses poucos navios estrangeiros que neles vemos) com a desunião do Rio da Prata, não tem dinheiro, e com a falta de Angola, cedo não terá açúcar; (...) porque a falta dos negros de Angola não se pode suprir com os escravos de outras partes, por serem incapazes de aturar o trabalho dos canaviais e engenhos, como a experiência mostra largamente. 1891

O fato de não se cunhar moeda na América Portuguesa foi outro agravante da condição em que se encontrava a Fazenda Real, pois como afirmavam os oficiais da câmara de Salvador: “a causa porque falta he por q. na terra nunca ouve dr.o. senão o que veio doutras partes, do qual se hia sacando p.a. o Reyno” 1892. De acordo a mesma representação da câmara, vários eram os inconvenientes da falta de dinheiro: a impossibilidade de aumentar as Rendas da Fazenda Real, que já se encontrava em estado crítico; a ameaça ao bem comum, pela necessidade de sustentar os soldados da Praça e pelo entrave ao revigoramento do comércio para os moradores da Bahia, pois todos esses fatores, como em última medida alegaram, ameaçavam a conservação daquela Praça 1893. Os dados listados até aqui nos permitem inferir que a situação da fazenda real não propiciava a empresa de um confronto direto com os holandeses em Pernambuco, uma vez que a receita em Salvador era insuficiente para manter a defesa da própria praça. Além disso, a conjuntura de guerra de fronteira no reino onerava as finanças da Coroa, que corria sério risco de ver sua dinastia recém “restaurada”, destituída pelo monarca espanhol. Conforme indicou Evaldo Cabral de Mello, entre “1641-1643 D. João IV ainda acreditava nas chances de uma solução diplomática, com a esperança no êxito dos entendimentos de Haia (...). Entrementes, o projeto de insurreição luso-brasileira era posto em banho-maria, para a hipótese do fracasso das negociações” 1894. A delicada situação de Portugal no plano diplomático europeu impunha ao novo monarca uma série de receios em romper abertamente o tratado de tréguas, o monarca esperava que essa iniciativa fosse tomada pelos holandeses 1895 Nesse sentido, a organização da defesa do presídio da Bahia contribuiu para o desenvolvimento de uma alternativa ao conflito com os holandeses, as autoridades reinóis organizaram os planos para uma insurreição dos moradores de Pernambuco. A organização da insurreição O tratado de tréguas assinado em 1641 foi violado por ambas as partes, que souberam explorá-lo, ou simplesmente o ignoraram conforme suas vontades 1896. O restabelecimento do comércio com o Rio da Prata era uma alternativa considerada para “remediar” a Fazenda Real. Desde setembro de 1642 temos referências que o governador geral tentava estabelecer relações com esses territórios 1897, mas somente em Janeiro de 1643 encontramos a maneira pela qual António Teles da Silva tratou desse assunto. Segundo o governador geral uma ordem régia, de 10 de maio de 1642, o instruía que buscasse o comércio com o Rio da Prata, contudo, o governador geral relatava as dificuldades de se cumprir tal tarefa, em função do tratado de tréguas e cessão de hostilidades, assinado em 12 de junho de 1641. Dessa forma António Teles da Silva relatava o seu receio em cumprir a ordem, “plo prohibir o cap. 18

1891

“Proposta feita a El-Rei Dom João IV, em que se lhe representava o miserável estado do reino e necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa. 3 de julho de 1643, Lisboa.” VIEIRA, Antônio. Obras Escolhidas. Vol. IV. Prefácio e notas de A. Sérgio e H. Cidade. Lisboa: 1951-1954, p. 7-8. 1892 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 980. 1893 Cf: AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx. 8, D. 980 - Em assento de 23 de Julho de 1643 os oficiais da câmara se manifestavam sobre a importância de se cunhar moeda no Estado do Brasil, “per acharem que assim era nesesario pera a comservassão do prezidio he sustento delle he ainda de toda a Republica”. DH-AMS. Atas da Câmara. Vol. II, p. 177. 1894 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. 2008. p. 225. 1895 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. 1998. p. 40. 1896 Cf:VAINFAS, Ronaldo “Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa”. In: Tempo. Vol. 14, No. 27. Niterói, Dezembro de 2009. p. 91-92. 1897 “Eu fico tratando do Comercio com o Rio da Prata: há Deus de permittir que o sucesso, seja qual eu dezejo”. AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.8, D. 979.

556 ISSN 2358-4912 das pazes que se fizeram com os Holandezes” 1898. O referido capítulo do tratado assinado entre portugueses e holandeses impunha a seguinte restrição:

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Nem seja licito aos Portugueses, nem aos moradores destas Provincias, dar passagem algua de naos, negros, mercadorias, ou outras cousas necessarias, para as Indias dos Castelhanos, ou para outros lugares cituados naquellas partes, com penna de perdimento da nao, das pessoas, e das fazendas que ahi forem achadas, e de que como inimigos serio prezos, e tratados. 1899

Devemos destacar dois fatos: 1) a ordem régia para restabelecer comércio com o rio da prata foi passada ao governador geral no reino antes de tomar posse do governo geral e antes da monarquia lusa firmar o acordo com os holandeses; 2) o governador geral teve acesso ao conteúdo do tratado de tréguas, pois este indicou um capítulo específico que o proibia de estabelecer relações com os territórios da monarquia castelhana 1900. Ainda assim a restrição do tratado foi contornada pelo governador geral que enviou ao Rio da Prata um navio “com as drogas de que la poderia haver mayor falta” 1901. A embarcação partiu da Bahia em 24 de Janeiro de 1643 rumo ao Rio da Prata, para a defesa de sua tripulação o governador geral enviou vinte e cinco soldados que levavam ordens escritas: uma verdadeira que seria utilizada para comerciar e outra falsa para o caso do navio ser apreendido por holandeses. Caso encontrassem com holandeses não deveriam oferecer resistência, eram instruídos a lançar as ordens verdadeiras ao mar e apresentar aos captores as ordens que não indicavam o real motivo de sua presença naquelas águas 1902. Contudo, essa tentativa não obteve sucesso1903. Mesmo sem sucesso este é um indicativo de que o trato de tréguas foi desrespeitado. O tratado de trégua foi constantemente desrespeitado por António Teles da Silva, pois segundo José António Gonsalves de Mello o governador geral utilizou-se da “permissão do Artigo 16 1904do tratado de paz, de livre comunicação entre as duas colônias” para “fomentar descontentamentos entre os moradores de Pernambuco” 1905. António Teles da Silva enviou ao Recife, André Vidal de Negreiros, que havia vindo do reino na companhia do governador geral, e Manuel Pacheco de Aguiar, ambos iriam tratar com o Alto Conselho sobre a liberdade de comunicação entre Pernambuco e Bahia, apresentavam um pedido do governador geral, que seria atendido pelo Alto Conselho, o que favorecia a organização da insurreição. António Teles da Silva solicitou: em primeiro, lugar, como se poderá estabelecer a comunicação entre os moradores de uma e outra jurisdição, a qual, de conformidade com os Artigos 10 e 15 do tratado de paz, deverá ser sem temor nem suspeita e sem lembrança das hostilidades e prejuízos passados, antes cada uma das nações confiando na outra, ajudando-se e favorencendo-se mutuamente. E para que tal se consiga é necessário que se faça publicar que durante o período da paz firmada, podem os moradores de uma 1898

AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1002. J.F. Borges de Castro. Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente. Tomo I, Lisboa, 1856, p. 39. Disponível em: Acesso em: 27 de fev. 2013. 1900 De acordo com o capítulo 60° do regimento, António Teles da Silva receberia “hua copia das tregoas feitas com os estados geraes das prov.as. unidas de Olanda e zelanda” AHU. Avulsos da Bahia, CU. 005, Cx.1, D.40. 1901 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1002. 1902 “se acazo topassem Hollandezes, lhe dey hua ordem fechada para que lansandose a outra ao mar se abrisse esta & se lhes mostrasse porque por Ella se deixava entender, que nam hia o navio comercear”. AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1002. 1903 Cf: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (DH-BNRJ). 1656-1659, Provisões, Alvarás e Sesmarias. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1930. p. 59-60 1904 Artigo XVI do tratado de tréguas: “Os Comércios para os lugares, Senhorios, e temos de hua, e outra parte, no Brazil, quaisquer que sejão, serão somente premitidos, assi mesmos, excluídos todos os outros, nem seja licito aos Portugueses freqüentar os lugares, Jurisdições, e termos dos subditos destes Estados, nem menos aos súbditos destes Estados hirem aos semelhantes lugares dos Portugueses, salvo se de commum vontade, e consentimento parecer despois contratar em outra forma. J.F. Borges de Castro. Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente. Tomo I, Lisboa, 1856, p.38- 39. Disponível em: . Acesso em: 27 de fev. 2013. 1905 MELLO, José António Gonsalves de João Fernandes Vieira: Mestre-de-campo do terço de infantaria de Pernambuco. Lisboa: CNCDP, 2000. p. 80. 1899

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ISSN 2358-4912 jurisdição entrar e sair da outra, sem impedimento nem desconfiança, pois esta é a amizade que o tratamento de paz determina e isto está Vossa Excelência obrigado a 1906 fazer proclamar.

Vidal de Negreiros “seguira para o recife, com a incumbência oficial de propor a regulamentação do artigo do tratado de trégua que previa liberdade de comunicação entre o Brasil Holandês e a América Portuguesa” 1907, contudo seu “verdadeiro intuito era o de tratar de fomentar aí a insurreição, mostrando, secretamente, documentos para prova de como os serviços nela feitos seriam bem aceitos e recompensados pelo rei” 1908. Durante essa incursão Vidal de Negreiros estabeleceu contato com João Fernandes Vieira, como este confirmou anos mais tarde ao Conselho Ultramarino 1909. O governador geral do Estado do Brasil aproveitou-se do favorecimento concedido pelo Alto Conselho e através de André Vidal de Negreiros iniciou os planos de insurreição. A ocupação holandesa no Estado do Maranhão começou a ser posta em xeque em meados de Setembro de 1642. No início de 1643 o domínio holandês sofreu duros golpes, pelo “fato de haver recebido socorro do Pará, de gente e de munições” 1910. De Salvador, António Teles da Silva comunicava o monarca os acontecimentos do Maranhão, relatando os auxílios que prestou a essa insurreição quando teve notícias dela: Com as noticias q. tive de haverem dado os do Pará no Maranhão, & degolado a todos os Holandezes que ali acharão, por me parecer que estariam faltos de munições, despachey outro navio, em que lhes madey dez quintais de pólvora, seis de ballas, & seis de murrão, que he o mais 1911 com que os pude socorrer, por nam estarem estes almazens muy providos.

O auxílio à insurreição no Estado do Maranhão foi uma clara violação do tratado de tréguas de 1641. Os holandeses suspeitavam da ajuda da Bahia, contudo não possuíam provas e o governador geral negava envolvimento e desrespeito ao acordo de paz 1912. António Teles da Silva continuou instigando o desejo de insurreição nos moradores de Pernambuco, de acordo com José Antonio Gonsalves de Mello entre Dezembro de 1642 e Janeiro de 1643 alguns poucos soldados percorreram o interior de Pernambuco a mando do governador geral, colhendo informações sobre o estado do exército holandês e buscando agitar os ânimos dos moradores de Pernambuco 1913, ação que, segundo o autor, não passou despercebida pelas autoridades holandesas. A constante comunicação entre o governo geral e os moradores de Pernambuco era intermediada pelas autoridades que iam de Salvador ao Recife com “ordens oficiais” para tratar com o Alto Conselho, aproveitando a estadia nas terras ocupadas para articular a conjuração com os moradores insatisfeitos com a subordinação aos holandeses. André Vidal de Negreiros era encarregado de trocar informações com João Fernandes Vieira, foi novamente ao Recife em 1644, sob o pretexto de pedir licença ao Alto Conselho do Recife para visitar seus pais na Paraíba 1914, pois havia recebido licença do governador geral para ir ao reino lutar na guerra contra a Espanha e “pela ociosidade em que se acha no socego deste Estado” 1915. Apresentando uma carta assinada António Teles da Silva, Vidal de Negreiros solicitou e obteve a permissão do Alto Conselho e na mesma ocasião “se avistou com João Fernandes Vieira em sua casa, do qual foi alegremente recebido (...) e junto com ele veio Fr. Inácio, religioso de S. Bento, (...) os quais vinham tratar com ele cousas importantes para o bem da 1906

Loc. cit. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. 2008. p. 226. 1908 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História das lutas com os holandeses no Brasil: Desde 1624 até 1654. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002. p. 187. 1909 Cf: MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. 2010, p. 347; Cf: Francisco Adolfo de Varnhagen. História das lutas com os hollandezes no Brazil: Desde 1624 até 1654. Viena d’Austria, 1871. p. 352. 1910 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. 2002. p. 189. 1911 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1002. 1912 Cf: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. 2002. p. 189. 1913 Cf: MELLO, José Antonio Gonsalves de. Op. cit. p. 81. 1914 Cf: SANTIAGO, Diogo Lopes. História da Guerra de Pernambuco. Recife: CEPE, 2004. p.183. 1915 Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambuco (RIAHGP). Número 34, Dezembro de 1887. Recife: Typographia Universal, 1887. p. 70. 1907

558 ISSN 2358-4912 restauração de Pernambuco” 1916. Nesta ocasião Vidal de Negreiros recebeu uma carta de Fernandes Vieira destinada ao governador geral, na qual o morador de Pernambuco informou sobre “as tiranias que os holandeses usavam com eles, que já quase desesperados estavam, resolutos de vender-lhes as vidas a troco de seu sangue e vingar suas crueldades” 1917. Os planos de insurreição já estavam em prática e Vidal de Negreiros de posse do “salvo-conduto, encaminhou-se por terra à Paraíba” onde “passou a combinar o plano de conspiração (...) por satisfação e exigências de João Fernandes Vieira, na Paraíba, devia o movimento rebentar primeiro” 1918. Ainda em 1644 o governador geral recebeu cartas anônimas de moradores de Pernambuco informando sobre a vinda de uma armada holandesa 1919, e remetia cópias dessas noticias ao Reino informando as suas suspeitas sobre a veracidade dos rumores: “nesta nova se me representam muidas duvidas; sendo a primeyra ser publica: porque costumando os Holandezes guardar grande segredo em seus intentos, romperam agora este, mais parece temor de se verem com o pouco poder, que hoje tem” 1920. Contudo apesar de duvidar dos rumores o governador geral informava ter preparado a praça da Bahia para o possível ataque como se a dita armada já estivesse a caminho 1921. Um dos “anônimos” que enviou a notícia da armada holandesa ao governador geral nos chama a atenção pela quantidade de informações que fornece a António Teles da Silva, relatando diversos eventos da conjuntura internacional naquele período. O morador de Pernambuco, ao que nos parece, desfrutava de uma posição privilegiada na estrutura do dito Brasil Holandês, tendo acesso às notícias de ações holandesas, informava ao governador geral sobre as investidas “nas índias” contra as possessões portuguesas; relatava sobre a guerra civil que ocorria na Inglaterra e dos conflitos na França; e ainda advertia sobre as “falsidades” dos holandeses informando: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

corre aqui por novas de Holanda & juntamente outra a El Rey de Dinamarca sendo seu amigo, fingindo que mandavão hua armada de socorro ao dito Rey, porquanto hia de grande queda da guerra, que tem com o de Suecia, & foy so assim de lhe tomarem huns portos, que a elles lhes sam de 1922 muita importância para sua navegação.

Esse ilustre “anônimo” ainda apresentava ao governador geral um plano para recuperar Pernambuco, com a proposta de fazer guerra “sem custo”. Segundo seu relato havia três maneiras para conseguir recuperar Pernambuco: 1) destruindo os canaviais e fazendas, matando o gado e tomando os escravos; 2) fazendo retirada dos moradores para Bahia, “para que lhes nam facao lavouras, nem elles tenham com quem fazer negocio e mercancia” 1923; 3) o envio de tropas da Bahia comandados por António de Freitas da Silva e por André Vidal de Negreiros auxiliadas pelo terço de Felipe Camarão e seus índios 1924. Como veremos adiante as ações da insurreição procederam com um misto das três proposições do “anônimo” de Pernambuco, que sofreram algumas alterações em função das contingências que os insurretos enfrentaram. “amigos fingidos e inimigos emcubertos” Uma vez que João Fernandes Vieira deflagrou a insurreição em Pernambuco, as autoridades holandesas não tardaram a mandar uma embaixada a Salvador, “para descobrirem com esta sobcapa de embaixada se estava na Bahia alguma armada de Portugal” 1925. Os embaixadores holandeses foram protestar contra a insurreição, acusando o governador geral de favorecer os moradores revoltosos, pois

1916

SANTIAGO, Diogo Lopes. Op. cit. p.183 Loc. cit. 1918 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. 2002. p. 196. 1919 Cf: AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1091-1092. 1920 Cf: AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1090. 1921 Cf: AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1090. 1922 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1092. 1923 AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1092. 1924 Cf: AHU. Luiza da Fonseca, CU. 005-01, Cx.9, D. 1092. 1925 SANTIAGO, Diogo Lopes. Op. cit. p. 221. 1917

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ISSN 2358-4912 em Pernambuco se dizia publicamente que em socorro de João Fernandes Vieira eram partidos da Bahia, e haviam passado o rio de S. Francisco o tentente-general André Vidal de Negreiros, e os capitães Paulo da Cunha , Pedro Cavalcanti, Lourenço Carneiro, Antônio Gonsalves Tissão, 1926 Ascenso da Silva

O governador geral aproveitou-se da falta de informações dos acusadores e constrangeu os embaixadores holandeses. António Teles da Silva perguntou aos embaixadores se estes conheciam os oficiais que diziam estar em Pernambuco auxiliando os insurrectos, os holandeses “responderam-lhe que muito bem os conheciam; [o governador] mandou logo chamar André Vidal e aos outros capitães e lhos mostrou, perguntando-lhes se eram aqueles, e respondendo eles confusos que aqueles eram” 1927. Diogo Lopes Santiago relata que o governador geral advertiu os embaixadores holandeses dizendo que faziam acusações injustas por terem “as consciências perturbadas” 1928. Para satisfazer a embaixada holandesa António Teles da Silva agiu dizendo que em quinze dias mandaria “aquietar os moradores de Pernambuco e João Fernandes Viera, se eles quiserem obedecer por que estão fora de minha jurisdição” 1929. Em 17 de Julho de 1645, António Teles da Silva reuniu as principais autoridades da Bahia: religiosos, militares e homens da governança local. O governador geral reuniu essas pessoas em conselho 1930 para discutir os procedimentos que deveriam ser adotados após deflagração da insurreição, que havia começado no dia 13 de Junho na capitania de Pernambuco 1931. A reunião do conselho tinha por objetivo resolver um impasse apresentado por António Teles da Silva: os moradores insurgidos pediam apoio imediato de tropas e munições, mas o governador receava romper abertamente o tratado assinado por D. João IV em 1641, e assim apresentou ao conselho que supostas essas duas obrigações, tão precisas que neste accidente concorreram, juntamente de soccorer aos moradores de Pernambuco e não faltar á conservação de ambas, e das graves conseqüências que de qualquer dellas podem resultar, desejando tomar resolução (...) me pareceu manda chamar a este conselho (...) e fazer-lhes esta prosposta, em que todos votem livremente o que sentem nesta matéria, e se é justo mandar-se este soccorro ou não mandar-se, porque me delibere no que mais convier ao serviço de S.M., segurança daquelles povos e estabilidade da paz com os 1932 Hollandezes, que é o que só pretendo e protesto.

O governador geral apresentou ao conselho as cartas que os moradores de Pernambuco lhe enviaram1933 e em seguida ouviu as opiniões das autoridades por ele convocadas, que de modo consensual concordaram com proposta apresentada pelo Dr. António da Silva e Souza, provedor mor dos defuntos e ausentes. Na opinião do Dr. António da Silva e Souza “a observância da palavra real não excluía de soccorrer a nossos Portuguezes” 1934, de modo que este teceu considerações sobre o grande prejuízo que a autoridade régia sofreria se não prestasse auxílio aos vassalos necessitados e assim afirmava: “porque acudir a soccorrer como medianeiro da paz entre as sedições em que os Portuguezes daquella capitania estão com os Hollandezes mais é conservar paz que fazer guerra” 1935. Ao final do conselho António Teles da Silva decidiu enviar para Pernambuco os navios que estava preparando com 1926

Ibidem. p. 222 Loc. cit. 1928 Ibidem. p. 223. 1929 Loc. cit. 1930 Essa prática estava prevista no regimento do governador geral, no capítulo 57: “E se emquanto me servirdes naquele q. como sucederem alguas. Couzas q. por este Regim.to. não são providas e cumprir fazer nellas alguas obras, as praticareis com o ouvidor geral e provedor mor de minha fazenda e mais officiaes e pessoas q. vos parecer q. vos saberão bem aconselhar e com seu conselho e parecer provereis nellas como ouverdes mais por meu serviço e sendo as tais couzas de qualidade q. convenha ter se nellas segredo, as praticareis com quais quer das ditas pessoas q. for prezente q. vos mellhor parecer” AHU. Avulsos da Bahia, CU. 005, Cx.1, D.40. 1931 SANTIAGO, Diogo Lopes. Op. cit. p. 209. 1932 RIAHGP. N°.34, 1887, p. 119. 1933 Cf: RIAHGP. N°.34, 1887, p. 120-126. 1934 RIAHGP. N°.34, 1887, p. 126. 1935 RIAHGP. N°.34, 1887, p. 127. 1927

560 ISSN 2358-4912 soldados da praça da Bahia para socorrer o Reino da Angola e ainda justificou sua ação aos presentes, afirmando que “também se não quebra palavra Real no dito soccorro indo como medianeiro de paz, suppostas tantas causas que os Holandezes tem dado depois de feitas as pazes a se quebrar com eles” 1936 . Após o conselho, António Teles da Silva buscou acalmar as autoridades holandesas e não levantar suspeitas dos planos que haviam elaborado. Enviou a Pernambuco uma carta aos moradores, na qual os repreendia por “faltar com lealdade” ao Rei D. João IV: “tanto é maior a fidelidade portugueza, que antes deviam supportar conquistados as injúrias de sua fortuna do que pretender melhora-la perdendo o nome de sua lealdade, acção de que eu estou certo que se haverá S. Magestade que Deus guarde por mal servido de V. Ms.” 1937. Na mesma carta indicava que enviaria os mestres de campo Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros para castigarem aqueles que não abandonassem a insurreição e se submetessem as ordens das autoridades holandesas 1938. Enviou uma missiva semelhante para as autoridades do Alto Conselho de Pernambuco, na qual informava o envio dos mestres de campo para “redução desses moradores sediciosos” 1939 e fazia votos de que o “acidente” não atrapalhasse a relação “harmoniosa” entre os governos de Pernambuco e da Bahia: “de maneira que deste movimento accidental desses moradores nos resulte a nós mais solidas e vivas obrigações de nossa recíproca amisade e confederação de nossas duas nações” 1940. Apesar de todas as dificuldades inerentes a essa ação a insurreição seguiu alcançando sucessos. Em 15 de Outubro de 1645, Cosme de Castro Passos (futuro Provedor Mor da Fazenda de Pernambuco) relatou a D. João IV as vitórias obtidas em batalha contra os holandeses, a primeira em 3 de Agosto e a segunda em 18 do mesmo mês na qual “ajudados já com o socorro com que o g.or. deste estado, Antonio Telles da Silva, nos acodio na várgea do Capiguaribe, hua légua do recife, onde rendemos o g.or. das armas olandezas, hum sargento mayor, e seis capitães, com todo o resto da gente qu.o. trazia em campanha” 1941. Contudo, os sucessos alcançados não se mostram suficientes, a situação não transcorreu conforme os planos do governador geral, pois os insurrectos não conseguiram conquistar o Recife e as demais fortalezas que estavam pouco guarnecidas “porque não tinham o armamento indispensável, para o empreendimento, a pólvora era pouca, pouco o armamento e este leve, sem artilharia, a infantaria valente, mas bisonha” 1942. Dessa forma o conflito que fora planejado para se resolver em poucos dias teria pela frente mais nove anos até que conseguisse uma expulsão definitiva dos holandeses do Estado do Brasil em 1654 1943. Quando o Conselho Ultramarino teve notícia da insurreição em 25 de Setembro de 1645, os conselheiros demonstraram o receio de uma represália por parte dos países baixos: “o certo he que os olandezes com esta ocazião hão de intentar tomar algua praça das ultramarinas, pois sem terem esta cauza o fizerão já” 1944. O parecer que os conselheiros formularam não apresentava novidades quanto ao tipo de conduta que o governo geral já adotava em relação aos holandeses em Pernambuco, mas a representação dos conselheiros formalizou uma postura que a Coroa lusa adotou em termos de estratégia diplomática. O referido parecer aconselhava o monarca a adotar uma política abrangente comunicando “aos governadores e capitaes das praças ultramarinas deste sucesso, e de modo e forma com que se hão de aver com os olandezes se a ellas forem, avendose com elles como com amigos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1936

RIAHGP. N°.34, 1887, p. 128. RIAHGP. N°.34, 1887, p. 129. 1938 Cf:RIAHGP. N°.34, 1887, p. 130. 1939 RIAHGP. N°.34, 1887, p. 131. 1940 RIAHGP. N°.34, 1887, p. 131. 1941 AHU, ACL. Avulsos de Pernambuco, CU. 015, Cx. 4, D. 327. 1942 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 217. - Bisonho é o termo coevo utilizado para designar soldados novatos, conforme a definição de D. Raphael Bluteau “derivase do italiano, bisogno, (...) e porque humas companhias de soldados Castelhanos, passando a Italia, & não sabendo a lingoa, muitas vezes usavão da palavra Italiana Bisogno, para manifestar, o de que necessitavão, forão chamados bisonhos, & da palavra (...) se tomou occasião para significar a pouca experiência, que hum soldado tem da guerra. Soldado bisonho, ou novo na arte militar.”.BLUTEAU, Vol II: 128. 1943 Cf:MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 217. 1944 AHU, ACL. Avulsos de Pernambuco, CU. 015, Cx. 4, D. 326. 1937

561 ISSN 2358-4912 fingidos e inimigos emcubertos, de modo que com capa de amizade não posso tomar algua praça” 1945. Como temos demonstrado, desde seus primeiros dias no Estado do Brasil, António Teles da Silva começou a organizar a defesa da praça da Bahia, desta forma pôde articular o plano de insurreição com os moradores de Pernambuco, auxiliando-os envio de tropas, suprimentos e munições e ainda buscou “encobrir” frente as autoridades holandesas a sua partição nestas ações.

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Considerações finais Apresentamos ao longo deste artigo as diversas estratégias colocadas em prática para a realização da insurreição que culminou, alguns anos mais tarde, na expulsão dos holandeses da América Portuguesa. Buscamos apresentar como, em uma conjuntura que desfavorecia a monarquia lusa no conflito com os países baixos, a negociação entre os moradores da capitania de Pernambuco e o governo geral foi uma alternativa viável para o início do processo de restauração dos territórios conquistados pelos holandeses. Através da comunicação constante foi possível a realização da insurreição que recebeu apoio velado do governo geral, com envio de tropas, munições e mantimentos aos insurrectos, e através de “manobras diplomáticas” ludibriaram as autoridades holandesas. Com “o sinal verde d’El Rei” a insurreição foi conduzida por luso-brasileiros que tinham promessas de mercês, como é o caso de André Vidal de Negreiros foi nomeado Governador e Capitão-General do Maranhão 1946, e João Fernandes Vieira, governador da Paraíba em 1655 e governador de Angola em 1658 1947. Com a permissão de D. João IV os insurretos recrutaram gente de guerra de diversas maneiras: perdoando crimes, dispensando o pagamento de dívidas aos holandeses e concedendo alforria aos escravos que tomassem armas1948. Analisando as ações do governo geral durante o tempo de guerra percebemos a importância da circulação de informações e da negociação entre as elites locais e o governo geral, de modo a perceber que Pernambuco viria a ser restaurado não só a custa de sangue, vidas e fazendas de seus moradores1949 , mas também pelo esforço contínuo do governo geral e de autoridades do Reino, que aplicaram os recursos disponíveis na empreitada restauradora e buscaram aplacar os ânimos dos países baixos no plano diplomático.

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AHU, ACL. Avulsos de Pernambuco, CU. 015, Cx. 4, D. 326. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. 2002., p. 193. 1947 Cf: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 318. 1948 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 130-131. 1949 Cf: MELLO,Evaldo Cabral de “A custa de nosso sangue, vidas e fazendas”. In: Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. 3ª. Edição, revista. São Paulo: Alameda, 2008. p. 92. 1946

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ENTRE CRÉDITOS, DÉBITOS, PEDIDOS E PROCURAÇÕES: LOURENÇO PEREIRA DA COSTA E A ELITE COMERCIAL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO ABASTECIMENTO DAS MINAS DO SÉCULO XVIII. Hugo Demétrio Nunes Tavares Bonifácio1950 Não é novidade que os antigos paradigmas acerca da economia da América portuguesa tenham dado vez à leituras mais contemporâneas que passaram a valorizar a existência de uma latente economia interna. No entanto, em que pese o número considerável de contribuições acadêmicas que endossaram a cobertura do referido quadro econômico setecentista, pouco foi dito no que tange à participação de comerciantes da capitania de Pernambuco, mesmo sendo essa umas das capitanias mais economicamente dinâmicas da América portuguesa àquela altura. Nesse sentido, os nomes e números para os quais apontam os documentos oficiais alfandegários são de enorme valia por possibilitarem um panorama geral da economia, além de sugerirem dados passíveis de desdobramentos em documentos de outras naturezas. O movimento contrário permitiu também cruzamentos de fontes que apontam para a relação comercial entre as capitanias de Pernambuco e Minas Gerais. Nesse sentido, o caso de Lourenço Pereira da Costa é emblemático. Juntamente a esse personagem, um quadro de outros tantos serão apresentados neste espaço. Suas estratégias, dinâmicas, perfis e bens serão discutidos mais adiante. O comércio no Recife Desde o primeiro século da ocupação portuguesa na América do Sul, Pernambuco já mostrara a sua importância como importante ponto de produção açucareira e centro regional. Havia grande circulação de mercadorias produzidas localmente e importadas pelas rotas atlânticas pelo Porto do Recife, ponto estratégico nas viagens entre Lisboa e a costa da África, que necessitavam de uma parada na costa da América portuguesa. A capitania estava inserida no conjunto do Império português e este, na economia-mundo europeia1951. Dessa forma, temos a articulação entre um segmento do espaço econômico e a totalidade dessa economia de caráter intercontinental do qual o Recife fazia parte. Esse vitalidade econômica contribuiu para o amadurecimento do grupo que estava a frente dessa realidade, os comerciantes, que não hesitaram em buscar meios de assegurar seus anseios de ascensão. Segundo Evaldo Cabral, a presença holandesa é deveras significativa no que diz respeito à definição de um grupo de atividades essencialmente mercantis. Foi a partir da entrada do crédito judeu massivo na economia açucareira pernambucana que se iniciou o processo de especialização entre o produtor, senhor de engenho e o mercador. Após a dominação Holandesa, a ausência dos capitais marranos resultou em um encarecimento do crédito com a crise do açúcar e só viria a se restituir decênios depois com os mascates. Esses eram oriúndos quase sempre do Norte de Portugal, na região do Minho, e trabalhavam no abastecimento do interior da capitania ou do consumidor rural, como caixeiros de reinóis já instalados ou em parceria com estes, tornando-se comissários de comerciantes reinóis, que acumulavam recursos com os quais podiam abrir negócio no Recife.1952 As atividades dos mascates caracterizavam-se pela versatilidade dos negócios. Tendendo a crescer, o papel dos mascates passou a incluir também o crédito mercantil aos senhores de engenho, além da arrematação dos contratos de impostos, o tráfico negreiro, a navegação e o comércio dos ‘portos do sertão’ (ribeiras a oeste da baía de Touros no Rio Grande do Norte). Tratavam da exploração de trapiches e armazéns, da fabricação 1950

Essa proposta de comunicação é resultado da pesquisa de Mestrado entitulada “Nas rotas que levam às Minas: mercadores e homens de negócios da capitania de Pernambuco no comércio de abastecimento da região mineradora no século XVIII”, realizada sob orientação do Professor Dr. George Félix Cabral de Souza e com incetivo do CNPq, no âmbito da UFPE, entre os anos de 2010 e 2012. mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco; E-mail: [email protected]; 1951 WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema Mundial Moderno. Vol. I. A agricultura capitalista e as origens da economia-mundo europeia no século XVI. (Trad.). Lisboa: Afrontamento, [1990], p. 25 et passim. 1952 MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso, p. 55.

563 ISSN 2358-4912 de atanados, mantinham propriedade de imóveis na praça, engenhos, e de fazendas de gado na fronteira do Rio Grande e do Ceará.1953 A partir de 1711, os comerciantes recifenses passam a ter acesso aos cargos da governança. O acesso aos postos de mando, em virtude da elevação do Recife à categoria de vila, e a criação de uma nova Câmara Municipal permitiram aos comerciantes uma atuação mais enfática em favor de seus interesses. A essa altura, as freguesias do Recife, da Muribeca, do Cabo e Ipojuca tinham passado à jurisdição de Recife. Olinda havia perdido o núcleo portuário e o Recife adquirido uma dinâmica incomum.1954 Em se tratando de comerciantes de Pernambuco, sobretudo no Recife, não se pode dissociar a partipação política como estratégia recorrente dentre aqueles que tinham nos negócios sua fonte de renda. A maior parte dos que ocuparam os cargos da vereança na câmara do Recife tinham origem nas terras do Brasil.1955 Entretanto, entre os originários do Reino, a maioria estava envolvida em atividades comerciais. Havia uma clara preponderância de emigrantes procedentes da região do Minho entre os oficiais municipais do Recife.1956 Os cargos da câmara municipal apresentavam grande potencial no que tange às questões de comércio, mas outros cargos da administração colonial também eram bastante influentes nos negócios, bem como cargos militares e mesmo clericais. Os proveitos desses cargos nas atividades comerciais, para além das intervenções mais diretas que se incidiam sobre valores de contratos e regulamentações de mercados, sobretudo, nos cargos da administração, diziam respeito também ao poder de barganha para com a coroa no jogo de barganhas por benefícios que potenciliazavam ainda mais os negócios. Não raramente, comerciantes que ocupavam cargos públicos, fossem da aministração ou militares, se utilizavam de pedidos de isenção tributárias ou licenças para a realização de negócios. No Recife, foi, por demais comum, constantes apelações ao rei para interceder nos negócios dos comerciantes. Trata-se da capacidade simbólica que esses cargos eram capazes de conferir. A ocupação de cargos públicos ajudava na obtenção de mercês e estas últimas, por sua vez, contribuíam para a consolidação de um grupo privilegiado que se mantinha no poder, mantendo o monopólio de determinadas mercês. O acesso a esses espaços privilegiados da sociedade importantes para o exercício dos negócios de abastecimento das Minas.1957 Há também de se destacar as relações indiretas que alguns comerciantes estabeleciam com membros da administração colonial. Alianças e clientelismos possibilitaram negócios entre as diversas conquistas, além de permitir construção de fortunas ultramarinas nos diferentes quadrantes do Império, em virtude, sobretudo do elo que mantinham os colonos de uma parte do Império com outras. Uma rede intricada entre colonos de diversas esferas sociais se fazia de modo a garantir interesses políticos e comerciais dos mesmos nas partes do Império. 1958 Nesse sentido, o caso de Lourenço Pereira da Costa é bastante esclarecedor. Comerciante que atuou nos sertões por entre a capitania de Pernambuco e as minas do ouro, estabeleceu relações diversas. Vejamos como se deu tais relações. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Nas rotas que levam às Minas Comerciantes volantes, comboieiros ou condutores levavam vários gêneros em direção às minas do ouro. Cabe destacar que essas categorias indicam mais uma prepoderância de uma determinada mercadoria sobre outras que também eram levadas. Essa especialização era, na verdade, mínima. 1959 Os comboieiros, na concepção de Chaves, não existem enquanto uma função especializada do 1953

MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso, p. 56 Idem, p. 30 1955 SOUZA, George F. Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese de doutorado. Universidade de Salamanca, 2007, p. 296 1956 Idem, p. 304 1957 PONCE LEIVA, Pilar. Certeza ante La incertidubre: elite y cabildo de Quito em siglo XVIII. Quito: Abya Yaila, p. 25. 1958 FRAGOSO, João, GOUVÊA, Maria de Fátima, BICALHO, Maria Fernanda. “Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”. In: ________. Penélope, fazer e desfazer a História, Lisboa: Quetzal, 2000, n. 23, p. 74 1959 CHAVES, Cláudia Maria. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Anablume. 1990 , p.49. 1954

564 ISSN 2358-4912 comércio. Não havia uma distinção nítida entre tropeiros e comboieiros. A presença de comboios de gados, cavalos e negros escravos que partiam dos sertões da Bahia e de Pernambuco em direção às Minas costumavam tirar o sossego dos postos fiscais não só devido aos descaminhos praticados1960, mas também por ocultarem uma série de tantos outros produtos que carregavam consigo para venderem próximos às lavras de ouro, isentando-se assim da cobrança de pesadas e onerosas tributações em cima de seus negócios. Nesse contexto, destaca-se a figura de Loureço Pereira da Costa, que traduz perfeitamente a pouca especialização dos comerciantes envolvidos nos tratos das Minas.1961 O envolvimento no comércio de vários gêneros diversos minimizava os riscos de possíveis ônus. Evidência clara disso é o fato de que, na época da redação de seu testamento, fora os quatro cavalos ainda poldros que havia perdido, Lourenço estava de posse de um escravo chamado Luís da Nação Mina; um cavalo castanho selado e enfreado; uma égua de cor alazã com frente aberta; um espadim de prata lisa; um coco [sic] de prata lisa de beber água; quatro colheres de prata de chapa; uma casaca de barbaresco de cor azul; uma vestia de seda da mesma cor e outras peças de roupa que se acham em seu uso.1962 Em várias regiões que se estendiam da zona da mata pernambucana, passando pelo sertão, chegando até as Minas, Lourenço mantinha algum laço comercial. Possuía devedores de diversas localidades.1963 Em Pernambuco, em Maciape, freguesia de São Lourenço, Lourenço possuía créditos nas mãos do alferes Luís Lobo de Albertim, que lhe era devedor da quantia de trinta mil reis, procedida da venda de um cavalo. Ao que tudo indica, o alferes era possuidor de fazendas de gado no sertão, local onde possivelmente estabeleceu relações com Lourenço. Em 1742, quando Luís Lobo de Albertim era já falecido, seu filho homônimo aparece em um processo no qual foi punido por abandonar o posto de serviço de soldado para se retirar em direção sertão. Do confinamento, na Ilha de Fernando de Noronha, pede baixa a Coroa, sendo atendido.1964 Luís Lobo conseguiu isentar-se da pena através de seus pedidos à Coroa. O fato é que pouco depois, o soldado aparece pedindo licença de um ano para ausentar-se de sua praça e ir ao sertão do Acaraçu onde possuía fazenda de gado vacum e cavalar, tendo sido atendido em 17 de julho de 1742.1965 Ao que tudo indica, os negócios do sertão, foram iniciados pelo Luís Lobo Albertim, pai, que contraiu dívidas com o viandante Lourenço. Mais tarde, como indica a documentação, a fazenda de gado no sertão do Acaraçu foi tocada pelo filho. A relação entre Lourenço e Luís Lobo de Albertim é particularmente especial por ilustrar uma rede intrincada de negócios que partiam da zona da mata, passava pelo sertão, e atingia a região mineira através de viandantes como Lourenço Pereira da Costa. Essa situação fica clara também quando nos damos conta de que o viandante possuía dívidas em Pernambuco, nos levando a acreditar que esse comércio entre Pernambuco e Minas fosse ainda mais complexo. Das vinte dívidas registradas em seu testamento, dez são com credores da capitania de Pernambuco. Os dados apontam para a possibilidade de que Lourenço fosse uma espécie de intermediário nesse circuito econômico. Pegava créditos com parentes e investia em seus negócios pelo sertão e pela região aurífera. Quando não, pegava créditos com homens poderosos do sertão, ou lhes comprava fazendas para revenda nas Minas. Grosso modo, as dívidas de Lourenço eram pouco expressivas, mas não deixam de serem indícios de que havia uma rede estabelecida entre o norte e o centro-sul da América portuguesa, uma vez que os créditos que lhes eram conferidos eram convertidos em mais números maiores ao serem negociados na região mineira. Lourenço agia como um intermediário entre os fornecedores da zona da mata, sertão e ainda os compradores da região mais ao centro-sul. O comerciante também costumava pegar cavalos nas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Carta do Intendente da Fazenda Real do Sabará, Francisco Pereira da Costa a D. João V, AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 29, Doc.: 44. 1961 FRAGOSO, João Luis ribeiro. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1992; CHAVES, Cláudia Maria. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Anablume. 1990; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: A interiorização da Metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo, HUCITEC, 1999. 1962 MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamentos (CPO) Códice 06(12), fl. 11. 1963 MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamentos (CPO) Códice 06(12), fls. 11-13. 1964 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] , 1742, junho, 7, Lisboa. AHU_ACL_CU_015, Cx. 57, D. 4949. 1965 REQUERIMENTO do soldado de Infantaria da capitania de Pernambuco, Luís Lobo de Albertim Lanoy, ao rei [D. João V] , [ant. 1742, julho, 3, Pernambuco]. AHU_ACL_CU_015, Cx. 58, D. 4958.

565 ISSN 2358-4912 fazendas para revendê-los. Manoel de Vasconcelos Veiga, por exemplo, morador em Santo Antônio do Rio Acima e comprador de Lourenço, devia a ele a quantia de dezoito oitavas de ouro procedentes de um cavalo. Os créditos da dívida, na verdade, eram pertencentes a sua prima Izabel dos Reis moradora em Maciape, freguesia de São Lourenço da Mata Bispado de Pernambuco a qual lhe deu “o dito cavalo para lhe vender e cobrar por sua conta e risco de que se há de tirar a contagem e passagem de rios que pagou com a sua comissão”.1966 A trajetória desses homens envolvidos no comércio com as Minas não tem uma forma única ou homogênea. A presença de sacerdotes naturais de Pernambuco pode ser encontrada por mais de uma vez nas Minas com negócios de alguma natureza. O padre José Corrêa da Fonseca, por exemplo, era Sacerdote do Hábito de São Pedro e natural da freguesia de Santo Antônio do Recife em Pernambuco. Filho do coronel Francisco Corrêa e de Isabel da Costa, declarava não ter herdeiro que (possua direito) a tocar sua fazenda. O dito padre era possuidor de vários bens, dentre eles, um escravo, quatro cavalos, uma espingarda e pistolas. Era, a época da redação de seu testamento, em 1729, possuidor de algumas dívidas por créditos e outras por assentos [sic] que se acham em seu poder5.1967 Provavelmente bens de terceiros disponíveis para revenda em suas mãos. Acerca desse indivíduo não se pode inferir que fosse um comerciante de grosso varejo. Mas ao observamos a figura daquele que muito certamente fosse seu pai em Pernambuco, podemos perceber se tratar de um homem envolvido nas práticas de negócios, apesar de militar. Seu pai foi contratador dos dízimos reais e das miunças1968, deixando para sua segunda esposa e filho, ao que tudo indica, créditos com a Fazenda Real, procedente do sequestro de bens que lhes fizeram os provedores da Fazenda Real de Pernambuco e Itamaracá.1969 Brás Maciel Ferreira era natural do lugar de Darque, termo de Barcelos, Arcebispado de Braga.1970 Foi casado com Catarina Bernarda de Oliveira Gouvim. Ainda que não tenhamos aparato documental par especificar o tipo de comércio por ele praticado, é certo que mantivesse seus negócios com as Minas, uma vez que afirma ser homem de negócio da capitania de Pernambuco com atividades com as Minas de ouro.1971 O fato a ser destacado a respeito desse homem de negócio com tratos comerciais na região mineradora é o de seu pertencimento a um grupo restrito no Recife e possuidor de posições de destaque na sociedade lusa, como postos militares, títulos honoríficos e cargos na administração pública. Integrou a Câmara do Recife por quase vinte anos.1972 Além disso, é tido como capitão quando falece em 1779.1973 Seu registro de óbito informa que foi sepultado na Igreja de São Pedro "no esquife da Irmandade com o hábito de Nossa Senhora do Carmo", fato que conota uma grande simbologia de poder. Podemos perceber que esse homem de negócio segue o padrão daqueles que constituía a elite mercantil no Recife ao ser possuidor de determinadas honrarias, postos militares, ou cargos na administração pública que lhes conferissem elevação de seu status social, como vimos outrora nesse trabalho. A esse respeito é importante lembrar que a ocupação de cargos na administração pública eram um estreitamento nas relações com a Coroa, permitindo que pudessem angariar maiores favores e benefícios. Os comerciantes que tinham sucesso na atividade mercantil eram capazes de investir em bens simbólicos ou em aliar-se com a nobreza, via matrimônio, por exemplo, ou por outro tipo de estratégia comum de ascensão. Assim, o fato de que a própria cultura política portuguesa conferia à

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1966

MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamentos (CPO) Códice 06 (12) 1745 f. 13 MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamentos (CPO) Códice 03 (8) f. 144 v. 1968 CARTA do [provedor da Fazenda Real da capitania de Itamaracá], João Lopes Vidal, ao rei [D. João V], AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3825. 1969 REQUERIMENTO de Antônia de Figueiredo, viúva do sargento-mor Francisco Correia da Fonseca, ao rei [D. João V], AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3514; AHU_ACL_CU_015, Cx. 33, D. 3050; CARTA do provedor da Fazenda Real da capitania de Pernambuco, João do Rego Barros, ao rei [D. João V] AHU_ACL_CU_015, Cx. 37, D. 3372; AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3507. 1970 SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1654 – c. 1759). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 383. 1971 Dados cedidos pelo Prof. George Félix Cabral de Souza. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Processo de Habilitação a Familiar do Santo Ofício de Brás Ferreira Maciel, maço 4, diligência 51. 1972 SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese de doutorado na Universidad de Salamaca, 2007, p. 733. 1973 Idem. 1967

566 ISSN 2358-4912 atividade mercantil uma conotação depreciativa, não significou de todo um entrave para o processo de ascensão social por parte dos mercadores. O personagem Luís Ferreira da Cunha, ajudante do terço do Recife que, para além de seu posto militar, mantém seus negócios na região mais dinamicamente econômica da Colônia daquele momento. Em carta à Coroa, alega “lhe ser preciso ir às Minas onde tem algumas dependências (...) as quais causam da sua ausência naquelas (...) se permita conduzir comboios do que lhe é muito conveniente e sem licença de Vossa majestade não pode passar as ditas Minas (nesta consideração).1974 O resultado desta estratégia parece ter surtido efeito. Luís Ferreira da Cunha tem despacho favorável, obtendo licença de dois anos para ir às Minas. Mais tarde, em 1727, o mesmo ajudante do terço, que por ser natural da Vila de Viana do Minho e por lá mesmo ter fazenda, pede licença para se ausentar por um ano para ir cobrar suas heranças, além de outras dependências no Reino.1975 Não se trata de um desprovido, mas sim de um Reinol da região do Minho, com relações próximas à família também do Reino, que construiu sua carreira militar e mercantil na América portuguesa. Alguns comerciantes atravessavam os sertões em comboios formados por um número restrito de homens. Por se tratar de uma perigosa travessia e de uma atividade de grande risco, era comum o uso de armas, ainda que essas fossem proibidas a maior parte da população. Sendo assim, em 1779, Bento Luís Ramalho pedia em um requerimento à rainha D. Maria I, permissão para usar armas em suas viagens de negócios nos caminhos dos sertões para Minas Gerais. Os apelos à Coroa eram recorrentes. Na correspondência de Bento Luís, destaca os perigos que enfrenta.1976 Os apelos foram atendidos. Manoel Duarte Passos, natural do lugar de Quintães, comarca de Penafiel, bispado do Porto, era mercador e homem de negócio. Consta em seu processo de habilitação para familiar do Santo ofício que faz entradas para as Minas e Sertão, no ano de 1725.1977 Buscou ingressar como familiar do Santo Ofício e que alcançou a patente de mestre de campo.1978 Sua relação com as Minas parece ter se estendido para além da década de 1720, quando fez entrada para as Minas e sertão. Não por acaso, no ano de 1731, temos um Manuel Duarte que remete ouro por 3 vezes para o Reino.1979 O caso de Luís de Duarte da Costa aponta para a constante busca de aproximação da região aurífera. Sargento mor da fortaleza de Itamaracá, Luís foi procurador dos arrematadores do contrato do dízimo de Itamaracá, corresponsável nas arrematações desse contrato. Mesmo assim, almejava uma promoção para o posto de mestre de campo da Infantaria da praça do Rio de Janeiro ou das Minas Gerais, em 1729.1980 É de se imaginar que as oportunidades nas localidades mais próximas a região aurífera fossem suficientemente atraentes para impelir personagens como Luís Duarte da Costa para o Centro-sul. Caso semelhante ocorreu com Gonçalo Dias, capitão da Companhia de Granadeiros do Terço dos Henriques da capitania de Pernambuco, que pedia licença de dois anos para ir a Minas Gerais por dois anos seguidos. Outro caso em que se pode constatar a presença da participação de uma elite mercantil nos negócios com as Minas é o caso de Antônio da Silva Gama. Natural de São Simão de Oia, Bispado de Coimbra, chegou ao Recife em 1732. É reconhecido como negociante e depois de ter estado em Minas Gerais e por lá ter sido mineiro, vivia rico com alguns negócios e riquezas que possuía.1981 No seu V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1974

Requerimento de Luís Ferreira da Cunha, ajudante e morador no Recife de Pernambuco, pedindo a D. João V lhe faça mercê de conceder permissão para se deslocar a Minas , 1720, 3, 12 - AHU - Cons. Ultram. - Brasil/MG - Cx.: 2, Doc.: 55 1975 REQUERIMENTO do ajudante do Número do Terço do mestre-de-campo João da Mota, da guarnição de Recife, Luís Ferreira da Cunha, ao rei [D. João V ], [ant. 1727, agosto, 9], AHU_ACL_CU_015, Cx. 36, D. 3268 1976 REQUERIMENTO de Bento Luís Ramalho à rainha [D. Maria I] , [ant. 1779, novembro, 27]. AHU_ACL_CU_015, Cx. 135, D. 10109 1977 FSO Manoel Duarte passos, M93, D1743. Informação extraída do banco de dados das pesquisas do Prof., Dr. George Félix Cabral de Souza, coletada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo gentilmente e cedida para o desenvolvimento desta pesquisa. 1978 CARTA de Antônio de Barros ao rei [D. José I], Anexo: 1 doc. 1752, janeiro, 24, Lisboa. AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6090. 1979 Costa Leonor Freire. Livro do Manifesto do 1% do ouro – Arquivo da Casa da Moeda de Lisboa 1980 REQUERIMENTO do sargento-mor da fortaleza de Itamaracá, Luís Duarte da Costa, ao rei [D. João V], [ca. 1729] AHU-RJ-Cx301, D,36; AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3557; 1981 SOUZA, Op. Cit., p. 278

567 ISSN 2358-4912 casamento, afirma que havia andado pelas Minas do Rio de Janeiro e tinha corrido banhos por lá1982. Foi casado com Ana da Silva Gurjão, natural do Recife1983, filha de Sargento mor José da Silva Gurjão, natural de Peniche, e Teresa Coutinho, natural do Recife, ambos moradores no Recife1984. A trajetória de Antônio da Silva Gama sugere um caminho inverso daquele seguido por Manoel Duarte. Depois de ter enriquecido nas Minas como mineiro, tratou de galgar espaços na governança, como o veio a fazer em 1747, quando foi 3º vereador.1985 Foram vários os tipos de participação na relação com a região mineradora. O fato é que os casos nos aproximam da conclusão de que essa participação fosse exercida por um grupo distinto. Há de se considerar que a participação nessas práticas era bem mais comum entre elite colonial. Entretanto, essa elite é pautada na obtenção de posições-chaves na sociedade em questão e que dispõe de poderes, de influência e de privilégios inacessíveis ao conjunto de seus membros.1986 Assim, essa elite não se fazia apenas pelo alto cabedal, pela acumulação de bens e riquezas, mas pela ocupação de espaços privilegiados na sociedade portuguesa do século XVIII e pela busca de honrarias que conferia a distinção e a elevação de status social necessários para uma maior aproximação nos trâmites com a Coroa. É certo que a participação do grupo mercantil da capitania de Pernambuco não tenha sido tão avultada quanto a da Bahia e a do Rio de Janeiro da década de1720, mas com certeza, a constatação desses tantos homens envolvidos nos negócios do abastecimento da região aurífera, nos permite repensar o século XVIII pernambucano. É possível portanto mesmo repensar a crise da economia pernambucana, por exemplo. Se as consequências da transferência da dinâmica econômica para o Centro-sul após os descobrimentos dos veios auríferos puderam ser sentidas na conjuntura econômica de Pernambuco no século XVIII, não pode, contudo tornar apático o setor mercantil da capitania. Sendo assim, arrisca-se inferir que o descobrimento e posteriormente as atividades relacionadas ao ouro não foram causas definitivas para o abalo da economia pernambucana, uma vez que o surgimento daquele novo mercado consumidor fez movimentar uma série de articulações mercantis com vistas de tirar parte da nova realidade econômica vivida.

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Referências Museu Do Ouro- Casa Borba Gato MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamento (CPO) 03 (8) fls. 144 v -150 MO-Casa Borba Gato/IPHAN: Testamentos (CPO) Códice 06 (12) fls. 09 -16 v. Arquivo Nacional da Torre do Tombo Processo de Habilitação de Familiar do Santo Ofício de Brás Ferreira Maciel, maço 4, diligência 51. Processo de Habilitação de Familiar do Santo Ofício Manoel Duarte passos maço 93, diligência 1743. Arquivo Ultramarino de Minas Gerais -Papéis avulsos da capitania de Minas Gerais AHU - Cons. Ultram. - Brasil/MG - Cx.: 2, Doc.: 55 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 29, Doc.: 44. Arquivo Ultramarino de Pernambuco - Papéis avulsos de Pernambuco AHU_ACL_CU_015, Cx. 33, D. 3050. AHU_ACL_CU_015, Cx. 36, D. 3268. AHU_ACL_CU_015, Cx. 37, D. 3372. 1982

HSO de seu filho Joaquim, HSO M6 D81. Informação extraída do banco de dados das pesquisas do Prof., Dr. George Félix Cabral de Souza, coletada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo gentilmente e cedida para o desenvolvimento desta pesquisa. 1983 SOUZA, Op. Cit., p. 278. 1984 Ibidem 1985 CARTA dos oficiais da Câmara do Recife ao rei [D. João V], 1747, julho, 8, Recife. AHU_ACL_CU_015, Cx. 66, D. 5582. 1986 HEINZ, Flávio M. Por outra História das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.8.

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ISSN 2358-4912 AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3507. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3514. AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3557 AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3825. AHU_ACL_CU_015, Cx. 57, D. 4949. AHU_ACL_CU_015, Cx. 58, D. 4958. AHU_ACL_CU_015, Cx. 66, D. 5582 AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6090. AHU_ACL_CU_015, Cx. 135, D.10109 FREIRE, Costa Leonor. Livro do Manifesto do 1% do ouro – Arquivo da Casa da Moeda de Lisboa. CHAVES, Cláudia Maria. Perfeitos Negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: Anablume. 1990. FRAGOSO, João Luis ribeiro. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1992. FRAGOSO, João, GOUVÊA, Maria de Fátima, BICALHO, Maria Fernanda. “Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”. In: ________. Penélope, fazer e desfazer a História, Lisboa: Quetzal, 2000, n. 23. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: A interiorização da Metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo, HUCITEC, 1999. HEINZ, Flávio M. Por outra História das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.8. MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso: ensaio da história regional. Coordenador Lourenço Dantas Mota. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. PONCE LEIVA, Pilar. Certeza ante La incertidubre: elite y cabildo de Quito em siglo XVIII. Quito: Abya Yaila, p. 25. SOUZA, George F. Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife (1710-1822). Tese de doutorado. Universidade de Salamanca, 2007. SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1654 – c. 1759). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 383. WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema Mundial Moderno. Vol. I. A agricultura capitalista e as origens da economia-mundo europeia no século XVI. (Trad.). Lisboa: Afrontamento, [1990], p. 25 et passim.

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ISSN 2358-4912

OS TESOUREIROS E SELADORES DA ALFÂNDEGA DE SALVADOR: A PRÁTICA SOCIAL DO DESCAMINHO, 1714-1722 Hyllo Nader de Araújo Salles1987 A dízima da Alfândega em Salvador, 1714-1722 A dízima da Alfândega era o imposto de dez por cento, cobrado sobre as fazendas que davam entrada nos portos da colônia, fora estabelecida junto com o Governo-Geral e consta ter sido arrecada durante a União Ibérica, existindo menção de sua arrecadação até 1640, depois, desapareceu e somente reapareceu no início do século XVIII. 1988 Na Bahia, a ordem régia para (re)estabelecer a dízima da Alfândega chegou em 1711 e tinha como objetivo o custeio de duas naus guarda-costas, ou seja, era um tributo que visava a proteção da conquista. Entretanto, os súditos se rebelaram contrata os excessos da fiscalidade e impediram o governador-geral Pedro de Vasconcelos e Sousa de aplicar o novo tributo, essa alteração ficou conhecida como a Revolta do Maneta. 1989 Logo, a dízima da Alfândega só voltou a vigorar em Salvador em 1714, após uma negociação assimétrica entre o novo governador-geral e vice-rei, marquês de Angeja, e os homens de negócio de Salvador. No princípio a dízima correu administrada pela Real Fazenda, pois o marquês de Angeja usou da “suavidade e cautela” para (re)instituir tal direito, isso até o ano de 1723, quando a cobrança fora submetida ao sistema de contratos e arrematação no Conselho Ultramarino. 1990 O vice-rei ao (re)estabelecer a dízima da Alfândega, criou também um regimento para poder estruturar a Alfândega soteropolitana para a arrecadação do novo tributo, tal regimento estabelecia as formas dos despachos e os emolumentos que deveriam receber os oficiais. A indicação dos oficiais era prerrogativa do Senado, mas deviam ser confirmados ou rejeitados pelo Conselho Ultramarino de Sua Majestade. 1991 A administração da cobrança da dízima da Alfândega: os tesoureiros da Alfândega Pelo regimento, ficava evidente que o ofício de tesoureiro da Alfândega seria um dos mais cobiçados, afinal de contas cabia ao tesoureiro a cobrança dos despachos, isto é, a efetivação da arrecadação da dízima da Alfândega. Ao final de cada mês, o livro utilizado para se registrar os despachos seria encaminhado para a casa do tesoureiro, que deles tiraria o quanto devia pagar de tributo cada homem de negócio despachante na Alfândega. Aqueles que despachavam a prazo tinham de dois a doze meses para quitar o débito, o prazo começava a contar a partir do dia primeiro do mês subseqüente aos despachos, que assinaram na Alfândega. Os homens de negócio, que quisessem despachar a prazo na Alfândega, deviam ter a autorização do provedor e do tesoureiro da Alfândega, pois era condição que o tesoureiro o aprovasse. 1992 Aos doze dias do mês de janeiro do ano de 1715, fora provido no oficio de tesoureiro da Alfândega o capitão-mor Pascoal Marquês de Almeida por nomeação do Senado da Câmara e aprovação de Sua

1987

Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Email: [email protected] CARRA, Angelo Alves. Receita e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2009, p. 198. 1989 SALLES, Hyllo Nader de Araújo. Negócios e negociantes Negócios e negociantes em uma conjuntura crítica: o porto de Salvador e os impactos da mineração, 1697-1731. Dissertação (Mestrado em História) Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2014, pp. 18-28 1990 Idem, pp. 52-53. 1991 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que informa o vice-rei e governador geral do Brasil, marquês de Angeja, D. Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa acerca da forma que deu e mandou observar nos despachos das fazendas que se despacharam na Alfândega da Bahia e os emolumentos que hão de levar os oficiais dela. Anexo: 2 documentos. Lisboa, 5 de dezembro de 1715 [2ª série, cx. 10, doc. 832]. 1992 Idem. 1988

570 ISSN 2358-4912 Majestade. Pascoal Marquês tomou posse fazendo juramento aos santos evangelhos como de costume.

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1993

Como era um ofício criado há pouco tempo e não possuía emolumento como se via pelo regimento da Alfândega, Pascoal Marquês logo tratou de solicitar a Sua Majestade que confirmasse o ordenado de trezentos mil réis por ano – que recebiam os tesoureiros das Alfândegas de Pernambuco e Rio de Janeiro – e que ao dele fosse acrescido mais mil réis por ano, uma vez que, na Alfândega de Salvador, eram as “fazendas em dobro do que em qualquer uma das referidas Alfândegas de Pernambuco e Rio de Janeiro, devido esse [maior] registro deveria ser [também] maior o premio”. 1994 O provedor da Alfândega, que servia nesse período, José de Sá e Mendonça, informou ao Conselho Ultramarino que deviam aprovar o ordenado de quatrocentos mil réis por ano para o capitão Pascoal Marquês de Almeida, tesoureiro da Alfândega soteropolitana, dado o maior número de fazendas que entravam naquele porto se comparado com os seus congêneres no Estado do Brasil. 1995 O Conselho Ultramarino não deixou de considerar o fato de que, Salvador sendo a cabeça principal do Estado do Brasil, a “aquele porto vão muito maior número de embarcações do que a outras capitanias, (...) [portanto] será muito maior o trabalho da pessoa que o servir [no porto da Bahia de tesoureiro]”. Porém, o que solicitava o suplicante era impraticável. Segundo o parecer do Conselho, devia se arbitrar de ordenado ao tesoureiro da Alfândega soteropolitana o mesmo que se arbitrou aos tesoureiros de Pernambuco e Rio de Janeiro, ou seja, trezentos mil réis de ordenado anual e que esse ofício não deveria ser vitalício e muito menos hereditário, tendo provimento trienal. 1996 Um alvará de Sua Majestade, expedido por despacho do Ultramarino de 17 de fevereiro de 1717, determinava, ao marquês de Angeja, que nomeasse outro tesoureiro da Alfândega, visto que findava o tempo de serviço do capitão-mor Pascoal Marquês. Em agosto desse mesmo ano, o vice-rei respondeu, a Sua Majestade, que providenciaria a nomeação de outro tesoureiro. 1997 Para satisfazer esse alvará, o vice-rei ordenou que se pusesse edital por tempo de vinte dias para que as pessoas pudessem concorrer ao ofício de tesoureiro da Alfândega. Nesse edital, inscreveram-se duas pessoas: João de Sousa e Silva, que “era homem solteiro muito bem procedido e verdadeiro e de boa capacidade”; e Cosme de Araújo Pereira, que era morador e casado em Salvador de procedimento e de inteligência em matéria de contas e bastante abonado por haver casado com uma filha de Manuel Soares Ribeiro, que foi escrivão dos agravos e qual um irmão seu João Soares Ribeiro, que vinha vindo das minas deixou mais de vinte mil cruzados para seu dote e o suplicante vive a lei da nobreza e com luzimento. 1998

O Conselho Ultramarino, por despacho de 26 de janeiro de 1719, votou em “primeiro lugar para o ofício de tesoureiro da Alfândega da Bahia para servi-lo por tempo de três anos em João de Sousa e Silva por se ter boa notícia do seu préstimo e trabalho”. 1999 Em 28 de novembro de 1722, por ter findado o tempo que servia João de Sousa e Silva, o Senado da Câmara nomeou, em primeiro lugar, para tesoureiro da Alfândega de Salvador, o capitão Veríssimo de Campos Carvalho. “Não só pelas virtudes, mas porque deu uma fiança a segurança do dinheiro”, cujos fiadores eram: João Carnoto Vilas Boas e Alexandre Claveto, ambos homens de negócio da praça de 1993

AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o requerimento de Pascoal Marquês de Almeida em que pede confirmação do ordenado de quatrocentos mil réis referentes ao ofício de tesoureiro da dízima da Alfândega da Bahia [2ª série, cx. 10, doc.866]. 1994 Idem. 1995 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o requerimento de Pascoal Marquês de Almeida em que pede confirmação do ordenado de quatrocentos mil réis referentes ao ofício de tesoureiro da dízima da Alfândega da Bahia [2ª série, cx. 10, doc.866]. 1996 Idem. 1997 AHU/BA/CARTA do vice-rei e governador-geral do Brasil marquês de Angeja, Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa ao rei d. João V em resposta a provisão referente a nomeação do substituto para Pascoal Marques de Almeida provido no ofício de tesoureiro do dízimo da Alfândega da cidade da Bahia [2ª série, cx. 11, doc. 945]. 1998 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre a nomeação de pessoas para a serventia do ofício de tesoureiro da Alfândega da cidade da Bahia [2ª série, cx. 12, doc. 1002]. 1999 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre a nomeação de pessoas para a serventia do ofício de tesoureiro da Alfândega da cidade da Bahia [2ª série, cx. 12, doc. 1002].

571 ISSN 2358-4912 Salvador e despachantes na Alfândega. O capitão Veríssimo tomou posse no primeiro de janeiro de 1723 e fora confirmado, por Sua Majestade, no oficio de tesoureiro em dezembro do mesmo ano. 2000

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Os seladores da Alfândega e os caminhos e descaminhos na arrecadação da dízima em Salvador Na outra ponta da arrecadação, e de mesma importância para ela, estava o selador da Alfândega. Afinal, era esse o oficial que punha o selo nas fazendas, determinando quanto cada uma deveria pagar de dízima da Alfândega. Muito mais do que o tesoureiro, o selador foi sempre identificado pela Coroa como responsável de forma direta ou indireta pelos muitos descaminhos praticados na Alfândega. 2001 Antes de estabelecer-se no porto de Salvador o direito dos dez por cento, Cristóvão Jordão Maciel era proprietário dos ofícios de selador, porteiro e feitor da descarga da Alfândega da Bahia, havia tomado posse desses ofícios no dia primeiro de março de 1679. 2002 Quando o marquês de Angeja estabeleceu os direitos, não os separou e produziu um regimento com os ofícios unidos na mesma pessoa, o que fora logo advertido pelo Conselho Ultramarino, devido à incompatibilidade de exercer ao mesmo tempo as funções de porteiro, feitor da descarga e selador da Alfândega sem resultar em prejuízo a arrecadação da Fazenda Real, ou seja, sem que houvesse descaminhos. 2003 A ordem de Sua Majestade de separar os ofícios foi levada a cabo e Cristóvão Jordão pediu mercê a Sua Majestade para renunciar o ofício de selador e feitor da descarga à favor de seu filho natural Raimundo Maciel Soares, portanto, filho bastardo. A tal renuncia gerou uma grande discussão no Conselho Ultramarino, uma vez que Raimundo Maciel era filho ilegítimo. Para o procurador da Fazenda, apesar dos filhos naturais não serem, pelo direito consuetudinário, os herdeiros de ofícios, devia Sua Majestade deferir o pedido dado os muitos anos que serviu Cristóvão Maciel e o seu bom procedimento. Já Antônio Rodrigues da Costa afirmava que "o direito consuetudinário de se darem aos filhos dos proprietários é exorbitante, e somente introduzido por equidade e benevolência dos príncipes, restrito a jurisdição Real”, não sendo justo, Sua Majestade ampliá-lo aos filhos naturais. Para o conselheiro, esse era um ofício de pouco trabalho e muito rendoso e então deveria ser premiar um vassalo benemérito de Vossa Majestade. 2004 Apesar dessa discussão, o Conselho Ultramarino achava que devia Sua Majestade fazer mercê a Cristóvão Jordão, pois era uma renuncia e não uma transmissão e el-rei fez, então, mercê e confirmou Raimundo Maciel Soares como selador e feitor da descarga da Alfândega de Salvador. 2005 O ofício de selador, como se pode ver da discussão no Conselho Ultramarino, era de “pouco trabalho e muito rendoso”, mas sobretudo um ofício com o qual a Coroa possuía zelo, uma vez que era

2000

AHU/BA/REQUERIENTO do capitão Veríssimo de Campos Carvalho ao rei d. João V solicitando provisão para servir no ofício de tesoureiro da Alfândega da cidade da Bahia por tempo de um ano [2ª série, cx. 19, doc. 1725]. 2001 Cf. AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que informa o vice-rei e governador geral do Brasil, marquês de Angeja, D. Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa acerca da forma que deu e mandou observar nos despachos das fazendas que se despacharam na Alfândega da Bahia e os emolumentos que hão de levar os oficiais dela. Anexo: 2 documentos. Lisboa, 5 de dezembro d 6e 1715 [2ª série, cx. 10, doc. 832] e AHU/BA/REQUERIMENTO (cópia) de Raimundo Maciel Soares ao rei d. João V solicitando certidão constando a ordem régia sobre a forma que se deve observar o despacho e arrecadação da dízima e qual regimento deve reger os ofícios da Fazenda e Alfândegas do reino [2ª série, cx.12, doc. 1011]. 2002 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o pedido do proprietário dos ofícios de Feitor, Selador e Porteiro da Alfândega da Bahia, Cristóvão Jordão Maciel para poder nomear serventuário [2ª série, cx. 5, doc. 451]. 2003 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que informa o vice-rei e governador geral do Brasil, marquês de Angeja, D. Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa acerca da forma que deu e mandou observar nos despachos das fazendas que se despacharam na Alfândega da Bahia e os emolumentos que hão de levar os oficiais dela. Anexo: 2 documentos. Lisboa, 5 de dezembro de 1715 [2ª série, cx. 10, doc. 832]. 2004 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o pedido de Cristóvão Jordão Maciel solicitando faculdade para renunciar a favor do seu filho Raimundo Maciel os ofícios de feitor e selador da Alfândega da Bahia [2ª série, cx. 9, doc. 758]. 2005 Idem.

572 ISSN 2358-4912 o selador, ao selar as fazendas, quem determinava o valor da cobrança da dízima, logo um ofício que cuidava do caminho da arrecadação e como não podia deixar de ser também de seu descaminho. Em 1717, o vice-rei informou a Coroa que, de 1º de agosto de 1716 até 31 de julho daquele ano, a dízima da Alfândega de Salvador rendera 53:625$150 réis. Ao que Dom João V não pode “deixar de reparar que, indo desse Reino tantas fazendas, que importam muito, fosse tão diminuto o dito rendimento”. A baixa arrecadação na Alfândega soteropolitana nesse período, em que ainda era o principal porto da América portuguesa, só poderia significar uma coisa para a Coroa: descaminhos praticados pelo selador. Acreditava-se que a obra da Casa do Selo já estava pronta e que, na verdade, “não se devem selar nem marcar todas as fazendas, o que não pode deixar de resultar em grandes descaminhos e prejuízo da Fazenda Real”. 2006 Portanto, para a Coroa, devia-se proceder contra o selador e os oficiais, que cooperaram para o descaminho, e publicar editais para que todos os mercadores, que tivessem fazendas por selar ou marcar, levassem-nas a Alfândega para se selarem. Ademais, as fazendas que se acharem sem selo ou marca, deviam ser dadas por perdidas depois de passado os dias do dito edital e as lojas dos mercadores deviam ser vistoriadas e achando-se fazendas sem as marcas ou selos, essas deviam ser tomadas por pedidas por descaminho. 2007 O marquês de Angeja respondeu a el-rei que não podia dar cumprimento a essa ordem: “por não se achar ainda acabada a casa do selo e também por Vossa Majestade haver prometido nas contas que havia dado se continuasse na mesma sorte que antes se praticava que era a de um pingo de cera”. Além disso, a sombra da Revolta do Maneta ainda pairava sobre Salvador, segundo o vice-rei, “por não querer que no tempo que governa se experimentasse o mesmo tumulto que no antecedente (...) se achava obrigado a fazer presente a Vossa Majestade (...) advertir aos ministros do Conselho não tomem semelhantes ordens”. 2008 Portanto, escapou o selador, Raimundo Soares, pois, a Casa do Selo ainda não havia ficado pronta, ou melhor, nem havia tido início a sua construção, pois Sua Majestade ordenou que a obra fosse feita por arrematação em praça pública, mas não havia, até o ano de 1722, aparecido nenhum lançador por falta de plantas da Casa do Selo. O mestre de campo engenheiro recusava-se a receber ordens do provedor-mor da Fazenda para fazer a planta, ele alegava que o provedor não tinha jurisdição para lhe dar ordens. A Casa do Selo só ficara pronta em 1725, após a cobrança da dízima da Alfândega de Salvador ter sido submetida ao sistema de contratos. 2009

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Referências AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o pedido do proprietário dos ofícios de Feitor, Selador e Porteiro da Alfândega da Bahia, Cristóvão Jordão Maciel para poder nomear serventuário [2ª série, cx. 5, doc. 451]. 2006

Cf. AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que escreveu o vice- rei e governador-geral do Brasil, marquês de Angeja, Pedro António de Noronha Albuquerque e Sousa acerca das razões que teve para não cumprir a provisão sobre a selagem e marcação das fazendas que vão a Alfândega da Bahia para pagarem os direitos [2ª série, cx. 12, doc. 984] e AHU/BA/REQUERIMENTO (cópia) de Raimundo Maciel Soares ao rei D. João V, solicitando certidão constando da ordem régia sobre a forma que se deve observar o despacho e arrecadação da dízima e qual regimento deve reger os ofícios da Fazenda e Alfândega do reino; Lisboa, anterior a 16 de março de 1719 [2ª série, cx. 12, doc. 1011]. 2007 AHU/BA/REQUERIMENTO (cópia) de Raimundo Maciel Soares ao rei D. João V, solicitando certidão constando da ordem régia sobre a forma que se deve observar o despacho e arrecadação da dízima e qual regimento deve reger os ofícios da Fazenda e Alfândega do reino; Lisboa, anterior a 16 de março de 1719 [2ª série, cx. 12, doc. 1011]. 2008 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que escreveu o vice- rei e governador-geral do Brasil, marquês de Angeja, Pedro António de Noronha Albuquerque e Sousa acerca das razões que teve para não cumprir a provisão sobre a selagem e marcação das fazendas que vão a Alfândega da Bahia para pagarem os direitos [2ª série, cx. 12, doc. 984]. 2009 AHU/BA/CARTA do provedor-mor da Fazenda Real do Brasil Tomás Feliciano de Albernaz ao rei D. João V sobre a obra da Casa do Selo da Alfândega da Bahia [2ª série, cx.15, doc. 1335] e AHU/BA/CARTA do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Menezes ao rei d. João V informando sobre as despesas com as obras da Fortificação de São Pedro, da Fortaleza do mar. dos Quartéis do Rosário e da Casa do Selo [2ª série, cx. 22, doc. 2020].

573 ISSN 2358-4912 AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o pedido de Cristóvão Jordão Maciel solicitando faculdade para renunciar a favor do seu filho Raimundo Maciel os ofícios de feitor e selador da Alfândega da Bahia [2ª série, cx. 9, doc. 758]. AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que informa o vice-rei e governador geral do Brasil, marquês de Angeja, D. Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa acerca da forma que deu e mandou observar nos despachos das fazendas que se despacharam na Alfândega da Bahia e os emolumentos que hão de levar os oficiais dela. Anexo: 2 documentos. Lisboa, 5 de dezembro d 6e 1715 [2ª série, cx. 10, doc. 832] AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre o requerimento de Pascoal Marquês de Almeida em que pede confirmação do ordenado de quatrocentos mil réis referentes ao ofício de tesoureiro da dízima da Alfândega da Bahia [2ª série, cx. 10, doc. 866]. AHU/BA/CARTA do vice-rei e governador-geral do Brasil marquês de Angeja, Pedro Antônio de Noronha Albuquerque e Sousa ao rei d. João V em resposta a provisão referente a nomeação do substituto para Pascoal Marques de Almeida provido no ofício de tesoureiro do dízimo da Alfândega da cidade da Bahia [2ª série, cx. 11, doc. 945]. AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V sobre o que escreveu o vice- rei e governador-geral do Brasil, marquês de Angeja, Pedro António de Noronha Albuquerque e Sousa acerca das razões que teve para não cumprir a provisão sobre a selagem e marcação das fazendas que vão a Alfândega da Bahia para pagarem os direitos [2ª série, cx. 12, doc. 984] AHU/BA/CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei d. João V sobre a nomeação de pessoas para a serventia do ofício de tesoureiro da Alfândega da cidade da Bahia [2ª série, cx. 12, doc. 1002]. AHU/BA/REQUERIMENTO (cópia) de Raimundo Maciel Soares ao rei D. João V, solicitando certidão constando da ordem régia sobre a forma que se deve observar o despacho e arrecadação da dízima e qual regimento deve reger os ofícios da Fazenda e Alfândega do reino; Lisboa, anterior a 16 de março de 1719 [2ª série, cx. 12, doc. 1011]. AHU/BA/CARTA do provedor-mor da Fazenda Real do Brasil Tomás Feliciano de Albernaz ao rei D. João V sobre a obra da Casa do Selo da Alfândega da Bahia [2ª série, cx.15, doc. 1335] AHU/BA/REQUERIENTO do capitão Veríssimo de Campos Carvalho ao rei d. João V solicitando provisão para servir no ofício de tesoureiro da Alfândega da cidade da Bahia por tempo de um ano [2ª série, cx. 19, doc. 1725]. AHU/BA/CARTA do vice-rei e capitão-general do Brasil, conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de Menezes ao rei d. João V informando sobre as despesas com as obras da Fortificação de São Pedro, da Fortaleza do mar. dos Quartéis do Rosário e da Casa do Selo [2ª série, cx. 22, doc. 2020]. CARRA, Angelo Alves. Receita e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2009. SALLES, Hyllo Nader de Araújo. Negócios e negociantes Negócios e negociantes em uma conjuntura crítica: o porto de Salvador e os impactos da mineração, 1697-1731. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2014. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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“REGULAMENTO PARA OS MISSIONÁRIOS” EM QUESTÃO: REFLEXÕES CENTRAIS SOBRE A PRÁXIS FRANCISCANA Idelbrando Alves de Lima∗ Os religiosos da Ordem de São Francisco foram os pioneiros na cristianização dos nativos brasileiros e, devido sua forte atuação, a Ordem resolveu se fixar no Brasil, atendendo aos pedidos dos colonos residentes na Capitania de Pernambuco, em 1585. De acordo com Miranda (1969), a notícia do bom trabalho desenvolvido pelos franciscanos em Pernambuco se espalhou rapidamente por toda a Colônia. Em virtude desse acontecimento, começaram a surgir solicitações de outras localidades, que intencionavam o estabelecimento de conventos e de missões franciscanas, ocasionando, desta forma, a fundação do convento da Capitania Real da Paraíba. No interior das aldeias (aldeamentos), estavam presentes a residência dos religiosos, a igreja e a escola. Quanto à práxis catequética adotada pelos franciscanos, observa-se um método evangelístico estratégico para a “domesticação” dos nativos, devido a contínua resistência destes. Entende-se por práxis catequética “[...] aquilo que se fez como catequese e a maneira pela qual isso se fez” (PAIVA, 1982, p. 53). Assim, os franciscanos, ao assumirem as primeiras aldeias na Paraíba, situadas aos arredores da cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, logo trataram de construir igrejas ou capelas e, ao lado destas, as escolas, que se constituíam num recurso facilitador da catequese. “As escolas faziam parte integrante da catequese. O ensino visava tanto a instrução como a formação sólida, num ambiente cristão e isento dos costumes pagãos da casa paterna” (WILLEKE, 1978, p. 58). Além disso, a escola era uma “[...], ponte de ligação entre os pais, os parentes e os missionários [...]” (MIRANDA, 1969, p. 100). Antes que os franciscanos dessem início ao processo de catequização, tinham que conquistar a confiança dos nativos, principalmente, daqueles que pertenciam às tribos consideradas hostis, como o caso dos Potiguaras. E estabelecida a confiança, os religiosos então fariam contato com as famílias nativas através das suas crianças (curumins). Sendo assim, o processo de “aliciação” doutrinária dos franciscanos iniciava-se com os curumins, que eram considerados “terra-virgem”, pois ainda não estavam arraigados aos costumes tribais. Portanto, para que houvesse a efetivação da catequese, essas crianças eram afastadas do convívio familiar e tribal. “Compreendendo que o método seguro na conversão do Gentio é o de começar pelas crianças, fundaram os Franciscanos desde logo um seminário, diríamos hoje colégio, em que recolhiam os indiozinhos com o fim de os doutrinar [...]” (RÖWER, 1942, p. 68). Já Bittar e Ferreira Júnior (2000, p. 454) justificam a catequese de crianças dizendo que [...], a política colonial de conversão ao Cristianismo por meio da catequese esbarrou na concepção de mundo enraizada na alma do índio adulto, pois lhe era impossível aderir aos preceitos religiosos da Igreja Romana sem renunciar aos principais elementos culturais da sua sociedade.

Sendo assim, a atitude de submeter, primeiramente, as crianças à catequese possuía dois aspectos fundamentais: 1º - A facilidade de fixar os ensinamentos cristãos; 2º - A utilização das crianças já catequizadas como vetor de evangelização de suas respectivas famílias. Desta forma, através das crianças catequizadas, os franciscanos iam se aproximando dos mais velhos que, por serem mais resistentes aos apelos culturais, tidos como civilizados, tornavam o trabalho dos religiosos mais árduo, necessitando de constante esforço. A utilização da língua nativa no processo de catequização veio a se constituir, também, num importante recurso de rápido alcance, sendo aplicado genericamente pelos missionários. “A doutrina era explicada na própria língua da tribo e pelo missionário, com a ajuda de um intérprete, se ainda não dominava o idioma” (WILLEKE, 1978, p. 59).



Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB; Especialista em História do Brasil pela FIP; Graduado em História pela UEPB.

575 ISSN 2358-4912 No entanto, a catequese realizada na língua nativa não era muito enfatizada, pois se tratava de um recurso provisório de evangelização, até que os nativos se tornassem “civilizados”, aprendendo a língua portuguesa e, principalmente, o latim para concluir a sua doutrinação cristã. Andrade (2002, p. 60-61) afirma que

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De fato, cedo os missionários perceberam que a execução do projeto civilizador e salvacionista para os índios dependia do desenvolvimento de uma pedagogia, cujo ponto de partida fosse o conhecimento das línguas indígenas. Esta pedagogia desenvolvida na própria língua do índio foi aplicada pioneiramente pelos franciscanos [...]. O aprendizado da língua nativa era fundamental, pois era condição indispensável ao missionário para realizar o ensinamento da doutrina cristã aos índios.

Torna-se necessário registrar que a diversidade de línguas dos nativos era conceituada pelos missionários como “línguas profanas”, que deveriam ser extintas, pois “A Língua de Deus é uma só, e a multiplicidade de línguas é vista como uma maldição perigosa” (NEVES, 1978, p. 36). Essa profanação das línguas nativas era justificada tomando-se por base a passagem da maldição lançada por Deus no episódio bíblico da Torre de Babel (Gn 11: 1-9). Segundo Cunha (1986, p. 98), para a antropologia, a linguagem é algo que nos remete ao sentido, à “[...] formas institucionais tanto quanto crenças práticas e valores são linguagem, são representações”. A linguagem permite a comunicação, a organização social e as interações. Já a “língua de um povo” seria o que se designa de sistema simbólico, que organiza a percepção do mundo. É também um “diferenciador por excelência”. É importante destacar que essa prática causou danos irreparáveis à cultura dos nativos, pois a perda de sua lingua(gem)2010 se configurou no primeiro processo de destruição da identidade nativa, ocorrendo dessa forma a sufocação da sua língua(gem), através da imposição de uma nova língua. A música foi outro importante recurso utilizado no processo de catequização. Percebendo a inclinação musical dos nativos, os franciscanos resolveram inserir seus conceitos morais e religiosos nas letras das canções nativas, transformando-as em letras cristãs e, conforme afirma Willeke (1978), aproveitando a melodia típica e querida da tribo. Os franciscanos ainda ensinavam os nativos a tocarem instrumentos musicais. De acordo com Machado (1977), essa prática tinha por objetivo fazer com que os nativos fossem esquecendo e substituindo suas antigas canções, que eram consideradas pelos missionários como brutas e selvagens. Além disso, os religiosos consideravam esse recurso “[...] um meio de adoçar o caracter e amenisar os costumes” (MACHADO, 1977, p. 120) dos nativos. É válido observar que no processo de catequização foram conservados, adaptados e tolerados alguns costumes e usos da cultura nativa – ou de uma tribo em particular – que não fossem contraditórios aos princípios cristãos ou permitissem ser adaptados ao catolicismo (ALMEIDA, 2014). Após superar as primeiras dificuldades do processo de catequização, os franciscanos davam início ao catecumenato, que “[...] era demorado, requerendo-se instrução religiosa bem sólida, abstenção dos costumes e vícios pagãos [...] e um prazo de experiência de dois anos” (WILLEKE, 1978, p.59). Além das características citadas, o catecumenato também objetivava levar os nativos a receberem os sacramentos do batismo e da comunhão, este último, em particular, requeria do nativo um prazo maior de preparação para que houvesse seu recebimento. E em casos de tribos antropófagas, os missionários eram ainda mais rigorosos ao ministrar esses sacramentos, exigindo dos nativos uma prova prolongada do abandono de seus vícios pagãos. Haja vista o exposto, sobre o catecumenato, torna-se interessante observar o significado dos sacramentos do batismo e da comunhão dentro do processo de catequização. Para Neves (1978), o batismo é o sacramento mais importante, pois, por ser o primeiro, é o que concede a cristandade, ou seja, o status de cristão a quem o recebe. A respeito do significado do batismo, Neves (1978, p. 73) diz que: “É o sacramento que assinala o nascimento social, espiritual e 2010

Utiliza-se essa expressão por entender que a língua, numa perspectiva sócio interacionista, é um sistema intrínseco à linguagem, nas sociedades de cultura letrada, seja ela oral ou escrita. Assim, a não ser por critérios de análises específicas, não podemos separar língua de linguagem. Há sempre uma relação de implicação entre essas noções, um amálgama. Veja-se a obra: KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

576 ISSN 2358-4912 religioso do indivíduo. [...]. Desde que ministrado, morre o paganismo. Sem ele a pessoa não pode morrer cristãmente”. Com base no pensamento de Neves (1978), vale frisar que a ausência desse sacramento na vida de um nativo representava algo insuportável para ideologia do cristianismo, pois o batismo, segundo o catolicismo, vai apresentar uma binaridade que se desdobra na ideia de dois nascimentos (o nascimento físico, animal); (o nascimento religioso, social) e de duas mortes (a morte física, animal); (a morte pagã, herética). Corroborando com Neves (1978) sobre o batismo, Paiva (1982) diz que esse rito concedia aos nativos sua inserção na “Igreja de Deus” (instituição) e representava a confissão pública de que o nativo tinha abandonado os seus velhos costumes pagãos e aceito os novos, ou seja, tinha aderido aos costumes e aos valores de uma vida cristã católica e, consequentemente, portuguesa. O autor ainda destaca no ritual do batismo o fato de que o batizado recebia um novo nome que, por sua vez, era português e cristão. O batismo também apresentava um caráter salvacionista, no qual os nativos, principalmente as crianças e os adultos moribundos, tinham que o receber para obterem a salvação, ficando livres da condenação eterna, ou seja, “[...] salvava o índio do inferno, pondo-o no céu; [...]” (PAIVA, 1982, p. 57). No que se refere ao sacramento da comunhão, esse só era concedido para os nativos que possuíam um comportamento virtuoso. “Só em 1573 foram os índios admitidos à comunhão anual. E só se admitiam os melhores. A comunhão era dada como prêmio de uma vida irrepreensível” (PAIVA, 1982, p. 69). Conforme Willeke (1978), o nativo modificava seus costumes para obter o sacramento da comunhão, sendo assim, o comportamento virtuoso que o nativo devia demonstrar era, na verdade, um comportamento de abstenção ou até de negação de seus próprios costumes. “Tornou-se, destarte, a comunhão um prêmio para os que melhor se habituassem aos costumes portugueses” (PAIVA, 1982, p. 70). A rigorosidade do catecumenato franciscano também possuía o objetivo de combater os “vícios” dos nativos, comumente denominados pelos missionários de “gentílicos”. Dentre eles, Willeke (1978, p. 59) destaca que “[...] os franciscanos insistiam especialmente na abstenção completa da antropofagia, da poligamia e das festas pagãs com a inseparável embriaguez”; além desses “vícios”, os franciscanos ainda combatiam a nudez nativa. A antropofagia foi um dos costumes nativos que mais impressionou os europeus, principalmente, os religiosos. Esse ritual da cultura nativa, presente em algumas tribos, era concebido como um gesto desumano, de grande barbaridade, animalesco e totalmente abominável pelos missionários. Daí os missionários exigirem um catecumenato prolongado para os nativos que pertenciam às tribos antropófagas. De acordo com Kok (2001, p. 82), “A situação poligâmica constituía uma terrível adversária da conversão”. A imposição de um casamento monogâmico e, consequentemente, a ministração do sacramento do matrimônio, possibilitava ao nativo livra-se de um de seus pecados capitais, introduzindo ordem e formando uma família do tipo nuclear, que era um aspecto totalmente fora da realidade da cultura nativa, alheia aos seus costumes. Além disso, cabe destacar que muitos nativos resistiram a essa imposição, mantendo suas esposas. O combate às festas pagãs estava diretamente ligado ao estado de embriaguez em que ficavam os nativos. Durante essas festas, os nativos consumiam o cauim, bebida fermentada que pode ser feita da mandioca doce ou amarga, do milho e do caju. Conforme Kok (2001), o estado de embriaguez exaltava o ânimo dos nativos e, principalmente, “[...] os remitia ao âmago das tradições tribais” (KOK, 2001, p. 85), ou seja, os nativos acabavam reavivando sua memória e praticando seus antigos costumes. Nesse sentido, a bebida não favorecia à conversão dos nativos, pois não gerava um comportamento de renúncia e de obediência. A nudez foi o primeiro aspecto da cultura nativa a ser percebida e comentada pelos europeus. Conforme se encontra registrado na carta de Pero Vaz de Caminha, “Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara” (CASTILHO, 1998, p. 31). Os franciscanos, “Quanto ao uso da indumentária, da parte dos índios, [...] se conformavam com as condições antropológicas e a pobreza das tribos, [...]” (WILLEKE, 1978, p. 62). Contudo, durante os atos religiosos da igreja, os franciscanos exigiam que pelo menos as nativas estivessem vestidas. Porém, após o término desses atos, elas voltavam para seu estado natural de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

577 ISSN 2358-4912 nudez. É importante observar que a nudez feminina era bem mais reprimida pelos missionários, fato que justifica a concepção cristã de que o corpo, principalmente o feminino, era fonte de desejo e pecado. O cotidiano dos nativos catecúmenos nas missões (aldeamentos) estava organizado da seguinte forma: as crianças e os rapazes, durante o dia, iam à missa e à pregação, trabalhavam no campo e eram alfabetizados; no período da noite eram doutrinados (MACHADO, 1977). Já os adultos e os velhos eram instruídos religiosamente, duas vezes ao dia, a primeira, pela manhã após o término da missa e, a segunda, à tarde (WILLEKE, 1978). Observando esse controle cotidiano, percebe-se que os nativos estavam subjugados a uma rígida disciplina estabelecida pelos franciscanos. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 2013, p. 164, grifo do autor). Além de prisioneiros dessa rotina diária, os nativos também estavam sujeitos a uma rigorosa educação disciplinadora que englobava os castigos físicos. “Não se pode negar que tanto os franciscanos como os missionários de outras Ordens infligiam penas corporais a meninos e adultos, a homens e mulheres, a cristãos e catecúmenos” (WILLEKE, 1978, p. 61). Logo, se eles praticassem “infrações” do tipo nudez, embriaguez, poligamia, fornicação, obscenidade de atos, rixa, desenvoltura de sua lingua(gem) e não cumprissem as determinações impostas pelos religiosos – como assiduidade nas missas e na escola, prática do jejum, cultivo das roças, entre outras – eram castigados fisicamente com extremo rigor. “A catequese, portanto, caminhava junto com a sujeição imposta pelos castigos” (KOK, 2001, p. 123). Foucault (2013, p. 171) afirma que “Na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal”. Segundo Neves (1978), os castigos corporais não possuíam apenas a finalidade de punir os nativos que cometiam infrações. Essa prática, segundo o autor, era uma forma estranha e paradoxal de se reprimir a bestialidade do corpo. O corpo era visto como um “[...] lugar de inscrição dos aspectos visíveis da animalidade, da escassa humanidade” (NEVES, 1978, p. 54). Os castigos praticados pelos franciscanos contra os nativos eram: as palmatórias, que tinham sua quantidade definida de acordo com a gravidade da infração, sendo também levada em consideração a idade do nativo infrator; as prisões, que podiam durar de uma noite a aproximadamente oito dias; e o suplício no tronco, onde o nativo era preso por um ou dois dias, além de ser açoitado com trinta chibatadas diárias. Nesse sentido, os castigos ou as penas como denomina Neves (1978) eram

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[...] formas de esculpir no corpo uma retaliação que, pelas marcas deixadas no corpo, permitirá uma ‘leitura’ da gravidade da transgressão dos condenados, e não castigará apenas o corpo, mas aprimorará a alma. A dor do corpo afasta o demônio, exorcizando e purificando o espírito (NEVES, 1978, p. 122, grifo do autor).

A aplicação dos castigos corporais esteve presente cotidianamente nos aldeamentos religiosos e foi constantemente justificada como algo inofensivo, necessário e eficaz para se obter dos nativos catecúmenos o comportamento esperado, ou seja, a obediência cristã a serviço da fé e do Rei. “Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (FOUCAULT, 2013, p. 147). Para Foucault (2013) a disciplina é uma técnica, que fabrica indivíduos, simultaneamente, como objetos e instrumentos de seu exercício. O exercício dessa metodologia estava autorizado no “Regulamento para os Missionários” – documento assinado na Junta Custodial de 27 de outubro de 1606, na cidade de Olinda; e aprovado em 21 de julho de 1607 no Capítulo Provincial de Lisboa – que continha advertências sobre as doutrinas e sobre o modo como os religiosos deveriam se comportar ante as doutrinas. Esse documento encontrase transcrito na obra de Frei Venâncio Willeke, Missões Franciscanas no Brasil, (1978, p. 73-74), o qual é composto por duas partes. 1. Advertências para as nossas doutrinas [...] Faça-se rol dos índios capazes de confissão, entrada a Septuagésima correr-se com eles em forma que quando vier dominica in albis estejam confessados. E o presidente da doutrina terá cuidado de manter o rol ao custódio e em sua ausência a quem em seu lugar ficar e havendo nisto

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ISSN 2358-4912 descuido façam-lhe com efeito mandar para que se saiba os que são nisso remissos e descuidados e como a tais castiguem. E em caso de nessas casas se haja de administrar sacramento aos tais pelos religiosos que já tiveram nas doutrinas, não se faça sem licença do Guardião e em sua ausência do presidente. Posto que à conta dos presidentes das doutrinas está vigiarem sobre os índios que vivem mal, tratam suas mulheres como não devem, que são feiticeiros e criminosos e que não acodem à igreja especialmente nos dias de obrigação, que não guardam os dias santos e jejuns dela e pelas tais culpas castigá-los, contudo lembramos ao irmão custódio que quando lá for faça particular pesquisa e inquirição disso ou a mande fazer pelo religioso que para isso lhe parecer mais suficiente para que nos conste como se satisfaz com o que à nossa conta e obrigação está sobre a qual neste particular descarrega o bispo sua consciência (WILLEKE, 1978, p. 73).

Com relação à primeira parte que compõe o Regulamento de 1606, destaca-se a importância do sacramento da confissão que, “permite a purificação do gentio que vive em pecado ou tende a nele recair” (NEVES, 1978, p. 74); os cuidados e a vigilância que deveriam ter os presidentes das doutrinas; e as atitudes dos nativos, que mereciam ser castigadas. Além disso, o Regulamento ainda determina que o custódio deveria ter cautela na hora de executar os castigos, exigindo da sua parte ou de outro ao seu mando, uma particular pesquisa ou inquirição do fato, para que não ocorressem erros. Na segunda parte do regulamento, constam as seguintes determinações: 2. Modo como se hão de haver os religiosos nas doutrinas Primeiramente dita pela manhã clara a missa como é costume por respeito dos trabalhos dos índios e ensinada a doutrina, tanja-se à escola. Todo o tempo que os moços nela estiverem estarão de feição que tenham medo e respeito a quem os ensina. E a doutrina para que fique com mais autoridade e gravidade se lhes dirá passeando pela igreja com o capelo na cabeça. E fazendo prática terá o língua um escobelhinho em o qual se sente. E passeando algumas vezes se tornará a seu lugar, por que já que é forma de pregação, é justo que se represente com gravidade enxertando os línguas com exemplos de Santos e fazendo-os esquecer de seus ritos gentílicos. Todo o tempo que os moços estão na escola esteja a porta ferrolhada; todo o mais tempo esteja com chave para que quem vier tanja. E a porta da igreja, acabada a missa, em o tempo em que se faz doutrina se feche logo com chave a qual não se abrirá em outro tempo, sem particular licença do presidente. Não se dêem palmatoriadas a índios já velhos principais porque os tais mais se castigam com repreensão de palavras que com palmatoriadas de moços. Quando o caso for tal que hajam mister castigo isto não há de ser menos que o troco, ao qual não mandará algum língua índio ou índia, sem o consultar primeiro com o presidente. Nenhum religioso dê palmatoriada a mulher, mas havendo-as de dar seja umas às outras, havendo respeito às velhas, às moças e meninas. E se o que tem cuidado da escola for sóbrio em açoitar os moços advirta o presidente nisso. Não se consintam índios nas celas dos frades, nem há para que os trazer dentro da casa, tirando três colomis para o serviço dela, estes os mais modestos e recolhidos, e quem presidir nunca diante deles repreenda os religiosos, porque os não fiquem tendo em menos conta. Acabada a doutrina, não se ponha o religioso língua à porta da igreja para mandar dali os índios; mas, mende-os vir à escola dos moços e aí negocie com eles. Não fale o religioso com índia só; mas, quando alguma se vier queixar, seja à portaria e tenha o língua-companheiro consigo. [...] (WILLEKE, 1978, p. 73-74).

No que diz respeito à segunda parte do Regulamento de 1606, constata-se vários aspectos. Pode-se observar o horário, o local e, principalmente, como deveria ser o comportamento do missionário, durante a doutrina e depois dela. Nesse sentido, deve-se destacar o medo e o respeito que os missionários deveriam impor aos catecúmenos durante o processo de doutrinação. Além disso, a escola tornava-se uma prisão, pois o regulamento exigia que as portas estivessem sempre fechadas, sendo uma forma de manter a atenção e de evitar a fuga dos catecúmenos. O Regulamento ainda apresenta as determinações para a execução dos castigos corporais; como esses deveriam ser aplicados e em quem; determina também como o missionário devia se comportar

579 ISSN 2358-4912 com os nativos e, principalmente, com as nativas, pois, conforme consta no regulamento, o religioso nunca devia ficar a sós com uma nativa e esse aspecto seria uma forma de conter os intercursos sexuais, evitando que o missionário caísse em “tentação”. É importante ressaltar que o documento ora analisado é intitulado de “Regulamento para os Missionários”. Diante desse título, indaga-se que a criação desse documento veio, na verdade, regular, corrigir, determinar e confirmar práticas já existentes na práxis franciscana. Conforme expressa Miranda (1969, p. 150), “[...], se pode indagar se as prescrições de 1606 não teriam vindo corrigir abusos praticados por franciscanos anteriormente”. Não se pode deixar de mencionar a importância das aldeias (aldeamentos) na práxis catequética; estas com localização e funções bem definidas, foram extremamente úteis para o desenvolvimento da catequese e da política colonial. De acordo com Neves (1978, p.117), a aldeia ficava localizada “[...] em um ponto considerado conveniente por múltiplas razões (políticas, militares, geográficas, etc.)”. Cabe destacar que a aldeia não era mais um local dos nativos, e sim, “[...] um espaço criado pela cultura cristã e onde seus porta-vozes não são mais visitas” (NEVES, 1978, p. 117, grifo do autor). A atitude de estabelecer locais fixos para as aldeias ocorreu em 1557, num acordo firmado entre o governador-geral do Brasil, Mem de Sá, e os padres da Companhia de Jesus – responsáveis no momento pela catequese dos nativos da colônia – no qual as aldeias (aldeamentos) seriam organizadas próximas aos principais núcleos coloniais, facilitando o trabalho catequético dos missionários (ALMEIDA, 2014). As aldeias (aldeamentos) eram um espaço que descaracterizava a vida e a identidade dos nativos, pondo-lhes em contato com um novo espaço e uma nova rotina diária que eram totalmente diferentes de sua cultura. Como demonstra Almeida (2014, p. 446):

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A aldeia era o mal menor e nela os índios se submetiam a uma nova situação que lhes trazia prejuízos incalculáveis. Sujeitavam-se às regras portuguesas, passando a viver em condição subordinada e sujeitos ao trabalho compulsório. Misturavam-se com outros grupos étnicos e sociais, viam reduzir-se as terras às quais tinham acesso e expunham-se às altas mortalidades. Além de tudo, submetiam-se à nova rotina, que lhes proibia o uso de certas práticas culturais e os incentivava a abandonar antigas tradições e incorporar novos valores, como parte do processo de transformá-los em súditos cristãos.

Nesse sentido, as aldeias não eram apenas locais com a finalidade de converter os nativos ao cristianismo. Elas também transmitiam outros ensinamentos, como: comportamentos, práticas econômicas, entre outros. “As aldeias foram heterogêneas e construídas para atender a interesses diversos” (ALMEIDA, 2014, p. 466). “Enfim, é uma re-socialização total, quotidiana, observada em detalhe. A Aldeia é um grande projeto pedagógico total” (NEVES, 1978, p. 162). Dentro de todo o processo catequético, não se deve esquecer a atuação dos missionários, principais agentes transmissores dos valores religiosos e costumes da cultura europeia. “Com efeito, [...] o missionário foi um ator histórico importante na elaboração de que se poderia chamar de uma linguagem colonial [...]” (MONTERO, 2006, p. 41, grifo da autora). Referências ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Catequese, aldeamentos e missionação. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, v. 1. p. 453-478. ANDRADE, Maristela Oliveira de. 500 anos de catolicismos e sincretismos no Brasil. João Pessoa: Universitária/ UFPB, 2002. BITTAR, Marisa; FERREIRA JR., Amarílio. Infância, catequese e aculturação no Brasil do século 16. In: R. bras. Est. pedag.. Brasília, v. 81, n. 199, p. 452-463, set./dez. 2000. CASTILHO, Maria Augusta de (Org.). 500 anos: o documento ímpar do descobrimento do Brasil. Campo Grande: UCDB, 1998.

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AS REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS DO MARANHÃO, A PARTIR DO ROTEIRO DE VIAGEM DE FRANCISCO DE PAULA RIBEIRO Ilma Maria de Oliveira Silva2011 Considerações Iniciais Este trabalho tem como objetivo analisar as representações dos povos indígenas do Maranhão, no século XIX, nos relatos de viagem do historiador Francisco de Paula Ribeiro. Acreditamos que ainda existe lugar para as fontes escritas, mesmo com as várias possibilidades de trabalho com outros tipos de fontes históricas, as escritas ainda têm o seu papel na pesquisa, pois os documentos escritos são fundamentais e continuam, pela escrita, sendo um poderoso instrumento de perpetuação da memória ao longo de séculos. Dessa forma, a escolha pelo relato de viagem de Francisco de Paula Ribeiro, como fonte histórica, permite analisar os povos indígenas em um tempo e um espaço, cujo contexto histórico, político, econômico, social e cultural da época da fonte é bem diferente da atualidade. Nesses termos, é possível analisar a sociedade da época, especialmente, refletir sobre porque o documento foi escrito, qual a finalidade desse documento, para quem foi escrito, onde e quem escreveu. Assim iniciamos, partindo de informações sobre o autor. No entanto, por falta de fontes confiáveis sobre a vida de Francisco de Paula Ribeiro na infância e na adolescência, nos limitamos a transcrever informações segundo documentos dos historiadores João Renôr (2007 ) e Adalberto Franklin (2007). Segundo os autores citados, Paula Ribeiro, como o denominam, foi um português de nascimento que migrou, ainda na juventude, da América para a Fração Setentrional da colônia portuguesa. E que este fazia parte das tropas efetivas, as quais constantemente, se deslocavam para a defesa da colônia. De acordo com os documentos oficiais, Francisco de Paula Ribeiro, militar português, comandou o Destacamento Militar de Pastos Bons entre 1800 e 1823 e foi o primeiro historiador dessas terras que registrou suas observações na obra: Memória das Nações Gentis que Presentemente Habitam o Continente do Maranhão (FRANKLIN, CARVALHO, 2007). O historiador deixou registros de suas andanças pelo Maranhão, especialmente dos sertões de Pastos Bons e dos objetivos políticos, econômicos e sociais que moviam sua trajetória enquanto comissário designado pela Rainha D. Maria I, para estabelecer os limites da capitania do Maranhão e de Goiás. Esses registros são disponibilizados como fonte de pesquisa escrita na Biblioteca Digital Curt Nimuendaju2012. Assim, é salutar destacar que Francisco de Paula Ribeiro realizou, a serviço da coroa, diversas expedições pelo interior da Capitania do Maranhão, na segunda década do século XIX, contribuindo, entre outras tarefas, para a demarcação da fronteira entre o Maranhão e Goiás. De acordo, fontes arquivistas levantadas pelo historiador João Renôr Carvalho (2007) junto ao Arquivo Público do Estado do Maranhão, relata em ofício do governador do Maranhão, datado de cinco de março de 1798, que a pedido do então Alferes Francisco de Paula Ribeiro, por se fazer preciso ao real serviço, foi o mesmo enviado de São Luís para Belém para colaborar com os militares portugueses. Segundo Franklin2013 (2007), Francisco de Paula Ribeiro estava por completar, em menos de dois meses, vinte anos de serviço prestado ao Maranhão, aonde chegou como alferes do regimento da Infantaria. Paula Ribeiro foi nomeado para o posto de alferes, pela rainha D. Maria I, mãe de Dom 2011

Doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Professora da Universidade Estadual do Maranhão. [email protected]. Maria Cristina Bohn Martins é Professora Orientadora: Doutora em História pela Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) Brasil 2012 Endereço eletrônico: http.//biblio.etnolinguista.org/ Neste site encontra-se todos ofícios e o relatório original de Francisco de Paula Ribeiro. 2013 Adalberto Franklin é editor e historiador, morador de Imperatriz e tem várias obras sobre a fundação de Imperatriz. Adalberto, juntamente com João Renõr analisa o Roteiro daviagem que fez o major Francisco de Paula Ribeiro ás fronteirasdas capitanias do Maranhão e da de Goiás.

582 ISSN 2358-4912 João VI em 16 de abril de 1795, ou seja, apenas três anos antes de sua nomeação para o Estado do Grão-Pará e Rio Negro. Assim, em 1813, movido por ordem real que determinava as resoluções dos limites entre Maranhão e Goiás, o governador Paulo José da Silva Gama nomeou, no dia 15 de fevereiro de 1815, o capitão Francisco de Paula Ribeiro, de acordo Franklin (2007, p. 59), “como primeiro comissário representante da capitania em questão, a ser tratada com os representantes de Goiás, que eram sargento-mor José Antônio Ramos Jube e o capitão Francisco José Pinto de Magalhães, o mesmo que anexara São Pedro de Alcântara2014”. Foi essa missão, segundo os historiadores João Renôr (2007) e Adalberto Franklin(2007), que deu origem ao Roteiro de Viagem que fez o major Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras das capitanias do Maranhão e da de Goiás, em 1815. As observações e registros de Francisco de Paula Ribeiro, em relação à região e seus habitantes, resultou em três trabalhos publicados postumamente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), sendo eles: Memória sobre as nações gentias que presentemente habitam o Continente do Maranhão (1841); Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de Paula Ribeiro ás fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goiás no ano de 1815 (1848) e a Descrição do território dos Pastos Bons, nos sertões do Maranhão (1849). Estes trabalhos fazem uma breve explanação da colonização do Maranhão e analisam as representações dos povos indígenas a partir do Relatório de Viagem do capitão Francisco de Paula Ribeiro. Segundo Cabral (1992), até o inicio do século XVIII, precisamente em 1730, a região que compreende hoje o sul do estado do Maranhão, era completamente desconhecida pelo colonizador. A corrente povoadora agropastoril, oriunda da Casa da Torre2015 foi à responsável pela ocupação desses sertões. Conduzida predominantemente por vaqueiros baianos, pouco a pouco ocupou uma extensão que ia do extremo leste a oeste e sul do estado, chegando no início do século XIX, aos limites do atual estado do Goiás2016. Pastos Bons foi a primeira cidade criada, seguida de Carolina, Riachão, Grajaú, Imperatriz, Loreto e Barra do Corda que, juntamente com os novos municípios criados e desmembrados dos antigos, formaram o quadro geográfico do sul do Maranhão. A respeito dessa frente de ocupação, Cabral relata que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

abrindo caminhos, devassando campos, ocupando espaços, povoou o São Francisco, chamado rio dos currais, espalhou-se pelos sertões piauienses e atingiu os campos naturais do sul do Maranhão – os famosos Pastos Bons, forjando uma vida em sociedade bastante característica, como disse Capistrano (CABRAL, 1992, p. 64).

Ainda conforme a autora, essa frente povoadora foi incentivada pela expansão açucareira que, inicialmente, tinha o gado como meio de transporte e força motriz para execução das atividades no engenho. Aos poucos, essas atividades tornaram-se inconciliáveis devido ao crescimento da economia açucareira, o que ocasionou a “saída” do gado das intermediações do engenho. Por outro lado, a necessidade de expansão da pecuária foi favorecida por fatores exógenos como a existência de vastos territórios ainda desconhecidos com condições favoráveis para o empreendimento. além da expansão açucareira, um outro fator, “a disponibilidade de terras”, favoreceu a internalização do boi. Este era criado de forma extensiva, com baixa produtividade, exigindo extensas áreas. E terras eram o que não faltava, infindáveis, com pastos naturais em abundância, prontos, feitos, um convite irrecusável à penetração dos currais (CABRAL, 1992, p.101). 2017

2014

Hoje Carolina Constitui em uma fortificação (Casa Feudal) construída por Garcia D’ Avila, um dos maiores donatários de terra do século XVII, localizada em Salvador. Esta “casa” foi responsável pelo desbravamento do sertão nordestino 2016 O limite territorial entre Maranhão e Goiás, atual estado do Tocantins, está delimitado pelo rio Tocantins. 2017 O que se entende por disponibilidade? Implica dizer que estas terras não tinham “dono”, ou seja, estavam desocupadas, desconsiderando os índios que ali já habitavam. 2015

583 ISSN 2358-4912 Esse empreendimento se deu, ainda, por meio da iniciativa privada sem contar com o apoio direto do reino de Portugal e, desde então, o sul do Maranhão foi delineando características peculiares quanto o próprio processo de ocupação, a economia, a política local e a configuração da sociedade. Com o passar do tempo essas diferenciações foram tornando-se mais notórias sendo possível, inclusive, se identificar certa rivalidade econômica, política e social entre os dois extremos da então província do Maranhão, fazendo despertar, ainda no século XIX, um sentimento de separação por parte do sul e, então, a noção política de um Maranhão do Sul desvinculado da capital. Candido Mendes em 1852 apud Cabral, 1992 menciona que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

há uma notável diferença entre a população oriunda da colonização que entrou pelo litoral e a outra (que entrou pelo interior): a primeira é de costumes mais amenos, a segunda é menos civilizada, e ressente-se em extremo de sua origem. Daí provém a chamar-se no interior da Província do Maranhão aos sertanejos ou habitantes do campo – baianos (CABRAL, 1992, p.64).

O povo sertanejo “era2018” visto com desdenho pela capital e foi tratado por ela com uniformidade, apenas como os homens do interior, associados ao banditismo, a um povo sem cultura, sem modos e sem ideais. Pelo contrário, os desbravadores dos sertões, como ficaram conhecidos, foram identificados pela historiografia regional como homens aventureiros, destemidos e de boa índole, que possuíam um senso crítico em relação aos desmandos da província do Maranhão. Eloy Coelho Netto os define com mais particularidade: Os conquistadores do sertão maranhense eram povoadores audazes e aventureiros que transpuseram pontos desconhecidos. Quase todos eram brasileiros, baianos, pernambucanos e paulistas, principalmente. Não foi gente criminosa ou degradada, nem reveladora de caráter perverso que pudesse envergonhar a sua descendência [...] Predominava o mestiço mameluco, caldeado de sangue e arestado do sol, o elemento cariboca, tipo característico do barraqueiro do São Francisco e do nordestino ajagunçado, mescla a que nem os fidalgos da Casa da Torre escaparia (NETTO, 1979, p. 24).

Muito longe de um estereótipo uniforme, podem ser observados os vários biótipos que compuseram a identidade e a memória dos sertões maranhenses que, além do sertanejo, é marcada pela forte presença de diversos grupos indígenas que resistiram arduamente à “invasão” dos seus domínios. Apesar da resistência, foram sujeitos aos aldeamentos e quando não, ao extermínio – por meio de emboscadas, contágio de doenças, entre outras atrocidades - que levou à extinção de muitas etnias. O índio foi compreendido como uma grande ameaça ao projeto da Coroa, de apropriações de terras para a criação de gado e para o cultivo da agricultura. Contudo, as práticas dos indígenas em matar os habitantes, levar o gado e os alimentos das fazendas, faziam deles pessoas sem lei e que precisavam ser civilizados pelos não índios. Francisco de Paula Ribeiro reconhecia que esses comportamentos e práticas eram apenas fruto de injustiças e atrocidades cometidas contra os indígenas que aqui viviam, no entanto, só reconheciam os povos indígenas como humanos pela assimilação cultural. Isso significa que os povos indígenas não encontravam apoio no sentido de permanecerem vivendo suas culturas, portanto suas identidades. Os Povos Indígenas do Maranhão: Extinção e Resistência Os diversos grupos indígenas foram vistos como um empecilho, um problema a ser superado diante da conquista do gado e da criação de fazendas. É esse olhar o qual determinou a forma como essas populações indígenas foram percebidas e isoladas da memória regional por um longo tempo. Nesse sentido, [...] pode-se avaliar quão sangrentos e conflituosos foram os contatos entre os dois grupos – criadores e íncolas, com interesses e modo de vida tão diferentes e antagônicos. As agressões ininterruptas e inevitáveis permearam todo o processo de espoliação dos índios e a consequente proliferação das fazendas (CABRAL, 1992, p.120). 2018

O verbo no passado, destacado com aspas é proposital, por acreditar que ainda permanece essa visão por muitas pessoas urbanas.

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ISSN 2358-4912 Ribeiro (1986) comenta que a primeira fase da relação entre os colonizadores e os povos indígenas no Brasil se deu através da catequização. Esse processo educativo se tornara indispensável aos interesses, tanto da Companhia de Jesus quanto do colonizador, pois através dessa educação atingiam-se os objetivos econômicos, ou seja, à medida que se tornava o índio mais dócil era mais fácil aproveitá-lo como mão de obra. Esse processo não contou com a passividade do índio. Assim, diante de sua resistência a uma nova cultura o uso da força foi uma estratégia encontrada para subjugá-lo aos propósitos dos colonizadores. Berta Ribeiro (2009, p. 47) transcreve trecho de um documento escrito pelo Padre Anchieta que revela essa situação: Parece-nos agora que estão as portas abertas para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo do jugo, porque para este gênero não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelleeosintrare ( grifo nosso)

Desse modo, os jesuítas tinham o aparato legal para subjugar o índio através da doutrina cristã e, de forma sutil, escravizá-lo impondo-lhe uma cultura e um modo de vida a que ele não estava apto a receber. Ao se referir ao povo Timbira, no século XIX, Curt Nimuendajú (1944, p. 4), acrescenta que a guerra aos índios tinha como principal objetivo torná-los escravos e, quando “não se conseguia pela força das armas, tentava-se, frequentemente, obter por meio de falsas propostas de paz [...]”. Dessa forma, os jesuítas preparavam mão de obra indígena para o autossustento da Companhia e para servir aos colonos na lida dos engenhos, roças, fazendas, etc. Nesse sentido, estratégias oficializadas por leis da Coroa Portuguesa foram desenvolvidas para recrutá-los2019 ao trabalho forçado, como salienta Weigel (2000, p. 82-83): [...] Os descimentos: eram expedições para aliciar os índios, de modo que descessem ‘livremente’ de suas terras e passassem a viver nas aldeias missionárias, [...] onde eram acumulados para, então, serem repartidos e alugados entre os colonos, missionários e serviço do governo português; Os resgates: eram expedições para capturar índio mediante troca comercial, realizada com os chefes indígenas aliados aos portugueses. Esses índios eram considerados escravos e trabalhavam para seus salvadores; As guerras justas eram realizadas pelas tropas de guerra que empreendiam expedições para capturar e escravizar os índios – tanto homens como mulheres e crianças – das tribos não aliadas aos portugueses (grifo nosso).

Todavia, as estratégias de dominação e submissão dos povos indígenas não se deram do mesmo modo. A diferenciação de ritmos, estratégias e intensidades dos modos de subjugação, conjugadas a formas concretas de reação dos indígenas, segundo Weigel (2000), delineiam-se em diferentes conjunturas históricas marcando períodos de maior e menor acirramento da destruição física e cultural, durante quatro séculos de conquistas. No Maranhão, por exemplo, os primeiros evangelizadores foram os capuchinhos franceses, que ao desembarcarem na região em 1612, logo trataram de conhecer as 27 aldeias localizadas nos arredores de São Luís. Em cada aldeia, os missionários levantavam um cruzeiro que servia de ambiente para a instrução dos indígenas, bem como de espaço para as orações (SILVA, 2012). As ações dos missionários foram interrompidas com as lutas entre os franceses e portugueses (1614-1615) e reassumidas posteriormente por outros religiosos como os franciscanos, os mercedários, os carmelitas e, sobretudo, os jesuítas (NEMBRO, 1955). Nesse século (XVII), havia aproximadamente 250 mil índios distribuídos em 30 povos diferentes,2020 a maior parte das quais foram exterminadas ou dissolvidas social e culturalmente. Berta Ribeiro (2009) comenta que, em menos de duas décadas de contato com o não índio, 12 mil índios Tupinambás que habitavam no litoral do Maranhão foram aniquilados por uma epidemia de varíola. 2019

Para maior aprofundamento, ler “Francisco de Paula Ribeiro, Desbravador dos Sertões de Pastos Bons - a Base Geográfica e Humana do Sul do Maranhão”, de Adalberto Franklin e João Renôr de Carvalho (2007); e “O Índio na História do Brasil”, de Berta Ribeiro (2009). 2020 Dados coletados da obra “Os índios do Maranhão - O Maranhão dos índios”, da Associação Carlo Ubbiali Instituto Ekos (2004, p.2).

585 ISSN 2358-4912 O esforço dos missionários dedicados aos índios do Maranhão, de acordo Carvalho (2010), não impediu que colonos, soldados, governadores, cabos de guerras de resgates e a própria Igreja Católica cometessem as maiores tiranias e arbitrariedades contra os índios. Como exemplo dessas atrocidades, Berta Ribeiro (2009) registra que, em 1716, o então governador do Maranhão, Cristovão da Costa Freire, exterminou de uma só vez o povo Barbado em sua aldeia, na qual viviam 291 pessoas. As guerras contra os índios no Maranhão se intensificaram a partir do surgimento da povoação de Pastos Bons2021 (1750), “originada das entradas dos sesmeiros da Casa da Torre no Território do Piauí, que afugentavam e aprisionavam os índios para alargar as áreas de criação de gado, quando se deu início ao processo de povoamento do sul do Maranhão” (FRANKLIN, 2005, p. 12). Franklin (2005) argumenta que as frentes colonizadoras – a frente pastoril nordestina, a frente de expansão litorânea, a frente de ocupação goiana, a frente colonizadora do Pará – foram responsáveis pelo desaparecimento e massacres de muitos povos indígenas que habitavam as terras maranhenses. Ao analisar o Roteiro da viagem de Francisco de Paula Ribeiro, podemos registrar através de trechos do roteiro, a crueldade com que eram tratados os índios capturados com a falsa promessa de paz. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] no dia 30 de junho de 1815, quinhentos ou seiscentos índios Purecramecrã entram em São Pedro de Alcântara, hoje Carolina, em demonstração de paz proposta por Moreira da Silva, que meses depois os reduziu à servidão. [...] em 27 de julho assistiu a entrada de mais 160 Purecramecrã, sendo que, destes, 130 foram ferrados a fogo e vendidos à escravidão. (FRANKLIN, CARVALHO,

2007, p.128) Também com fundamento nos registros de Francisco Paula Ribeiro, Nimuendajú (1944) afirma que a causa principal da guerra aos índios não era a necessidade da abrir novas áreas à colonização nem a de assegurar as já ocupadas, mas a avidez dos colonos por obter escravos índios. Assim, em três séculos de contato, a maioria dos povos indígenas, principalmente os que habitavam o litoral do Maranhão, desapareceu. Francisco de Paula Ribeiro, apud Carvalho e Franklin (2005), cita que, nas primeiras décadas do século XIX, ainda habitavam o Sul do Maranhão dezoito povos, com predominância dos povos Timbira, tais como os Amajó, Angetgê, Apinagé, Augutgê, Canaquetgê, Kapiecrã, Canela, Guajajara, Macamecrã, Norocoagê, Piocobgê (Gavião), Poncatgê (Krikati), Ponecra, Purecamecrâ, Sacamecrã, Tacamedu, Xavante e Xerente, apenas quatro2022 dos quais ainda existem. A população atual dos povos indígenas, no Estado do Maranhão, soma cerca de 28.000 mil indíos.2023 Essa população pertence a nove grupos étnicos diferentes classificados em dois grandes grupos linguísticos: Tupi (Tenetehara/ Guajajara, Awá/Guajá e os Ka’apor), o Macro-Jê(Krikati (Krinkati), Ramkokamekrá e Apanieikrá (Canela), Pukobyê (Gavião), KrepumKateyê (Timbira) e Krenyê. As diferenças e as especificidades entre os povos indígenas se manifestam na forma de organização política, social, cultural, econômica e linguística. Essas peculiaridades é que especificam os valores, crenças, religiosidade e o modo de cada povo manifestar sua cultura e construir sua história. Vale ressaltar, que as diferenças entre os povos indígenas do Maranhão não são apenas de ordem sociocultural e linguística, mas de ordem histórica, pois o tempo e a forma de contato desses povos com a sociedade envolvente têm acontecido de maneira diferenciada. Os nove povos indígenas do Estado do Maranhão estão distribuídos em 18 municípios2024, em 16 áreas indígenas e 280 aldeias. Os povos indígenas do Maranhão que sobreviveram as guerras, doenças, 2021

Para Franklin (2005, p.13), Pastos Bons compreendia todo o território maranhense abaixo de Caxias, em toda a sua extensão leste-oeste, do Parnaíba ao Turiaçu. 2022 Poncatgê (Krikati), Piocobgês (Gavião), Guajajara e Canela. 2023 Dados disponíveis em http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral, que utiliza dados da Funasa. “Os números desta listagem são aproximados, devido aos inúmeros problemas e dificuldades enfrentadas ao se produzir um censo das populações indígenas no país, principalmente nos casos de etnias que estão distribuídas em várias Terras Indígenas, cujos censos foram feitos em épocas e por instituições diferentes”. 2024 Municípios: Barra da Corda, Jenipapo dos Vieiras, Montes Altos, Bom Jardim, Araguanã, São João do Carú, Grajaú, Fernando Falcão, Arame, Amarante, Maranhãozinho, Zé Doca, Centro do Guilherme, Nova Olinda, Buriticupu, Santa Luzia, Sitio Novo e Lajeado Novo. (Dados fornecidos pela Coordenação da Educação Escolar Indígena da Unidade Regional de Educação de Imperatriz).

586 ISSN 2358-4912 massacres, miscigenação forçada e imposição de novos modelos culturais continuam a lutar em defesa de seus direitos e do respeito as suas diferenças e especificidades.

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Considerações Finais As representações dos povos indígenas no século XIX continuavam longe de considerá-los sujeitos humanos de carne e osso, que tinham projetos de vida, cultura e esperança de viver em uma sociedade de paz, sem ter que assimilar outras culturas ou mesmos se tornarem escravos. Continuaram sendo vistos, como em períodos anteriores, desde a invasão do Brasil, como bárbaros, primitivos e preguiçosos. Dessa forma fica explícito que as atrocidades cometidas aos povos indígenas do Maranhão tinham um propósito, ou seja, o desenvolvimento do estado e criação de cidades que seriam importantes para a conquista do gado e da criação de fazendas . Nesse aspecto os grupos indígenas que habitavam o Maranhão foram vistos como um empecilho, um problema a ser superado diante do progresso planejado pelos fazendeiros. É esse olhar o qual determinou a forma como essas populações indígenas foram percebidas e isoladas da memória regional por um longo tempo. Nesse contexto o roteiro de viagem Paula Ribeiro afirma que interesses econômicos foi um dos principais fatores que contribuíram para o extermínio, escravização, o desrespeito pela cultura e a invasão das terras indígena, pois nesse período as frentes colonizadoras – a frente pastoril nordestina, a frente de expansão litorânea, a frente de ocupação goiana, a frente colonizadora do Pará – foram responsáveis pelo desaparecimento e massacres de muitos povos indígenas que habitavam as terras maranhenses. Diante de tudo isso, os povos indígenas não foram apenas vítimas, pois em muitas situações reagiram em defesa de seus espaços e segurança, mesmo diante das expedições bem armadas e sem escrúpulo, com o fim exclusivo de exterminar ou escravizar essas populações autóctones. O Roteiro de Viagem de Francisco de Paula Ribeiro, é um documento que visava prestar conta ao governador do Maranhão em decorrência atribuições a ele confiadas, como consta no oficio de 15 de fevereiro de 1815. Paula Ribeiro relata muitos sofrimentos e algumas tão desumanos que marcaria o resto de sua vida, no entanto, contrariamente concorda que os povos indígenas necessitavam ser civilizado, ou seja, deveria se curvarem e servirem aos ditames dos fazendeiros e do governo do Maranhão. Conclui-se, portanto, que embora com direitos garantidos legalmente, a partir de 1988 na Constituição Federal, os povos indígenas, ainda são vistos por muitos não índios como aqueles que precisam assimilar a cultura da sociedade envolvente para se humanizarem, com uma diferença do que afirmava Paula Ribeiro (século XIX), onde não admitia as atrocidades feitas contra os indígenas, porém enfatizava a necessidade da civilidade para os tornarem-se humanos. Diante da coragem, resistência e autenticidade, nas últimas quatro décadas, os povos indígenas de todo país estão organizados e exigem que sejam respeitados com suas formas de se organizarem politicamente, socialmente, economicamente e, em especial, culturalmente. Referências CABRAL. Maria do Socorro Coelho. Caminhos do gado. Conquista e ocupação do sul do Maranhão. São Luís: SIOGE, 1992. COELHO NETO.Eloy. História do Sul do Maranhão, Terra e Vida e Acontecimentos. Sem editora. São Luís: 1979. FRANKLIN, Adalberto; CARVALHO, João Renôr F. de. Francisco de Paula Ribeiro – desbravador dos sertões de Pastos Bons. A base geográfica e humana do Sul do Maranhão. Imperatriz: Ética. 2007. FRANKLIN, Adalberto. Breve História de Imperatriz. Imperatriz: Ética, 2005. NIMUENDAJU, Curt. Os Timbira Orientais. Belém: Mimeo, 1944. (Exemplar único em português, inédito). NEMBRO. Nétodio de. São José de Grajaú: primeira Prelazia do Maranhão. Fortaleza: Edições: A voz de São Francisco, 1955. RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 2009.

587 ISSN 2358-4912 RIBEIRO, Maria Luiza Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. São Paulo: Morais, 1986. RIBEIRO, Francisco de Paula. 1848. Roteiro da viagem que fez o Capitão Francisco de Paula Ribeiro ás fronteiras da Capitania do Maranhão e da de Goyaz no anno de 1815 em serviço de S. M. Fidelissima. Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, tomo X, 1º. Trimestre de 1848, p. 5-80. Rio de Janeiro. [segunda edição 1870] . Biblioteca Digital Curt Nimuendaju .http://biblio.etnolinguistica SILVA. Ilma Maria de Oliveira. Os Cursos de Magistério Indígena do Estado do Maranhão e as Implicações na Formação dos Professores Krikati numa Perspectiva Específica e Diferenciada. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Maranhão: São Luis, 2012. WEIGEL, Valéria Augusta de Medeiros. Escolas de branco em maloca de índio. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2000. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A LINGUAGEM DA ARQUITETURA RELIGIOSA EXPRESSA NA ICONOGRAFIA AZULEJAR DOS CONVENTOS FRANCISCANOS NO NORDESTE DO BRASIL COLONIAL Ivan Cavalcanti Filho2025 Considerações Iniciais Fundados entre o final do século XVI e meados do XVII, os conventos franciscanos do nordeste passaram por várias alterações de configuração espacial e de forma arquitetônica durante os anos que se seguiram, até as últimas décadas do século XVIII e início do XIX, quando foram totalmente concluídos. Seis das treze casas nordestinas tiveram intervenções físicas empreendidas pelos holandeses durante o período de ocupação (1630- 1654), o que causou significativos danos à sua arquitetura. Até então os conventos assumiam um modelo simples, condizente com a retórica de pobreza e austeridade própria dos frades menores – o exato modelo presente na iconografia azulejar aqui tratada, e objeto do presente estudo. Com a Restauração,2026 a ordem era reocupar os cenóbios, reconstruí-los e conferir aos mesmos uma linguagem diferente daquela tradicional, imbuída das práticas arquitetônicas em voga. Nesse contexto, os conjuntos franciscanos foram assumindo, a partir do início do século XVIII, uma linguagem mais elaborada, calcada na orientação pós-Trento, que utilizava a arte como meio didático-pedagógico para a difusão da fé católica.2027 Tal prática, já utilizada na arquitetura produzida para o clero secular, foi igualmente adotada nos edifícios do clero regular, sendo traduzida materialmente na talha dourada e policromada dos altares e retábulos dos interiores das igrejas, nas pinturas ilusionistas dos forros das naves, nos trabalhos da cantaria dos frontispícios e nos silhares de azulejos nas paredes das naves e claustros. No âmbito dos cenóbios franciscanos tal recurso foi aplicado nos ambientes de louvor, gerando espaços de alto requinte artístico e decorativo. A justificativa que usavam os mendicantes para adotarem essa prática num meio que, a rigor deveria ser regido pela pobreza e simplicidade, se ancorava no argumento de que “para o culto divino todo ornato seria pouco”.2028 Dentro desse universo de esplendor decorativo que animou os interiores religiosos franciscanos, os frades menores revestiram a porção inferior das paredes das naves de suas igrejas, sacristias, viassacras, galerias dos claustros, capelas dos capítulos, portarias, e até nichos de adros, com magníficos painéis azulejares com motivos geométricos ou historiados. Estes últimos – os figurados – ao fazer alusão a passagens da História Sagrada ou a episódios da vida de emblemáticos personagens da Ordem, como São Francisco ou Santo Antônio, cumpriam as determinações tridentinas dado o teor catequético e educativo das cenas ali representadas.2029 Neles, paisagens urbanas ou campestres eram representadas como pano de fundo, onde edifícios religiosos faziam parte do cenário, ratificando o papel da Igreja como co-administradora do mundo português à época. Afinal era o Padroado Régio uma das molas propulsoras do sistema colonial, pois conferia ao rei de Portugal poderes para instituir e gerir a Igreja no Brasil no período de sua formação, através da cobrança e administração dos dízimos eclesiásticos, nomeação de ordens religiosas, fundação de conventos, etc.2030 2025

Universidade Federal da Paraíba. Email: [email protected] O termo Restauração se refere à fase posterior à retirada dos batavos, e resgate do território pelos portugueses. 2027 Sobre a arte como recurso pedagógico tridentino , ler Joseph Ratzinger, Introdução ao Espírito da Liturgia, Tradução Jana Almeida Olzansky, 2ª ed., Prior Velho: Paulinas, 2006, p. 95. 2028 Venâncio Willeke, Prefácio, In: Livro dos Guardiães do Convento de São Francisco da Bahia (1587-1862. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, IPHAN, 1978, p. vii. 2029 Ivan Cavalcanti Filho, The Franciscan Convents of North-East Brazil 1585-1822: Function and Design in a colonial context, Tese de Doutorado, Oxford Brookes University, Oxford, 2009, pp. 105-6; p. 148. 2030 Para um maior entendimento sobre o Padroado Régio, ler Riolando Azzi, A Instituição Eclesiástica durante a Primeira Época Colonial, In: Hoornaert, Eduardo et al (eds), História da Igreja no Brasil, 2ª ed., Petrópolis: Editora Vozes, 1979, pp. 153-242. 2026

589 ISSN 2358-4912 Os edifícios religiosos que compunham o cenário dos painéis eram simples, austeros, básicos, apresentando no seu frontispício elementos morfológicos eruditos, onde os cunhais, a cornija e o frontão clássico, todos em pedra lavrada, delineavam sua arquitetura, contando ainda com a portada única, as duas aberturas superiores (correspondentes ao coro alto), e o óculo central superior. Tal composição tinha semelhança com a primeira versão de igreja franciscana fabricada na colônia, representada na edificação religiosa situada em segundo plano em relação à Igreja de São Cosme e São Damião no óleo Igaraçú – Church and cloister,2031 de autoria do artista Frans Post, integrante da comitiva de Maurício de Nassau, que tinha entre outras incumbências profissionais, ‘retratar’ as vilas e cidades do Brasil holandês. Tal arquitetura de linhas pouco ambiciosas, primeira expressão de edifício franciscano no Brasil, paradigmática nas representações iconográficas de construções do gênero, devia certamente reproduzir a tipologia das igrejas fabricadas na Metrópole à época, funcionando como uma ‘fotografia’ reveladora do partido arquitetônico em vigor. Esta constitui a hipótese aqui levantada, sendo o objetivo do presente ensaio comprová-la através da recorrência do modelo na iconografia azulejar em questão, modelo este que remete àquele produzido em Portugal no período da União Ibérica (15801640), o qual foi tratado pelo estudioso George Kluber como “arquitetura chã portuguesa”.2032 Igrejas jesuítas construídas à época inclusive absorveram características dessa linguagem, principalmente no tocante à simplicidade de sua volumetria, como aconteceu nas igrejas de São Roque, em Lisboa, e São Paulo, em Braga.

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O Azulejo em Portugal Como essa tipologia arquitetônica está amplamente representada nos painéis azulejares dos cenóbios dos frades menores no nordeste do Brasil, cumpre destacar alguns dados sobre a produção azulejar, como foi introduzida no contexto europeu, e como evoluiu em termos tipológicos até atingir o grau de elaboração que permitiu a excelência pictórica dos painéis historiados onde a arquitetura em questão constitui pano de fundo da paisagem. Introduzido no cenário ocidental na segunda metade do século XII, durante a ocupação dos mouros na Península Ibérica,2033 o azulejo foi muito utilizado na Andaluzia, onde arabescos e formas geométricas constituíam os motivos mais recorrentes.2034 Essa tipologia, conhecida como azulejo de tapete, representou o primeiro dos três tipos mais conhecidos de azulejos fabricados no Ocidente. As outras versões foram as de motivos isolados – comuns em Delft, na Holanda – e os painéis figurados, que eram montados a partir da composição de várias peças azulejares.2035 Estes últimos, consolidados no século XVI, foram uma evolução da cerâmica italiana resultante da técnica da majólica que, desenvolvida um século antes, geraria a faiança – oriunda da cidade de Faenza – versão renascentista da cerâmica porcelanizada.2036 Tal tipologia azulejar teve grande aceitação em Portugal, onde já era fabricada desde meados do século XVI, revestindo paredes tanto de edificações residenciais – a exemplo do painel ‘Suzana e os velhos’ (1565), na Quinta da Bacalhoa, em Azeitão – quanto religiosas, como o painel ‘Milagre’(1584) da capela de São Roque, na Igreja de mesmo nome, em Lisboa.2037 Os painéis, no entanto, não assumiam grandes dimensões, sendo envolvidos por desenhos com linguagem maneirista ou com padrões de tapete. Durante o século XVII, as limitações econômicas inerentes à União Ibérica não permitiram que houvesse grandes inovações nos azulejos – as peças de tapete com padronagem policroma dominavam a produção, sendo recorrentes nas edificações civis e nas religiosas. Só a partir de meados do século 2031

Ver imagem em Joaquim Souza-Leão, Frans Post 1612-1680, Amsterdam: A. L. Van Gendt, 1973, p. 16-A. Sobre a arquitetura chã, ler George Kluber, A Arquitetura Portuguesa Chã: entre as especiarias e os diamantes, Tradução José Henrique Pais da Silva, 2ª ed., Lisboa: Vega, 2005. 2033 J. M. Santos Simões, Azulejos em Portugal no século XV e XVII, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. 2034 Patricio Dugnani, A Herança Simbólica na Azulejaria Barroca: os painéis do claustro da Igreja de São Francisco da Bahia, São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012, p. 34. 2035 José Valladares, Azulejos da reitoria: catálogo de azulejos, Salvador:Universidade da Bahia, 1953,p. 13. 2036 Sobre o assunto, ler Santos Simões, op. cit., 1990, p. 83. 2037 Ver as imagens em José Meco. Azulejaria Portuguesa, 2ª ed., Lisboa: Bertrand Editora Lda, 1985, p. 13; p. 16. 2032

590 ISSN 2358-4912 que os painéis figurados tiveram papel de destaque, tendo como exemplares emblemáticos os silhares da Galeria dos Reis e da Galeria das Artes no Palácio dos Marqueses da Fronteira em Lisboa.2038 O segundo quartel do século seguinte marcou o apogeu da fabricação de azulejos em Portugal – período da “Grande Produção” – que em parte correspondeu ao reinado de D. João V (1706-1750).2039 No contexto dos painéis historiados era comum os motivos terem conexão com a função destinada aos espaços que revestiam. Na grande escadaria da ala educacional do Palácio das Necessidades (17421750), em Lisboa, por exemplo, foram representados nos silhares bustos de autores clássicos,2040 motivos que remetiam ao componente educativo, erudito, que os ambientes de estudo deviam encerrar. O mesmo procedimento era adotado nos espaços sagrados, que na verdade tinham uma função igualmente educativa, porém religiosa, não secular, como era o caso das Necessidades. Assim, alegorias com visível teor religioso constituíam os motivos dos painéis azulejares empregados em templos católicos e conventos, quadros esses representados na cor azul sobre fundo branco, e emoldurados por concheados, folhagens, anjinhos, e cartelas superior e inferior com legendas ou desenhos simbólicos.

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O Azulejo na Arquitetura Franciscana Nordestina Nos conjuntos franciscanos do nordeste foram empregados os três tipos de azulejos citados na seção anterior: os de motivos geométricos, de padrão policromo (fabricados na primeira metade do século XVII) podem ser encontrados na casa da Paraíba;2041 os de ‘desenho avulso’ (holandeses de Delft) na parte externa do parapeito do claustro do convento de Recife,2042 e os painéis historiados (produzidos durante século XVIII), nos diferentes ambientes dos cenóbios onde a prática do revestimento azulejar era permitida. As seqüências referentes à vida e milagres de Santo Antônio e São Francisco foram muito recorrentes, como já foi dito acima. Painéis alusivos à história da Virgem, e à da sua mãe – Sant’Ana – também constituíram motivos de silhares historiados da nave da igreja e da sala da portaria do conjunto franciscano de Olinda, respectivamente. Outros espaços ornamentados com ‘quadros’ azulejares foram o claustro do convento recifense – com passagens do Gênesis – e do convento de Salvador, cujos trinta e sete painéis exploram uma emblemática mitológica que exalta os valores da vida humana, as virtudes, etc.2043 Além dos motivos supracitados, paisagens com ermitões franciscanos também foram exploradas nos painéis, como na via sacra do cenóbio de Santo Antônio de Cairu, na Bahia, e na portaria do convento de Salvador. Nelas o templo religioso católico se apresentava como edifício de arquitetura simples, destituído de elementos decorativos, atento ao ideário dos frades menores e, sobretudo, condizente com os Estatutos da Província de Santo Antônio do Brasil, à qual o convento estava subordinado, que assim se referiam à construção de suas casas: “Encomendase muyto que nos edificios & obras resplandeça sempre a Santa Pobreza, não fazendo curiosidades supérfluas, & desnecessárias”.2044

2038

Para contemplar registros fotográficos dos painéis, ver Meco, op. cit., pp. 28-37. Alexandre Nobre Pais et al, A Arte do Azulejo em Portugal, Lisboa: Instituto Camões, 2005, p. 27. 2040 Para ter uma idéia dos painéis azulejares com busto de autores clássicos, ver José Fernandes Pereira et al, Lisbon in the age of D. João V (1689-1750), Paris: Instituto Português de Museus, 1994, pp.19-20. 2041 Imagem do silhar do claustro do convento franciscano da Paraíba pode ser visto em J. M. Santos Simões, Azulejaria Portuguesa no Brasil 1500-1822, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965, p. 212. 2042 Para conhecer as famílias de azulejos de ‘desenho avulso’ do convento de Recife, ver Santos Simões, Azulejos Holandeses no Convento de Santo Antônio do Recife, Recife: Amigos da DPHAN, 1959. 2043 Para um estudo completo sobre os painéis, ver Patricio Dugnani, A Herança Simbólica na Azulejaria Barroca: os painéis do claustro da Igreja de São Francisco da Bahia, São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2012; Hugo Fragoso, Um Teatro Mitológico ou um Sermão em Azulejos: Claustro do Convento de São Francisco de Salvador, Bahia, Brasil, Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 2006; Silvanísio Pinheiro, Azulejos do convento de S. Francisco da Bahia. Salvador: Livraria Turista, 1951; Frei Carlos Fidelis Ott, OFM, Os Azulejos do Convento de São Francisco da Bahia, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 7, 1943, pp. 7-34. 2044 Estatutos da Provincia de Santo Antonio do Brasil, Lisboa: Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor da Casa Real, 1683, p.113. 2039

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ISSN 2358-4912 A Igreja Chã nos Azulejos dos Conventos Franciscanos Considerando a impossibilidade de serem aqui apresentados todos os painéis onde o edifício religioso com características chãs aparece no contexto da arquitetura franciscana fabricada no nordeste, foram eleitos para efeito de análise do presente trabalho, dentre os cenóbios providos de patrimônio azulejar, um ou dois exemplares de cada convento, de modo a ilustrar, e por conseguinte, comprovar a hipótese aqui levantada. A igreja de São Francisco do Conde, na Bahia, apresenta um dos mais ricos acervos azulejares franciscanos – vinte e quatro painéis alusivos à vida e obra de Santo Antônio, para quem o mosteiro é dedicado.2045 O segundo painel da parede do Evangelho, próximo à porta de entrada, cuja cena destaca o “Santo protegendo uma criança dentro de um caldeirão de água fervente”, apresenta no canto superior esquerdo, uma igreja com fachada simples, provida de uma porta, duas janelas superiores (que corresponderiam internamente ao coro alto), e um óculo. Seu aspecto geral sugere a linguagem arquitetônica estudada por Kubler, e a presença de cruzeiro no seu pátio externo sinaliza para a natureza franciscana do templo (Figura 1). O quarto painel da mesma parede, cujo motivo é o “Milagre da cura do pé decepado”, também destaca, no canto superior esquerdo, uma igreja de características congêneres, implantada em sítio elevado com escada de acesso. Provida de campanário recuado em relação à fachada e cruzeiro no adro, a edificação igualmente sugere a tipologia simples das construções religiosas capuchas. Igual temática foi explorada num dos quatorze painéis da nave da igreja de Igarassu, em Pernambuco, também de motivação antonina. Na verdade os motivos dos painéis historiados nos diferentes conventos eram pintados a partir de seqüências de gravuras pré-existentes. Os quadros da nave da igreja de Igarassu, por exemplo, foram baseados nas estampas do alemão Martin Engelbrecht (1684-1756), Vita Sancti Antonii Paduani, editadas em Ausburgo (1740), e disponíveis no Museu de Arte Antiga de Lisboa.2046 “O milagre da cura do menino” – primeiro painel à direita de quem entra no templo (parede ao oeste litúrgico) – apresenta, na mesma área em que aparece nos dois quadros do Conde (acima citados), uma igrejinha com frontão triangular clássico, óculo e portada marcada por cercadura e frontão próprio, além do cruzeiro no adro (Figura 2). O convento do Recife (PE) igualmente destaca, nas paredes da nave de sua igreja conventual, onze painéis de azulejos com temática antonina. Importados de Portugal entre 1720 e 1750, remetem a episódios contemplados por Wadding na obra Annales Ordinis Minorum.2047 O primeiro quadro do lado do Evangelho, intitulado “No meio do fogo não sou queimado”, versão congênere daquela aplicada no segundo painel da parede do Evangelho na igreja de São Francisco do Conde (citado acima) revela, na sua porção direita, construção religiosa maneirista portuguesa provida de campanário recuado no lado do Evangelho. Com relação aos quadros alusivos ao fundador da Ordem não foi diferente. Os dezesseis painéis sobre sua vida, que revestem as paredes do claustro do convento de Olinda, foram baseados nas gravuras do artista flamengo F. Harrewyn, impressas em Lisboa em 1730, e instaladas no cenóbio provavelmente entre 1735 e 1745.2048 O painel “São Francisco tentado pelo demônio” apresenta na parte superior esquerda edifício religioso de nave única, provido de frontão clássico com óculo, e lanternim sobre a coberta à altura do presbitério, atendendo, através de sua simplicidade formal, prerrogativas da versão lusitana da arquitetura maneirista. Episódios da vida de São Francisco inspirados nas matrizes supracitadas igualmente constituíram motivos para os onze quadros azulejares que revestem a nave da igreja de Sirinhaém, também em Pernambuco. O segundo painel próximo à entrada (lado da Epístola), que apresenta “São Francisco 2045

Para a listagem geral dos painéis, ver Fernando Luiz da Fonseca, Santo Antônio do Paraguaçu e o Convento de São Francisco do Conde, Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1988, p. 37. 2046 Maria João Espírito Santo Bustorff Silva (Org.), Igreja de Santo Antônio de Igarassu: Conservação e restauro, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 2002, p. 54. 2047 Para maiores informações sobre os painéis, ver Frei Bonifácio Mueller, Convento de Santo Antônio do Recife 16061956: Esboço Histórico, Recife: Imprensa Oficial, 1956, p. 38. 2048 Sobre as gravuras que inspiraram os quadros azulejares do claustro olindense, ver Mueller, ‘Os Azulejos do Convento de São Francisco de Olinda’, Santo Antônio, Recife, Ano 12, n. 2, 1954, pp. 111-3.

592 ISSN 2358-4912 levado por amigos”,2049 destaca, na sua porção direita, conjunto edificado onde aparece templo religioso com morfologia similar àquela representada nos quadros acima analisados – portada única com duas janelas superiores (correspondentes ao coro alto), frontão clássico com óculo e adro provido de cruzeiro (Figura 3). Na mesma igreja, o segundo quadro do lado do Evangelho (acompanhando a seqüência iconográfica no sentido horário), ilustra “São Francisco recebendo de Cristo e de Maria a Regra da Ordem”.2050 No cenário de fundo, do lado direito do painel, aparece igrejinha provida de campanário recuado da fachada (lado do Evangelho), com morfologia geral similar àquela contemplada nos edifícios religiosos supracitados, inclusive provida de um singular indicador franciscano – o cruzeiro no adro. Os painéis do claustro do convento de São Francisco de Salvador (BA), cujos motivos encerram a Emblemática Horaciana,2051 de visível teor mitológico (como já foi dito acima), também contemplam, com a mesma sutileza dos historiados religiosos, isto é, com menor visibilidade em relação aos motivos principais explorados no quadro azulejar monocromático, a arquitetura chã portuguesa. O quadro XIX “A morte é igual para todos” apresenta, no fundo de sua porção central, um cortejo fúnebre chegando a um pequeno templo católico provido de nítidas características da linguagem formal em pauta. É importante registrar que todos esses exemplares de arquitetura religiosa representados nos painéis historiados eram fictícios, assim como as paisagens onde estavam inseridos. Entretanto a iconografia azulejar poderia igualmente traduzir edifícios reais. Os silhares da sala do consistório da Ordem Terceira de Salvador (BA), por exemplo, mostram a imagem urbana de Lisboa Oriental antes do terremoto de 1755, destacando alguns de seus principais edifícios religiosos, como a igreja do convento da Madre de Deus, o convento de Santa Clara, o Mosteiro de São Vicente de Fora, e o convento de Xabregas.2052 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais As evidências aqui destacadas confirmam a hipótese que regeu a presente investigação – aquela de que os templos religiosos representados nos detalhes de fundo das cenas dos painéis de azulejos historiados correspondiam à linguagem arquitetônica produzida na Metrópole durante o período da União Ibérica. Não obstante, é oportuno mencionar outras evidências inerentes ao objeto de estudo, que dão suporte ao seu emprego e justificam sua recorrência nos conventos franciscanos nordestinos. Em primeiro lugar é importante ressaltar que o revestimento azulejar, enquanto manifestação artística, além de ter uma função pedagógica, fundamentada na política tridentina de embelezar exaltando a fé católica, carregava consigo um forte componente funcional e material, pois contribuía para a conservação das paredes onde era utilizado, já que recobria sua porção inferior – exatamente a parte exposta à umidade que, vinda do solo, manchava o emboço e a pintura a cal, além de comprometer sua estabilidade. Outro detalhe que não pode ser relevado é que o modelo de arquitetura religiosa representado nos painéis azulejares se apresentava como atemporal, funcionando mais como um indicador da presença da Igreja Católica, na sua versão capucha, do que como exemplar arquitetônico peculiar a uma época específica, haja vista a representação de edifícios chãos, característicos do final do século XVI e primeira metade do XVII, em quadros alusivos a episódios da vida de Santo Antônio ou de São Francisco, que viveram entre o final do século XII e início da centúria seguinte, quando era a linguagem românica aquela que predominava como expressão emblemática da arquitetura religiosa. Nesse sentido é interessante verificar a evidência mais importante da pesquisa – que a atemporalidade sugerida na linguagem das edificações eclesiásticas representadas nos painéis 2049

Para a listagem do repertório de painéis de Sirinhaém, ler Santos Simões, op. cit., 1965, p. 260 Santos Simões, op. cit., 1965, p. 260. 2051 Sinzig, Frei Pedro,Maravilhas da Religião e da Arte na Egreja e no Convento de São Francisco da Baía, Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1933, pp.170-219. 2052 Para uma visualização dos monumentos citados, ver Maria João Espírito Santo Bustorff Silva (Org.), Festa Barroca a azul e branco: os azulejos do claustro e do consistório da Ordem Terceira de São Francisco, São Salvador da Bahia, Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 2002, pp. 40-3. 2050

593 ISSN 2358-4912 azulejares dos conventos na verdade “arquitetava” o seguinte discurso: como o edifício maneirista português, de linhas chãs, apesar de sua erudição, dispensava a presença de elementos decorativos e superficialidades, o mesmo constituía o modelo ideal para atender de forma inconteste a retórica de pobreza própria da doutrina evocada pelo Santo de Assis.

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Figura 1 - Igreja de São Francisco do Conde, Bahia – “Santo Antônio salvando uma criança dentro de um caldeirão de água fervente”. Fonte: Acervo Ivan Cavalcanti Filho (2013).

Figura 2 – Santo Antônio de Igarassu, PE (Nave) –“Milagre da cura do menino”. Fonte: Acervo do autor (2014).

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Figura 3 – São Francisco de Sirinhaém, PE (Nave) – “São Francisco levado por amigos”. Fonte: Acervo Ivan Cavalcanti Filho (2014).

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ADMINISTRAR CAYENA: ARTICULAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO GOVERNATIVA CONFORME AS PRIMEIRAS ORDENANÇAS Ivete Machado de Miranda Pereira∗ O presente trabalho se insere dentro de uma pesquisa mais ampla sobre o período da administração portuguesa na Guiana Francesa (1809-1817). Em 1809, a colônia francesa limítrofe da capitania do Grão-Pará foi invadida por tropas portuguesas, com ajuda naval inglesa, conquista considerada reflexo dos acontecimentos europeus de início do século XIX. De fato, o desenrolar dos eventos políticos na Europa, após a Revolução Francesa, levaria à ocupação do território metropolitano português por tropas napoleônicas e à transferência da Corte portuguesa para a América. Esta transladação tornou estrategicamente possível a invasão da colônia francesa (PEREIRA, 2013, p. 101-121). A Guiana Francesa, ou Cayena como se dizia então na época, não passaria incólume pela turbulência política e pelas guerras que atingiram sua metrópole. Em um curto período de tempo, 1789-1809, a França passou de Monarquia a República e de República a Império, e Caiena seria tocada por várias decisões da cúpula revolucionária – entre elas a abolição da escravidão em 1794 e seu restabelecimento em 1802 –. Sofreria ainda o isolamento imposto pela guerra naval em curso que arruinaria seu comércio e mesmo seu abastecimento. À época da invasão, a Guiana era governada por Victor Hugues, nomeado pelo Diretório em 1799. Victor Hugues é considerado um personagem polêmico. Nascido em Marseille em 20 de julho de 1762, em uma família de padeiros, partiu para a América aos quatorze anos como aprendiz de marinheiro, foi corsário durante oito anos, o que lhe proporcionou o conhecimento de todos os portos do Mar das Antilhas e do Golfo do México (AZEMA, 2006, p. 7). Por volta dos vinte anos se estabeleceu em São Domingos como padeiro fornecendo pão para as tropas e hospitais. Pertenceu à loja maçônica Choix des hommes, que o cita como o “fiel e amado V. Hugues, capitão de navio” (THÉSÉE, 1970, p. 471). Hugues estava à frente de uma confortável situação financeira quando a Revolução explode em São Domingos. O grande incêndio de Port-au-Prince de 21 de novembro de 1791 arruína seu comércio e ele volta para a França, tornando-se acusador público do tribunal revolucionário de Rocheford em 1793 (RÉGENT, 2006, p. 207). Antes de chegar à Guiana em 1800, Hugues foi comissário de Guadalupe pelo período de 1794 a 1799, e provou ser homem enérgico e decidido. Sob seu governo a presença inglesa foi afastada da ilha e uma guerra de corso foi empreendida contra navios britânicos, o que assegurou o abastecimento da ilha. Conseguiu manter a ordem mesmo depois da abolição da escravidão em 1794, impedindo os novos livres de deixar suas antigas plantações, ou seja, instaurou o trabalho forçado. Na Guiana, com pulso forte, restabeleceu a escravidão em 1802. Detivemo-nos sobre este ator por considerá-lo personagem importante da capitulação e do início da administração portuguesa em Caiena. Após a conquista, a Capitulação foi assinada no dia 12 de janeiro pelo comandante da expedição portuguesa, tenente-coronel Manoel Marques, pelo capitão de mar e guerra inglês James Lucas Yeo e pelo governador da Guiana, Victor Hugues. Proposto pelo governador francês, o tratado de rendição (BNRJ, I-32, 18, 002, nº 002) possuía dezesseis artigos e foi ratificado após pronta aquiescência dos vitoriosos, sem recusa de certos artigos que lhes eram desfavoráveis, entre outros, os artigos XI e XII. O artigo XI determinava que as leis civis francesas, o Código Napoleão, até então em vigor em todo Império Francês e, por conseguinte, na colônia, continuariam a decidir os interesses entre os indivíduos e as diferenças que lhes dissessem respeito. Em decorrência do artigo precedente, o XII estabelecia a cobrança das dívidas igualmente segundo o Código Napoleão. Ou seja, o conjunto de regras que determinam as relações jurídicas de ordem privada – garantias pessoais, bens e aquisições de propriedades – não se conformaria ao direito português. A determinação expressa no artigo XI da capitulação é importante devido ao fato de ser a ordem jurídica o que define a estrutura administrativa do Estado, pois são as leis que organizam o poder e ∗

Doutoranda em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Bolsista da CAPES, Proc. nº BEX 1773/13-5.

597 ISSN 2358-4912 imprimem a matriz básica da estrutura funcional do Estado (SALGADO, 1985, p. 15). A administração é o coração do Estado, é ela quem sustenta seu poder em período de paz, comparável à importância do exército em tempos de guerra. A administração é ainda um dos elementos constitutivos essenciais do processo de dominação colonial. A Guiana Francesa conquistada pelos portugueses teria de ser administrada como se fosse francesa. Outro agravante era o constrangimento de se permitir que sentenças fossem pronunciadas obedecendo a um código que portava o nome do maior inimigo de Portugal. Acompanhar o início da administração portuguesa na Guiana é a proposta deste trabalho. Por meio da análise das primeiras Ordenanças publicadas pelo governador interino, o comandante da expedição de conquista, Manoel Marques, pretende-se responder a uma primeira questão: como o governador organizou a administração observando o que ficara estipulado na rendição. Pois, apesar de vivamente criticada, a capitulação permaneceu válida. É o que se deduz do ofício do ministro da Guerra, D. Rodrigo de Souza Coutinho, ao governador do Pará, ofício de 18 de maio de 1809, no qual transmite a ordem do Príncipe que “se cumpra religiosamente a capitulação” (BNRJ Cod CCCXXXII 17-20). Outra decisão da Corte, a Carta Régia de 10 de junho de 1809 (BNRJ Cod CCCXXXII 17-20) nomeava o magistrado João Severiano Maciel da Costa para o cargo de Intendente Geral da Polícia de Caiena, mas o magistrado só chegaria à Guiana no início de 1810. Assim, coube ao governador militar Manoel Marques tomar as primeiras providências administrativas. A primeira intervenção foi o envio de um destacamento de 20 homens, comandados por um oficial, para reprimir desordens, insurreição de escravos e pilhagem de diversas habitations2053, entre elas a Gabrielle, onde eram cultivadas especiarias e que pertencia ao governo. Foi ordenada a condução dos insurgentes para Caiena a fim de serem severamente punidos (FR ANOM COL C14/8586 Fº 74). O governador Manoel Marques ficou a par das desordens por meio do ex-governador francês (FR ANOM COL 14/86 Fº54), com quem manteve uma convivência conflituosa revelada pela correspondência trocada entre eles. A 29 de janeiro, Marques pede que se cumpra o prometido em carta do dia 27, no caso, a entrega dos escravos pertencentes ao governo (FR ANOM COL C14/85-86 Fo82). O número de escravos do governo e repartidos nos diversos estabelecimentos era de 920 indivíduos (BNRJ, 07, 2, 039). Em 31 de janeiro, Marques pede que Hugues dê a ordem para a entrega do recenseamento de 1808, a fim de compará-lo com o de 1809 e assim cobrar dos habitantes o imposto da Capitação (FR ANOM COL C14/86 Fº83). Percebe-se que o francês não quer facilitar o trabalho do seu sucessor. Por sua vez, Hugues reclama quatro barris de moeda de cobre e Marques responde ter dado a ordem para que lhe fossem entregues, por julgá-los “inúteis nesta colônia” (FR ANOM COL C14/86 Fº 90). A troca de cartas, ou melhor, de farpas, é longa, mas a próxima serve para ilustrar o tom de toda a correspondência. A 14 de janeiro, Hugues escreveria a Manoel Marques: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Fui obrigado a negociar com oficiais subalternos, por circunstâncias e considerações alheias ao protocolo militar que, diante do mundo inteiro, chamo de crime e traição, assim como chamarão todas as nações civilizadas quando tiverem lido a capitulação, que vós assinardes, e que ouso dizer, honra-me tanto quanto deve fazê-lo corar de vergonha (FR ANOM COL C14/86 Fº53).

O atrito entre ex e atual governador teve fim em 3 de março, quando Hugues voltou para a França. Segundo Marques, esta partida foi para ele “uma extrema felicidade”, pois Hugues, homem intrigante e perigoso, “não cessava de fomentar a desordem e a desunião por toda a parte” (MELLO MORAES, 1982, p. 380). O início da administração portuguesa A primeira proclamação pública do governador português, publicada no dia 16 de janeiro (ANP Fonds Colonies C14/85-86), na verdade uma ordenança, determinava a volta dos escravos à fazenda de origem. A ordenança partia da constatação de que em vários quartiers2054 da colônia os escravos 2053

O termo habitation utilizado nas colônias francesas designava as fazendas formadas pela distribuição de terras a particulares, o habitant ou colono,concessão gratuita sob obrigação de cultivá-las. 2054 Os “quartiers” eram a circunscrição administrativa das colônias francesas.

598 ISSN 2358-4912 estavam em estado de insurreição, outros vagavam pela cidade cometendo excessos e, portanto, decretava que a partir da publicação da proclamação os escravos deveriam retomar seus trabalhos habituais. O não cumprimento da ordem em vinte e quatro horas acarretaria a punição – cem chicotadas – do escravo encontrado fora da fazenda sem permissão assinada por seu dono. Em uma colônia cujo número de escravos representava 87% da população, a demonstração de pulso forte pelo novo governo era essencial para o restabelecimento da ordem que a tomada desestruturara. No dia seguinte, nova ordenança, traz a nomeação de oito habitantes para compor uma Junta Provisória, presidida pelo governador, encarregada de organizar os diversos ramos da administração civil e da polícia (ANP Fonds Colonies C14/85-86). Essa ordenança era imprescindível porque o corpo administrativo que regia a colônia francesa não existia mais após a rendição. A Guiana possuía à sua frente na época da invasão um Comissário do Imperador – Comandante em chefe –, responsável pelo poder militar e político, Victor Hugues, e um Comissário Ordenador – chefe da Administração Civil –, que substituíra os antigos Intendentes da Marinha e preenchia todas as suas funções, Benoist-Cavay. Todos os atos da administração civil deviam ser combinados entre o Comissário do Imperador e o Comissário Ordenador. Esses eram os principais homens da colônia. Todas as possessões francesas eram administradas pela Secretaria de Estado da Marinha e se caracterizavam por uma direção bicéfala, composta pelo governo militar e político e pela administração. Também participava da administração da colônia um Comissário Inspetor da Marinha, responsável por todos os atos relativos ao serviço da Marinha, como compras e contratos passados ou feitos pelo governo. Outro cargo era o de Comissário da Marinha, que regulava as contas dos marinheiros da Marinha Militar e da Mercante, organizava os róis da equipagem e tinha o registro de todos os marinheiros. Havia ainda um Recebedor dos Domínios e Direitos, que na verdade era o chefe da Alfândega, encarregado do recebimento dos direitos de entrada e de saída das mercadorias, e dos impostos estabelecidos, por capitação e pelo aluguel das casas, conforme documento de Manoel Marques, intitulado “População e administração Provisória da colônia de Cayena” (BNRJ Cod CXCIX 16-65 I-4-2 Nº 34). Além dos cargos listados por Marques em seu documento pode-se acrescentar o de Escrivão da colônia, responsável pelo registro das correspondências, dos inventários e de todos os trabalhos de contabilidade. Outro cargo era o de Guarda-Armazém, responsável pelo abastecimento da colônia, cujo desempenho é importante na pequena economia guianense pelo fato de favorecer a circulação de bens e de dinheiro sob a forma de compra e venda dos víveres para os soldados. E ampliando a lista, a multidão de escriturários que povoavam os diferentes escritórios da colônia (RONSSÉRAY, 2007, p. 42). Os funcionários sempre foram considerados “pletóricos” em proporção à modéstia da colônia (CARDOSO, 1999, p.354). Toda essa estrutura ruiu com a tomada da Guiana, e era preciso estabelecer articulações políticas para a nova construção governativa. Provavelmente o governador interino não possuía sob seu comando pessoas qualificadas para exercer funções administrativas, ele próprio um militar de carreira, e tomou a decisão de formar a Junta Provisória com os colonos. Manoel Marques fala da dificuldade de preencher a vaga de Intendente da Marinha, provisoriamente a cargo da Junta, “pela dificuldade de achar alguém em estado de preencher este lugar, e que possa falar as duas línguas, como é absolutamente necessário” (BNRJ Cod CXCIX 16-65 I-4-2 Nº 34). A Junta estabeleceu um Tribunal da Contabilidade, ponto central por onde passavam todas as receitas e despesas da colônia; um Tribunal do Tesoureiro, para o recebimento de tudo que era devido à colônia, inclusive os relativos à Alfândega, e um Pagador de Exército, ao mesmo tempo Comissário chefe do Armazém Geral (RONSSÉRAY, 2007, p. 75)2055. Pretendeu-se simplificar a nova ordem administrativa pela falta de portugueses para preencher os cargos e para torná-la o menos onerosa possível. Os membros da Junta não recebiam nenhum pagamento, os cargos eram puramente honoríficos2056. A Junta Provisória propôs ao governador a divisão da colônia em quatorze quartiers, em substituição aos oito até então existentes, e fundamentou

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2055

O Armazém Geral era um elemento central no funcionamento da colônia, lugar de estocagem e distribuição de víveres. Seu chefe era o encarregado do abastecimento da colônia. 2056 Cruzando os nomes dos fazendeiros que faziam parte da Junta Provisória com os nomes de antigos ocupantes de cargos na colônia, encontramos apenas M. Dubois, que fazia parte do Tribunal Especial criado pela Arrêt de 17 de novembro de 1802.

599 ISSN 2358-4912 sua proposição na questão da segurança, pois os quartiers eram muito afastados uns dos outros e a gendarmerie que fazia a segurança dos quartéis deixara de existir depois da conquista. Portanto, o aumento do número dos cantões e de comissários responsáveis pela segurança dos mesmos traria efetivamente mais tranquilidade (BNRJ Cod CXCIX 16-65 I-4-2 Nº 34). A proposta foi aceita conforme a ordenança de 24 de janeiro (ANP Fonds Colonies C14/85-86), que apresenta os nomes dos comissários para os quatorzes quartiers –, tornando-os responsáveis pela manutenção da tranquilidade e execução das ordenanças –; os nomeados deveriam prestar juramento ao Príncipe Regente no dia 19 de fevereiro, em Cayena2057. Mas, além da questão da segurança, a ordenança tratava do controle dos víveres da colônia, pois a mesma obrigava os moradores a entregar no “Armazém de Sua Alteza”, todo o caouac – farinha de mandioca em grão – de que dispusessem, a ser pago em dinheiro ou em dedução dos impostos. Outro artigo da mesma ordenança determinava que cada fazendeiro “estará obrigado dentro do mais breve prazo, a declarar ao Comissário de seu quartier a quantidade de couac que ele poderá fornecer de imediato, e a dar o estado de suas plantações de mandioca”. O artigo V “convidava” os fazendeiros a aumentar suas plantações de víveres, à razão de um carré2058 por dez escravos. O motivo alegado por Manoel Marques para o controle dos víveres era a urgência de se assegurar meios de subsistência para as tropas portuguesas. A ordenança de 19 de janeiro (ANP Fonds Colonies C14/85-86), dizia respeito à administração da Justiça Civil pelos Tribunais de Primeira Instância e pela Corte de Apelo, pois a interrupção da justiça prejudicava os interesses da colônia, dos fazendeiros e negociantes. Entretanto, para se entender a ordenança será preciso conhecer os tribunais presentes na Guiana no início de 1809, e em vigor desde 1802. Os Tribunais de Primeira Instância e de Apelo foram criados em 2 de novembro de 1802 (ANP Fonds Colonies C14/79-80), segundo instruções do governo metropolitano e pelos poderes conferidos ao Comissário do Governo na Guiana Francesa. Pela decisão, as leis civis, criminais e de comércio deviam ser executadas pelos tribunais seguindo forma e conteúdo das mesmas leis anteriores a 1789, suprimidas as denominações do regime monárquico. O Tribunal de Primeira Instância era composto por um juiz, um comissário do governo e um escriturário; ele julgava definitivamente e sem apelo todas as contestações que não ultrapassassem a soma de mil francos coloniais, assim como todos os delitos contra os regulamentos da Polícia e da Ordem, desde que os delitos fossem passíveis de punição com pena correcional. O Tribunal de Apelo era composto pelo presidente, vice-presidente, Comissário do Governo, substituto, escriturário e por oito habitantes proprietários e notáveis da colônia, que receberam a denominação de juízes do Tribunal de Apelo. Mas, segundo o artigo XIII, o Comissário do Governo Francês tinha voz deliberativa e presidia suas sessões quando julgasse conveniente, o que ocasionava conflitos, intrigas e tráfico de influência no seio desta corte. As funções do Tribunal de Apelo eram puramente judiciais e sob nenhuma hipótese podia se imiscuir em algum caso de competência da administração pública, nem dar sentença ou ordenança, ou qualquer ato extrajudicial. Competia a ele pronunciar definitivamente e em última instância todos os apelos das decisões dadas pelo Tribunal de Primeira Instância. O terceiro tribunal criado em novembro de 1802 foi o Tribunal Especial para a repressão de crimes “cometidos por vagabundos e sem profissão”, como incêndios, assassinatos por arma de fogo, ameaças exageradas e agressão contra seus senhores praticada por escravos e roubos nas fazendas. Esses crimes eram punidos com a pena de morte. A venda de armas e munições aos escravos, manutenção de qualquer tipo de relação com escravos fugitivos ou o fornecimento de alimentos, armas ou outros objetos eram punidos com prisão. Na verdade, esse tribunal era destinado à repressão dos delitos cometidos pelos escravos contra a ordem colonial. O Tribunal Especial era composto por um presidente, dois juízes do Tribunal de Apelo, três militares com patente mínima de tenente-coronel e dois cidadãos. A presidência do tribunal seria do Comissário do Governo, que indicaria os demais componentes.

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2057

Entre os comissários de quartiers nomeados pelo governador português encontramos dois que fizeram parte do governo anterior. O Comissário nomeado para o cantão de Macouria, M. Franconie, era Juiz do Tribunal de Apelo. E o comissário do Approuague, M. Grimard, era comissaire du Gouvernement. 2058 Carré ou Carreau era a unidade utilizada nas plantações das colônias francesas da América para medir a superfície. O carré correspondia a aproximadamente 1,13 hectares.

600 ISSN 2358-4912 Portanto, o Comissário do Governo, na época da criação dos tribunais Victor Hugues, era presidente do Tribunal Especial e indicava sua composição, possuía voz deliberativa no Tribunal de Apelo e presidia as sessões quando julgasse necessário. De fato, ele reunia à sua função de governador grande poder, o que não deixou de gerar insatisfação entre os colonos, como prova a carta de 15 de agosto de 1806, do juiz da Corte de Apelo, M. Caseneuves, ao ministro da Justiça da França. Caseneuves discorre sobre o abuso de autoridade de Hugues e termina a carta questionando “[...] se a mão que segura a balança da justiça deve ser movida pela lei ou pela vontade absoluta do senhor Victor Hugues” (ANP Fonds colonies C14/83-84). A ordenança sobre os tribunais não trazia nenhuma alteração sobre as atribuições ou formação de cada tribunal; o governador Manoel Marques como comandante da colônia devia presidir a Corte de Apelo. Segundo o artigo IV, os interesses entre particulares deviam, em consequência da capitulação, ser julgados segundo o Código Napoleão em vigor na colônia, e o artigo V estabelecia que todos os julgamentos seriam feitos em nome de Sua Alteza Real, o Príncipe do Brasil. Assim, as leis em vigor desde 1802 continuaram vigentes no início do governo português da colônia. Em 24 de janeiro uma ordenança tentou assegurar a tranquilidade na colônia pelo desarmamento, pois franceses e portugueses haviam armado os escravos durante os combates (ANP Fonds Colonie C14/85-86). Considerava todas as armas e munições de guerra, pertencentes por direito de conquista ao Príncipe do Brasil e, portanto, deveriam ser entregues ao Arsenal dentro do prazo de três dias, a partir da data da publicação da ordenança, por todos os habitantes da vila ou residentes em um raio de quatro léguas. Os moradores de outros cantões deviam entregar suas armas aos comissários em até quinze dias. Os colonos que quisessem conservar suas armas deveriam no momento de entregá-las solicitar permissão, o contrário seria punido com multa e confisco das armas. Ficava proibido aos escravos conservar armas ou munições sob pena de serem presos e receberem cem chicotadas. A última ordenança que este trabalho analisará e igualmente do dia 24 de janeiro de 1809 (ANP Fonds Colonies C14/85-86), diz respeito às “pessoas de cor livres ou outras” que faziam parte das Companhias de Sapadores e Gendarmes pagos pelo governo francês. Considerava que a permissão que lhes fora dada para estarem fora das companhias era devido às profissões que exerciam ou às propriedades que possuíam, mas determinava aos mesmos apresentarem-se dentro do prazo de vinte e quatro horas à Junta Provisória trazendo as licenças que permitiam o afastamento das companhias e a declaração de profissão e domicílio. Os que não possuíssem profissão ou meios de subsistência certa estavam obrigados a apresentar alguém que respondesse por eles, o que seria submetido à apreciação da Junta. No caso de possuírem armas e munições, essas seriam entregues. A Guiana Francesa, como as demais colônias francesas, teve a escravidão abolida em 1794 pela Convenção e restabelecida em 1802 pelo cônsul Napoleão Bonaparte. A lei que restabelecia a escravidão e o trato de escravos na Guiana Francesa dizia no artigo 7 que o Comissário do Governo faria “uma lista de duzentos negros ou homens de cor escolhidos entre os que estavam na época ligados ao serviço militar da colônia” os quais continuariam sob a bandeira e formariam duas companhias, uma de gendarmes e outra de sapadores, sob o comando de oficiais europeus. O valor desses indivíduos foi pago a seus antigos donos à custa do Tesouro da colônia. Os demais negros foram dispensados e devolvidos a antigos proprietários (ANP Fonds colonies C14/79-80). Esses duzentos homens gozavam do estado de liberdade durante o exercício da função, definitivamente obtida após dezesseis anos de leais serviços. A ordenança de 24 de janeiro, pelo exposto acima, dizia respeito “aos livres de cor” ou “outros” que prestavam serviços militares à colônia. Provavelmente “outros” designam escravos, pois a lei permitia aos escravos a carreira militar. Outra força militar que permitia a presença de “pessoas de cor livres”, de quinze a sessenta anos, formando uma companhia de gendarmes, eram as milícias nacionais, sob as ordens do capitão comandante do quartier onde ficavam estabelecidos e empregados na caça de escravos fugitivos ou desertores pela polícia do quartier. Criadas por decreto de 25 de novembro de 1802 (ANP Fonds Colonies C14/79-80), formavam uma tropa permanente encarregada de assegurar um serviço de polícia, defender a coletividade ou ajudar o exército regular. As seis primeiras ordenanças do governador interino Manoel Marques publicadas entre os dias 16 e 24 de janeiro, portanto no intervalo de apenas oito dias, permitiram acompanhar a formulação das diretrizes iniciais da administração provisória. O cuidado de desarmar a população, a preocupação de manter controle sobre os escravos de modo a impedir possíveis fugas naquele momento turbulento, o controle das companhias de “livres de cor” e o aumento do número de comissários nos quartiers foram

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601 ISSN 2358-4912 medidas visando assegurar não só a tranquilidade da colônia, mas principalmente manter a conquista. A formação da Junta Provisória com os próprios colonos e o restabelecimento dos tribunais permitiram o início da administração, elemento essencial no processo de dominação. Chama atenção a rapidez com que o governador português conseguiu compor, articular e formar uma coalizão com cidadãos até então pertencentes a outro império, para formar a Junta Provisória e restabelecer os tribunais.

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A OPERÍSTICA COLONIAL DA SEMANA TEATRALIZADA EM MONTE SANTO - BAHIA Jadilson Pimentel dos Santos2059 O Monte Santo e seu Santuário Dentre as várias cidades, que possuem obras da lavra do beato Conselheiro, uma ficou especialmente destacada por apresentar uma obra sui generis: O Monte Santo com seu santuário da Santa Cruz. Esse místico santuário concebido, no século XVIII, pelo frei italiano Apolônio de Todi foi restaurado belo profeta Conselheiro um século depois. Tudo ali ainda respira religiosidade. Contados mais de 120 anos de seu aparecimento, no Sacro Monte, o visitante ou romeiro, que se dirige para lá, pode, sem sombra de dúvida, confirmar a sensação da presença do profeta sertanejo. Logo à frente da Igreja Matriz, no jardim principal da cidade, projeta-se imponente, portando uma grande cruz, uma escultura em madeira do beato penitente Ali, ergue-se presente, juntamente com a estátua, outro objeto: um canhão, chamado pelos sertanejos de Matadeira. Em outros pontos, esculturas de militares e fragmentos da guerra também compõem cena, atestando, a todo momento, a estada do peregrino e dos personagens envolvidos nos conflitos de Canudos. Dantas (1987, p.181), cronista e romancista sertanejo, quando de sua passagem por aqueles rincões, argumenta: o Monte Santo corresponde ao que esperava. É o lugar mais bonito dos sertões, pois o belo da natureza se juntou ao toque da mão do homem, toque discreto e secular, daqueles que ignoram certo tipo descaracterizador da civilização, fazendo questão de não perder a alma. O escritor Euclides da Cunha também esteve presente no local. Suas impressões acerca da cidade, em primeiro momento, são transcritas de forma depreciativa. Olhando em torno o que se observa é o mais perfeito contraste com a feição elevada desta vila ruidosamente saudada. As impressões aqui formam-se através de um jogo persistente de antíteses. Situada num dos lugares mais belos e interessantes do nosso país, Monte Santo é simplesmente repugnante. A grande praça central ilude à primeira vista. Quem ousa atravessar, porém as vielas estreitíssimas e tortuosas que nela afluem é assoberbado por um espanto extraordinário. Não são ruas, não são becos, são como imensos encanamentos de esgotos, sem abóbadas, destruídas. Custa a admitir a possibilidade da vida em tal meio – estreito, exíguo, miserável [...] Tem-se a sensação esmagadora de uma imobilidade do tempo. [...] E quando o sol dardeja alto, ardentíssimo num céu vazio tem-se a impressão estranha de um spleen mais cruel do que o que se deriva dos nevoeiros de Londres; spleen tropical feito de exaustão completa do organismo e do tédio ocasionado por uma vida sem variantes. (CUNHA, 2002, p.76,77).

Mais adiante, em sua obra “vingadora” Os Sertões, Cunha (2002), tentando se redimir dos equívocos cometidos anteriormente, chamará de lugar lendário, descrevendo a “Piquaraça dos roteiros caprichosos” como uma geografia de espantosa exatidão. Contrastando com as primeiras impressões de Euclides da Cunha, Dantas (1987, p, 182, 183) diz: Monte Santo é um largo pátio de grama verde, que sustenta nos ombros o peso de uma montanha sagrada, lugar de antiga data e de grande devoção. A cidade vive toda presa ao espinhaço desta montanha. [...] Monte Santo teve seu nome ligado à Guerra de Canudos por ter servido de ponto de descanso e de base militar das tropas. Lugar de ares puros, serranos, distante muitas léguas do reduto conselheirista, Monte Santo era uma morada de paz, que a guerra veio perturbar com as suas operações. Subindo este monte na direção do Calvário, imaginei o trabalho que o famoso missionário italiano teve para construí-lo, apesar de contar com o anônimo esforço dos penitentes, 2059

Doutorando em Teoria da Arte pela Universidade Estadual de Campinas e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Email:[email protected]

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ISSN 2358-4912 a carregar pedras e tijolos, nas seculares santas-missões. Monte Santo é um refrigério. Fica nos fundos de Canudos. Conservou-se como era: parece não gostar do progresso citadino, isto para a beleza e para a conservação da sua tocante e ingênua paisagem.

Mesmo depois de alguns séculos contados a partir de sua concepção e construção, a pequena cidade mística ainda surpreende. A primeira impressão do visitante que se dirige a esse santuário sagrado dos sertões da Bahia, via Euclides da Cunha, é de encantamento. A uma curta distância, ao se aproximar da cidade, o viajante é tomado pela visão soberana da imensa montanha pontilhada de brancas capelas na qual está encravado esse secular centro de peregrinação. Distando cerca de 352 Km da capital baiana, a cidade montesantense pertence a microrregião de Euclides da Cunha e está situado no Nordeste do Estado da Bahia, numa altitude de aproximadamente 500 metros acima do nível do mar. Possui uma área total de 3.285,40 km² de extensão, com população de habitantes, sendo 19,97% na zona urbana e 80,03% na zona rural. Faz limite com mais sete municípios, sendo estes: Euclides da Cunha, Itiúba, Andorinha, Uauá, Cansanção, Canudos e Quijingue. É uma cidade que possui grande carisma e fortes tonalidades de misticismo. Quem visita o Monte Santo na Semana Santa fica extasiado com a mostra de fé local e religiosidade popular. Nessa época, a cidade pinta-se de um colorido intenso e especial. O santuário todo agita-se num fervilhar sem tamanho. Para lá, acorre gente de todos os cantos do Nordeste, e do Brasil, portadora de uma fé sem precedentes, no afã de cura dos males e resolução de todos os problemas. Na Semana Santa e no mês de novembro, no dia de Todos os Santos, os romeiros chegam trazendo consigo a esperança e o pagamento pelo cumprimento das promessas feitas. A cidade para em respeito. Nas procissões do Encontro e da Via Sacra, o comércio fecha e o povo aflui em linhas intermináveis, num uníssono de rezas, cantos e ladainhas. Muitos romeiros trazem consigo pequenos objetos para quitar as dívidas das promessas e graças alcançadas. Velas, flores de plástico e de papel, ex-votos, dentre outros. Todos esses objetos, levados para o alto, são depositados nas pequenas capelas que contornam a montanha, culminando, na maioria das vezes, com a oferta de um ex-voto para o edifício que coroa o ponto mais elevado do monte, denominada Capela da Santa Cruz. O Monte Santo ainda é, na atualidade, uma porção de terra marcada por sua intensa religiosidade cristã. Os fiéis, ali, chegam arrebentados de todas as partes, tingidos de sol e poeira. Homens e mulheres de todas as feições e idades que escalando a montanha acentuadamente íngreme não encontram obstáculo algum, mesmo com o sol ardente a pino. Outros que dilacerando a pele e a carne, sobem de joelhos a estrada revestida de pedras brutas, salpicando de sangue vivo o caminho da via crucis. A cidade toda, especialmente nessa época dos festejos religiosos, veste-se de um aparato que lembra os artifícios do estilo barroco. Toda a dramática da paixão de Cristo é sentida em todos os pontos, o que faz com que uma atmosfera de comoção e piedade seja instaurada, principalmente quando se efetiva a Procissão dos Passos e do Encontro. A Igreja Matriz do Monte Santo, bem como suas Capelas do Santuário, possuem um conjunto de imaginária sacra de influência barroca de muito boa lavra. Dentre todas elas se destacam as imagens de vestir do Nossa Senhora da Soledade, São João Batista, Nossa Senhora das Dores, Senhor dos Passos e o Cristo Morto trazidas da capital da Bahia para a realização realística da Procissão dos Passos e rituais da Semana Santa, articuladas, a priori, pelo Frei Apolônio de Todi, quando da construção do Santuário da Santa Cruz (Figura 02). Essas imagens encontram na cidade, a ambiência típica da dramática estilística evidenciada, no Brasil, no século XVIII.

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Figura 02: Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Soledade, São João Evangelista, Nosso Senhor dos Passos, Nossa Senhora e João e o Cristo Morto. Monte Santo – BA. Autoria desconhecida. Fonte: Jadd Pimentel, 2010.

Segundo Flexor (2005, p.4), criadas e enfatizadas pela matriz sensorial das procissões, as imagens de roca e dee vestir provocavam emoções e lágrimas nos fiéis. E essas lágrimas, inclusive recomendadas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, surgiam diante das cenas de sofrimento de Cristo e de Maria. Outras levavam à meditação, criavam, por assim dizer, dizer, o cenário propício. Nessas cenas de procissão, dominavam, sobretudo, as imagens de roca e/ou as de vestir, que possibilitavam expressões e gestos teatrais e permitiam a comunicação direta com os acompanhantes. A possibilidade de mudar a roupagem e os gestos das imagens coadunava-se se perfeitamente com a teatralidade barroca e com o que as cenas pediam. A disposição espacial urbana do Monte Santo com algumas de suas ruas estreitas e ligeiras declividades, bem como suas igrejas, capelas e geografias, num cenário que remete ao Calvário, também se relaciona com as influências barrocas presentes nas terras do interior do Brasil. Com efeito, a operística da Semana Santa que ai se realiza, ainda mantém uma tradição secular. Toda a dramática ai presente, eivada de misticismos e de nuanças de forte religiosidade, encontra ressonância num fragmento do texto de Euclides da cunha de Os Sertões denominado de o beijabeija imagem. Tal evento ocorre de maneira muito parecida, quando diante do Cristo morto e das imagens de vestir, stir, os fiéis se lançam, beijando-os, beijando acariciando-os, etc (Figura 03).

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Figura 03: O beija-imagens, beija imagens, Os Sertoes, Euclides da Cunha. Fonte: Jadilson Pimentel.

O Monte Santo, imenso santuário dos confins dos sertões, possui grande religiosidade; uma misturaa de fé, sacrifício e devoção. No pórtico, coroando a estrada do sítio urbano lê-se lê em grande placa de aço; Monte Santo: coração místico do sertão. sertão Somando-se se a isso, o visitante tem a impressão de estar pisando em um solo eivado de misticismo e religiosidade, religiosidade, sensação que logo é confirmada pelo traçado citadino e pela ampla cordilheira que numa visão superior lembra uma pequena extensão da Muralha da China, bem como do Monte Calvário. Há na atmosfera do Monte Santo uma sensação de cidade congelada no tempo-espaço. tempo Por estar situada numa zona do sertão, distante do litoral, o progresso chegou ali a passos lentos, o que não impediu de desconfigurar algumas de suas obras seculares. Somando-se Somando se a isso, existe, ainda, a negligência no tocante a preservação e restauração restauração dos seus bens materiais e imateriais. A história do Monte Santo remonta aos idos de 1782 e tem como seu principal fundador o frei capuchinho Apolônio de Todi. Após sua chegada à cidade do Salvador, foi ele exercer, por ordem do novo Arcebispo da Bahia, hia, Dom Frei Antônio Correia, sua ação missionária no sertão da Bahia e de Sergipe. Segundo Pedreira e Rocha (1983, p.6) mesmo já tendo feito missões em Jeremoabo e Massacará, frei Apolônio foi convidado por Francisco da Costa Torres, um dos arrendatários de terras da Casa da Torre, para ali fazer missão. Todavia, tendo lá chegado e não encontrando água que desse para abastecer os missionários, o frei preferiu, para realizar seus objetivos, o lugar sítio, no sopé da Serra do Piquaraçá, nas terras da Fazendaa Soledade, no qual estava a capela de Nossa Senhora da Conceição, e onde existia uma nascente de água boa e cristalina. Assim, chegando ao local, o frei ficou confuso com a impressão que o local lhe causara. Pareceu-lhe Pareceu que o lugar era predestinado, porque porque muito se parecia com o Calvário de Jerusalém. Tratou-o, Tratou imediatamente, de armar latada para pregar aos fiéis, pois a falta de religiosos naquelas paragens era uma constante. O Santuário da Santa Cruz do Monte Santo, no alto da antiga Serra de Piquaraça, ainda resiste ao tempo. Dista da primeira capela, no início do caminho das conhecidas romarias, 1.969 metros. No percurso, além da capela que coroa o cume da serra, são vistas mais 24 capelas menores contornado a montanha, e que se erguem imponentes para além da cidade. Nessas capelas, existiam painéis com as cenas dos passos mandados pintar por Apolônio de Todi. Tais painéis desapareceram quase que por completo, restam apenas, hoje em dia, pequenos fragmentos de pintura e talha em

606 ISSN 2358-4912 algumas das capelas, bem como cruzes decorando os seus interiores. Outras se encontram completamente vazias, ornadas apenas com as velas que ardem pelo pagamento das graças alcançadas. As capelas construídas em pedra e cal, nos locais das primitivas cruzes foram dedicadas às almas, às Sete Dores de Nossa Senhora e às lembranças dos sofrimentos de Cristo na sua caminhada para o Monte Calvário, em Jerusalém. O espaço entre cada capela é de cerca de duzentos metros, e a peregrinação é feita a partir da Rua dos Santos Passos. A obra que Euclides chama de grandiosa e ao mesmo tempo tosca encontra sua gênese de formação na influência dos estilos barroco e rococó. Nos sertões do Brasil, as repercussões do estilo barroco se fizeram posteriormente, e de forma mais tímida, pois a falta de matéria-prima abundante e de pessoas mais qualificadas produziu um estilo mais particularizado e livre das influências da metrópole.

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Antônio Conselheiro, o Milagreiro na Semana Santa: Considerações Finais Cem anos após a sua construção, encontrar-se-ia no Monte Santo, outro religioso possuidor de grande fé e devoção: Antônio Conselheiro. Sua estada, embora rápida, foi suficiente para reconstruir algumas das capelas que estavam arruinadas e erguer as paredes de arrimo que contornam a parte mais acidentada da montanha. Assim reza a tradição popular, bem como alguns registros oficiais. Observando atentamente a obra erigida através da caridade e em regime de mutirão, podemos constatar o capricho e a grandiosidade empregados por Conselheiro e seu séquito. A muralha que contorna a subida é um exemplar único. As paredes espessas de cerca de um metro de altura por um metro de largura são como verdadeiras fortalezas. Numa perscruta mais atenta, chega-se a constatar que elas se configuram como uma das maiores obras do Conselheiro. Dadas às dificuldades impostas pela montanha acentuadamente íngreme, tal prodígio chega mesmo, a ser, um milagre da engenharia popular sertaneja. O visual dessa edificação surpreende pela estética apresentada. As paredes caiadas de branco, bem como as capelas iniciais, refletem a luminosidade do sol atraindo o observador. Nessas edificações, ainda presenciamos a estilística do Bom Jesus Conselheiro. Mas é, sobretudo, na maior capela, anterior a Capela da Santa Cruz, encontrada no meio da subida, que a estética conselheirista se confirma. Nota-se ai, a presença dos pináculos ornando a fachada, o uso de volutas feitas à mão livre, de gosto popular, estrutura arquitetônica compacta e pesada, paredes espessas, e torre campanário lateral de estrutura simples, com vão de abertura para colocação do sino. Esse exemplar está encravado numa parede rochosa da montanha, e tem à sua frente a visão formidável do imenso precipício. Pra se dirigir aos demais passos é quase parada obrigatória passar por dentro dessa capela. Em seu interior ardem velas, e no pequeno altar de cariz rococó ainda existente, flores de plástico e tecido compõem a ornamentação. José Aras, cujo pseudônimo era Jota Sara, conhecedor da vida e das obras do Bom Jesus Conselheiro, contou muitos episódios de forma poética. Alguns de seus versos discorrem acerca das benfeitorias feitas pelo profeta, no Monte do Frei Apolônio. Aras (1953, p.14) é categórico ao afirmar que o peregrino Antônio Vicente, nessa freguesia, já se encontrava desde o ano de 1884, quando de passagem para a comunidade de Chorrochó. O cronista e poeta, que nasceu e se criou na região de Canudos, afirma que o asceta cearense, assim que chegou nesse sítio de grande religiosidade, com aquele acompanhamento de mais de quinhentas pessoas, pediu abrigo aos moradores. Prossegue ainda dizendo, que entre eles havia: carpinteiros pedreiros, ferreiros, pintores, etc. É bem provável que Antônio Conselheiro em suas andanças já tivesse passado anteriormente por lá, o qual se impressionou com a obra do frei italiano, prometendo, em ocasião posterior, a restauração do santuário que se apresentava depreciado. E é tanto que o Monte Santo do Apolônio de Todi, com seu ideário de cidade sagrada, repercutirá na cidade do Belo Monte. Calasans (1997, p.75) assevera que a escolha do nome Belo Monte não é uma coincidência. A mudança ordenada por Antônio Conselheiro parece indicar influência do frei Apolônio. Piquaraça passou a ser Monte Santo e Canudos se transformou em Belo Monte. Para ele, era mais do que lógico que o líder místico peregrinasse numa região de fortes tonalidades místicas como aquela.

607 ISSN 2358-4912 É importante argumentar, que nos depoimentos do Diário de Notícias datados de outubro de 1892, os correspondentes locais afirmam que houve, também, benfeitoria no conjunto da Santa Cruz, nesse período.

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Acha-se aqui de passagem o conhecido Antônio Conselheiro, o qual como verdadeiro penitente tem feito com o auxilio do povo, obras de grandes utilidades nos lugares onde faz passagem. Ouvi uma das suas prédicas as quais são por ele enxertadas com referência política, manifestando-se contra o casamento civil e outros atos do governo republicano. Isto, porém, nada influi no ânimo político, que só aproveita deles o que é útil. (Diário de Notícias apud CALASANS, 1997, p.75).

Já em agosto de 1893, o correspondente do Diário foi mais positivo no seu noticiário. Fui testemunha ocular de que quando aqui esteve o ano passado envidou meios de fazer-se alguns reparos nas capelas e na estrada do Monte daqui a fim de não continuar a decadência em que se achava a instituição da irmandade dos Santos Passos do Senhor do Calvário, pedindo e aplicando o resultado das esmolas que recebia para este fim. (Diário de Notícias apud

CALASANS, 1997, p.75). Pelo que se pode apurar, a restauração dos Passos também se efetivou no começo da década de noventa do século dezenove. Dadas às circunstâncias locais e nacionais, bem como aos conflitos eminentes, reza a tradição que o peregrino não concluiu um dos seus maiores objetivos: o término da execução do muro, e o reparo das obras pias do santuário. O muro de arrimo que margeia a montanha ficou pela metade e a restauração das capelas, também, pois Antônio Conselheiro e sua grei retiraramse para o Belo Monte não retornando para o Monte Santo posteriormente. Na voz de Maria Espírito Santo do Bonfim (apud TAVARES, 1993, p.66), o Conselheiro exerceu e ainda continua exercendo sua influência por estas centenas e centenas de léguas em torno de seu antigo reduto. Segundo ela, o Monte Santo ouviu sua palavra e muitos dos penitentes subiram, com ele, a via sacra assistindo o “milagre” de Nossa Senhora da Soledade derramar lágrimas de sangue, ao ver o Bom Jesus cansado e ofegante. Também segue dizendo que as muralhas capeadas da subida, até a primeira grande capela, são de sua autoria, pois quando chegou, viu os estragos, convocou sua gente, suas multidões de fanáticos e levantou as paredes laterais que protegem a subida. Sua estada no santuário da Santa Cruz ficou marcada no imaginário popular através dos milagres ali operados. No alto da Santa Cruz, ponto de chegada, Antônio Penitente, abatido pelo cansaço, sentou-se no primeiro degrau da escada e voltou os olhos para o firmamento estrelado, aguardando a chegada de todos os fiéis, alguns deles entrando na capela, muitos permanecendo do lado de fora, ajoelhados rezando. Recuperado da fadiga, o Bom Jesus Conselheiro levantou-se e entrou no recinto sagrado, os devotos afastando-se para permitir-lhe a passagem até o altar, onde parou, respirando ainda com dificuldade, o olhar dirigido para o piso. De repente, levantou a cabeça e fitou a imagem da Virgem Maria, de cujos olhos rolaram duas lágrimas de sangue. Vendo o temor estampado nas faces do fiéis, quase todos chorando, falou: - São lágrimas de mãe, que vê o seu glorioso Filho torturado por nós, com nossos pecados. Arrependei-vos, pois, para que o Senhor não seja crucificado todos os dias, e a Virgem não sofra tão grande dor. (CANÁRIO, 2005, p. 175).

Na fala de um morador local (apud CAMPOS, 1930, p. 177) outros milagres ocorreram quando da passagem do beato Conselheiro pelo Monte Santo. Lembrava-se da última visita do peregrino, que pregara santa missão durante nove dias, e, como Apolônio de Todi, subiu até o Santuário, no alto da montanha, pondo remate à sequência das vinte e cinco capelinhas, disseminadas à beira da longa estrada. Alcançando o templo, fez uma cruz na soleira da porta central, com a ponta do bordão, ocorrendo, contudo, um fenômeno surpreendente. De repente – nota-se que naquelas paragens reinava à sezão, terrível estiagem – começou a exsudar água das paredes e a gotejar do teto, que pasmava. Transpondo a porta, então, Conselheiro adiantou-se, rendendo os joelhos ante o altar, em prece. Concluída a oração, retirou-se de costas até a porta, segundo costumava proceder sempre que deixava um templo e na soleira voltou a fazer o sinal da cruz, com a extremidade de seu inseparável cajado. No mesmo instante cessou a água de

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ISSN 2358-4912 ressumar das paredes e de estilar do telhado. Então o povo augurou que semelhante prodígio anunciava muito sangue derramado por causa do Beato. (CAMPOS, 1930, p. 434).

Todavia, é conveniente frisar que o ano de ocorrência dessas procissões, bem como o das últimas benfeitorias, seja o de 1892. Depois dessa data, o beato não mais retornou à sede do município, embora Canudo fizesse parte do seu território. José Aras (1953, p. 17) informa sobre a retirada do beato, e de sua grei, do Monte Santo. Conta-nos que tal episódio se sucedeu numa manhã neblinosa, quando os penitentes levantaram acampamento. Levavam pouca matalotagem e alguns dobrões de níquel. Poucos animais carregavam ferramentas. O mais estava acondicionado em trouxas carregadas por homens, mulheres e mocinhas maltrapilhas. Persignaram-se antes da partida e seguiram em direção ao norte, pela estrada de Uauá, com o intuito de aportarem em Chorrochó. De acordo com o autor, saíram improvisando um bendito, o qual abordava sobre um fato miraculoso ocorrido na despedida. Nosso Conselheiro Antônio Quando neste mundo andou Os milagres eram tantos Que toda imagem suou ( apud ARAS, 1953, p.17). Contudo, em 1897, um novo acontecimento divulgaria essa cidade e seu santuário em nível nacional. A Guerra de Canudos projetou Monte Santo; lugar por onde transitaram variados soldados e para onde se dirigiram pessoas de vários segmentos sociais: jornalistas, médicos, ministros, homens de negócios, etc., muitos dos quais desconheciam, plenamente, aqueles rincões dos confins dos sertões. Referências ARAS, José. Sangue de Irmãos. Salvador: Museu de Bendengó, 1953. CALASANS, José. Antônio Conselheiro, construtor de igrejas e cemitérios. In: Cartografia de Canudos. Salvador, Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia/Conselho Estadual de Cultura, 1997. CAMPOS, João da Silva. Tradições Baianas. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: n. 56, 1930. CANÁRIO, Eldon. Os mal-aventurados do Belo Monte. Salvador: Editora ABC, 2005. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Martim Claret, 2002. DANTAS, Paulo. Capitão Jagunço. São Paulo: IBRASA, 1987. FLEXOR, Maria H. O. Imagens de roca e de vestir. Revista Ohun – Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA, Ano 2, nº 2, outubro 2005. PEDREIRA, Pedro Tomás e ROCHA, Rubens. O Monte Santo de Frei Apolônio. Bahia, Emtur, 1983. TAVARES, Odorico. Canudos – Cinqüenta anos depois (1947). Salvador: CEC, ALB, FCEB, 1993.

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PALAVRAS AMATÓRIAS E POESIAS LUXURIOSAS: CONFISSÃO E IMORALIDADE NO MUNDO LUSO-AMERICANO (1640-1750) Jaime Ricardo Gouveia2060 Uma jurisprudência firmada ao longo do tempo Na acepção inquisitorial, a solitatio ad turpia, mais vulgarmente solicitação, designava todas as situações em que um confessor, valendo-se da sua autoridade, do seu ministério e do momento recatado em que ocorria a administração do sacramento da penitência, aproveitava para satisfazer os seus desejos carnais, ou manifestava apenas essa intenção, utilizando para tal, toda uma série de meios, desde um simples gesto ou palavra até ao acto libidinoso. Porém, a configuração do delito, no que toca à definição da vasta gama de situações comportamentais que nele cabiam, não foi um processo imediato2061. Solicitar, provocar, tentar, aliciar, são vocábulos usados nas determinações e diplomas pontifícios, algumas vezes de forma cumulativa, para designar o mesmo delito, mas a sua prática não corresponde ao mesmo tipo de ocorrências. Provocar e aliciar designam uma outra forma de conduta, que não corresponde ao acto de tentar. É aqui que entronca a questão da forma do delito: a distinção entre a solicitação directa e indirecta. “Provocare” ou “allicere”, ao implicarem o requerimento, o rogo, a proposição, eram expressos, directos, não incluíam rodeios nem subterfúgios e, portanto, correspondiam à solicitação directa. A outra forma de conduta, “tentare”, significava incitar, induzir, atrair, e tinha como objectivo persuadir de forma não expressa, ao desejo de consumação de actos luxuriosos, no imediato ou posteriormente. As situações que se intermedeiam entre estas duas formas de solicitar, são díspares2062. Em termos literais, a configuração do delito englobava um conjunto de práticas que não se esgotavam no sentido literal do vocábulo “solicitação”. Porém, no direito canónico ele foi usado para designar o delito com um sentido mais lato, englobando ocorrências que iam desde o provocar, o aliciar, o seduzir e até o forçar, isto é, para denominar situações comportamentais que tinham uma imoralidade intrínseca desde que tivessem uma relação espácio-temporal com o sacramento da penitência. Os diplomas pontifícios que ao longo dos séculos foram promulgados nunca foram muito explícitos em relação às formas de conduta que constituíam o delito. Optou-se por não catalogar os previsíveis meios de solicitar sob pena de deixar escapar algum, adoptando-se como estratégia englobá-los debaixo de alguns termos genéricos. Caberia depois à praxis processual da Inquisição determinar e definir a sua natureza e valor enquanto instrumento de indução ao pecado da carne, constituindo ou não delito de solicitação, de acordo com as circunstâncias ou contextos em que ocorriam. Assim, por exemplo, o termo tactus referia-se apenas às acções do solicitante, nomeadamente ao contacto com as diversas partes do corpo do/da penitente, desde simples toques na cara, ou apertos nas mãos, até ao contacto com as partes íntimas, de forma intencional, como forma de provocar e estimular instintos ou desejos carnais. Já a designação de tractatus, também frequentemente usada, designava todas as acções realizadas de forma consentida, recíproca. Finalmente, o termo “sermones”, referia-se às palavras impróprias do momento mutuamente pronunciadas2063.

2060

CHAM – Univ. Nova de Lisboa e CHSC – Univ. de Coimbra. Bolseiro de pós-doutoramento da FCT. Email: [email protected] 2061 GOUVEIA, J. R. (2011), O Sagrado e o Profano em Choque no Confessionário. O delito de solicitação no Tribunal da Inquisição. Portugal, 1551-1700, Viseu, Palimage, pp.27-68. 2062 GOUVEIA, J. R. (2011), O Sagrado e o Profano…, cit., pp.27-68; ALEJANDRE, J. A. (1995), El veneno de Dios – La Inquisición de Sevilla ante el delito de solicitación en confesión, Madrid, Siglo XXI Editores, pp.8-10; MORA, A. S. (1994), Sexualidad y confesión – la solicitación ante el Tribunal del Santo Oficio (siglos XVI – XIX), Madrid, Alianza Universidad; DUFOUR, G. (1996), Clero y Sexto Mandamiento. La Confesión en la España del siglo XVIII, Valladolid, Âmbito Editiones, pp.124. 2063 Idem, ibidem, loc. cit.

610 ISSN 2358-4912 O emprego de termos genéricos aconteceu logo com os breves do papa Paulo IV, de 1559, e do breve do papa Pio IV, de 1561, que estabeleciam as competências jurisdicionais da Inquisição espanhola sobre as situações de solicitação. Tal aconteceu também com o breve Muneris Nostri, emanado pelo papa Clemente VIII em 1599, que conferiu o mesmo poder à Inquisição portuguesa. Nele, o delito aparece definido de forma muito vaga, isto é, como a prática de solicitar e aliciar mulheres penitentes no acto da confissão. Não se esmiuçavam as circunstâncias de tempo e lugar, nem as situações específicas que o delito compreendia. Daí que, posteriormente, novas determinações pontifícias surgissem com o propósito de clarificar a questão. Só assim o tribunal inquisitorial poderia avaliar correctamente todos os casos que lhe eram denunciados, distinguir o que não era da sua esfera jurisdicional e proceder em conformidade. Em 1608 o breve Cum Sicut, do papa Paulo V, seria um pouco mais específico do que os anteriores, mas ainda exíguo; em 1612 um novo decreto papal incluía na esfera do delito as solicitações perpetradas a penitentes homens; em 1614 alargava-se a concepção do delito às acções luxuriosas entre um clérigo e uma penitente nos locais destinados à administração do sacramento ainda que fora da confissão; e cinco anos depois incorporavam-se também as solicitações de crianças no confessionário2064. A aludida proliferação de diplomas pontifícios não era ainda suficiente, faltando fixar os limites temporais da acção punível. Com efeito, foi com o papa Gregório XV, em 30 de Agosto de 1622, que apareceu o breve que resolvia a questão. O novo diploma estendia conceptualmente o delito, incluindo agora também como condutas puníveis pelo Santo Ofício, as acções luxuriosas directas ou indirectas levadas a cabo por qualquer clérigo secular ou regular, tanto imediatamente antes, durante e logo depois da administração do sacramento, como quando eram utilizados outros lugares onde era usual ouvir de confissão e ainda quando a confissão era propositadamente simulada sugerindo contra eventuais olhares alheios que se estava celebrando um acto penitencial, não importando, neste caso, o lugar eleito para esse efeito. Com esta definição concreta e rigorosa caía por terra a linha argumental de defesa daqueles solicitantes que procuravam fugir à jurisdição inquisitorial, reconhecendo as práticas de que eram acusados, porém negando tê-las cometido durante o sacramento da penitência2065. Em 9 de Maio de 1637, Agostinho da Natividade, franciscano, de 46 anos, morador no Colégio de S. Pedro, em Coimbra, e aí lente de Teologia, apresentou-se na mesa da Inquisição sediada na mesma cidade, dizendo que havia dez anos, na vila de Ançã, estando ele dentro do confessionário com uma moça, antes da administração do sacramento teve com ela: “[…] hum tocamento desonesto. Com huma mão tocou huma perna da dita mossa ”2066. Na sequência, os inquisidores perguntaram-lhe se ele queria alegar algo em sua defesa, ao que ele respondeu negativamente, uma vez que, segundo declarou, conhecia o breve de Gregório XV que estipulava serem delituosas também as práticas abusivas cometidas fora da confissão, motivo que o tinha levado a apresentar-se. A sua tardia acção, justificava-se, adiantou ainda, pelo facto de ter conhecimento de que o padre Portel, no segundo tomo da sua obra intitulada “De regularibus”, no título “De solicitatione feminarum in confessione”, defendia que a solicitação que ocorria fora do acto da confissão não estava inclusa nos breves papais, razão pela qual nunca se tinha delatado ao Santo Ofício. Este exemplo evidencia a importância do breve gregoriano no estabelecimento preciso dos limites temporais das acções puníveis, e na redução da margem dos abusos2067. Em 8 de Março de 1634 o monitório que a Inquisição de Lisboa publicou sobre os breves contra os solicitantes resumia já todas as disposições e determinações anteriores. A última alteração à concepção do delito foi protagonizada por Bento XIV, em 1 de Junho de 1741, através da bula Sacramentum Paenitentiae, na qual reproduzia o espírito do breve de Gregório XV, mas introduzindo a proibição dos confessores absolverem os seus cúmplices do delito e a imposição de graves censuras àqueles que fizessem falsas denúncias2068. Como se percebe, a jurisprudência do delito foi firmada de forma progressiva, com base em determinações apostólicas que se foram tornando concretas em relação às configurações do delito e V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2064

GOUVEIA, J. R. (2011), O Sagrado e o Profano…, cit., pp.97-124. Idem, ibidem, loc. cit. 2066 DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Processo n.º5761, fl.2. 2067 Idem, ibidem, loc. cit. 2068 Idem, ibidem, loc. cit. 2065

611 ISSN 2358-4912 mais abrangentes no que respeita à área de actuação do Santo Ofício. Essa realidade deve entender-se não só como o resultado das situações ambíguas com que os tribunais inquisitoriais se deparavam, não previstas nos diplomas pontifícios, e que portanto motivavam o requerimento de outros, mas também deve perspectivar-se à luz dos problemas de jurisdição entre a justiça eclesiástica e inquisitorial que em regra solicitavam aos novos sumos pontífices que corroborassem as disposições dos seus predecessores, aproveitando estes para introduzir algumas alterações.

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Palavras amatórias e poesias luxuriosas como forma de solicitar Que tipo de ocorrências é possível encontrar na documentação? Ainda que pertençam a uma matriz comum, a utilização do sacramento da penitência pelo confessor para refrear os seus ímpetos sexuais, elas são diversificadas em função das circunstâncias de tempo e lugar e variáveis de acordo com os meios veiculados nessas circunstâncias. Eram inúmeros os meios utilizados pelos párocos luxuriosos para solicitar. Gestos com a boca, com os olhos, com as mãos e até certos movimentos com a cabeça e pés, bem como algumas acções exibicionistas, obscenas e provocativas, eram típicas dos confessores mais atrevidos. Outros recorriam àquilo que a Inquisição entendia como “proposições heréticas” ou “má doutrina”, ancoradas na negação da condição concupiscente e pecaminosa das acções propostas. Mas as formas de solicitar iam muito para além das referidas, nomeadamente, cópula carnal e molícies de forma violenta e sem consentimento da solicitada, por vezes aproveitando a sua condição física debilitada no caso das que, enfermas na cama, solicitavam a presença dos confessores temendo a morte sem a administração da extrema-unção; chantagens através de ameaças de injúria; e suborno através de oferta de bens materiais como contrapartida para a prática das acções luxuriosas. Entre este último caso, está a situação protagonizada por frei Francisco de Santa Maria, carmelita, que solicitou Catarina, índia da terra, fiandeira, escrava de um capitão e moradora na Ilha da Tucha, Maranhão. De acordo com a acusação que se lhe desferiu em 4 de Março de 1690, ele terá dito a essa moça de 22 de idade: […] se queria andar com ele, que pellos termos da terra he o mesmo que dizer se queria ser sua amiga, promettendo-lhe que se nisso viesse lhe havia de dar vestidos a saber uma saya, uma camisa, um colete de pano fino de algodam e mais uns brincos de orelhas e um anel pera os dedos2069.

Como se percebe, eram inúmeras as formas e eram também imensas as ocorrências. Mas, uma das formas mais comuns de solicitar, e é sobre ela que me irei concentrar, era aquela em que o confessor empregou a palavra, de forma oral ou escrita, como meio de persuasão. A solicitação verbal podia revestir diferentes formas, distintas técnicas e procedimentos. Os termos usados pelos párocos isentam qualquer tipo de exegese, em virtude da sua simplicidade e clareza. Já a intenção com que os empregavam nem sempre foi inteiramente evidente. Simples elogios, palavras galantes e laudatórias eram alguns dos meios indirectos usados pelo confessor a fim de seduzir e tentar a penitente. Eram, sobretudo, palavras impróprias da dignidade do momento, do lugar e das criaturas que as pronunciam. Sucediam-se casos em que os solicitantes empregavam palavras amorosas sem rodeios, exaltando as qualidades espirituais e exaltando as virtudes físicas da penitente, como a sua elegância e formosura, manifestando de forma clara, directa e frontal, a sua intenção. Para além destas palavras, eram também correntes as expressões que manifestavam os sentimentos e desejos lascivos do confessor, umas vezes sem retórica e outras com alguma ambiguidade e timidez, com o objectivo de predispor a solicitada a confianças de índole pecaminosa e concupiscente. Tais manifestações amorosas, pronunciadas algumas vezes de forma estereotipada, no caso dos confessores lascivos que solicitavam várias mulheres ao mesmo tempo, e outras tantas de forma espontânea, no caso daqueles que realmente se enamoravam, eram indicativas, ainda que de forma indirecta, do desejo carnal. Finalmente, as proposições directas, através das quais o confessor manifestava a vontade de materializar em acções esses sentimentos e desejos, com um sentido voluptuoso. Fazia-o, geralmente, de duas maneiras: manifestando simplesmente a sua vontade, os seus sentimentos e os seus desejos, ou propondo também uma forma de os satisfazer, cujo plano variava naturalmente consoante as situações. 2069

DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, Cadernos dos Solicitantes, livro n.º 752, fl. 497-498.

612 ISSN 2358-4912 Neste tipo de solicitação insere-se a acção protagonizada pelo jesuíta Jerónimo Pinto, natural de Braga. Foi denunciado à Inquisição de Coimbra, em 12 de Abril de 1641 por ter solicitado D. Catarina, da mesma cidade. Pelo que consta da acusação:

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[…] no acto sacramental da confissão com occasião da ditta penitente [que] sentia poucas forças ao ditto seu marido pera o acto matrimonial, o ditto Jerónimo Pinto lhe dissera, se vossa mercê fora minha molher, lhe dera eu treze por dúzia2070.

No mesmo tipo de solicitação se insere a acção efectuada pelo franciscano José do Rosário, acusado em 1686, por ter solicitado Luísa Teixeira, natural de Ancede - Baião, e moradora na cidade do Porto, aproveitando o facto de o seu marido estar ausente no Brasil. Teve com ela actos de luxúria dando-lhe abraços, ósculos e dizendo-lhe as seguintes palavras: […] que se estevera em outro lugar lhe havia de dar hum beijo e se lhe metera as mãos por baixo da braguilha veria o como elle estava e que morria por ella, chamando-lhe por tu […]2071.

De palavras amatórias usou também Estanislau de Faria, da Companhia de Jesus. Estando na cidade de Viseu, no período quaresmal, confessou Helena Maria da Conceição, de 21 anos e não resistiu a solicitá-la, dizendo-lhe: […] lhe queria pedir não amaçe mais creatura do que a elle, porque tão bem assim a amava […] e na terceira vez que a ouvio de confissão dispois de absolver lhe pediu se descobrisse que a queria ver para a conhecer onde a visse (…) lhe dissera por muitas vezes se queria ir para Coimbra a iria furtar a casa de seus pais e a meteria no mosteiro onde elle pudece falar ou a levaria para o seo cubículo onde poderia estar […]2072.

Amor? Paixão? Ou estratégia para lograr da moça? Estratégia, e rapidamente descoberta pela solicitada, pois além dela, o jesuíta teria já feito o mesmo a uma Mariana Rebelo, moradora em Ranhados, nas imediações da cidade de Viseu, o que outras testemunhas viriam a corroborar depois do caso ser delatado à Inquisição em 12 de Maio de 1694. No Brasil colonial registaram-se também várias destas situações. Cito uma delas. Trata-se da denúncia efectuada em 10 de Agosto de 1735 contra o padre José Matias de Gouveia, vigário da freguesia de N. Sra. da Conceição dos Raposos, comarca do Sabará, bispado do Rio de Janeiro. Em causa, as palavras “amatórias e provocativas a luxuria” que endereçou a D. Bárbara Barbosa e outras mulheres, no decurso da administração do sacramento da penitência. A entrega de cartas era outra forma de solicitar. O teor desses escritos, ora prosa ora poesia, revela afectos, paixões e desejos, não raro com marcação de encontros. E muito embora alguns deles nunca se tenham concretizado, a utilização do sacramento para a entrega da mensagem constituía a sua profanação. Mesmo que o recado não chegasse ao destino, como poderia acontecer, e conhecem-se exemplos disso, com os casos em que os confessores utilizavam um intermediário, confiando-lhe missiva para que a entregassem a outrem. Ou então, também, quando o confessor era o próprio intermediário, solicitando não para si mesmo senão para outrem, como fez o franciscano Manuel da Piedade. Em 1643 foi acusado de no decurso da confissão com D. Catarina Cogominho, no convento de S. Francisco de Lisboa, lhe ter requerido que lhe vendesse uma de suas filhas: […] pera certa pessoa de grande autoridade que a ditta pessoa lhe podia fazer bem e que a ditta pessoa de grande authoridade tinha encomendado a elle […] que lhe buscasse alguma moça que fosse couza boa e que seria com grande segredo e que hum seu criado a iria buscar que tambem seria pessoa de grande segredo […]2073.

2070

DGARQ/TT - Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 625, fl.51. DGARQ/TT - Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 628, fl.71-105. 2072 DGARQ/TT - Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 629, fl.373-374v.º. 2073 DGARQ/TT – Inquisição de Lisboa, Cadernos dos Solicitantes, livro n.º 745, fl.221v.º. 2071

613 ISSN 2358-4912 Manuel Marques do Amaral, de 36 anos, vigário de Midões, bispado de Coimbra, foi denunciado à Inquisição em 28 de Novembro de 1685 por um missionário, em nome da solicitada, acusando-o de a ter solicitado. Apresentado o delato em Maio do ano seguinte, argumentou que sempre teve afeição à dita mulher desde pequenino e que:

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[…] correu com ella de amores, comunicandoçe por cartas as quais lhe punha en serto lugar da igreja onde a ditta Maria da Esperança se custumava assentar e ella no mesmo lugar // lhe deixava as respostas […] lhe deu no mesmo lugar da confissão duas cartas de amores cada huma por sua vez nas quais lhe dizia tudo aquillo com que pudia render milhor a vontade da ditta Maria da Esperança […] com a qual por occazião destes amores e das occaziões que com ella teve no acto da confissão sacramental veio a ter com a mesma copulla carnal muitas vezes […]2074.

Frei Gaspar de Melo, franciscano morador no convento de Estombar, solicitou Francisca de Medina, de 24 anos, solteira, exprimindo o seu intento através de várias cartas, tendo sido acusado, por esse motivo, em 7 de Junho de 1697: […] lhe persuadira este que fugisse com elle, facilitando-lhe com exemplos a fuga […] e que outrosy lhe escreveu várias cartas de amores e solicitações e porque todas as referidas forão no lugar do confissionário e com pretexto das confissões […]2075.

Frei Manuel de S. Francisco, franciscano, confessor e pregador no convento de Tomar, acusado em 18 de Maio de 1684 à Inquisição de Coimbra, procedeu de idêntica forma, ao solicitar Maria da Conceição de Lemos Gamira para actos “torpes e desonestos”. Depois de lhe dar alguns ósculos: […] lhe meteo huma carta de amores em o peito2076. A estratégia do jesuíta Manuel Cardoso, morador no Colégio de S. Lourenço da cidade do Porto, foi outra. Enamorou-se. E logo por duas moças. Luísa Pacheco, viúva, de 32 anos, e Joana de Sousa, solteira, de 28 anos. Para conseguir os seus intentos redigiu umas tantas quadras e ofereceu-lhes. Sobre a qualidade das rimas, como historiador nada poderei aduzir, a não ser que elas não surtiram o efeito desejado, já que ambas acabaram por acusá-lo à Inquisição em 26 Setembro de 1668. Segue-se a poesia:

2074

[1] “Dar contas por despedida Dizem ser uso entre necios Mas eu começo por contar Por contar quanto te quero

[5 ]Sei que huma cyfra val des E por amor cyfrar quero De mil finezas em contas Pois por tais contas me empenho

[2] Quero pesar quanto te amo Quero medir quanto mereço Dirá não ter meu Amor Medida, conta nem peso

[6] São so de multiplicar As contas que te offereço Nada são de repartir Que amor repartido he necio

[3] Mas eu que em tais contas cyfro De meu amor os mysterios Quero que por minha conta So corrão teos pensamentos

[7] Não dou contas por pagar Pois sempre fico devendo Mas porque saibas minina Que em muita conta te tenho.

[4] Não serei bom contador Mas pellas contas confesso Que nas contas que botei Hum conto de contas devo

[8] Não dou contas enfiadas Por te livrar de um tormento Não he bem prenda de hum fio Hum amor de tanto preço […]”2077

DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Processo n.º 3177, fl.36v.º-37. DGARQ/TT – Inquisição de Évora, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 569, fl.569. 2076 DGARQ/TT – Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 630, fl.5. 2077 DGARQ/TT - Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 626, fl.442. 2075

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ISSN 2358-4912 Mas Manuel Cardoso não foi o único solicitante convencido de poeta. Manuel Alcácer, um franciscano morador em Tavira, no Algarve, também escreveu umas glosas que o levaram a ser acusado à Inquisição de Évora em 19 de Agosto de 1729. Segue-se o que ele enviou a Catarina do Nascimento: “Mote Saudades decontino Todo o homem faz chorar Estou para me romper Em pintos de me rasgar.

1.ª gloza Amar pera padeser erro he do entendimento Pois he comprar hum tormento A custa de hum bem querer Assim venho a entender Que todo o amante he mofino Pois o guia o seu destino A sofrer com ancia ardente Sospiros eternamente Saudades de contino.

2.ª Assim Fábio lamentava De Filena a distancia E tanto o pranto crecia Quanto a pena se aumentava E como a magoa embragava As vozes para falar So lhe premite lugar O seu pranto socesivo A dizer que mal tam vivo Todo o homem faz chorar.

3.ª Se he ventura o querer bem Ninguém como eu he ditozo Pois nos lansos de amoroso Nunqua me igualou ninguém Mal aja o amor ámen Que eu não quero mais ver Pois por ser fino em querer Me põem hoje então estado Que quazi desesperado Estou para me romper.

4.ª Porem vendo as asperezas Eu cuidava que as finezas Eram créditos do amante Que he serto que o ser constante So consiste nas firmezas Com que o amor me quer tratar Protesto de não amar Mas antes de ser querido Estou já de arependido Em pontos de me rasgar.

Mote Todo aquele que se rir De me ver chorar huma hora Tenha amor e viva auzente Vera quantas vezes chora

1.ªgloza Como he tormento e ficar Que dentro na alma se sente O amar a quem vive auzente Mais insofrivel se faz Tirano e sego rapax Pois me chegaste a ferir Se acazo a gente me ouvir Queixar de alguns disfavores Castiga com seus rigores Todo aquele que se rir

3.ª

2.ª Vivo aqui tão descontente Na auzencia do meu amor Que se não choro em rigor Morro enfalivelmente Não me cabe enteriormente No peito sem sahir fora Esta pena e sinto agora Que quem bem de amor sentir Nunca jamais se há-de rir De me ver chorar huma hora.

4.ª

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ISSN 2358-4912 Quem ri do mal que padesse Outrem com ancia mortal Ou não sente racional Ou que he mal não conhese Porem se alguem lhe paresse Semsurar-me de emprudente Por cuidar que he endicente Chorar pelo bem que adoro Se quer saber porque choro Tenha amor e viva auzente.

Estar auzente e ter amor Amar e não vera quem se ama Mais que arde em viva chama He o tormento mayor Metido entanto rigor Busco no choro a melhora Esse alguem julgar de fora Que se pode rir de mim Tenha amor e viva assim Vera quantas vezes chora”2078.

E poetas eram também, por vezes, os párocos do Brasil. Em 14 de Março de 1800 Manuel Farias, morador em N. Senhora da Pacobahiba, bispado do Rio de Janeiro, denunciava o vigário Carlos Dantas de Vasconcelos. Acusava-o de ter trato ilícito com várias mulheres, entre as quais estava uma Maria Madalena, menina honesta e recolhida numa casa próxima da igreja matriz. Seduziu-a com palavras, escritos e sonetos, havendo fama de ter conseguido o seu intento, estando amancebado com ela. Era acusado ainda de ter dito: Assim como os pastores tinhão livre a liberdade de escolher no seu rebanho huma ovelha que lhe parecesse melhor para o seu sustento, tãobem elle vigario escolhia das duas ovelhas a milhor mais galante para sua concubina2079.

Dos milhares de denúncias que li e estudei, a mais interessante, neste âmbito da solicitação através de palavras orais e escritas, é aquela que implicava frei Manuel de Meneses, religioso Bernardo, natural de Viana, pároco na igreja de Samuel. Frei Manuel tinha em sua casa um estudante que andava em vias de se tornar padre. Este e uma Faustina Biçarda, solteira, de 32 anos de idade, namoravam às escondidas, trocando inúmeras cartas de amor. Quando ela quis casar, ele desinteressou-se por ela e acabou a relação, o que a levou a contar o sucedido numa confissão com frei Manuel de Meneses, simultaneamente senhorio do moço que a enganara. Por seu turno, o padre quis demovê-la também da ideia do casamento, dizendo-lhe que se quisesse pecar que o fizesse com frade ou clérigo, pois estes guardariam disso segredo, enquanto o rapaz a enganaria. Faustina escandalizou-se com estas palavras e foi contar o caso a D. Isabel Bernarda Coutinho, religiosa no mosteiro de Lorvão, que em 16 de Março de 1747 escreveu uma carta para o Santo Ofício denunciando essas palavras do padre. Os Inquisidores desconfiaram do caso, e para se certificarem que a relação tinha sido entre o moço e Faustina e não entre esta e o sacerdote, solicitaram inquirições, as quais redundaram no confisco de várias cartas redigidas pela moça. E é aqui que esta denúncia se torna importante, pois tem apensa a si 29 escritos, originais, nunca estudados, que mostram a afeição que Faustina nutria pelo rapaz e revela os encontros que ambos tiveram. Não poderei, aqui, apresentá-los todos. Registo alguns: Já estou milhorzita agora dize-me tu como passas coitadinho do meu menino que assim me peza de te ver padeser […]. Meu adorado brinquinho muito me alegrei coando vi as tuas adoradas letrinhas todas minhas queixas ficaram demenutas e com alivio as minhas saudades a noute, se puder ir donde tu sabes heide faze-lo mas há-de ser emsima e coando mais tarde milhor. Amor desta alma, querido, se não chover de noute espera-me la em baixo e se os bois la estiveram antam vai-te logo porque não poso ir, a Deus que não poso mais que esta la meu irmão. Já meu irmão veio agora, avemos de ter pasiensia […] paso hoje muito mal de tarde, quero-te ver na janela.

2078 2079

DGARQ/TT - Inquisição de Évora, Caderno dos Solicitantes, livro n.º 577, fl.176. Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro - Livro de denúncias e querelas contra padres, 1794-1818, fl.69v.º-70.

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ISSN 2358-4912 Dose empregozinho eu na tua auzencia não paso bem, faltando-me a tua vista, já estou triste e doente, agora com tuas noticias fica com menos ardor o meu sentimento, o pente estimei muito ser da tua mam, o falar sim mais ainda não quero primeiro ver se os bois se mudam de sitio, assim te digo que descanse que logo avizo. Fala-me de tarde e de sorte que fiquemos sempre amiguinhos e seja no buraco piquenito.” Agora com suas letras ficam com alento as minhas dores so me fica a pena de ouver penar com saudades devertias coanto for possivel que eu estes outo dias não sei se poderei ir receber ese alivio por serto empedimento que não declaro. Dize-me vidinha como pasastes este dia que estou com cudado não te achasse menos quem tu sabes, eu tenho andado com muitas dores no estômago e o corpo muito moído tudo me causam as saudades que por ti estou padesendo, mas ai de mim se tu me faltas o que me pormetestes, antam sam duvida moro e acabo a vida por ti meu amorzinho. A Deus, regala-te coanto puderes e não te esquesas de quem te adora firmemente. […] Fala-me esta noute sem falta se não puderes vir sam seres semtido pide licensa a quem tu sabes que te quero comtar o tromento em que estou vivendo nesta caza com minha irmam, o padre te dirá a verdade na carança que lhe viu hum destes dias que antam foi o dia em que ela me dise que eu te falara, eu dise que ela mentia e estava enganada, levantou-se e me dise que bem vira e ouvira todas as palavras que eu te dise, enda lhe tornei a dizer que estava muito enganada, me deu duas bofetadas e muito bem me estendeu as orelhas, não tornou mais a falar comigo, sempre esta com o fosinho para mim que mete medo, porem eu não [tenho] medo de fosinhos nem de pancadas pois vivo tam cativa dos teus agrados […] assim será perdurável minha firmeza em querer-te. Eu muito por meu gosto quero morrer pelo teu amor e não me digas o contrario que pasma este curasamzinho… na consideração que há-de perder a tua comrespondensia […]2080.

Neste contexto, quero esmiuçar algumas conclusões, a saber: 1 - Além da configuração do delito não ter sido um processo imediato, as competências jurisdicionais da Inquisição portuguesa sobre ele também não lhe foram atribuídas quando do seu estabelecimento, nem foram outorgadas uniformemente de uma assentada. Se a natureza dos tribunais inquisitoriais fez com que a sua actividade estivesse orientada fundamentalmente para a perseguição das heresias, a definição das suas diversas manifestações foi um aspecto crucial na própria fixação da sua esfera de acção. Sendo a Inquisição um tribunal orientado para averiguar, descobrir e depurar os desvios da fé, actuou no terreno dos erros de doutrina passíveis de serem captados, não apenas em afirmações heterodoxas explícitas, como também em comportamentos que implicassem suspeita de heresia. Sendo a heresia uma escolha consciente de um caminho errado, a profanação do sacramento da confissão, um dos pilares da Igreja pós-tridentina, era considerada um desses desvios na fé. É nesse contexto mais vasto da reforma e contra-reforma católica que a definição da solicitação como heresia deve ser inserida. A solicitatio ad turpia passou a ser considerada um desvio do comportamento moral que por meio de gestos ou palavras ofendia os preceitos da verdadeira fé católica romana e a Inquisição foi ganhando competência para intervir nessa matéria. Ao converterem um sacramento de instituição divina num veículo para o exercício dos seus desejos concupiscentes, os solicitantes não só de censores se transformavam em agentes do pecado como dessacralizavam o sacramento. De um meio privilegiado para a manutenção da ortodoxia era assim convertido num meio de disseminação da heterodoxia. 2- Não obstante outras formas existissem de delinquir na confissão, no quadro normativo-jurídico do Santo Ofício apenas se encontram referências explícitas à repressão da solicitação. Significa isto que a Inquisição apenas se interessou pela profanação do sacramento por via da luxúria, certamente pela maior profusão desse tipo de manifestações comportamentais em detrimento de outras. Não 2080

DGARQ/TT - Inquisição de Coimbra, Caderno dos Solicitantes, n.º642, fl.22 e seguintes (papéis apensos à denúncia).

617 ISSN 2358-4912 encontrei nas determinações inquisitoriais enquadramento penal para outro tipo de comportamentos que valendo-se do momento e das circunstâncias em que era administrado profanassem o sacramento, nem muito menos encontrei ocorrências desse género que tenham motivado denúncias ao Santo Ofício. 3 – A solicitatio ad turpia fora configurada como delito na perspectiva de quem administrava o sacramento e não de quem o recebia. Há notícia de algumas situações em que os penitentes solicitavam os confessores mas nunca tais situações motivaram inquirições por parte da Inquisição. 4 - Muito embora tivesse lutado arduamente pela posse da jurisdição do delito de solicitação com o pretexto da heresia, o Tribunal diferenciava este crime dos que verdadeiramente atentavam contra a fé, tratados indubitavelmente com mais rigor, mas continuando a encará-los como suspeitos na fé através de uma compreensão defeituosa do erro dos sentidos que levava a um não menos deturpado sentido dos erros. O único Regimento que reconheceu as verdadeiras motivações dos solicitantes, diferenciando os hereges de ocasião dos de doutrina, foi o de 1774, assumindo no título XV do livro III, que a solicitação denotava “mais fragilidade que malícia.” No fundo aqueles que delinquiam na confissão eram tão-somente mal afectos e não hereges de doutrina, opositores ao sacramento. Por seu turno, o Tribunal da Fé actuou neste campo como defensor da moral sexual e do valor dos sacramentos definidos em Trento, denotando um espectro de acção mais largo do que aquele que a historiografia tem propalado, centrado mais na salvação das almas do que na condenação das vidas, na perspectiva de que mais valia ir para o céu obrigado do que para o Inferno por vontade própria. 5 – Partindo do ponto anterior, as fontes inquisitoriais são fecundas em informações e prestam-se a estudos de outras disciplinas além da História, nomeadamente a Literatura, a Antropologia, a Sociologia, etc., no sentido em que, como demonstrado neste estudo, são várias as informações que nelas podemos encontrar acerca da vida privada, dos pensamentos, dos sentimentos e formas de os exprimir, das populações do espaço luso-americano durante o período colonial. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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OS LIVROS DE MANUEL DO CENÁCULO NA REAL BIBLIOTECA PÚBLICA DA CORTE Jamaira Jurich Pillati2081 Em 1807, quando a corte portuguesa partiu de Lisboa rumo a as terras da colônia, trouxe consigo o primeiro dos três lotes de sua preciosa Real Biblioteca, mais tarde Biblioteca Imperial e Pública, depois Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e apenas em 1948, Biblioteca Nacional, como hoje a conhecemos. Ainda no século XIV, com a retomada das terras portuguesas do domínio dos mouros, a preocupação dos monarcas com a educação e com a recuperação da história do reino, vista a unificação, fez com que coleções de livros fossem reunidas na corte. Porém, Afonso V (1438-1481) foi quem se deu conta da importância de disponibilizar as obras aos estudiosos, originando a conhecida Livraria Real. Com a União Ibérica, que perdurou até 1640, muitas dessas obras foram levadas à Espanha e, com isso, a biblioteca real perdeu sua importância. Foi em meados dos setecentos que d. João V passou a investir verdadeiramente na constituição de uma biblioteca real. A Livraria cresceu a passos largos e chegou a ser considerada uma das maiores da Europa, em números e pela preciosidade das obras e figuras que a estamparam, ganhou um novo prédio e funcionários para confeccionar os catálogos, além dos editores que se encarregariam das edições de luxo com as cores e o brasão do rei. Essa prática foi comum entre os monarcas de diferentes regiões. Durante o século XVIII não só a Livraria Real, como as bibliotecas de academias, conventos e ordens religiosas, tiveram grande crescimento. Durante seu reinado D. João V, além de ordenar suntuosas construções como o Convento de Mafra e o Aqueduto das Águas Livres, incentivou o crescimento da Universidade de Coimbra e a criação de diversas academias em Lisboa, entre elas, a academia Real de História. O crescimento das academias, assim como as aquisições na Livraria Real, eram práticas culturais que embutiam prestígio a figura do soberano e, ainda, respondiam ao investimento na resolução de questões de estudos geográficos e cartográficos, cruciais ao desenvolvimento de todo o reino e suas colônias (SCHWARCZ, 2002). No entanto em 1755, o terremoto que varreu Lisboa também pôs em ruinas a Livraria Real. A reconstrução de uma biblioteca figurou entre as primeiras medidas a serem tomadas quanto à reconstrução da cidade, reunido o pouco que restou da antiga e contando com os esforços de colaboradores da reforma do então ministro Pombal, e da disponibilização do rico acervo da Real Mesa Censória, órgão que regulamentava a distribuição e publicação de livros em Portugal. Assim foram simultaneamente reerguidas suas bibliotecas, uma privada ao rei e sua corte e outra, o projeto de uma Real Biblioteca Publica, que por decreto real de 1775 seria ordenada que se instalasse no Terreiro do Paço, mas que devido ao conturbado cenário político acabou sendo arquivado, enquanto que a Real Biblioteca da corte recebia doações e investimentos. Já sob o reinado de D. Maria, que a Biblioteca Real que viria a desembarcar junto com a corte no Brasil, toma forma mais concreta. Nesse artigo propomos trazer a análise de aspectos conferidos a Real Biblioteca Nacional da Corte, sob o ponto de vista de um rol especifico dos livros doados por D. Manuel do Cenáculo, buscando as peculiaridades desta biblioteca, formada em um contexto carregado das ideias que perseveraram por todo o século XVIII. Em 1797 a biblioteca teve suas portas abertas com Antonio Ribeiro dos Santos ocupando o cargo de bibliotecário-mor. Durante o período pombalino, Ribeiro dos Santos participou da reforma junto à biblioteca da Universidade de Coimbra e trouxe a acervo o seu conhecimento e modelo de uma biblioteca aberta aos “interesses do Estado e de sua população letrada” (SCHWARCZ, 2002, p. 117). Entre 1795 e 1797, Antonio Ribeiro dos Santos manteve correspondência com Fr. D. Manuel do Cenáculo a respeito de uma doação do prelado a biblioteca. Algumas correspondências recebidas e enviadas estão transcritas em documento, em brochura, intitulado Cartas Avulsas do Ex.mo R.mo Senhor Bispo de Beja e a Correspondencia incompleta com o Desembargador Antonio Ribeiro dos Santos sobre os livros, e a raridade que o Exmo Prelado oferecido á Real Biblioteca de Lisboa e outros papéis adquiridos por Fr. Vicente Salgado Ex 2081

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620 ISSN 2358-4912 Geral e chronista da congregação da Terceira Ordem de Portugal. Ainda, encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, três tomos que reúnem em suas mil e nove páginas o Catalogo Methodico dos livros que o Exmo e Rmo D. Frei Manuel do Cenaculo Vilas-boas Bispo de Beja doou a Real Biblioteca Publica da Corte no ano de 1797. Considerado um dos maiores expoentes do Iluminismo em Portugal, Frei D. Manuel do Cenáculo, o Bispo de Beja, mais tarde Arcebispo de Évora, participou efetivamente da reforma política do Marquês de Pombal durante o reinado de D. José I. Deputado da Real Mesa Censória e professor empenhado na adaptação de uma pedagogia condizente com o espirito das Luzes e da mentalidade científica, obras e pesquisas a seu respeito podem ser vastamente encontradas, assim como documentos deixados pelo mesmo. Considerado personagem essencial da Reforma Pombalina e por traduzir o espírito das luzes e do conhecimento vigentes na Europa. Durante seus anos como prelado, seja no bispado de Beja ou em Évora, Cenáculo manteve correspondência com inúmeros outros ilustrados, eruditos e ocupantes de importantes cargos políticos, como o próprio Marquês de Pombal e o secretário Rodrigo de Souza Coutinho. (VAZ, 2009). Cenáculo ficou conhecido por colaborar com diversas bibliotecas de instituições em Portugal e como entusiasta da criação de tantas outras pelo reino, conhecido como um bom comprador pelos mercadores de livros, tinha interesse em contribuir com a biblioteca que vinha sendo formada por Ribeiro, assim como seu acesso a obras. Além disso, Cenáculo se via fortemente engajado no projeto de uma pedagogia que fizesse diálogo com os ideais de ensino cientifico e das Luzes, para isso, encarregava-se, não só de escritos, mas da indicação de manuais e obras que deveriam constar nas bibliotecas do reino. (VAZ, 2009.) Em carta de 14 de outubro de 1796, Cenáculo demonstra a importância dada a Biblioteca Real: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Exmo e Reverendíssimo Senhor a Real Bibliotheca que Sua Magestade foi servida erigir nesta Corte para bem da Literatura Nacional, tem de franquear com brevidade ao público as preciosas coleções de livros com que Vossa Excelência apreparou, e enriqueceu nos ditosos dias de seu governo Literário; e achando-me eu encarregado por Alta Mercê de sua Magestade de a reger, e dirigir julguei ser de meu ofício, e da primeira obrigação daquela casa participar a Vossa Excelência.(

Cartas Avulsas…, p. 7) As cartas mostram nos tratamentos usados entre os dois homens de letras quanto ao papel que acreditavam desempenhar junto às reformas político-educacionais no estado português. Suas obrigações junto a formação dos espaços de erudição. distinto Zelador da Pátria estimará mais que Vossa Excelência a execução deste ilustre Estabelecimento tão útil à nação, e que foi tanto em [?] mento dos homens, pelo expediente Santíssimo de huma Bibliotheca Pública, que neste século, a face das Nações heroicamente Letradas pedia pejo e coragem de Alto Poder , e copioso de riqueza pecuniária , e doutrinal. Portanto encherá Vossa Senhoria esta Casa da Sabedoria de brilhantíssimos decoros; e de tudo quanto sem limite a pode ennobrecer. (Cartas Avulsas… , p.10)

As listagens de livros aos quais possivelmente se referem as cartas estão separadas em três tomos aos quais a classificação foi dada enquanto a temáticas da época as quais se tratavam. Logo temos no Tomo I: Que contém os livros impressos de Historia Bellas Letras Filosofia Medicina Artes Ciencias Civis e Politicas. Levantamos aqui, observando as temáticas listadas o que Maxwell pontua como as luzes filosóficas e da educação mas também o conhecimento como base de desenvolvimento de outros campos do conhecimento que proporcionaram reformas práticas as outras áreas e saberes, como a medicina, por exemplo, e os tratados de politica, buscando a reflexão sobre as estruturas de poder. Traz também livros do velho e novo testamento No Tomo II: Que contém os livros impressos das ciências Eclesiasticas e da Poligraphia e Micellanea. O iluminismo em Portugal é católico, muitos dos reformadores do Estado, assim como Cenáculo, eram clérigos. Segundo Candido dos Santos: alguns aspectos deste movimento – regalista em política, jansenista em moral, progressista na cultura anti-Aristóteles e anti-escolástica estão presentes em Portugal. Regalista, jansenista e

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ISSN 2358-4912 progressista. Não porém, antirreligioso, como na França. É, talvez, anticlerical. Com certeza, antijesuíta, como quase todas as Ordens religiosas e parte dos bispos portugueses. Não era antireligioso.(2004 : 952)

Iluminar o conhecimento religioso e contraponto a crença no falso e na lenda. Enriquecer o conhecimento religioso dos sábios eliminando as falsas preocupações. O seja, os estudos eclesiásticos são necessários a todos os que desejam a sapiência, vinda claro, pelo conhecimento através da leitura. No tomo III temos os manuscritos. A maioria classificado como Historia, temos títulos da Historia Eclesiastica, Historia dos Reys de Portugal, Historia de Portugal e suas colônias, Historia genealógica de Portugal, Historia portuguesa da Asia. As bibliotecas que foram formadas por esses pensadores tinham fortes traços da imagem que se desejava projetar do Império naquele momento, ou seja, da memória coletiva que deveria ser cultivada através da apropriação das obras. Em 1755, o terremoto que devastou a cidade de Lisboa, levantou nos cidadãos a temeridade cristã do Juízo Final que teria ocasionado pelos pecados cometidos pelo povo lisboeta ao longo dos anos. Essa visão reflete um espírito de época ligada à visão escatológica da história (KOSELLECK, 2006). Por volta do século XVIII, essa visão do fim dos tempos, reinante por toda a Idade Média – e antes mesmo dessa – já vinha sendo combatida pelo Estado com duras penas aos “profetas” do fim do mundo, vide o exemplo do jesuíta Malagrida, último condenado à fogueira pela Inquisição portuguesa por sua crítica aos pecadores lisboetas merecedores do terremoto2082. As bibliotecas da Era Pombalina, assim como do reinado de D. Maria, seguiam as reformas tecnicistas, as leituras das “ciencias naturaes” e uma memória racional e progressista. A história recuperava os grandes feitos dos monarcas anteriores, exemplo para os atuais e futuros. O futuro deixava-se contemplar, desde que o número de forças políticas em ação permanecesse limitado ao número de príncipes. Por trás de cada soberano havia um número de tropas e de população, um potencial calculável de forças econômicas e de liquidez financeira. Em um tal horizonte, a história tinha ainda caráter comparativamente estatístico, e as palavras de Leibniz — "o mundo que está porvir já se encontra embutido no presente, completamente modelado"2083 — puderam ser aplicadas à política. No horizonte da política absolutista dos príncipes soberanos, e apenas nesse horizonte, nada de essencialmente novo poderia em princípio ocorrer.

(KOSELLECK, 2006: 34) Os livros de história contemplados nesse momento, dos quais nossos personagens são não só compradores e doadores, como também, autores, tratam o passado que projeta o futuro e o e trazem exemplos de progresso a nação. São também políticos em suas ações. O rol dos livros que foram doados para formação da Real Biblioteca trazem aspectos cruciais do projeto educacional, politico e cultural do iluminismo em Portugal. Ativos na Reforma Pombalina, Cenáculo e Ribeiro dos Santos, continuaram seu projeto de conhecimento através da sua ação em constituição e colaboração de bibliotecas pelo reino. Tantos as cartas como o rol de livros, são ricos objetos para o entendimento de aspectos do projeto de Ilustração em Portugal, e da organização do conhecimento na instituição que, mais tarde, estabeleceu-se em terras brasileiras. Referências ANDRADE, Rosane Maria Nunes. O livro dos Livros da Real Biblioteca: tesouros na Biblioteca Nacional. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação . XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação: Curitiba - PR, 2009.

2082

Gabriel Malagrida, padre italiano da Companhia de Jesus, passou boa parte da sua vida no Brasil e de retorno exiliou-se em Portugal. Seu livro Juízo da Verdadeira Causa do Terremoto, que sustentava a teoria do Terremoto como um castigo divino a vida pecaminosa dos lisboetas, acabou desagradando o ministro, Marques de Pombal, e seus planos de reconstrução da cidade. Malagrida terminou sendo a ultima vitima fatal da Inquisição portuguesa, queimado em 1761. (TAVARES, 2005. p. 140 – 142) 2083 Nota do autor: G.W. Leibniz, "Brief an Coste, 19.12.1707", in Deutsche Schriften, org. Guhrauer, 1838, t.II, 48 et seq.

622 ISSN 2358-4912 CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História: Conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. Porto alegre: Artmed Editora, 2001. PORTELLA, Célia Maria. Releitura da Biblioteca Nacional. Estudos Avançados. São Paulo, v. 24, n. 69, 2010 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142010000200016&lng=en&nrm=isso. Acessado em 01/07/2014. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. DOMINGOS, Manuela D.(orgs.). Casa dos Livros de Beja: doação de Frei Manuel do Cenáculo à Real Biblioteca Pública da Corte. 2ªed. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2006. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.PUC-Rio , 2006. MAXWELL, Kenneth R. Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. SANTOS, Candido dos. Matrizes do Iluminismo Católico na Época Pombalina. In: VÁRIOS. Estudos em homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. Vol 3. SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. TAVARES, Rui. O pequeno livro do Grande Terramoto: ensaio sobre 1755. Lisboa: Tinta da China, 2005. _____________. Lembrar, esquecer, censurar. Estudos Avançados. V. 13. N. 37. São Paulo: USP, 1999.

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VAZ, Francisco Antonio Lourenço. Os livros e a biblioteca de espólios de Frei D. Manuel do Cenáculo: repertório de correspondência, róis de livros e doações a bibliotecas. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2009. ____________________________. A Fundação da Biblioteca Pública de Évora. Évora: Biblioteca Publica de Évora, 2005. Disponível em: Acessado em: http://www.evora.net/bpe/2005Bicentenario/dias/01_Mar05/Simposio/FVaz.pdf. 10/12/2013) Fontes Cartas Avulsas do Ex.mo R.mo Senhor Bispo de Beja e a Correspondencia incompleta com o Desembargador Antonio Ribeiro dos Santos sobre os livros, e a raridade que o Exmo Prelado oferecido á Real Biblioteca de Lisboa e outros papéis adquiridos por Fr. Vicente Salgado Ex Geral e chronista da congregação da Terceira Ordem de Portugal. Academia de Ciências de Lisboa: Lisboa, Portugal. Catalogo Methodico dos livros que o Exmo e Rmo D. Frei Manuel do Cenaculo Vilas-boas Bispo de Beja doou a Real Biblioteca Publica da Corte no ano de 1797. Biblioteca Nacional de Portugal.

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ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS E MOBILIDADE SOCIAL EM SANTIAGO DE IGUAPE – 1806-1837 Jamile Serra Coutinho2084 Na sociedade colonial/imperial, casar-se significava buscar respeito e estabilidade social, que eram fundamentais para a sobrevivência de escravos, libertos e livres de cor, posto que esta era uma sociedade com características de Antigo Regime, e como tal, o estabelecimento das relações pessoais tecidas entre a população era o que garantiria possibilidades de melhorar as condições de vida. O casamento sacramentado pela Igreja representava para os escravos, libertos, e livres de cor a tentativa de sobrevivência e garantiria a esses indivíduos uma posição privilegiada dentro do seu grupo, o que denota que o casamento se constituiria uma estratégia de vida. Hebe Mattos (1995) afirma que o casamento, legítimo ou não, além de um espaço privativo, possibilitava aos cativos o acesso a certa autonomia, pois lhes conferia maior liberdade com relação aos seus senhores, além de atribuir “status e estabilidade”2085. Assim, a constituição de uma família legal poderia representar para esses indivíduos certo grau de autonomia e mobilidade dentro do seu contexto social. De acordo com João José Reis (2003), as relações senhor – escravos constituíam a matriz estruturante da sociedade e economia baiana, mas essa sociedade não possuía uma estrutura completamente rígida2086. Como Schwartz (1988) afirma, havia na Bahia uma flexibilidade por ordens e uma adaptabilidade a novas categorias e situações sociais. A sociedade baiana era escravocrata, pois organizava sua economia e modo de vida em torno dessa instituição, ainda que tenha adaptado essa forma de trabalho e a formação da população de origem mestiça aos princípios portugueses de organização social2087. Dessa forma, Roberto Guedes (2008) afirma que na sociedade colonial/imperial com características de Antigo Regime, a mobilidade é percebida no movimento geracional/familiar, não ascendente em indivíduos. Segundo ele, a reputação também pode ser entendida como forma de mobilidade, já que esta seria garantida através do casamento com indivíduos de condição e/ou cor/qualidade melhores, determinando graus de respeito e status no interior do grupo que esses indivíduos pertenciam. O respeito alcançado a partir da reprodução dos símbolos2088 representa fator determinante para garantir o lugar que o indivíduo e sua família ocupavam. A definição de cor/qualidade pode ser entendida a partir do estudo de Eduardo França Paiva (2012), para ele a cor estava relacionada à “qualidade”, ou seja, o branco era de qualidade superior, pois “limpo de nascimento” enquanto os negros e seus descendentes possuíam um “defeito de sangue” e qualidade inferior. Cor/qualidade, portanto implicavam em categorias e hierarquizações sociais próprias do Antigo Regime. A cor na sociedade colonial expressa uma condição social e não apenas a aparência da pele, aquela seria socialmente definida e poderia mudar gradativamente com a posição social do indivíduo. Sendo assim, a partir da gradação da cor/qualidade pode-se determinar o grau de afastamento do passado escravo, que será expresso na cor e na condição desse indivíduo. A designação da cor/qualidade (ou a falta dessa designação) não se refere exatamente à aparência da tez da pele, mas 2084

Programa de Pós-Graduação em História/Mestrado - Universidade Estadual de Feira de Santana. Bolsista FAPESB. Orientadora: Profª Drª Adriana Dantas Reis. Email: [email protected] 2085 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p.60. 2086 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, 2ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.20. 2087 SCHWARTZ, Stuart B.Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.209-210. 2088 De acordo com Kátia Mattoso, os cativos e libertos desenvolveram técnicas para reproduzir os hábitos da cultura dominante sem abandonar as suas raízes, o que era essencial para a assimilação desses na sociedade “branca”. De acordo com ela, eles viveriam em dois mundos: o africano adaptado à Bahia e o europeu, necessário à ascensão econômica e social. MATTOSO, Katia M. de Queiros. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.107.

624 ISSN 2358-4912 remete à condição de livre da ascendência escrava e à posição que esse indivíduo alcançou na sociedade a qual está (ou foi) inserido. Adriana Dantas Reis (2013) afirma que “as cores intermediárias – como pardo, mestiço, mulato, cabra, etc. – aparecem como misturas, ainda que revelem qualidades mergulhadas em condições sociais específicas e complexas”2089. Sheila de Castro Faria (1998) afirma que os registros paroquiais seriam indicativos das posições que esses indivíduos ocupavam na sociedade, e isso pode ser comprovado pelas denominações a eles dedicadas. A autora chama a atenção para o fato de que esses registros, na maioria das vezes, não eram feitos na hora da celebração, e que por isso seriam demonstrativos da forma que o pároco e a sociedade encaravam essas pessoas. João Fragoso (2010) defende que essas fontes possuem grande valor, sobretudo pelo fato da sociedade colonial ser amplamente guiada pelos preceitos católicos, e devido a isso, grande parte do dia-a-dia desses indivíduos estarem registradas nos assentos paroquiais. Segundo o autor “nesses papéis, com maior ou menor rigor, encontramos informações relativas aos fregueses, como nome, filiação, naturalidade, qualidade social (cor, título etc.), moradia, estado matrimonial etc.”2090. O estudo desses documentos pode fornecer os pactos de aliança entre famílias, a classificação social desses indivíduos (representada através da designação da cor/qualidade, pronomes de tratamento – como o uso do termo Dona para as mulheres – e representação de patentes militares) e, sobretudo a investigação dos graus de endogamia e ritmos de mobilidade, percebidos através das designações empregadas aos sujeitos e escolhas matrimoniais. Assim, Schwartz (1988) afirma que a análise dos casamentos, permite ao historiador “penetrar no mundo interior dos cativos”2091. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Casamentos, cor e mobilidade social A freguesia de Santiago de Iguape localiza-se no Recôncavo baiano, uma das regiões da agricultura de plantation mais tradicionais do Brasil, e no início do século XIX, essa região já era conhecida como uma das freguesias açucareiras que mais produziam na Bahia. Em 1835 a população local seria de 7.410 moradores, destes, a maioria era representada por escravos africanos e nascidos no Brasil (54%), os brancos representavam a minoria (8%), o restante da população (38%) era composta por pretos, pardos e cabras (que poderiam ser livres ou libertos)2092. O censo aponta que, em 1835, existiam 966 fogos, e a maioria destes (mais de 95%) pertenciam a pequenos lavradores, costureiras, pescadores, pequenos agricultores, e artesãos, que geralmente foram classificados como pardos e pretos livres. Existiam também 21 engenhos moentes e correntes, pertencentes a senhores de engenho abastados, com uma média de 123 escravos cada. Além dos engenhos, existiam 22 fogos chefiados por lavradores de cana abastados, com uma média de 15 escravos cada2093. Como exposto anteriormente, a designação de um indivíduo enquanto preto, cabra, crioulo ou pardo, indicam características que vão além da simples designação da cor da pele. Defende-se que essas denominações são demonstrativas da posição que esse indivíduo ocupava na sociedade. Dos citados acima, o termo pardo é aquele que indica maior afastamento do passado escravo, já que este representaria, de acordo com Faria (1998), a terceira geração de africanos, pois pais pretos tinham filhos crioulos, e esses davam origem aos pardos. Eram aqueles que possuíam maior liberdade e possibilidade de se inserir na sociedade dominante, sobretudo a partir da reprodução dos dogmas católicos, como casamento e batismo. Casar-se com um pardo/a garantiria para si e para a sua prole afastamento do passado escravo. Para os pardos, a prática da endogamia ressalta a necessidade de ratificar e perpetuar seu distanciamento da escravidão. Hebe Castro (Apud Reis 2013, p.49) afirma que a designação “pardo” indicava um 2089

REIS, Adriana Dantas. Pardos na Bahia:casamento, cor e mobilidade social, 1760-1830. Perspectivas – Portuguese Journal of Political Science and International Relations, N.º 10, September 2013,p.49. 2090 FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, p. 74-106, p.75 2091 SCHWARTZ, 1988, p. 310. 2092 BARICKMAN, B. J. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo baiano em 1835. Afro-Ásia, 29/30 (2003), 79-132, p.86-88. 2093 BARICKMAN, 2003.

625 ISSN 2358-4912 distanciamento do passado escravo e maior liberdade dentro da sociedade, enquanto o termo “preto” indicava maior proximidade com a escravidão.

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A análise do processo de mobilidade social será feita a partir da escolha do parceiro através da endogamia/exogamia por estatuto jurídico, cor/qualidade e das etnias, pois não é possível, a princípio, perceber a ascendência ou descendência desses escravos, libertos e livres de cor apenas com o registro de casamento, que não fornece dados tão minuciosos. É provável que o estabelecimento de laços de solidariedade, que são essenciais para a sobrevivência nessa sociedade, ocorreu, na maioria das vezes muito antes do casamento consagrado pela Igreja, mas uniões oficializadas são consideradas, como exposto, uma das formas de garantir autonomia e liberdade.

No período de 1806 a 1837 foram celebradas 448 uniões em Santiago de Iguape. Desse total, entre homens e mulheres, 304 escravos contraíram matrimônio, 122 libertos e 470 sem indicação de estatuto jurídico, o que em percentuais indica 34%, 14% e 52% respectivamente. Sobre os documentos que não possuem indicação da condição jurídica, pode-se afirmar que não se tratavam de escravos, pois se fossem apareceria nos registros o nome dos seus senhores, então só poderiam ser libertos ou livres. Desses 470 sem denominação, 184 são indicados como pardos, ou seja, 73% dos pardos da freguesia não possuíam indicação jurídica, posto que foram contabilizados 253 pardos entre todos os cônjuges. Entre os africanos, a forma de classificação mais aplicada foi a partir das nações: jeje, nagô, angola, costa da mina, cabinda, aussá, lapa, benin, 2094 benguela, oná, e aqueles que foram denominados apenas de africanos . Gráfico 1

2095

Gráfico 2

2096

O gráfico 1 aponta, em ordem decrescente a quantidade numérica de nascidos no Brasil conforme a classificação da cor/qualidade. Observa-se que, assim como ocorre no estatuto jurídico, os cônjuges sem identificação da qualidade são maioria (identificados no gráfico com o termo “não consta”), seguidos pelos pardos e crioulos. O gráfico 2 revela a distribuição dos africanos conforme as nações, ressaltando a prevalência dos jejes, seguidos pelos nagôs. Dada a distribuição e nomeação dos cônjuges do Iguape, e a partir da observação das escolhas matrimoniais, pode-se afirmar que na maioria absoluta dos casamentos ocorre o processo de endogamia. Das 448 uniões, 388 ocorrem entre indivíduos de mesma cor/qualidade. Tem-se 115 casamentos entre pardos, 28 entre crioulos, 13 entre brancos, 8 entre cabras, e 127 entre indivíduos que não constavam designação (denominados como “sem identificação”). Conforme pode ser observado no gráfico 3.

2094

A partir de abril de 1831 o termo africano começa a aparecer, mas não se torna hegemônico. Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. 2096 Ibidem 2095

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ISSN 2358-4912 Gráfico 32097. Endogamia por cor/qualidade em Santiago de Iguape, 1806-1837. Crioulos 10%

Sem identificação 44% Pardos 39%

Cabras 3%

Brancos 4%

A cor do parceiro e a endogamia por origem revelam a escolha matrimonial pensada de modo a garantir e/ou facilitar meios de sobrevivência na sociedade. Faria (1998) afirma que a prevalência do casamento entre os iguais demonstra que as diferenciações hierárquicas típicas das sociedades de Antigo Regime eram empregadas em todos os estratos sociais. O gráfico 4 representa o número de cônjuges de uma nação e a quantidade de casamentos endogâmicos entre eles, apontando que entre esses não houve um elevado grau de endogamia, pois a maioria dos que não nasceram no Brasil celebraram suas uniões em casamentos coletivos. Mas o que mais chama atenção é a alta taxa de endogamia entre um grupo específico: os pardos. Das 133 uniões celebradas com indivíduos desse grupo, 114 foram endogâmicas (gráfico 5). Esses indivíduos estão em maior número nessa freguesia, 253, sendo precedidos pelos africanos, com 220 indivíduos. Desses 253 sujeitos existem: 12 escravos (7 homens e 5 mulheres); 55 libertos (30 homens e 25 mulheres); e 186 sem indicação de condição (96 homens e 90 mulheres), que como exposto anteriormente, poderiam ser livres ou libertos. Barickman (2003) chama atenção para o fato de que, ainda que as grandes propriedades de terra, fossem engenhos ou lavouras de cana, pertencessem em sua maioria a indivíduos brancos, isso não se constituía uma exclusividade. Para exemplificar, o autor trás o exemplo de Francisco Marinho e Aragão um pardo livre, lavrador de cana que possuía 15 escravos. Aragão era filho de Feliciano Rodrigues Godinho, um pardo forro, que no dia primeiro de novembro de 1807, casa dois casais de escravos africanos (um casamento entre nagôs e um entre uma escrava angola e um nagô)2098. De acordo com o censo, em 1835, Godinho possuía nove escravos2099. Gráfico

2097

42100

Gráfico

52101

Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. 2099 “Relação do Numero de Fogos, e moradores do Districto da Freguezia de Sant-IagoMaior do Iguape [...] da Villa da Cachoeira” Disponível em: http://www.mappingbahia.org/project/explore-the-database/, acessado dia 25/05. 2100 Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. 2101 Ibidem 2098

627 ISSN 2358-4912 Além de Marinho e Aragão, que casa seu casal de escravos, Damião, africano, e Desideria, crioula, no dia vinte e sete de abril de 18352102, denominado “o escravista não-branco mais rico da freguesia”2103, podese observar no censo a presença de outros indivíduos classificados como pardos, que possuíam um número significativo de escravos, entre eles Manoel Telles Barreto. De acordo com o censo, Barreto era proprietário de nove escravos, um indivíduo livre, pardo, lavrador independente.2104 Ele se casa no dia seis de fevereiro de 1815 com Joaquina Maria da Conceição, no registro de casamento a condição e a cor/qualidade de ambos não aparecem. Em 1831 ele formaliza a união do seu escravo Antonio com a liberta Maria Henriqueta da Encarnação, ambos africanos. Neste registro, a sua mulher Joaquina Maria aparece como testemunha, sendo indicada como parda2105. É importante observar que a cor foi suprimida no registro de casamento, e a designação dele como pardo no censo revela que nem sempre a falta de qualificação da cor indica se tratar de um branco, ou branca, em que pese que a mulher dele, Joaquina Maria, no registro do seu casamento, não tem sua cor/qualidade registrada, mas em 1831, quando é testemunha do casamento do escravo do seu marido, é indicada como parda. Mais que uma simples denominação, a supressão e a exposição da cor/qualidade além de indicar a posição que esses indivíduos ocupavam na sociedade (já que se trata de um dono de nove escravos), aponta para o que foi ressaltado por Faria (1998), os assentos revelam a forma que a sociedade encarava aquele indivíduo num determinado momento. Os dados acima revelam que algumas pessoas de cor ocupavam uma posição melhor nessa sociedade, o que não foi alcançado por nenhuma outra cor/qualidade (exceto os brancos). Esses indivíduos poderiam ser pardos, ou pessoas de cor que tornaram-se pardos nos registros. Adriana Reis (2013) afirma que ser pardo na Bahia entre os séculos XVIII e XIX era participar de um grupo de pessoas livres que pretendiam manter a sua posição e espaços conquistados, distanciando-se progressivamente da escravidão. Sendo assim, quando aplicado a indivíduos livres, representaria não só o distanciamento da instituição escrava, mas a afirmação de uma posição social definida e mais vantajosa que a dos escravos e forros. De acordo com Schwartz (1988), a endogamia entre pardos e crioulos revela a existência de uma hierarquia segundo a cor2106. Entre os nubentes de etnias africanas, nota-se o processo oposto, uma forte tendência exogâmica. Nos registros analisados existiram sete sessões de casamentos coletivos onde se observa exogamia, pois no geral escravos africanos casaram-se, ou foram casados, com indivíduos de etnias diferentes. O Coronel Domingos Américo da Silva é o senhor que mais casou seus escravos em um único dia2107. São 19 uniões de escravos realizadas no dia vinte de janeiro de 18332108. No censo ele aparece como dono de Engenho e proprietário de 170 escravos.2109 A partir da década de 1830 o número de escravos sendo casados em cerimônias coletivas aumenta sensivelmente. No período de 1830-1837, ocorrem 53 casamentos com no mínimo um indivíduo escravo. Desses, 38 ocorrem em celebrações coletivas do Coronel citado anteriormente; de Dona Maria de São Joze, que casa 13 casais de escravos2110; e do Doutor João Fellipe Rastelli, que casa cinco casais de africanos2111. Além disso, nota-se que, a partir de fevereiro de 1836 não ocorrem mais casamentos entre escravos, e a condição dos nubentes nesse período passa a ser totalmente indefinida, pois não aparecem nos registros. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2102

Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. BARICKMAN, 2003, p.94. 2104 “Relação do Numero de Fogos, e moradores do Districto da Freguezia de Sant-Iago Maior do Iguape [...] da Villa da Cachoeira” Disponível em: http://www.mappingbahia.org/project/explore-the-database/, acessado dia 25/05. 2105 Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. 2106 SCHWARTZ, 1988, p.320. 2107 Livro de assentos de casamentos, Santiago de Iguape 1806-1837. 2108 7 casais de nagôs que casam entre si, dois casais de crioulos, um aussá que se casa com uma crioula, e nove casais são denominados apenas de africanos 2109 “Relação do Numero de Fogos, e moradores do Districto da Freguezia de Sant-Iago Maior do Iguape [...] da Villa da Cachoeira” Disponível em: http://www.mappingbahia.org/project/explore-the-database/, acessado dia 25/05. 2110 9 cabindas, 12 nagôs, 2 aussás, 3 jejes. 2111 6 africanos e 4 nagôs. 2103

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ISSN 2358-4912 Conclusão Pode-se afirmar que, os escravos, libertos e livres de cor de Santiago de Iguape praticavam a endogamia por cor/qualidade, como foi apontado com o levantamento dos casamentos entre pardos. Chega-se à mesma conclusão com relação à endogamia por estatuto jurídico, já que 419 das 448 uniões foram celebradas entre indivíduos de mesma condição jurídica. Os demais casamentos foram entre: escravas e libertos (10); libertas e escravos (10); libertos e sem indicação (2); libertas e sem indicação (4); e escravas e sem indicação (3). Não houve casamento entre escravo e sem indicação. O gráfico 6 aponta a endogamia por estatuto jurídico, e o gráfico 7 a exogamia por estatuto jurídico. Gráfico 62112

Gráfico 72113

Essa análise preliminar revela que esses grupos sociais buscavam formas de assegurar espaços de liberdade no seio dessa sociedade escravista, e a constituição de uma família representaria um dos passos utilizados para a conquista da sua autonomia. Referências BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, p. 74-106. GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2008. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. PAIVA, Eduardo França. 2012. Dar nome ao novo: uma história lexical da América portuguesa e espanhola entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas da mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Titular, UFMG, 2012. REIS, Adriana Dantas. Pardos na Bahia: casamento, cor e mobilidade social, 1760-1830. Perspectivas – Portuguese Journal of Political Science and International Relations, N. º 10, September 2013. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, 2ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 2112

Livro de assentos de casamento, Santiago de Iguape 1806-1837. Ibidem

2113

629 ISSN 2358-4912 SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. Livro de assentos de casamento, Santiago de Iguape 1806-1837. "Brasil, Bahía, Registros da Igreja Católica, 1598-2007." Imagens. Family Search. http://FamilySearch.org: acessado em 2014. “Relação do Numero de Fogos, e moradores do Districto da Freguezia de Sant-Iago Maior do Iguape [...] da Villa da Cachoeira”. Disponível em: http://www.mappingbahia.org/project/explore-thedatabase/, acessado dia 25/05.

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A ESTERILIDADE DA VINHA E A DISPUTA ENTRE OS CEIFEIROS: OS LIMITES DA CATEQUIZAÇÃO NO RECÔNCAVO COLONIAL – BAHIA 1585-1592 Jamille Oliveira Santos Bastos Cardoso2114 Aldeamentos coloniais: os jesuítas e as estratégias missionárias Fundada em 1534 pelo padre espanhol Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus surge no contexto da Reforma Católica, no qual era necessária a construção de novas estratégias missionárias para a expansão da fé. Como afirma Fabricio Santos, o surgimento da Companhia estava estritamente vinculado ao contexto de reafirmação do catolicismo em que “o papel dos jesuítas é, então, fundamental. Ficam, ao mesmo tempo, tanto do lado da reafirmação dos dogmas e do poder de Roma, quanto da renovação e revitalização da igreja.”2115 Marcada pelas questões de seu tempo, a Companhia de Jesus construiu uma visão e prática sob a qual a vida religiosa não estava à parte da realidade. Engajados no projeto de expansão da fé, os inacianos estiveram presentes em boa parte dos territórios coloniais, participando diretamente do processo de colonização cristã. Assim, nos primórdios da colonização portuguesa, a Companhia de Jesus lançou-se na empreitada da expansão da fé, penetrando nos domínios coloniais pertencentes a Coroa lusitana. Na América portuguesa os jesuítas desembarcaram junto com o governador geral Tomé de Souza, em 29 de março de 1549, na Bahia de Todos os Santos. Os primeiros inacianos que para cá vieram foram os padres Manoel da Nóbrega, Leonardo Nunes, João Azpicuelta Navarro, Antonio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jacome. Aqui estiveram empenhados na catequização dos gentios, na construção do primeiro colégio e na fundação da cidade de Salvador. Nas terras luso-brasileiras, a Companhia de Jesus obteve a exclusividade das atividades missionárias até o ano de 1580, quando a partir da União Ibérica foi permitida a fixação de outras ordens religiosas. Nos primeiros anos os padres usavam o método itinerante, não trabalhando com a catequização sistemática. Nesse momento era necessário conhecer o território e os seus habitantes para então descobrir o método mais adequado para tornar a missionamento efetivo. Assim, partiam por entre as aldeias pregando a mensagem do cristianismo e sujeitando os gentios ao evangelho de salvação sob o domínio da Igreja e do Soberano. Seus alvos preferidos para a conversão eram os morubixabas, os chefes das aldeias indígenas. Deste modo, ao persuadir seu líder os jesuítas logravam conquistar os demais indígenas que estavam sob sua influência. Para tentar atrair os “gentios”, os inacianos lançaram mão de diversas estratégias, muitas das quais foram buscadas na própria cultura indígena. Como nos informa Nóbrega em uma carta direcionada ao mestre Simão no ano de 1552: Se nos abraçarmos com alguns costumes deste Gentio, os quaes não são contra a nossa Fé Catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo seu tom e tanger seus instrumentos de musica que eles em suas festas, quando matam contrarios, e quando andam bêbados, e isto para os attrahir a deixarem os outros costumes essenciaes, e, permittindo-lhes e aprovando-lhes estes, trabalhar por lhes tirar os outros, e assim pregar-lhes ao seu modo em certo tom, andando, passeando e batendo nos peitos, como elles fazem, quando querem persuadir alguma cousa, e dizel-a com muita efficacia, e assim tosquiarem-se os meninos da terra, que em casa temos, ao seu modo, porque a similhança é causa de amor, e outros costumes similhantes a estes?2116

2114

Mestranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (PPGH-UFBA). [email protected] Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Orientada pela Prof.ª Dr.ª Maria Hilda Baqueiro Paraiso e pelo Prof. Dr. Marco Antônio Nunes da Silva. 2115 SANTOS, Fabricio Lyrio. Te deum Laudamus: A expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-1763). Dissertação de mestrado, Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002. p. 16. 2116 NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, p. 142. [Grifos nossos]

631 ISSN 2358-4912 Essa era uma metodologia bastante recorrente na prática de evangelização usada pelos jesuítas e fazia parte da filosofia da ordem que, com objetivos pragmáticos, desejava através da adaptação de elementos culturais dos “gentios” tornar a conversão eficaz. A assimilação dos elementos da cultura daqueles que os inacianos desejavam converter faz parte do método missionário por eles empregado, e sua inspiração talvez se encontre no método persuasivo do apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso que, assim como os inacianos, produziu cartas narrando as suas experiências evangelizadoras2117. O fundamento presente nos escritos paulinos vai achar lugar nas estratégias missionárias dos jesuítas nas terras luso-brasileiras. Buscando levar a “luz” do Evangelho para aqueles que viviam nas “trevas” do “pecado”, os jesuítas não mediram esforços lançando mão dos métodos usados pelos seus próprios inimigos os caraíbas. Para se aproximarem dos índios e ganhar a sua confiança, eles “imitaram” a forma de pregação dos xamãs indígenas. A apropriação de certas características dos caraíbas por parte dos missionários nos mostra a fluidez e permeabilidade entre as culturas no cenário colonial. Através desses métodos, batismos coletivos foram realizados nas aldeias e, aos poucos, as práticas católicas iam sendo introduzidas. No entanto, como salientamos no presente texto, as missões jesuíticas não lograram o êxito tão almejado, haja vista que a despeito do número crescente de batismos muitos indígenas retornavam às práticas gentílicas com bastante facilidade, o que levou o padre Antônio Vieira a compará-los como estátuas de murta, inconstantes e vacilantes, nos ensinamentos aprendidos com facilidade, mas sem nenhuma força de manutenção2118. É importante salientar que a visão de Vieira é uma leitura na qual o autor não percebe que os índios não associavam batismo à conversão, mas, apenas, a mais um ritual possivelmente propiciatório e de estratégia para o estabelecimento de uma possível aliança com os missionários. São leituras distintas sobre o significado do batismo e, por isso a perplexidade dos missionários e a tranquilidade dos índios em continuarem com suas crenças e práticas sociais e religiosas. Em muitas ocasiões os padres enfrentaram diversas dificuldades para impor os dogmas católicos, travando “verdadeiras” batalhas a favor do cristianismo, e também dos seus interesses temporais e espirituais. Devido à necessidade de tornar a catequização mais efetiva, bem como a vigilância sobre as práticas sociais, o método de redução foi empregado para subjugar os índios na tentativa de que, através da “aculturação”, os nativos abandonassem as suas práticas transformando-se em súditos da Igreja e do rei. Assim a escolha pela construção de aldeamentos é explicada por Serafim Leite:

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Se os padres se contentassem com percorrer as aldeias indígenas, além dos possíveis riscos, tirariam precário fruto. O que ensinavam um mês, por falta de exercício e de exemplo, estiolaria no outro. Quantas vezes, com o nomadismo intermitente dos Índios, ao voltarem os Padres a uma povoação que deixaram animada pouco antes, em lugar dela achavam cinzas!2119

Dessa forma, à medida que crescia a necessidade de tornar a catequização mais efetiva e contundente, era imprescindível fixar os indígenas não só ao solo, “mas subtrair os já baptizados à influência dos que continuavam pagãos obstinados, polígamos e antropófagos” 2120. No Regimento de 1548 dado a Tomé de Souza pelo rei D. João III já era sinalizada a necessidade de construção de povoações que agrupassem os indígenas objetivando a manutenção de sua fé, livre das influências dos outros gentios:

2117

“Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com fim de me tornar cooperador com ele”. I Coríntios 9: 20-23 In: BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. Tradução por João Ferreira de Almeida. Baurueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 869p. 2118 VIEIRA, Antônio Sermão do Espírito Santo (1657). Apud. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp. 183-184. 2119 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 2 v. Edição Fac-símile comemorativa dos 500 anos da descoberta do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. p. 42. 2120 Idem, p. 42.

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ISSN 2358-4912 Porque parece que será grande inconveniente, os gentios, que se tornarem cristãos morarem na povoação dos outros, e andarem misturados com eles, e que será muito serviço de Deus e meu apartarem-se de sua conversação, vos encomendo e mando que trabalheis muito por dar ordem como os que forem Cristãos morem juntos, perto das povoações das ditas Capitanias, para que conversem com os ditos Cristãos e não com os gentios, e possam ser doutrinados e ensinados nas cousas de nossa Santa Fé. E aos meninos, porque neles imprimirá melhor a doutrina, trabalhareis por dar ordem como se façam Cristãos, e que sejam ensinados e tirados da conversação dos gentios. 2121 (...) .

Assim, para atender a essas demandas, entre 1556 e 1561, foram criados os primeiros aldeamentos jesuíticos na capitania da Bahia. No ano de 1556 os jesuítas fundaram quatro aldeias nos contornos da cidade do Salvador: a Aldeia do Rio Vermelho, a de São Lourenço, a princípio conhecida como Tamandaré, a de São Sebastião e a de Simão. Em 1558 surgiram mais três aldeias: São Paulo, São João e Espírito Santo, que veio a ser a maior e mais povoada com índios doutrinados. Entre 1559 e 1560 foram erigidas as aldeias de Santiago e de Santo Antônio nas proximidades do rio Jaguaripe. Já em 1561 os jesuítas construíram mais cinco novos aldeamentos: Bom Jesus de Tatuapara, São Pedro de Saboig, Santo André do Anhembi, Santa Cruz de Itaparica, São Miguel de Taperaguá e Nossa Senhora da Assunção Tapepigtanga2122. Alguns desses aldeamentos foram rapidamente despovoados devido à proliferação de doenças infectocontagiosas, e a escolha de alguns índios principais em abandonarem as reduções recusando continuar aliados ao projeto colonial. O marco principal para a política de aldeamentos foi a promulgação do Regimento de 1586, elaborado pelo visitador das missões jesuíticas ao Brasil, padre Cristovão de Gouveia, que veio com objetivo de conhecer o projeto missionário que estava sendo aplicado e trazer novas reformulações a partir da realidade luso-brasileira, e das demandas normativas vindas de Roma. Assim “o regimento de 1586 constrói uma norma missionária para a província do Brasil integrando a aldeia, nascida da experiência local, ao universo jesuíta tal qual é descrito nas Constituições.”2123 Aldeamento de Santo Antônio de Jaguaripe e as disputas em torno das almas indígenas Nos anos de 1563-1568 a Bahia de todos os santos foi tomada por uma epidemia de varíola que dizimou muitos indígenas. Vários aldeamentos foram despovoados nesse período e alguns se fundiram a outros na tentativa de manutenção das reduções. Assim, para tentar prosseguir com a missão, os jesuítas resolveram transferir a aldeia de Santa Cruz de Itaparica levando os índios ainda não contaminados pela peste para Jaguaripe, em um local situado a duas léguas da foz do rio, onde hoje se encontra a cidade de Jaguaripe2124. Ali os inacianos continuam as atividades de missionamento juntos aos índios no aldeamento de Santo Antônio de Jaguaripe.

2121

Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548. Lisboa, AHU, códice 112, fl. 9. LEITE, Serafim, Op. Cit. pp., 49-58. 2123 CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Bauru, SP: Edusc, 2006. p. 90. 2124 LEITE, Serafim, Op. cit., pp. 57-58. 2122

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Fonte: MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. Equus Rusus: A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624 – 1654). Vol. 3. Tese de doutorado, Universidade da Bahia. Salvador, 2009. [destaque em vermelho nossos]

Mas a despeito de conseguirem reestruturar a redução os jesuítas continuaram enfrentando outros problemas para a efetivação do seu projeto missionário e para o (re)povoamento do aldeamento. Por conta do decréscimo da população indígena, a falta de mão-de-obra se tornou um problema para os senhores de engenhos e demais colonos do Recôncavo da Bahia. Assim sendo a disputa pelas “almas” indígenas acirra-se significativamente por parte de colonos e soldados mamelucos que entravam no sertão em busca de mão-de-obra e pregavam para os gentios que não descessem com os padres, empreendendo assim uma verdadeira anticatequese, limitado, dessa maneira, o projeto catequético e os seus contornos no espaço colonial. Extremamente incomodado com essa situação o padre jesuíta João Vicente, nos tempos da primeira visitação, denuncia os mamelucos que estiveram no sertão: E denunciando disse que haverá quinze anos que ele reside nas doutrinas dos índios cristão das aldeias desta capitania instruídos e doutrinados na doutrina de nossa Santa fé católica e neste tempo ele tem ouvido aos ditos índios brasis e assim entre eles pública voz e fama tida por causa certa e verdadeira que os mamelucos e lingoas que vão descer gentios do sertão costumam lá pregar aos gentios que não desçam com os padres da Companhia e que não desçam para as igrejas porque se descerem para eles não hão de ter muitas mulheres, nem hão de beber seus fumos e nem bailar nem ter os costumes de seus antepassados e que não hão de tomar nomes das matanças nem fazer as mais cerimonias gentílicas de que eles usam (...).2125

A denúncia do inaciano que foi extraída do processo do mameluco Francisco Pires coloca em pauta as disputas e os interesses conflitantes entre mamelucos e jesuítas trazendo à tona os limites da empreitada inaciana para a catequização dos gentios, que atrelada à influência dos caraíbas e o conflito com os colonos vai corroborar para a crise da Companhia de Jesus dos fins do século XVI. A Bahia quinhentista era, pois, palco de disputas, conflitos e crises em diferentes instâncias sociais devido aos interesses distintos que eram colocados em pauta. A luta entre jesuítas e colonos se dava em diferentes “campos de batalha” do moral ao legislativo haja vista que: Os colonizadores viam as aldeias missionárias como concorrentes no controle dos trabalhadores índios, que se faziam cada vez mais necessários nas fazendas açucareiras em crescimento, principalmente porque as doenças e a resistência dos índios diminuíam ainda mais a disponibilidade de mão de obra indígena2126.

2125

DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo nº 17 809. Processo de Francisco Pires, 02/11/1592, fls. 2v-3. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2317796 2126 SCHAWRTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico 15501835. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 272.

634 ISSN 2358-4912 É nesse contexto que se insere a denúncia do padre João Gonçalves que prossegue em seu depoimento dando os detalhes do comportamento dos mamelucos e elencando os seus nomes para o visitador:

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[os mamelucos] induzem os gentios que não desçam para as igrejas e que os que estas pregações e induzimentos fazem são os seguintes: Domingos Fernandes Tomacauna morador nesta cidade, Lazaro da Cunha, Francisco Pires, mamelucos moradores na fazenda do Conde e Apireira mameluco chamado na língua Mariqui morador em Sergipe novo e Mateus Antunes morador em Pernambuco e outros mais que lhe não lembram os quais todos fazem os ditos induzimentos aos ditos gentios dando-lhes a entender que se eles descerem com eles lingoas para suas casas que os deixarão nos seus costumes gentílicos e que e que não lhos tolherão e também lhes faz os ditos induzimentos para que os ditos gentios se não desçam todos do sertão para as igrejas para que eles lingoas achem sempre no sertão gentios que vão buscar (...).2127

Para convencer os índios a descerem com eles para as fazendas e não com os padres jesuítas para os aldeamentos os mamelucos, familiarizados com a cultura indígena, prometem aos “gentios” que no espaço para o qual eles os levariam teriam toda a liberdade de continuar com suas práticas e crenças ao contrário do que acontecia nas aldeias missionárias. Percebendo as “vantagens” da promessa dos mamelucos muitos indígenas escolhiam descer para as fazendas e vilas coloniais recusando-se acompanhar os padres para as reduções. O aldeamento era um espaço desarticulador de diferentes elementos da sociedade indígena. Já que um dos objetivos das reduções missionárias era a “aculturação” dos “gentios” para torna-los aptos aos propósitos do projeto colonial colaborando para a sua efetivação. Bem sabemos que esse objetivo não logrou êxito e esbarrou com constantes resistências dos grupos indígenas que mesmo inseridos na dinâmica da sociedade colonial souberam construir respostas ativas e estratégias de remanejamento adequação e muitas vezes de negação da colonização cristã. Os mamelucos que faziam as expedições de descimento eram patrocinados por colonos em algumas ocasiões por governantes régios. Os que foram denunciados por João Gonçalves foram financiados pelo poderoso senhor de engenho Fernão Cabral de Ataíde. Uma parte significativa deles foi processada, pois além de pregar contra a catequização no sertão também se envolveram com uma “seita herética e idólatra” esboçada por índios tupinambá: a tão bem conhecida Santidade de Jaguaripe. Que se tornou um problema para os jesuítas já que a “abusão” tinha um caráter anticatequético e motivou a fuga de indígenas de muitos aldeamentos no Recôncavo da Bahia. Os mamelucos responsáveis pelas prelações contrárias foram os mesmos que enviados por Fernão Cabral de Ataíde, usando os artifícios enumerados na denúncia anteriormente citada, fizeram descer para a fazenda do senhor de engenho boa parte dos membros da Santidade. Motivados pela concessão de poderem continuar praticando os seus ritos e manterem os seus costumes mesmo em território colonial os devotos encontraram em Jaguaripe um lugar de refúgio e propagação das suas crenças. Um cenário de disputas a Bahia em fins do século XVI Conhecer a Bahia da segunda metade do século XVI é de suma importância para entendermos atuação jesuítica e os limites da catequese no Recôncavo quinhentista, já que os processos históricos estão articulados da realidade social. Apesar da sua aparente prosperidade, com os seus ricos engenhos e ascendente produção açucareira, a capitania quinhentista estava imersa em uma conjuntura social de crise em diferentes instâncias. As revoltas indígenas deflagravam-se em muitos espaços, o que fragilizava a defesa da costa litorânea. A historiadora e antropóloga Maria Hilda Baqueiro Paraiso se refere a essas revoltas em uns dos seus artigos, explicando algumas de suas motivações: Na verdade, as revoltas indígenas passaram a ser constantes na medida em que o processo de colonização foi se tornando mais extensivo e exigente de trabalho sistemático. Como consequência colonos alteram de forma radical suas relações com os grupos indígenas e de incrementarem, tonaram mais organizadas e efetivas as tentativas de escravizá-los, as reações dos grupos

2127

DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo nº 17 809. Processo de Francisco Pires, 02/11/1592, fls. 3. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2317796

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ISSN 2358-4912 Tupinambá, mais duramente atingidos pelas ações dos colonizadores e insatisfeitos com as novas modalidades de relacionamento, passaram a ser de hostilidade e oposição à presença dos europeus2128.

A mudança no modelo de relação com os indígenas, que começara com trocas amistosas através do escambo, transforma-se para a exploração escravista, imposta pelas demandas do processo colonizador, e vão desencadear muitas revoltas por parte das populações indígenas e também outras formas de resistências. Esse período foi marcado por conflitos e constantes resistências por parte das populações autóctones, que começam a ver na presença portuguesa uma ameaça à sua organização social e dos seus padrões tradicionalmente estabelecidos. É nesse sentido que as revoltas indígenas vão aumentar cada vez mais, ganhar proporções amplas e ameaçar desestruturar o sistema colonial. A crise também era acentuada pelas constantes epidemias de varíola que assolavam as populações indígenas2129, especialmente a de 1563 que, segundo os cálculos do padre José de Anchieta, dizimou 30 mil índios no litoral da Bahia em um curto período2130. Nesse contexto de epidemias, os caraíbas usaram a sua oratória persuasiva para associar o batismo cristão à morte, haja vista que nesse período alguns jesuítas ministraram o batismo in extremis2131 a índios muito doentes já à beira da morte. Em certos casos os índios morriam após o batismo, o que levava os caraíbas a enfatizar os malefícios desse sacramento. Na carta do padre Antonio Pires, dirigida aos seus irmãos da Companhia de Jesus, após narrar a morte e sepultamento de um índio que havia sido convertido e recebido o batismo, ele escreve as seguintes palavras: (...) alguns feiticeiros o quiseram estrovar; mas não puderam, e deitaram fama que o santo batismo o matara, não conhecendo que Nosso Senhor lhe fizera mui grande mercê o tirar de ante eles, e o levar a sua Santa Glória, como se deve crer. (...) Mas Satanás que nesta terra tanto reina, ordenou e ensinou aos feiticeiros muitas mentiras e enganos para impedir o bem das almas, dizendo que com a doutrina que lhes ensinávamos trazíamos a morte. E se algum adoecia, diziam-lhe que tinham anzóis no corpo, facas ou tesouras, que lhe causavam aquela dor, e fingiam que lhas tiravam do 2132 corpo com suas feitiçarias .

Como podemos observar a partir desse trecho, a batalha entre caraíbas e jesuítas era constante, e a disputa pelos “fiéis” também é percebida em diferentes âmbitos. O padre José de Anchieta narra com tom de preocupação alguns casos de índios que não queriam ser batizados em virtude dessa associação entre o batismo e a morte2133. Em outra ocasião ele expressa seu profundo descontentamento quanto a influência de um caraíba “ao qual todos veneravam como a um grande santo”, e que tinha a intenção de destruir a Igreja católica2134. Os caraíbas, com sua influência e persuasão, causaram profundo desassossego aos inacianos, que os viam como os seus maiores inimigos no processo de catequização, na medida em que estes criaram com sua mensagem profética e a reformulação de seus rituais uma anticatequese, contrária aos mecanismos de dominação impostos pela colonização cristã. Foram eles um dos elementos atenuantes para a limitação da empreitada jesuítica, tornando-os mais e mais 2128

PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. “Aldeamentos de Salvador no século XVI. Um primeiro esboço”. In: Revista Eletrônica Orbis, Salvador - Bahia, v. 2, 2000. p. 14. Sobre as revoltas indígenas e os movimentos de resistência que desarticulam o sistema colonial, ver também NEVES, Juliana Brainer Barroso. Colonização e resistência no Paraguaçu – Bahia, 1530 – 1678. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia. Recife, 2008. Disponível em http://www.ppgh.ufba.br/spip.php?article211, e SIERING Friedrich Câmara. Conquista e dominação dos povos indígenas: resistência no sertão dos maracás (1650-1701). Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2008. Disponível em http://www.ppgh.ufba.br/spip.php?article208 2129 Sobre o contexto das epidemias, ver melhor em: MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 39, 46. 2130 ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988, pp. 188-189. 2131 O batismo in extremis, é a unção dos enfermos, ou extrema-unção o batismo praticado em doentes, quase sempre estes estão em estado terminal. O sacramento serve como preparação para o momento da morte. 2132 NAVARRO, Azilcueta. Et. ali. Cartas Avulsas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.p. 104. 2133 ANCHIETA, Op. Cit. p. 155-156. 2134 Idem, p. 153.

636 ISSN 2358-4912 operários de uma vinha estéril, na expressão da historiadora Charlotte Castelnau-L’Estolile. O que corroborava para a crise que estava enfrentando a Companhia de Jesus nos primórdios de sua empreitada evangelizadora. No período em que os jesuítas enfrentaram a Santidade e os mamelucos que pregavam contra a catequese passavam por uma crise interna em sua Companhia devido às resistências enfrentadas para conversão do gentio, bem como do conflito com os colonos pelo direito sobre os gentios e da hostilidade por parte do governador Manoel Teles Barreto, que se posicionava a favor dos colonos2135. O conflito entre o governante régio e os jesuítas sinaliza para a bifrontalidade do projeto colonial que se desenvolve em duas linhas de frente – evangelização e exploração – o primeiro incorporando a expansão da fé e o segundo o alargamento das fronteiras bem como o lucro das possessões coloniais. Em algumas ocasiões esses diferentes empreendimentos caminharam juntos. No entanto em determinados contextos, como o qual nos debruçamos, a demanda maior repousava sobre os interesses mercantis, nessa ocorrência os colonos são favorecidos em detrimento dos interesses missionários. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações finais Os jesuítas tiveram um papel fundamental na colonização do Brasil, integraram desde cedo as primeiras expedições em zonas desconhecidas, colaborando decisivamente para a ocupação e povoamento dos territórios coloniais. Na historiografia atual muito se tem escrito sobre as influências desses personagens históricos. Alguns estudos se debruçam sobre a Companhia a partir da atuação dos missionários sobre uma perspectiva intercultural, destacando o seu caráter evangelizador, e outros enfatizam o caráter secular da ordem, dando lugar a uma perspectiva econômica2136. É importante tentar manter um equilíbrio interpretativo levando em conta tanto a atuação quanto a filosofia dos inacianos. Para isso é imprescindível vê-los como homens do seu tempo e situá-los nos contextos históricos específicos em que sua atuação esteve presente, tendo sempre em vista os aspectos mais amplos das suas práticas e princípios norteadores. Sendo assim é importante articular as análises para ampliar o olhar sobre os alcances e limites que o projeto missionário logrou demostrando assim os jogos de interesse e os conflitos que estavam em pauta no contexto colonial e dando lugar a atuação de diferentes personagens, não apenas jesuítas, colonos e mamelucos, mas também indígenas que através da sua ação política deu a colonização cristã seus próprios contornos. Referências Livros e artigos CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Bauru, SP: Edusc, 2006. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 2 v. Edição Fac-símile comemorativa dos 500 anos da descoberta do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. “Aldeamentos de Salvador no século XVI. Um primeiro esboço”. In: Revista Eletrônica Orbis, Salvador - Bahia, v. 2, 2000. SANTOS, Fabricio Lyrio. Te deum Laudamus: A expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-1763). Dissertação de mestrado, Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002. SCHAWRTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Fontes 2135

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Bauru, SP: Edusc, 2006, pp. 123-129. 2136 ASSUNÇÃO, Paulo. Negócios Jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de fé: a Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo: Edusp, 2011.

637 ISSN 2358-4912 ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo nº 17 809. Processo de Francisco Pires, 02/11/1592, fls. 3. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2317796. NAVARRO, Azilcueta. Et ali. Cartas Avulsas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548. Lisboa, AHU, códice 112.

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ISSN 2358-4912

A MORTE E AS DOENÇAS NA FREGUESIA DE SANTO AMARO-SERGIPE (1802-1806)

2137

Jamilly Bispo Laureano

Os sepultamentos marcavam o cotidiano Oitocentista sendo esplendorosos, não se limitavam apenas a elite branca, abarcando também africanos e os seus descendentes. Por outro lado, a condição de vida dos homens, mulheres e crianças no contexto social oitocentista ainda provoca debates entre os historiadores. Um aspecto importante do século XIX é o fato de os locais de sepultamentos passarem por mudanças no decorrer do período citado, as fontes paroquiais são usadas desde a segunda fase de Annales para o estudo da população dentre outros. No entanto, no Brasil o uso dessas fontes foi tardio sobretudo nos estudos referentes a escravidão. Partindo da análise dos registros de óbitos da atual Paróquia de Santo Amaro, pretendemos nos debruçar sobre as doenças que assombraram os primeiros anos do século XIX, entre 1802-1806 a vila. Identificando a condição do falecido, idade, gênero, local do sepultamento, levando em consideração algumas características dos rituais fúnebres entre escravo, forros e livres, assim pretendemos perceber se havia distinções entre os mesmos. Os registros foram quantificados e analisados. Nossa amostra de análise para este texto é de 425 pessoas. A historiografia brasileira com o uso das novas fontes de pesquisa como já citado anteriormente possibilitou se estudar temáticas como a que estamos nós propondo, dentro desta perspectiva, percebemos que o uso dos documentos eclesiásticos não tem como única finalidade registrar os dados de óbitos, mas que nas mãos do historiador e por seu olhar problematizado pode-se questionar as fontes para adquirir as possíveis respostas, a apropriação deste documento como fonte nos permitiu ao logo desta pesquisa traçar um perfil das doenças que assombrou a província de Santo Amaro entre a centúria citada. No livro O historiador e suas fontes (2011) há uma abordagem metodológica muito significativa, no que se refere ao uso de documentos de natureza religiosa assim como os inventários post-mortem, obituários entre outros, enquanto fonte de pesquisa. É indubitável que os historiadores utilizam cada vez mais os documentos, não somente para estudar a vida das classes dominantes, mas sobretudo, direcionam o olhar para os excluídos da história. O cuidado com a saúde sempre foi uma prática natural de sobrevivência e é interessamte frisar que o alto indice de mortes entre escravos gerou uma preocupação entre a população livre, tanto pelos aspectos econômicos como em relação a preservação da própria saúde. Ao longo deste texto, apresentaremos dados analisados nos quais percebemos diversos aspectos dos moradores desta vila. No gráfico abaixo, que mostra a condição dos falecidos na Vila de Santo Amaro entre os anos de 1802-1806 Gráfico 1 - Condição do falecido - Santo Amaro (1802-1806) Forro 2%

N/C 2% Escravo 36%

Livre 60%

]Fonte: Registro de óbitos da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806)

2137

Graduanda do Curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia. Orientado pela Doutora Joceneide Cunha dos Santos, atualmente professora da Universidade do Estado da Bahia- Campus XVIII. (E-mail:[email protected])

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ISSN 2358-4912 Verificamos que o indice de pessoas livres falecidas no período foi de 60% dos casos, o que reflete em algumas características da vila como a vulnerabilidade a algumas enfermidades que devastou boa parte da população livre. Schwartz (1988) traz alguns aspectos da Bahia no fim do século XVIII acentuando que, As condições de insalubridade e a falta de assistência médica afetava um grande segmento da população livre além dos escravizados na Bahia, mas sem dúvidas os cativeiros criavam certas condições especiais de mortalidade. (SCHWARTZ, p.303,1998)

Concluímos que o índice de cativos representa 36% da população que tiveram sua morte registrada e que seus registros sobreviveram ao tempo. Vale ressaltar que a relação senhor escravo ainda desperta várias inquietações. Ângela Pôrto (2006) traz uma rica abordagem acerca das doenças de escravos, considerando que sendo estes em menor número que os livres, representam importante fator na conjuntura social da Vila de Santo Amaro, uma vez que o escravizado significa um investimento. Porto (2006) questiona como os cuidados para preservar a vida útil do cativo variavam de uma região pra a outra, Apesar de constituir-se como mercadoria investida de valor, nem sempre a situação do escravo era percebida como tal. Apesar de a saúde dos escravos ser precondição na fixação do seu valor, soluções baratas adotadas pelos proprietários de escravos, no fornecimento de moradia, alimentos, roupas ou remédios, fizeram proliferar doenças entre eles. (Pôrto, 2006, p.1022).

Para tanto é necessário explorar a relação de saúde que envolvia não apenas os cativos mas toda a população da região, no gráfico 2 trataremos de enfermidades mais recorrentes entre os escravizados desta região. O falecimento dos escravizados traz algumas complicações na conjuntura social escravista, porquanto o senhor é quem arca com os gastos de grande parte dos sepultamentos dentro dos rituais da igreja católica que requer um investimento. Observamos também que 2% dos registros corresponde aos libertos, o que nos leva a questionar como se dava a segurança financeira dos forros dentro do sistema social da respectiva vila, que correspondia a uma minoria. Com as informações extraidadas da leitura destes documentos foi possivel perceber a vulnerabilidade das crianças neste período, o segundo aspecto que analisaremos são as idades associadas ao gênero, na tabela 1. Tabela 1. Faixa etária dos homens e mulheres falecidos Santo Amaro (1802-1806) Mulher

Homem

N/C

Total

%

Idade até 1 ano

7 34

23 32

6 2

36 68

9% 16%

Idade até 8 anos Idade até 16 anos Idade até 40 anos Maiores de 40 anos

21 5 13 18

36 12 22 15

3 0 0 0

60 17 35 33

14% 4% 8% 8%

N/C

31

23

7

57

13%

Anjo

0

0

21

21

5%

Inocente

27

43

20

90

21%

Adulto

1

5

1

7

2%

0

1

0

1

0%

Idade de até um mês

Moço

Fonte: Registros de óbito da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806)

640 ISSN 2358-4912 As idades mais críticas eram do nascimento até os 8 anos de idade. Constam que 36 crianças com idade até um mês chegaram a óbito, dentre elas 7 meninas e 23 meninos e 6 que não constava o sexo. Seguidos pelos de idade de até 1 ano, faleceram 68 crianças, dentre elas 34 meninas e 32 meninos e 2 que não constava o sexo. Com idade até 8 anos foram regitados 60 casos, dentre eles 21 de meninas, 36 de meninos e 3 que também não constava o gênero.Estes aspectos ajudam a compreender os fatos mais recorrentes da condição de vida, tanto dos escravos como dos libertos e livres. Outra informação obtida a partir da leitura deste documentos, está vinculada ao falecimento de 21 crianças, que constam nos registros como Anjos e outras 90 como inocentes. Com estas informações extraidadas da leitura destes documentos foi possivel perceber que a vulnerabilidade das crianças neste período. Após os oito anos, a outra fase que os homens e mulheres escravizados faleciam era após 40 (quarenta anos), momento considerado como o de velhice no período, sobretudo os homens. Parcela razoavel de mulheres morriam antes de completar os quarenta anos, em decorrencia a problemas de partos. Ressalto que o parto era sempre um momento crítico dos 3 casos registrados 2 se refere a mulhres livres e 1 é a Domingas escrava, assim o parto era um problema para todas as mulheres independente da condição juridica.

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Gráfico 2 - Doenças dos Sepultados - Santo Amaro (1802-1806) Estopo

Extirpação nas Tripas

Fadigas

Febres

Ferido

0% Lombriga

Magra

Morrer de terra

Morte súbita

Nécio

Nira doce

Nira inxarpada

Parto

1% Quebradura

Sellis

Tísica

Tose

1%

Gota

Guinar

Hidropisia 0%

Mal de 7 dias

Maligna

0% incógnita 1% Moléstia

N/C

1%morto Nasceu

Opilação

Param

Sessões

Sinais

Uma dor

0% Sutemporação

Uma facada

Velho

0%

0%

0% 1%

0% 0%

2%

2%

Vomito

1%

2%

0% 0%

3% 3%

4%

0%

4%

0% 0%

0%

13%

0%

0% 1% 58%

0%

Fonte: Registro de óbitos da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806)

Ao se analisar as doenças mais recorrentes que levavam a óbito neste perído pode-se perceber que as condições de higiene tiveram forte ligação com a alta taxa de mortalidade principalmente entre os recém-nascidos que como já citado anterioermente o nascimento era um momento de tensão. Vale levar em consideração neste momento que não estamos trabalhando com a concepção de higiene que se tem hoje, pois o que pretendemos compreender trata-se do cenários social do século XIX, compreendedo que as informações ainda eram muito escassas. Como pode ser observado no gráfico 1.2 dos 425 casos estudados neste trabalho 3% das crianças analisadas foram levadas a óbito devido uma doênça denominada Tétrano Neonatal seus sintomas é o Tétano umbilical ou como ficou conhecida popularmente no século XIX, Mal dos Sete dias, muitos mitos rondavam os primeiros dias de um recém nascido, onde o bebê não poderia sequer sair de casa para não pegar o mal-de-sete-dias. Não se deve porem atribuir os problemas de ingienização apenas aos escravizados, pois apartir dos dados adquiridos foi possivel perceber dos 14 casos de crianças que falesceram dedivo o Mal dos Sete dias 10 tratava-se de crianças livres e 4 de escravizadas. É interessante frisar que não se tratava de uma doença contagiosa, mas sim de uma enfermidade infecciosa que se dava devido à falta de cuidados no decorrer do parto.

641 ISSN 2358-4912 O Mal dos Sete dias por ter uma origem infecciosa dificultou ainda mais que os médicos evidenciaevidencia se sua origem, uma vez que a contaminação se dava durante a manipulação do cordão umbilical ou dos cuidados impróprios no momento do corte umbilical, fazendo uso de ferramentas não esterelizadas, estere o uso de substâncias ou instrumentos contaminados com esporos2138 nos primeiros dias de vida a criança estava completamente vulnerável a infecção se dava independente do sexo que nascesse. Dentro deste período muitos foram os estudos voltados na tentativa tativa desvendar este mistério porém o tratamento foi descoberto apenas na centuria seguinte. Dentre as doenças que dizimaram boa parte da população no século XIX, uma das moléstia que atingiu 13% da população analisada foi a Maligna, epidêmica que atingiu atingiu de forma devastadora a população. Muitos estudos carregam a idéia de que foi com a chegada dos escravos africanos também chegaram algumas enfermidades dentre elas, a Varíola popularmente conhecida como Maligna. Essa era a maneira que os tupis chamavam a doença, que matou parte da população brasileira e assustou parte da população mundial, pois se tratava de uma enfermidade mundial que teve origem na Índia. A doença se espalhou pelo mundo no período de colonização,se tornando uma arma favorável para os colonizadores onizadores que viam aí a oportunidade de diminuir os povos que já habitavam no território a ser dominado e que se encontravam completamente vulneráveis a contaminação, segundo estudos levantandos sobre o caso V Encontro Internacional nal de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao a XIX)

A primeira epidemia de varíola no brasil começou começou em 1563,na Ilha de Itaparica, na Bahia, e chegou até São Paulo, matando pelo menos 30 mil índios [...]A forma mais branda da doença logo se espalhou pelo mundo, tornando-se tornando se endêmica em várias partes da África, nos Estados Unidos e no Brasil2139.

Nos estágios gios mais graves os enfermos apresentavam hemorragias na pele e nas mucosas, falecendo entre o quinto e o sexto dia, quando não levado a óbito, geralmente deixava cicatrizes na pele, especialmente na face, outra decorrência mais rara eram cegueira e deformidades deformidades nos membros. Esta era uma doença que espalhava o medo dentro deste contexto social, as idades atingidas variavam tanto entre crianças, jovens e velhos que estavam vulneráveis a esta enfermidade, o que fica evidente nesta pesquisa é o balanceamento dee gênero tendo 23 casos de mulheres e 26 de homens, apenas 1 dos casos não costa o gênero, apenas 44 dos casos conta a condição jurídica do falecido, sendo 21 casados, 14 solteiros eiros e 9 viúvos. Nos gráficos 3 e 4 visamos identificar a enfermidade que mais assombrou a a população da Vila de Santo Amaro, analisados a parti dos documentos obtidos. Gráfico 3 - Malígna principal, doênça apontada - Santo Amaro (1802-1806) (1802

22% escravos livres 78%

Fonte: Registro de óbitos da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806) (1802 1806)

A Maligna se proliferou de forma rápida por ser uma doença contagiosa, a população escrava e liberta por conta das difíceis condições de vida sofreram drasticamente se alastrando rapidamente em lugares úmidos e em ambientes que não possuíam condições sanitárias adequadas, entretanto entretant não era uma característica exclusivamente desta parcela da população, pois grande parte dos dados catalogados consta que dos 50 casos registrados 78% tratava da população livre, tenho 22% de 2138

Esporos,, em Biologia, são as unidades de reprodução, entendendo não só as plantas verdes, mas também nas algas, os musgos e fungos, são encontrados encontrados no solo contaminado por fezes, na pele, na poeira, em espinhos de arbustos e pequenos galhos de árvores, em pregos enferrujados e em instrumentos de trabalho não esterilizados. 2139 http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf cms.saude.gov.br/revolta/pdf/M5.pdf.

642 ISSN 2358-4912 escravizados o que nós leva um ponto importante, visto que por ser tratar de uma doença epidêmica possibilita algumas hipóteses, , vale destacar que assim como acentuado no gráfico 1.1, a proposição pessoas livres que faleceram era superior ao de escravizados, se tratando de doenças epidêmicas ou de outras enfermidades. Em primeiro plano não é inadequado cogitar que havia um cuidado por parte de seus senhores, pois de acordo com os dados encontrados nos atestados de óbitos não revelam um contingente muito grande de escravos de um mesmo senhor que tenha morrido por conta da Maligna, mesmo se tratando de uma doença fortemente contagiosa, isso mostra que havia sim o cuidado dos senhores de escravos em separá-los para que a contaminação não fosse ainda maior, cabe frisar que a saúde dos cativos interessava aos senhores escravistas, uma vez que ter um cativo não era um simples artigo de luxo tratava-se um investimento muito caro, e uma morte em massa de seus cativos poderia gerar grandes problemas econômicos para os grandes ou pequenos proprietários de escravos. Ângela Porto (2006) estudou a saúde dos escravos no Brasil no século XIX. A autora aponta alguns dos mitos sobre a relação senhor e cativo relacionando a saúde. Ela cita os manuais de Jean-Baptiste Imbert (1834), Carlos Augusto Taunay (1839) e Antônio Caetano da Fonseca (1863), o objetivo desses autores era em “ensinar” aos senhores de escravos a tratar de aspectos gerais da saúde de seus cativos. Em segundo plano temos um análise muito importante, levando em consideração que ao longo do tempo com conhecimentos próprios os escravizados tenham também desenvolvido práticas medicinais para cuidar da doença. Uma enfermidade característica da população escrava no período foi a Inchação também encontrada pelo nome de opilação ou doença no sangue, uma pequena parcela dos dados obtidos contata que dos 17 casos apenas: 2 pessoas eram livres e 1 não conta a condição, destacando que esta doença se proliferou de forma mais devastadora no grupo masculino, foi um grande desafio por muito tempo, gerando grande problema e se disseminou fortemente entre os escravos devido a uma alimentação precária e muitas vezes inadequada, seus sintomas estão ligado a debilidade física, cansaço, esta doença está fortemente ligada aos fatores climáticos no Brasil, foi a partir de um médico brasileiro que se tornou possível a compreensão desta enfermidade “foi José da Cruz Jobim que a definiu como resultado da ação deletéria do clima tropical sobre o sangue”.(FERREIRA,1996, p.11). Considerando que o público atingido por esta doença está fortemente ligado ao esforço físico e a hábitos alimentares impróprios, pois tratava-se de uma doença no sangue que causava uma Anemia profunda seus sintomas apareciam de forma devastadora “a pele do rosto adquiria uma cor semelhante à cera amarela, nestas condições até os pretos ficavam fulos” (MAGALHÃES,2004, p.132) Neste clima de incertezas que foi o século XIX, o contexto social entre escravos e libertos estavam sempre expostos a doenças também ligadas a problemas respiratórios, pulmonares, foram diagnosticados casos de Tuberculose conhecida popularmente no período como Tísica 2% e por muitos conhecida como o “Mal do século” ese trata de uma doença contagiosa,seu maior risco envolvia lugares fechados. Seu diagnostico pode ser confundido com os sintomas de uma gripe, embora se trate de uma doença fortemente contagiosa.Foram poucos os casos relatados no livro de óbito estudado. A preocupação com a saúde também assustava toda a sociedade sem distinção de qual condição ocupa, uma vez que a vulnerabilidade rondava o século XIX, a falta de conhecimento resultou em várias vítimas, o surgimento de novas doenças que até então a medicina desconhecia acabou acarretando em um grande número de mortes. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

643

ISSN 2358-4912 Grafico 4 - Local do Sepultamento - Santo Amaro (1802-1806) 0%

0%

1% 0% 1% 5%

0%

1% 0%

15%

27%

1% 24%

5% 18% 0%

n/c Capela da Papulha Capela de Nossa Senhora Capela de Nossa Senhora do Carmo Capela de Nsa Sra da Conceição Capela de Nsa. Sra. de Nazareth do Catete Capela de Nsa. Sra. do Rosário Capela de S. Amaro de Maruim de Sima Capela de Santa Anna Capela N. Sª. da Boa Hora Matriz Matriz de Santo Amaro das Gotas N.S.do Amaro N.S.do Amorin Nossa Senhora do Rosário do Tete Santa Anna do Sacramento

Fonte: Registro de óbitos da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806)

Como pode ser observado no gráfico 4, os homens e mulheres escravizados, forros e livres foram enterrados em várias igrejas na Vila de Santo Amaro, Capela de Nossa Senhora do Rosario, Capela de Nossa Senhora da Conceição, Capela de Nossa Senhora da Boa Hora,Capela de Nossa Senhora do Amparo. Vale frisar que a Capela de Santa Ana, Nossa Senhora da Boa Hora e da Conceição ficavam em Engenhos, propriedades particulares, ambas tiveram uam porcentagem significativa de sepultamentos, na Capela de Nossa Senhora da Conceição o que foi possivel perceber com base nos dados obtidos um maior número de escravizados, ecentuando a repetição de senhores que realizam o ritual de sepultamenato nesta capela a exemplo do capitão Capmor. Fillippe Luis de Faro, que sepultou 6 cativos falecidos ainda muito jovens, este não foi apenas um caso insolado D.Maria Rosa também sepultou 5 de seus cativos na mesma capela. Em seus estudos Joceneide Cunha (2014) pontual que segundo as normas que constavam nas Constituições referentes as práticas de sepultamentos que envolvia escravizados os senhores tinham como obrigação custear o enterros de seus cativos, não se teve porém atribuir que todos os senhores respeitavam esta designação pagando os enterros e mandando rezar as missas pelas almas dos escravizados falecidos, assim como foi observado no gráfico 1.1 os documentos aqui analisados acentua que a participação de pessoas livres era significativamente superior ao de escravizados. A matriz sede da Freguesia 26% e a Capela do Rosários ob 24% foram as preferidas, nesse período os cemiterios não eram tão frequentes na Provincia de Sergipe, e por isso as pessoas eram enterradas no interior das Capelas. Através desta investigação foi possivel perceber a variação de hábitos utlizados, roxo, azul, amarelo, preto e branco, utilizados no momento do ritual de seputamentos na buscava de proteção divida, segundo Morais e Pinheiro (2011) A presença de mortalhas informa a devoção do testador, a cor representa a escolha por um santo em particular (...) Segundo João José Reis (1991), várias são as cores utilizadas, na Bahia do século XIX o hábito de São Francisco era um dos mais usados assim como de Nossa Senhora e as cores branca e preta (...) O branco representa a paz e a estada para o outro mundo e a mortalha o preto caracteriza mais a cor da morte.

Dentro desta prespectiva foi possivel perceber através da documentação que a mortalha mais utilizada no ritual fumebre foi o branco, tendo uma sgnificativa distinção entre, escravos, forros e livres assim como podemos observar na tabela seguinte, sendo majoritariamente utilizado por pessoas livres, em específico por homens.

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ISSN 2358-4912 Tabela 2 - A utilização do hábito branco - Santo Amaro (1802-1806) Escravo Mulher Homem N/C Total

Livre Forro

21

30

8

59

76

104

19

199

4

1

0

5

Fonte: Registros de óbito da Paróquia de Santo Amaro (1802-1806)

Joceneide Cunha (2014) faz aulgumas reflexões referente a utilização do hábito branco ecentuando que são várias as explicações para o uso da mortalha branca ode ter diversas explicações, “o branco era fúnebre para o mundo cristão também, simbolizaria a ressurreição de Cristo e foi a cor usada para envolvê-lo. O branco também estava associado à pureza, mulheres ainda não casadas talvez fossem mais obrigadas a usar essa mortalha”. Através destes dados adquiridos é possível perceber a preocupação com a morte na vila de Santo Amaro entre 1802-1806, não é inadequado cogita que os proprietários de escravos que custeava o ritual de sepultamento de seus cativos tinha ligação cristã, como por exemplo Luiz Correa Dantas que sepultou 4 de seus escravos envoltos em hábito branco. Em suma, havia diferenças nas condições de vida entre as livres e escravizadas, ecentuando que os primeiros dias de vida era extretamente tenso na sociendade o que acarretou em um alto número de crianças que faleciam com até oito dias de nascidas. Pode se perceber a proliferação destas doenças, tidas como nacionais, mas que como já foi exposto no texto, muitas destas doenças chegou ao Brasil durante o período de colonização. Ressalto que a pesquisa ainda está em andamento. Referências http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/srh/article/view/13985/7865 Acesso 29.07.2014, às 15h:00min. http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=4948&Itemid=3 58 -29.07.2014, às 13h:05min Lott, Mirian Moura. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. VII Simpósio da Associação Brasileira de História das Religiões/ Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte – MG. 2005. MORAIS, Marluce Lima de, PINHEIRO, Áurea da Paz. A morte e o morrer: práticas fúnebres em Teresina 1856-1899. II Simpósio de história do Maranhão oitocentista/ Universidade Estadual do Maranhão- UFMA.2011.Disponível em http://www.outrostempos.uema.br/anais/pdf/morais2.pdf. Acesso 22/07/2014, às 16h:30min. PINSKY,Carla Bassanezi.LUCA,Tania Regina (orgs.). O historiador e suas fontes. – 1. Ed., 1ª reimpressão. – São Paulo, 2011. Pôrto, Ângela:O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças,instituições e práticas terapêuticas.v.13,n.4,p.1019-27,out,-dez.2006. REIS, João J. A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SANTOS,Joceneide Cunda dos, 2014. “Em publicação”. A hora derradeira de Homens e mulheres africanos e seus descendentes: alguns apontamentos sobre os óbitos, Santo Amaro, Sergipe, 1802-1835.Instituto histórico e geográfico de Sergipe. Editor da RIHGSE. Schwartz,Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550 1835: Companhia das Letras, 1988.

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A ARTE DA CANTARIA ENTRE PORTUGAL E SERGIPE: O CASO DA IGREJA JESUÍTA DO ENGENHO RETIRO (SÉCULO XVIII) Janaina Cardoso de Mello2140 Introdução A Companhia de Jesus, fundada no século XVI por Inácio de Loyola, proporcionou o fortalecimento da Igreja no difícil período da Reforma Protestante desempenhando um trabalho efetivo na manutenção da fé católica, e constituindo-se portanto num braço firme da contrarreforma. Na primazia de seus objetivos estava a busca pela conversão do “outro”, o que consagrou sua atividade missionária na Ásia, África e no Novo Mundo. Na América Portuguesa a tradição jesuíta remonta à Bahia de Todos os Santos, na segunda metade do século XVI, quando “(...) chegaram em 1549 com Tomé de Souza, primeiro governador-geral, e mantiveram uma sólida e próspera atuação em torno do Real Colégio das Artes, no Terreiro de Jesus” (SANTOS, F. L., 2007, p. 27). O vínculo entre a Ordem dos Jesuítas e a Administração Colonial na América Portuguesa é traduzido na obra Cultura e Opulência no Brasil de André João Antonil, um italiano nascido na Toscana e ingressante na Companhia de Jesus em 1667, que veio como visitador de sua ordem para o Brasil junto com o Padre Antônio Vieira. Os escritos de Antonil2141, cuja primeira edição foi publicada em 1711 na cidade de Lisboa, expõem não apenas a descrição da vida ao sul dos Trópicos, mas, sobretudo, suas ideias à respeito de como os proprietários de Engenhos deveriam proceder na condução de suas posses, na escolha das terras e manejo da agricultura canavieira, além de aconselhar também sobre as plantações de tabaco, as minas de ouro e a obrigação de pagar a El-Rei os impostos, a criação do gado e custos do couro no trânsito entre o porto do Brasil e a alfândega de Lisboa (ANTONIL, 1976). Em Sergipe, a presença dos jesuítas aparece na historiografia desde o início da sua colonização em 1590, quando “cedo vieram os jesuítas desdobrar a atividade de sua política em Sergipe [...] sob o duplo caráter de sacerdote e agricultor, assumem a direção espiritual da capitania e pedem também doações de terra...” (FREIRE, 1977, p. 94). Assim, como na Bahia, o trabalho dos jesuítas em Sergipe auxiliou na colonização ao ocupar-se da manutenção da fé e da catequese dos índios. A subsistência da companhia era provida pelos engenhos e propriedades estabelecidos nas sesmarias concedidas pelo Rei de Portugal. Figura 1: Mapa da hidrografia e dos aldeamentos em Sergipe.

Fonte: SANTANA, 2004, p.32. 2140

Doutora em História Social (PPGHIS-UFRJ); Pós-Doutoranda em Estudos Culturais (PACC-UFRJ); Professora Adjunta da Graduação em Museologia e dos Mestrados em História PROHIS-UFS e PPGH-UFAL. Email: [email protected]. 2141 Que viria exercer o cargo de Reitor do Colégio dos Jesuítas e o de Provincial no Brasil.

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ISSN 2358-4912 O mapa acima (figura 1) traz um mapeamento dos aldeamentos indígenas ao longo da hidrografia sergipana. Destacam-se sete aldeamentos dentre os quais: Jacaré, São Pedro do Porto da Folha, Pacatuba, Japaratuba, Aracaju, Água Azeda e Geru. Segundo as pesquisas da historiadora Ane Luíse Silva Mecenas Santos: Dentre as diversas áreas de ocupação dos jesuítas, na Capitania de Sergipe Del Rey, está a missão de Geru. A aldeia kiriri nas proximidades do Rio Real passou a ser comandada pelos interesses de catequese da Companhia de Jesus, o que só foi possível após anos de divergências com “a gente da Torre”. Em janeiro de 1683 foi lavrado um recibo de compra e venda de um sitio chamado Ilha. Os carmelitas, antigos proprietários, venderam para os jesuítas as terras na proximidade do Rio Real. O sitio mudou de nome e passou a ser chamado de Geru. Os inacianos permaneceram na localidade até 1758, quando, por determinação do Alvará de 8 de maio daquele ano, ocorreu a elevação dos aldeamentos a condição de vila. Durante o período da ocupação jesuítica na Missão do Geru, os padres desempenharam as atividades de catequese e estudaram a forma de comunicação com os índios Kiriri (SANTOS, 2012, p.4658-4659).

Mas o que será de fato ressaltado nesse artigo é a dedicação jesuíta nas construções religiosas sob seu comando, recorrendo à escultura em pedra para a propagação dos costumes culturais, religiosos e pedagógicos lusitanos em terras brasileiras. Algo muito recorrente na Bahia, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Sergipe Del Rey setecentista. Em Portugal, a tradição da arquitetura que se utilizou de rochas para a ornamentação arquitetônica foi desenvolvida há mais de oito séculos, sendo empreendida principalmente em edifícios, igrejas e monumentos da região de Lisboa, sendo recorrente a arte da cantaria em calcários de Pêro Pinheiro (CARVALHO, 2012). As produções artísticas voltadas para as edificações nos espaços coloniais da América conferem ênfase à técnica da cantaria, cuja utilização em escultura expandiu-se á partir do século XV em Portugal e na Espanha, chegando em Sergipe no início do século XVIII, com a primeira edificação jesuíta, a Igreja do Engenho Retiro na cidade de Laranjeiras. Destaca-se nesse trabalho, além do contexto histórico e artístico no uso das cantarias como um discurso imagético pedagógico propagador das ideologias religiosas jesuítas, também o desenvolvimento dos ofícios mecânicos do século XVIII na formação das identidades locais. Arquitetura Jesuíta em Sergipe Del Rey: a arte da cantaria em pedra calcária. Os Jesuítas foram responsáveis pelo desenvolvimento arquitetônico na América Portuguesa, impulsionando várias construções personificadas em colégios, igrejas e povoados, por meio de missões e reduções utilizadas na Conquista Espiritual dos povos nativos (CUSTÓDIO, 2013, p.4). O estabelecimento da Companhia de Jesus na região da Cotinguiba – em Sergipe Del Rey –, em 1701, situou-se no curso esquerdo do riacho São Pedro, na Povoação de Laranjeiras onde construíram a sua primeira residência, denominada “Retiro”. Para Philadelpho Jonathas de Oliveira (1981) essa residência concentraria as operações dos jesuítas no Vale do Cotinguiba, pois o privilégio topográfico e o isolamento da área permitiam sua reclusão e seu retiro espiritual. Loureiro (s.d) afirma ter sido o Engenho Retiro a primeira habitação jesuíta na Cotinguiba em fins do século XVII ressaltando que “a casa-grande e sua capela têm construção datada de 1701”. O estilo barroco está presente na residência e na capela do Retiro, havendo algumas alterações e reformas na torre da capela ainda no século XIX (LOUREIRO, s.d, p. 29).

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ISSN 2358-4912 Figura 2: Casa do Retiro, primeira residência dos jesuítas, Laranjeiras, Sergipe

Fonte: Fotografia Ronaldo Alves (2012)

No alto da colina está a Capela de Santo Antônio e Nossa Senhora das Neves sob um alicerce de pedras, com três portas dianteiras, mas somente a porta central tendo acesso à nave e ao altar-mor. Possui duas torres sineiras que serviam também como ponto de observação (vigilância e controle) e cinco janelas retangulares acima da portada com acesso ao Coro. A cúpula é encimada por ornamentações circulares. No frontão existem ondulações e volutas com um óculo circular ao centro (SANTOS, 2014). Figura 3: Frontispício em pedra calcária, datado de 1701, Casa do Retiro, Laranjeiras, Sergipe.

Fonte: Fotografia Ronaldo Alves (2012)

Sobre a portada da casa há moldura em cantaria entalhada em pedra calcária com formas curvilíneas. A porta de madeira cor verde oliva se apresenta esculpida com réguas verticais preenchidas por círculos. Quanto ao portal em pedra calcária, o arquiteto Lúcio Costa o elegeu como objeto de análise, ressaltando a “decoração classicista que vamos encontrar em outras portadas jesuíticas, como, por exemplo, na bela cercadura de pedra do chamado Engenho Retiro, em Sergipe” (COSTA, 2010, p.151).

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ISSN 2358-4912 Figura 4: Portal decorado da Casa do Retiro

Fonte: COSTA, 2010, p.182.

A técnica da cantaria aplicada na arquitetura colonial buscava lavrar a rocha rija e grande em formas geométricas ou figurativas para aplicação em construções, com finalidade ornamental e/ou estrutural. No que tange às representações, Roger Chartier (1990), as compreende como o modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é construída. Desse modo, as cantarias arquitetônicas jesuítas são representações de uma visão de mundo com códigos, padrões e sentidos compartilhados e determinados por relações de poder e conflitos de interesses de distintos grupos sociais. Figura 5: Detalhes do portal decorado da Casa do Retiro

Fonte: Fotografia Ronaldo Alves (2012)

Em meados do século XVI a técnica da cantaria2142 chegou ao Brasil. Tomé de Souza – primeiro governador geral da colônia – trouxe consigo em 1549 o mestre da pedraria Luís Dias. O hábito da importação de cantarias em calcário Lioz, oriundas de Portugal, foi amplamente substituído pela confecção in loco e, mesmo influenciada pelos estilos europeus, a arquitetura passou a utilizar-se da matéria-prima local, tendo que se adaptar às diferentes texturas e dificuldades do uso da técnica de entalhar relevos e contornos em pedrarias do território brasílico (VILLELA, 2003). A arte da cantaria, do trabalho em pedra talhada e esquadrinhada para a construção, no Brasil, foi responsável por uma importante produção na arquitetura colonial. Suas técnicas construtivas nesse período têm características próprias que influenciam no aspecto geral das obras (LEAL, 2009,

p.1). A adaptação aos elementos construtivos locais é apontada como outro exemplo de arquitetura jesuíta na Casa do “Engenho Colégio”, sobre a qual Lúcio Costa afirma: Importa, ainda, chamarmos atenção aqui para a interessante casa de residência dos padres no antigo engenho hoje denominado do Colégio, em Sergipe, que, pelas particularidades do seu estilo, é 2142

A palavra cantaria, no âmbito da arquitetura, tem sua etimologia originada do latim “canthus” com o significado de “aresta”. Há autores que remetem o significado à época pré-romana quando designava “pedra grande”, ou pedra aparelhada para formar o ângulo de uma construção. Disponível em: http://www.cecibr.org/ceci/br/pesquisa/estudos/oficios-tradicionais/cantaria.html, Acesso em: 20/10/2013.

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ISSN 2358-4912 exemplar talvez único no país e, por esse motivo, está sendo estudada pela Seção Técnica do SPHAN, juntamente com a arquitetura civil (fig. 32). Estudo em que se analisa também a parte que coube, de fato, aos jesuítas, não propriamente na criação de uma nova técnica ou de soluções novas, mas na divulgação pelo interior do país, através dos seus colégios e aldeias, das soluções e das técnicas de uso corrente, apreendidas primeiro por eles do próprio elemento civil e ajustadas, depois, às necessidades particulares do seu programa, também em grande parte residencial. (COSTA,

2010, p.151) As formas e os símbolos em relevo adquirem sobremaneira importância na transmissão da mensagem religiosa atrelada aos aspectos naturais da flora brasileira. Entre flores, folhagens e frutos, anjos sopram a deidade gravada na pedra calcária, por isso “o risco ou desenho em escala natural das peças de cantaria tem um papel fundamental no processo de elaboração e execução, ou seja, na passagem do plano para a forma final das obras de pedra” (LEAL, 2009, p.3). Para Pierre Bourdieu (1998), o poder simbólico “tende a estabelecer uma ordem gnoseológica, ou seja, um sentido imediato do mundo social”, constituindo a religião um sistema de integração da sociedade visando uma afirmação identitária permeada por “formas simbólicas” enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação. Logo, as cantarias refletem essa perspectiva simbólicoreligiosa das formas arquitetônicas jesuítas. A questão técnica era especialmente relevante para o desenvolvimento arquitetônico setecentista e oitocentista no uso da arte da cantaria em Sergipe Del Rey, pois o manuseio das pedras (o ato de esculpir em pedra e seu encaixe nas estruturas edificadas) requeria cuidado e especialização. Ressaltase a procedência dos escultores ser advinda de Portugal ou da Bahia e a “necessidade de prever com antecedência o corte, colocação e disposição das peças para formar uma construção coerente e estruturada que passa necessária por diferentes instancias de riscos, desenhos e projeções” (LEAL, 2009, p.4). Desse modo, o estudo das cantarias sergipanas requer um maior aprofundamento de pesquisas e análise simbólica, mas à priori conduz o olhar sobre o patrimônio cultural religioso na região do Cotinguiba para particularidades arquitetônicas ainda inexploradas quer por historiadores, quer por arquitetos. Referências ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1976. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. CARVALHO, Jorge M. F. Rochas ornamentais portuguesas. Tróia: LNEG, 2012. CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Missões Jesuíticas: Arquitetura e Urbanismo In: Caderno de História, nº 21. Memorial do Rio Grande do Sul. Disponível em: Acesso em 23 jan. 2013. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2ª.ed. Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1977. LEAL, Daniela Viana. A produção arquitetônica nas fábricas de cantaria. In: Anais Eletrônicos do V Encontro de História da Arte. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009. pp.1-8. LOUREIRO, Kátia Afonso Silva. Arquitetura sergipana do açúcar. Aracaju: Universidade Tiradentes, s.d. OLIVEIRA, Philadelpho Jonathas de. História de Laranjeiras: registros dos fatos históricos de Laranjeiras. 2ª ed. Aracaju: Subsecretaria de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura de Sergipe; Segrase, 1981. SANTANA, Pedro Abelardo de. Aldeamentos indígenas em Sergipe Colonial: subsídios para a investigação de Arqueologia Histórica. Dissertação (Mestrado em Geografia). São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2004. 116p. COSTA, Lúcio. A Arquitetura dos Jesuítas no Brasil. ARS, Ano 7, Nº 16, São Paulo, 2010. p. 126-197. SANTOS, Ane Luíse Silva Mecenas.. Palavras para conhecer e converter: os escritos do Padre Mamiani utilizados na catequese dos índios. Anais Eletrônicos IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2012. p.4653-4666.

650 ISSN 2358-4912 SANTOS, Fabrício Lyrio. A presença jesuíta no Recôncavo da Bahia. Revista do Centro de Artes, Humanidades e Letras. Vol. 1 (1), 2007, p. 24-27. Disponível no endereço eletrônico: (Acesso em: 21 de outubro de 2010). SANTOS, Ronaldo José Ferreira Alves. Espaço e paisagem jesuítica: perspectivas de análises arqueológicas em Laranjeiras/SE. Dissertação de Mestrado em Arqueologia. Laranjeiras-SE: PROARQ-UFS, 2014. VILLELA, Clarisse M. Artes e ofícios. A cantaria mineira. In: Vitruvius, 041.03 ano 04, out, 2003. Disponível: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.041/646, Acesso em: 10/11/2013.

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BURLANDO AS REGRAS: A FORMAÇÃO DE UMA ELITE PARDA NO ESPAÇO COLONIAL PERNAMBUCANO (XVIII) Janaína Santos Bezerra2143 A abordagem que se segue é uma síntese de um projeto mais amplo de doutorado que vem sendo desenvolvida desde o ano de 2011 na Universidade Federal de Pernambuco. O objetivo consiste em discutir a formação de uma elite parda no espaço urbano colonial pernambucano no século XVIII. Como ponto de partida da abordagem, problematizamos os diversos processos de mobilidade social ascendente, vivenciada por sujeitos mestiços. Aqui constatamos que a mesma não se deu apenas através de acúmulo de bens, mas também, através de laços de parentesco, concessão de mercê, relações políticas e, sobretudo, inserções em redes de sociabilidade. Nossa hipótese é que alguns indivíduos pardos fizeram parte da elite colonial pernambucana. Ao ocupar cargos administrativos criaram e mantiveram poderosas redes de relações de poder. A preservação dos mestiços como sujeitos periféricos, pode ter sido a base da relutância da Coroa em aprovar a indicação de pessoas nascidas no Brasil para a ocupação de altos cargos públicos. A Coroa estava resoluta em proibir que pessoas de "sangue impuro", tanto os descendentes de negros, quanto os chamados cristãos novos, detivessem cargos em qualquer nível da administração. Os cargos administrativos eram ocupados por pessoas de origem ou descendência europeia, tidas como sendo o centro da sociedade brasileira, mesmo que se constituindo em uma minoria demográfica ao longo de todo o período colonial. Senhores de engenho e comerciantes, em diferentes períodos e em diferentes lugares, formaram grupos centrais2144. Por outro lado, temos que considerar que a sociedade colonial, como um sistema de normas, estava impregnada de incoerências. “Fenômeno que permite aos sujeitos atuarem e se valerem dessas incoerências para assim engendrarem suas estratégias de vida e com isso produzirem a sua história como processo generativo”2145. A distinção por cor no espaço colonial pernambucano gerou constantes conflitos. Era corriqueiro o envio de requerimentos de sujeitos pardos que solicitavam providências junto à Coroa, em meio a frequentes restrições. Foi assim que se processou com o pardo Paulo Coelho, no ano de 1754. O mesmo suplicou a D. José I provisão para que sua cor parda não lhe servisse de impedimento para exercer qualquer função pública em qualquer parte do Brasil2146. Paulo residia em Pernambuco e exercia o ofício de escrivão público do judicial há mais de vinte anos. O mesmo executava muito bem o seu ofício, sendo frequentemente procurado por outros escrivães para tirar dúvidas provenientes do próprio ofício. Agradando a todos sem distinção. Por seu bom serviço desempenhado no espaço colonial pernambucano foi nomeado para servir de inquiridor, contador, e distribudor nos impedimentos de José de Araújo Viana. Diante de tal fato, o pardo Paulo solicitou provisão junto a Coroa, solicitando que o seu “acidente da cor parda” não fosse tomada como impedimento na ocupação de qualquer ofício da república. Paulo se mostrou um fiel vassalo do rei, além de ocupar cargo da república também servia as tropas militares ocupando o cargo de capitão na infantaria de Ordenança. Ao ocupar tal patente, Paulo seguia os mesmos passos do seu pai, o sargento-mor Paulo Coelho, que serviu as tropas pardas em Pernambuco2147. Era notória a mobilidade social no espaço colonial pernambucano, assim como era visível às restrições contra tal mobilidade ascendente. Um exemplo a ser citado é o do Procurador da Coroa, Antônio Ferreira de Castro, que passou por um constrangimento ao tomar posse do cargo em Pernambuco de Procurador da Coroa, diante da recusa feita pelo governador, Duarte Sodré Pereira, 2143

Doutoranda da Universidade Federal de Pernambuco. Email:[email protected] VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p.501. 2145 FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócio no Império Português, séculos XVI –XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.p.15 2146 AHU_ACL_CU_015, cx.76. D.6377 2147 AHU_ACL_CU_015, cx.76. D.6377 2144

652 ISSN 2358-4912 por ser pardo2148. Outro exemplo foi o de Francisco Gonçalves Reis Lisboa, homem pardo, Oficial mor da Secretaria de Governo da capitania de Pernambuco, que também sofreu a humilhação ao ser questionada sua posse por parte de alguns setores dominantes da sociedade pernambucana, por ser pardo2149. As diversas estratégias utilizadas pelos pardos na busca por promoção social foram de grande importância na transformação da composição da elite pernambucana. A dinâmica colonial proporcionou uma mobilidade que em alguns casos foram de um extremo a outro da pirâmide social. Esse foi o caso de Luís Cardoso, homem pardo que ascendeu socialmente de uma forma muito rápida. O mesmo passou de escravo à grande comerciante da Praça do Recife. No comércio usufruiu de conforto, adquirindo também alguns imóveis como um “sobrado na rua da cadeia velha, por detrás da matriz do corpo santo, avaliado em 2:440$000” réis. Os objetos de seu interior, levantados no inventário, indicam que Cardoso, “levara uma vida frugal; alguns quadros pequenos, roupa de cama e mesa, travesseiros, material de escritório, objetos de cozinha” 2150. Além do comércio, Cardoso também vivia da prática de empréstimos, cujos juros eram de 6, 25% ao ano e caução em objetos de ouro e prata. Muitos homens de negócio da praça do Recife fizeram uso dos serviços oferecidos por Cardoso, tanto na compra de escravos, como nos empréstimos à juros2151. O fato de ser pardo e ex escravo não serviu de impedimento em sua admissão na Ordem Terceira de São Francisco do Recife2152. É certo que em tal instituição não era permitida à entrada nem de pardo e muito menos de sujeitos com defeito mecânico. No caso de Luís, os dois defeitos eram de conhecimento de todos, porém o fato de ser um homem de grande cabedal e doador de exorbitantes quantias na Ordem pode ter servido como fator motivador da sua admissão. Isso mostra a possibilidade de flexibilidade das regras, muitas vezes decorrente da disponibilidade de recursos financeiros abundantes dos interessados. O fato é que Cardoso não foi apenas irmão da Ordem Terceira de São Francisco, foi também sacristão em 1721. Foi neste mesmo ano que Cardoso fez a sua maior doação em vida à Ordem Terceira de São Francisco do Recife. A quantia foi de 10 mil cruzados ou cerca de 4:000$000(quatro contos de réis). No biênio 1723/24, tornou-se definidor, cargo de mais prestígio da mesa regedora da instituição, e que havia sido ocupado na criação da ordem por Antônio Fernandes de Matos2153. Desde pelo menos 1716, Cardoso passou a dar esmola e fazer doações a Ordem. Nesse ano foram doados 4$000, a entrada de Cardoso na instituição se deu em 12 de fevereiro de 1719, e cumprindo o ano de noviciado, recebeu a profissão em 13 de fevereiro de 1720. Por esse tempo era já um comerciante reconhecido rico e estável, contando com aproximadamente 65 anos. Ao fim de sua escalada social, Cardoso veio alcançar a posição de mercador de grosso trato, admitida como dignificante” 2154. O mesmo morreu na cidade de Olinda no ano de 1724, como definidor da Ordem terceira de São Francisco, a qual nomeou como sua testamenteira, seguida das irmandades da madre de Deus e do Carmo. Em Pernambuco podemos citar além de trajetórias individuais de sujeitos em estado de mobilidade social ascendente, também narrativas de famílias, como: os Nogueira de Figueiredo e os Gomes da Fonseca. A análise dessas famílias permitiu perceber de que maneira, ou a partir de que elementos, a atribuição de cor ganhava diversos significados no espaço urbano colonial pernambucano. Uma vez que, as informações contidas em fontes como registros de batismo e casamentos constataram que, dependendo das alianças estabelecidas, um indivíduo poderia aparecer classificado de maneiras distintas em diferentes documentos. Esse foi o caso de Maria da Conceição Nogueira, filha do pardo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2148

AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3664. AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3701.AHU_ACL_CU_015, Cx.42, D. 3803. 2149 AHU_ACL_CU_015, Cx. 96, D. 7572. 2150 ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira; FRANDES, Eliane Moury; CAVALCANTE, Sandra Melo( Org) Tempo dos Flamengos e outros tempo: Brasil século XVII. Brasília: CNPq; Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1999.p.258 2151 Ibid. p.262 2152 Para mais informações sobre o surgimento da ordem de São Francisco ver: NETO, João Cabral de Melo. A Capela Dourada, símbolo do poder dos homens de negócio da praça. PUC- RIO- Certificação digital nº 0610626/CA.p. 83117 2153 ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira; FRANDES, Eliane Moury; CAVALCANTE, Sandra Melo( Org). Op. Cit. p.262 2154 NETO, João Cabral de Melo. Op. Cit. p.104

653 ISSN 2358-4912 Manuel Félix Nogueira de Figueiredo2155. Em seu casamento, realizado no dia 29 de novembro de 1800 na igreja do Livramento, com João Luís da Silva, homem branco, natural de Braga, Maria da Conceição aparece como uma mulher branca. O seu pai, Manuel Félix Nogueira de Figueiredo omite a sua cor parda. O fato de Maria da Conceição está casando com um homem branco, natural de Portugal, pode justificar a sua troca de cor. No caso de Manuel Félix Nogueira, a união estabelecida por sua filha pode ter interferido na classificação atribuída a ele, o que ajuda a entender a sua omissão. Nesse caso, a troca de cor e a omissão na documentação enfatizam a mobilidade social como produto de estratégias constituídas através dos laços matrimoniais no cotidiano da vida colonial pernambucana, uma vez que essas relações podiam ser recursos positivos na busca de melhores condições de vida. Além dos laços matrimoniais, as alianças e a ocupação dos espaços na política e na administração da Capitania eram elementos fundamentais para a legitimação e reafirmação dos sujeitos enquanto integrantes de uma elite. Como exemplo, recorremos a algumas observações sobre a família Gomes da Fonseca, em Pernambuco. Ao longo do século XVIII e durante as primeiras décadas do XIX, coube ao domínio dessa família o ofício de Escrivão da Audetoria e Tabelião do público judicial e notas da cidade de Olinda e Recife, que passou em forma de herança por três gerações. Francisco Gomes da Fonseca, integrante da família, além de ocupar tal ofício, também foi Proprietário dos ofícios de Alcaide e Carcereiro de Olinda2156 . Foi um homem de negócio e ofícios2157. Comprava escravos provenientes da Costa da Mina para serem vendidos no Rio de Janeiro2158. Na Câmara do Recife, foi eleito segundo vereador em 1734, mas não assumiu, e terceiro vereador em 1736. Foi prior da Ordem Terceira do Carmo entre os períodos de 1735 a 1736. Trocava “grandes partidas de dinheiro nacional por provincial para se fazerem as remessas do donativo real, assim como se costumava fazer os homens de negócio”2159. Possuia bens como o engenho Caraúna, em Olinda; Proprietário da corveta N. S. do Carmo e S. Antônio e do barco N. S. Prazeres, S. Antônio e Almas2160. Ao certo, as boas relações construídas por Francisco Gomes da Fonseca com a elite pernambucana possibilitou a ele e a sua geração futura uma investida de ascensão bem sucedida. Uma vez que a obtenção de bens e o acúmulo de títulos não eram fatores suficientes para integrar um sujeito como pertencente à elite, era preciso ser reconhecido como tal. Ao que parece, a composição da nobreza na América portuguesa se mostrou complexa e diversificada. O seu corpo estrutural não apenas foi formado por nobres de sangue, de caráter hereditário, mas também por agentes que através de serviços prestados à Coroa, foram contemplados com mercê. Logo, ser nobre significava “ter um emprego de distinção e honra e, quando ligado à terra, possuir estimados cabedais e viver à moda da nobreza. O título nobiliárquico, propriamente dito, não era o aspecto mais importante, as condições para ostentação do estado de nobreza, sim”. Nesse sentido, o que contava “não era a ostentação do título, mas a capacidade de mostrar que se vivia em estado de nobreza”. Em uma sociedade “repleta de negros cativos, gentios e outras castas de gente vil e sem posses, exibir-se com distinção, era quase um imperativo para todos aqueles que queriam ser tidos e havidos por estimados2161. Na verdade, nobreza e riqueza não se conjugaram na sociedade colonial portuguesa. Aqueles que conseguiram se firmar na nobiliarquia, foi porque formalizaram as honras por meio de instrumentos de nobilitação, ou seja, como a obtenção de foros de fidalgo da Casa Real, cargos na câmara, hábitos das ordens militares, postos da oficialidade nas ordenanças, dentre outros2162. Para citar um exemplo corrente na sociedade pernambucana setecentista, o pardo Luís Nogueira de Figueiredo, filho de um branco principal da terra, incorporou bem o papel de nobre. O mesmo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2155

Manoel Félix Nogueira de Figueiredo aparece na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e em diversos registros de batismo como pardo. 2156 AHU_ACL_CU_015, Cx. 53, D. 4652. 2157 AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4600; AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, D. 5688; AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4600; AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, D. 5688. 2158 AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4585. 2159 AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4585. 2160 AHU_ACL_CU_015, Cx. 155, D. 11218. 2161 PESSOA, Raimundo Agnelo Soares. Gente sem sorte: os mulatos no Brasil colonial.Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Doutorado em História. Franca, 2007. 232f. p.31-32 2162 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. Ed. Unesp. São Paulo, 2005. p. 132

654 ISSN 2358-4912 procurou viver a “lei da nobreza” com limpeza de mãos, viveu dos bens deixados por seu pai. Além disso, foi oficial de milícia e foi habilitado na Ordem de Santiago. Isso significa dizer que, não obstante os valores de Antigo Regime, indivíduos, instituições, e grupos não eram imóveis2163. Fernanda Olival e João Rêgo ao se referirem à região de Cabo Verde ressaltam que em decorrência das incongruências e dificuldades do sistema, no início do século XVII, os “filhos da terra”, ou seja, mulatos e negros, ocupavam os espaços sociais anteriormente preenchidos pelos reinóis, de quem muitos deles eram descendentes ilegítimos. Para os autores, tratava-se de uma nova elite, essencialmente urbana e cosmopolita. Um exemplo foi o mulato André Álvares de Almada, que recebeu a mercê do hábito da Ordem de Cristo, apesar de ser mestiço, em troca dos seus serviços na defesa da Ilha. Em Cabo Verde a terceira elite geracional, que cronologicamente coincidia com a segunda metade do século XVII, era endógena, mestiça e, claramente, de matriz cabo verdiana. “Formavam-na os chamados ‘brancos da terra’ (maioritariamente mulatos e pretos), o que levou o governador Juzarte de Santa Maria a reconhecer, em 1749, que ‘os desta ilha que têm este nome de brancos e não o são’” 2164. Segundo tais pesquisadores, em outros territórios do Atlântico, onde a percentagem da população de origem africana era elevada, a situação não era diferente2165. Logo, a adoção do referido conceito de nobreza ao longo do século XVI criou uma zona de fluidez na hierarquia social constituída nas conquistas. Nesse caso, “não era difícil a um filho de lavrador sugerir que seus pais se tratavam à lei da nobreza, com bestas e criados”. Embora a mobilidade social fosse, como em todas as sociedades dominantemente agrárias, quantitativamente limitada, esta zona de fluidez podia potenciar, em determinadas condições e conjunturas, a oportunidade para rápidos processos de ascensão social2166. Na visão de Russell Wood, “a aplicabilidade do conceito de pirâmide às sociedades escravocratas do Novo Mundo, uma pirâmide cuja ampla base se compusesse de escravos e cujo topo estivesse reservado à aristocracia ou à nobreza mercantil e de proprietários de terras, deve ser aceita com cautela2167. No caso brasileiro, argumenta o autor, dois pontos devem ser observados: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] O primeiro é a inferência de rigidez; apesar da constante representada pela escravidão, nada estaria mais longe da verdade, com relação à sociedade do Brasil, onde havia grande mobilidade vertical e horizontal e onde existiam drásticas variações regionais de composição social. Não menos fundamental era o fator cronológico: a sociedade do primeiro século de colonização diferia marcadamente daquela de dois séculos depois. O segundo motivo de cautela relaciona-se à 2168 composição da pirâmide social e aos critérios para determinar a posição de um indivíduo .

Para o autor, o Brasil possuía sua própria dinâmica interna de “evolução, revolução ou retrocesso”. A sociedade passava por mudança e conflito que dava origem a uma descontinuidade2169. Logo, “é inevitável que a formação de uma composição específica para o indivíduo de ascendência africana na América portuguesa corra o risco de distorcer a realidade”. Segundo o autor, observa a sociedade constituída na América portuguesa a partir do potencial de flexibilidade e variedade, sem esquecer o resultante grau de harmonia ou conflito, pode gerar um retrato mais realista da posição dos libertos na 2163

Cf. HESPANHA, Antônio Manuel. Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de Governar. Alameda. São Paulo, 2005. Ver também: GUEDES, Roberto. Censos e Classificação de Cor em Porto Feliz (São Paulo, Século XIX). Artigo publicado no 3º Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2007. p. 1-2. Disponível em: http://www.labhstc.ufsc.br/pdf2007/58.58.pdf 2164 REGÔ, João de Figueirôa, OLIVAL, Fernanda. Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Trabalho desenvolvido no âmbito do projecto FCT/COMPETE/FEDER: FCOMP-01-0124-FEDER-07360, 2010. p.128-129 2165 Idem. 2166 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. texto apresentados ao Seminário de História do ICS (Outubro de 1996) e ao 16.° Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social em Novembro de 1996.análise social. vol. XXXII(141),1997(2º)335-368, p.344-345 2167 RUSSELL-WOOD. A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial (trad.), Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005. p.119. 2168 Idem. 2169 Idem.

655 ISSN 2358-4912 colônia do que a aplicação do modelo da pirâmide2170. A rigidez hierárquica cedeu espaço para uma dinâmica social no espaço colonial. Em Pernambuco, muitos pardos, através de diversas estratégias de inserção, souberam manejar uma estrutura aparentemente rígida e extrair dela certas regalias, sem, no entanto ameaçar frontalmente o sistema. A elite aqui abordada exprime de forma não monótona o seu poder social. O que significa afirmar que “os seus sinais distintivos, a sua visibilidade, as suas formas de hegemonia, os tipos de dependências que suscitam são muitos diversos, não podendo reduzir-se a um modelo único”2171. Partindo-se desse pressuposto, a elite que aqui abordamos, foge dos padrões tradicionais apresentados até então pela historiografia, isto no que concerne a cor da sua tez. O perfil aqui apresentado não é de uma elite branca, mas revelada parda, que se passava por alva, através da troca de cor. A nomeação de oficiais, por mais restrita que fosse, vinha ao encontro das estratégias de mobilidade social e, consequentemente, de tentativa de supressão do estigma do cativeiro2172. De acordo com a lógica societária de Antigo Regime, a ocupação dos postos militares e as respectivas posições de comando, isto é, exercício de poder e autoridade, vinham ao encontro das aspirações daqueles que desejassem prestígio, privilégios e honras. Multiplicavam-se, portanto, as hierarquias existentes à medida que cumpria o papel pedagógico de indicar a cada súdito qual era o seu lugar no corpo social2173. Muitas vezes a concessão de mercê ia além de um único indivíduo. Era comum tal prestígio agraciar também muitas gerações. Por isso o interesse e a importância de um estudo da família, observando a sua formação, estratégias de inserção e alianças feitas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências AHU_ACL_CU_015, cx.76. D.6377; AHU_ACL_CU_015, Cx. 53, D. 4652; AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4600; AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, D. 5688; AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4585; AHU_ACL_CU_015, Cx. 155, D. 11218; AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3664; AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3701; AHU_ACL_CU_015, Cx.42, D. 3803; AHU_ACL_CU_015, Cx. 96, D. 7572; ANDRADE, Manuel Correia de Oliveira; FRANDES, Eliane Moury; CAVALCANTE, Sandra Melo( Org) Tempo dos Flamengos e outros tempo: Brasil século XVII. Brasília: CNPq; Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1999.p.258 FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócio no Império Português, séculos XVI –XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. GUEDES, Roberto. Censos e Classificação de Cor em Porto Feliz (São Paulo, Século XIX). Artigo publicado no 3º Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2007. p. 1-2. Disponível em: http://www.labhstc.ufsc.br/pdf2007/58.58.pdf HESPANHA, Antônio Manuel. Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de Governar. Alameda. São Paulo, 2005. 2170

Ibid. p.120-121. HESPANHA, Antônio Manuel. Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de Governar. Alameda. São Paulo, 2005.p.43-44 2172 SOARES, Márcio de Sousa. Pretos e Pardos na fronteira do Império: Hierarquias e mobilidade social de libertos na capitania de Goiás(século XVIII). Trabalho apresentado no 4º Seminário de Pesquisa do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal Fluminense – UFF, realizado em Campos dos Goytacazes-RJ, Brasil, em março de 2010.p.9 2173 Idem. 2171

656 ISSN 2358-4912 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime. texto apresentados ao Seminário de História do ICS (Outubro de 1996) e ao 16.° Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social em Novembro de 1996.análise social. vol. XXXII(141),1997(2º)335-368. NETO, João Cabral de Melo. A Capela Dourada, símbolo do poder dos homens de negócio da praça. PUC- RIOCertificação digital nº 0610626/CA.p. 83-117 PESSOA, Raimundo Agnelo Soares. Gente sem sorte: os mulatos no Brasil colonial.Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) Doutorado em História. Franca, 2007. 232f. REGÔ, João de Figueirôa, OLIVAL, Fernanda. Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Trabalho desenvolvido no âmbito do projecto FCT/COMPETE/FEDER: FCOMP-01-0124-FEDER-07360, 2010. RUSSELL-WOOD. A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial (trad.), Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. Ed. Unesp. São Paulo, 2005. SOARES, Márcio de Sousa. Pretos e Pardos na fronteira do Império: Hierarquias e mobilidade social de libertos na capitania de Goiás(século XVIII). Trabalho apresentado no 4º Seminário de Pesquisa do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal Fluminense – UFF, realizado em Campos dos Goytacazes-RJ, Brasil, em março de 2010. VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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VIDA ESCRAVA NAS MINAS DO ARRAIAL DE SANTA LUZIA DA CAPITANIA DE GOYAZ Jason Hugo de Paula∗ Arraial de Santa Luzia O arraial de Santa Luzia deve seu surgimento aos veios auríferos descobertos no final da primeira metade do século XVIII. Como todo descoberto, o de Santa Luzia despertou interesses e inúmeras versões históricas. A história oficial do lugar afirma que em princípios de 1747 Antônio Bueno de Azevedo foi nomeado Superintendente e Guarda-mor das Minas de Santa Luzia (PIMENTEL, 1994). Esta versão oficial não é confirmada pela documentação. Em duas cartas, uma enviada ao Capitãomor Clemente Simoes da Cunha das minas de Paracatu, D. Luiz Mascarenhas pede para ser noticiado dos descobertos e que, em havendo algum, o mesmo capitão-mor tomaria parte para a Capitania de São Paulo e assumiria como Guarda-mor, assim como já o faria nas minas de Santa Luzia2174. Em outra carta ao Intendente da Real Fazenda de Goiás, Manoel Caetano Homem de Macedo Dom Luiz Mascarenhas concorda com a resolução de mandar passar para o descoberto de Santa Luzia o fiscal da Intendência de Goiás, Antonio Luiz Lisboa, para cobrar a capitação e fazer outras averiguações. Outros registros do início das minas de Santa Luzia são os assentos de batismos feitos entre Junho de 1747 e junho de 17482175. Mesmo os primeiros registros eclesiásticos e tantos outros pontuando a presença escrava, na historiografia local este passado é controverso. A centenária Igreja do Rosário dos Pretos e os vestígios do Rego da Saia Velha com 7 léguas de extensão e construído em 3 anos para levar água para as minas nas terras altas (Cruzeiro) são, usualmente, vistos como atestados do escravismo na região, mas repousa total silêncio quanto à Irmandade do Rosário, as práticas religiosas e as tradições africanas. Parece que o culto à modernidade que a construção de Brasília representava fechou os olhos dos historiadores ao passado escravista. Neste contexto é que se insere este trabalho, cujos objetivos são abordar alguns aspectos da vida da população livre, escrava e forra do século XVIII no arraial de Santa Luzia, conhecer a composição populacional e os principais grupos étnicos e propiciar uma revisão sobre o mito da ausência de fontes. População livre, forra, liberta e escrava Nos arraias e vilas mineradoras do século XVIII o universo cultural era, marcadamente, mestiço. Trata-se de um ambiente colorido de tradições, etnias, tradições e práticas culturais que fazia da Colônia um locus de diversidade cultural em que coexistiam as misturas de heranças culturais diversas e as resistências ao hibridismo (PAIVA, 2006). A descoberta do ouro das Gerais, Goiás e Mato Grosso aumentou o “trânsito” e as trocas culturais com outras regiões. Pequenos momentos da vida da população setecentista de Santa Luzia encontram-se na documentação e é em busca destes que partiremos. Pelos Livros de Batismos (1749-1775) foram batizadas 1070 pessoas, das quais 931 eram livres, 39 forras e 100 escravas. Todavia, o número de escravos não seria tão ínfimo se, no Segundo Livro2176, no



Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Docente do Instituto Federal de Goiás/Campus Luziânia. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). 2174 A primeira carta está datada de 30/08/1747 e a segunda de 03/08/1747. Ver mais em Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Volume LXVI, p.198-199. São Paulo: Tipografia Globo, 1942. 2175 Foram contabilizados 16 assentos de escravos (10 eram adultos minas) e uma criança forra. Estes dados foram compilados por Ramir Curado do Segundo Livro de Batismos da Freguesia de Meia Ponte às folhas 15v, 16f/v, 17f/v. Ver mais em Bertran (2011, p. 527 e ss). 2176 Termo de Abertura Segundo Livro da Matriz de Santa Luzia datado de 24 de Março de 1757 e assinado pelo Vigário Hieronymo Moreira de Carvalho.

658 ISSN 2358-4912 termo de abertura, já não estivesse claro que este haveria de servir para “nelle Se fazer os aCentos do Bauptismo de brancos, e Libertos […] na Matris deste Arrayal”. A partir de 1757, os cativos foram registrados em outro livro, o que reforça o fato de que os 97 assentos de escravos foram feitos no Primeiro Livro. Mesmo com esta lacuna2177, a composição do panorama populacional de Santa Luzia pode ser aprimorada a partir do Livro 1X de Óbitos da Matriz de Santa Luzia (1786-1814). Para isto elaboramos dois quadros com os dados mais significativos.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 1 (Regiões de origem/nação dos assentados) Origem/Nação Quantidade % ao total Sem identificação 1086 54,35% Mina 326 16,31% Crioula 255 12,76% Angola 174 8,70% Nascido na Colônia 58 2,90% Nagô 40 2% 2,98% Outros2178 59 Total 1998 100% Quadro 2 (assentados escravizados) Nação/qualidade Quantidade % ao total Sem identificação 221 24,36% Mina 275 30,31% Crioula 167 18,41% Angola 160 17,64% Nagôs 40 4,41% 4,87% Outros2179 26 Total 907 100% Ao observarmos os quadros, verificamos que as pessoas escravizadas (907) compunham 45% do total de óbitos. Confirmando a tendência registrada para as áreas mineradoras, os minas são maioria entre os escravos, seguidos por crioulos, angolas e nagôs (LOIOLA, 2009). O (ante)passado escravo fazia parte de muitas mais pessoas se considerarmos que entre os sem identificação do quadro 1 estão forros, libertos, pretos, pardos e mulatos. É neste ambiente que em dezoito de janeiro de 1787 Catharina Fernandes Peres2180, preta mina forra, doente mas “em seu perfeito juízo”, manda redigir seu testamento. Na “mais Catholiça, mais Santa, unica everdadeira…” religião Catharina, ainda cativa, batizou-se e, nesta, casou-se com Francisco Barboza mina que, ao pagar 200 oitavas de ouro ao seu senhor Antônio Barboza, conseguiu sua alforria. Achava-se sem herdeiros quando fez o testamento. Por este motivo, instituía a sua alma “unica euniversal herdeira” dos seus bens. De Catharina não foi possível saber quem era seu senhor, por quanto, onde e quando se forrou. Contudo, desde 1754, Catharina se encontrava no Arraial de Santa Luzia batizando escravos e levando os seus para serem batizados. Nos trinta e três anos em que permaneceu em Santa Luzia, Catharina acumulou bens e construiu uma importante rede de solidariedade e amizades.

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Em 1783, o número de escravos em Santa Luzia era de 899, sendo que 347 trabalham nos 14 engenhos, 33 engenhocas, lavouras e serviços domésticos (SALLES, 1992). 2178 No campo outros estão os do Reino (Portugal), Cobu, Congo, Banguela, Mestisso, Tapuya, Mossambique, da Terra, Semicaboclo, Monjolo, Mahi, Xina, Guiné, Mamaluco, Courano e Cabo Verde. 2179 No campo outros estão os Cobu, Benguela, Congo, Mossambique, Monjolo, Courano, Cabo Verde, Mestisso, Cabra e Indio. 2180 Catharina Fernandez Peres faleceu em 10 de julho de 1787, conforme Livro 1X de Assentos de Óbitos pertencente ao acervo do Santuário de Santa Luzia, em Luziânia GO.

659 ISSN 2358-4912 Em seu testamento, pedia para ser acompanhada dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário, conduzida no esquife e sepultada naquela Capela. À Irmandade das Almas, se esta quisesse acompanhar seu corpo até a sepultura, daria 5 oitavas de esmola; aos pobres, dez oitavas de ouro se acompanhassem seu corpo e rezassem um Padre Nosso e uma Ave Maria em intenção de sua alma. Ao Santíssimo Sacramento deixava 10 oitavas de ouro para serem aplicadas na “Sera” da banqueta do altar. Ao pároco e aos sacerdotes rogava que a acompanhassem com a cruz da fábrica e rezassem missa de corpo presente. Ao testamenteiro solicitava três capelas de missas da seguinte forma: uma pela alma dos parentes falecidos que tivessem recebido a água do batismo; outra pela alma de todos seus escravos falecidos e a última para os bem feitores e amigos e às almas dos amigos já falecidos. Ressalta-se que as três capelas seriam dedicadas também às almas do fogo do purgatório. Dos bens deixados constavam quatorze escravos, a saber: Inacia mina, Vitoria mina, Roza mina, Anna Crioula, Marcella Crioula, Jozè Çapateyro, Nicolão Crioulo, Geronimi Crioulo, Pedro Crioulo, Martinho Cabrinha, Francisco Crioulo, Domingas Crioula, Maria Crioula e João Crioulo”. A Domingas, Marcela, Francisco e Maria, todos crioulos, deixavam-lhes inteiramente forros, sem “penção alguma” e com Carta de Liberdade a ser passada pelo testamenteiro. A quatro escravas passaria coartação: Vitoria mina em 64 oitavas de ouro; Inacia mina em 50 oitavas de ouro; Anna crioula em 64 oitavas de ouro e Roza mina em 128 oitavas de ouro. Este e os valores obtidos com a venda daqueles escravos que ficavam cativos (Jozé, Nicolão, Geronimi, Pedro, Martinho, e João), bem como o arrecadado com o cobre encontrado, deveriam ser empregados tudo em missas pela sua alma. Este cobre certamente fazia parte das peças e ferramentas utilizadas nas “humas cazas de vivenda cobertas de telhas e com seu quintal e mais pertences” deixadas por Catharina e que, vendidas, empregar-se-ia seu valor em missas. Suas roupas de uso ficariam para as escravas, tendo privilégio na escolha as totalmente forras e, em seguida, as coartadas. Aos bens declarados somariam as “trinta e tantas oitavas de ouro lavrado”, o que nos sugere que também fosse dona de uma faisqueira ou pequena data de mineração. Depois de pagas todas as dívidas e despesas do dia do obitus, cumpridos os legados e quitado o prêmio do testamenteiro (quarenta oitavas de ouro), aplicar-se-ia todo o restante em missas. Como Catharina, é possível que outros forros e livres também tenham reunido pequenas fortunas. As estratégias para afastarem-se do antepassado escravista certamente existiram. Catharina tinha várias amizades, bom número de escravos, uma rede de solidariedade extensa que incluía o batizado de várias crianças escravas e forras e uma mesa de rainha da Irmandade do Rosário. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Conclusão A trajetória de Catharina Fernandes Peres revela que mundos muito diversos podiam se interagir. Catharina e tantos outros africanos moldaram suas vidas através de rearranjos culturais e sociais. Seu testamento, é um relato individual e uma expressão de um modo de viver da sociedade católica setecentista do Brasil. Este conjunto documental nega o mito da ausência de fontes e revela pequenos momentos do mundo material setecentista e elementos norteadores do cotidiano e do imaginário de milhares de pessoas, construídos a partir da realidade da sociedade escravista onde a miscigenação e as impermeabilidades conviviam. Referências BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem do Planalto Central: eco-história do DF – do indígena ao colonizador. Brasília: Editora da UNB, 2011. LOIOLA, Maria Lemke. Trajetórias para a liberdade: escravos e libertos na Capitania de Goiás. Goiânia: Ed. da UFG, 2009. PAIVA, Eduardo F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. 1ª reimp. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. PIMENTEL, Antônio. Pela Vila de Santa Luzia ou Fragmentos de um passado. Brasília: Gráfica e Editora Independência Ltda, 1994. SALLES, Gilka V.F. Economia e Escravidão na Capitania de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992.

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CULTURA POLÍTICA INDÍGENA E LIDERANÇA TUPI NAS CAPITANIAS DO NORTE: ANTÔNIO PESSOA ARCOVERDE E O COMBATE AO QUILOMBO DE PALMARES (SÉCULO XVII) Jean Paul Gouveia Meira2181 Em fins do século XVII, a Capitania Real de Pernambuco, e suas anexas, foram palcos de levantes de negros, notadamente daqueles fugidos e organizados em quilombos, encontrados desde as margens do rio São Francisco até o interior do Maranhão. Preocupados com a situação, governadores de Pernambuco procuraram reunir os indígenas nos Terços e nas aldeias para a guerra. Em outras palavras, não convinha aos seus serviços, assim como de “sua” Majestade, que tais indígenas se mudassem ou saíssem das suas aldeias para residirem em outras praças. Houve, portanto, a necessidade para que o Governador Geral dos Índios2182 evitasse tamanha saída desses indivíduos nos aldeamentos, verdadeiras muralhas nos momentos de guerra, devido ao papel militar que representavam. De acordo com Luiz Felipe Baêta Neves (1978, p. 131), os aldeamentos indígenas funcionavam muito mais do que um lugar para as missões religiosas ou trabalhos manuais. Era uma verdadeira praça de guerra, ou seja, um ponto estratégico para barrar o avanço dos grupos indígenas considerados “hostis”, vindos do sertão, assim como dos negros fugidos e reunidos em quilombos, que promoveram muita resistência contra os demais agentes coloniais nas capitanias do Norte. Sendo assim, na guerra contra o Quilombo dos Palmares, o maior de todos os quilombos, a participação indígena sob a liderança de Antônio Pessoa Arcoverde, Governador dos Índios entre 1683 e 1694, foi contundente. A confirmação real da patente de Governador Geral dos Índios para tal chefe Tabajara veio em 17 de novembro de 1683, assinada e selada com o selo “das grandes armas do soberano”. Fica claro, nas palavras do príncipe regente D. Pedro II, que o mesmo vinha exercendo sua função há algum tempo, e, como outros líderes indígenas, desempenhou papel nobre na ocupação de um cargo de prestígio no Império Ultramarino Português, mesmo antes da dita comprovação: Dom Pedro por graça de Deos Principe de Portugal e dos Algarves, daquem e dalem mar, em Africa de Guiné, e da Conquista, Navegação, Commercio da Ethiopia, Arabia, Persia, e da India etc. Faço saber aos que esta minha Carta patente de confirmação virem, que tendo respeito a Antonio Pessoa Arco-Verde estar provido pelo governador das capitanias de Pernambuco D. João de Souza, na forma do seo regimento, no posto de capitão mor, e governador dos Indios das aldeias das ditas capitanias, por ser pessoa benemérita, e me haver servido com muita fidelidade nas guerras do Estado do Brasil, procedendo sempre em todas ellas com o valor, e satisfação de mui honrado soldado, particularmente na armada do Conde da Torre, no sitio que o Conde de Nassau poz á cidade da Bahia, e nas mais occasiões de peleja, que no discurso daquella guerra suceederão, como foi nas batalhas dos Guararapes, e nas da restauração das praças de Pernambuco, occupando os postos de alferes, ajudante, e capitão no mesmo terço, e ultimamente estar servindo o posto de tenente há trinta e quatro annos com toda a satisfação, governando as suas aldeas, e acudindo para as occasiões dos Palmares em todas as entradas que se fizerão áquelles sertões, não faltando ás obrigações do dito posto com mui honrado zelo do meo serviço: E por esperar delle que da mesma maneira se haverá daqui em diante em tudo o de que for encarregado do meo serviço, conforme a confiança que faço de sua pessoa: Hei por bem de lhe fazer merce de o confirmar, (como por esta 2181

Mestre em História pela UFCG. Email: [email protected] O cargo de Governador Geral dos Índios foi criado no “calor” das guerras contra os Neerlandeses para recompensar Antônio Filipe Camarão pelas sucessivas vitórias nas batalhas. Este líder indígena ficou responsável pelo controle político e militar de todas as aldeias encontradas nas capitanias do Norte do Brasil. Com o passar do tempo, o seus descendentes, a chamada “Família Camarão”, foram recompensados com o dito cargo, mas também outras lideranças indígenas pertencentes a outros povos tiveram a mesma oportunidade. Cf. RAMINELLI, Ronald. Honras e Malogros: Trajetória da Família Camarão 1630-1730. In: MONTEIRO, Rodrigo Bentes; VAINFAS, Ronaldo. Império de Várias Faces: Relações de Poder no Mundo Ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009. pp. 175 – 191. 2182

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ISSN 2358-4912 confirmo) no dito posto de capitão mor, e governador dos Indios das aldeias das capitanias de Pernambuco, com o qual não haverá soldo algum da minha fazenda, mas gosará de todas as honras, privilegios, liberdades, isenções, e franquezas, que em razão delle lhe tocarem. Pelo que mando ao meo governador das capitanias de Pernambuco conheça ao dito Antonio Pessoa Arco-Verde por Capitão, e Governador dos Índios das ditas capitanias, e como tal o honre, estime, e deixe servir e exercitar debaixo da posse, e juramento que se lhe deo ao tempo que nelle entrou; e aos officiaes, e soldados da sua jurisdicção ordeno tambem; que em tudo lhe obedeção, e cumprão suas ordens por escripto, e de palavra como devem, e são obrigados. E por firmeza de tudo lhe mandei passar esta Carta patente de confirmação por duas vias, por mim assignada, e sellada com o sello grande de minhas armas. Dada na cidade de Lisboa aos 17 de Novembro. Manoel Pinheiro da Fonseca a fez. Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesuz Christo de 1683. O secretário André Lopes de Laura a fez escrever. – El-Rei. – Conde de Val de Reis.2183

Por ser pessoa benemérita e ter servido com muita “fidelidade” nas guerras do “Estado do Brasil”, procedendo sempre em todas elas com o devido valor, o príncipe D. Pedro esperava de Antônio Pessoa que continuasse honrando com os reais serviços da coroa portuguesa. Mesmo sem soldo, o que comprova que muitas das lideranças indígenas exerceram cargos de prestígio sem ao menos serem recompensados como mereciam, o chefe Tabajara gozou de toda a honra, privilégio, liberdade, e isenções. A existência de um juramento ao ocupar algum posto oficial no Império Ultramarino também comprova o cerimonial de entrada dos indígenas em um sistema estranho às suas práticas culturais, como diria Michel de Certeau (1934, p. 39), o qual não podia negá-lo diretamente, mas incorporaram valores simbólicos do mesmo para ressignificarem em seu respectivo povo. Elites Indígenas nos Espaços de Poder do Império Ultramarino Português A atribuição de direitos e privilégios para indivíduos e grupos, assim como a concessão de rendimentos e mercês, fazia parte da chamada Cultura Política do Antigo Regime no Mundo Ibérico, o que possibilitou a criação de uma nova simbologia do poder, através da qual uma rede de intercâmbios reforçava os laços entre “Centro” (Império) e “Periferias” (Colônias). O historiador português António Manuel Hespanha, baseado em estudos antropológicos sobre a dádiva, do francês Marcel Mauss, analisou a concessão de benesses ou benefícios, ofícios e honrarias pela coroa portuguesa como uma forma simbólica e gestual de dar ou recompensar os leais vassalos de “sua” majestade pelos serviços prestados. Com isto, os monarcas portugueses conseguiram, por muito tempo, manter uma sociedade estratificada e, portanto, desigual no Império Ultramarino.2184 Em 1925, Marcel Mauss serviu-se de etnografias, muitas delas sobre povos localizados nas ilhas da Polinésia, para explicitar o simbolismo que existe nas relações de troca, de contrato, de prestação de contas entre as comunidades consideradas como “tradicionais”. Dar, ou retribuir, e receber, mas também, ter méritos e prestar serviços fazem parte da chamada “dádiva”, dimensão gestual de agraciar ou ser agraciado (premiado).2185 Se por um lado, os portugueses, de fato, encontraram a dádiva na dinâmica interna dos povos indígenas aqui na América, e esta contribuiu ativamente como um dos principais elementos sociais que caracterizam determinado povo, por outro lado, este espaço simbólico, por onde ocorrem às trocas, variava de um grupo para outro, e em cada contexto sociohistórico. Isto porque cada sociedade possui uma forma própria de se relacionar com outros grupos sociais, de determinar suas normas e valores, de estabelecer seu universo simbólico pautado nas trocas, dentre

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Cf. MELLO, Antonio Joaquim de. Biografias de alguns poetas e homens ilustres da Província de Pernambuco. Tomo II. Recife: Typographia Universal, 1858. p. 197. 2184 Cf. HESPANHA, António Manuel. A Constituição do Império Português. Revisão de Alguns Enviesamentos Correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 166. 2185 Cf. MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183.

662 ISSN 2358-4912 outros aspectos que não encontramos nas pesquisas realizadas pelo antropólogo francês Marcel Mauss. Para tanto, toda esta diferença ocorre no âmbito das relações entre os povos, ou seja, nas situações de contato, jamais longe delas, o que denotaria uma definição bem objetiva de um aspecto flexível, em constante mutação por conta da apropriação de novos elementos para além das fronteiras que separam um grupo social do outro. Com a colonização portuguesa na América, o sistema de trocas existente, de forma diferenciada, nos povos indígenas sofreu profunda transformação, para não dizer acentuação, quando tais grupos incorporaram a honra, o prestígio social, assim como os hábitos, dentre outros valores dos europeus dentro da sua lógica interna. Nesse caso, o conceito de economia de mercê ou da graça articula o ideal de liberalidade, ou seja, a dimensão gestual do dar e do recompensar, considerada como virtude para os monarcas do Antigo Regime, com a cadeia de obrigações recíprocas por parte dos súditos, através dos serviços prestados (OLIVAL, 2001, p. 15). De acordo com Nuno Gonçalo Monteiro (2005, p. 97), no século XV ocorreu um deslocamento do atributo de nobreza em Portugal, mas também em suas possessões no Ultramar, para outros serviços prestados, e não apenas levando em consideração à pureza de sangue, a qualidade do nascimento, as funções militares, administrativas e jurídicas. Sendo assim, o surgimento da categoria de “Nobreza da Terra” estava ligado aos méritos, conquista e povoamento praticado por indivíduos nos territórios do Império Atlântico Português. Quanto mais leias e úteis ao soberano, maiores seriam as possibilidades de adaptação à nova ordem social vivenciada por tais indivíduos (BICALHO, 2005, p. 23). Se os monarcas não recompensassem, com justiça, os seus súditos, seria impossível ampliar e preservar as fronteiras do Império, cobrar impostos e impor as leis régias. Para valer o seu poderio, o rei reforçava, em âmbito local, a honra e os privilégios dos seus vassalos por meio das dávidas, ou seja, títulos nobiliárquicos, tenças, isenções, insígnias, e prestígio social. Os serviços e as benesses mais requeridas foram aquelas diretamente relacionadas com a guerra, as chamadas Comendas das Ordens Militares, sobretudo a Insígnia de Cavaleiro da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo2186. Os cargos administrativos, dentre muitos outros ofícios menores, também eram, frequentemente, solicitados (KRAUSE, 2012, p. 29). Mesmo que nem todos tivessem sido recompensados, o mais importante esteve no comportamento nobre praticado por tais indivíduos. Assim existia, de fato, grande expectativa para com a premiação, o que estimulava cada vez mais a prestação de serviços. Não ter o mérito na sociedade colonial passava a ser considerado um demérito. Servir ao rei tornouse praticamente um meio de vida para pessoas de estrato social diversificados, inclusive homens e mulheres indígenas. Os requerimentos gestados pelas lideranças indígenas, normalmente legitimados pelos governadores, não deviam ser ignorados, pois possibilitavam a adequação das estruturas de poder monárquico às realidades locais, como eram, principalmente, nos aldeamentos submetidos a tais chefias. Por sua vez, as lideranças indígenas passaram a valorizar cada vez mais sua participação em postos oficiais do Império Ultramarino na tentativa de assegurar e reforçar o apoio militar dado pela burocracia portuguesa contra indígenas de vários povos inimigos (DOMINGUES, 2000, p. 289). Segundo Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005, p. 218), a liderança indígena não dizia mais respeito ao chefe tradicional que existiu em determinado povo. O status de “Principal” foi um reconhecimento posterior que o poder colonial realizou da função já existente: o que antes se tratava de chefes aliados passou a ser considerado como vassalos. As novas concessões para as chefias indígenas, de certa forma, provocaram relações de desigualdades não somente com relação aos membros de determinado povo indígena, mas também levando em consideração aos demais grupos presentes no mesmo aldeamento. A possibilidade, por exemplo, do “Principal” usufruir do trabalho compulsório, não pago, de outros indígenas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A Insígnia da Ordem de Cristo foi criada em 1319 para servir de transferência das propriedades e privilégios dos chamados Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, mais conhecidos como Templários ou Cavaleiros da Ordem do Templo, que foram perseguidos pelo Papa Clemente V e pelo rei da França, Felipe IV, desde 1314, por causa das cerimônias de iniciação secreta desses Templários.

663 ISSN 2358-4912 desempenhou um papel fundamental na consolidação deste processo de diferenciação social (SAMPAIO, 2001, p. 56). Contudo, a documentação colonial é farta em pedidos ou solicitações de mercês por parte das lideranças indígenas em nome dos serviços prestado à coroa portuguesa. Apesar de muitos destes manuscritos não terem sido escritos pelos próprios indígenas, mas por seus respectivos procuradores, eles nos trazem muitas informações a respeito de tais indivíduos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

“Necessário que haja prêmio para que haja cavaleiro” Em requerimento, datado em 15 de dezembro de 1691, o Governador dos Índios, Dom Antônio Pessoa Arcoverde, demonstrou insatisfação com a ausência de pagamento do posto ocupado, e pediu ao rei D. Pedro II o soldo referente ao seu ofício, da mesma forma que lograram seus antecessores, com a justificativa dos serviços que prestou na batalha de Palmares: Senhor Diz Antonio Pesoa Arco verde Cappitam Mayor e Governador dos Indioz que Vossa Magestade foy servido fazerlhe manda a sua pesoa somente de 40 mil reis de soldo em cada hum Anno para os venser com o dito Posto em quando o servir e se o occupar na defença da Comquista doz Palmarez e por que Vossa Magestade manda se lhe faça declaração da referida Mercê em a sua patente a quoal [sic.] Supperintendente não remeteo a este Reyno por ter huma de via que deixou em seu poder.2187

Diante do exposto, podemos perceber que o soldo declarado de 40 mil réis correspondia exatamente ao que os antecessores de Antônio Pessoa possuíram diante da ocupação do cargo de Governador Geral dos Índios. Mas, nem sempre o rei de Portugal era justo para com o seus súditos. Nos momentos de guerra, como no Quilombo de Palmares, os cofres da coroa portuguesa se esvaziavam, e a dificuldade financeira pesava na hora da recompensa para com os súditos desse imenso Império. Mesmo assim, ainda durante os combates contra os negros em Palmares, Dom Antônio Pessoa Arcoverde pediu a mercê do seu soldo ou salário, e foi prontamente atendido: “... Para Vossa Magestade lhe faça Merce mandar para seu despacho que se lhe paçe nova patente da Mercê que Vossa Magestade lhe tem feito.”2188 Para tanto, em anexo ao documento principal, os conselheiros do rei D. Pedro II fizeram referência ao tempo de serviço que Antônio Pessoa Arcoverde vinha prestando à coroa portuguesa, ou seja, mais de trinta e quatro anos, mas também relataram a atuação do dito Governador dos Índios nas batalhas contra os povos indígenas no sertão: Senhor Antonio Pessoa Arco Verde fez petiçam a Vossa Magestade por este Concelho em que diz, que Vossa Magestade foi servido, respeitando a seos serviços, de o confirmar no posto de Capitão Mor, e Governador dos Indios das Aldeas das Capitanias, e porque seos antecessores tiverão com o ditto posto quarenta mil de soldo em cada hum anno pagoz pela Fazenda Real, e este tem servido a Vossa Magestade nas guerras do Brazil desde o seu principio athe o presente ocupando o posto de Tenente por espaço de trinta e quatro annos; e actualmente o esta fazendo nas guerras dos Indios Tapuyas, e negros dos Palmares, como tudo constava dos papeis que oferecia; e por ser hum soldado pobre que não tem com que se sustentar he merecedor de que Vossa Magestade lhe faça a mesma graça.2189

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Requerimento do Capitão-Mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao Rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559. 2188 Requerimento do Capitão-Mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao Rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559. 2189 Requerimento do capitão-mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559.

664 ISSN 2358-4912 A existência de papéis provava o quanto estas lideranças indígenas se comportavam enquanto nobre, quando não se preparavam para ocupar espaços de poder neste imenso Império Ultramarino. Além disto, novamente nos deparamos com um discurso sobre a “pobreza” indígena e como o Estado Monárquico se colocava como o sustentador, o agraciador, e o protetor destes povos:

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Para Vossa Magestade que em consideração do referido lhe faça Merce mandar passar Provizão para que se lhe faça [sic.] dos mesmos quarenta mil reis de soldo que com o mesmo posto lograrão e seos antecessores pagos pellos Disimos Reaez, ou pello [sic.] dos subsídios, que administra a Camara, visto ser aplicado ao sustento da Infantaria. Pellos papeis que apresentou consta o que relata em sua Petiçam.2190

Mais adiante, procurou-se a opinião do procurador da Fazenda Real, o qual seguiu ordens do então governador da Capitania de Pernambuco, Dom João de Sousa, para o não pagamento do soldo correspondente ao posto de Governador Geral dos Índios, ocupado por Antônio Pessoa, ambos demonstrando descontentamento com a participação dos indígenas em postos oficiais no Império Ultramarino: Dandosse vista ao Procurador da Fazenda respondeo que pelo provimento do Governador Dom João de Sousa se não dera ao Supplicante soldo com o posto; é pella comfirmação, que elle aceitara, positivamente se lhe negava; e seu antecessor não faria exemplo, e elle se devia contentar com as honras e preheminencias que se lhe concederão.2191

Por mais desprezo aos indígenas que podemos perceber na citação acima, ao menos ficou reconhecido as honras e preeminências que tais indivíduos, de fato, receberam por parte do governador de Pernambuco. O Conselho Ultramarino sequer apoiou a decisão tomada em conjunto tanto pelo procurador da Fazenda Real, quanto pelo governador de Pernambuco, e recomendou ao rei D. Pedro II que faça mercê de conceder o pagamento justo ao soldado de grande valor e serviço prestado, notadamente na campanha contra o Quilombo de Palmares: Ao Concelho parece que visto o prestimo deste Indio, e o serviço que fez a Vossa Magestade nas guerras de Pernambuco que deve esta carga com os Holandeses; e o que actualmente esta fazendo impedindo que os Tapuyas fação danno aos vassalos de Vossa Magestade; e outros na entrada do Certão em opposiçam aos negros dos Palmares que na consideração de suas Razoens; lhe faça Vossa Magestade merce de que se faça declaraçam na sua Patente, de que concede a sua pessoa somente os quarenta mil réis de soldo que pede, o qual se lhe satisfarâ pellos efeitos, perdante he paga a infantaria daquella capitania, e que eles os vencera emquanto servir, e se ocupar na defença daquella conquista porque nos que suscederem neste posto poderão não concorrer as circumstancias que no Supplicante se achão. Lisboa 24 de nouvembro de 1691.2192

Ao dar razão para os motivos alegados por Antônio Arcoverde em seu requerimento, o Conselho conseguiu não somente o apoio desta referida liderança, mas, principalmente, convencia o rei de Portugal para com que seus comandados, parentes e descendentes não rompessem a aliança firmada com os portugueses, caso não houvesse um sucessor indígena para ocupar o importante cargo de Governador dos Índios. Nesse contexto, o argumento utilizado pelo Conselho Ultramarino para convencer “sua” Majestade foi relatar que desde os conflitos contra os neerlandeses, atuando ao lado do seu pai, esse chefe indígena contribuiu para as vitórias nas guerras, assim como para os projetos de colonização portuguesa, notadamente naqueles sertões do Brasil. 2190

Requerimento do capitão-mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559. 2191 Requerimento do capitão-mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559. 2192 Requerimento do capitão-mor e Governador dos Índios, Antônio Pessoa Arco Verde, ao rei, D. Pedro II. 15 de dezembro de 1691. AHU_ACL_CU_015, Cx. 15, D. 1559.

665 ISSN 2358-4912 Contudo, quando o Conselho mencionou sobre os danos que os povos indígenas no sertão vinham ocasionando, na verdade, tal discurso reforçava o fosso, já existente, na hierarquia, mas também no imaginário social da colônia, entre aqueles que eram considerados vassalos de “sua” Majestade e os chamados “bárbaros Tapuia”, muitos deles hostis à colonização portuguesa.

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OS ANTUNES SUZANO: UMA ELITE SENHORIAL NA PERIFERIA DA CAPITANIA FLUMINENSE (1797) Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz2193 Recentemente, parte da historiografia brasileira que estuda as elites coloniais no Império Português tem destacado as dinâmicas de negociação entre elites coloniais e a coroa portuguesa, valorizando a câmara municipal enquanto espaço de negociação. Esta perspectiva contesta uma corrente historiográfica que valoriza apenas a exploração e a dominação da metrópole sobre as colônias. Além de estimular análises dos grupos que ocupavam os cargos da administração municipal, entendidos enquanto cidadãos capazes de interferir no governo político do Império e de angariar privilégios e emolumentos para si. 2194 Em relação ao Rio de Janeiro, João Fragoso estudou esta elite entendendo-a como nobreza principal da terra. Noção que não se confunde com a nobreza de pergaminho do Reino, mas que se define enquanto elite da terra, já disposta nas Ordenações Filipinas, “segundo as quais os postos honrosos da república, elite política local, deviam ser ocupados pelos mais sábios e moderados descendentes dos primeiros povoadores”. 2195 Para o autor, muitos sujeitos que compunham este grupo, vinham de segundo ou até terceiro escalão nas hierarquias do reino e procuravam o enobrecimento no novo mundo. Sustentados na ideia de conquista, rogavam para si mercês reais por seus serviços prestados e eram recompensados, reproduzindo no ultramar a lógica da economia do dom, presente no Reino. Segundo Fragoso, o desenvolvimento político e econômico deste grupo se deu através de mecanismos vindos do antigo regime português. 2196 O primeiro deles seria a associação à ideia de conquista. Compreendiam-se como descendentes daqueles que empreenderam a conquista, lutando contra o gentio e defendendo a Coroa em terras longínquas. E com base nestes aspectos se entendiam como os principais da terra, aqueles que eram dignos de assumir a governança da terra, ou seja, preencher os quadros da câmara municipal. Estes elementos colaborariam para o aumento “material, simbólico e social” deste grupo. E o aumento de sua fortuna material se daria através de emolumentos possíveis com o exercício de cargos, seja interferindo diretamente no mercado a partir da câmara, tendo privilégios no monopólio de contratos, recebendo sesmarias, tendo acesso a crédito de algumas instituições, como o Juizado de Órfãos, ou através da produção dos seus engenhos. Vale lembrar que o poder das câmaras municipais é entendido a partir da prerrogativa de autogoverno dos municípios no interior da monarquia pluricontinental portuguesa. 2197 Ou seja, todas estas movimentações ocorrem no âmbito dos valores e lógicas de uma monarquia corporativa e polissinodal, marcada pelo compartilhamento do poder e por hierarquias justificadas pela ordem natural. 2198 Quando os principais da terra se entendiam como qualificados naturalmente para o governo do 2193

Graduando em História pela UFRJ. Pesquisa apoiada pelo PIBIC-UFRJ. FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F., BICALHO, M. F. B., “Uma leitura do Brasil colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no Império” In Revista Penélope, n. 23, 2000, p. 76. 2195 FRAGOSO, J. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014, p. 171. 2196 FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI – XVII) In O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F.; GOUVÊA, Maria de F. S. (org). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 42. 2197 FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (Org.). Monarquia Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso. 1ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2012. 2198 BEUNZA, J. M. Imízcoz. El entramado social y político in Historia de España em la Edad Moderna. Pg. 58. Ver também: HESPANHA, A. M. e XAVIER, Ângela Barreto. "A representação da sociedade e do poder", In: História de Portugal, IV ("O Antigo Regime", dir. A. M. Hespanha), Lisboa, Circulo de leitores, 1993. 2194

667 ISSN 2358-4912 munícipio por terem empreendido a conquista da terra, eles agiam a partir desta lógica hierárquica e corporativa dada pela natureza das coisas. No entanto, as transformações enfrentadas pela cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII desequilibram esta nobreza da terra, trazendo novos atores para o topo da sociedade. Como já é extensamente sabido, o século XVIII modifica profundamente a cidade do Rio de Janeiro, transformando-a no principal porto do atlântico sul, destino do ouro das Minas e importante eixo comercial entre diversas partes do Império. Sampaio afirma que a descoberta do ouro estimulou relações comerciais entre diversas partes do Império, tanto entre áreas do Brasil, quanto com áreas do outro lado do Atlântico - como o contrabando com reinos africanos. E estas relações seriam no decorrer do século XVIII, cada vez mais efetuadas através da cidade do Rio de Janeiro, colaborando para que esta cidade se consolidasse como principal porto do Brasil e intensa praça mercantil. 2199 Segundo Sampaio, há uma mudança no perfil da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII. Ressalta a acumulação de capital num estrato de negociantes, a formação de uma franja de fazendas produtoras de gêneros alimentícios ao redor da cidade, a valorização dos imóveis urbanos em relação aos rurais e a crescente importância comercial da urbe na dinâmica imperial através do abastecimento das minas, das transações com Angola e com áreas da América espanhola. Sampaio identifica que,

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Pela primeira vez nos cem anos observados [1650-1750] e, podemos dizer sem medo de errar, em toda a história fluminense, o valor das transações de imóveis situados na urbe carioca ultrapassou 2200 as que envolviam o sistema agrário que a circundava.

Este processo ocorria pari passu a valorização dos negócios urbanos frente ao total dos negócios rurais. Sampaio chama a atenção para uma espécie de urbanização da cidade, apoiado nas transformações ocorridas na urbe, como o sistema de crédito que ganha novos contornos impulsionado pelo fortalecimento contínuo do capital mercantil.2201 De forma simplista poderíamos dizer que o caráter mercantil da cidade ganhava força e a importância proporcional dos bens agrários começava a cair. Neste ambiente, o autor chama a atenção para a consolidação de uma elite vinculada ao comércio, controlando o acesso ao crédito e a mão de obra. Esta elite se destacaria por sua vultosa capacidade econômica e pelo progressivo acesso a honrarias provocando insatisfação na elite agrária, identificada com os principais da terra e que até a primeira metade do século XVIII dominava os cargos cimeiros da república. O desconforto provocado pelo surgimento deste novo grupo no cenário da cidade já é sentido por volta de 1730, quando a nobreza da terra tenta defender suas prerrogativas de mando político frente às tentativas de ingresso dos homens de negócio na câmara. 2202 E desta tensão, boa parte da nobreza da terra identificada com os conquistadores quinhentistas definharia. ** Partimos para análise da freguesia de Campo Grande tendo como pano de fundo este embate entre elite agrária e elite de negócios. Mesmo entendendo que estes dois grupos dominam o cenário do século XVIII, a presença das Minas de ouro e seu impacto sobre a vida dos homens do Rio de Janeiro possibilitava outras formas de acumulação. Este é o caso dos Antunes Suzano. Cujas origens remontam ao nome de Manuel Antunes Suzano, que atuava no Rio de Janeiro como procurador de 2199

SAMPAIO, A curva do tempo: as transformações na economia e na sociedade do Estado do Brasil no século XVIII. In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014, p. 316. 2200 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. P 88 2201 Idem, p. 89. 2202 FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (1700-1760) in FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de F. Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2010. p. 253.

668 ISSN 2358-4912 sujeitos ligados ao ouro das minas gerais, sendo “um dos maiores advogados da praça fluminense da primeira metade do século XVIII, encarregado em quase 10% das 380 escrituras nas quais se nomeou procurador para a capitania do Rio de Janeiro”. 2203 O doutor Manuel Antunes Suzano se destaca ainda em seu inventário pela quantidade de livros que deixa, ressaltando-o enquanto letrado. 2204 O desenvolvimento e o sucesso de suas atividades devem ser entendidos a partir da transformação da cidade do Rio de Janeiro em importante praça mercantil no primeiro quartel do século XVIII. Digo sucesso de sua atividade, pois sua atuação econômica possibilita que ele adquira propriedades e em médio prazo contribua para dar status senhorial a sua família, que em fins do século XVIII possui três engenhos de açúcar na freguesia de Campo Grande, além de ter seus herdeiros com propriedade sobre considerável parte das terras da região. Esta origem e trajetória diferenciada ampliam nossa visão sobre as possibilidades do século XVIII, já que os Antunes Suzano aparecem como elite rural, maiores proprietário de terras da freguesia, ostentando cargos militares nas milícias locais (provavelmente), mas que não se tem notícia de ocuparem cargos na câmara ou em qualquer outra esfera política da capitania. Ao contrário da nobreza da terra que dominara a freguesia em começos do século, eles parecem circular menos pela capitania, mas antes enraízam na periferia de um porto atlântico. E isto fica claro se comparado com os Freire Alemão, representantes da nobreza, família das mais importantes da freguesia em começos do século XVIII. E é seguindo o nome de alguns indivíduos e através de intenso cruzamento de fontes – escrituras de compra e venda, testamentos e registros de batismos de livres e escravos – conseguimos percorrer a trajetória dos Freire Alemão. Seu capo, Manoel Freire Alemão, através de casamento integra o grupo dos principais da terra e, inclusive é listado, em 1697, entre os “homens bons e cidadãos desta praça” que assinam uma petição ao rei, solicitando revogação de ordem real sobre o preço do açúcar e reclamando sobre a falta e o excessivo preço dos escravos vindos de Angola e por liberdade para que os navios do porto do Rio pudessem fazer este comércio sem interferência do governo de Angola. 2205 Ou seja, nesta petição, Manoel Freire Alemão aparece como homem bom e cidadão do Rio de Janeiro participando do governo da cidade, negociando com o poder central. Alguns anos depois, mesmo que endividado, este mesmo homem consegue montar um engenho de açúcar e ser uma das principais famílias na freguesia de Campo Grande, além de transferir o exercício de cidadania para seu filho, João Freire Alemão, vereador da câmara do Rio de Janeiro em fins da década de 1720. 2206 No entanto, os Freire Alemão não eram homens extremamente ricos e frequentemente recorriam a empréstimos nas mãos de homens de negócio. 2207 E por volta de 1750, o engenho já não pertence à família. Para João Fragoso, esta nobreza principal da terra não era caracterizada por grande riqueza. E este descompasso entre riqueza e poder político, já estava visível nos conflitos entre nobreza da terra e homens de negócio. Ou seja, neste momento, riqueza não coincidia, necessariamente, com poder político. Com isso, estes fidalgos se utilizavam de diversos artifícios para se estabelecer. Passando por estratégias matrimoniais – com a absorção de genros -, estratégias de transmissão de patrimônio e mesmo práticas de legitimidade social junto à população livre e escrava de suas freguesias – V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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MATHIAS, Carlos Kelmer. Participação de segmentos sociais fluminenses nas procurações passadas na capitania de Minas Gerais (1711-1730). História e Perspectivas, Uberlândia, 40, Jan/Jun 2009. P.229. Disponível em . Acessado em 30/06/14 às 15h. 2204 ABREU, Márcia. Quem lia no Brasil Colonial? INTERCOM. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001. Disponível em: Acessado em 30/06/14 às 14h. Inventário do Dr. Manoel Antunes Suzano (livros do Dr Manoel Antunes Suzano e sua mulher D. Antonia de Souza Matos em 1783 (AN, Inventários, cx. 3629 n. 22). 2205 Disponível em . Acessado em 27/06/2014 às 22:00h. 2206 ACMRJ. Livro de Óbitos e Testamentos de Livres e Escravos, freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé (1746-1758). AP-0155. 2207 Manoel Freire Alemão já havia realizado empréstimos junto José de Souza Barros, homem de negócios, em 1712. Em 1715 faz um novo empréstimo com outro homem de negócio, Antônio Rodrigues Barros, no valor de 2:050$000. Disponível em Acessado em 30/06/14 às 14h.

669 ISSN 2358-4912 principalmente, através da construção de parentescos artificiais. Vale lembrar que estamos analisando uma sociedade onde as relações econômicas, muitas vezes, se confundem com parentais – como o possível não pagamento de foro para partidistas parentes ou clientes. A análise destes parentescos é feita, prioritariamente, através dos registros paroquiais de batismos. Nestes registros podemos perceber a construção de alianças entre famílias, clientelas e a definição de hierarquias sociais costumeiras. E tendo esta perspectiva em vista é possível identificar um perfil demográfico da freguesia, além de identificar as teias de solidariedade e clientela entre famílias senhoriais e outros grupos daquela região. Abaixo se vê duas tabelas sobre a população de mães livres da freguesia, identificando-as pela condição social em que são classificadas no livro de batismos para a primeira e segunda metade do século XVIII, respectivamente. Podem servir como indícios para análises.

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Tabela 1. Distribuição da condição social das mães livres por quantidade de batismos (1707-1740) Condição da população de mães livres (1707-1740) Categoria Nº de batismos % Livres 250 82 Índia da terra 8 2,6 Pardas 8 2,6 Pardas forras 22 7,2 Preta forra 10 3,3 Não catalogáveis 7 2,3 Total 305 100 Livro de Assentos Paroquiais de Batismo de Livres e Escravos de Campo Grande, 1704-1799, da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.

Tabela 2. Distribuição da condição social de mães livres por quantidade de batismos (1750-1799) Condição da população de mães livres (1750 - 1799) Categorias Nº de batismos % Pardas-forras 343 26,6 Pardas 29 2,4 Pretas-forras 58 4,6 Crioulas-forras 48 3,4 Cabras forras 16 1,4 Escravas 55 4,4 Livres 717 55,6 Índias 3 0,2 Expostas 11 0,8 Crioulas 3 0,2 Índia forra 1 0,07 Não catalogável 4 0,33 Total 1288 100 Livro de Assentos Paroquiais de Batismo de Livres e Escravos de Campo Grande, 1704-1799, da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.

Algumas questões saltam aos olhos. Primeiro, a maior diversidade de termos na designação da condição social das mães na segunda metade do século XVIII. Segundo, a diminuição do número de mães denominadas “livres”, o que, em parte, é consequência da diversificação de termos. Terceiro, o substancial crescimento de mães pardas forras, de 7,6% no primeiro quadro para 26,6% no segundo. Quarto, a maior presença de mães forras, de modo geral.

670 ISSN 2358-4912 Esta pulverização de designações nos demonstra, de um lado, a existência de clivagens entre os setores subalternos e de outro a possibilidade de mobilidades sociais na parte de baixo da sociedade. Estas distinções dariam de certa forma, elasticidade à sociedade escravista, já que “tanto a alforria como a incorporação de descendentes de libertos no corpo hierárquico da sociedade – não raro como senhores de escravos – desempenharam muito bem um papel estrutural de reforçar a escravidão”. Nesse sentido resistência à escravidão não estaria apenas relacionada às fugas e aos quilombos, mas também a uma espécie de inserção social diferenciada, numa distinção de iguais. 2208 Assim, como afirma Fragoso em texto recente, “o peso dos libertos na organização da sociedade alargou-se sensivelmente”. 2209 Desta forma, se o perfil das elites estava mudando, a parte de baixo daquela sociedade também estava fervilhando. O que resulta na seguinte constatação: se na primeira metade do século XVIII, os chefes de uma família senhorial nobre como a dos Freire Alemão aparecem como padrinhos de 15 escravos, na segunda metade do mesmo século, uma família senhorial como os Antunes Suzano não aparece apadrinhando um único escravo. Mas aparecem apadrinhando filhos de pardos forros. E, não raro, estes mesmos pardos forros é que aparecem apadrinhando escravos. Como o caso do pardo forro, Miguel de Siqueira. Em 1796, este escolhe o tenente Luiz Antunes Suzano como padrinho para seu filho Adriano. Luiz Antunes Suzano, proprietário de terras em Rio da Prata, faz parte, obviamente de nossa conhecida família Antunes Suzano, elite senhorial da região. O mesmo Miguel de Siqueira aparece servindo como padrinho para o filho de escravos em 1797 e 1799. Há indícios de que em fins do século XVIII estes forros servem como elo entre a casa grande e a senzala.

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*** Acima sublinhamos os Antunes Suzano como uma elite rural de trajetória diferenciada, afirmando que esta família se estabelece na freguesia de Campo Grande no decorrer do século XVIII se firmando como a principal família da região. E para desenvolver estas questões recorremos à documentação inédita, um mapa populacional feito em 1797 para a freguesia. A partir dele pode-se identificar a composição dos domicílios, a distribuição de acesso a terra, quantidade de escravos por domicílio, além de listas dos produtos plantados e exportados na região. Em 1797, a freguesia de Campo Grande era habitada por 3.589 moradores, incluindo livres e escravos, sendo caracterizada, majoritariamente, pela produção de açúcar. Daí a presença de 13 engenhos de açúcar e de uma infinidade de partidistas que alimentam esta produção. Abaixo é possível analisar a distribuição geral do acesso a terra na freguesia (tabela 3), a distribuição de renda por grupo em 1797 (conferida a partir dos lucros com exportação – tabela 4) e a distribuição de mão de obra cativa por grupo (tabela 5). Tabela 3. Distribuição do acesso a terra por tipos de domicílio em Campo Grande, 1797 % Distribuição de domicílio por tipo Nº Partidistas 210 58,8 Forados 64 17,9 Senhores de engenho 13 3,6 Proprietários 28 8 Grátis 18 5 s/i 24 6,7 Total 357 100

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FERREIRA, R. Guedes; SOARES, M. D. Tensões, comportamentos e hábitos de consumo na sociedade senhorial da América Portuguesa In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014, p. 562. 2209 FRAGOSO, J. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741 In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014.

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ISSN 2358-4912 As tabelas demonstram a forte concentração de renda e de escravos entre os senhores de engenho, e isto ganha mais relevo se tivermos em conta que a freguesia contava com apenas 13 engenhos e 210 partidos, onde a maior parte dos partidistas possuía um ou dois escravos adultos e os senhores de engenho possuíam no mínimo 18 e no máximo 80 cativos. A relevância dos Antunes Suzano pode ser constatada se tivermos em conta que a renda família Antunes Suzano com as exportações representa cerca de 30% do total da renda dos senhores de engenho para o período. Tabela 4. Distribuição da renda através das exportações, por tipo de domicílio em 1797 Relação com a terra (domicílio) Foreiro Grátis Partidista Proprietário s/i Senhor de Engenho Total Geral

Valor de Exportação 2:020$460 72$390 9:876$980 5:618$470 822$280 44:116$460 62:527$040

Tabela 5 Distribuição de mão de obra cativa adulta por tipo de domicílio (Machos+Fêmeas) Tipo Machos ad. Fêmeas ad. 117 Foreiros 68 49 1 Grátis 1 414 Partidista 231 183 229 Proprietários 107 122 18 s/i 11 7 591 Senhores de Engenho 317 274 Totais 735 635 1370

% 3,3 0,1 15,7 9 1,4 70,5 100

% Total 8,4 0,7 30,1 16,6 1,2 43 100

Desta forma temos alguns indícios a respeito das diferenças que caracterizam uma elite forjada com base no ideal quinhentista, de nobreza principal da terra, e outra, que é possível graças ao contato com o ouro das Minas. Ressalto que estas mudanças no perfil das elites, também acontecem nos setores subalternos e, consequentemente, podem transformar o caráter das relações de solidariedades e clientelas. Referências ABREU, Márcia. Quem lia no Brasil Colonial? INTERCOM. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001. Disponível em: ; BEUNZA, J. M. Imízcoz. El entramado social y político in Historia de España em la Edad Moderna. Pg. 58. Ver também: HESPANHA, A. M. e XAVIER, Ângela Barreto. "A representação da sociedade e do poder", In: História de Portugal, IV ("O Antigo Regime", dir. A. M. Hespanha), Lisboa, Circulo de leitores, 1993. FERREIRA, R. Guedes; SOARES, M. D. Tensões, comportamentos e hábitos de consumo na sociedade senhorial da América Portuguesa In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014.

672 ISSN 2358-4912 FRAGOSO, J. Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741 In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014. ________, João. Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII In FRAGOSO, J., GOUVÊA, M. F. (orgs.). Coleção: O Brasil Colonial vol. 3 (1720-1821). Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2014. ____________, J., GOUVÊA, M. F., BICALHO, M. F. B., “Uma leitura do Brasil colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no Império” In Revista Penélope, n. 23, 2000. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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NO LABIRINTO DAS ESTRATÉGIAS: BAHIA E PERNAMBUCO E A CONSTITUIÇÃO DAS REDES DE COMÉRCIO INTRACAPITANIAS - 1759 A 1787. Jéssica Rocha de Sousa2210 Este estudo, resultante de pesquisa em andamento feita no âmbito do Programa de Iniciação Científica (PIBIC-FACEPE) insere-se nos recentes estudos historiográficos sobre a América portuguesa que têm apresentando importantes contribuições para um melhor entendimento de temáticas pertinentes ao período. Apesar de ser de interesse geral muito pouco se têm explorado as questões relativas ao comércio que se estabeleceu entre capitanias. De acordo com Russel-Woody “Salvador e Recife não se apresentavam mais como meros portos de entrada para pessoas acometidas pela febre do ouro, expandindo igualmente seus alcances em relação aos mercados internos para produtos europeus e escravos africanos” (RUSSEL-WOODY, 1998, p. 29). A afirmativa do autor demonstra a importância que estas redes internas irão assumir a partir do século XVIII, e a necessidade de se realizar a análise deste ramo do comércio colonial. Na segunda metade do século XVIII uma nova ordem administrativa ligada às questões mais práticas de governação se estabelecerá em Portugal tendo por objetivo, uma maior centralização do poder real, bem como um maior domínio econômico sobre as conquistas e colônias. Esse conjunto de medidas modernizadoras irão se estabelecer a partir da nomeação de Sebastião José de Carvalho e Mello – Conde de Oeiras, o futuro marquês de pombal para o cargo de primeiro ministro do reino. Influenciado pela corrente iluminista que se disseminava por toda a Europa, Portugal sob os auspícios do marquês, desenvolveu um conjunto de reformas políticas e econômicas que tiveram por objetivo combater o atraso econômico. Dentro desse contexto, políticas com o intuito de revitalizar o comércio português foram postas em ação. Pernambuco será palco de atuação intensa das políticas reformistas propostas por Pombal. No bojo destas mudanças, destaca-se a criação das Mesas de Inspeção da Agricultura e do Comércio na América portuguesa, sobretudo nas capitanias da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco no ano de 1751. Em Pernambuco a Mesa será instalada em 1752, e em principio provocará uma série de manifestações contrárias ao seu funcionamento (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 81. D. 6707; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 73 D.6140). A mesa tinha como atribuições controlar a qualidade do açúcar e do tabaco produzidos e comercializados na capitania, evitar fraudes e contrabandos, agindo ainda na fiscalização dos preços, bem como, atuar no sentindo de aumentar a cultura do açúcar. No Recife o açúcar será o principal gênero de ocupação do órgão, uma vez que, vivia-se um momento de declínio na produção local de tabaco que sofria concorrência das plantações da vizinha Bahia. O surgimento das Mesas vem junto à necessidade de se arbitrar o preço do açúcar e de se evitar as fraudes que eram uma constante na produção do mesmo (SOUZA, 2005, p. 3). Quanto a sua formação a Mesa era composta por um presidente que seria o Ouvidor Geral da Capitania e dois juízes inspetores com mandatos de um ano, um escolhido pelos homens de negócio da praça para representar seus interesses e outro eleito pela Câmara do Recife, representante dos direitos dos senhores de engenho e produtores. Eram estes dois últimos elementos reunidos que fixavam os preços dos açucares, classificavam-nos de acordo com sua qualidade e verificavam a integridade dos mesmos (FARIAS, 2012, p. 134; SOUZA, 2005, p. 3). A instalação da Mesa de Inspeção logo será alvo de queixas e representações por parte da população. Como podemos perceber em ofício da Câmara de Olinda datado de 1752 onde senhores de engenhos que suplicando pela manutenção do “bem comum” pedem a Majestade real o retorno ao antigo sistema de louvados2211 (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 73, D. 6140) , bem como, em ofício do ano de 1756, também dos oficiais da câmara de Olinda, que explicitamente demonstram 2210

Bolsista de iniciação científica PIBIC/FACEPE e discente do curso de licenciatura em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. 2211 Antes da instituição da mesa de inspeção a definição dos preços dos açucares era feito através de um sistema conhecido como louvados. Eram escolhidos dois representantes dos donos de engenhos e produtores de Olinda e dois representantes dos homens de negócio da Praça do Recife que se reuniam para definir os preços quando do período das frotas.

674 ISSN 2358-4912 descontentamento para com a Mesa (AHU –Avulsos de Pernambuco Cx. . 81, D. 6707). No entanto essas queixas serão infrutíferas permanecendo a Mesa de Inspeção como órgão fiscalizador e regulamentador do açúcar. O que acontece após um primeiro momento de estranhamento a despeito do novo sistema foi a sua incorporação as tramas e interesses locais, se tornando uma instituição amplamente integrada à sociedade pernambucana que exercerá papel fundamental na defesa dos direitos dos senhores de engenho a partir da instalação do monopólio da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba no ano de 1759, opondo-se claramente a direção desta. Não se pode falar em comércio em Pernambuco no período estudado sem tratar da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba que entre os anos de 1759 a 1780 foi a detentora do “comércio exclusivo das duas capitanias de Pernambuco e Paraíba, com todos os seus distritos, e nos quais ninguém mais podia extrair, “mercadorias, gêneros ou frutos” (CARREIRA, 1982, p. 224). A Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba nascerá no contexto das reformas pombalinas exercidas pelo marquês durante o reinado de D. José I. Desde o inicio de seu governo foi ganhando corpo a ideia da criação de companhias privilegiadas de comércio que poderiam dar alívio as despesas do Estado, servindo para ampliar os negócios da coroa por meio de uma política de maior arrecadação fiscal (DIAS, 2005, p. 1; JÚNIOR, 2004, p. 74). Em Pernambucano desde o governo de D. João V, existiam pretensões de fundar uma companhia de comércio, que atuasse exclusivamente no tráfico negreiro (JÚNIOR, 2004, p. 77). Esta companhia seria controlada pelos mercadores coloniais. O projeto da companhia pretendia aumentar o comércio que já se praticava com as regiões de Angola, Cabinda, Benguela e Ajudá, aumentando a entrada de escravos na dita capitania (DIAS, 2005, p. 7). Em conjunto com a criação da companhia destinada a compra e venda de escravos lançou-se outra proposta ao reino, a criação de uma companhia que se empregasse a explorar as carnes secas e couros do sertão, ou seja, uma companhia voltada para o comércio interno com a finalidade de aumentar a produção colonial. Os colonos sabiam da boa disposição do reino na criação de companhias, quando encaminham suas propostas, o que lhes é omitido é que Pombal já pensara a criação de uma companhia para a região, no entanto tratava-se de uma empresa que privilegiasse os comerciantes reinóis e não o contrário. A companhia foi fundada oficialmente através de alvará régio do ano de 1759, com o objetivo de fazer prosperar a agricultura da região de Pernambuco, fornecendo um suprimento regular de mão-deobra escrava bem como, atuando na compra e exportação dos produtos coloniais, e transportando através de frotas regulares as mercadorias do reino para a região (DIAS, 2005, p. 17). A empresa era composta por uma junta administrativa sediada em Lisboa e formada por provedor, 10 deputados, um secretário e três conselheiros. Possuía duas sedes subalternas uma em Pernambuco e outra na cidade do Porto; contavam na direção, cada uma, com um intendente e seis deputados. Além das duas diretorias e da sede a Companhia possuía ainda administração ou procuradores/representantes na Paraíba, Rio de Janeiro, Bahia, Fayal e São Miguel. Apesar da inicial resistência os principais negociantes da Praça tornam-se grandes acionistas da Companhia. Um seleto grupo dos grandes homens de negócio que por muito tempo assumirá cargos na direção pernambucana, deterão o controle de muitas ações que pertenciam a sua parentela, ou atuarão como representantes de pequenos acionistas. No entanto a maior parte dos capitais da empresa estavam sediados na metrópole, que era detentora de 87% das ações. Desde sua instalação a firma será alvo de queixas por parte da população, muitas serão as representações e denúncias encaminhadas ao rei sobre sua má administração e o estado de decadência em que se achava a Capitania de Pernambuco. A oposição instalada ao monopólio será liderada pelos senhores de engenho e produtores, Mesa de Inspeção, governadores da capitania em especial José Cesar de Menezes, algumas câmaras ultramarinas (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.127. Doc. 9656; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 130 Doc. 9830) e uns poucos homens de negócio que não se tornaram acionistas da empresa, uma vez que, segundo José Ribeiro Júnior (2004) e Clara Farias (2012) a maior parte dos mercadores e negociantes acabaram se integrando a empresa. A Mesa de Inspeção no bojo dessas questões ocupará lugar de destaque nos embates travados contra a direção da Companhia. Segundo George Cabral será a partir da vigência do monopólio que os locais passarão a utilizar a Mesa como ferramenta no atendimento de seus interesses. O autor ressalta que: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ISSN 2358-4912 É importante não perder de vista que a composição de dois dos três postos desta Mesa era uma atribuição local. Logo, sua atuação se pautará a partir da instalação da Companhia, por uma clara tendência de se contrapor às posições da Direção do Recife (SOUZA, 2005, p. 5).

O conjunto documental analisado deixa evidente a desarmonia entre as duas entidades, durante nossa pesquisa encontramos pelo menos dois documentos que denunciam a querela entre as duas instituições, colocando-se a mesa nas duas ocasiões em defesa dos produtores e senhores de engenho em desfavor dos interesses da companhia (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 100, D. 7816; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 109, D.8406). Com o advento da Companhia e a perda de jurisdição sobre certos assuntos por parte da Mesa cria-se um clima de tensão que só tenderá a crescer durante os anos em que o monopólio do comércio passou a agravar a situação econômica da capitania e a desagradar uma quantidade cada vez maior de pessoas Outro grande elemento perturbador da política monopolista da empresa foi o contrabando, prática recorrente na história da colonização da América portuguesa e que no século XVIII, passará a ser combatida com maior ênfase por parte da Coroa (NOVAIS, 2013, p. 2-3). As redes comerciais estabelecidas entre as Praças da Bahia e Pernambuco no período estudado estarão alicerçadas em práticas ilícitas. As relações entre as duas capitanias eram estreitas, o contrabando de gêneros trazidos pelos portos da Bahia para Pernambuco e vice-versa será uma constante na documentação. A grande falta de dinheiro que se experimentava na capitania de Pernambuco pela forma como procedia a Companhia Geral em suas transações, não pagando em dinheiro e sim em crédito ou “efeitos” fez crescer a perniciosa prática do contrabando, uma vez que, os produtores que recebiam seus pagamentos em forma de fazendas as iam vender nos portos baianos a fim de amealhar os recursos necessários, liquidez, para a sustentação de suas plantações. O grande palco de atuação destes grupos de contraventores era o sertão, região que engloba uma grande faixa litorânea intercortada por vários rios navegáveis entre eles o importante Rio São Francisco e seus afluentes que ligavam as capitanias da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. Ao longo dessa faixa encontravam-se diversos portos de pequeno porte por onde antes da instalação da Companhia já se realizavam transações mercantis. Os contrabandistas agindo preferencialmente à noite utilizavam os pequenos portos sertanejos no atendimento de seus interesses. Provavelmente cientes dos poucos riscos de se praticar aquele comércio devido à parca fiscalização e interessados nos lucros provenientes do ato de ilicitude lavradores, senhores de engenho, comerciantes, mestres de navios e comissários se arriscavam em manobras de compra e venda de produtos contrabandeados longe do monopólio praticado pela Companhia Geral. Em ofício do ano de 1770 o governador de Pernambuco a época, Manoel da Cunha Meneses ao falar sobre os perniciosos contrabandos estabelecidos entre a capitania da Bahia e Pernambuco nos dá informações importantes acerca da dinâmica comercial desenvolvida nos vales do Rio São Francisco. Segundo o governador “O sertão deste continente é um dos mais povoados” complementa afirmando que as margens do rio existem diversas povoações e a respeito do comércio na região diz que “este rio divide esta capitania da Bahia [...] além das povoações já ditas é muito vadiável de embarcações ligeiras” por onde se transportam “toda a conta de fazendas que estão tão abundantes estes sertões e neles as introduzem os moradores de uma e outra parte” (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 108 D.8371). Alguns anos mais tarde em 1779, o ouvidor da Comarca de Alagoas nos trará detalhes sobre a organização deste pernicioso comércio. Segundo o mesmo “Por todos estes engenhos já não há uma só caixa (de açúcar), que não esteja vendida pelo exorbitante preço de treze tostões por arroba a diferentes e muitos fabricantes que vieram da Bahia a este propósito” (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133, D. 10012). Segundo o ouvidor a estratégia dos grupos de contraventores consistia em transportar para as praias da região sertaneja as caixas contrabandeadas durante a noite em “jangadas e sumacas que existem atualmente na ilha de Santo Aleixo e em Una donde francamente tem saído de próximo cinco ou seis” (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133, D. 10012). A documentação trabalhada nos revela que os rios funcionaram como vias de escoamento de toda uma gama de produtos ilícitos, utilizando-se de pequenas e ligeiras embarcações os contrabandistas farão entrar nas Praças da Bahia e de Pernambuco através dos portos do sertão uma grande quantidade de mercadorias não autorizadas. Os circuitos comerciais desenvolvidos no sertão serão peça chave na

676 ISSN 2358-4912 rede de abastecimento do mercado ilegal que se estabeleceu entre Bahia e Pernambuco na segunda metade do XVIII. O conjunto documental nos revela que as transações ilícitas entre as duas capitanias eram um negócio muito mais extenso e estruturado do que simples vendas esporádicas de produtos contrabandeados. As conexões mercantis que se estabeleceram entre os contraventores eram elemento fundametal para o sucesso de um emprendiemento ilegal. Segundo Gouvêa o que determina o nexo fundamento de uma rede é:

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a sua constância e recorrência no desenrolar das conexões que a compõe, bem como a sua capacidade de influir, de intervir, de desenvolver estratégias, de alterar o ritmo e o rumo dos acontecimentos em razão de um dado objetivo ou interesse (GOUVÊA,2010, p. 167-168). Aplicando essa perspectiva para nosso objeto de estudo, podemos afirmar que verdadeiras redes governativas se desenvolveram dentro daquele pernicioso comércio que unia Bahia e Pernambuco. Uma vez que, a rota dos sertões será explorada de forma insistente e contínua ao longo da segunda metade do XVIII, por homens que desenvolveram uma complexa malha de contatos e conexões que envolviam até mesmo autoridaes régias e oficiais da própria Companhia nos descaminhos. A documentação ainda nos revela a grandiosidade e organização das redes que contavam inclusive com mestres de embarcações especializados naquele segmento (AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133 D. 10012; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137 D. 10197), além é claro de possuírem correspondentes e comissários, como qualquer outro ramo do mercadejar setecentista. A fiscalização da Companhia Geral comumente restringia-se ao porto do Recife, por onde deveriam ser embarcadas e desembarcadas todas as mercadorias chegadas à capitania pernambucana. Ressaltase aqui que o monopólio da Companhia não se estendia aos sertões como nos revela o documento de instalação da empresa no seu capítulo 25: [...] É Vossa Majestade servido conceder-lhe o comércio exclusivo das duas capitanias de Pernambuco e Paraíba com todos os seus distritos [...] exceptua-se, porém o comércio de Pernambuco e Paraíba para os portos do sertão, Alagoas e Rio de São Francisco do Sul, o qual será livre a todas, e quaisquer pessoas como até agora o tem sido (CARREIRA, 1982, p.290).

Como vimos anteriormente os comerciantes pernambucanos no começo do XVIII requereram junto a sua Majestade a instalação de uma companhia que se integrasse as rotas do sertão, ou seja, era do interesse dos locais explorar o comércio daquelas paragens de forma organizada, o que confirma ser a região lugar de trânsito mercantil florescente. O problema deste comércio que fugia das malhas da tributação monopolista estava no destino que essas mercadorias tomavam, vindo invariavelmente inundar a praça mercantil de Pernambuco com produtos bem mais em conta do que os vendidos pela Companhia. A preocupação também se dava em sentido contrário, ou seja, com os produtos que saiam de Pernambuco e iam abastecer a Praça baiana sem passar pelas mãos da Companhia ou mesmo se isentando de pagar os direitos dos contratos reais. As mercadorias que transitavam entre as duas praças eram variadas. Vinham e iam para os portos de Pernambuco e Bahia toda uma sorte de mercadorias das quais destacamos: as fazendas secas e molhadas, madeira, tabaco, fazendas da Europa e provavelmente da Índia também, escravos, sola, couros, mel e principalmente caixas de açúcar. A relação aqui demonstrada não dá conta de todo o comércio ilícito que irá se desenvolver entre as duas praças, enfatizando apenas aqueles produtos que aparecem em maior grau na documentação trabalhada.2212 O contrabando será uma constante durante os vinte e um anos de existência da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba. Essa prática será alvo de grande preocupação por parte da coroa e da junta da companhia sediada em Lisboa, sendo um assunto recorrente na documentação. Ao longo de todo período do monopólio exercido pela empresa muitas serão os ofícios trocados entre os governadores da Capitania de Pernambuco e as autoridades reais tratando do tema. (AHU – Avulsos de Pernambuco, Cx. 108 D. 8371; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133 doc. 9966). O combate ao 2212

Os documentos que fundamentam este trânsito são numerosos e encontram-se disponíveis no A.H.U. PE.

677 ISSN 2358-4912 comércio ilícito não era tarefa das mais fáceis, as autoridades reais queixavam-se da “grande dilatação que tem o continente da jurisdição deste governo” (AHU – Avulsos de Pernambuco, Cx. 108 D. 8371; AHU – Avulsos de Pernambuco, Cx. 133, D. 10012) que tornavam inúteis todas as medidas empregadas em conter as contravenções. Além disso, denunciavam ao rei a grandiosidade do esquema que envolvia autoridades régias, oficiais e deputados da própria Companhia (AHU – Avulsos de Pernambuco cx. 130 doc. 98; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 108 D. 8371). O envolvimento de oficiais régios e dos agentes, acionistas e diretores da Companhia será pauta das denúncias feitas à coroa contra a má administração da empresa. Se em um primeiro momento o envolvimento dos próprios deputados e acionistas nos causa estranhamento, vale lembrar que os principais negociantes da praça mercantil pernambucana se tornarão acionistas da empresa e que se estes de início resistiram à ideia da fundação de uma companhia monopolista logo perceberam que para continuar a usufruir de privilégios fazia-se necessário se engendrar na administração da empresa. O que queremos dizer aqui é que os homens de negócio de Pernambuco não eram ingênuos, cientes da criação da Companhia apesar de suas representações desfavoráveis se tornaram acionistas e diretores da mesma, pois sabiam que fazer parte da governação era “um poderoso elemento constituidor de conexões e de fluxos de troca gerados a partir da própria instância administrativa” (GOUVÊA, 2010, p. 180-181) e dessa forma puderam instrumentalizar a instituição para o atendimento de seus interesses fossem eles lícitos ou não. Como podemos perceber ao longo do texto aqui apresentado o contrabando será uma prática extensiva durante todo o período de existência da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba. A grande dilatação da costa pernambucana, o envolvimento de autoridades régias, oficiais e próprios deputados da companhia no esquema ilícito somado a parca força militar empregada no seu combate e o desejo de senhores de engenhos, produtores e comerciantes de fugir das malhas do comércio monopolista farão com que esta prática se torne uma constante na segunda metade do XVIII. No bojo dessas questões, o comércio ilícito com a vizinha capitania Bahia que contava apenas com uma Mesa de Inspeção e não com uma companhia comercial monopolizadora, ganhará vulto. Utilizando as paragens sertanejas, através de seus rios e pequenos portos navegáveis o trânsito de mercadorias ilícitas entre as duas capitanias virará uma rotina.

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ISSN 2358-4912 Manuscritos AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 81. D. 6707; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 73 D.6140 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx.127. D. 9656; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 130 D. 9830 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 100, D. 7816; AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 109, D.8406 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 108 D.8371 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133, D. 10012 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 133 D. 9966 AHU – Avulsos de Pernambuco Cx. 137 D. 10197

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LUTAS E NEGÓCIOS NO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ: JESUÍTAS, MORADORES E A LIBERDADE DOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA COLONIAL João Aluízio Piranha Dias2213 Introdução Este texto tem por objetivo analisar a liberdade no contexto da modernidade e do colonialismo, nas Américas, e no caso específico deste trabalho, no espaço da Amazônia nos séculos XVII e XVIII e, mais precisamente no Estado do Maranhão e Grão-Pará, onde a liberdade dos indígenas foi a tônica dos embates entre colonos e missionários, principalmente nos anos em que esteve na região o padre Antônio Vieira (1653-1661).É uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico e documental, que visa favorecer uma reflexão em torno do que os jesuítas representam na luta pela liberdade e integridade dos indígenas, em terras do Novo Mundo e as implicações dessa luta nos dias atuais, tendo como referência na Amazônia a luta para libertá-los do jugo do cativeiro, e em nome da fé convertê-los ao cristianismo e garantir-lhes o direito à liberdade. Situação que causará desconforto, perseguição e expulsão dos missionários. O texto está estruturado em duas partes: na primeira há uma discussão acerca do conceito de liberdade no contexto da modernidade e do próprio colonialismo que desponta no universo dos princípios norteadores da Idade Moderna. Na segunda parte o trabalho focará com maior atenção o contexto amazônico, em especial aquele do Grão-Pará dos séculos XVII e XVIII, e a luta pela liberdade dos índios, marcada essencialmente pelos embates entre missionários jesuítas, moradores e autoridades portuguesas e os regulamentos e leis que tentavam, de alguma forma, contornar ou conduzir a situação entre os diversos agentes envolvidos na questão. O texto faz referência ainda, à luta pela liberdade dos índios, do frei dominicano Bartolomé de las Casas, na América espanhola do século XVI. A liberdade no contexto da modernidade e do colonialismo Na obra Dialética da Colonização (1992) Alfredo Bosi ao discutir os conceitos de Colônia, Culto e Cultura, inicia o seu trabalho com um pensamento de Ferreira Goulart: “O novo é para nós, contraditoriamente, a liberdade e a submissão”. E assim, ao afirmar que as palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus, Bosi, enfatiza que colo é a matriz de colônia enquanto espaço que está se ocupando, terra ou povo que se pode trabalhar e sujeitar. E mais: “As motivações expressas dos colonizadores portugueses nas Américas, na Ásia e na África inspiram-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o Império” (BOSI, 1992, p. 15), e assim, a Cruz vencedora será plantada na terra do pau-brasil, e subjugará os tupis e demais grupos étnicos, mas, curiosamente, em nome da mesma cruz, haverá quem peça liberdade para os índios, principalmente em decorrência dos conhecimentos e princípios que embalaram o desabrochar da Idade Moderna. Nesse contexto, vários pensadores teorizaram sobre conceitos e princípios que embasaram, fortaleceram e consolidaram a sociedade moderna e/ou burguesa, e as próprias ações de homens que descortinaram o passado anterior baseado em princípios e dogmas religiosos, e se lançaram em busca de um mundo promissor em que a igualdade, a propriedade, a liberdade e o poder tornaram-se vetores desse novo porvir no campo político, econômico e principalmente no social. Dentre os pensadores modernos, destaca-se aqui Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), bem como Bartolomé de las Casas (1474-1566) e Antônio Vieira (1608-1697). Em que cada um a seu modo aborda questões concernentes ao Estado, à sociedade, ao homem, ao poder e à liberdade.

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Universidade do Estado do Pará. E-mail: [email protected]

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A guerra de todos contra todos: poder e competição no estado de natureza. Com este pensamento Hobbes (1989, p. 57) escreve que o poder de um homem, consiste nos meios de que dispõe para obter qualquer bem; e pode ser original (natural) ou instrumental. O poder original é a eminência das faculdades do corpo ou do espírito. O instrumental é adquirido por meio do original ou do acaso (ou seja, por “virtù” ou por “fortuna”). Poder é instrumento para mais poder e, por natureza, tende a expandir-se: O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado. Ou na dependência da vontade de cada indivíduo: é o caso do poder de uma facção, ou de várias facções coligadas. Consequentemente, ter servidores é poder; e ter amigos é poder: porque são forças unidas. (HOBBES, 1989, p. 57).

No que tange à liberdade, esta é entendida como a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem. Para não confundir Hobbes faz questão de deixar clara a diferença entre direito e lei, e assim, no seu entendimento direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade (HOBBES, 1989). E assim, em conformidade com este significado próprio e geralmente aceite da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças à sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer (HOBBES, 1989, cap. XXI, p. 130). Para o filósofo, contrária à liberdade natural seria a liberdade civil, a que denomina de “violência domada”, aquela que se materializa através de um contrato social, com a figura de um soberano sob o regime de um Estado. Por sua vez John Locke (1632-1704) no Segundo Tratado sobre o Governo reflete acerca da liberdade atrelada ao pátrio poder e da lei da razão, aquela que devia governar Adão e toda a posteridade. Com este pensamento Locke compreende que a primeira organização social é a família. O objetivo da lei não consiste em abolir ou restringir, mas em preservar e ampliar a liberdade, indo do nascimento até a maioridade. Adão e Eva, e depois deles todos os pais, ficaram pela lei da natureza sobre a obrigação de preservar, alimentar e educar os filhos que produzissem; não como obra deles próprios, mas do próprio Criador. Assim, como em todos os estados de seres criados capazes de leis, onde não há lei, não existe liberdade. Embora a união conjugal e a família seja uma forma de sociedade, ela está longe de ser uma sociedade política ou civil. A liberdade tem de ser livre de restrição e de violência de terceiros, o que não se pode dar se não há lei; mas a liberdade não é como nos dizem: licença para qualquer um fazer o que lhe bem apraz – porquanto, quem estaria livre, se o capricho de qualquer outra pessoa pudesse dominá-lo? -, mas liberdade de dispor e ordenar, conforme lhe apraz a própria pessoa, as ações, as posses e toda a sua propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais vive, sem ficar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguindo livremente a própria vontade. A instituição do governo civil é então um remédio que o homem encontrou para solucionar os problemas do estado de natureza. Os indivíduos realizam um pacto social consentindo em delegar poderes a um ente que possa ter subsídios legais, legítimos para usar da força coativa com a finalidade de preservar a sua integridade, seus direitos naturais e especialmente a propriedade sobre seus bens (FERREIRA NETO, 2007). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao falar da liberdade natural afirma que esta se caracteriza por ações tomadas pelo indivíduo com o objetivo de satisfazer seus instintos, isto é, com o objetivo de satisfazer suas necessidades. O homem neste estado desconsidera as consequências de suas ações para com os demais, ou seja, não tem a vontade e nem a obrigação de manter o vínculo das relações sociais. Outra característica é a sua total liberdade, desde que tenha forças para colocá-la em prática, obtendo as satisfações de suas necessidades, moldando a natureza. Para Rousseau o homem realmente livre faz tudo que lhe agrada e convém, basta apenas deter os meios e adquirir força suficiente para realizar os seus desejos. No capítulo VIII do Contrato Social I Rousseau ao analisar a passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito, o lugar do apetite, o homem, até aí levando em

681 ISSN 2358-4912 consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Assim, a liberdade natural, que só conhece limites na força do indivíduo e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral e garante a propriedade de tudo àquilo que o homem possui (ROUSSEAU, 1979, p. 42). Assim, vale ressaltar que o fator limitante da liberdade civil é a vontade geral, uma vez que ela visa à igualdade (o que tornaria os indivíduos realmente livres), pois a liberdade no estado civil não se daria apenas pelos interesses particulares, mas também pelos interesses do corpo político. Dessa forma, o contrato social não apenas iguala a todos os cidadãos, como também fortalece a liberdade de cada indivíduo, a partir de seus interesses particulares, bem como tem com um dos principais objetivos garantir a segurança e a liberdade de cada indivíduo, ainda que essa liberdade seja limitada por normas. No contexto das Américas, a partir do século XVI, o debate acerca da liberdade também será a tônica entre colonizadores, religiosos e autoridades europeias com destaque para Espanha e Portugal (América Central e América do Sul). Em artigo intitulado Encontro de Duas Culturas: América e Europa (1997), Francisco Iglesias destaca que: “O expansionismo, ou a superação da era Mediterrânea pela do Atlântico e Índico, é um momento decisivo na História, quando se alargam os horizontes econômicos e políticos como os geográficos”. E afirma ainda mais o autor: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Supera-se aos poucos o limite do homem medieval, não só em extensões mais dilatadas, incluindo a Ásia, a África e a América, como também com uma nova visão do humano e do social, não mais preso ao teocentrismo da Idade Média, mas aberto ao antropocentrismo que vai caracterizar a Idade Moderna. Valoriza-se o culto da natureza, a pesquisa, o experimentalismo, aos poucos sobrepostos aos velhos dogmas (IGLESIAS, 1997, p. 25).

Para Iglesias, falando da América espanhola, afirma que na América, o espanhol, mais feliz, pelo encontro de grupos de boa organização social (astecas, maias e incas), não apenas saqueou e submeteu à escravidão os índios para vendê-los na Europa, como, sobretudo, usou a organização do trabalho entre os nativos, adotando a encomiendas, as mitas e os repartimientos. Trabalho forçado lembrando a antiga servidão, e por conta disso, a escravidão do índio foi problema discutido desde os primeiros anos de colonização das Américas. Se o governo metropolitano a proibia, na prática ela era feita pelo colonizador. Os brancos, em número pequeno, vinham para obter vantagens, não se entregando às tarefas pesadas, atribuídas à massa da população indígena e como esta se insurgisse usou-se a violência. (IGLESIAS, 1997, p. 29-30). E mais: O primeiro eco da disputa foi a defesa do índio pelo dominicano Bartolomé de las Casas, já em 1515 indo à Espanha, em defesa da causa. Lembre-se a polêmica entre ele e Sepúlveda, defensor da subjugação do nativo, com o uso dos velhos argumentos de Aristóteles, considerando válido o trabalho escravo. Foi necessária a palavra do papa, em uma bula de 1537, declarando os índios seres humanos, com uma alma e passíveis de se converterem à fé cristã, portanto com direito à liberdade [...] (IGLESIAS, 1997, p. 30).

Héctor H. Bruit, professor da UNICAMP, em seu artigo América no Pensamento Político de Bartolomé de las Casas, afirma que três problemas estiveram presentes na conquista da América: a relação com os infiéis, o poder do papa e do rei e a guerra justa contra os índios. Nesse contexto, diz Bruit “Mercantilismo e evangelização foram as duas caras da mesma moeda”, e seria impossível entender o processo da conquista, eliminando ou negando a importância de um deles, e afirma ainda: “A complementação entre o objetivo mercantil e o evangelizador foi um fato característico da época moderna [...]” (BRUIT, 1997, p. 94). Segundo Bruit, as preocupações de Las Casas com as liberdades públicas e individuais, com os fundamentos jurídicos da sociedade que se organizava, com o desejo de ver na América uma sociedade de direito e justiça social, de respeito aos direitos humanos, configuravam sua visão dos destinos americanos. Pois independente de ser americano ou não, de amar ou não a América, Las Casas, vislumbrava uma sociedade que desabrochava nas trevas, isto é, a sociedade que se instituía nascia sem os fundamentos da sociedade moderna, sem justiça, sem direito e sem legítimo poder. Na luta em

682 ISSN 2358-4912 defesa dos índios o religioso não os defendeu cegamente. Censurou e denunciou os caciques que exploravam os índios, alugando terras aos mais desvalidos, e condenou com veemência a todos os índios traidores que esqueceram “a saúde da pátria, nação e parentela” (BRUIT, 1997, p. 97). Las Casas escreveu princípios que pudessem garantir a liberdade dos índios na América espanhola. E assim, a teoria da origem popular do poder, do consenso, da pluralidade de autoridades políticas, estava firmemente vinculada à visão de homem como ser livre por natureza, e à convicção de que a liberdade é um direito imprescritível. Em Alguns Princípios, Las Casas expõe com clareza seu pensamento sobre a liberdade, diz Bruit (1997) citando Las Casas, (1974, p. 1245 A 1259):

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Todo homem, toda coisa, toda jurisdição e todo regime ou domínio, tanto das coisas como dos homens, de que tratam os referidos princípios, são, ou pelo menos presume-se que são livres, se não se demonstra o contrário. Prova-se, porque desde sua origem todas as criaturas racionais nascem livres, porque, numa natureza igual, Deus não fez a um escravo do outro, mas a todos concedeu idêntico arbítrio; a razão é que a uma criatura racional não se lhe subordina a outra, como por exemplo, um homem a outro homem, segundo disse Santo Tomás [...] Porque a liberdade é um direito existente nos homens por necessidade e é inato na criatura racional, e por essa razão, de direito natural [...], e que a escravidão é um ato acidental que acontece ao ser humano por obra da causalidade e do azar (Las Casas, 1974, p. 1245).

A luta pela liberdade dos índios na Amazônia colonial Tal como ocorreu na América espanhola, na América portuguesa e mais precisamente no espaço do Maranhão e Grão-Pará dos séculos XVII e XVIII a luta pela liberdade dos índios também não fora diferente. Se na América espanhola, Batolomé de las Casas foi um fervoroso defensor da liberdade dos índios, na América portuguesa os jesuítas também lutaram e tiveram como principal representante o padre Antônio Vieira. O embate em torno da liberdade dos índios esteve presente desde a chegada dos primeiros jesuítas na região, diz James O. Sousa, em artigo intitulado Mão-de-obra indígena na Amazônia Colonial (2002), ao afirmar que uma das características marcantes do processo de conquista portuguesa na Amazônia fora a utilização da mão-de-obra indígena. Para o autor colonos, missionários e a Coroa portuguesa envolveram-se em constantes embates e também em conivências que definiram tragicamente o destino dos índios. Diversas leis, regimentos e decretos foram criados pelo Estado português, ao longo do período colonial, que refletiram o poder político dos interessados na proteção ou manutenção da mão de obra indígena, tais determinações jurídicas quando favoreciam os índios eram logo derrubadas, não cumpridas ou criavam-se brechas para justificar o aprisionamento e escravidão dos mesmos. Para falar da importância da mão de obra indígena, James Sousa dialoga com José Oscar Beozzo (1984, p.28), que discute sobre Leis e regimento das Missões no contexto da Política Indigenista no Brasil, assim, então, pode [pôde] afirmar que o processo de conquista da Coroa portuguesa na região amazônica só tornou-se possível, em grande medida, devido à utilização da força de trabalho indígena, na construção de grande parte dos fortes, fortalezas, cidades e vilas. Nesse contexto, a luta pela liberdade dos índios começa a ser um tema discutido e garantido em lei. A lei de 1595 trazia em seu bojo um único motivo para escravizar o índio: a prisão feita durante alguma guerra, e efetuada de acordo com as ordens da Coroa, observa Handelman em História do Brasil (1937) citado por Sousa (2002). Ainda segundo Sousa, os decretos de 1605, 1608 e 1609 suprimiram inteiramente a escravidão do índio, declarando por princípio a liberdade indígena e a igualdade dos seus direitos políticos ao dos brancos (SOUSA, 2002). Mas essas leis, diz o autor, não puderam ser instauradas, devido à pressão dos colonos, os quais alegavam falta de mão de obra para continuar seus negócios. Já o decreto de 1611 estabeleceu que os índios aprisionados numa guerra aprovada pelas autoridades, civis ou eclesiásticas, promovida pelos próprios indígenas, portanto, na perspectiva da coroa, resgatados “do martírio dos seus compatriotas”, deviam ser escravizados (HANDELMAN, 1937 apud SOUSA, 2002). Esse decreto perdurou até 1649, quando foi novamente restaurado o direito de liberdade e igualdade dos índios, estabelecido pelo decreto de 1609. Mas devido à sua posição

683 ISSN 2358-4912 totalmente contrária aos pressupostos estabelecidos em 1649, os colonos de São Luís e de Belém pegaram em armas para impedir a efetivação desta última lei. A lei de 09 de abril de 1655, profundamente influenciada por Antônio Vieira, principalmente junto à Coroa portuguesa em face de ser considerado um grande defensor da liberdade dos índios na região amazônica, estabeleceu com grande moderação sérios esforços para acomodar, de um lado, as vantagens materiais dos colonos, e de outro, a proteção dos índios. Mesmo assim, a escravidão continuou a existir, em se tratando de índios prisioneiros de guerra. Com essa lei a situação dos índios livres mudou, pois a fiscalização deles, antes atribuída a funcionários civis, foi designada aos jesuítas. Ao mesmo tempo da promulgação da lei foi organizado o Tribunal ou Junta de Missões e Propagação da Fé, que funcionando a princípio na casa professa de São Roque, pertencente aos jesuítas, foi em todo o tempo na mão destes um valioso elemento de força. (AZEVEDO, 1999, p. 61). O tribunal tinha como função sentenciar os índios apanhados, prisioneiros de guerra ou resgatados e era composto pelo governador do Estado, pelo ouvidor geral, vigário do Maranhão e Pará, e pelos prelados de quatro ordens religiosas: carmelitas, franciscanos, mercedários e jesuítas (BOSI, 1992, p.142). Vale ressaltar, que quase todos os membros do tribunal estavam comprometidos com o sistema colonial e geralmente votavam pela escravidão por “guerra justa”. E dessa forma, Vieira e o então governador, André Vidal, que congregavam das mesmas ideias, geralmente viam-se derrotados, pelos mercedários e carmelitas, conforme queixa de Vieira:

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O provincial do Carmo e o Comissário das Mercês votaram que todos esses índios fossem cativos. E o fundamento de seu voto foi porque todas as guerras que há entre esses índios do Maranhão eram justas, e sendo justas as guerras, todos os tomados nelas ficavam cativos, conforme a lei de sua Majestade. Em prova de serem justas todas as ditas guerras, acrescentou o comissário que ele o sabia por informações de religiosos da sua ordem e de outros dignos de fé (VIEIRA, 1992, p.

26). Chambouleyron (2008, p. 93) analisando as relações entre jesuítas, moradores e a Inquisição na Amazônia seiscentista, afirma que nas décadas de 1650 a 1660, foram apresentadas ao tribunal do Santo Ofício de Lisboa quatro denúncias contra os jesuítas, três delas direcionadas principalmente contra o padre Vieira. O período das denúncias – 1656-1663 – coincide com a presença do padre Vieira no estado do Maranhão e com o clímax dos conflitos entre missionários e parte da população branca de São Luís e Belém, derivados principalmente da lei de liberdade e escravização dos indígenas de 1655. O que Chambouleyron procurou mostrar foi a utilização da Inquisição como instrumento político ou como espaço onde também reverberaram os conflitos em torno do problema da liberdade dos índios e do trabalho na Amazônia colonial, principalmente a partir da chegada de Vieira à região. Antônio Vieira que chegara em 1653 ao Maranhão, nomeado superior da missão, a ele tinham sido concedidos “poderes totais para estabelecer missões onde quer que lhe parecesse adequado”, e mais, naquela altura, os jesuítas segundo Dauril Alden (1996), citado por Chambouleyron (2008), tinham a “exclusividade da conversão dos ameríndios do Estado”, prerrogativa que tinha o aval do rei Dom João IV, de acordo com carta enviada à Câmara de Belém, em 1652, “Eu El-Rei [...] Ordenei aos religiosos da Companhia [...] que, por serviço de Deus, e meu, tornassem a esse Estado e fundassem nele as Igrejas [...] com o intento de doutrinar e encaminhar ao gentio a abraçar nossa Santa Fé, principal obrigação minha nas conquistas”. Com essa ordem Vieira se tornou a principal figura missionária em defesa da liberdade dos índios na região. Entre 1653 a 1661, período em que Vieira permaneceu no Maranhão e Grão-Pará, as tensões entre religiosos e boa parte dos moradores mobilizaram a sociedade local, em razão da importância da mão de obra indígena que transformara o problema dos limites e usos do trabalho escravo e livre dos índios uma questão “abrasadora”, segundo João Francisco Lisboa2214. E se o padre Vieira escrevia ao rei, ou mesmo se dirigisse à Corte para apresentar e defender suas perspectivas a respeito do problema, o mesmo faziam os moradores, que procuravam a todo custo legitimar suas pretensões em relação aos 2214

Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão [meados do século XIX].Petrópolis/Brasília: Vozes/INL, 1976, p. 426, citado por CHAMBOULEYRON, Rafael. “Ásperas proposições” Jesuítas, moradores e a Inquisição na Amazônia seiscentista no tempo de Vieira, missionário. Revista Lusófona de Ciência das Religiões – Ano VII, 2008 / n.13/14-93-105.

684 ISSN 2358-4912 índios livres e escravos e acima de tudo lutar para garantir os seus negócios (CHAMBOULEYRON, 2008). O resultado desse primeiro momento de luta em torno da liberdade dos índios na Amazônia vai culminar com a expulsão dos jesuítas e, principalmente de Antônio Vieira da região, em 1661. O que se depreende desse embate fervoroso entre jesuítas, moradores e autoridades acerca da liberdade dos índios na Amazônia colonial, é que cada um procurou defender os seus interesses tendo como ponto central a mão de obra disponível que garantiu à Coroa, à Companhia de Jesus e aos moradores a conquista efetiva do território. A Coroa buscou a qualquer custo garantir o domínio e a posse da região; os missionários, por sua vez buscaram em nome da fé ampliar o domínio da Igreja Católica e aumentar o número de fiéis convertendo os nativos ao cristianismo e, por fim, os moradores que lutaram para garantir seus empreendimentos e negócios que dependiam incondicionalmente da mão de obra dos nativos para continuarem a produzir e aumentar as suas riquezas.

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Considerações Nesse ambiente conturbado por interesses diversos a luta pela liberdade dos índios engajada pelos jesuítas vai ter nos ideais modernos de liberdade, igualdade e integridade o seu suporte ideológico, em especial, no entendimento de que o homem deve sair de seu estado natural ou de sua liberdade natural para tomar parte de um estado civil ou de uma liberdade civil, em que todos devem, em nome da lei, obedecer a um representante seja ele da Igreja e/ou do Estado, mas tornando-se livre e não um escravo. Depreende-se ainda, que nessa luta em favor da liberdade dos índios os jesuítas colaboraram profundamente com a modernidade no sentido de fazer com que os princípios de justiça, igualdade e liberdade pudessem estar presentes também em terras do Novo Mundo. Ideais que se fortaleceram nas Américas, na África e na Ásia, e que hoje ainda motivam as lutas pelos direitos humanos e justiça social. No entendimento de que a liberdade tem de ser livre de restrição e de violência de terceiros. Referências AZEVEDO, J. L. D. Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas Missões e Colonização. Belém: SECULT, {1901}, 1999. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BRUIT, Héctor H. América no Pensamento Político de Bartolomé de las Casas, In: In: AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de, e MONTEIRO, John Manuel (Orgs.). Confronto de culturas: conquista, resistência, transformação. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; SãoPaulo: EDUSP, 1997. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Ásperas proposições” Jesuítas, moradores e a Inquisição na Amazônia seiscentista no tempo de Vieira, missionário. Revista Lusófona de Ciência das Religiões – Ano VII, 2008 / n. 13/14 – 93-105. FERREIR NETO, Adyr Garcia. Do estado de natureza ao governo civil em John Locke. Revista de Direito Público, londrina, v. 2, n. 2, p. 75-90, maio/ago. 2007. HOBBES, Thomas. Leviatã. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989. IGLESIAS, Francisco. Encontro de Duas Culturas: América e Europa, In: AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de, e MONTEIRO, John Manuel (Orgs.). Confronto de culturas: conquista, resistência, transformação. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; SãoPaulo: EDUSP, 1997. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ROUSSEAU. Jean-Jacques. Do Contrato Social. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. SOUSA, James O. Mão de obra indígena na Amazônia Colonial. Em Tempo de Histórias, 6, 2002.

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QUANDO OS NEGROS NÃO SÃO PASSIVOS: A RESISTÊNCIA NEGRA ATRAVÉS DA RELIGIOSIDADE João Antônio Damasceno Moreira2215 Introdução Mesmo com a visão predominante da Igreja como propagadora da ortodoxia da verdadeira fé a ser seguida por todos, com as imposições tridentinas visando a homogeneização da sociedade e a melhor preparação dos representantes de cristo, que deveriam ter a capacidade de guiar os fiéis a encontrarem a verdade da religião, na península Ibérica nos primeiros anos da época moderna, sobreviveram práticas oriundas da religião folclorizada da Idade Média, da crença no poder da magia e em suas práticas, no poder de objetos sagrados, palavras e orações, como soluções práticas aos problemas cotidianos populares. Essas práticas sobreviventes, que não estiveram livres da perseguição da Igreja através da ação dos tribunais inquisitoriais e episcopais e também por tribunais civis, permaneceram entre a população e chegaram à colônia trazida na bagagem dos imigrantes colonizadores, principalmente os que vieram degredados pela inquisição. Ao recorrerem a curas supersticiosas e adivinhações, ao apelarem aos poderes das orações para retirar ou causar malefícios, ao buscarem proteção nas cartas de tocar que fechavam o corpo aos perigos comuns à lida colonial, ao participarem dos calundus e catimbós onde as almas dos antepassados voltavam e diziam as causas das doenças ou os motivos dos desassossegos, ao entregarem a alma ao diabo ou concorrerem em qualquer uma das muitas práticas sobrenaturais, que para o discurso demonológico dos inquisidores, presumia pacto implícito ou explícito com o demônio, os colonos buscavam confortar-se e resolverem suas mazelas e conflitos cotidianos. A magia era o caminho alternativo para os problemas oriundos de ordens diversas e o elo entre as pessoas e as práticas comuns de seus antepassados (SOUZA, 1986, p. 230). Em seu trabalho sobre as crenças e práticas mágico religiosas em Portugal, José Pedro Paiva, busca compreender o quanto as esferas culturais da sociedade estavam imbricadas ao recorrerem ao simbolismo dos feiticeiros para a resolução dos conflitos cotidianos (PAIVA, 1997, p. 95). Buscava-se na feitiçaria a manipulação das ações e vontades por meio de encantamentos, bem como a evocação de espíritos do outro mundo para o favorecimento de amores ilícitos. Também os poderes dos astros apareciam nas “devoções” mágicas, evocando elementos diversos de crenças pagãs, cujos verdadeiros significados há muito haviam se perdido. Na magia, buscava-se também conforto para os males do corpo, as doenças que a limitada medicina culta ainda não conseguia remediar, principalmente se considerado as péssimas condições de vida e as hordas de epidemias que assolavam a população. Outras características eram atribuídas aos feiticeiros na metrópole, tais como a capacidade de causar malefícios, o poder de adivinhar e até de manipular o futuro. Conforme PAIVA (1997, p. 137), esta era a mentalidade religiosa popular portuguesa, fruto do hibridismo de diferentes crenças e cultos de diversificadas origens, cujos verdadeiros significados há muito já estavam esquecidos e suas práticas limitavam-se à repetição através das gerações sucessivas, bem como as adaptações e cruzamentos que delas as pessoas faziam. Este arcabouço cultural foi levado na bagagem para o Brasil, dos imigrantes colonizadores, que no Novo Mundo encontraram terreno propício para novas adaptações e apropriações de diferentes práticas, ameríndias e africanas, valendo-se delas, como mecanismos de enfrentamento e soluções para os problemas e conflitos coloniais. Em seu trabalho sobre o Brasil SOUZA (1986, p.156), na linha das reflexões de PAIVA (1997), teoriza a respeito do corpo de crenças amalgamadas que formaram o espectro específico mágico colonial. A base das crenças populares era subsidiada pela permanência de resquícios da folclorização medieval do sagrado religioso, o fascínio causado por tudo aquilo que simbolicamente representava a figura divina e os sacramentos religiosos. A Igreja, conscientizada de ser a única portadora da verdadeira lei de Deus, responsável pela homogeneização dos costumes e por guiar os fiéis ao caminho 2215

Mestrando em história pela Universidade Federal de São João del Rei. Email: [email protected]

686 ISSN 2358-4912 da salvação em Cristo, acreditava na necessidade de efetuar a limpeza no seio da sociedade das superstições que ameaçava a efetivação de sua missão evangelizadora. É marcante no trabalho da historiadora a relação das crenças e superstições mágicas presentes na colônia e as existentes no seio da população portuguesa. Mas, também observamos as redefinições e adaptações fruto do contato dessa mentalidade com as cosmogonias ameríndias e africanas também constituintes do estrato social colonial. O século XVIII, talvez, seja o período que melhor ilustre a mistura cultural na qual se encontrava a colônia. As práticas destinadas às curas, por exemplo, eram em sua maioria realizadas através de sopro e/ou sucção, pois acreditava-se que pelo sopro o curandeiro passava sua força vital e através da sucção retirava todos os males que castigavam o corpo, tais crenças, acrescentado ai também o ato de desenterrar (SOUZA, 1986, p.230-231), nos dão margem para perceber como de fato, práticas europeias a africanas estavam imbricadas umas nas outras, pois sugar, assoprar e desenterrar eram comuns tanto entre portugueses quanto entre africanos. Além disso, também no século XVIII pode-se observar em um mesmo contexto, muitas vezes combinados, magias invocativas, de cunho europeu, curandeirismo comum entre africanos, o xamanismo ameríndio e algumas tradições populares antigas. Outros elementos, como os ingredientes usados para preparar os feitiços nos dão mostras do quanto misturadas estavam as mais diversas práticas, muitas sem seu significado original, já outras com significados bem preservados, mas todas possuidoras de traços comuns, principalmente em seus objetivos, atender os acontecimentos diários, fazendo com que a dureza e ingratidão da vida ultramarina devido ao colonialismo e escravismo, fosse, ao menos em parte, amenizada. A formação colonial foi sempre permeada por uma constante tensão, e assim, influenciou muitas vezes as práticas mágicas realizadas pelos colonos, visto que o sistema era extremamente desfavorável às classes mais pobres e principalmente aos cativos. Assim, uma das formas de defender seus interesses, especialmente entre os escravos, e manterem sua integridade física, era valendo-se dos recursos da magia, utilizada também na metrópole de forma similar, como demonstra PAIVA (1997, p.137). Ou seja, outro fator determinante para a formação do sincretismo específico colonial, foi a situação política do período. E assim as práticas mágicas e seus derivantes tendem a refletir também os conflitos e tensões inerentes à sobrevivência colonial, principalmente no que tange as relações entre senhores e escravos. Como poderemos observar mais adiante os feitiços e as práticas ligadas à magia podiam mostrar mais que ligações entre escravos e seus antepassados, mas também se configuravam em uma forma de resistência negra frente ao sistema escravista. Resistência, não tentativa, porque em muitos casos, provavelmente pelo medo que os senhores tinham do potencial mágico de seus escravos, os negros acabavam conseguindo o que pleiteavam (SILVA, 2008, p.98). De forma geral, os feitiços e as mais diversas artes mágicas utilizadas pelos cativos, representavam para os mesmos, uma forma de saírem ou ao menos driblarem o sistema em que estavam inseridos, sem a necessidade de destruí-lo. Para isso, atacavam o Senhor, sua família, suas propriedades e até mesmo, na pior das hipóteses, se matando, provocando-lhe grande prejuízo material. Nesse contexto, Minas Gerais, devido ao seu alto índice de cativos, protagonizou um dos maiores campos para existência desses conflitos. Esse elevado número de escravos na província fornecia combustível para a propagação dos conflitos entre senhores e escravos, e assim, o medo das reações cativas foi difundido nas Minas. O uso de práticas mágicas no dia-a-dia era frequente, por parte não só dos cativos africanos ou já nascidos em território colonial, mas também entre toda a população, independente da classe a que pertencia (CALDAS, 2006/2007, p. 103). Entre os cativos principalmente, tais práticas, eram talvez o único elo com suas terras de origem. Somando a isso, atraídos pela corrida do ouro, pessoas de diversas origens, degredados, desbravadores, paulistas, emboabas chegaram à região aurífera aos bandos, ocupando seus territórios e dominando o gentio. Dessa forma, Minas configurou-se solo fértil para disseminação e mescla de elementos aqui já existentes com os presentes nas culturas africanas, tornando-os parte integrante da vida nos arraiais auríferos. Assim, novas práticas foram criadas, algumas adaptadas e modificadas e outras mantidas (SOUZA, 1986, p.97). V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Feiticeiros nas “Geraes” Na tentativa de fuga das mais diversas formas de opressão, muitas vezes os negros, inseridos em um contexto onde tinham poucas alternativas de melhores condições de vida, buscavam formas para se

687 ISSN 2358-4912 esquivarem e viverem da melhor forma que lhes fosse possível, uma das possibilidades, visto que a fuga significava uma alternativa perigosa e incerta, era o uso das “artes diabólicas”, fosse para resolver questões de saúde, amenizar ou evitar castigos e até mesmo solucionar problemas de amor (SOUZA, 1986, p. 272). Independente da intenção ou da forma como era feita e utilizada, tal prática, que não ocorreu somente entre os cativos, é de vital importância para a compreensão de como negros, índios, brancos, pobres e ricos se relacionavam com tais práticas e, por conseguinte como se relacionavam entre si, utilizando tais artes como amortecedores das complicadas relações sociais. É bem sabido que a Inquisição e a imposição por parte da Igreja de uma ortodoxia católica, com seu discurso, criava na mentalidade popular a condição de deslealdade para com Deus, caso não relatasse algum assunto de desvio de fé que tivesse conhecimento, transformando toda a população em possíveis desviantes da fé, considerando que a omissão presumia um desvio em si. A Inquisição criou uma horda de denunciadores, verdadeiros espiões da Igreja, deteriorando o tecido social, transformando simples conflitos entre vizinhos em assuntos de fé. Em situações onde havia querela, a denunciação poderia servir como vingança a quem se queria prejudicar, visto que aquele que caía nas malhas inquisitoriais, dificilmente saía ileso, mas sempre estigmatizado (SOUZA, 1986, p. 272). O período colonial brasileiro foi marcado por um intenso processo de mescla cultural, onde novos referenciais simbólicos foram forjados a partir da junção da religiosidade portuguesa às diferentes cosmogonias ameríndias aqui já existentes. Posteriormente, a inserção dos africanos escravizados na colônia, também portadores de suas diferenciadas culturas, veio completar a fusão de pensamentos e práticas que configuraram a específica mentalidade religiosa colonial. Os mais de 300 anos de escravidão no Brasil, desde o princípio foram mediados por relações de dominação de uma classe expropriada de seus direitos básicos de liberdade pela classe senhorial oriunda dos mais variados estratos aristocráticos portugueses que representavam o administrativo colonial2216. No entanto, o que tem sido observado em novas pesquisas2217, intensificadas cada vez mais a partir da década de 80, é que as dinâmicas das culturas do passado passaram a ocupar lugar de destaque na historiografia brasileira, em que muitas vezes as relações senhor/escravo foram mediadas por tensões conflituosas, na qual a resistência cativa frente às imposições senhoriais se destacam, demonstrando o quão equivocadas estiveram as opiniões da extrema passividade cativa na colônia, em que os escravos foram vistos mais como meros fantoches dos senhores do que ativos agentes de formação cultural. Dessa maneira, existiam infindáveis possibilidades de negociações entre senhores e escravos, que ligados de forma interdependente buscavam, sempre que possível, atender aos interesses de ambas as partes. Dessa maneira, inúmeros ajustes foram ao longo do tempo se forjando, sem os quais, seria difícil compreender o porquê de a escravidão ter durado tanto em nossas terras. Nesse sentido, a noção de teatro e contra teatro de poder proposta por Thompson2218, assume papel relevante na interpretação desses eventos, enquanto resistência e interdependência entre os extratos da sociedade, em que os limites de ação de uma são determinados, ao menos em parte, pela pressão exercida pelas outras. Dessa forma, a religiosidade mágico-popular pode ser vista como elemento importante dessa resistência. Laura de Mello e Souza, em seu importante trabalho sobre magia e religiosidade popular no Brasil colonial, atenta para a especificidade da população que se forjou em Minas Gerais no século XVIII, no contexto da descoberta e exploração aurífera. Segundo a autora, a região foi campeã de conflitos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A escravidão no Brasil durou mais de trezentos anos não só pelos meios repressivos de que o sistema se valia para controlar o cativo - castigos, açoites e punições etc. -, mas, sobretudo, pelas estratégias que senhores e escravos utilizavam tanto para manutenção do cativeiro quanto para melhor sobreviverem em sua realidade social. (SILVA, 2008). 2217 REIS, João José. Negociação e Conflito: A Resistência Negra no Brasil Escravista. São Paulo: Companhia das letras, 1989; SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986; NOGUEIRA, André. A fé no desvio: cultos africanos, demonização e perseguição religiosa – Minas Gerais, século XVIII. 2004. 189f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ; PAIVA, Eduardo. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do século XVIII: Estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. 2218 THOMPSON, E.P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular. São Paulo: Companhia das Letras. 4. reimp.1994. p. 70.

688 ISSN 2358-4912 inerentes das relações escravistas, onde os negros buscavam nas amalgamadas práticas mágicoreligiosas, elementos que pudessem reestabelecer a harmonia e amenizar as agruras de seus cotidianos, essas práticas poderiam representar importantes mecanismos de resistência e ameaça à integridade da propriedade senhorial (SOUZA, 1986, p. 265). Um bom exemplo do que ora se apresenta, é a denúncia constante nos Cadernos do Promotor do Tribunal Inquisitorial de Lisboa, referente ao arraial dos Prados, termo da Vila de São José del Rei na província de Minas Gerais. Em 17732219, Thomaz Pereira de Melo, relata um interessante caso envolvendo desde conflito direto entre senhores e seus planteis, até as sutilezas das negociações e conveniências que envolveram interesses diversos, chantagem e medo, revelando muito dos anseios, da cultura e da mentalidade religiosa da sociedade mineira dos setecentos, bem como o impacto causado pelo discurso inquisitorial sempre corroborando para intensificação dos conflitos cotidianos. O Arraial de Prados, inserido no seio da sociedade mineradora, em região muito rica em fazendas contava com grande população cativa com potencial para desencadeamento de conflitos. Na referida denúncia, Thomaz Pereira, talvez por inimizade ou algum tipo de vingança, busca incriminar o alferes Domingos Rodrigues Dantas, acusando-o de proteger e valer-se dos poderes de alguns feiticeiros que viviam na Vargem, subúrbio do Arraial, localidade denominada pela população da época como "Aldeia Dos feiticeiros". O denunciador, entre outras coisas, relata o ocorrido entre Domingos Dantas e a mulata Florência de Souza Portela, com quem tinha tratos de amizade e boa convivência há muito tempo. Segundo ele, a mulata havia enterrado na porta do denunciado uma panela com feitiços, prática de grande violência pois envolvia pacto direto com o demônio. Quando indagada dos motivos de haver promovido tal "diabrura", respondeu que não haveria ele de se casar e ela continuar cativa para o resto da vida, que ela "com seus remédios" não permitiria, mesmo que para isso fosse para o inferno. Com o intuito de se livrar de tão terrível sina, o denunciado procurou por Antônio de Souza Portela, proprietário da mulata feiticeira com o intuito de conseguir a liberdade dela. Talvez, como prova da possível rede de clientelismo e troca de favores, antes mesmo do pôr do sol estava a mulata alforriada. Segundo Tomás, na realização do feitiço, a mulata contou com o auxílio de seu irmão Simão de Souza Portela. Os dois, algum tempo depois, teriam matado com a eficácia de seus poderes seu senhor Antônio de Souza Portela. Como diz LÉVI-STRAUSS (1975), a crença na prática, acarretava mais eficácia que a própria prática em si e o fato, por coincidência ou não, de Florência ter sido bem sucedida no evento da panela de feitiço na porta de Domingos Dantas e no assassinato a ela atribuído serviu para lhe angariar crédito e respeitabilidade de poderosa feiticeira. Além desses crimes, imputavam-lhe ainda a morte do marido de sua sobrinha, que segundo o denunciador, devia-lhe grandes quantias. Tão presente estava a magia no arraial dos Prados e tão grande era a vontade de Tomaz em "exercer seu dever católico", que aparecem em sua denúncia mais três implicados em uso de feitiçaria na resolução dos problemas cotidianos de Prados. Catarina, Izidoro e Isabel foram acusados pelo denunciador por deixarem uma escrava de um potentado local, com quem tinham suas diferenças, cega, surda e aleijada, onde fica claro, como acontece em muitas outras denúncias nos cadernos do promotor, a intenção de causar prejuízo na propriedade cativa, pois nessas condições a escrava afetada pelos feitiços ficaria inútil. Eis um bom exemplo do quanto a magia servia como resistência e legitimação de enfrentamento à dominação senhorial, como tem demonstrado SOUZA (1986). Esses mesmo feiticeiros foram também acusados de matarem uma menina de 15 anos, filha de um homem que lhes devia dinheiro, porém, fica claro na narrativa que o alvo da vingança era outra filha do mesmo. Após o engano, com medo de retaliação, os três pediram socorro ao alferes Domingos Rodrigues Dantas, principal acusado na denúncia, o qual lhes oferece proteção, declarando que ficassem tranquilos, pois enquanto vida ele tivesse, "ninguém haveria de bolir com eles"2220. Domingos Dantas chega a solicitar os serviços de Izidoro como adivinho para que descobrisse as "poucas vergonhas" de suas escravas no presente e no futuro, ou seja, um exemplo da apropriação, por parte dos senhores, da cultura dos negros para resolverem seus próprios problemas. Nesse caso, usa-se a magia africana contra os próprios negros (CALDAS, 2006/2007, p.105). Os três utilizavam seus poderes como fonte de renda, atividade bastante comum no período, não só pelos negros, mas também pelos demais extratos sociais, sendo solicitados para interferirem em diversas situações em que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ANTT. Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n 130, livro 319, fol. 0277-0287, doc. 115. ANTT. Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n 130, livro 319, fol. 30v, doc. 115.

689 ISSN 2358-4912 coubesse a utilização da magia como atenuante ou agravante dos conflitos. Torna-se claro a conveniência do alferes ao oferecer guarida aos três feiticeiros, se considerarmos as vantagens de possuí-los em dívida de gratidão, como também o respeito perante a sociedade que poderia se intimidar com a proximidade do poderoso alferes. Nota-se, então, uma cumplicidade de interesses que muitas vezes associava as classes em prol do alcance de benefícios e vantagens distintas. Nessa sociedade extremamente conflituosa, muitas foram as formas de resistência e adaptação às condições impostas aos negros em terras coloniais. Destacam-se as irmandades religiosas, onde se podiam aglomerar e buscar certa força de representação social, manifestada principalmente nas festas de reis, onde um rei negro era coroado em dias específicos de festas, aludindo à mescla de elementos culturais típicos africanos e católicos ibéricos (SOUZA, 2002, p.132). As revoltas também sempre estiveram a amedrontar os senhores. Além dos quilombos, principal refúgio àqueles que não mais suportavam as condições em que se encontravam, lutavam por direitos e independência de suas comunidades perante a instituição escravista. Pouco ainda se ouve falar das manifestações de resistência e adaptações através do uso da magia e elementos da já citada religiosidade amalgamada forjada na colônia. Os cativos, indígenas ou africanos, buscaram em suas origens culturais elementos que pudessem oferecer um referencial de conforto, além de lhes socorrerem nas agruras da lida cotidiana colonial. Mesmo inevitavelmente imersos no catolicismo, elementos simbólicos e práticas populares oriundas de seus antigos estratos culturais sobreviveram e serviram de aparato para a religiosidade específica que se forjou na colônia. Muitas foram as possibilidades e rituais que estiveram presentes em Minas Gerais entre a cultura popular no século XVIII, que mesmo perdidas de seus reais significados de origem, sobreviveram e representaram a esperança de possíveis futuras melhorias de condições de sobrevivência. Além da resistência perpetrada com o uso da magia, ela também serviu como mecanismos de trocas culturais e negociações de interesses e influências, onde fica claro as absorções da cultura popular da magia e da religiosidade negra entre os senhores brancos europeus, bem como a europeização das camadas populares. Da complexa mentalidade popular que se configurou no modus vivendi da população negra aqui compulsoriamente inserida, chamam à atenção, das distintas formas de adaptação e resistência, a maneira como as mesinhas ibéricas, os calundus africanos, a administração de pós, poções, o uso de cartas de tocar e utensílios sagrados como forma de fechar o corpo aos riscos do cotidiano, eram utilizados como solução, busca de conforto, proteção, resistência às injustiças senhoriais e até sobrevivência material na complexa lida colonial (SOUZA, 1986, p.291). Em meados do século XVIII, Florência Antônia de Carvalho, de 13 anos, moradora na Vila de Pitangui, nos traz um excelente relato do quão intrínseco estavam as relações entre as populações branca e negra, onde Antônio de Carvalho, senhor de boas posses e seus dois filhos, juntam-se a seus escravos colocando-se todos a imitar sons de animais, como cavalos, bodes, galinhas e cachorros, subindo em árvores, montando uns nos outros em forma de cavalos, depois dançando e cantando, tudo antes que o galo da meia noite cantasse, no que se retiravam para dentro de casa e colocavam-se a arrastar a imagem de Cristo, atividade constante nos relatos da época, colocando-a em um prato e untando-a com sangue tirado dos próprios2221. Arrastar, açoitar imagens de santos, estiveram, de acordo com SOUZA (1986, p.115), constantemente presentes nos rituais de possessão demoníaca, onde muito mais que a negação da religião, vemos a força de suas crenças. Outro bom exemplo de cumplicidade, sem deixar de considerá-la como uma maneira de resistência, entre os diferentes estratos da sociedade mineira colonial, é do feitor crucificado por seu patrão e seus escravos. O homem foi severamente açoitado, teve seu corpo pingado com lacre de carta derretido e toucinho, depois sendo crucificado em um esteio da casa, tendo seus órgãos genitais cortados para que morresse agonizando. Posteriormente foi enterrado atrás da casa2222. Talvez, o verdadeiro sentido dessas ações, seja muito mais que buscar a imitação do sacrifício de Cristo na Cruz, mas a imputação de algum tipo de vingança, ou mesmo anseio sadomasoquista, onde a participação cativa suscita diferentes interpretações. Nas manifestações de resistência cativa, além do já citado caso acontecido no Arraial de Prados, onde vários aspectos cotidianos da mentalidade e cultura da época podem vir a lume, podemos considerar também como exemplo a feitiçaria como busca por amansar senhor, como o caso de Teresa, escrava de Francisco Soares morador em Mariana, que pede a Antônio Machado Fagundes, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ANTT. Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n 130, livro 296, fol.0611, doc. 257. ANTT. Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n 130, livro 304, fol. 0623-0643, doc. 312-322.

690 ISSN 2358-4912 também negro, para que lhe desse um remédio para que sua senhora não mais a castigasse2223. Mais que resistência, essas evocações indicam a repulsa negra pelas injustiças a que eram constantemente submetidos, dão luz a seus anseios, esperanças, associações, adaptações, permitindo-nos compreender os aspectos mais cotidianos de sua cultura, configurada a partir das rupturas e continuidades necessárias às adaptações ao longo das temporalidades históricas, constituindo a própria cultura colonial. Estes elementos implícitos nos relatos, em que se pode vislumbrar parte da cultura a que Ginzburg2224 chama de subalterna, demonstram a importância de se estudar casos particulares, não só através da quantificação, mas pela riqueza de detalhes fornecida por eles e as possibilidades de análises e hipóteses que suscitam. O estudo de casos de pessoas que viviam em seu anonimato, pertencentes à gente comum da colônia, pode trazer a lume o que elas pensavam, diziam e como agiam em seus contextos. Buscar nestes relatos a história da cultura popular, suas práticas e ações, pode contribuir para o instigante e interminável debate sobre a história cultural, em que conflitos, visões de mundo e crenças cotidianas, demonstram as diferenças e múltiplos pensamentos dentro de um mesmo contexto social, anseios, disputas, preferências, onde todos lutavam constantemente contra as mazelas e problemas do dia-a-dia, mas também com o próprio contexto em si.

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Referências Fontes manuscritas 1 - Arquivo Nacional da Torre do Tombo Cadernos do Promotor: Livro 296 [1732-1746], fol.0611, doc. 257; Livro 304 [1719-1752], fol. 0623-0643; Livro 318 [1740-1761], fol. 1250-1251; Livro 319 [1769-1790], fol. 0277-0287. 2 - Arquivo histórico do Escritório Técnico do IPHAN de São João del Rei. Inventários de Florência de Sousa Portella, caixa nº 398. E testamento caixa nº 108. Bibliografia CALDAS, Glícia. A magia do feitiço: apropriações africanas no Brasil colônia. Revista eletrônica: Acolhendo a alfabetização nos países de língua portuguesa, São Paulo, v. 1, n 001, p. 96-109, set./fev. 2006/2007. GINZBURG, Carlo. Introdução. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. PAIVA, Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”. Lisboa: Notícias, 2002. SILVA, Cristiano Lima da. O serviço mais íntimo e delicado: aspectos do universo da escravidão doméstica e algumas formas de conquista de alforria. Mal-estar e sociedade, Barbacena, ano I, n 1, p. 89110, nov. 2008 THOMPSON, E.P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular. São Paulo: Companhia das Letras. 4. reimp.1994. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1986. SOUZA, Marina de Mello e. Catolicismo negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre a miscigenação cultural. In: Afro-ásia, nº 28, UFBA, 2002, pp. 125-146.SIV

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ANTT. Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n 130, livro 318, fol. 1250-1251, doc. 528. GINZBURG, Carlo. Introdução. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 13 2224

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CLÉRIGOS SERVIDORES DO SANTO OFÍCIO NA AMAZÔNIA SETECENTISTA: COMISSÁRIOS, PADRES E PROPRIETÁRIOS DE TERRA João Antonio Fonseca Lacerda Lima2225 As habilitações do Santo Ofício são fontes ricas em informações, na medida em que na intenção de investigar a genealogia do habilitando, a inquisição elencava neste corpo documental uma gama de informações que a principio estavam distantes cronológica e geograficamente, organizando assim um documento onde encontramos: registros paroquiais (batizado, casamento e óbito), testemunhos de diversas pessoas e a genealogia do habilitando. Porém, estas informações compreendem o período de vida do habilitando até o pedido da habilitação. Um modo de desvelar este período seria rastreando documentos como: crimes, cartas patentes, cartas mercês, sesmarias, inventários, testamentos e tudo o mais que se pudesse encontrar. O que seria difícil se não se tivesse as devidas informações para se chegar até eles. Por outro lado, como já dissemos, as habilitações apesar de tratarem de um relativo período da trajetória de vida do habilitando, contém informações que não só ajudam, mas apontam para a possibilidade de se rastrear outras documentações que preencham as lacunas deixadas pela habilitação. A bússola nestas lacunas é o nome do individuo, denominado por Carlo Ginzburg como o fio de Ariadne que guia o investigador no labirinto documental. Perseguindo o nome, o investigador tem a possibilidade de reunir diversos documentos dos quais pode extrair dados seriais com os quais é possível reconstruir o entrelaçado de várias conjunturas (GINZBURG, 1989).

É deste entrelaçamento de conjunturas que tentaremos dar conta neste artigo, os comissários estavam completamente inseridos na comunidade, tinham ampla circulação no meio em que viviam e eram reconhecidos pelos moradores da região como ocupantes do referido cargo inquisitorial, bem como exerciam funções próprias da sua condição de sacerdotes, por vezes sendo membros do Cabido da Sé de Belém do Pará ou de São Luis do Maranhão, além de exercerem funções nas mitras diocesanas dos bispados aos quais estavam incardinados. Ou seja, era notória a presença desses agentes na sociedade. Deveria ser essa mesma a sua função, já que, conforme o Regimento do Santo Ofício2226, os Comissários do Santo Ofício ocupavam, no Brasil colonial, os postos mais altos desta hierarquia inquisitorial local, deveriam ser pessoas eclesiásticas, dotadas de “prudência” e “virtude” reconhecida pela comunidade da qual faziam parte. Essas qualidades, no entender dos Regimentos da Inquisição Portuguesa, eram indispensáveis, pois os agentes exerciam o papel de assistentes da alta hierarquia inquisitorial nas “cabeças de distritos”, províncias e arcebispados, ocupando os lugares mais importantes da Inquisição na sua área jurisdicional (SIQUEIRA, 1978). Era para a Comissaria que os outros agentes locais deveriam recorrer; eram os seus membros que examinavam as acusações e determinavam as prisões e que davam encaminhamentos a todos os processos de habilitação, solicitações e diligências para Lisboa (MONTEIRO, 2011). Enfim, a Comissaria foi, por assim dizer, o nível mais alto da hierarquia inquisitorial presente na colônia portuguesa, com exceção aos períodos de visitações. Se os agentes inquisitoriais tinham essa ampla circulação, analisar os seus vínculos e ações é importante para estabelecer as suas posições. Com isso, eles serão percebidos como agentes sociais, que interagem, circulam e auxiliam na definição da sociedade em que vivem socialmente. Centraremos nossa exposição no exercício destes padres no período pré e pós habilitação, analisando suas ações tanto no âmbito eclesiástico quanto na sociedade colonial, em que, como já dissemos, estavam completamente inseridos.

Comissários e suas posses espirituais A primeira posse espiritual destes comissários era o fato de serem sacerdotes, o que já lhes dava um diferencial em relação às demais pessoas. Para ter o direito de exercer essa função o candidato deveria passar por uma longa preparação, ou melhor, deveria passar por vários graus, chamados de ordens sacras. Segundo as constituições do arcebispado da Bahia2227, as ordens eram dividas em quatro 2225

Graduado em História pela Universidade Federal do Pará, Mestrando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2226 Conforme Dos Comissários e escrivães de seu cargo. Reg 1640, Liv. I, Tit. XI. Regimentos do Santo Ofício (séculos XVI-XVIII) (PT/TT/AJCJ/AJ011/00087) 2227 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010.

692 ISSN 2358-4912 menores (ostiário, leitor, exorcista e acólito) e três ordens maiores (subdiácono, diácono e presbítero). Ao analisar a inserção dos comissários no espaço eclesiástico, notamos que eles se situavam numa hierarquia, tanto no momento da habilitação como, nos casos para os quais dispomos de informações, nos cargos que iam ocupando ao longo de suas carreiras. Alguns acumulam postos dentro do Cabido, outros atingem a colocação máxima do Juízo Eclesiástico como vigário-geral2228, e havia também os que não passavam de simples vigários, párocos ou capelães. O único sacerdote regular que figura como comissário do Santo Ofício é João da Trindade, nascido na vila de Benevente, reino de Portugal e habilitado em 20 de maio de 1743, era religioso de Santo Antônio da Província de Portugal, sendo confessor e comissário provincial do Grão-Pará2229. Entremos agora no rol dos sacerdotes seculares. Caetano Eleutério de Bastos, natural de Lisboa, batizado na Igreja do Sacramento em 30 de abril de 1694 e habilitado comissário em 14 de maio de 1745, foi ordenado diácono no dia 21 de março de 1722 pelo bispo Dom Frei José Delgarte, no oratório do Palácio Episcopal da Cidade de São Luis do Maranhão. Recebendo as ordens de presbítero no dia quatro 4 de abril de 17222230. Cerca de vinte e dois anos depois de sua ordenação, em 29 de novembro de 1744, é citado em uma certidão como cura Apostólico da Santa Sé de Belém2231.

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Um dos casos de maior relevo é do chantre Lourenço Alvares Roxo de Potfliz. Nascido em Belém do Pará, sendo batizado na Freguesia de Nossa Senhora da Graça e habilitado para comissário do Santo Ofício em 06 de dezembro de 1746. O encontramos em 27 de janeiro de 1730 solicitando provisão de mantimentos na conezia da ordem presbiteral e magistral da Sé da cidade de Belém do Grão Pará2232, atestanto o seu já pertencimento ao cabido diocesano. Em 17 de setembro do mesmo ano, envia carta ao rei João V, sobre sua satisfação e agradecendo por ter recebido sua côngrua2233. Pouco mais de um ano depois, em 18 de setembro de 1731, o encontramos como Vigário Geral dos bispado do Grão-Pará, ao fazer uma denúncia sobre o mau comportamento do padre Julião dos Santos, afirmando que tomou todas as medidas para que aquele padre fosse preso e, como não o conseguiu, solicita seu degredo2234. No mesmo dia, envia carta ao rei D. João V, queixando-se do provedor da Fazenda Real da capitania do Pará, Luís Barbosa de Lima, e dos contratadores, por não efetuarem o pagamento da côngrua que lhe é devida2235. Em 06 de maio de 1735, abre o primeiro estabelecimento musical do Pará, a “Schola Cantorum” na Catedral do Bispado2236. Em carta datada de 07 de novembro de 1737, onde é citado como provedor dos Defuntos e Ausentes do Pará, recebe parecer favorável do ouvidor geral da capitania do Pará, Salvador de Sousa Rebelo, de um acordo que estabeleceu com os irmãos da Santa Casa de Misericórdia da cidade de Belém do Pará, para que as esmolas deixadas pelos irmãos da Santa Casa sirvam de recursos para a manutenção do hospital da sacristia e para o Acolhimento dos pobres2237. Em 22 de outubro de 1748, como chantre da Sé e provisor do Bispado do Pará, lança pedra fundamental da capela da ordem terceira de São Francisco2238. Em 01 de dezembro de 1754 é inaugurada a capela da ordem terceira de São Francisco da Penitência, em ato solene presidido pelo bispo Dom Frei Miguel de Bulhões e primeira missa oficiada pelo chantre Lourenço Alvares Roxo2239. Em 09 de abril de 1756 falece2240. No bispado do Maranhão temos um habilitando que a exemplo do que o chantre Lourenço Alvares Roxo de Potfeliz fez no bispado do Pará, galgou importantes funções na mitra diocesana. Trata-se de João Pedro Gomes. Nascido em Lisboa em 30 de setembro de 1734, é batizado na Freguesia de São Nicolau, sendo habilitado comissário do Santo Ofício em 11 de fevereiro de 1763. Em 7 de julho de 1759, solicita a coroa alvará de mantimentos2241. Em 20 de março de 1769, solicita ao vigário capitular, Padre Pedro Barbosa Canais, servir no cargo de auditor eclesiástico2242. Segundo sua habilitação para comissário do Santo Ofício, recebe 120$000 reis

2228

Sacerdote a quem era confiado o bispado nos períodos de vacância, era escolhido entre os membros do cabido diocesano. 2229 Conforme habilitação para Comissário do Santo Ofício (ANT-TSO-CG-HAB-mc14-doc-284) 2230 Conforme Livro de Registros de Ordenações 1718-1789. (APEM, 175) 2231 Conforme Certidão (AHU_ACL_CU_013, Cx. 27, D. 2561) 2232 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 12, D. 1084) 2233 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 12, D. 1139) 2234 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 13, D. 1199) 2235 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 13, D. 1200) 2236 RAMOS, Alberto Gaudêncio. Cronologia Eclesiástica do Para, 1985, p.26 2237 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 20, D. 1914) 2238 RAMOS, A.G. op cit, p. 29 2239 RAMOS, A.G. op cit, 31 2240 RAMOS, A.G. op cit, 32 2241 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_009, Cx. 25, D. 2600) 2242 Conforme Ofício (AHU_ACL_CU_009, Cx. 43, D. 4247)

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anuais pela função que exerce como cônego da Sé do Maranhão e secretário do bispo2243. Em 09 de outubro de 1801, por ocasião da morte do bispo do Maranhão D. Joaquim Ferreira de Carvalho, é eleito vigário capitular, cônego João Pedro Gomes2244. Outro comissário que encontramos sendo membro do cabido diocesano, agora novamente do bispado do Pará, é Felipe Joaquim Rodrigues, nascido no lugar do Lumiar, Freguesia de São João, Patriarcado de Lisboa, Reino de Portugal. Foi habilitado em 18 de outubro de 1763, sendo batizado em 30 de outubro de 1719. No ato do pedido de habilitação exerce a função de Mestre Escola do Cabido da Sé de Belém do Pará, recebendo anualmente o valor de 200$000 pelo exercício de suas atribuições 2245. Custodio Alvares Roxo de Potfliz, nascido em Belém do Pará, e irmão inteiro do chantre Lourenço Alvares Roxo de Potfliz, já falecido na altura do pedido de habilitação de seu irmão. Foi batizado em 03 de março de 1704 na Sé de Belém do Pará. Em 22 de setembro de 1733, denuncia dos crimes de blasfêmia e de feitiçaria cometido por algumas pessoas, dentre elas Tereza Furtada, passado pelo escrivão: o padre Alexandre Marques, do Colégio de S. Alexandre do Grão Pará, a pedido do padre João Teixeira, da Companhia de Jesus2246. Em 22 de outubro de 1740 é citado como vigário geral do bispado do Pará e delegado do reverendo bispo na junta das missões2247, em um documento datado do mesmo dia, encontramos que seus redimentos pelo cargo de vigário geral do bispado totalizam o montante de 80$0002248. Em 22 de abril de 1744, sob a justificação de estar exercendo os cargos de vigário provincial, vigário geral, juiz de resíduos2249 e governador do bispado foram confiados pelo bispo Dom Frei Guilherme de São José, pede a coroa aumento de Côngrua2250. Como citamos no começo, há também os casos de comissários que exerciam cargos menores, como párocos e capelães. Este é o caso de Inácio José Pestana, nascido em Belém do Pará, batizado na Freguesia da Campina em 26 de agosto de 1717 e habilitado para comissário em 20 de janeiro de 1779. Segundo o mapa geral de população, das freguesias e das capitanias do estado do Grão-Pará, relativo ao ano de 1776, que contém relação dos eclesiásticos seculares e regulares nelas existentes. Inácio José Pestana é citado como capelão de Regimento de São José de Macapá2251. Mais a frente, em 11 de outubro de 1792 é citado seu falecimento, deixando vaga a Capelania do Regimento da praça de São José de Macapá. Sucede-o neste posto outro habilitando para Comissário do Santo ofício, Padre Filipe Jaime Antônio2252, deste último encontramos muitas informações. Nascido em Belém do Pará, foi batizado em 30 de maio de 1746 na capela de Santa Tereza dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo. Antes de seguir a carreira sacerdotal, serviu durante dois anos e cinco meses como soldado nos no regimento de infantaria da cidade de Belém do Pará, comandado pelo capitão Teodósio Constantino de Chermont, entre 20 de janeiro de 1767 e 26 de junho de 17692253. Em 17 de janeiro de 1770, é citado em um ofício que fora para o Reino, a bordo dos navios da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, receber as ordens menores. Recebendo o presbiterado, exerceu a função de pároco da Freguesia de Barcarena 10 de junho de 1771 até 23 de fevereiro de 17732254, sendo transferido para a função de vigário da Freguesia de São Domingos da Boa vista do Guajará2255, exercendo esta função de 08 de março de 1773 até 22 de fevereiro de 17842256. Em 08 de janeiro de 1784, solicita carta patente de presbítero secular na Capelania do Regimento da praça de São José do Macapá2257, função da qual em 21 de abril de 1787, solicita baixa do serviço com a justificativa de querer juntar-se a sua família2258. Em 04 de abril de 1804, solicita a mercê de sua aposentadoria no posto de capitão do Regimento de Linha da Praça de São José do Macapá no Estado do Pará2259. Dos casos acima relatados, possuem destaque os irmãos Lourenço e Custodio Alvarez Roxo de Potfliz, que chegaram a exercer funções relevantes como a vigaria geral do Bispado e chantre do cabido diocesano. É importante observar que recebem a comissaria com idade avançada, já tendo servido ao bispado em muitas funções, demonstrando que ter serviços prestados ao Santo Ofício no curriculum poderia ser um elemento

2243

Conforme habilitação para Comissário do Santo Ofício (ANT-TSO-CG-HAB-mc121-doc-1926) Conforme Ofício (AHU _ACL_CU_009, Cx. 118, D. 9105) 2245 AHU_ACL_CU_013, Cx. 92, D. 7400. 2246 Conforme Denúncia (PT/TT/TSO-IL/014/0061.00010) 2247 Conforma Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 23, D. 2211) 2248 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 23, D. 2211) 2249 Lhes cabia tomar conta dos testamentos e ultimas vontades dos defuntos que falecerem. 2250 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 27, D. 2514) 2251 AHU_ACL_CU_013, Cx. 79, D. 6535. 2252 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 102, D. 8088) 2253 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 95, D. 7535) 2254 Conforme Ofício (AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5586) 2255 AHU_ACL_CU_013, Cx. 79, D. 6535. 2256 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 95, D. 7535) 2257 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 102, D. 8088) 2258 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 96, D. 7641) 2259 Conforme Requerimento (AHU _ACL_CU_013, Cx. 129, D. 9896) 2244

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ISSN 2358-4912 importante para a concretização de seus anseios na subida da hierarquia eclesiástica, de igual modo, o serviço a mitra diocesana pode ser entendido como elemento relevante na subida a hierarquia inquisitorial.

Comissário Caetano Eleutério de Bastos Custodio Alvarez Roxo Felipe Joaquim Rodrigues Felipe Camello de Brito Felipe Jaime Antonio

João Pedro Gomes João da Trindade João Pedro Borges de Góes Lourenço Alvarez Roxo Inácio José Pestana

Tabela I: Cargos Eclesiásticos exercidos Função que exercia no ato do Funções que exerceu Pedido Padre Secular Cura da Sé de Belém Padre Secular Vigário provincial, vigário geral, juiz e governador do bispado Mestre Escola do Cabido da Sé X de Belém do Pará Mestre Escola do Cabido da Sé X de São Luís Capelão do Regimento de Vigário na Freguesia de Macapá Barcarena, vigário na freguesia de São João da Bos Vista do Guajará Cônego da Sé Auditor eclesiástico e vigário capitular Confessor, pregador e X comissário provincial de sua ordem no grão-Pará. Padre Secular X Chantre da Sé de Belém Vigário Geral, provedor dos Defuntos e Ausentes do Pará, provedor do Bispado Padre Secular X

Comissários e suas posses temporais A habilitação longe de ser apenas um elemento de promoção social, se constitui em mais uma das tantas benesses adquiridas pelo religioso, não sendo assim um fim, mas parte de um processo muito maior de ascensão no que poderíamos chamar de duas frentes, a primeira de ordem eclesiástica, na medida em que este exerce funções na hierarquia diocesana, o que acontece com outros habilitandos já aqui citados no item anterior; e outra de ordem “econômica”, na medida em que estes recebem do governo português terras onde existem culturas diversas (Café, Cacau, Cana) e criação de gado. Se no exercício de suas funções sacerdotais pouco vemos o comissário Caetano Eleutério de Bastos, por outro ele tem uma intensa atividade como proprietário de terras. Em 4 de fevereiro de 1735, solicita confirmação da carta de data e sesmaria relativa a um terreno situado junto ao rio Guamá, que possui um quarto de legoa de comprimento e huma legoa de fundo que foi dado pelo governador geral capitão-mor José da Serra. Segundo o requerimento, o suplicante pediu mais terras em virtude de o terreno que já possui, ser insuficiente para suas lavouras onde planta café2260. Em 20 de março de 1735 recebe outra carta de data e sesmaria2261. Em 23 de fevereiro de 1737, solicita confirmação de carta de data e sesmaria de um terreno, com duas legoas de frente e duas legoas de fundo, situado nas proximidades do rio Guapi, afluente do rio Arari, na ilha Grande de Joanes e dado pelo governador geral capitão-mor José da Serra, onde pretende criar de gado bovino2262. Em 08 de julho de 1754, solicita confirmação de carta de data e sesmaria situada na Ilha Grande de Joanes dadas pelo governador geral João de Abreu Castelo Branco, que constam de duas legoas de campina para criação de gado bovino2263. Em 13 de fevereiro de 1755, é citado em o requerimento que o Padre Caetano

2260

Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 17, D. 1606) Conforme Carta de Sesmaria (PT/TT/RGM/C/0028/30485) 2262 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 19, D. 1820) 2263 Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 37, D. 3425) 2261

695 ISSN 2358-4912 Eleutério possui um engenho situado na região do rio Guamá2264. Em 30 de nevembro de 1765, seus bens são sequestrados, em um montante que totaliza 10:400$000 reis2265.

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A posse de terras, causou ao referido padre algumas contendas. Em 21 de janeiro de 1752, se envolveu em um conflito com o sargento mor João Furtado de Vasconcelos, e o pai deste, Antonio Furtado de Vasconcelos. Segundo o processo, o fato ocorrido se deu na ocasião de uma visita pastoral que o bispo D. Frei Miguel de Bulhões fez as capelas do rio guamá, sendo acompanhado pelos padres Caetano Eleutério e pelo Frei Teotônio Inácio de Azevedo. De acordo com o relato, estes últimos conversavam na varanda da casa onde estavam hospedados, num sitio chamado São Braz, quando foram surpreendidos pelos acusados, que se atentaram contra o Padre Caetano Eleutério, o primeiro deu uma bofetada e o segundo tentou feri-lo com um pau. No final do documento o desembargador e ouvidor do Maranhão, Manuel Sacramento, pede que se proceda a devaça do acontecido, como modo de frear os excessos de desordens comumente praticados pelos Furtado e Pantoja2266. Pouco mais de sete anos depois, Caetano Eleutério de Bastos em 29 de agosto de 1759 se envolve em outro conflito, agora com o sargento-mor Antonio Rodrigues Martins, possuidor de terras vizinhas as do padre. Segundo o padre, foi ele o mandante da queima da casa de fornos e suas lavouras, na Fazenda perto do rio Guamá, roubando ainda seus servos. Segundo o relato, no dia 7 de agosto de 1759 das sete para a oito da noite apareceu em sua propriedade um preto de nome Antonio, escravo do sargento-mor Antônio Rodrigues Martins, acompanhado de muitas outras pessoas com armas de fogo e fizeram o que foi relatado acima. Caetano de Bastos não era o único habilitando a ser proprietário de terra, Custodio Alvares Roxo de Potfeliz em 13 de março de 1733, recebe carta de sesmaria de terras com duas legoas de extensão próxima ao rio Curaci Mirim, onde a muitos anos possui lavouras de cacau2267. Em 25 de outubro de 1743, recebe carta de data e sesmaria próxima ao rio Capim na dimensão de duas legoas de frente e meia de fundo, para o cultivo de lavouras, dadas pelos governador geral João de Abreu de Castelo Branco2268. O habilitando João Pedro Gomes, cônego do Cabido da Sé de São Luis do Maranhão, de acordo com sua habilitação, possui meia légoa de terra na Ilha de São Luis do Maranhão onde cultiva lavouras2269. Nos exemplos acima, podemos observar que a ideia de que estes homens atuavam em duas frentes (eclesiástica e “civil”) é evidente, Lourenço Alvares Roxo de Potfliz possui uma extensa carreira eclesiástica, porém, pelos documentos que conseguimos rastrear não o vemos atuando como proprietário de terras. Por outro lado, Caetano Eleutério de Bastos, que não vemos exercendo funções de relevo no âmbito eclesiástico, possui terras das mais variadas culturas e em lugares com certa distancia entre si, evidenciando que sua atuação se dava mais no âmbito civil. Para além disso, as contendas evidenciavam que estes indivíduos longe de exercerem apenas a função de cura das almas, estavam tão envoltos na sociedade da qual faziam parte, imiscuídos nos jogos sociais de tal modo que entravam em conflito pela manutenção de suas posses tal qual faria qualquer outro proprietário de terra leigo. Considerações finais O objeto de estudo desta pesquisa é o Clero Secular representado nas habilitações do Santo Ofício. Nosso objetivo foi ampliar o debate historiográfico acerca do papel destes no período colonial, onde a maior parte dos estudos se centra no clero regular2270 (FEITLER & SOUZA, 2011). Entendendo que os padres do hábito de São Pedro tiveram papel relevante na formação da dinâmica colonial empreendida pela Igreja para a Colônia (RUBERT, 1977-1993). Não podemos deixar de frisar que a habilitação possibilitava abertura para almejada ascensão no status social. Tais fatos apontam que o habilitar de agentes visava mais aos interesses do candidato e menos às necessidades funcionais do Tribunal. Neste sentido, este capital simbólico atrelado a ordenação sacerdotal era caminho seguro para quem quer ter uma vida bem sucedida, tanto na carreira inquisitorial quanto eclesiástica. Nossa intenção foi demonstrar que estes agentes possuíam várias facetas e agiam em diversos campos, de modo que suas experiências como padres, comissários do Santo Ofício e proprietários de terras se constituíam num todo de sua atuação. Enfim, eram padres na cura das almas; eram comissários na cura da fé; e eram proprietários na cura de suas terras. 2264

Conforme Requerimento (AHU_ACL_CU_013, Cx. 37, D. 3485) Conforme Oficio (AHU_ACL_CU_013, Cx. 58, D. 5243) 2266 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 33, D. 3090) 2267 Conforme Carta (PT/TT/RGM/C/0024/35769) 2268 Conforme Carta (AHU_ACL_CU_013, Cx. 26, D. 2438) 2269 Conforme habilitação para Comissário do Santo Ofício (ANT-TSO-CG-HAB-mc121-doc-1926) 2270 Do latim "regulate", que diz respeito a Regra. É o clero que segue a regra do fundador de sua ordem religiosa, os franciscanos por exemplo, seguem a Regra de São Francisco de Assis. Este clero organiza-se em comunidades localizadas em mosteiros e conventos, tendo como superior imediato, um membro de sua própria ordem religiosa. 2265

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ISSN 2358-4912 Referências ARAÚJO, Ricardo Teles. Habilitandos Brasileiros às Ordens militares, ao Santo Ofício e a Leitura de bacharéis. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 158 (304): Jan/mar. 1997 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CHARLE, C. A prosopografia ou biografia coletiva: balanço e perspectivas. In: HEINZ, F. (Org.). Por Outra História das Elites. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 2006 FEITLER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: Normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo. In: A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. KOK, Jan. Principles and propects of the life course paradigma. Annales de demographie historique, 2007/1, n 113, pp. 203-230. MENDONÇA, Pollyana Gouveia. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial. Tese de Doutoramento em História – Universidade Federal Fluminense, 2011 MONTEIRO, Lucas Maximiliano. A Inquisição não está aqui? A presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América Portuguesa (1680-1821). Dissertação de Mestrado em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011. RAMOS, Alberto Gaudêncio (Dom). Cronologia Eclesiástica do Pará. Belém: Editora Falângola, 1985. RODRIGUES, Aldair Carlos. Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, n. 57, p. 145-164, 2009. RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Santa Maria: Palloti, 1977-1993 (4 vols) SIQUEIRA. A disciplina na vida colonial: os Regimentos da Inquisição. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 157, n. 392 (1996), p. 497-571.

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UMA RUA CHAMADA DIREITA João Henrique dos Santos2271 A Rua Direita, atual Rua Primeiro de Março, foi das primeiras ruas a ser abertas na cidade do Rio de Janeiro, marcando a descida dos colonizadores para a várzea. Através de sua história é possível mostrar a transferência do eixo de poder do Morro do Castelo para a Rua Direita e seus arredores, e sua consolidação no fim do período colonial, especialmente após a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808. Para além da história registrada nos documentos impressos, as edificações da Rua Direita testemunham não apenas o estabelecimento desse eixo de poder como também a evolução arquitetônica e urbanística da Cidade. Introdução Embora seja imprecisa a data de sua abertura 2272, as origens da Rua Direita confundem-se com as da própria fundação da Cidade do Rio de Janeiro. Há uma coincidência geográfica, pois assim como aquela, foi aberta naquele trecho “desde o Castelo, até os Morros da Conceição e de São Bento, de um lado, e de Santo Antonio, de outro, situava-se extensa várzea, várzea que se chamou de Nossa Senhora do Ó” (Monteiro, 1985). Foi em torno da pequena ermida de Nossa Sra. do Ó e da igreja e convento dos frades carmelitas que se iniciou o caminho direto (ou direito) da Misericórdia ao São Bento, unindo dois dos morros principais com ocupação urbana, marcada sobretudo pela presença de igrejas da recém-fundada cidade. Inicialmente, há uma questão e que passa pela denominação (toponímia) de um arruamento como “Rua Direita” nas cidades coloniais de matriz portuguesa. Thomas Ewbank, em obra publicada em 1856 em Nova York (apud Monteiro, op. cit.), associa essa prática à devoção católica relacionada ao descrito nos Atos dos Apóstolos (cap. 9:11ss.), episódio no qual se descreve que, após sua conversão, Saulo de Tarso, agora Paulo, fica em uma casa na Rua Direita, e ao discípulo Ananias é ordenado ir à Rua Direita, em Damasco, para ver e curá-lo. Esta rua, com o mesmo nome, ainda existe na cidadela da capital da Síria, na qual se localiza o Arco Romano e duas mesquitas, e próxima à qual fica a Igreja de Santa Maria. Se não foi exaustivamente documentada por Ewbank a existência de “Ruas Direitas” em todas as cidades de matriz portuguesa, observamos que importantes cidades da América Portuguesa tiveram suas “Ruas Direitas”, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Vila Rica (Ouro Preto) etc., mesmo algumas tendo os nomes mudados no curso dos séculos. Tais ruas sempre estiveram vinculadas a um momento fundacional da cidade, legitimando, em certa medida, o registro de Thomas Ewbank. O depósito de aluvião entre os morros da Misericórdia e de São Bento permitiu o aterramento da várzea e a edificação do lado próximo ao mar do “caminho de Manuel de Brito”, que viria a tornar-se a “Rua Direita da Misericórdia ao São Bento”; tendo Direita o mesmo valor semântico de Direta, sendo uma rua cujo traçado acompanhava o recorte da costa Não tardaram a ser erguidas na Rua Direita suas primeiras igrejas, com destaque à Capela da Cruz dos Militares, próxima ao Convento e Igreja carmelita e à Ermida de Nossa Senhora do Ó, da qual não restou vestígio. A Igreja da Cruz dos Militares surgiu sucedânea a um fortim de madeira existente para a defesa da várzea, tendo havido um pedido dos militares para que nela fossem sepultados seus restos mortais. Jorge Mitidieri data de 1623 a construção do fortim de madeira (Mitidieri, 2011), não precisando a data de sua destruição.

2271

UFRJ. E-mail: [email protected] Não houve convergência exata de informações acerca da abertura da Rua Direita entre os autores consultados, podendo dar-se por certo que ela foi aberta entre as duas últimas décadas do século XVI e a primeira do século XVII. Donato Mello Junior afirma que “a ocupação da grande várzea só se daria no decorrer do século XVI, a custa de imenso trabalho braçal, de aterros e desaterros” (Melo Junior, 1988).

2272

698 ISSN 2358-4912 Desde 1780 há uma imagem de São Pedro Gonçalves em um dos altares laterais da Igreja da Irmandade de Santa Cruz dos Militares, sendo resultado de compromisso da Irmandade com os espanhóis devotos daquele santo (na Espanha referido como San Telmo), que lhes cederam os direitos sobre os terrenos demolidos para a construção da Igreja. Faz-se necessário registrar que é uma das poucas imagens de San Telmo veneradas fora da Espanha e que é um santo de devoção especial para marinheiros e navegadores, invocado em horas de necessidade e desespero.

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A Rua Direita como centro da cidade Com igrejas importantes e comércio que começava a ganhar importância, a Rua Direita atraiu também a presença da Coroa Portuguesa, como o estabelecimento do Paço na então casa do Governador-Geral, em 1698, usado para esse fim até 1743. Estava lançado o fundamento para a denominação da praça vizinha como Terreiro do Palácio ou, como o povo passou a lhe denominar, “Terreiro do Paço” 2273. O Paço localizava-se no terreno até então partilhado entre os Armazéns do Rei e a Casa da Moeda, na Rua da Misericórdia, voltado para o mar. Até 1815, a Casa da Moeda ocupou parte do andar térreo desse edifício, quando foi então transferida para a Rua Larga, esquina com Avenida Central, atualmente Av. Marechal Floriano com Av. Rio Branco. A Rua Direita tornou-se ponto de partida para os sertões 2274 do Rio de Janeiro, onde os jesuítas haviam estabelecido seus engenhos de açúcar: São Cristóvão, Engenho Velho, Engenho Novo, Engenho de Dentro e as mais distantes São Tiago de Inhaúma, Nossa Senhora da Conceição de Irajá, Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande e São Salvador de Guaratiba (Monteiro, op. cit.). Desta forma, considerando especialmente o chamado Caminho de Capeuruçu (atual Rua da Alfândega), que ligava a área na qual se circunscrevia o aglomerado urbano aos engenhos mencionados, pode-se afirmar que a Rua Direita definia o que era o centro da cidade; o ponto a partir do qual a cidade se irradiava e crescia a partir do entorno da Rua Primeiro de Março com um característico traçado hipodâmico. Se o Rio de Janeiro só adquire importância dentro do mapa geopolítico do Império Português a partir do século XVIII, face à descoberta do ouro na Capitania das Minas Gerais (integrante da Repartição do Sul, da qual o Rio de Janeiro era a capital), esta importância reflete-se quase que imediatamente na Rua Direita. Para ela deslocou-se a Catedral, que passou a funcionar primeiramente na Igreja de Santa Cruz dos Militares e, do século XIX à década de 1970 na Igreja de N. Sra. do Carmo e a sede do poder régio, com a Casa do Governador-Geral sendo convertida em Casa do Vice-Rei. Outras edificações ligadas ao poder real rapidamente foram erguidas, como o pelourinho e a Casa de Correção e Cadeia, fazendo com que o terreno vizinho à casa do Vice-Rei fosse chamado também de Terreiro da Polé. Essa pujança atraiu à sua vizinhança ao longo do século XVIII, na malha quase perfeitamente hipodâmica que havia nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, estabelecimentos comerciais e de ofício de Estado, assim como lazer, destacando-se a Câmara e a Casa (ou Teatro) da Ópera de Manuel Luís. Século XIX, o apogeu de uma rua Como já visto, o século XVIII cristaliza a importância da Rua Direita: além dos deslocamentos de comércio e poder para ela, o Cabido ficou por três anos na Igreja de Santa Cruz dos Militares, mudando-se em 1737 para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito (dos Homens Pretos), onde ficou até 1808. Vale recordar que o consistório dessa Igreja foi ocupado pelo Senado da Câmara a partir de 1809, quando deixou o imóvel que ocupava desde meados do século XVIII até 1780, na esquina com a Rua do Mercado, cedido pelos Teles de Menezes. O incêndio desse prédio fez com que o Senado da Câmara – a antiga Casa de Vereanças – passasse a ocupar imóveis alugados. A expulsão dos jesuítas em 1760 fez com que o Colégio, na Ladeira da Misericórdia, fosse desapropriado e, embora fosse remodelado para servir de residência aos vice-reis, foi destinado a servir ao Hospital Militar. 2273

É curioso recordar que este imóvel foi mandado construir pelo Conde de Bobadela em 1738, o qual, após sua morte, deu seu nome à Rua Direita de Vila Rica. 2274 Por sertões eram designadas as áreas afastadas da várzea e dos morros que balizaram a fundação da Cidade, nas quais foram estabelecidos engenhos, tendo originalmente áreas de mata a ser desbravadas e conquistadas.

699 ISSN 2358-4912 Nada obstante as muitas alterações feitas até então, estas seriam efetivamente implementadas com a vinda da Família Real portuguesa, cuja chegada ao Brasil se deu no início de 1808 – em 21 de janeiro em Salvador, e em 7 de março no Rio de Janeiro. Desta vez não se tratava apenas de estabelecer um eixo de poder na cidade ou mesmo na capital do Vice-Reino, mas sim em transformar a cidade na capital do Reino, de um império ultramarino. Não mais vice-reis, mas o próprio Rei se fazia presente no Rio de Janeiro. O amplo programa trazido pela presença da Corte impôs reformas políticas, econômicas, culturais, sociais e arquitetônicas no Rio de Janeiro, mas, em um primeiro momento, não apenas não deslocou como confirmou o entorno do Largo do Paço como centro de poder. Dentre essas mudanças podem ser registradas a transformação do Palácio dos Vice-Reis em Paço Real, condição que manteve até 1822, com a Independência; a cessão da parte do Convento do Carmo fronteira ao Largo para residência da Rainha D. Maria e de suas acompanhantes e damas e a elevação da Igreja do Carmo a Capela Real, com prerrogativas de Catedral. Os prédios do Tribunal da Relação e da Cadeia foram destinados à ocupação pela criadagem da Família Real. O Teatro Manuel Luís foi cedido por curto período para a hospedagem da criadagem, voltando posteriormente à sua função original. Também o Hospital da Igreja do Carmo, situado na Rua Detrás do Carmo, foi requisitado em 1810 para a Biblioteca Real. Os edifícios no entorno do Largo do Paço mantinham sua tipologia portuguesa, nada obstante sua elevação de status, especialmente após 1815, quando o Brasil foi elevado à condição de Reino Unido ao de Portugal e Algarves. Tal tipologia apresentava sobriedade estilística e uma preponderância das edificações religiosas sobre as civis. Destaque no Largo do Paço era o chafariz construído por Mestre Valentim, construído em 1789, também de grande parte da talha da Igreja da Ordem Terceira do Carmo. Esta construção, eminentemente utilitária, tornou-se ponto de convergência para a população que circulava na região. Nem uma Nova Lisboa, nem uma nova Guiné; o Rio de Janeiro era um misto dessas duas possibilidades: negros de ganho misturavam-se a oficiais militares, pessoas do Judiciário e da Administração Régia, atores e religiosos, numa mistura que, mutatis mutandis, ainda caracteriza aquela região do Centro do Rio de Janeiro, algo que foi magistralmente captado nas telas de Jean-Baptiste Debret, especialmente em Os refrescos da tarde, de 1835. Nota-se o esforço em reproduzir no Largo do Paço do Rio de Janeiro o mesmo traçado urbanístico e arquitetônico da Praça do Comércio de Lisboa, tendência que se vinha observando desde meados do século XVII e que foi acentuada após a chegada da Corte, com semelhança de partido e implantação entre os projetos. A instalação do Banco do Brasil e dos Correios no trecho próximo ao sítio no qual se construiu a Igreja de Nossa Senhora da Candelária, ao norte do qual se estabeleceram o arsenal e a guarnição navais, onde atualmente situa-se o comando do I Distrito Naval, são os marcos mais expressivos do patrimônio arquitetônico construído após a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil. Foi em 1870 que a Rua Direita teve seu nome mudado para Rua Primeiro de Março, em homenagem ao final da Guerra do Paraguai, data que coincide com o aniversário de fundação da Cidade do Rio de Janeiro em 1565. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Uma rua pela qual o Rio de Janeiro passava (e passa) Se o mais bem preservado conjunto arquitetônico da Rua Primeiro de Março e arredores data dos séculos XVIII e XIX, o advento da República no final do século XIX não mudou a importância da Rua, quer no aspecto da presença do poder, visto a Câmara dos Deputados localizar-se no antigo edifício da Casa de Correção e Cadeia – reconstruído em estilo eclético pelo arquiteto Archimedes Memória, no início da Rua, quer no sentido da importância quanto à sua implantação na malha viária da cidade, tornando-se intensa via de passagem de veículos de toda sorte, especialmente transporte particular e coletivo (estes, interligando as zonas sul e central, sul e norte e central e norte da cidade), além de intenso tráfego de pedestres, não apenas trabalhadores e usuários dos bens e serviços dos arredores da Rua, como também em busca do serviço de transporte aquaviário ligando a Praça XV de novembro e a cidade de Niterói, sobretudo, mas também ligando a Praça XV e as Ilhas de Paquetá e do Governador. Inegavelmente o que causou estranheza ao pintor francês Jean-Baptiste Debret quando de sua estada no Rio de Janeiro, nas segunda e terceira década do século XIX, foi a mistura dos tipos humanos no entorno do que era o então edifício mais importante da cidade, o Paço Real. Escravos,

700 ISSN 2358-4912 pretas-de-ganho, oficiais de justiça, marujos – na frente do Paço localizava-se o Cais Pharoux, o mais importante da cidade até a construção do Píer Mauá no final do século XIX –, todos misturados em harmonia e retratados em suas muitas aquarelas. Era a apreensão de que o Rio de Janeiro não era nem a “Nova Lisboa” nem a “Nova Guiné”, mas uma mescla de ambos. Esta mistura é presente e observável até hoje, com o trânsito de pedestres de todas as classes sociais, etnias, ocupações.

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A Rua Primeiro de Março e os Planos Urbanísticos Os diferentes planos urbanísticos que foram elaborados para o Rio de Janeiro, desde a reforma Pereira Passos, passando pelo Plano Agache, Rio Cidade e Porto Maravilha (considerando-se aqui a Rua Primeiro de Março na fímbria da influência da zona portuária da cidade) ressaltaram a importância da Rua Primeiro de Março; prestando, contudo, pouca atenção à preservação de seu multissecular patrimônio histórico e arquitetônico. Em seu importante trabalho sobre as intervenções no Centro Urbano do Rio de Janeiro, Lílian Fessler Vaz e Carmen B. Silveira apontam as importantes impactações que as políticas de intervenção dos anos 1970 e 1980 tiveram, especialmente com a construção e expansão do Metrô do Rio de Janeiro (in Vargas & Castilho – orgs. – 2009). Tais políticas levaram à “destruição do tecido urbano histórico, formação de vazios e expulsão da moradia”, o que foi parcialmente recuperado com o Projeto Corredor Cultural, que promoveu a “manutenção do patrimônio edificado”. Em verdade, a Rua Primeiro de Março, por não estar diretamente na rota do Metrô e por não ser zona residencial desde o início do século XX, não sofreu esse segundo “Ponha-se na Rua”, nem o processo de gentrificação pelo qual passa o vizinho bairro da Lapa. Por outro lado, o Projeto Corredor Cultural pouco ou nada a atingiu também, não gerando revitalização ou requalificação dos imóveis históricos nela existentes. Um testemunho da convivência harmônica dessa multissecularidade da Rua Primeiro de Março pode ser apontada pela construção, na década de 1980, das torres do Centro Candido Mendes exatamente em frente ao tombado Paço Imperial e em terreno no qual se localizava o Convento dos Carmelitas, parte do qual, preservada e tombada, abriga instalações da Universidade Candido Mendes. A parte final da Rua, próxima à Rua Dom Gerardo, no sopé do Morro de São Bento, está passando por intervenções profundas, como parte do Projeto Porto Maravilha, com a escavação de um túnel subterrâneo que ligará a Primeiro de Março à Av. Rodrigues Alves, que margeia o Porto do Rio, passando sob as instalações da Marinha do Brasil. Uma reflexão à guisa de conclusão Uma rua, entendemos nós, não é apenas o somatório do leito carroçável e das calçadas e lojas que nela se encontram. Não é apenas tijolo, pedra, argamassa e asfalto. Há que ser percebida como um elemento vivo, pulsante, dinâmico, como uma das artérias que irrigam o tecido urbano de pessoas e bens, de cultura e, por que não dizer, de vida. Em um momento no qual a Cidade do Rio de Janeiro se prepara para comemorar seu 450º aniversário de fundação, em 2015, recordar que uma de suas ruas testemunha, na forma de documento arquitetônico – em pedra, tijolo, argamassa e cal – esses quatro séculos e meio de História é um convite a que a população toda, mas também acadêmicos e os poderes públicos, reflitam sobre a necessidade de preservação desse patrimônio, de forma a que ele integre-se às necessidades de crescimento de uma cidade, especialmente de uma metrópole como o Rio de Janeiro. Não se pretende contornar a questão imperiosa da necessidade da preservação. No cerne da questão reside, parece-nos a questão sobre as razões para conservar ou restaurar. Como este espaço se torna insuficiente para o aprofundamento da discussão que envolve a dialética entre conservação e restauração do patrimônio, toma-se a citação de Roberto Fernández que diz que a “demarcação histórica do conceito de patrimônio e corpus monumental se entrelaça também com diferentes manifestações ou construções historiográficas em cujo trabalho se foi definindo a dimensão e caracterização desse corpus” (Fernández, 2008). É importante pensar também que neste caso

701 ISSN 2358-4912 específico, as mudanças da Primeiro de Março conduziram à conformação atual e, como tal, a preservação deve ser entendida como um ato cultural (Kühl, 2009). É indispensável a participação do poder público nas políticas de preservação. Para tal implementação, faz-se necessária uma vigorosa atuação das autoridades, que deve ser revestida de agilidade. Quanto a isso, Olinio Coelho pondera que “se, por um lado, o aspecto formal da proteção oferece a força de controle necessária à preservação do acervo cultural, a legislação se vai tornando ineficaz, diante de novas situações que surgem e não são previstas na legislação” (Coelho, 1992).

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Agradecimentos O autor expressa sua maior gratidão aos Profs. Drs. Luiz Manoel Gazzaneo e Cêça Guimaraens, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura (PROARQ) por todo apoio e incentivo a esta pesquisa. Igual gratidão é apresentada à Profa. Dra. Maria Clara Amado Martins, do Departamento de História e Teoria da FAU/UFRJ, e às discentes Nathalia Borghi Tourino Marins e Maria Clara de Oliveira Coura, do Curso de Arquitetura e Urbanismo, pela inestimável colaboração para o desenvolvimento desta pesquisa. Referências ABREU, Maurício de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2011. ________________________ . Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iplanrio e Jorge Zahar Editor, 1987. BARRA, Sérgio. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro nos tempos do Rei (1808-1821). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. CARLOS, Cláudio Antonio Lima. Áreas de proteção do ambiente cultural. S. Paulo: Edgar Blucher, 2011. CASTRIOTA, Leonardo Barci (org.). Arquitetura e documentação: novas perspectivas para a História da Arquitetura. S. Paulo: Annablume/Belo Horizonte: IEDS, 2011. CAVALCANTI, Lauro (org.). Paço Imperial. Rio de Janeiro: IPHAN, 2005. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. S. Paulo: Editora da UNESP, 2001. ______________ . O patrimônio em questão. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. CHUVA, Márcia e NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Patrimônio Cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. COELHO, Olinio. Do Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1992. COSTA, Everaldo Batista e SCARLATO, Francisco Capuano. A dialética da construção destrutiva na consagração do Patrimônio Mundial. S. Paulo: Humanitas, 2011. DE PAOLI, Paula. Entre relíquias e casas velhas. Rio de Janeiro: Riobook’s, 2013. DE PAULA, Zuleide; MENDONÇA, Lúcia Glicério e ROMANELLO, Jorge Luís. Polifonia do Patrimônio. Londrina: EDUEL, 2012. DEBRET, Jean-Baptiste. Caderno de Viagem (Texto e Organização de Julio Bandeira). São Paulo: Sextante, 2012. EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. FERNÁNDEZ, Roberto. Obra del Tiempo. Buenos Aires: Concentra, 2008. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro Colonial: Coletânea de Textos 1531-1800. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. KUHL, Beatriz Mugayar. Preservação do Patrimônio Arquitetônico Arquitetônico da Industrialização. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. LEMOS, Carlos A. C.. O que é patrimônio histórico. S. Paulo: Brasiliense, 2009. MELLO JUNIOR, Donato. Rio de Janeiro: planos, plantas e aparências. Rio de Janeiro: Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio de Janeiro, 1988.

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A LEGISLAÇÃO E A RELAÇÃO DA COROA PORTUGUESA COM AS REVOLTAS DO ESTADO DO BRASIL (1650-1730) 2275

João Henrique Ferreira de Castro

É possível afirmar que o tratamento destinado às revoltas ocorridas no Estado do Brasil durante o período colonial era definido a priori por uma legislação clara e precisa ou que ao menos havia uma orientação inquestionável por parte da Coroa portuguesa construindo um determinado modelo de ação na contenção destes movimentos pelos seus representantes no ultramar? A pertinente questão se faz importante e já é possível adiantar em um primeiro momento que o objetivo fundamental deste texto é sustentar a hipótese de que a resposta negativa é a adequada para esta pergunta. Ao longo desta apresentação, pretendo demonstrar que os cenários de negociação entre oficiais e revoltosos eram sempre dinâmicos e capazes de provocar questionamentos, na Corte e nos fóruns de poder locais, acerca da melhor forma de agir diante de eventos desta natureza, gerando constantes alterações na visão sobre as revoltas e também na aceitação ou não de penas severas como a capital, por exemplo, o que também influenciava a legislação portuguesa e as perspectivas de como proceder para evitar que manifestações como aquelas ocorressem. Antes de demonstrar tais transformações no recorte temporal proposto, cabe enfatizar que a legislação, no entanto, também era influenciada pelos debates entre os teóricos sobre a “razão de estado” que deveria guiar a Coroa lusa e que estava também longe de promover uma visão inconteste sobre o tema. Neste sentido, os oficiais podiam ser apoiados ou cerceados no direito de reprimir com violência tais movimentos e tais decisões podiam ter conseqüências para suas carreiras ultramarinas como promoção para postos superiores ou períodos de ostracismo. A análise de como a Coroa lidava com o problema das revoltas, portanto, demanda um esforço de resgatar os contextos de variadas revoltas e também dos debates gerados nestes momentos, contrariando certa tradição historiográfica, cunhada no século XIX a partir de uma perspectiva nacionalista, que insiste em defender a tese de que a repressão às revoltas coloniais era intensa e tratar episódios como a condenação de Jerônimo Barbalho, na Revolta da Cachaça de 1660, ou de Filipe dos Santos, na Revolta de Vila Rica em 1720, eventos aos quais darei especial atenção para entender os seus desfechos, como regra. É bem verdade que a classificação das revoltas deste período como nativistas, própria de uma historiografia nacionalista que tinha como foco enfatizar a violência da repressão a estes movimentos, nas quais fundamentalmente se objetivaria defender os interesses dos colonos que viviam no Estado do Brasil em detrimento dos que vinham recentemente de Portugal já se encontra esvaziada há tempo, como demonstrou Rogério Forastieri em 1997 apontando que tal definição encontrava-se datada e, em geral, apresentava uma perspectiva teleológica da identidade nacional brasileira nos quais tais movimentos compunham um bloco de eventos entendido como “precursor do nacionalismo, ou mesmo sinônimo de nacionalismo.”2276 No entanto, persiste a insistência em defender que a conduta portuguesa na repressão à estes movimentos tendia sempre a ser rígida, mascarando aspectos importantes da negociação existente nestes contextos, como a frequente publicações de perdões, o atendimento aos anseios dos revoltosos ou as represálias aos oficiais que excediam em suas punições. Exemplos disso se encontram na acusação de que o Conde de Assumar blefava ao conceder os perdões aos revoltosos de Vila Rica e de que sua intenção sempre fora punir os culpados pela sedição de 1720, expressa, por exemplo, no estudo crítico feito por Laura de Mello e Souza sobre o evento em questão2277, e também quando Maria Verônica Campos, em estudo sobre as revoltas ocorridas em Minas Gerais ao final do século XVII e início do XVIII chega a afirmar que o padrão de ação era “fazer concessões diante de um motim, promulgar o perdão, aguardar a situação se acalmar e iniciar a

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CASTRO, João Henrique Ferreira de. Professor do Colégio Pedro II/Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense/Bolsista CNPq. 2276 SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo. São Paulo, Hucitec, 1997. p. 68. 2277 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso Histórico e Político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720: Estudo crítico. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.

704 ISSN 2358-4912 devassa e a punição de líderes”2278 ainda que demonstre em tabela anexa ao seu texto que a grande maioria das revoltas que estudou tenha terminado sem punições significativas e até mesmo com o perdão de suas lideranças. O avanço da historiografia política sobre o Império Português nos últimos anos, no entanto, tem deixado claro que é necessária uma perspectiva mais complexa sobre as relações estabelecidas entre os súditos da Coroa e os seus oficiais, bem como dedicar especial atenção à legislação e aos debates desenvolvidos sobre os mais variados temas e, sem sombra de dúvida, em relação à conduta adequada para conter as revoltas que eram expediente frequente de ação política no Estado do Brasil. A análise dos textos de autores que tratavam dos pilares que deveriam orientar a monarquia lusa e que norteavam os debates no Conselho Ultramarino, por exemplo, deixa claro que os castigos estavam longe de ser recomendados como forma de ação nas primeiras décadas do Pós-Restauração. A perspectiva comum, aliás, legitimava a própria Restauração e a Dinastia bragantina, oriunda de uma revolta e de uma resistência considerada legítima, pelos restauradores, à tirania dos Filipes e isto se nota a partir da compreensão da obra de estudiosos da política que chegavam, como Francisco Suárez, a teorizar “sobre os modos lícitos de se resistir um soberano.”2279 Diante desta consideração, parece ser necessário questionar afirmações sobre as revoltas ocorridas neste contexto como a de Laura de Mello e Souza que considera para a Revolta de Vila Rica, por exemplo, que “o embate entre os poderes locais e a autoridade metropolitana, este sim, [era] o verdadeiro nervo do conflito”2280. Disputas pessoais, desejo por postos administrativos, insatisfações econômicas ou com ações como a criação de uma casa de fundição e outras variáveis apareciam com frequência nas revoltas, fazendo com que a leitura de Souza seja simplificada e presa a tradicional dicotomia metrópole e colônia, insuficiente para explicar uma série de questões como o porquê de a Coroa reprimir os seus oficiais em função de condutas violentas com relativa constância. De fato, é possível perceber que em meados do século XVII a legislação produzida após a ascensão dos Bragança sobre a punição às revoltas apresentava pouquíssimas recomendações de uso de força, embora o rigor das Ordenações Filipinas, que permaneciam em vigência, fizesse com que o rei prussiano Frederico II, cujo reinado estabeleceu-se entre 1740 e 1786, se espantasse e, conforme aponta Antônio Manuel Hespanha, “ao ler o livro V das Ordenações, teria perguntado se, em Portugal, ainda havia gente viva”.2281 A defesa do perdão, aliás, parecia ser expediente mais frequente e nas primeiras décadas do domínio bragantino, ainda que o uso da força aparecesse em momentos como na repressão à conjura de 1641 por D. João IV, a tentativa de evitar a associação com a violência e destacar a tradição benevolente da monarquia portuguesa, que fazia da memória de D. João III, alcunhado O Piedoso, parecia ser prática mais presente entre os oficiais e teóricos da política daquele período. Em tese recente, por exemplo, Antônio Filipe Caetano reforçou a perspectiva presente em trabalhos como os de Charles Boxer e Luciano Figueiredo de que a punição a Jerônimo Barbalho na Revolta da Cachaça teve efeitos negativos para Salvador Correia de Sá, governador responsável pela decisão. Ao tomar ciência dos acontecimentos no Rio de Janeiro, D. Luísa de Gusmão não só acatou as reivindicações dos revoltosos como nomeou Pedro de Melo para o lugar do antigo oficial, o que Caetano entende como uma demonstração de valor da negociação com os súditos do ultramar expressa no fato de que em casos como este “a coroa portuguesa reconhecia a superioridade destes homens para a manutenção do mundo ultramarino português.”2282 É bem verdade que esta percepção de que a punição pesada ao movimento tinha incomodado à Coroa lusa já estava presente, por exemplo, em obra de Charles Boxer onde o autor afirma que embora Salvador “tenha esmagado completamente a revolta, a execução de Barbalho, em vingança, ficou tristemente na memória dos habitantes do Rio de Janeiro e não lhe criou atmosfera favorável na corte V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP, FFLCH, 2002. (Tese de doutoramento inédita). p. 239 2279 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2009.p. 272. 2280 SOUZA, Laura de Mello e. Op. Cit. p. 23. 2281 SUBTIL, José Manuel. “Os Poderes do Centro”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa. p. 273. 2282 CAETANO, Antônio. Entre a Sombra e o Sol: A Revolta da Cachaça e a crise política fluminense (Rio de Janeiro, 16401667). Maceió, Gráfica. 2009. p. 197.

705 ISSN 2358-4912 de Lisboa.”2283 Em Caetano, porém, a compreensão da razão para esta insatisfação é ainda associada à cultura política portuguesa e, portanto, melhor detalhada, afinal a incapacidade de Salvador de Sá em negociar com os revoltosos e, principalmente, a violência de sua repressão foram interpretadas por Caetano como uma violação da tradição escolástica portuguesa, da qual a benevolência era uma virtude especialmente importante e onde à tirania era mal vista pelo entendimento “de que residia no povo à salvaguarda do poder real.”2284 Constatar a partir deste episódio que o recurso à violência na contenção das revoltas era sempre questionado pela Coroa portuguesa, contudo, parece ser tão inadequado quanto a afirmação historiográfica tradicional de que a força era o expediente mais frequente nestes casos. A ação de Salvador Correia de Sá, por si só, mostra que personagens importantes da monarquia lusa eram defensores desta possibilidade, reforçando a hipótese fundamental deste texto de que o tema provocava controvérsias na Corte portuguesa que, apesar da represália ao governador, passaria, pouco tempo depois, a aumentar o poder dos oficiais para atuar com rigor na repressão aos mais variados enfrentamentos à ordem, enfraquecendo, por exemplo, a restrição de aplicações de punições mais pesadas, como era recomendando no Regimento das Ordenanças do Brasil de 21 de abril de 1739 que só admitia penas severas com o consentimento régio, destacando que “por onde lhes pareça que merecem maior castigo, me escreverão e enviarão suas culpas, para nisso prover como for meu serviço.”2285 O passar dos anos mostraria ainda mais claramente que o pensamento político entre os oficiais e teóricos da política no Império Português sobre o castigo ou não aos revoltosos e sobre a criação de leis que encorajassem um maior rigor na repressão a estes momentos não era unânime, mas também que a dureza no tratamento com as rebeliões cada vez ganhava mais força. Quem justifica esta progressiva legitimação do uso da força é o trabalho conjunto de António Manuel Hespanha e de Ângela Barreto Xavier que percebem que “a atenuação da polémica anti-habsbúrgica e o progresso das influências de correntes mais modernas do pensamento político (seja da “razão de Estado católica” espanhola e italiana, seja da “política cristã” francesa) vêm vulgarizar as referências a uma “política católica””2286, ou seja, que o passar dos anos no século XVII conseguiu provocar, inclusive, uma maior aceitação de condutas mais autoritárias e violentas em nome da manutenção do poder, ainda que opositores à este avanço de uma razão de estado mais pragmática tenham persistido. É possível perceber alguns aspectos desta mudança de percepção em obras de teóricos como Sebastião César de Menezes, que “em 1666, no livro Sugillatio Ingratitudinis aponta a submissão dos súditos como pilar fundamental para a manutenção do bem comum.”2287 É mais pertinente neste momento, no entanto, enfatizar os resultados práticos deste processo, a saber, o envio de algumas instruções oriundas de Lisboa e que tornavam o perdão aos rebeldes uma mercê questionável e até mesmo recomendavam a aplicação de castigos na repressão às revoltas do Brasil, confirmando uma certa mudança na “razão de estado” portuguesa expressa a partir de ordens régias e outras orientações cada vez mais severas. É bem verdade que já em 1650 havia uma restrição para que os governadores de armas pudessem conceder perdões e para que o Conselho de Guerra os pudesse confirmar,2288 mas é a partir do início do século XVIII, mais precisamente no reinado de D. João V, que determinações mais claras de castigos rígidos começam a aparecer.

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BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: EDUSP, 1973. p. 335. CAETANO, Antônio. Loc. Cit. 2285 REGIMENTO das Ordenanças do Brasil. In: COELHO E SOUZA, José Roberto Monteiro de Campos. Sistema ou Coleção dos Regimentos Reais. Agora novamente reimpressos e acrescentados com todas as Leis, Alvarás, Decretos, Avisos ... Lisboa : Typ. Lacerdina.1718 - 1791. Vol. 4. p. 524. 2286 HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. “A representação da sociedade e do poder”. In:MATTOSO, José (org). História de Portugal: O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 123. 2287 XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998. p.133. 2288 “Documento declarando que os Governadores de Armas não podem perdoar, nem o Conselho de Guerra confirmar taes perdões.” In: ALMEIDA, Antonio Lopes da Costa. Repertório Remissivo da Legislação da Marinha e do Ultramar, compreendida nos anos de 1317 até 1856. Lisboa: Imprensa Nacional, 1856. p. 510. 2284

706 ISSN 2358-4912 Neste sentido, os anos de 1719 e 1720 tiveram um destaque fundamental. O questionamento da eficácia do perdão e a constatação de que o mesmo encorajava os revoltosos a seguir em desobediência apareceria em carta enviada por D. João V aos governadores do Estado do Brasil e também para Angola no dia 11 de Janeiro de 1719. Segundo a carta, o perdão tradicionalmente concedido aos revoltosos parecia ineficiente para impedir novas revoltas, pois havia “mostrado a experiência que a (...) com que em todo esse Estado costumam os governadores concederem perdões das sublevações, dá confiança aos (...) para novamente se sublevarem e não temerem o castigo.”2289 Diante disto, a orientação da monarquia passou a ser a de regular ainda mais a concessão desta graça, exigindo que os oficiais ultramarinos comunicassem ao rei quando decidissem por concedê-la e aguardassem autorização real para validá-la, fazendo com que os perdões, portanto, só fossem confirmados “havendo o eu por bem, e não o uses em que não tiverem jurisdição as não ponham em prática nem executem os seus arbítrios sem primeiro me darem conta expondo todas as leis que tiverem.”2290 Mais do que proibir os perdões, a Coroa portuguesa chegaria, inclusive, a aumentar a jurisdição de alguns oficiais para facilitar que estes pudessem aplicar castigos. Foi o caso, por exemplo, do vice-Rei do Estado do Brasil D. Vasco Fernandes César de Meneses que em 1720 embarcou para servir em Salvador com liberação para dar castigo “aqueles que alguns delitos ou malefícios cometerem assim na terra como no mar em qualquer parte em que meus vassalos estiverem, ora sejam de meus naturais, hora de meus súditos nas ditas partes do Brasil”2291 em um claro aumento da jurisdição deste cargo, ainda que não seja possível afirmar que outros oficiais tenham recebido concessão semelhante. A concessão real à violência era tão clara naquele instante que o vice-rei poderia fazer uso de punições severas e “até morte natural inclusive, poderá usar inteiramente, e se darão a sua execução, suas ordens, e mandados, sem deles mais haver apelação, nem agravo.”2292 É notório, portanto, que havia uma alteração na conduta e na leitura da Coroa portuguesa da melhor forma de conter os levantamentos no Estado do Brasil expressa também nas orientações enviadas aos oficiais no Brasil, mostrando o que Ângela Barreto Xavier considerou, ainda que tendo a repressão às revoltas, como uma transformação da “razão de estado” portuguesa, já nos fins do século XVII “plasmada pelos saberes maquiavélicos, por Tácito, por Lipsius, por Botero.”2293 É importe, porém, enfatizar que tal mudança não provocava uma defesa uníssona desta transformação como alguns estudos contemporâneos sobre este período tentam enfatizar. Como exemplo, cabe citar a tese de Marcos Aurélio Pereira sobre o Conde de Assumar, personagem destacadamente associado a esta tendência de castigos rigorosos em função da condenação à pena capital de Filipe dos Santos, muito embora tenha enfrentado algumas dezenas de levantamentos durante sua estadia em Minas Gerais e apenas nesta tenha usado este recurso2294, e que, para justificar sua decisão em Vila Rica, “baseou seus argumentos em teóricos que discutiam uma prática política marcada pelo calculismo, pela técnica e pela necessidade”.2295 Tal situação, no entanto, não impediu que o Conde tivesse que lidar com opositores e questionamentos com os quais Pereira não pareceu se preocupar. O exemplo mais marcante talvez seja o do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa que, em 1732, busca rever a defesa de uma conduta rígida no trato com os súditos do ultramar, acreditando que as mesmas aumentavam os levantamentos, pois eram estes derivados da “desafeição e ódio que concebem V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CARTA de Sua Magestade, escrita ao Governador sobre não poder dar perdoens a nenhum culpado como se declara. In: Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção de Microfilmes. Ordens Régias Nº 6. Flash 4 Documento 3. 11/01/1719. 2290 Ibidem. 2291 BNRJ – SM, 2, 3, 5. Carta Patente do Exmo Snor’ Vasco Fz Cezar de Menezes, V Rey e Capitão General de mar e terra deste Estado do Brasil. 2292 Ibidem. 2293 XAVIER, Ângela Barreto. Op. Cit. p. 40. 2294 A historiadora Maria Verônica Campos detalhou um amplo quadro de revoltas enfrentadas pelo Conde em sua tese de doutoramento. Ver: CAMPOS, Maria Verônica. Op. Cit. 2295 PEREIRA, Marcos Aurélio de Paula. Vivendo Entre Cafres: Vida e Política do Conde de Assumar no Ultramar, 16881756. Niterói: UFF, ICHF, 2009 (tese de doutoramento inédita). p. 247.

707 ISSN 2358-4912 contra os dominantes, o qual ordinariamente procede das injúrias e violências com que são tratados pelos governadores, da iniqüidade com que são julgadas as suas causas pelos ministros da justiça.”2296 Em linhas gerais, portanto, é possível perceber a sustentabilidade da hipótese central deste texto de que a Coroa portuguesa não tinha uma política definida para lidar com as revoltas coloniais, especialmente sobre como reprimi-las, e que os contextos de negociação nestes eventos eram influenciados pelos personagens envolvidos e pela literatura política, que poderia tanto fomentar a defesa do perdão como a de castigos rigorosos. Mais do que isto, é possível perceber que a monarquia frequentemente debatia e repensava a forma de lidar com os revoltosos, produzindo assim intensas discussões e também orientações para que os oficiais a serviço no Estado do Brasil pudessem tentar estabelecer a ordem mesmo em cenários de descontentamento, o que, convenhamos, era o que se objetivava a cada perdão concedido ou castigo aplicado e a cada nova reflexão sobre o tema que o menor dos levantamentos tinha capacidade de provocar.

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Referências “Documento declarando que os Governadores de Armas não podem perdoar, nem o Conselho de Guerra confirmar taes perdões.” In: ALMEIDA, Antonio Lopes da Costa. Repertório Remissivo da Legislação da Marinha e do Ultramar, compreendida nos anos de 1317 até 1856. Lisboa: Imprensa Nacional, 1856. p. 510. BNRJ – SM, 2, 3, 5. Carta Patente do Exmo Snor’ Vasco Fz Cezar de Menezes, V Rey e Capitão BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: EDUSP, 1973. CAETANO, Antônio. Entre a Sombra e o Sol: A Revolta da Cachaça e a crise política fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Maceió, Gráfica. 2009. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP, FFLCH, 2002. (Tese de doutoramento inédita). CARTA de Sua Magestade, escrita ao Governador sobre não poder dar perdoens a nenhum culpado como se declara. In: Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção de Microfilmes. Ordens Régias Nº 6. Flash 4 Documento 3. 11/01/1719. General de mar e terra deste Estado do Brasil. HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. “A representação da sociedade e do poder”. In:MATTOSO, José (org). História de Portugal: O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. PARECER do Conselheiro Antonio Rodrigues da Costa. RIHGB, t. 7, v.7, 1847. PEREIRA, Marcos Aurélio de Paula. Vivendo Entre Cafres: Vida e Política do Conde de Assumar no Ultramar, 1688-1756. Niterói: UFF, ICHF, 2009 (tese de doutoramento inédita). REGIMENTO das Ordenanças do Brasil. In: COELHO E SOUZA, José Roberto Monteiro de Campos. Sistema ou Coleção dos Regimentos Reais. Agora novamente reimpressos e acrescentados com todas as Leis, Alvarás, Decretos, Avisos ... Lisboa : Typ. Lacerdina.1718 - 1791. Vol. 4. p. 524. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2009. SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo. São Paulo, Hucitec, 1997 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso Histórico e Político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720: Estudo crítico. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994. SUBTIL, José Manuel. “Os Poderes do Centro”. In: MATTOSO, José. História de Portugal: O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa. p. 273. XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998. p.133.

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PARECER do Conselheiro Antonio Rodrigues da Costa. RIHGB, t. 7, v.7, 1847. p. 477.

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ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO E MOBILIDADE SOCIAL DOS NEGROS INSERIDOS NA ESTRUTURA MILITAR COLONIAL. COMARCA DO SERRO FRIO, SÉCULO XVIII Joelmir Cabral Moreira2297 Este artigo deriva-se de um projeto de pesquisa em desenvolvimento na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri com o programa PIBIC/CNPq sob orientação da professora Dra. Ana Paula Pereira Costa cujo título é “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de ‘Milícias particulares’ de escravos e das tropas Milicianas e de Ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. O objetivo mais amplo da investigação consiste em analisar a incorporação de negros no sistema militar lusitano organizado na comarca de Serro Frio no século XVIII. Como desdobramento dessa reflexão pretendemos elucidar no presente texto alguns dados preliminares acerca dos mecanismos que possibilitavam a inserção e a mobilidade dos negros na estrutura militar na referida localidade das Minas setecentista. Objetivamos também, e de forma complementar, discutir a complexidade da organização militar na colônia, bem como outras possibilidades de atuação da população negra na América portuguesa que ultrapassava sua faceta servil nesta sociedade escravista. A delimitação espacial que propomos analisar neste trabalho abarca um importante território das Minas Gerais no século XVIII: a comarca do Serro Frio, composta pelos Termos de Vila do Príncipe e Arraial do Tejuco, estabelecidos e organizados em função das atividades de mineração do ouro e dos diamantes. Como fonte primária utilizamos a documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino relativa a capitania de Minas Gerais concernente a cartas patentes, alvarás, requerimentos, ofícios, entre outras. Cabe sublinhar que, no Brasil, até a década de 1980, os estudos relacionados à história militar colonial eram reduzidos. A produção historiográfica desse período era sistematizada sob a ótica dos aspectos institucionais das forças bélicas da colônia, com destaque para os estudos de Raimundo Faoro, Caio Prado Júnior e Graça Salgado2298. Entretanto, a partir da década de 1990, no intuito de demonstrar a complexidade da organização da estrutura militar do período colonial, inauguraram-se novas perspectivas sobre a história militar destacando-se temas como a composição social das tropas no referido contexto e a compreensão das instituições militares em seus contextos social, político, econômico e cultural2299. 2297

Aluno do curso de História da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, bolsista de Iniciação Científica PIBIC/FAPEMIG, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Paula Pereira Costa com o projeto “Elite, poder e riqueza na terra dos diamantes: uma análise do perfil social dos poderosos locais do Arraial do Tejuco no século XVIII”. O presente texto foi escrito com a colaboração de Janaína Ladeira Venâncio aluna do curso de História da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Paula Pereira Costa com o projeto “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de ‘Milícias particulares’ de escravos e das tropas Milicianas e de Ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. 2298 Cf. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Op. cit. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Globo, 1989. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. 2299 Alguns exemplos: COTTA, Francis Albert. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado. MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII – As capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a manutenção do Império Português no Centro-Sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de Doutorado. SILVA, Kalina V. da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2001. COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação de Mestrado. GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. MOREIRA, Luiz Guilherme S.; LOUREIRO, Marcello José G. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012.

709 ISSN 2358-4912 A título de ilustração destacamos os estudos de Ana Paula Pereira Costa e Francis Albert Cotta como exemplos dessa historiografia revisionista sobre história militar no Brasil colônia. Essas novas abordagens têm contribuído para o entendimento da organização militar lusitana transplantada para a América portuguesa, bem como da incorporação de negros na organização militar. Para elucidar a organização militar do período enfocado, Ana Paula Pereira Costa em sua dissertação de mestrado intitulada “Atuação de poderes locais no império lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (17351777)”, nos esclarece que as forças militares se dividiam em três tipos específicos de forças: os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos Regulares eram aqueles pagos diretamente pela Fazenda Real se constituindo na força militar “profissional” da monarquia portuguesa. Se dividiam em terços e companhias sendo seu comando pertencente a um fidalgo indicado pela Coroa2300. As Milícias, criadas como força auxiliar para a Tropa Regular em caso de necessidade, eram compostas por homens recrutados junto à população civil. Não eram remuneradas e seus oficiais e soldados não possuíam um treinamento militar sistemático para exercerem suas funções. As milícias se organizavam em terços e companhias sendo sua hierarquia organizada da seguinte forma: mestresde-campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis, capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor. Já os Corpos de Ordenanças foram forças instituídas pela “Lei de 1549” de D. João III e organizados conforme o “Regimento das Ordenanças de 1570” e da “Provisão de 1574”. Seu sistema de recrutamento abrangia a parcela masculina da população entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas outras forças. Os membros das Ordenanças não recebiam soldo, podiam permanecer em seus serviços particulares e, só em caso de perturbação da ordem pública, se apresentavam para o desempenho de funções bélicas. As Ordenanças também se organizavam em terços que se subdividiam em companhias. Sua hierarquização se dividia em postos de alta patente: capitão-mor, sargento-mor, capitão; e de baixa patente: alferes, sargentos, furriéis, cabos de esquadra, porta-estandartes e tambor2301. Francis Cotta em sua tese de doutorado analisa as Tropas Pagas existentes na capitania mineira no setecentos, denominada Dragões. Sua análise chama atenção para outras divisões mais específicas existentes na estrutura militar anteriormente citada criadas a partir da incorporação de hierarquias de cor. Conforme o autor, no caso dos negros, e para a capitania de Minas Gerais, poderiam ser agrupados, basicamente, em quatro espécies de forças: as Companhias Auxiliares de Infantaria; as Companhias de Ordenanças de Pé; os Corpos de Pedestres e os Corpos de Homens-do-Mato2302. Os estudos relacionados a incorporação de negros na organização militar colonial são ainda escassos e inauguram perspectivas pouco pensadas para o contexto até então. Sob esta perspectiva da incorporação de negros no âmbito militar, Ana Paula Pereira Costa a analisa a partir de duas formas distintas. A primeira está atrelada aos serviços prestados por potentados da região mineira às custas de escravos armados, com estes atuando como uma espécie de milícia particular para seus senhores2303. Para o caso de Minas Gerais, não são poucos os relatos de homens que se aventuraram pelos sertões, na conquista de novos territórios, no combate a conflitos internos e externos e até mesmo na cobrança de impostos (como o quinto) a fim de ganharem títulos, sesmarias, patentes e cargos políticos, no intuito de conseguirem poder e prestígio e, assim, tornarem-se potentados locais. Nessas empreitadas o uso de escravos como braço armado era imprescindível para a sobrevivência e sucesso desses indivíduos. Segundo a autora:

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2300

COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano. Op. cit. p. 18 Idem. p.18. 2302 COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões. Op. cit. p. 207. 2303 COSTA, Ana Paula Pereira. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Projeto de pesquisa apresentado ao programa institucional de iniciação científica e tecnológica – PIBIC/CNPq. Diamantina: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, 2013. 2301

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ISSN 2358-4912 Mais do que a participação dos colonos na conquista do território colonial o que afirmações como estas devem explicitar é a importância adquirida pelos escravos para os seus senhores. O significado destas ligações com os escravos se evidencia não só porque na sociedade colonial o escravismo articulava as relações sociais, mas porque em muitos casos esses cativos forneciam segurança aos potentados ao atuarem como uma pequena milícia para protegê-los nas rixas e conflitos em que se envolviam. Além disso, podiam ser usados nos serviços de El Rey como braço armado, 2304 possibilitando a aquisição de mercês .

Outra forma de assimilar os negros à esfera militar era atrelá-los a hierarquia formal lusitana através das forças acima mencionadas (as Companhias Auxiliares de Infantaria; as Companhias de Ordenanças de Pé; os Corpos de Pedestres e os Corpos de Homens-do-Mato). As Companhias Auxiliares de Infantaria de pretos e pardos libertos podiam atuar tanto na destruição de quilombos e repressão aos índios, quanto na defesa das fronteiras marítimas e terrestres. Nas Companhias de Ordenanças de Pé de homens pardos e pretos libertos as principais missões também estavam relacionadas aos confrontos com os quilombolas e índios bravos. Atuavam assim localmente para preservar a tranquilidade e o sossego públicos. O comando de diversas dessas Companhias de Ordenanças de pé de homens pardos e pretos libertos era exercido por um capitão-mor, homem branco, poderoso e de considerável cabedal econômico. Em cada companhia haveria um capitão e um alferes, responsáveis pela disciplina e organização do corpo militar. Se a milícia fosse composta por soldados e cabos negros, os seus oficiais seriam negros; no caso de serem pardos, seus capitães e alferes seriam pardos. Por seu turno, o corpo de pedestres era formado por negros, pardos libertos e por escravos. Eles “entravam nos matos, descendo córregos por despenhadeiros impraticáveis”2305. Pela vasta experiência eram requisitados como guias nas expedições militares. Tinham seus soldos e jornais pagos pela fazenda real e eram comandados por capitães pardos. Por fim, os homens pardos, negros libertos e escravos também se inseriam nos Corpos de Homens-do-Mato. Eles não recebiam soldos, fardamentos, equipamentos, armamentos ou alimentação da fazenda real. Eram recompensados através das tomadias pagas pelos proprietários dos escravos fugidos2306. Estudos como os mencionados indicam que os serviços bélicos, tanto o de cunho formal, quanto o de cunho informal, podiam se constituir em relevantes mecanismos de inserção, ascensão e mobilidade possibilitada aos negros no âmbito colonial, temática ainda pouco estudada pela historiografia. A respeito das recentes pesquisas relacionadas à mobilidade negra no período colonial, temática ainda pouco estudada pela historiografia. As análises vêm revisando algumas concepções que os associavam a condição de submissão e coisificação e, neste sentido, desmistificando a rigidez das relações entre senhor e escravo. O objetivo tem sido evidenciar a existência de barganhas e negociações desses indivíduos junto aos senhores que lhes permitissem melhoras em suas condições de vida. Evidentemente essas análises não descaracterizam a faceta autoritária das relações entre senhor e escravo2307. Para o caso dos livres e libertos destacamos o estudo de Roberto Guedes que a partir do método da micro história analisou a trajetória e a mobilidade social do alferes Joaquim Barbosa Neves em Porto Feliz, São Paulo, entre o final do século XVIII e meados do século XIX. Cabe sublinhar que a trajetória de Joaquim Barbosa é representativa, pois, nascido na condição de escravo, alcançou lugar de destaque na referida sociedade, conseguindo no ano de 1828 se tornar senhor de 41 escravos e, portanto, ser 2304

COSTA, Ana Paula Pereira Costa Armar escravos em Minas colonial: potentados locais e suas práticas de reprodução social na primeira metade do século XVIII. Vila Rica, 1711-1750. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. Tese de Doutorado. p. 24. Ver também: KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p.260. 2305 Ver: COSTA, Ana Paula Pereira. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Op. cit. p. 7. COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões. Op. cit. p. 208. 2306 Idem. 2307 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 291. Apud: COSTA, Ana Paula Pereira. Senhores e Potentados: negociações e reciprocidades na formação de “exércitos privados de escravos” em Minas Gerais no início do século XVIII. In: ECHEVERRI, Adriana Alzate, FLORENTINO, Manolo & VALENCIA, Carlos Eduardo (Orgs.). In: Impérios ibéricos em comarcas americanas: estudos regionais de história colonial brasileira e neogranadina. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p. 67.

711 ISSN 2358-4912 parte da elite escravista local. Esse reconhecimento adveio das alianças firmadas com a elite, atividades ligadas ao comércio e a estabilidade familiar. Destacamos que a referida ascensão e mobilidade social não correspondia apenas ao enriquecimento, a aspectos ligados ao âmbito econômico, mas sim ao acrescentamento da “qualidade social” feito a partir de diversos diferenciadores. Dentre eles, podemos citar o acesso à cargos, privilégios, honrarias, isenção fiscal, etc. Desse modo o caso de Joaquim Barbosa demonstra que mesmo para aqueles indivíduos que tiveram um passado ligado à escravidão, a organização social do período proporcionava algumas oportunidades de ascensão e mobilidade, restritas vale ressaltar, mas que davam chances de melhorar a “qualidade”2308. Diante do que foi exposto, pretendemos nessa parte do texto refletir sobre possibilidades de ascensão e mobilidade da população negra no âmbito militar na comarca de Serro Frio no século XVIII. Em 1729 foi anunciada a descoberta de diamantes nas rochas e no leito dos rios da região do Vale do Jequitinhonha. O comunicado chegou a Portugal em 1729, expedido pelo governador da capitania, D. Lourenço de Almeida. Com o anúncio oficial da descoberta, a Coroa tratou de pôr ordem na casa: organizou a exploração dos diamantes e, claro, a cobrança dos respectivos impostos. Entre 1729 e 1734, a exploração foi aberta a todos que tivessem escravos e capital para investir na mineração, mas cobrava-se uma taxa sobre cada escravo empregado nos trabalhos de extração. O aumento da produção trouxe rápida prosperidade à população da localidade, notadamente ao Arraial do Tejuco que crescia vertiginosamente2309. Divulgadas as riquezas das duas localidades citadas, ambas tornaram-se o centro de convergência dos exploradores e comerciantes, atraídos pelo ouro e, sobretudo, pelos diamantes. Para elas deslocaram-se principalmente paulistas, portugueses e negros, ao lado de outros estrangeiros em número menor. A chegada de tão grande afluxo populacional durante boa parte do setecentos criou, por sua vez, um clima de instabilidade social. Dessa maneira, podemos inferir que o estabelecimento de um aparato militar nas regiões era de fundamental importância para a organização daquelas sociedades ainda em processo de consolidação. Mesmo que os resultados relativos à investigação sejam ainda parciais, tendo em vista que o projeto encontra-se em andamento, conseguimos visualizar algumas questões importantes sobre o tema proposto. Assim, a partir da análise da documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino referente à capitania de Minas Gerais, até o momento tem sido possível perceber que as forças militares divididas por hierarquias de cor e as milícias particulares de escravos armados foram institucionalizadas na região analisada a partir dos primeiros anos dos setecentos e foram vistas de maneiras distintas pelas diversas autoridades portuguesas e população colonial. A propagação, necessidade e importância de tais forças e milícias em um contexto de forte tensão social gerou, por sua vez, um canal relevante de assimilação e mobilidade para muitos negros que para tais localidades se dirigiram. Para ilustrar o que acabamos de mencionar destacamos o caso de José Inácio Marçal Coutinho. Este era crioulo forro, capitão da companhia dos forros e no ano de 1756 era reconhecido em um requerimento enviado pelos crioulos pretos e mestiços forros, moradores nas quatro comarcas de Minas Gerais como seu representante, agente e procurador. Desempenhando tal papel José Inácio Marçal Coutinho viajou para a corte de Portugal em 1755 com a intenção de defender as solicitações dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores nas Minas, reveladas no documento2310. Dentre essas destacam-se a concessão de privilégios vários, tais como o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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GUEDES, Roberto. “De ex-escravo a elite escravista: a trajetória de ascensão social do pardo alferes Joaquim Barbosa Neves (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)”. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla e JUCA, Antônio Carlos (Orgs). “Conquistadores e Negociantes: História de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII ”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.p. 339-376 2309 Ver: FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde. São Paulo: Annablume, 1996. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ver também: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976 [1862-68]. Apud: COSTA, Ana Paula Pereira. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Op. cit. p. 9. 2310 Arquivo Histórico Ultramarino/MG/cx.: 69; doc.: 5.

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ISSN 2358-4912 Os leais escravos e melhores vassalos de V. Mage os homens crioulos pretos e mestisos forros moradores nas quatro comarcas de minas geraes do ouro do governo e bispado representarão a V. Mage seo sr rey e príncipe soberano por mão de seo agente e procurador bastante o capitão da companhia chamada a dos forros, que existe há mais de 30 anos na comarca do rio das mortes, Jose Inacio Marçal Coutinho, e na pessoa deste os suplicantes todos juntos, e cada hum he por sy in solidum unanimes e conformes vierão de tão longe estar na real presença de tão soberana e fidelíssima Mage com todo o devido acatamento (...)Pella dita suplica expendem e esperam felicidades para a confirmação do que pretendem para mayor honra do serviço de V. Mage, bem comum dos moradores daquele pais e honra dos suplicantes se avaliarem no real serviço se seo sr príncipe soberano por quem a todo risco querem expor as vidas de presente e de foturo (...)Pedem para que V. Mage haja por bem de sua real grandeza os mande aly regimentar no mesmo modo tratamento, honras que gozão os homens pretos de Pernambuco, Bahia e Sam Thome com companhias úteis e necessárias na villas e arraes para os velarem, socorrerem e investigarem rondando aquelas terras, cerras, estradas, campanhas, rios e matas para melhor conclusão e serventia do real serviço, pelos descaminhos que aly se dão ouro e diamantes e outros mais bens do povo e prejuízo grave que daí os foragidos, ciganos e contrabandistas a real fazenda e aos 2311 moradores daquelas povoações se faz crível e verossímil(... ) .

A primeira inferência que podemos fazer ao analisarmos o documento diz respeito as possibilidades de assimilação de homens negros na hierarquia militar. Tradicionalmente, no contexto colonial, um dos pressupostos para a ocupação de cargos militares seria a limpeza de sangue, ou seja, apenas homens brancos sem ascendência “infecta” (judeus, africanos e indígenas) poderiam assumir cargos militares de importância. Entretanto, na prática, homens negros, mestiços, forros e até escravos assumiram postos militares. Conforme destaca Francis Albert Cotta, a atribuição de entrar nos matos, em lugares intrincados e de difícil acesso acabou recaindo sobre os africanos e seus descendentes, cativos ou libertos, que passaram a integrar os terços de pretos e pardos libertos, as ordenanças de pé, os corpos de pedestres e os corpos de homens-do-mato e de assalto. Eles patrulhavam as estradas em busca de aquilombados, índios bravos, facinorosos e assaltantes que atacam as vilas e arraiais. Eram os mais aptos a identificar rastros e vestígios de passagem de pessoas2312. Outra análise empreendida ao requerimento refere-se as estratégias de negociação utilizadas pelos negros como forma de angariarem vantagens pelos serviços prestados: Pedem para que V. Mage haja por bem de sua real grandeza os mande aly regimentar no mesmo modo tratamento, honras que gozão os homens pretos de Pernambuco, Bahia e Sam Thome com companhias necessárias na villas e arraes para os velarem, socorrerem e investigarem rondando aquelas terras, cerras, estradas, campanhas, rios e matas para melhor conclusão e serventia do real 2313 serviço .

Ainda sobre as possibilidades de negociação o requerimento solicita: E mais acrescentam e pedem por muitos dos suplicantes serem velhos e que sempre pagarão os quintos a V. Mage o lugar ou serventia chamada a dos foles das cazas ditas da real fundição em remuneração dos referidos préstimos e que no tempo da conquista descortinaram matos espessos e 2314 estradas e estraíram ouro de que pagarão com os libertos per sy os reaes devidos quintos .

Os relatos assinalados nos mostram que os negros inseridos no âmbito militar colonial podiam lançar mão de argumentos como, por exemplo, o tempo de serviço prestado a Coroa portuguesa, para solicitarem e alcançarem privilégios como o de terem as tropas de pretos libertos das Minas 2311

Requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo ao rei a concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. Lisboa, 07/01/A1756. Arquivo Histórico Ultramarino/MG/cx.: 69; doc.: 5. 2312 COTTA, Francis A. Negros e mestiços nas milícias da América portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010. p. 65. 2313 Arquivo Histórico Ultramarino/MG/cx.: 69; doc.: 5. 2314 Arquivo Histórico Ultramarino/MG/cx.: 69; doc.: 5

713 ISSN 2358-4912 formalizadas e tratadas com as mesmas honras de que gozavam outras companhias de homens de cor da América portuguesa e de outras partes do império ultramarino. Além disso, pedem a serventia de uma função (trabalhar com foles2315) como recompensa por terem ajudado na conquista atuando nos matos e pagando os quintos. Desse modo, a documentação analisada tem nos possibilitado rastrear algumas brechas que o sistema militar proporcionou aos negros no que se refere aos mecanismos de ascensão e mobilidade social. Mesmo a pesquisa se encontrando em desenvolvimento, podemos sugerir que essas brechas ou possibilidades de ascensão dadas aos negros pelo sistema militar foram ainda mais alargadas para a comarca de Serro frio devido sua importância econômica e a marcante instabilidade social da região causada pelo grande afluxo populacional que para aí se dirigiu durante boa parte do século XVIII. Tal fato tornou imprescindível a constituição de um aparato militar para controle da ordem interna, do qual os homens negros foram peças fundamentais, conforme as investigações tem corroborado. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais microfilmada. COSTA, Ana Paula Pereira Costa. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação de Mestrado. COSTA, Ana Paula Pereira. Senhores e Potentados: negociações e reciprocidades na formação de “exércitos privados de escravos” em Minas Gerais no início do século XVIII. In: ECHEVERRI, Adriana Alzate, FLORENTINO, Manolo & VALENCIA, Carlos Eduardo (Orgs.). In: Impérios ibéricos em comarcas americanas: estudos regionais de história colonial brasileira e neogranadina. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. COSTA, Ana Paula Pereira Costa. Armar escravos em Minas colonial: potentados locais e suas práticas de reprodução social na primeira metade do século XVIII. Vila Rica, 1711-1750. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. Tese de Doutorado _____________. “Negros escravos, forros e livres na estrutura militar lusitana: um estudo sobre a atuação de milícias particulares de escravos e das tropas milicianas e de ordenanças de negros. Serro Frio, século XVIII”. Projeto de pesquisa apresentado ao programa institucional de iniciação científica e tecnológica – PIBIC/CNPq. Diamantina: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, 2013. COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010.

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O fole era um instrumento que podia ser alternadamente expandido e comprimido, primeiro enchendo-o de ar, através duma válvula, e depois expelindo o ar à força, através de um tubo de saída. Para dar aos fornos de fundição uma ventilação forçada, os foles eram mais eficientes do que o mero abano ou as antiquadas canas ocas e tubos soprados, também usados para o mesmo fim. A construção dos foles era simples: Um saco montado numa armação ou base era preso a um tubo que dava para o forno de fundição, sendo o tubo talvez de ferro, ou uma cana com ponta de argila refratária. Foles manuais eram úteis para pequenas forjas; mas, para os grandes fornos de fundição, de altas temperaturas, empregavam-se foles duplos movidos pelos pés, um debaixo de cada pé do operador, que os comprimia alternadamente, primeiro com um pé, depois com o outro, puxando cada vez uma corda para reencher o fole comprimido. Para fornecer uma constante correnteza de ar a essas grandes fornalhas, dois homens operavam dois pares de foles. Isso não chegava a ser um cargo oficial, devendo ser auxiliar do cargo de fundidor, normalmente era feito por negros. Cf.: SALGADO, Graça (Or.). Fiscais e meirinhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 380. D. Lourenço em carta escrita em Vila Rica no dia 11 de setembro de 1724, diz ao rei sobre a quantidade de oficiais que trabalham na Casa da Moeda, alegando-lhe não ser necessário, são eles: 4 escrivães, 2 juízes de balança, 4 abridores, 8 fundidores e o superintendente ainda queria mais dois, 1 ferreiro, 1 carpinteiro, 1 serralheiro, 1 cunhador, 1 mestre das fieiras, 1 fiel, um porteiro, um meirinho, um contínuo, 1 ensaiador, cinco homens das fieiras e cunhos, e negros para fole (grifo nosso). Apud: SOUZA, Débora Cazelato de. Institucionalização mineira: formação jurídica e administrativa das minas no início do setecentos. Anais do seminário internacional justiça, administração e luta social. Ouro Preto, UFOP, 2010. p. 6.

714 ISSN 2358-4912 ____________________. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado. FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Globo, 1989. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FURTADO, Júnia F. O livro da capa verde. São Paulo: Annablume, 1996. FURTADO, Júnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010. GUEDES, Roberto. “De ex-escravo a elite escravista: a trajetória de ascensão social do pardo alferes Joaquim Barbosa Neves (Porto Feliz, São Paulo, século XIX)”. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla e JUCA, Antônio Carlos (Orgs). “Conquistadores e Negociantes: História de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000. MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII – As capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a manutenção do Império Português no Centro-Sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de Doutorado. MOREIRA, Luiz Guilherme S.; LOUREIRO, Marcello José G. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976 [1862-68]. SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2001. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CARIDADE OU SOBREVIVÊNCIA? FORRAS CRIADORAS DE EXPOSTOS DA FREGUESIA MADRE DE DEUS DE PORTO ALEGRE (SÉC. XVIII-XIX) Jonathan Fachini da Silva2316 Introdução A exposição de crianças foi um fenômeno amplamente praticado e aceito durante o Antigo Regime. Essa prática assumiu tamanhas proporções que a Coroa portuguesa tomou medidas para a salvaguarda essas pequenas vidas. A principal, dessas medidas, foi potencializar as Rodas dos expostos, aglutinado às misericórdias, entretanto, na América portuguesa, no período colonial, essas instituições ficaram restritas à alguns centros de maior densidade demográfica. Essa prática da exposição ou enjeitamento se fez presente desde os primórdios da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre em 1772. Como a Roda dos Expostos é institucionalizada apenas no ano de 1838, a prática recorrente de exposição era o abandono domiciliar, ou seja, o pequenino ser era deixado nas portas dos fogos. A Câmara Municipal foi, em última instância, a responsável pela administração da criação dessas crianças2317. Assim, foi estipulado salários para as famílias que se propusessem criar esses expostos. O procedimento seguia essas diretrizes: aquele que recebeu uma criança exposta na porta de seu fogo deveria primeiramente batizá-la e após levar ao Senado da Câmara para que possa receber seu pecúlio. Nem todos que recebiam um exposto assumiam a criação do pequenino. Nesses casos, o exposto era entregue Câmara (geralmente para o procurador) que “dava a criar” para outra família. Os salários pagos as “famílias criadeiras” de expostos variavam de acordo com a idade da criança: até os três anos de idade, o valor pago era de 3$200 réis por mês; dos três aos sete anos, o valor cairia pela metade, passando para 1$600 réis por mês. A esses valores acrescentava-se ainda o pagamento anual de 3$200 réis pelo vestuário da criança. Dado esse contexto, o foco dessa análise é traçar o perfil social dos fogos receptores de expostos, assim perceber quem eram essas “famílias criadeiras”. Interessam-nos saber, quais eram os “lares referência” para o enjeitamento dessas crianças. E quem recorria ao pecúlio camarário? Quais os grupos sociais que se dispunham a criar essas crianças em troca de salários? Quais eram as motivações: ocorriam em troca de prestigio social (na forma de caridade pública) ou para o próprio sustento da família? Todas essas questões nortearam nossa reflexão ao longo do texto. Muitas mulheres e mesmo homens egressos da escravidão receberam uma criança exposta em sua porta, ou receberam a criança das mãos do Procurados da Câmara para que dessem conta da criação, em troca de salários. O fato das crianças serem deixadas nessas portas podem indicar que essas mulheres forras se comprometiam com a criação do rebento, assumindo um importante papel dessas mulheres forras na criação dos expostos, em contrapartida obtinham uma fonte de renda para o sustento ou manutenção do lar. Servirão de base para esse trabalho, os registros paroquias (batismo, casamento, óbito) e outras fontes eclesiásticas, como os Róis de Confessados, bem como os termos de vereança da Câmara de Porto Alegre. Através do cruzamento nominativo as informações contidas nessa documentação, foi possível perceber que haviam “lares referências” para a exposição de crianças entre 1772 (criação da freguesia) até 1810 (quando torna-se oficialmente Vila). 2316

Mestrando CNPq – UNISINOS. Email: [email protected] Como nos apresenta Maria Luiza Marcílio (2012, p.14-37) desde as Ordenações Manuelinas (1521), determinou-se que as Câmaras Municipais seriam, em última instância, as responsáveis pela proteção e criação de seus próprios expostos. Quando nem os pais, nem parentes pudessem responsabilizar-se pela criança, a comunidade deveria fazê-lo, mandando-as para hospitais ou casas de enjeitados. Na falta destes, as crianças deveriam ser criadas sob a supervisão municipal e através de fundos dos seus conselhos. Estes tinham autorização para criarem um imposto especial – a finta dos expostos – para arcar com esse encargo. Esta lei passou para as Ordenações Filipinas. 2317

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ISSN 2358-4912 A exposição na Freguesia Madre de Deus A Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre estava ligada, nos primórdios de sua fundação, aos princípios da expansão portuguesa nos domínios do extremo sul da América. As terras meridionais constituíam uma importante via de acesso ao Rio da Prata e para assegurar a posse desse território, a coroa dá inicio ao processo de ocupação. Antes mesmo de fundada a freguesia, em 1772, a área foi um dos pontos onde se fixaram casais açorianos destinados a ocupar as terras devolutas cedidas pelo governo. Através da política do uti-possidetis2318, Portugal centrou seus esforços ao povoamento da região central do continente na segunda metade do século XVIII. Neste período suas terras pertenciam a freguesia de Nossa Senhora de Conceição de Viamão2319. Nesse território fixou-se uma população composta por indivíduos que desembarcavam da metrópole e/ou de outras regiões da colônia que, por sua vez, dividia o espaço com uma numerosa população escrava e indígena. A invasão espanhola e consequente conquista da Vila de Rio Grande, em 1763, foi também como um fator importante para o aumento do contingente populacional nos chamados Campos de Viamão, já que esse fato fez com que a população se refugiasse naquelas paragens, trazendo consigo todo o aparato burocrático português, incluindo a própria Câmara, que permaneceu na Madre de Deus sem que, efetivamente, esta freguesia gozasse do estatuto de vila. Assim, muito rapidamente Porto Alegre ganhou um lugar de destaque devido, não apenas à sua localização geográfica, que garantia não apenas um fácil acesso fluvial ao seu porto, mas também defesas naturais contra qualquer tentativa de conquista por parte dos espanhóis. Por conta disso, tornou-se um lugar de passagem onde se registrava um fluxo intenso e constante de pessoas dos mais variados perfis, como negociantes, militares, marinheiros e, até mesmo, errantes. Isso fica claro, ao observarmos, por exemplo, alguns róis de confessados da Madre de Deus, como o relativo ao ano de 1779. Ao final da lista dos indivíduos de confissão e comunhão daquela paróquia, o pároco arrola mais de 60 nomes de indivíduos classificados genericamente como “andantes”. Tal grupo tinha uma composição variada, homens, mulheres, crianças, jovens e velhos, pessoas livres, forras e escravas, que por alguma razão estavam na freguesia no momento da elaboração do rol, mas não eram residentes habituais, e que fizeram sua desobriga pascal naquela igreja. O mesmo se repetiu nos róis seguintes, aparecendo não apenas o registro de “andantes”, mas também, em algumas oportunidades a relação de tropas militares que estavam estacionadas na localidade. Em 1782, foram mais de cinquenta os indivíduos arrolados e que pertenciam ao destacamento de Infantaria que se achava na freguesia. Como consequência desse processo de transformação a Madre de Deus apresentou um desenvolvimento urbano apreciável, acompanhado de um crescimento populacional acelerado. Segundo os censos da época reunidos na obra de Corcino Medeiros dos Santos (1984), a freguesia conta com contingente populacional de 1.512 habitantes em 1780, números que serão duplicados para 3.268 em 1798, passando para cerca de 6.000 em 1810. Devemos enfatizar, no entanto, que esse dinamismo não foi limitado apenas à Madre de Deus de Porto Alegre: de forma geral, o continente do Rio Grande de São Pedro apresentou também um quadro de crescimento acelerado. Helen Osório (2008) mostrou que em 1780 a população total do continente fora estimada em 18 mil pessoas; menos de vinte anos depois (em 1798), havia se verificado um aumento de populacional que se situou pouco abaixo de 20%, o que representa uma taxa anual de crescimento da ordem de 3.2%. A título de comparação, neste período, São Paulo, Bahia, Pernambuco e

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Conforme Miguel F. do Espírito Santo (2006), a diplomacia portuguesa elevava o princípio do uti possidetis para a implementação de uma política de apropriação territorial baseada da ideia imanente de que existe um direito natural à propriedade da terra e de que a terra pertence a quem a valoriza, através do cumprimento da obrigação natural do trabalho. No século XVIII o tratado de Madri (o mais importante até então) reconheceu esse princípio, assegurando aos portugueses os territórios que haviam ocupado no Continente do Rio Grande a partir da década de 1730. 2319 A freguesia de Viamão segundo o estudo de Fábio Kühn (2004) teve sua origem numa capela vinculada a Laguna, atual estado de Santa Catarina, fundada em 1741 por famílias que desciam de São Vicente (São Paulo) e Laguna. Antes mesmo da criação oficial da Freguesia de Rio Grande (a mais antiga da capitania). No ano de 1747, Viamão foi elevada a condição de freguesia, e em 1746 contava com 282 habitantes. Dez anos mais tarde, a população já havia aumentado muito, alcançando 1.116 almas. Tal crescimento está diretamente associado à entrada dos contingentes de açorianos que foram deslocados para a região sob os auspícios da coroa portuguesa.

717 ISSN 2358-4912 Alagoas cresceram a uma taxa máxima de crescimento de apenas 2.3%. Na virada para o século XIX, entre 1798-1814, o ritmo de crescimento foi ainda maior, atingindo uma marca de 111%. Sem dúvida, o fato de ser uma localidade portuária, onde o fluxo de pessoas é uma constante, propiciou uma intensa mobilidade populacional, principalmente masculina. E, talvez isso, possa ser um dos motivos que explique os índices de ilegitimidade e de exposição de crianças, que apresentem tendência de aumento no período analisado, conforme podemos perceber, através dos dados2320.

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Tabela 01 – Madre de Deus de Porto Alegre, Batismos de crianças legítimas, naturais e expostas, 1772-1822 Anos 1772-1780 1781-1790 1791-1800 1801-1810 1811-1822 Total

Batismos de Total de crianças legítimas batismos N.A % 376 343 91,2 763 658 86.2 1.351 1.099 81.3 1.761 1.352 76.8 3.547 2.548 71.8 7.798 6.000 77.0

Batismos de crianças naturais N.A % 25 6.6 77 10.1 200 14.8 292 16.6 730 20.6 1.324 17.0

Batismos de crianças expostas N.A % 8 2.2 28 3.7 52 3.9 117 6.6 269 7.6 474 6.0

Fonte: Livros de Batismo da população livre da paróquia Madre de Deus de Porto Alegre (NACAOB).

Pode-se perceber que crescimento da exposição segue o desenvolvimento da freguesia, se apenas 8 crianças (2,2%) foram enjeitadas nos primeiros anos, entre 1772 e 1780, 117 (6,6%) foram entre 18011810 e 269 (7.6%) entre 1811 e 1822. Note-se que há um crescimento considerável do fenômeno nas primeiras décadas do século XIX totalizando 474 (6%) crianças expostas até 1822. A explicação desse crescimento, também pode estar na vinda da Câmara para a freguesia em 1773, visto que é a instituição responsável pela administração do abandono. Entretanto se compararmos com outras áreas mais urbanizadas do Brasil, percebemos que esses índices são modestos. Para a vila de São Paulo, por exemplo, que constituía o núcleo urbano principal e capital administrativa da Capitania de mesmo nome, os índices de abandono chegaram aos patamares de 21.9% na segunda metade do século XIX. Na Freguesia da Sé, da cidade de São Paulo média foi de 15% entre 1741 e 1755, e de 18%, entre 1780 e 1796. Já em áreas mais pobres de economia de subsistência como Ubatuba, litoral paulista, a proporção de expostos era de somente 0.6%. Em Sorocaba, outra localidade paulista, houve anos em que absolutamente nenhuma criança exposta fora registrada, embora a média tenha sido 4.1% nos anos de 1679 e 1845. Esses percentuais parecem se repetir, nas freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro, Sé e São José, a proporção de expostos batizados entre a população geral foi de 21.3%. Já nas áreas rurais como Guaratiba, Irajá, Jacarepaguá e Inhaúma a proporção decresce para 3.3%. Na região de Minas Gerais, especificamente em São João del Rei, também uma área sem roda de expostos, a média percentual é de 8%. Na vila de Curitiba, também sem misericórdia de amparo aos enjeitados, entre os anos de 1751 e 1800 a média foi de 9,1%.2321 Estes dados registrados para São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná indicam que nas áreas urbanas a prática do abandono se intensificava, com índices muito maiores do que aqueles registrados em localidades rurais. Explicar esta situação tem sido um desafio para os historiadores. Como podemos ver, os dados relativos a exposição no extremo sul aproximam-se aos de áreas sem assistência formal. 2320

Tratando dos expostos, Maria Beatriz Nizza da Silva (1998) alega que um dos principais fatores por trás dessa prática está ligado a “honra feminina”. Nesse caso a exposição seria para encobrir um filho indesejado fruto das “fraquezas da carne” e manter o estatuto social da mulher. 2321 Sobre os percentuais de exposições apresentados, ver: Rento Pinto Venâncio & Maria Luiza Marcílio (1986); Carlos Almeida P. Bacellar (2001); Sheila de Castro Faria (1998); Silvia Maria J. Brügger (2007); André Luiz M. Cavazzani (2005).

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ISSN 2358-4912 O perfil social dos criadores de expostos A partir das informações contidas nos termos de vereança, referente aos sujeitos que receberam da Câmara, algum salário pela criação de expostos, podemos reconstituir uma primeira base do perfil social desses criadores. A questão é que nem sempre a fonte fez referência à alguma qualidade desses criadores, entretanto com o que o temos, podemos explorar esses dados sobre esses sujeitos no intento de conhecer a condição social dessas famílias criadeiras que receberam o pecúlio camarário. O primeiro dado que chama a atenção na tabela 2 é a variação da situação desses indivíduos e dessas famílias, apontando para a diversidade de criadores. Para as mulheres que apareciam nos termos de vereança com algum atributo identificado, em sua maioria eram viúvas e/ou pretas forras. Entre as viúvas, destacam-se, também, aquelas que foram identificadas com o atributo de Dona. Tabela 2 – Atributos dos criadores de expostos Mulheres Sem referência Preta forra Viúva Dona e viúva Dona Preta forra e viúva Parda forra Total

N.A 18 11 7 3 2 1 1 43

% 41,7 25,9 16,2 7 4,6 2,3 2,3 100%

Homens Sem referência Capitão Preto Forro Alferes Tenente Licenciado Reverendo Vigário Sargento mor Doutor Espanhol Ajudante Total

N.A 83 5 4 2 2 1 1 1 1 1 1 102

% 81,3 4,9 3,9 2 1,9 1 1 1 1 1 1 100

Fonte: AHPAMV, Livros de vereança (1773-1822).

Quanto aos homens que possuem algum atributo, o quadro se inverte um pouco: apesar da recorrência de pretos forros (3,9%), a maioria dos que criaram expostos tinham como atributo mais recorrente as patentes militares (capitão 4,9%, alferes 2% e tenente 1,9%), embora outros atributos de distinção social também tenham sido registrados (doutor, licenciado, reverendo), como demonstra o quadro. Aliás, temos diversas famílias abastadas criando expostos em Porto Alegre. Para Laura de Mello e Souza (2006, p. 54) essas famílias abastadas exerciam esse papel para legitimar sua posição social: “Para homens e mulheres melhor situados na sociedade, a criação dessas crianças poderia ter o objetivo de aumentar o número de agregados e apaniguados, visando antes conferir estima e status do que trazer vantagens pecuniárias”.

719 ISSN 2358-4912 O fato de muitas serem as viúvas que recebiam para criar expostos pode indicar uma tentativa de recompor uma situação de estabilidade, colocada em causa pela viuvez. Possivelmente, na ausência do marido estavam angariando renda extra para sustento do lar. Para as mulheres classificadas como forras, podemos tirar conclusões semelhantes: o salário poderia ser um auxílio apreciável no orçamento doméstico. Contudo, também poderia significar uma forma de melhorar sua situação social, afinal, vimos que o pagamento poderia até gerar um pecúlio a ser aplicado, digamos, na aquisição de mão de obra escrava. Vimos, anteriormente, que os valores somados ao longo dos anos de criação seriam suficientes para adquirir um escravo em plenas condições de trabalho e produtividade. Chama a atenção o fato de que, entre as mulheres que receberam para criar expostos, nada menos que 13 eram forras (30%). Já quanto às famílias composta por forros, a demanda por salários é maior, visto que criavam, geralmente, mais de um exposto, como é o exemplo do quadro abaixo. A criação de expostos, poderia se configurar como um “negócio” para esses indivíduos? Fica a questão em aberto, para ser aprofundada em outro momento; entretanto, o caso reproduzido abaixo nos faz crer que essa hipótese é plausível.

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Quadro 1 – Forros que criam expostos

CRIADOR (a)

SEXO

Cond. Jurídica

N.EXP.

Ana Luiza

F

Preta forra

2

Luiza Maria Ferreira da Conceição

F

Preta forra

2

Thomazia Cardoza

F

Preta forra

2

Christina Maria

F

Preta forra

4

Maria da Conceição

F

Preta forra, viúva

4

Francisco Vieira

M

Preto forro

3

Fonte: AHPAMV, Termos de Vereança 1773-1822.

De todo modo, fica evidente que os interesses pela criação desses recém-nascidos abandonados podem mudar, conforme o estatuto social da família que recebeu o exposto em sua porta ou recebeu a criança via Câmara. Mesmo que nem todos os representantes de famílias abastadas, os “homens bons”, tenham procurado o auxílio camarário, era raro um fogo desse nível não ter recebido uma criança na soleira de sua porta. Para completar nosso exercício, procuramos classificar os fogos chefiados por mulheres a partir dos róis de confessados e novas realidades nos são apresentadas como podemos ver na tabela 3. Apenas algumas considerações são importantes, antes da apreciação dos dados. Devido à corrosão e o estado precário da documentação, há muitas lacunas e limites na analise. De qualquer forma, é possível dizer que o número de fogos chefiados por mulheres fica na média de 20%. Tabela 3 – Mulheres chefes de fogos da Madre de Deus (1791,1793 e 1797) 1791 1793 1797 N.A % N.A % N.A % Dona /Viúva 13 20.3 16 16.6 35 33.6 Forra 17 26.5 8 8.4 Mulheres s/ qualitativo 34 53.2 72 75 69 66.4 TOTAL 64 100 96 100 104 100 Chefe do fogo

Fonte: AHCMPA, Rol de Confessados, Madre de Deus, 1791,1793 e 1797.

720 ISSN 2358-4912 Esses dados nos revelam que a predominância dos fogos, é de mulheres sem qualitativo algum (53.2% em 1791; 75% em 1793; 66.4% em 1797), entretanto, muitas dessas mulheres eram chefes de fogos que não tinham escravos, ou seja, podemos supor, que administravam lares menos favorecidos. Referente aos lares chefiados por mulheres que lhe foram atribuídas a qualidade de “Dona”, muitas dessas, viúvas, há um crescimento significativo de 1791(20.3%) a 1797 (33.6%). Pelos registros de batismos, até o ano de 1797, a predominância da exposição foi registrada por mulheres, donas viúvas e pretas forras. O mesmo mostra os termos de vereança, a grande quantidade desse contingente populacional recebendo os salários de criação. A questão inquietante que a tabela 3 nos revela, era quantidade de lares chefiados por mulheres egressas da escravidão no rol de 1791 (26.5%), e como esses fogos reduzem, para (8.4%) em 1793 e absolutamente nenhum fogo chefiado por forras no ano de 1797. A questão que fica sem resposta é saber se essas mulheres tornaram-se a casar ou amancebar-se (re)arranjando seu lar, ou se , de alguma forma foram deixadas de ser identificadas como “pretas” forras, recebendo outras denominações como “parda”. Renato Venâncio identificou através dos registros de batismos da freguesia de São José no Rio de Janeiro, a variedade de denominações das mulheres forras nos registros de batismos de seus respectivos filhos. O autor mostrou, que em determinadas atas, essas mães forras eram registradas como “crioulas”, e passavam, de repente a em outras atas a denominação de “parda”. Esse fato pode ser interpretado como uma mobilidade social dessas forras, que se distanciavam cada vez mais dos grilhões da escravidão e aproximavam-se de outro estatuto: o da cor “branca”. De qualquer forma, as mulheres forras, sejam solteiras, casadas ou viúvas cumprem os papéis de amas dos expostos em trocas de salários como em outras regiões da América Portuguesa. Outra situação envolvendo mulheres forras em relação aos expostos foi mostrada por Maria Beatriz Nizza da Silva (1998, p.172) para Vila Rica em Minas Gerais. Nessa região, uma constante nos fogos chefiados por mulheres de cor é a presença de expostos ou enjeitados, que na sua maioria eram brancos, com idades superiores à fase de criação (sete anos). Para a autora, essas forras não eram amas, mas sim pessoas que conservavam os expostos em suas casas numa fase em que já eram capazes de prestarem serviços, mesmo sendo de cor branca.

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Considerações finais Os interesses pela criação destes recém-nascidos enjeitados podem mudar conforme o estatuto social da família que recebeu o exposto em sua porta, ou recebeu a criança por via da Câmara. Mesmo que nem todos os representantes de famílias abastadas, os “homens bons” procuraram o auxilio camarário, era raro um fogo deste nível não ter recebido uma criança na soleira de sua porta. Entretanto para as famílias forras, muitas foram “dadas a criar” pelo Senado da Câmara, apesar de esses mesmos irem batizar a criança. Assim, independente do destino da criança, a municipalidade mostrava algum interesse em salvar essas vidas, contribuía como podia para essa administração cumprindo seu papel. Desde o início parece que os oficiais sabiam de sua responsabilidade legal. Pelo menos assim se mostrou nos princípios do processo de urbanização da Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Referências: BACELLAR, Carlos Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei, século XVIIIXIX). São Paulo: Annablume, 2007. CAVAZZANI, André Luiz M. Um estudo sobre a exposição e os expostos na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (Segunda metade do século XVIII). 2005. 161 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. ESPIRITO SANTO, Miguel Frederico do. Fundamentos da Incorporação do Rio Grande do Sul ao Brasil e ao Espaço Português. In: CAMARGO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloisa (orgs). Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006. v. 1, p. 23-42 (História geral do Rio Grande do Sul).

721 ISSN 2358-4912 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano cultural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. KÜHN, Fábio. Gente de fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJÓ, Luiz Alberto et al. (Orgs.). Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 47-74. MARCÍLIO, Maria Luiza. A criança abandonada na história de Portugal e do Brasil. In: VENÂNCIO, Renato Pinto (Org.). De Portugal ao Brasil: uma história do abandono de crianças, séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2010. p.13-38. MARCÍLIO, Maria Luiza; VENÂNCIO, Renato Pinto. Crianças abandonadas e primitivas formas da sua proteção, séculos XVIII e XIX. In: VII ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: ABEP/CNPq, 1990. v. 1. p. 321-338. OSÓRIO, Helen. Expansão Territorial e população: a capitania do Rio Grande no primeiro quartel do século XIX. In: SCOTT, Ana Silvia Volpi; FLECK, Eliane Critina Deckmann. (Orgs.). A Corte no Brasil: População e Sociedade no Brasil e em Portugal no início do século XIX. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2008. p. 235-252. SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e Sociedade do Rio Grande do Sul: Século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1984. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito. Belo Horizonte: Ed. UFMG, (2ª Reimpressão), 2006.

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AS CIDADES HISTÓRICAS E O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO NO BRASIL COLONIAL: QUESTÕES E EMBATES José Antônio de Sousa* Introdução O presente artigo integra-se o Simpósio Temático: “Arquitetar o discurso: artes, literatura e arquitetura nos espaços coloniais”, coordenado pelos professores Roberta Guimarães Franco/UFL e João Henrique dos Santos/UFRJ, no 5° Encontro Internacional de História Colonial. O objeto de análise é o embate ideológico na academia brasileira, com as questões relacionadas ao tema do planejamento urbano na colônia e as correntes do urbanismo latino-americano. Tais reflexões partem aqui do ponto de vista da reflexão que alguns autores empreendem em suas análises sobre nossos núcleos urbanos como áreas centrais, quadras, praças, largos e poligonais, muitos ainda preservados, o que em parte permite os especialistas analisarem aspectos morfológicos, do ponto de vista de modelos de urbanização de Portugal, e os padrões hispânicos. A análise do urbanismo também leva em consideração, mas não de maneira exclusiva o tema da história da arquitetura, nas políticas de planejamento urbano. Os contrapontos existentes nesses debates recaem sobre os paradigmas duais como planejamento urbano, espontaneidade, regularidade ou irregularidade e abrem diferentes margens de interpretação. A ideia de uniformização de nossos núcleos atrelada a um único modelo teórico do urbanismo barroco seria um desses conflitos, a ser contestado como redutível, sobretudo pelos que observam a cidade como arte. Crítica às explicações generalizantes sobre localização, dispersão e caracterização dos núcleos. Nossas vilas e cidades ditas especiais foram erigidas na costa, motivadas por questões políticas, econômicas e de defesa, de modo paulatino ocorrerá à escolha e criação de núcleos regionais no sertão, como polos estratégicos de economia colonial, e quando da saturação dos terrenos costeiros [1]. Como analisar as posturas lusas nessas diferentes espacialidades e realidades? É necessário especificações, relativismo e reconhecimento da diversidade na estrutura socioeconômica da colônia em suas vilas e cidades. O objetivo deste artigo é extrair dos debates de alguns especialistas, uma síntese de algumas dessas considerações, representando assim um fragmento de ideias, ao conjunto de autores presentes no campo da História Urbana [2]. Justifica-se em acompanhar o movimento acadêmico entorno da discussão sobre o processo de urbanização na era colonial. No que concerne à metodologia, a análise centra-se em revisões bibliográficas, documentos fotográficos, cartográficos e algumas experiências in loco em práticas de campo e visitas as cidades históricas [3]. Como resultado busca-se a compreensão das sínteses dos discursos dos autores. O processo de urbanização no Brasil Colônia: questões e embates As cidades históricas foram alvo de planejamento urbano na era colonial? A partir dessa problemática abre-se um enorme campo de discussão que em parte pode ser trilhado com base em questões como planejamento, espontaneidade, regularidade e irregularidade ao fenômeno do urbanismo. Segundo Roberta Max Delson em: “Novas Vilas para o Brasil Colônia” é importante fazermos distinções sobre a realidade do planejamento anterior ou subsequente à fundação das vilas. De acordo com Goulart, é interessante o pensamento de Max Weber em um dos seus ensaios sociológicos “A Cidade” [4], sobre o fenômeno do urbanismo e os seus aspectos na constituição e origens de núcleos urbanos, conforme as citações: Densidade demográfica específica; profissões urbanas como comércio e manufatura; diversificação e uma economia urbana permanente; relações com o meio rural; força militar; relativa independência política administrativa; existência de uma camada urbana com produção, consumo e direitos próprios(MAX WEBE 1944, apud GOULART REIS, 1968, p. 21).

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ISSN 2358-4912 Consideramos a urbanização como um processo social. Seu desenvolvimento provoca o aparecimento e a transformação de núcleos, como consequência das interações humanas em que implica. Ocorre um processo de urbanização quando em uma sociedade existe uma divisão social do trabalho, em caráter permanente, de sorte que uma parcela ponderável da população deixa de se dedicar à produção de alimentos e passa a depender, para a sua subsistência, dos produtos do trabalho da outra parcela (MAX WEBE 1944, apud GOULART REIS, 1968, p. 21).

Muitos autores lançam-se sobre as bases da urbanização na América Latina, a analisar as legislações, modelos de urbanização, aplicações, fiscalização, sobretudo em Portugal e Espanha. O estudo de Paulo F. Santos “Formação de Cidades no Brasil Colonial” aponta que a legislação foi observada pelos espanhóis através de seus códigos, enquanto que os portugueses se limitavam nas chamadas “Ordenanças do reino” e focavam mais a arquitetura e menos a questão urbana na fundação. A postura de Paulo Santos é de relativizar, numa posição, um tanto cética, ele reconhece as limitações dos traçados das cidades brasileiras como sendo irregulares, “orgânico”, improvisados, na maioria dos núcleos, mas reconhece as Cartas Regias que procuravam doutrinar os problemas urbanísticos a exemplo de cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Luiz do Maranhão. Para ele, se por um lado os traçados das cidades espanholas são rígidos, regulares, como o xadrez, estes acabam sendo monótonos. (SANTOS, 1968: 38-39). Delson irá criticá-lo por fazer conclusões, como por exemplo, a de que os portugueses copiaram plantas espanholas à época do Tratado de Madri em 1750. Sérgio Buarque de Holanda “Raízes do Brasil” destaca-se por ser uma obra que nos ajuda a compreender os mecanismos de dominação da política colonizadora lusitana, comparando-as com os instrumentos de colonização utilizados por espanhóis, ao comparar acaba por imprimir sua marca cética, contestando e negando os referenciais de urbanização em nosso país, que segundo ele não obedeceu a uma legislação como dos espanhóis. Sua visão, considerada romântica marca a primeira geração de debates, defende a ideia de que as cidades no Brasil colônia não passam de “instrumento de dominação” sem planejamento, regularidade e pautada pelo crescimento desordenado. A cidade que os portugueses construíram na América não é um produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre este significativo abandono que exprime a palavra desleixo (Holanda, 1998:110).

Confirmando a ideia de Holanda, Robert Smith, brasilianista, grande estudioso do planejamento urbano e a arquitetura do período colonial, tendo exaustivamente feito pesquisas nos arquivos no Brasil e em Portugal em ”Documentos Bahianos”, “Arquitetura Colonial” postula que “os centros urbanos portugueses eram recriações de suas cidades medievais”, com pouca expressividade nos documentos de planos urbanísticos que atestam as posturas de planejamento, para ele a expressividade desses documentos está nas estruturas arquitetônicas. “os portugueses não mantinham regras, exceto a antiga, de defesa através da altura” (SMITH ROBERT, 1955, apud GOULART REIS, 1968, p. 71). Diz Mário Chicó em “A cidade real do renascimento e as cidades portuguesas da Índia” que “os modelos empregados por Portugal são baseados em modelos medievo- renascentistas, como plano xadrez geometrizado e adaptado as condições de defesa e topografia” (CHICÓ, MÁRIO, 1956, apud GOULART, 1968, p. 15). As suas ruas, ironicamente chamadas direitas, eram tortas e cheias de altibaixos, as suas praças de ordinário, irregulares... Desta sorte, em 1763, quando deixou de ser a capital do Brasil, era a Bahia (Salvador) uma cidade tão medieval quanto Lisboa na véspera das grandes reformas de Pombal. Nada inventaram os portugueses no planejamento de cidades em países novos. Ao contrário dos espanhóis, que eram instruídos por lei a executar um gradeado regular de ruas, que se entrecruzam em torno de uma praça central, os portugueses não mantinham regras, exceto a antiga de defesa através da altura (SMITH, 1956: 322 -323).

Nestor Goulart R. Filho em “Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil” nos apresenta um dos melhores trabalhos sobre a questão, sua tese sobre o funcionamento da colonização e urbanização no período colonial, defende a existência de uma “política urbanizadora e “rede urbana” das cidades

724 ISSN 2358-4912 especiais como Salvador, Rio de Janeiro, São Luiz do Maranhão, Belém, Recife, contrapondo Holanda e Smith (GOULART, 1968, p. 78-79). Para Reis, no momento de fundação dessas cidades especiais houve o emprego de aulas régias e formação de engenheiros militares e arquitetos oriundos da metrópole, incumbidos na construção de fortalezas, pontes e planos urbanísticos. Apresenta os nomes de Luiz Dias arquiteto contratado por Tomé de Sousa Rio de Janeiro, em Salvador, Francisco Frias de Mesquita engenheiro-mor do Brasil teria construído a Fortaleza dos Reis Magos, o Mosteiro de São Bento-RJ e o traçado de São Luiz do Maranhão, José Fernandes Pinto Alpoim no Rio de Janeiro e José Antônio Caldas na Bahia (GOULART, 1968, p. 68-69). Analisa-se também outras políticas urbanizadoras lusitanas em suas cidades como Lisboa e sua reconstrução, Vila Real, Porto, na Índia, detectando esquemas de regularidade. Reis insiste que havia preocupação com o planejamento desde os primeiros tempos da era colonial, observou que há de certa maneira regularidade, estratégia de centralização e organização administrativa com ação direta da metrópole, mesmo lenta e gradual, motivados em função das economias coloniais, açúcar, gado, comércio e população, pelos estímulos das doações de terrenos nas “cartas de sesmarias” observando que havia vilas e cidades com e sem jurisdição direta de Portugal, caindo assim na chamada dualidade assim como Delson. Os indícios dessa preocupação encontram-se nas posturas definidas pelos engenheiros militares como: clima, topografia, implantação, traçado, arruamento, alinhamento de edificações, praças retangulares, zoneamento e simetria nas cidades de Olinda, Salvador, Porto, Rio de Janeiro. Segundo Reis nas atas da Câmara municipal de Salvador, Smith cita três grupos de atas documentais do século XVII e XVIII dessas posturas nas questões urbanas. “No volume VI dos anos compreendidos entre 1689 e 1700 são feitas 19 referências a abertura, calçamento e alinhamento de ruas e duas referências a fontes” (SMITH, Robert, 1945, apud Goulart Reis, p.52). Thales de Azevedo quando analisa o “Povoamento da cidade do Salvador” atesta estas posturas, como por exemplo, escala de ruas e calçadas. “nenhuma pessoa abrisse alicerces em nenhum edifício sem licença da câmara (...) que nenhuma pessoa em cazas que faça, nenhum passadiço, nem varanda, nem sacadas, que passe detres palmos sob a rua” (AZEVEDO, THALES, 1955, apud GOULART REIS, 1968, p.56). Corroborando com Goulart, a historiadora brasilianista Roberta Marx Delson em: “Novas Vilas para o Brasil Colônia” destacou pelo modo que sua pesquisa contrapõe um grande número de autores, para responder “O mito das cidades brasileiras sem planificação” visão controversa acerca de nossa urbanização. Tece uma série de revisões e críticas à Hernique Mindlim em “Modern Architecture in Brazil”, ele diz que nosso crescimento urbano foi desordenado e se deu em torno de igrejas e lugares altos. Visão errônea a de Richard M. Morse em “Formação Histórica de São Paulo: De Comunidade a Metrópole” dizendo nossas cidades não tem configuração e são extravagantes (RICHARD, MORSE, 1970, apud Delson, 1997, p.3). Também se preocupa com as afirmações de Holanda e Smith sobre a ideia da espontaneidade, ausência de rigor, considerando obscura, retrograda a ideia de meras recriações de cidades medievais. Delson também identifica nestes debates, posições intermediárias, de que os centros brasileiros funcionam administrativamente, como ajustamento de plantas, utilização de “códigos de urbanização no Brasil setecentista”. Segundo Delson, Luís Silveira no ensaio: “Iconografia das Cidades Portuguesas de Ultramar” diz: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A relutância dos planejadores portugueses de além-mar em adotarem um sistema geométrico regular, contrariamente ao que Robert Smith escreveu,... não me parece um arcaísmo, mas resultou de uma longa experiência metódica na criação sistemática de cidades.... Eu diria... que a cidade estruturada portuguesa, com a sua característica medieval, tende para a cidade perfeita, aquela em que cada elemento exerce uma função natural, e é superior às cidades com planta em xadrez..., que muitas vezes denotam uma clara falta de compreensão do conceito da cidade como um organismo vivo. (SILVEIRA, 1956, apud, DELSON, 1997, p.6)

Segundo Delson é preciso relativizar entre os critérios de funcionalidade, hierarquias e variedades dos núcleos, para além da questão arquitetônica. Trabalhos ambiciosos “Como nasceram as cidades no Brasil” do antigo político Plínio Salgado é um tipo de explicação esquemática e não considera a diversidade, e tende a nos levar a uniformização. Outros trabalhos se concentram em análises duais e céticas na relação entre sociedade agrária, urbana, semiurbana. Para ela o estudo de Reis foi decisivo

725 ISSN 2358-4912 ao concentrar na leitura do urbanismo no período colonial, sobre a existência da legislação lusa e revendo visões contrárias, porém, ainda não explica se as posturas adotadas por Portugal são gerais a toda a colônia ou se são casos isolados à costa, analisadas até 1720. Delson faz a seguinte indagação: “As vilas e arraiais situados fora do alcance geopolítico dos centros de governo primários, que constituem o enfoque principal da obra de Reis Filho, recebiam igual atenção da Coroa portuguesa?” Delson também parte do exame dos aspectos administrativos do Brasil a partir do século XVII, focando as câmaras municipais nas vilas do interior do Brasil e cidades maiores em diferentes regiões, partindo de problematizações sobre as reais condições de ocupação do interior busca por ouro, distribuição de terras, motivos que levaram a construção de vilas, a reformas de Pombal, tentando resolver as dúvidas sobre se o interior teve um crescimento independente e descontrolado ou se foi alvo de planejamento. Cita e relativiza a construção de uma cidade em pleno sertão do Piauí conhecida como Mocha em 1716, fruto de planejamento, segundo ela grande numero de cidades a partir do século XVIII foram influenciadas por algum protótipo barroco de modelo urbano europeu, traçados em xadrez como regularidade, beleza e progresso, afirmando que os portugueses planejaram e construíram vilas no sertão. Em Portugal os trabalhos de Manuel C. Teixeira como: “A Praça na cidade portuguesa”, “A Construção da Cidade Brasileira” e “Os modelos Urbanos Brasileiros das Cidades Portuguesas” traz muitos subsídios às pesquisas sobre o paradigma de urbanização das cidades coloniais, trabalhando com os termos “prática urbanizadora” “afirmação de regularidade e ortogonalidade” analisa as praças nas cidades portuguesas e suas colônias como indícios de planejamento urbano e será um defensor da ideia de que houve regras e padrões urbanísticos em Portugal, exemplificando “os princípios urbanísticos da cidade romana de colonização, baseado na regularidade, na racionalidade e na ordem (...) foram reestruturados durante o período de ocupação romana”. Segundo Teixeira dois componentes devem ser destacados: o erudito (valores culturais, políticos, sociais religiosos) e vernáculo (relações, soluções e condições físicas e ambientais). Para ele há uma reciprocidade desses componentes no Brasil desde o século XVI com a construção de Salvador da Bahia, cujo traçado é dotado de regularidade, lógica, como o papel articulador das praças, quarteirões e loteamentos (TEIXEIRA, 2011, p.151-153). Teixeira cita experiências com práticas urbanizadoras no plano de reconstrução da baixa de Lisboa, Vila Real de Santo Antônio, Funchal na Ilha da Madeira, para ele as cidades portuguesas são diferentes entre si, produto de um contexto, porém providas de continuidade na tradição mediterrânea como a defesa militar, tais práticas de urbanização e componentes atrela-se a ideia “singularidade do urbanismo português” onde “arquitetos e engenheiros procuravam adaptar os seus planos ao sítio tornando menos rigorosos” conciliando esses dois componentes da “síntese do urbanismo português” (TEIXEIRA, 2011, p.153). Teixeira reconhece diferentes realidades ao dizer que o “processo urbanização teve várias expressões” (TEIXEIRA, 2011, p.157) e fases de desenvolvimento as quais devem ser relativizadas, pois há diferentes realidades ao longo de séculos. Corrobora com Delson, Reis e Silveira quanto a erudição dos portugueses no trato com a urbanização. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Os traçados urbanos setecentistas das cidades construídas em Portugal e no Brasil são expressões de um conhecimento teórico e prático caldeado e sintetizado ao longo de séculos em múltiplas situações, em que se observem os elos de continuidade e as influências cruzadas que lhes deram origem (TEIXEIRA, 2011, p.168).

Figura 01 e 02 – Plantas e desenhos de São Sebastião do Rio de Janeiro e Salvador da Bahia, Teixeira, 2011,

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ISSN 2358-4912 Segundo Teixeira, a planta da cidade do Rio de Janeiro representa a ocupação das várzeas dos morros do Castelo e São Bento, onde se observa uma malha sensivelmente ortogonal, cujo traçado representa um esforço de adaptação ao terreno. No Caso de Salvador da Bahia vê-se a síntese do urbanismo português, no século XVII entre um traçado regular com quarteirões retangulares e um traçado adaptado ao terreno. Considerações finais Tarefa complexa responder a pergunta proposta. Para muitos ela ainda não foi respondida, para outros seria uma tarefa vão, pois o pesquisador não escapará em cair em dualismos, a exemplo de Holanda, Smith, que acabam por centrar unicamente na ideia de planejamento e desconsideram muitos outros fatores de constituição de um núcleo urbano. O trabalho de Delson corrobora com Reis, trabalho interessante que contribui para afirmação da ideia de planejamento, porém necessita de mais definições sobre a ocupação de nosso interior em detrimento da costa. Na atualidade destacamos os trabalhos de Teixeira, por considerar uma nova interpretação mergulhando nas inter-relações Brasil e Portugal, que ao invés de preocupar-se com existência ou ausência planejamento expõe de modo interessante o relativismo entre esses polos de investigação, cada qual com seus significados e contribuições. Podemos pensar que um caminho confortável seria reconhecer que responder com exatidão à questão, se as cidades históricas foram alvo de planejamento urbano na era colonial talvez não fosse o foco, uma preocupação do pesquisador, fugindo dessa maneira de eventuais esquemas gerais e redutíveis, como que esgotar as reflexões, as quais devem ser trilhadas por diferentes focos, ao conjunto de aspectos relacionados a um ambiente humano em sua diversidade e contexto, procurando especificar, relativizar em suas particularidades aos fatores de sua preexistência natural e intervenções do homem no espaço urbano, a exemplo de pesquisadores e estudos de casos locais como: Nestor Goulart, Paulo Ormindo Azevedo, Maria Helena Flexor, Maria Betânia Uchoa Brendle, Murilo Marx, Luís Rhoden. Uma espacialidade é um produto de múltiplas transformações, naturais e humanas as quais nos remetem a significados, sejam pelas intempéries, práticas socioculturais e artísticas, as quais dificultam sua prescrição, mesmo quando da existência de um desenho urbano. Não se pode afirmar que durante época da colonização não houve uma política urbanizadora, seria o mesmo que dizer que a coroa lusitana não possuía leis, regras. Por outro lado devemos considerar as limitações de Portugal em administrar o vasto território brasileiro. Também não podemos discriminar, ajuizar valores ao urbanismo espanhol ou português, mas sim reconhecer suas alteridades e a sua contribuição geral ao urbanismo latino-americano. Não se pode negar a existência de vilas e cidades planejadas no sertão e sua coexistência com as chamadas “cidades especiais” da costa, e os seus papéis. O conceito de urbanismo como um processo, prática social, cultural dispersa na ideia de evolução e continuidade histórica deverá ser utilizado como parâmetro para uma leitura mais ampla sobre a formação de vilas e cidades aos aspectos do planejamento. Ao contemplar esse tema esperamos contribuir para reflexões de informações sobre o mesmo, pois necessita de mais pesquisas e discussões, dentro de perspectivas de diferentes prismas, seja da geografia, arquitetura, urbanismo, história e outras ciências para melhor elucidar a história de nossas cidades. Notas [1] REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Fundação para a Pesquisa Ambiental, 2000. [2] Ver nas referências Beatriz P. Siqueira Bueno, o balanço onde observa cerca de trinta trabalhos sobre urbanismo entre dissertações e teses. [3] Projeto: Exposição fotográfica passado e presente – Banco do Nordeste / Projeto: Inventário Cultural do Acervo Arquitetônico do Município de Macaúbas – IPAC/BA. [5] FILHO, Nestor Goulart Reis. Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1968.

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ISSN 2358-4912 Referências BUENO, Beatriz P. Siqueira. A Última Década, Novos Rumos. Balanço da Historiografia Sobre Urbanização no Brasil-Colônia. A contribuição dos Estudos Regionais Recentes. In: A Construção da cidade portuguesa na América. (0rg.) PESSOTI, Luciene, RIBEIRO Nelson Porto. Rio de Janeiro: POD, 2011. p.31-40 DELSON, Roberta Marx. Novas vilas para o Brasil-Colônia. Trad. Fernando de Vasconcelos Pinto. Brasília: Edições Alva, 1997. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Cia. das Letras,1998 REIS, Nestor Goulart. Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil – 1500-1720... SANTOS, Paulo F. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Coimbra, 1968. SMITH, Robert. Colonial towns of Spanish and Portuguese America. Journal of the Society of Architectural Historians, Philadelphia,1956. TEXEIRA, Manuel C. Os modelos Urbanos Brasileiros das Cidades Portuguesas. In: A Construção da cidade portuguesa na América. (0rg.) PESSOTI, Luciene, RIBEIRO Nelson Porto. Rio de Janeiro: POD, 2011.p.151-169.

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“URBANIZAR É COMO CIVILIZAR”: ELITES COLONIAIS, GOVERNANÇA E POLÍTICA INDÍGENA NA AMÉRICA PORTUGUESA (PERNAMBUCO E PARAÍBA, SÉCULO XVIII) José Inaldo Chaves Jr.* Em seu Elucidário, de 1798, Joaquim de Santa Rosa de Viterbo afirmou que o uso corrente da palavra fronteira designava, “desde os princípios do reino” de Portugal, uma “expedição militar, guerra ou campanha que se fazia no limite, raia ou fronteira de algum reino, ou província beligerante e comarcã [...]”.2322 Na América Portuguesa, a Colônia de Sacramento, o Mato Grosso e a Amazônia foram os casos clássicos envolvendo litígios diplomáticos e bélicos pela demarcação das fronteiras imperiais desde o século XVII. Segundo Renata Malcher de Araújo, nessas regiões a própria ideia de “território português” forjou-se numa situação de confronto com os domínios espanhóis.2323 Por outro lado, uma leitura historiográfica tradicional, cujas raízes remontam à obra de Varnhagen, postulou que a colonização do atual Nordeste oriental consolidou-se ainda nos Seiscentos, malgrado as investidas estrangeiras e a Guerra dos Bárbaros, conflitos relativamente sanados ainda nesta centúria, confirmando a integralização daquele território no século XVIII. No entanto, se a fronteira enquanto limite ou raia entre os reinos, em uma atribuição próxima àquela dada por Viterbo, habitou algumas das definições mais usuais do termo, ao menos entre diplomatas e letrados da época moderna, é notório que este não foi o único sentido possível. No Novo Mundo, em especial naquele de colonização portuguesa, as representações da fronteira se multiplicaram, absorvendo o imaginário medieval do Antigo Regime e recriando-o em cenários tropicais nos quais os nativos eram vistos não como “donos do lugar”, mas como partes integrantes de uma paisagem a ser conquistada e, a rigor, civilizada. Isto ocorreu mesmo nas regiões da chamada “fronteira estável”, pois de colonização antiga e onde a presença portuguesa não era mais contestada no campo diplomático, como no Nordeste colonial de Setecentos. Por aqui consideraremos a noção de fronteira enquanto espaço ainda não submetido à ordem colonial, mas também como território movediço, indeciso e, especialmente, como palco privilegiado de trocas culturais e materiais e intercâmbios simbólicos e políticos. De acordo o reconhecido brasilianista A. J. Russel-Wood, ao se referir às regiões de fronteira na América Portuguesa, é mais adequado empregar o termo sertão e é esse o mote que utilizaremos para equacionar um impasse quanto ao estudo das fronteiras étnicas e culturais numa região virtualmente considerada “portuguesa”.2324 Para o diplomata e valido de d. João V, Alexandre de Gusmão, o território era “uma extensão de terras e de campos onde se exerce jurisdição”;2325 sua antinomia era o “desertão”, entre o domínio formal e o informal, entre a norma e a prática, “uma zona de ninguém que constitui uma marca, pela negativa, de fronteira, sem que a fronteira corresponda a esta linha precisa”, como propôs António Manuel Hespanha.2326 Esta breve comunicação tem por objetivo precípuo refletir sobre dois sentidos possíveis da fronteira colonial nos sertões da América portuguesa, especialmente nas territorialidades que compreenderam as antigas capitanias do Norte do Estado do Brasil. Em primeiro plano, é a fronteira étnica que nos *

Professor Assistente de História do Brasil da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Graduado em História pela UFPB (2010), Mestre (2013) e Doutorando em História pela UFF. Bolsista de doutorado do CNPq. 2322 VITERBO, Joaquim de Santa Rosa. Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram. 2ª ed. Lisboa: Editor A. J. Fernandes Lopes, 1865, vol. I, p. 341. 2323 ARAÚJO, Renata Malcher. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII. Discurso e método. Tese (Doutorado em História da Arte), Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2000, p. 45. 2324 RUSSEL-WOOD, A. J. apud GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, p. 45. 2325 Apud ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização do Mato Grosso no século XVIII... p. 47. 2326 HESPANHA, António Manuel. Debate. In.: ____________. A União Ibérica e o Mundo Atlântico. Lisboa: Colibri, 1997, p. 119.

729 ISSN 2358-4912 interessará, isto é, as interações sociais, os contatos pluriétnicos e a contestação de uma história vitimizadora, seguindo um caminho que consolida-se no campo historiográfico luso-brasileiro, sobretudo, em consonância com uma new indian history.2327 O segundo sentido reserva-se ao objetivo de compreender a fronteira política na América portuguesa que, seguindo a máxima medieval, fez do território “o espaço politicamente equipado”, isto é, urbanizado. A cidade e a vila assumiram, assim, o papel de símbolos máximos de uma cultura urbanística portuguesa. Neste caso, o sertão, de clima e vegetação hostis e habitado por tapuios bravos, povoado de lendas, foi lido como espaço resistente, no qual nem mesmo os operosos servidores de Sua Majestade venceram seu poder desagregador e avesso ao urbano – portanto, bárbaro. Enquanto fronteira interna, os sertões precisavam ser destruídos para que a colonização desse certo. Não havia condições para uma convivência e a abolição do sertão era o princípio da ação urbanizadora portuguesa que, via de regra, era uma ação civilizatória.2328 Seguindo uma indicação de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, nossa reflexão “chama a atenção para as margens, os limites, as fronteiras, onde vidas sem fama, anônimas se manifestam, brilham quando se batem com o poder, trocando com ele palavras breves e estridentes, para depois retornarem as brumas da existência”.2329 São vidas de fronteira que nos ajudam a pensar nas fronteiras da vida, “em como historicamente se traçam as bordas de nossa identidade”. Os índios Panati, aliados dos portugueses no sertão do Piancó desde o século XVII, são estas “vidas de fronteira”, trajetórias que subvertem o sentido funcionalista do grupo social, fechado e harmônico. Suas trajetórias percorreram os sertões da Paraíba colonial, encurtando as distâncias espaciais e culturais com o litoral dito “civilizado” porque urbano, sofrendo igualmente as contingências materiais dos lugares e lutando diuturnamente em processos de ressignificação étnica e territorialização.2330 Este percurso assinalou a progressiva destruição do aldeamento missionário, de um modus vivendi de transição, uma espécie de “estado do meio” típico da categoria do “índio colonial” e que, até meados do Setecentos, foi visto como elemento crucial do processo de ocupação portuguesa do território. Nesta época, contudo, a eficácia do aldeamento como forma civilizatória passou a ser abertamente questionada, ao passo que era contestada a autoridade missionária, vista como um dos muitos sinais de evasão do poder do rei nos sertões.2331 No bojo das reformas territoriais do reinado de d. José I, a criação das chamadas “vilas de índios” conduziu à definição de novas estratégias das políticas indígena e indigenista, já que, como nos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A esse respeito, cf., sobretudo, BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005; MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas. Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 2328 Neste sentido, ao tratar da urbanização na Amazônia e no Mato Grosso em meados do século XVIII, Araújo destaca que “[...] as cidades representavam elementos discursivos enfáticos da relação de domínio sobre o território que se pretendia estabelecer ou, antes, reivindicar” (ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização da Amazônia e do Mato Grosso no século XVIII. Povoações civis, decorosas e úteis para o bem comum da coroa e dos povos. In.: Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 20, nº 1, jan-jun de 2012, p. 42. 2329 ALBURQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nos destinos de Fronteira: a invenção do Nordeste. Raízes, Revista de Ciências Sociais e Econômicas, Campina Grande, vol. 12, p. 139-146. 2330 Segundo João Pacheco de Oliveira, a noção de territoritorialização enquanto um processo de reorganização social e de reordenamento das práticas políticas pressupõe, em primeiro lugar, a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; implica também a constituição de mecanismos políticos especializados e a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais e, por fim, a reelaboração da cultura e da relação com o passado (OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana (UFRJ), Rio de Janeiro, vol. 4, nº 1, p. 47-77, 1998). 2331 ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização da Amazônia e do Mato Grosso no século XVIII. Povoações civis, decorosas e úteis para o bem comum da coroa e dos povos. In.: Anais do Museu Paulista... p. 45.

730 ISSN 2358-4912 advertiu Renata Malcher de Araújo, “o filho da cidade na colônia é, por princípio, mestiço”.2332 Sigamos para uma primeira cena dessa fronteira. Como um tipo de Facundo dos sertões da Paraíba colonial, Teodósio Alvarez arrastou o capitão dos índios Panati pelas ruas do pequeno povoado no sertão do Piancó, dando-lhe muitas pancadas e bofetadas e exigindo o encarceramento do dito índio, executado pelo visitador, um religioso do Carmo transeunte pela região naqueles dias de terror. Preso, o Principal dos Panati fora vítima de mais um ataque de fúria de um colono, desferido dessa vez por Manuel da Silva, que lhe atingiu com inúmeras cutiladas deixando-o pela hora da morte. Nenhum dos que presenciaram esta malevolência, dada no caminho da rua até o cárcere de Piancó, ocupou-se de socorrer o dito índio, que morreu “sem lhe curarem as mortais feridas”.2333 Esta queixa fizeram os índios Panati em maio de 1755, dois anos após o sinistro evento. Até a data da suplica por justiça, endereçada ao próprio rei, nenhum dos acusados havia sido punido, estando sem castigo a referida morte. Pelas palavras de um tal Vicente Ferreira Coelho, os iletrados Panati representaram à Sua Majestade – “que sendo os mais leais vassalos que nunca em tempo algu deixarã de merecer o mesmo nome, nem tomarão vingança contra os Brancos [...]” – e deram sua versão das tensões que assolaram as ribeiras do sertão do Piancó em meados do século XVIII e que resultaram no derramamento de sangue. As hostilidades contra os aldeados Panati tiveram seu ápice quando os moradores do sertão do Piancó, conduzidos pelo capitão-mor José Gomes de Sá, com poderes e astúcias despejaram os índios de suas terras “com o pertexto de que comião e furtavão lhes os gados”.2334 Sem que lhes fosse apresentado um lugar adequado para pouso, os índios vagaram pelos sertões, enxotados de um canto a outro. Tentaram estabelecer-se nas ribeiras das Piranhas, mas de lá também foram expulsos pelos moradores. Recorrendo ao governador-general de Pernambuco, receberam a autorização para retornarem à antiga aldeia, no Piancó, contanto que “o Cappitam mor dos Índios fizece prender qualquer que cometesse furto dos gados e o emtregace ao Cappitam Mor para o remeter para Pernambuco [...]”.2335 Assim foi feito e os índios regressaram, o que não agradou nenhum um pouco a população, que logo tomou-se de grande ódio em virtude do capitão-mor indígena ter alcançado a restituição da sua aldeia, “a qual querião os ditos moradores para fazendas de gados”.2336 Em meados de Setecentos, os conflitos agrários envolvendo potentados locais sertanejos e indígenas testavam os limites da governança portuguesa, que corria sérios riscos de perder suas rédeas e ver erodir sua soberania em um ambiente politicamente instável onde as normas do reino pouco faziam sentido. Altos oficiais da Coroa creditavam aos próprios potentados locais os efeitos deletérios daquela fronteira onde a barbárie parecia prevalecer. Se nos sertões a fronteira era uma linha civilizatória imprecisa, Domingos Jorge Velho confirma está hipótese. Sertanista, mameluco e paulista, famoso por debelar Palmares, era um daqueles “homens do caminho” dos quais falou Sergio Buarque de Holanda, entendido das iguarias de bugre, podendo até confundir-se com este de tão aproximados que viviam.2337 Quando o Velho pousou em Olinda, em finais de Seiscentos, conseguiu escandalizar o bispo, que revelou ao rei de Portugal: “aqui esteve um selvagem que nem nossa língua fala”; o sertanista carregava consigo um língua e era acompanhado de sete concubinas.2338 Por isso, se é contraproducente dar às populações indígenas o estatuto de inimigas perpétuas dos portugueses, já que eram nítidas as interações sociais em territorialidades onde as divisões dos grupos eram naturalmente voláteis e as estratégias, alianças e disputas por poder e sobrevivência política davam-se ao sabor das precárias condições materiais, sobretudo no que tange a luta pela posse da terra, não é menos verdade que, tomando de empréstimo as conclusões de Tamar Herzog para o caso hispano-americano, eram vistos como bárbaros não só os índios, mas até mesmo os portugueses que se V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ARAÚJO, Renata Malcher. As vilas pombalinas da Amazônia: as cidades que tiveram ordem para serem mestiças. In.: COLE, Douglas (org.). Cortes, cidades, memórias: trânsitos e transformações na modernidade. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 2010, p. 45. 2333 AHU – PB, doc. 1435 (1755, maio, 5, Paraíba). 2334 AHU – PB, doc. 1435 (1755, maio, 5, Paraíba). 2335 Idem. 2336 Ibidem. 2337 HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 2ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, Departamento de Cultura da Guanabara, 1975, p. 23. 2338 MELLO, José Octávio de Arruda. História da Paraíba: lutas e resistências. 2ª ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2005, p. 81.

731 ISSN 2358-4912 tivessem porventura “degradado”. Neste sentido, o argumento retoma o fato de que a identidade colonial baseava-se, sobretudo, na distinção entre “civilizados” e “bárbaros”, como atesta o caso de Domingos Jorge Velho.2339 Na conjuntura do Diretório e das Leis das liberdades dos índios, na década de 1750, a orientação do rei para a resolução do conflito envolvendo indígenas aldeados e conquistadores na Paraíba trouxe outras implicações, além das tentativas fracassadas de punir os acusados pela morte da liderança indígena Panati.2340 A criação da vila de Monte-mor, o Novo, em 1762, na freguesia litorânea de Mamanguape, justamente em área do antigo aldeamento da Preguiça, afetou decisivamente a organização social Panati, já que estes índios “desceram” rumo à nova vila sob as ordens de Sua Majestade, que desejava torna-los efetivamente súditos da Monarquia e pôr termo aos conflitos agrários e desmandos nos sertões desgovernados. Com efeito, após a promulgação do Diretório, o antigo aldeamento dos Panati foi desfeito e toda a sua população desceu em direção à zona da mata paraibana para habitar, juntamente com Canindés, Sucurus e Cavalcantes, a recém-criada vila. A legislação do Diretório não deixa dúvidas que as novas vilas criadas por toda a América portuguesa a partir de antigos aldeamentos evocavam um princípio de urbanidade, entendida como estratégia máxima no enfrentamento das fronteiras étnicas e políticas no século XVIII. De acordo com a síntese de Araújo, o que se propunha era, “na sequência da legislação aprovada da liberdade dos índios, a cessão total e completa do poder temporal dos missionários sobre os nativos”.2341 Os antigos aldeamentos com população suficiente deveriam ser elevados à categoria de vilas, com a instituição de um administrador – o diretor. Deu-se início a um novo processo de territorialização e as estratégias indígenas precisaram se alterar também. Na vila de Monte-mor, na Paraíba, o princípio era homogeneizador, transformar Panatis em súditos, destruir as barreiras entre brancos e índios, sobretudo através do estímulo aos casamentos mistos. A conversão do gentio em vassalo era a “razão de ser” destas novas vilas, espaços de uma urbanidade mestiça. Os nomes indígenas dos antigos aldeamentos foram eliminados, tomando seus lugares toponímicos de origem lusitana, transformando, por decreto, ambíguos espaços de transição em espaços de civilização. A ofensiva metropolitana contra o sertão nunca havia sido tão ferrenha e sistemática.2342 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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HERZOG, Tamar. Defning Nations: Immigrants and Citizens in Early Modern Spain an Spanish America. New Haven: Yale University Press, 2003. 2340 O Directorio, que se deve observar nas povoações dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não mandar o contrário, de 1757, redigido pelo então governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-59), confirmando pelo rei e mando publicar para todas as conquistas da América portuguesa como Alvara em 17 de agosto de 1758, visou instrumentalizar a Lei de 6 de junho de 1755 e o Alvara com força de lei de 7 de junho de 1755 que restituíam “a liberdade a todos os índios deste Estado”, abolindo o governo temporal dos missionários sobre as comunidades indígenas. Em termos formais, esse conjunto de leis fazia dos índios juridicamente vassalos portugueses, de modo que suas terras fossem consideradas e respeitadas enquanto território lusitano. De modo geral, o Diretório dos índios tinha como objetivo, por meio de uma política territorial que pretendia integrar brancos e nativos, combater a dispersão populacional em lugares ermos, considerada um empecilho à administração e ao bom governo. Para mais detalhes, cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na era pombalina. Correspondência inédita do governador e capitão general do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759. Rio de Janeiro: IHGB, 1963, p. 948). Para uma pertinente discussão sobre os objetivos e conteúdo da legislação indigenista do Diretório, cf. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. 2341 ARAÚJO, Renata Malcher de. A urbanização da Amazônia e do Mato Grosso no século XVIII... p. 53. 2342 A criação de cinco vilas de índios na década de 1760, para onde foram alocados os aldeados, revolucionou a estrutura urbana e administrativa da Paraíba, porém igualmente provocou a insatisfação de inúmeros sujeitos, a começar pelos edis do senado da câmara da cidade da Paraíba, que sentiram as mudanças, sobretudo de um ponto de vista fiscal, pois houve uma redução da arrecadação em virtude da diminuição do termo da municipalidade. A esse respeito, cf. AHU – PB, doc. 1800 (1766, julho, 21, Paraíba). Até o final do século, as novas vilas da Paraíba somariam nove, ao total, além de Nossa Senhora das Neves, que permanecia como única cidade. Foram elas: Vila de Monte-mor (1762), Vila de São Miguel da Baía da Traição (1762), Vila de Nossa Senhora do Pilar (1763), Vila do Conde (1764-5) e Vila de Alhandra (1765), completando o circuito das cinco ereções feitas na zona da mata da Capitania, para onde se destinaram as populações indígenas dos sertões. Além destas, foram criadas posteriormente a Vila de Pombal (1772), Vila Nova da Rainha (Campina Grande, 1790), Vila Real de São João (Cariri Velho) e Vila Nova de Souza (1800), todas localizadas para além da Serra da Borborema.

732 ISSN 2358-4912 Entretanto, cerca de dez anos depois de erigidas as chamadas cinco vilas de índios (1776), o capitão-mor da Paraíba Jerónimo de Mello e Castro alertava para o estado precário delas, “sem adiantamento algum, antes notoriamente decadentes [...]”, responsabilizando, por seu turno, o general de Pernambuco, uma vez que “devendo consultar para o provimento dos Diretores de que tudo depende pessoas de maduro conhecimento, se informa do Ministro, que não conhece os merecimentos dos soldados que tem nomeado e o meu General aprovado”.2343 O governador da Paraíba, em um conflito de jurisdição em pleno período de anexação à Pernambuco (1756-99), queixava-se que seu superior, o governador-general de Pernambuco, estaria entregando a indicação dos diretores das vilas a conselheiros pouco experimentados nos negócios da Paraíba, “o que tem resultado gravíssimos prejuízos a Real Fazenda e aos pobres índios governados por sujeitos sem probidade e virtude, como são huns pobres soldados que o Ministro nomeou e o meu General confirmou sem me ouvir, quando devia nomear homens abonados de virtude e razão”.2344 O dito “Ministro” portador das nomeações de diretores nas cinco vilas de índios, o qual o capitãomor Mello e Castro se referiu, era o juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, muito provavelmente o homem mais importante das capitanias do Norte no que se refere à aplicação da legislação do Diretório dos índios,2345 isto porque foi designado por Luís Diogo Lobo da Silva, general de Pernambuco e suas anexas, para erigir as novas vilas e fazer descer populações indígenas inteiras dos sertões em direção aos seus novos estabelecimentos, sendo também responsável pela instalação dos pelourinhos, pela demarcação dos locais de construção das câmaras e das cadeias, além de ser encarregado de conduzir as eleições municipais e proceder a escolha de capitães-mores de índios e diretores.2346 Por sua vez, deve-se notar que a valorização das lideranças indígenas, seguindo princípios como as bases tradicionais da comunidade e o reconhecimento das autoridades metropolitanas bem como de seus códigos políticos e simbólicos, foram alguns dos principais instrumentos usados na construção de relações amigáveis com os índios, o que era indispensável ao êxito das novas vilas.2347 A própria legislação indigenista pombalina previa um tratamento especial dispensado às chefias, copiando tudo aquilo praticado para os demais militares do Império, estabelecendo “que sobre estes Principais, sargento-mores e capitães das aldeias e seus filhos, ninguém tenha jurisdição neles, senão os governadores, e quando cometerem algum delito, sejam processados como militares perante a presença do Governador, e se sentenciarem com o seu voto, na forma dos mais militares”.2348 É inegável V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU – PB, doc. 1978 (1776, novembro, 6, Paraíba). Ibidem. Acerca desses diretores de vilas de índios, Maria Helena Flexor acrescenta que “A maioria [...], muitos deles escrivães, foi sempre acusada de incompetentes, abusados, corruptos, defensores de seus próprios interesses e outras coisas”, uma conclusão que parece se confirmar para o caso da Capitania da Paraíba, como atestam os alaridos de Jerónimo de Mello e Castro (FLEXOR, Maria Helena Ochi. A rede urbana brasileira setecentista. A afirmação da vila regular. In.: TEIXEIRA, Manuel C. (org.) A construção da cidade brasileira. Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 214). 2345 Cabe-nos ressalvar que nas capitanias do Norte o Diretório dos índios e as Leis das liberdades receberam uma versão adaptada, criada em Pernambuco, ainda em 1758, pelo então governador general Luís Diogo Lobo da Silva. Esta versão local da legislação indigenista chamava-se “Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias das capitanias de Pernambuco e suas anexas” (publicado in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, XLVI, 1883, p. 121-171). De acordo com Ricardo Pinto de Medeiros, os dois documentos convergiam em praticamente todos os itens, com exceção de dois pontos: a forma de repartição das terras e da distribuição da mão-de-obra indígena, adotando soluções locais para esses itens. Para mais detalhes, cf. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, novembro de 2005, p. 3. 2346 O juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco foi encarregado da redução e descimento de 23 aldeias nas capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará. A região ao sul de Pernambuco, correspondente à comarca das Alagoas, ficou sob a responsabilidade do ouvidor-geral Manuel de Gouvea Alvares, que se ocupou de 23 aldeias, reduzindo-as e criando as respectivas vilas. 2347 ROCHA, Rafael Ale. Os índios oficiais na Amazônia Pombalina: sociedade, hierarquia e resistência (1751-1798). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, 2009. 2348 Apud MENDONÇA, Marcos Carneiro. A Amazônia na era pombalina. Correspondência inédita do governador e capitão general do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759... p. 81. 2344

733 ISSN 2358-4912 que, grosso modo, os diversos grupos indígenas, de acordo com suas conveniências e recursos políticos disponíveis em cada localidade, buscaram integrar-se a este novo momento da política indigenista portuguesa, prestando vassalagem ao rei e esperando deste os prêmios por sua obediência e lealdade. Estes intercâmbios são notavelmente observados nas histórias de chefias indígenas da América portuguesa na segunda metade do século 18.2349 As honras militares foram cobiçadas pelos Principais e serviram como importantes mecanismos de negociação com a Coroa e seus agentes, tendo em vista que a capacidade de liderança e interlocução exercida pelas chefias indígenas era absolutamente imprescindível na execução das determinações do Diretório, desde o descimento forçado dos índios das ribeiras dos sertões até a sua instalação nas novas vilas e a entrega do governo local com instalação da câmara e demais equipamentos administrativos. O índio Francisco Teixeira dos Santos, por exemplo, foi nomeado para o ofício de capitão-mor da vila da Baía da Traição pelo general de Pernambuco, José Cezar de Menezes, recebendo a confirmação régia para “gozar de todas as honras, graças, franquezas, liberdades, privilégios e isenções que em razão dele lhes pertencem”. Na carta-patente que nomeou o dito índio, Jose Cezar de Menezes ressaltou “a alta confiança que da sua pessoa faço” ao encarregar Francisco Teixeira dos Santos de todas as obrigações inerentes ao seu importante posto.2350 Doutra feita, se as chefias indígenas eram intermediários fundamentais do contato, tendo que buscar junto ao rei não apenas benesses e mercês para si e os seus, mas também garantias de preservação social numa ordem colonial tendencialmente hostil, a sua liderança, porém, somente seria exitosa se contasse com o apoio e o reconhecimento comunal; caso contrário, nem poderiam barganhar capital político junto à Coroa, muito menos satisfariam as expectativas dos oficiais régios, que dependiam da interlocução desses capitães e sargentos-mores índios em momentos de crise, quando deveriam apaziguar os ânimos desses “infantis súditos”. Visando garantir o sútil equilíbrio político, o Diretório determinava que as câmaras indicassem os postos militares superiores de seu termo, denotando que vereações e ordenanças eram estruturas bem articuladas, como sugeriu Rafael Ale Rocha.2351 Disso se observa quando, pelos idos de 1800, o então governador da Paraíba, Fernando Delgado Freire de Castilho, assinou a carta-patente do índio Manoel José Soares, nomeado capitão da oitava companhia do corpo de Ordenança dos índios da vila de Alhandra. De acordo com o governador, o nome de Manoel Soares havia sido “prosposto em primeiro lugar pellos officiaes da Camara da mesma Villa”, com a anuência do capitão-mor da ordenança de Alhandra, Domingos José de Castro.2352 O Diretório determinava que o posto de capitão-mor dessas novas vilas fosse ocupado preferencialmente por indígenas, assinalando uma prerrogativa que se estendia aos demais oficiais do governo local, com exceção do cargo de diretor, como dissemos. Entretanto, em possessões onde a norma e a prática nem sempre se congratulavam, houve descumprimentos e evasões da lei praticadas pelos próprios encarregados de fazê-la valer, como se vê na nomeação de João Peixoto de Vasconcelos para o importante posto de capitão-mor da vila de Monte-mor o novo, ao norte da cidade da Paraíba. A carta-patente foi passada pelo general de Pernambuco José Cezar de Menezes em agosto de 1780, e, ao invés de nomear um índio indicado pela câmara, o governador ordenou a posse do dito João P. de Vasconcelos, tendo em consideração ser ele “das Principaes Familias da Capitania, abastado de bens e se achar exercendo com honra, zelo e atividade o Posto de Coronel de hum dos regimentos da cavalaria auxiliar da cidade da Paraíba [...]”.2353 O nome do coronel, que era senhor de engenho na ribeira do Mamanguape, na Paraíba,2354 não partiu de uma

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A esse respeito, cf. o interessante artigo de LOPES, Fátima Martins. Capitães-mores das ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas de índios da Capitania do Rio Grande. In.: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES, Mozart & GONÇALVES, Regina Célia (orgs.). Ensaios sobre a América portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2009. 2350 AHU – PB, doc. 2184 (ant. 1787, setembro, 15, Paraíba). 2351 ROCHA, Rafael Ale. Os índios oficiais na Amazônia Pombalina... 2352 AHU – PB, doc. 2691 (ant. 1801, julho, 10, Paraíba). 2353 AHU – PB, doc. 2094 (ant. 1781, setembro, 11, Paraíba), grifos nossos. 2354 Em abril de 1792, o capitão-mor João Peixoto de Vasconcelos assinou uma petição conjunta, endereçada a rainha d. Maria I, na qual se declarava senhor de engenho e agricultor da planta do algodão e reclamava a Sua Majestade das proibições de comércio que o governador da Paraíba, Jerónimo de Mello e Castro, costumava fazer na foz do rio Mamanguape, vetando, assim, o tráfico e escoamento das produções para o porto do Recife e rendendo grandes prejuízos à economia local. A representação foi assinada por diversos produtores da região, dentre eles o diretor da vila de Monte-mor, Gonçalo Lourenço Barbosa, além de ser endossada pela câmara da

734 ISSN 2358-4912 decisão monocrática do governador José Cezar de Menezes, ao contrário, “me foi proposto em primeiro lugar pelos oficiaes da câmara da Villa de Monte-mor o novo [...] para exercer o posto de capitão-mor das ordenanças da dita Vila, que se acha vago [...]”.2355 O fato da indicação da câmara de Monte-mor recair sobre um senhor de engenho, reconhecido membro das elites locais da Capitania, quando, na verdade, deveria respeitar a prerrogativa indígena, nos faz aventar a hipótese de ser esta vereação um espaço controlado pelas elites locais, sinalizando, por sua vez, os descompassos da aplicação da política indigenista pombalina. Outro indício pode ajudar-nos a elucidar essas suspeitas e, surpreendentemente, ele nos remete ao início dessa história, que acompanhou a saga da nação Panati, dos sertões da Paraíba, em busca de punição para os culpados pelo assassinato de seu capitão-mor em meados de Setecentos. Como dissemos, após a promulgação do Diretório, o antigo aldeamento dos Panati foi desfeito e estes índios passaram a habitar na vila de Monte-mor, juntamente com várias outras etnias. Desconhecemos se os Panati mantiveram ou não suas identidades de grupo. O que sabemos, contudo, é que os índios de Monte-mor e demais vilas do litoral formaram um contingente numericamente volumoso, mas não parecem ter encontrado um ambiente político favorável2356 pois os próprios diretores, juízes ordinários e oficiais das câmaras, “esquecidos das Reaes Ordens com que os Nossos Píssimos Soberanos tem posto o maior cuidado em christianizar, civilizar, e enobrecer os índios dessas vilas, os prendem, e castigão, e tratão servindo se deles com o desprezo, como de captivos, querendo governalos, e as suas próprias terras, e querendo atalhar desordens tão prejudiciais ao bem comum dos índios [...]”.2357 A denúncia era do capitão-mor da Paraíba, Jerónimo José de Mello e Castro, e evidencia a permanência, dessa feita nos novos núcleos urbanos erigidos em vilas, de velhos e persistentes problemas de uma ordem colonial baseada na supressão do território indígena: a questão agrária e uso da mão-de-obra ameríndia. Após saírem dos sertões do Piancó, os índios Panati novamente tiveram que enfrentar tais percalços, agora na vila de Monte-mor, com o agravante do descumprimento integral da legislação do Diretório que lhes garantia acesso aos governos locais e um tratamento cortês da parte dos colonos. Jerónimo de Mello e Castro advertiu aos edis, juízes ordinários e diretores contra os abusos cometidos, garantindo-lhes que “a jurisdição que tinhão sobre as terras e índios era a mesma que tinhão sobre os brancos, que não os podiam prender, como costumavão, sem culpa formada [...], e que os devião tratar na forma das Ordens de Vossa Magestade e que não devião penhorar lhe os bens como fazião”, reiterando que os mesmos não deveriam “utilizar das terras dos índios, e seos rendimentos [...]”.2358 A política ao mesmo tempo urbanizadora e civilizacional do reformismo ilustrado português não conseguiu dissolver as hostilidades praticadas contra as populações indígenas, muito menos minorar o imaginário que rondava estes povos, tidos como naturalmente rebeldes e indômitos. No caso das cinco vilas da Paraíba, o terror-pânico luso-brasileiro, causado pela espera eminente de uma revolta de índios na Capitania, era a outra fase da crueldade colonial. Em razão das desatenções dos camaristas e diretores, que “procurão só os próprios interesses, sem mais nada lhe importar”,2359 o governador da Paraíba há tempos fazia as honras de “anunciador da tragédia”, declarando a iminência de um levante indígena na Capitania, o que seria uma verdadeira catástrofe, haja vista as precárias condições de defesa da cidade da Paraíba, compostas de duas pequenas companhias pagas “sem armas, e faltos de fardamento, e os poucos auxiliares sem armas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

dita vila. Cf. AHU – PB, doc. 2257 (1792, abril, 20, Vila de Monte-mor, o novo). Para mais detalhes desse caso, cf. CHAVES JR., José Inaldo. Fronteiras insubmissas: circuitos mercantis, elites e territorialidades nas capitanias do Norte do Estado do Brasil, c.1791-1797. In.: COSTA, Ariadne & CHAVES JR., José Inaldo. Fazer e refazer o Império: agência e agentes na América portuguesa (sécs. XVII-XIX). Vitória: EDUFES/DLL, 2011. 2355 AHU – PB, doc. 2094 (ant. 1781, setembro, 11, Paraíba). 2356 Cf. dados demográficos das cinco vilas de índios da Paraíba na Idea da população da capitania de Pernambuco e das suas anexas..., do governador general de Pernambuco José Cezar de Menezes, cf. JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. Fac-símile da primeira edição publicada no Rio de Janeiro em 1892. Brasília: Thesaurus Editora, 1977, vol. I, p. 336ss. 2357 AHU – PB, doc. 2328 (1795, maio, 21, Paraíba), 2358 Idem. 2359 Ibidem.

735 ISSN 2358-4912 algumas [...], de sorte que qualquer levante de índios, que se não esquecem de imaginarem, que estas terras lhe pertencem, asociados (sic) com os Escravos, que todos pensão em libertarem, se fará irreparável [...]”.2360 Destarte, nesse cenário ainda mais complexo e delicado, as agências indígenas parecem ter redistribuído capital político, adaptando-se por meio de novas alianças, conforme podemos auferir da preocupada fala do governador da Paraíba, que denunciava uma curiosa inversão da política de incentivos aos casamentos mistos do Diretório: “e estando esta Cidade [da Paraíba] cercada de cinco villas de índios aliançadas com os pardos, e pretos, por seus cazamentos, nações todas oppostas aos brancos, em qualquer assalto podem conquistar esta Praça [...]”.2361 Neste sentido, incentivar matrimônios entre portugueses e índios, declarando-lhes livres de infâmia ou impureza de sangue e dignos da Real atenção, não significava apenas facultar aos nativos o direito de ingressar à comunidade de súditos da Monarquia portuguesa, antes também implicava em consolidar um ajustamento imprescindível que, se mal sucedido, poderia conduzir ao extremo de uma reunião de grupos hostis ao domínio colonial português, como era o caso de uma eventual aliança indo-africana, como temia o assustado brigadeiro Jerónimo de Mello e Castro. Com efeito, cabe-nos acrescentar que a interpretação historiográfica que privilegiamos nesta reflexão preocupou-se em evitar considerar os indígenas infelizes vítimas do contato ou bastiões aguerridos de uma suposta resistência imemorial – um antagonismo analiticamente infértil. Deste modo, ocupamo-nos em tratá-los enquanto agentes históricos que atuaram de acordo com suas próprias demandas, alternadas por contextos específicos. Por fim, a despeito das inconsistências que rodearam a aplicação da legislação indigenista pombalina, seria equivocado negar o profundo impacto que tiveram nas estruturas demográficas e urbanas da América portuguesa.

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2360 2361

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NEGRO: IMAGEM, MEMÓRIA E DISCURSO NA PROPAGANDA DE PROGRAMAS ASSISTENCIALISTAS DO GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA José Robson Gomes de Jesus2362 A fortiori, se há algo de unânime na contemporaneidade, é sem dúvida a aceitação que, inequivocamente, a mídia é senhora dos ditames arquetípicos para as sociedades modernas. Os meios de comunicação, vistos como um prisma para o mundo, interferem decisivamente no olhar sobre si e sobre o outro. Dentro dessa floresta de símbolos midiático-discursivos, emerge uma seleção de material a ser veiculado, que atende a uma série de critérios, interesses, convenções, costumes e valores que não ocorrem de forma ingênua no discurso midiático. Isto é, existem vértices arquetípicos, nos quais são ancorados argumentos, que desconsideram as diferenças culturais, possibilidades interpretativas de situações e tampouco se preocupam em saber se o discurso, verbal ou imagético, veiculado é aquele que, de fato, determinada pessoa ou grupo elegeria como representação própria. Nesse pormenor, os anúncios publicitários funcionam com lugares que ancoram substratos memoriais de uma sociedade. Segundo Maria da Conceição Fonseca-Silva: Se quisermos analisar de que forma a mídia funciona como lugar de construção de memórias na sociedade contemporânea, temos que pensar como se dá a apropriação de um real fragmentado e disperso e a construção de um imaginário que se confunde com o próprio real nas materialidades simbólicas de significação que envolvem o verbal e o não verbal. É nesse sentido que tomamos anúncios publicitários com lugares de memória discursiva [...] (FONSECA-SILVA 2007,

p. 25). Ainda sob a égide da supracitada autora: Os anúncios publicitários, como lugares de memória discursiva, funcionam como lugar/espaço de interpretação. E no gesto de interpretação e, portanto, de construção/re-construção de memória discursiva, ocorre estabilização/desestabilização de sentido(s) e sedimentação de valores da sociedade na qual se operam.

(FONSECA-SILVA 2007, p. 25) Isto posto, parte-se para o discernimento que todo eixo social é enviesado por estereótipos. Estes estereótipos, na contemporaneidade, consolidam-se e consubstanciam-se midiático-discursivamente perpetuando-se em ancoradouros de memória coletiva, ditando, sobretudo, indeléveis padrões sócio históricos, legitimados pela própria estrutura social na qual estão inseridos. Elucubrações mais agudas, sobre como se estabelecem e se cristalizam os estereótipos sociais, revelam que os processos de legitimação destes estão intrinsecamente ligados às raízes ideológicas, pautadas na pseudo-supremacia étnica, social e econômica das classes dominadores nas sociedades históricas (LE GOFF, 2006, p. 206). Segundo Robin Quin, os estereótipos são conceitos de um grupo e têm como função justificar a sua conduta em relação ao outro que é avaliado. (QUIN, 1994, p.81). Assim sendo, tais classes elegem, legitimam e impõem seus expoentes arquetípicos de beleza, comportamento, religião e etnia. Qualquer dissonância, com estes vértices padronizadores, imbrica, para estes grupos, na desfragmentação de sua solidez hegemônica memorial. Advém daí a necessidade de meios que, amiúde, reiterem a legitimidade desses padrões e não há melhor veículo para este fim, nas sociedades modernas, do que a propaganda publicitária. Nesse diapasão, faz-se inextricável a percepção que as construções sócio-históricas funcionam como manipuladoras na formação dos sujeitos. Consequentemente, corroboram na (des)construção das identidades: coletiva e particular. Sob uma égide mais profícua, o eixo social revela características discursivas, que navegam por gerações, à semelhança das características genotípicas e fenotípicas. 2362

Mestrando do Programa de Pós-graduação em: Memória, Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB.

738 ISSN 2358-4912 Estas características discursivas, amparadas em estruturas memoriais, aprisionam os indivíduos em conceitos generalizantes, vívidos na relação de pertença, ao mesmo tempo em que falseiam, nestes indivíduos, a premissa de que são de fato os originais idealizadores dos julgamentos aos quais se arvoram. Segundo Halbwachs, tais indivíduos não percebem que, na inteireza, o que fazem é perpetuar as ideologias de seus grupos (2006, p.72). Nessa ótica, o ser humano, como fruto dos processos sociais e ideológicos, é guiado para a percepção e definição do mundo de acordo com o meio que o cerca. Dessa forma, os conceitos são formados sem aprofundamento e distanciamento necessários ao julgamento. Isto é, repete-se apenas o que é transmitido como herança social. É com princípios basilares arraigados na discussão sobre: negro, mídia, memória, lugares de memória e estereótipos que se justifica, e se apresenta como extremamente cabível, a análise da intencionalidade memorial-discursiva, presente na propaganda oficial dos programas assistencialistas do governo do Estado da Bahia nos anos 2013 e 2014. Estes programas exibem, em outdoors, a imagem apenas de pessoas negras para representarem as classes desassistidas e desprivilegiadas economicamente no supracitado Estado. A este propósito, o outdoor, como lugar de memória, cumpre o papel social de mediador entre indivíduos e gerações que não se ligam por referências tangíveis, mas que conseguem comunicar-se, fazerem-se coesos e perpetuar legados eficazmente. Pois, segundo Pierre Nora, “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vívido no eterno presente” (2011, p.15). Desse modo, além do velado discurso sobre padrões que setorizam classes sociais e carência de assistencialismo dos afrodescendentes, há outro referencial arquetípico presente no discurso memorial-imagético dos outdoors supracitados, a saber: o atrelamento, na memória coletiva, entre os brasileiros que descendem de africanos à baixa intelectualidade. Por isso, como inferiores e incapazes de ascensão socioeconômica pelo cunho do intelecto, necessitam, exclusivamente, do vitalício assistencialismo governamental. Esse atrelamento, além de fundamentar-se num discurso eugênico2363, apresenta-se sob a máscara de silenciamentos históricos. Estes silenciamentos, se revelados, trariam à baila questões que evidenciariam que o real motivo daqueles indivíduos vincularem-se às classes com baixo poder aquisitivo, e, por conseguinte, a não ocupação de um maior número de lugares de maior expressão na conjuntura social, é a atroz exclusão a que muitos foram relegados nos primeiros anos do pós-abolição. Contudo, essa imagem, memorialmente preservada, não mais condiz, exata e inquestionavelmente, com a realidade contemporânea. Este atrelamento dos negros à escravidão e, consequentemente, seus descendentes às atuais classes de desprestígio social, não é parâmetro neófito. Hebe Mattos, em Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico, aponta que para o século XIX “a noção de cor [...] buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição2364 estavam indissociavelmente ligadas” (MATTOS, 1995, p.109). Sob o mesmo olhar, Mariza Carvalho de Soares, em Devotos da cor: Identidade Étnica e Escravidão no Rio de Janeiro, afirma que, também para o século XVIII, a “cor fala da condição social de cada um e, como tudo mais nas sociedades do Antigo Regime2365”, distingue e hierarquiza (SOARES, 2000, p29). Segundo a Doutora Isnara pereira Ivo: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] A pigmentação da pele há muito, tem sido usada para identificar não só populações de ascendências africanas e, consequentemente, vinculadas ao mundo escravo, mas, também, povos de 2363

Eugenia é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido". Galton definiu eugenia como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia em 31/07/2014. 2364 Condição referia-se ao status jurídico da pessoa: livre, escrava ou forra. (A esse respeito ver: Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa da Doutora Isnara Pereira Ivo Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012). 2365 O Antigo Regime refere-se originalmente ao sistema social e político aristocrático estabelecido na Europa, entre os séculos XVI e XVIII. Trata-se principalmente de um regime centralizado e absolutista, em que o poder era concentrado nas mãos do rei. Ver BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime dos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa.

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ISSN 2358-4912 outros continentes. A tonalidade da pele não parece ser um critério seguro e válido para definir identidade de indivíduos ou grupos, sejam eles europeus asiáticos ou mesmo africanos, já que na África, assim como nas demais regiões do planeta, nasceram e nascem não só negros e mestiços, mas “brancos”. (IVO, 2012, p.252)

Ainda segundo a referida autora: As categorias: brancos ou negros são construções históricas que adquirem significados específicos conforme os agentes sociais e os momentos históricos vivenciados evidenciam. As sociedades coloniais, portuguesas e espanhola, estruturadas na escravidão, associaram pelo que nos legaram as fontes históricas, a cor negra à condição cativa e a liberdade à cor branca. (IVO, 2012, p.254)

Em termos mais perspícuos, se as categorias: branco e negro e seu atrelamento, respectivamente, à liberdade e à escravidão para os séculos XVIII e XIX, são construções sócio-históricas e fruto de uma política de conservação memorial, então é possível que exista também, guardados os devidos contextos históricos, uma memória, nevralgicamente preservada para a contemporaneidade, na qual os negros são, indissociavelmente, sinônimos das classes desprivilegiadas econômica e intelectualmente. Nesse particular, a questão, da qual não se pode prescindir, é que o uso da imagem de negros, em outdoors da propaganda oficial dos programas assistencialistas do Governo do Estado da Bahia, aponta para a ratificação, na memória coletiva, que estes indivíduos permanecem ainda em condição subalterna e, por conseguinte, carentes de assistencialismo governamental. Essa constatação nos remete a reflexões que deslindam, ou pelo menos acendem holofotes norteadores para um entendimento profícuo a esse respeito. O primeiro holofote é que subjaz uma rede de memória que ratifica, corrobora e relega aos negros a condição de subalternos na sociedade. Em segundo lugar, os programas assistencialistas do governo do Estado da Bahia, ao exporem a imagem apenas de pessoas negras nesses outdoors, funcionam como fio de continuidade da memória que associa afrodescendentes às classes inferiores da população. Por fim, a memória coletiva atrela os negros, indistintamente, a baixo nível de intelectualidade. Assim, ao partir-se do pressuposto de que todo o eixo social é constituído e construído por legados memoriais e históricos, aos quais estamos inevitavelmente atrelados, entendemos que toda e qualquer percepção, do todo ou das partes que legitimam tais legados, perpassa pelo liame da rememoração de (pré) conceitos que não estão amalgamados apenas ao campo da história como também à memória deste grupo. Para Agnes Heller: Assumimos estereótipos, preconceitos, analogias e esquemas já elaborados que nos são impingidos pelo meio que crescemos e pode passar muito tempo até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é que tal atitude chega a produzir-se (HELLER, 1989, p.43).

Marx, ao seu passo, e em consonância com o que vai dito anteriormente, acredita que os seres humanos, por meio da interação com os outros, estabelecem relações necessárias e independentes de sua vontade. Essa rede processual concretiza e enraíza nos indivíduos a consciência social. Em outras palavras, a sociedade sempre constrói e legitima seus arquétipos e esses arquétipos são fundamentados na própria estrutura daquele nicho social. Em aforisma do próprio Marx: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, é o ser social que inversamente, determina a sua consciência.” (TRIVIÑOS, 1987, p. 87). A memória, aqui entendida como o elo vívido entre o passado escravista negro e a contemporaneidade, por sua vez, longe de ser um receptáculo passivo de um sistema de armazenamento de imagens e conceitos do passado, é, antes, uma força viva, formadora e dinâmica. O que a memória consegue sintomaticamente esquecer é tão importante quanto o que ela consegue lembrar. A memória tem uma íntima relação dialética com o pensamento histórico, em vez de ser um contraponto negativo dele. O ato consciente e o inconsciente de rememoração são um trabalho intelectual; uma questão de imitação, empréstimo e assimilação. Em consonância com as palavras de Raphael Samuel, a memória em si mesma é uma maneira de construir e legitimar conceitos (SAMUEL, 1994, 57). A memória é o que se faz recordar pelo testemunho oral e pelo discurso compartilhável. Segundo palavras do filósofo francês Michel Pêcheux (1988, p. 45), “o discurso pode ser pensado como efeito de

740 ISSN 2358-4912 sentidos entre interlocutores no qual coabitam o ato linguístico e o ideológico”. Nesse viés, o discurso é interpelado uniformemente pelos atos: linguístico, imagético e histórico-social. A memória, o discurso e a imagem, nesse sentido, se fazem essencialmente políticos. Desse modo, a memória precisa tanto de lugares para que ocorra sua ancoragem como de formulações imagéticas para que se configure e se legitime. A memória, então, ancora-se no outdoor, como retor midiático, para relacionar pobreza e exígua intelectualidade à afrodescendência. Estes outdoors são, em sua inteireza, uma afirmação da identidade de classes. Esse processo midiático tem o poder de definir conceitos memoriais no presente e representar o passado, isto é, define a construção inequívoca da memória contemporânea. Essa potente combinação de discurso, memória e imagem possui a capacidade de confundir-se com a representação pública, definindo presente, passado e reivindicações futuras (SILVERSTONE, 2002, p.86). Segundo David Silverstone, estudar a relação da mídia com a memória não é negar a autoridade do evento que é o foco da recordação, mas insistir na capacidade de construir um passado público e para o público (SILVERSTONE, 2002, p.123). Se a memória precisa preencher as fissuras deixadas pela história, o papel então da mídia é não nos deixar esquecer. A este propósito, não podemos obliterar de que a memória, veiculada midiaticamente na contemporaneidade, nada mais é do que uma memória perpetrada histórica e socialmente. Assim sendo, o que de fato nos salta aos olhos, quando analisamos os outdoors supracitados, é o reflexo de fragmentos de um outro tempo, consubstanciados nas imagens dos negros que aparecem nas propagandas do assistencialismo governamental ao qual aludimos. Propomos um alfabetismo crítico em relação a tais propagandas. Nesse princípio basilar, a história e a memória são fontes. A imagem, da qual os homens lançam mão em todos os tempos, por sua vez, é uma fonte que oferece profusão de detalhes históricos (APPENZELLER, 1996, p, 26). Uma imagem, e aqui se incluem os supracitados outdoors, contribui, também, para o melhor entendimento das formas pelas quais as pessoas representam sua história, sua historicidade e como se aproveitam da memória cultivada individual e coletivamente (PAIVA, 2002, p. 97). Imagens são, e de maneira não necessariamente explícita, plenas de representações do vivenciado e do visto e, outrossim, do sentido, do imaginado, do sonhado, do projetado. Sob a égide de Maria da Conceição Fonseca-Silva:

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Se tomarmos, nos seus vários contextos de produção e de consumo, as imagens que circulam nas sociedades, no que diz respeito às representações sociais e às representações visuais, entendidas como organizadoras de todo um imaginário, veremos que elas são, ao mesmo tempo, reflexo e resultado dos modos de pensar das sociedades. (FONSECA-SILVA 2007, p. 25)

Nesse ínterim, faz-se pertinente trazer à baila, para o presente artigo, o conflito entre memórias concorrentes, a saber: memória oficial e memória subterrânea (POLLAK 1989, p.5). A primeira, entendida como aquela que é comum à coletividade e estruturada em ideologias hierarquizadoras, reforça o processo de coesão social. A segunda, diametralmente aposta à primeira, busca reabilitar o que fora subversivamente silenciado. Estes silêncios, consubstanciados pelos não ditos do discurso, ancoramse tanto naquilo que os sujeitos confessam a si mesmos, e entendem como verdade, como também naquilo que estes indivíduos exteriorizam. A memória subterrânea, inextricável a esta analise, emerge, sobretudo, em momentos icônicos, como nos outdoors, acentuando o “caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva” (POLLAK, 1989, p. 9). Em termos mais específicos, a memória subterrânea, ao referir-se à projeção na memória individual de fatos que não foram vivenciados pessoalmente, afeta, direta ou indiretamente, a coletividade a que o sujeito pertence. A memória se faz instrumento de poder. O indivíduo, ao assumir posturas identitárias com seu grupo, incorpora ao seu discurso heranças do coletivo como se seus arrazoamentos idiossincráticos fossem, de fato, espontâneos. Isto é o mesmo que dizer que a relação de pertença direciona o indivíduo para julgamentos que o impedem de dicotomizar o que é de fato coletivo e o individual; pois não há memória necessariamente espontânea ou livre (POLLAK, 1989, p. 14 ). Na esteira dessa ideologia, a memória tem um distinto transformável. Este princípio é que torna a memória extremamente móvel e impregnada de ideologias, quando transportada para contextos diferentes daqueles em que foi originalmente concebida. Embora seja a memória uma reconstrução do passado segundo elementos incorporados ao presente, há pontos que são invariáveis. Estes pontos

741 ISSN 2358-4912 asseguram o elo entre os fatos sem que haja uma relação evidente. Isto explica o porquê de um indivíduo, ao deparar-se com os outdoors supracitados, mesmo que inconscientemente, infira sobre as raízes históricas que relegam aos afrodescendentes a condição de inferiores na estrutura social. Desse modo, referendados nas palavras de David Silverstone, citando Theodor Adorno, (2002, p. 135), podemos entender a produção midiática que serve como base para este artigo como a psicanálise do inverso. Isto é, a retórica midiática, presente nos outdoors analisados, em vez de desconstruir (pré) conceitos, com essa pseudo-tentativa de reparação, acaba por ratificar pressupostos memoriais a respeito da condição de desfavorecimento socioeconômico dos negros brasileiros. Inferimos, ainda, que, ao revocar os sinais mnemônicos presentes no outdoor, a memória assume um liame ditatorial, que outorga às classes dominadoras e criadoras da memória coletiva o direito de perpetuarem-se no poder. Estes outdoors funcionam como lugares de memória que testemunham sobre outra era; e os lugares de memória, por sua vez, servem para bloquear o trabalho dos esquecimentos, prendendo o máximo de sentido num mínimo de sinais (NORA, 1992, p.27). São sinais de preservação de uma memória que subjuga uma etnia à outra, numa sociedade que tende a favorecer indivíduos iguais e desmerecer os diferentes. Sob este viés, a memória se faz vívida no interior dos indivíduos, entretanto, ao necessitar de suporte exterior, ancora-se no outdoor como referencial tangível. Nesse ínterim, a proposta, aqui configurada, enraíza-se numa perspectiva de investigação analítica frente às veiculações imagético-discursivas do Governo do Estado da Bahia, buscando o que Marx chama de o concreto pensado2366. Para tanto, faz-se mister deslindar a retórica pública da memória perpetrada pela mídia; haja vista que o olhar que relega o negro à condição de subalterno na sociedade contemporânea é, sobretudo, estereotipado e carente de análises mais profícuas. Apenas o olhar da mídia, apesar desta servir como veículo de conservação de memória, não traduz a dimensão totalizante desta parcela da população brasileira que contribuiu, e contribui decisivamente no legado sociocultural desta pátria que chamamos de nossa. À laia conclusiva, crê-se que uma análise, de caráter profícuo, do discurso memorialmente preservado pela mídia, especialmente nos outdoors em questão, deslindará os fios condutores de memória acerca do negro e da imagem construída socialmente a seu respeito. Desta forma, investigando-se, acuradamente, os vértices discursivo-memoriais existentes em tais recursos midiáticos, compreendem-se os contextos que cercam a memória coletiva sobre os afrodescendentes, e podem-se esmiuçar os conteúdos, memoriais, presentes nos discursos nos quais se legitima e se consubstancia a premissa taxonômica racista. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências APPENZELLER, Marina. Introdução à análise da imagem. Tradução. Campinas: Papirus, Martini, 1996. BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime dos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XIV-XVIII). Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FONSECA-SILVA, Maria da Conceição. Mídia e Rede de Memória. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2007. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2006. HELLER, Agnes. “Sobre o preconceito”. In: O cotidiano e a história. 3ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 2366

Representação mental do resultado concreto de análises acuradas; isto é, da parcela da realidade exterior ao pensamento conhecedora, e por ele considerada. Representação e não reprodução, decalque ou outra forma de transposição, da realidade para o pensamento A esse respeito ver TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

742 ISSN 2358-4912 NORA, Pierre. Entre a Memória e a História: a problemática dos lugares. Projeto História, n 10, p.7-28. Dez., 1993. PAIVA, Eduardo França. História e Imagens. Rio de Janeiro: Moderna, 2002. PECHEUX, Michel. Discurso: Estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990. POLLAK, Michel. Encandrement et silence: le traveil de la memoire. Penelope, 1985. QUIN, Robyn “Enfoques sobre el estúdio de los medios de comunicación: La enseñanza de los temas de representación de estereótipos”.In:la educación para los medios de comunicación.México,UPN,1994. SAMUEL, Raphael. Theaters of memory: Past and present in contemporary culture. Vol 1. London: Verso, 1994. SILVERSTONE, David. Porque estudar a mídia? Tradução de Milton Camargo Mota. 1ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2002. TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

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SORTILÉGIOS E PRÁTICAS HETERODOXAS NO ESPAÇO IBERO-AMERICANO: MISTICISMO RECÔNDITO NAS ÓPERAS DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU Josevânia Souza de Jesus Fonseca2367 Antônio José da Silva era filho do advogado João Mendes da Silva e de Lourença Coutinho, naturais do Rio de Janeiro, de origem cristã-nova e com um histórico familiar de perseguições e prisões nos cárceres do Santo Ofício da Inquisição, acusados de judaizar em segredo. Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1705, onde permaneceu até 1712 quando os pais foram presos e enviados para Lisboa onde saíram em auto de fé público, em 1713. Foi em Lisboa que Antônio José iniciou sua educação escolar seguindo para Coimbra estudar Direito Canônico como o pai e o irmão Baltazar Rodrigues Coutinho. Assim como os demais membros da família, sentiu de perto a vigilância da Inquisição quando aos 21 anos foi preso pela primeira vez, em 1726, e reconciliado após alguns meses. Daí por diante dedicou-se à advocacia e às letras até ser preso pela segunda vez, em 1737, condenado pelo crime de relapsia em judaísmo, e relaxado ao braço secular em 1739. Foi o teatro o gênero predileto de Antônio José da Silva. Ele escreveu comédias musicadas para apresentação em Lisboa, no Teatro público do Bairro Alto, entre os anos de 1733 e 1738, a saber: Vida de D. Quixote de La Mancha (1733); Esopaida, ou vida de Esopo (1734); Os Encantos de Medéia (1735); Anfitrião, ou Júpiter, e Alcmena (1736); Labirinto de Creta (1736); Guerras de Alecrim e da Mangerona (1737); As variedades de Proteu (1737) e Faetone (1738). Dessas, as quatro primeiras que compõem o primeiro tomo publicado anonimamente em 1759, com o título Theatro Comico Portuguez, ou Colecção das Operas Portuguezas, que se representarão na Casa do Theatro Publico do Bairro Alto de Lisboa, foram analisadas nesse trabalho a fim de buscar traços da religiosidade críptica do comediógrafo. O teatrólogo deixou em suas obras indícios de que as ideias que circulavam entre os cabalistas nos países de crença livre também faziam parte do universo cultural dos criptojudeus no espaço iberoamericano. Esses indícios aludem ao misticismo judaico, no que concerne ao “mito do exílio e redenção”, em torno do qual se estruturou o novo cabalismo assimilado pelos judeus sefarditas após a diáspora iniciada com a expulsão da Espanha em 1492. Pensamento esse difundido a partir de Safed e dos demais centros irradiadores dessa cultura, como Ferrara e Amsterdã. Além do pensamento místico, a arte mágica também é uma constante nos textos de Antônio José da Silva, como se observa nas frequentes referências à feitiçaria e a feiticeiros, fórmulas mágicas para transformações, encantamentos diversos, transes, orações e visões que compõem o universo dos principais personagens, a exemplo do cavaleiro andante D. Quixote, do escravo filósofo Esopo, do Anfitrião, e de Jasão. Tais sortilégios e práticas não tinham espaço na Lisboa do século XVIII por representarem um pensamento contrário à fé cristã, única permitida no tempo em que as óperas foram escritas e representadas através das marionetes de cortiça. Entretanto, as licenças concedidas pelos órgãos de fiscalização, quais sejam: a censura do Santo Ofício, a do Ordinário ou bispo, e a do Paço Real, demonstram que mesmo com toda a vigilância dos guardiões da fé e da moral, alguns indivíduos encontravam brechas para se expressar nessa sociedade, no caso de Antônio José da Silva o teatro representou esse espaço. Em suas peças, ficam evidenciadas as permanências de uma cultura cabalística que os dois séculos de repressão não conseguiram extirpar dos judaizantes. Nas andanças do D. Quixote, por exemplo, ele passa por situações de perigoso transe; encontra a cova encantada de um célebre cavaleiro; realiza preces para sua Senhora Dulcinéia Del Toboso, demonstrando solidariedade pelos demais cavaleiros encantados; tem visões da sua Dulcinéia transformada em Sancho Pança; e luta contra os que não acreditam ainda existir no mundo cavaleiros andantes e contra tudo que ameace a continuidade deles, com o intuito de ressuscitar a antiga cavalaria, cuja religião tem como lei desencantar os cavaleiros encantados.

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Universidade Federal de Sergipe. Email: [email protected]

744 ISSN 2358-4912 Dessas cenas uma merece destaque, a cena VIII da primeira parte da obra Vida de D. Quixote de La Mancha, observada abaixo:

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D. QUIXOTE. Há dias que trago no pensamento uma coisa, que me tem causado grande cuidado: dar-se-á caso que os meus inimigos encantadores tragam transformada a beleza da senhora Dulcinéia em figura de Sancho Pança! E os motivos que tenho para isso, é ver a paciência com que esse escudeiro me atura as minhas impertinências, sem salário algum; e ver que jamais foi possível ver eu a Dulcinéia no seu original e nativo resplendor. Tudo pode ser que seja; pois se leem nos antigos livros da cavalaria andante outras transformações de ninfas, ainda em mais ruins figuras, qual a de Sancho Pança; e porque este pensamento não é fora de conta, bom será averiguá-lo que a diligência é mãe da boa ventura. (Sai Sancho). SANCHO. Senhor, o Rocinante está esperando que vossa mercê o cavalgue, e tem dado tais relinchos, pulos e ventosidades, que suponho nos prognostica alguma boa ventura. D. QUIXOTE. E, se bem reparo agora nas feições deste Sancho, lá tem alguns laivos de Dulcinéia transformada nele. SANCHO. Meu amo está no espaço imaginário! (À parte.) Ah, senhor, toca a cavalgar, que o Rocinante está selado e o burro albardado. Senhor, vossa mercê ouve? D. QUIXOTE. Sim, ouço. Que seja possível, prodigioso enigma de amor, galharda Dulcinéia Del Toboso, que os mágicos antagonistas de um valor te transformassem em Sancho Pança. Sancho. Ainda esta me faltava para ouvir e que aturar! (À parte) Que diz, senhor, Está louco? Com quem fala vossa mercê? D. QUIXOTE. Falo contigo, Sancho fingido, e com Dulcinéia transformada. SANCHO. Se vossa mercê algum dia tivesse juízo, dissera que o tinha perdido. Que Sancho fingido, ou que Dulcinéia transformada é esta? D. QUIXOTE. Não sei como agora fale, se como a Snacho, se como a Dulcinéia! Vá como quer que for. Saberás que os encantadores têm transformado em tua vil e sórdida pessoa a sem igual Dulcinéia. Vê tu, Sancho amigo, se há maior desaforo, se há maior insolência destes feiticeiros, que emascarar o semblante puro e rubicundo de Dulcinéia com a máscara horrenda de tua torpe cara. SANCHO. Diga-me, senhor, por onde sabe vossa mercê que a senhora Dulcinéia está transformada em mim? D. QUIXOTE. Isso é o que tu não alcanças, simples Sancho. Pois sabe que nós, os cavaleiros andantes, temos cá um tal instinto, que nos é permitido conhecer onde está o engano e 2368 transformações pelos eflúvios que exala o corpo, e pela fisionomia do rosto.

Nessa cena, alguns aspectos chamam a atenção. O primeiro é o fato de Sancho Pança afirmar que D. Quixote está no espaço imaginário, tal como os místicos, em suas experiências visionárias, e neste momento, tão comum nas demais cenas, D. Quixote vê sua Senhora Dulcinéia transformada em seu escudeiro. Outro aspecto relevante na cena é o instinto do cavaleiro andante, descrito por D. Quixote, um instinto que não é acessível para todos, como ao “simples Sancho”, mas apenas aos cavaleiros. Um dado relevante é que, na ópera do Judeu, o D. Quixote não é um cavaleiro comum, mas um professor em matéria de cavalaria andante. Esse instinto de conhecer pelos “eflúvios que exala o corpo, e pela fisionomia do rosto” refere-se no cabalismo à doutrina da transmigração da alma, ou metempsicose, que defende trazer cada pessoa o traço secreto das transmigrações de sua alma nos lineamentos de sua fronte, de suas mãos, e na aura que irradia do corpo, cujo poder de decifrar essa escrita da alma é concebido por Isaac Luria aos grandes místicos2369. Com a popularização do cabalismo, evidenciada a partir das reformulações dos cabalistas de Safed, em especial Isaac Luria, da publicação de tratados moralizantes e edificantes e de movimentos populares como o do pseudomessias Sabatai Tzvi (1665-1666), continuado pelo profeta Natan de Gaza, a doutrina da transmigração tornou-se parte integrante da crença popular e do folclore judaico, 2368 SILVA, Antônio José da. As comédias de Antônio José, O Judeu: Vida de D. Quixote, Vida de Esopo, Anfitrião e Guerras do Alecrim. [introdução, seleção e notas de] Paulo Roberto Pereira. São Paulo: Martins, 2007. p. 100-110. 2369 SCHOLEM, G. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 316.

745 ISSN 2358-4912 e é dessa forma que possivelmente o costume tenha sobrevivido através dos séculos na memória dos judaizantes, como nos mostra Antônio José da Silva, através do seu personagem D. Quixote. As transformações e encantamentos, que na ópera Vida de D. Quixote de La Mancha são atribuídos aos inimigos encantadores que perseguem os cavaleiros andantes e tentam encobrir a existência da cavalaria, em Anfitrião, ou Júpiter, e Alcmena, protagonizam a peça, pois, desde a primeira cena, a “arte mágica” constitui o enigma perseguido pelos personagens, somente revelado no final. Na ópera, Júpiter, intentando conquistar os amores de Alcmena, aceita a ideia de Mercúrio de transformar-se em Anfitrião, marido de Alcmena que se encontrava na guerra, para então se aproximar da amada. Para acompanhá-lo, Mercúrio também se disfarça na forma de Saramago, o gracioso criado de Anfitrião. Transformados, Júpiter e Mercúrio assumem o lugar de Anfitrião e Saramago em Tebas. O conflito acontece com o retorno de Anfitrião, pois, como ambos estavam com a mesma forma, não se conseguia distinguir o verdadeiro do falso, até Mercúrio decifrar o enigma dos dois Anfitriões, revelando a arte mágica realizada por um necromante para iludir os tebanos quanto à forma de Júpiter e Mercúrio, como se observa na cena V da segunda parte:

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MERCÚRIO. Senhor, não tem que se cansar, que eu hei de dizer a verdade, mas que seja contra mim. Senhores, saberão vossas mercês que essoutro Anfitrião, que aí está, quando viemos da guerra me disse que ele por lograr os agrados da senhora Alcmena, de quem vivia cheio de amor até os olhos, fora ter com um nigromântico, e este lhe untara o rosto com certo óleo serpentorum, para se parecer com o senhor Anfitrião; e para melhor fazer o seu papel, me pediu que eu o apoiasse, dizendo que ele era o verdadeiro Anfitrião, para o que também me untou as mãos com um bolsa cheia de dinheiro; e eu, como sou amigo destas bagatelas, o introduzi com a senhora Alcmena de pés e cabeça; 2370 e assim, pois confesso a verdade, peço que me perdoem este delito.

A necromancia era uma forma de magia semelhante à magia cerimonial, pois, mesmo sendo um desdobramento da magia demoníaca relativa à feitiçaria, não tem a característica da submissão aos demônios, pelo contrário, através dela o mago os comandava. De acordo com Kieckhefer, seriam práticas necromânticas: [...] batizar imagens, defumar a cabeça de uma pessoa morta, adjurar um demônio por meio do nome de um demônio maior, inscrever caracteres e sinais, invocar nomes estranhos, misturar os nomes dos santos para formas perversões das orações, defumar com incenso e aloés ou outros aromáticos, incinerar os corpos de pássaros e animais, lançar sal no fogo, e muito mais.2371

Ainda segundo Kieckhefer, a necromancia caracteriza-se por perseguir três objetivos: afetar a mente e a vontade de pessoas, animais e espíritos; criar ilusões, como “levantar os mortos”; e discernir coisas secretas no passado, presente e futuro. Os instrumentos mágicos do necromante eram os círculos mágicos, as conjurações e os sacrifícios, entremeados pela utilização de palavras, nomes, pessoas e objetos, sempre de forma imperativa2372. No caso dos encantamentos, o autor observa ainda que era preciso reverter o ritual para reverter seu efeito. Outro dado relevante sobre essa arte mágica é que era praticada por cristãos, mormente entre clérigos, por se identificar com os exorcismos, já que, segundo Kieckhefer, exorcizar é o mesmo que comandar os demônios2373. O uso de óleos consta no Livro I do Clavícula de Salomão como um dos materiais necessários para a operação de arte mágica. No caso específico do óleo ritual, o manual de magia descreve como sendo empregado para untar velas, imagens, objetos, lugares e seres vivos que se pretenda abençoar. É um óleo geralmente mais fino que o de uso geral, apresenta perfume suave como o de amêndoas, deve ser

2370

SILVA. op. cit., 2007, p. 312. VIDOTTE, A.; MENDONÇA JÚNIOR, F. de P. S. de. Magia Natural e Magia Demoníaca: O Entrecruzamento de Religião e Magia no Pensamento Renascentista. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11. 2011. Disponível em: Acesso em: 10 mai. 2014. 2372 KIECKHEFER, 1989 apud VIDOTTE; MENDONÇA JÚNIOR, op. cit., 2011. 2373 Id. 2371

746 ISSN 2358-4912 comprado especialmente para esse fim e ser consagrado. No manual de magia, consta também a descrição do óleo das oferendas e do óleo de uso geral2374. Além da fórmula apresentada acima, outra transformação se dá na ópera apenas com palavras, quando da transformação de Saramago em árvore, para que ele não contasse a Alcmena sobre o plano de Juno e Tirésias de matá-la, em vingança, pelos amores com Júpiter, e quando da restituição à antiga forma por Júpiter.

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JUNO. Ai de mim, que este criado me esteve ouvindo! Porém eu te suspenderei os passos, para que não noticieis a Alcmena o que ouviste. (À parte.) SARAMAGO. Tomara ter asas nos pés, para ir ad bolandum. JUNO. Converto-te em tronco, para que não possas passar daí. (Vai-se.) [...] JÚPITER. Este é Saramago, que está convertido em árvore. Quem transformaria este miserável? Mas quem havia de ser senão Mercúrio, para lhe fazer alguma peça? Pois eu o restituirei à sua antiga forma, sem que ele saiba que lhe faço este benefício, por que não suspeite em mim alguma divindade. SARAMAGO. Senhor, acuda-me! Olhe que sou Saramago, que estou preso aqui neste tronco. JÚPITER. Torna-te, homem, à tua antiga forma (Vai-se.).2375

Na ópera, além das transformações realizadas por Júpiter e Juno, a criada de Alcmena, Cornucópia, também faz referências aos encantos e diz ter “laivos de feiticeira”, características também encontradas na ópera Os Encantos de Medéia, na qual a arte mágica é identificada já no início da peça pelo criado Sacatrapo, ao afirmar que o reino da Cólquida, onde se encontram em busca do velocino de ouro, é um reino em que há muita feiticeira2376, e mais adiante, ao explicar a Jasão que “a Senhora Medéia é uma fina feiticeira, e que a tal criada Arpia uma refinada bruxa”2377, e completa que o “tal carneiro também é feiticeiro”2378. A “ciência mágica”, utilizando as palavras do Rei de Cólquida, será o artifício utilizado por Medéia para ajudar Jasão a conquistar o seu objetivo no reino, como se observa na cena IV da primeira parte: JASÃO: Belíssima Medéia, como todo o meu alívio consiste em ver-te, não estranhe os excessos do meu amor. MEDÉIA: Se tu me adoras, não vendas por fineza, o que é obrigação de quem ama: Ai Jasão, se serão verdadeiros os teus extremos! JASÃO: Medéia, em um peito nobre não cabem afetos fingidos; antes cuido, que os fingimentos estão da tua parte. MEDÉIA: Muito me escandalizas. Dizes isso de veras? JASÃO: Quase estava para dizer que sim. MEDÉIA: Que motivo tens para isso? JASÃO: Bem sabes, que tenho gosto de ver o velocino de ouro, só para admirar este prodígio de natureza, e com tudo não tenho merecido esse favor, podendo-me tu fazê-lo; e quem ama verdadeiramente, procura sempre dar gosto ao seu amante. MEDÉIA: Se essa é a queixa, que tens de mim, verás como depressa te satisfaço: toma esse anel. [...] MEDÉIA: Toma, pois Jasão, este anel, que com ele farás tudo quanto quiseres, por especial virtude desse crisólito: vai com ele ao jardim encantado, feliz habitação do Velocino, e suposto esteja cercado de muralhas de bronze, e dentro o defenda um Dragão, tudo vencerás com a virtude desse anel; e ainda que sem tu o teres na tua mão, podia eu pela minha fazer tudo, quero, para que vejas o 2374

CLAVÍCULA DE SALOMÃO: As chaves da magia cerimonial / organização e apresentação Irene Líber – Rio de Janeiro: Pallas, 2011. p. 102. 2375 SILVA. op. cit., 2007, p. 303; 305-306. 2376 Ibid, p. 257. 2377 SILVA, Antônio José da. Theatro Comico Portuguez, ou Colecção das Operas Portuguezas, que se representarão na Casa do Theatro Publico do Bairro Alto de Lisboa. 4ª impressão. Lisboa. Na Of. Patriarcal de Franc. Luiz Ameno. 1759. p. 266267. 2378 Ibid, p. 289.

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ISSN 2358-4912 quanto te amo, que a ti te entrego o depósito de minha ciência mágica; porque é próprio de quem extremosamente ama entregar com a vontade o entendimento. JASÃO: Pois de que sorte há de ser isso? MEDÉIA: Desta sorte. Desce uma nuvem, e nela vão arrebatados Jasão e Medéia. SACATRAPO: Adeus, Jasão, para secula seculorum. ARPIA: Que te parece isso? Não é galante? SACATRAPO: E mui boa galantaria, mas eu lhe não acho graça: Ora diga-me, Senhora Arpia; e Medéia sabe fazer destas habilidades? ARPIA: Como ninguém; porém, tal Mestra teve ela. SACATRAPO: Apostemos, que foi vossa mercê a Senhora Mestra? ARPIA: Eu fui a Mestra de Medéia, que a ensinei desde criança a arte mágica, a quem vocês os 2379 néscios chamam feitiçaria [...]

Essa cena explicita ainda a forma como Medéia aprendeu a ciência mágica, também conhecida como feitiçaria, e, a partir dela, os encantamentos são constantes, sobretudo os voos, as transformações de árvores em ninfas para aplaudirem o triunfo de Jasão, cantando e dançando, o desaparecimento de Sacatrapo, que aparece com cara de burro, e aparecimento de montanhas e sereias para atrapalhar a partida de Jasão, quando este resolve declarar o seu amor por Creusa, depois de ter fingido amar Medéia. Adivinhações também têm lugar na ópera, especificamente na segunda cena da segunda parte, quando a criada Arpia pede para ler a mão de Sacatrapo, a fim de saber o que está para acontecer, afirmando que nessa ciência ninguém a excede. Um acessório diferencial em Os Encantos de Medéia é o anel mágico. Esse constitui o “depósito da ciência mágica” da princesa, com o qual Jasão venceria o dragão e conquistaria a velocino de ouro. De acordo com o Clavícula de Salomão, o anel mágico concentra a personalidade do seu detentor, devendo ser usado apenas durante a operação mágica. Os anéis variam de acordo com o tipo de força planetária e com a operação específica que o mago deseja realizar. Ele completa a transformação do Mestre do Ritual2380. As práticas mágicas identificadas na obra de Antônio José da Silva encontram ressonância nos costumes cabalísticos difundidos na Europa, a partir da Idade Média. No Clavícula de Salomão, mais antigo livro de magia cerimonial europeia, que contém os segredos das artes mágicas e nigromânticas, boa parte desses encantamentos é descrita, além das técnicas de preparação do mago e dos materiais utilizados nos rituais. Outras operações como a de invisibilidade e desaparecimento; para garantir a vitória sobre qualquer adversário, riqueza, prosperidade e fartura; operações de amor e amizade; proteção contra logros, fraudes e trapaças; além de fórmulas gerais para assuntos diversos, e outras, também faziam parte do repertório mágico do Clavícula de Salomão. No manual, o autor diferencia ainda a magia cerimonial da magia natural, também chamada feitiçaria, por esta trabalhar com feitiços (encantamentos, amuletos, porções mágicas, simpatias, etc.), ser praticada principalmente por mulheres do povo, que também eram as parteiras e curandeiras das aldeias rurais, e se dedicar a resolver os problemas cotidianos das pessoas, enquanto que a magia cerimonial, urbana, era praticada por homens e estava enraizada nos conceitos e nas práticas do misticismo judaico-cristão. Esta era uma forma de magia erudita praticada por religiosos que visavam, por meio das técnicas sobrenaturais, a adquirir, sobre os indivíduos, as coisas e a natureza, um poder pessoal que não teriam por meios comuns2381. A distinção entre arte mágica e feitiçaria aparece na ópera na fala da criada Arpia, quando explica a Sacatrapo sobre os ensinamentos de Medéia: “[...] ensinei desde criança a arte mágica, a quem vocês os néscios chamam feitiçaria [...]”. O que explicaria, então, o fato de uma criada, mulher, e sua aprendiza serem portadoras de um conhecimento antes restrito ao círculo masculino? Estaria Antônio José da Silva fazendo uso de uma metáfora para mostrar que em seu tempo a mulher possuía um papel relevante na transmissão dos costumes místicos? Qual a natureza dos rituais de magia que compõem a obra do comediógrafo? 2379

Ibid, p. 275-276. CLAVÍCULA DE SALOMÃO, p. 115. 2381 Ibid, p. 9. 2380

748 ISSN 2358-4912 Importa lembrar que a comunicação do comediógrafo com o seu público acontecia de forma indireta e, acima de tudo, obedecia à censura de um tempo em que qualquer sinal de heresia judaica poderia levar o indivíduo aos cárceres da Inquisição, sobretudo em se tratando de um reconciliado, como era o caso de Antônio José. Os indícios encontrados nas óperas nos levam a conjeturar que a magia de que trata o comediógrafo é uma referência cifrada à Cabala prática, vivenciada dentro das possibilidades oferecidas em Portugal, no início do século XVIII. Era um cabalismo possível, referenciando encantamentos comuns aos costumes dos judeus místicos. É importante considerar ainda que, tal qual nos costumes da lei, em que a mulher passou a ser uma figura central na difusão dos ensinamentos, possivelmente, na mística, ela tenha se tornado conhecedora dos rituais de magia, já que o cabalismo passou a fazer parte do dia a dia dos judaizantes, compondo a nova espiritualidade dos mesmos. Além disso, vale destacar que, na linguagem cabalística transmitida pelo Zohar, a mulher era tão importante para o cosmo e tão responsável pela Criação quanto o homem. E, embora a tradição tenha legado uma barreira em torno dos estudos religiosos para a mulher, é possível encontrar referências a mulheres que ultrapassaram essa barreira em Safed, o centro da Cabala, e foram consideradas profetizas2382. A presença de mulheres entre os místicos também pode ser observada no movimento sabatianista, quando Sabatai Tzvi, buscando ser aceito pelos judeus como o Messias, quebrou as barreiras em favor das mulheres e lançou seus apelos místico-eróticos, atraindo as mulheres, que ficaram entre seus seguidores mais fervorosos. Apesar das proibições inquisitoriais, que consideravam o judaísmo um crime contra a fé cristã, e da censura contra as obras que continham conteúdos ditos ofensivos, pela legislação em vigor, é fato que as ideias da religião mosaica continuavam a circular de forma dissimulada na literatura produzida por cristãos-novos. O caso de Antônio José da Silva não foge à regra, pois as óperas evidenciam características da personalidade do comediógrafo, as marcas do sofrimento a que foi submetido nos cárceres da Inquisição, assim como referências à cultura dos judeus, sobretudo ao aspecto místico da nova espiritualidade, formada após a diáspora. Através da ficção, O Judeu lança pistas sobre recônditos arcanos da cavalaria andante, que, assim como na alquimia, são somente acessíveis aos iniciados. Um dos mistérios contidos nas óperas se relaciona à prática da magia nas múltiplas facetas da magia natural, a magia cerimonial, a feitiçaria e a necromancia, além de instrumentos de magia e do instinto de conhecer pela fisionomia, em relação à doutrina da transmigração das almas. Deste modo, Antônio José da Silva demonstrava conhecer costumes e práticas cabalísticas e referencia-las em suas óperas, ajudando a preservar a cultura do seu tempo e, acima disso, a cultura dos seus antepassados. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências BENSION, Ariel. O Zohar: O Livro do Esplendor. Prólogo de Miguel de Unamumo; Tradução das passagens do Zohar e introdução de Rosie Metroudar e tradução dos outros textos de Rita Galvão. São Paulo: Editora Polar, 2006. CLAVÍCULA DE SALOMÃO: As chaves da magia cerimonial / organização e apresentação Irene Líber – Rio de Janeiro: Pallas, 2011. SCHOLEM, G. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 2008. SILVA, Antônio José da. As comédias de Antônio José, O Judeu: Vida de D. Quixote, Vida de Esopo, Anfitrião e Guerras do Alecrim. [introdução, seleção e notas de] Paulo Roberto Pereira. São Paulo: Martins, 2007. SILVA, Antônio José da. Theatro Comico Portuguez, ou Colecção das Operas Portuguezas, que se representarão na Casa do Theatro Publico do Bairro Alto de Lisboa. 4ª impressão. Lisboa. Na Of. Patriarcal de Franc. Luiz Ameno. 1759.

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BENSION, Ariel. O Zohar - O Livro do Esplendor. Prólogo de Miguel de Unamumo; Tradução das passagens do Zohar e introdução de Rosie Metroudar e tradução dos outros textos de Rita Galvão. São Paulo: Editora Polar, 2006. p. 65.

749 ISSN 2358-4912 RAMOS, Feliciano. História da Literatura Portuguesa: desde o século XII aos meados do século XX. 3. ed. Braga: Livraria Cruz,1958. VIDOTTE, A.; MENDONÇA JÚNIOR, F. de P. S. de. Magia Natural e Magia Demoníaca: O Entrecruzamento de Religião e Magia no Pensamento Renascentista. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 11. 2011. Disponível em: Acesso em: 10 mai. 2014.

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A TRADUÇÃO DA NATUREZA FEITA PELO JESUÍTA ASCENSO GAGO Juliana Barbosa Peres2383

Segundo Elliott, o contato com o Novo Mundo resultou em consequências econômicas, políticas e “intelectuales, puesto que puso a los europeos en contacto con nuevas tierras y nuevas gentes, y como consecuencia puso también en duda un buen número de prejuicios europeos sobre la geografía, la teología, la historia y la naturaleza del hombre”2384. A descrição dessas “novas gentes e terras” resultou em diferentes documentos: tratados, relatos e cartas jesuíticas, etc. Essas descrições – no caso deste artigo, as descrições dos missionários: traduções resultantes do contato cotidiano com esse “novo mundo” - construíam imagens dos novos ambientes para um interlocutor que não podia se fazer presente. De posse dessa imagem buscava-se compreender o que seria aquele “outro” e definir as ações estratégicas a fim de atender aos objetivos determinados pelo contexto, ou seja, delineava seu “modo de proceder”. Posto isto, este artigo tem como objeto o estudo de uma tradução. Tradução do conjunto que formava a Natureza resultante da missão à Serra de Ibiapaba. Território que se encontra na divisa dos Estados do Ceará e do Piauí e que até hoje é palco de disputa política entre esses dois Estados. E que no contexto da missão representava uma importante área estratégica que ficava a meio caminho da Vice Província do Maranhão e Grão Pará e da capitania de Pernambuco. Este espaço é analisado aqui sob a perspectiva de área de fronteira: espaço de conflitos/disputas e também de trocas, que no caso em questão, envolvia os diferentes agentes coloniais (índios, jesuítas e colonos). O presente artigo tem como problemática: a tradução da Natureza que compõe o cenário da missão de Ibiapaba, feita pelo Pe. da Cia. de Jesus: Ascenso Gago. E como objetivos: entender o contexto histórico no qual o enunciador do discurso estava inserido e investigar o “modo de proceder” desse jesuíta à frente de uma missão em uma área de fronteira. A percepção sobre a Natureza do cenário da missão de Ibiapaba está contida na Carta Ânua resultante dessa missão. Empreendida pelo sujeito do discurso: Pe. Ascenso Gago e, pelo Padre Manuel Pedroso. Carta escrita em 1695 e endereçada ao Provincial, Pe. Alexandre de Gusmão. E tem como propósito descrever o que se tem obrado na missão da Cerra de Ybiapaba desde anno de 93 athe o prezente de noventa e 5. Sendo este o documento escolhido para a análise de discurso. O corpus discursivo da pesquisa é materializado neste artigo levando-se em consideração enunciados do discurso referentes a “natureza do sujeito do discurso” e a “natureza do outro”. Sendo esta última observada diante as etapas da incorporação deste “outro”, discorridas por Elliott: 1) observação; 2) descrição; 3) propagação; 4) compreensão.1 A “sensibilidade metódica” do discurso do jesuíta Ascenso Gago é o que torna esta carta interessante, assim como o contexto em que essa missão estava inserida: América portuguesa do final do século XVII. Essa “sensibilidade metódica” típica dos “Exercícios” de Loyola é bastante presente na carta do missionário, onde é possível encontrar: discernimento metódico ao descrever as nações indígenas com as quais travou contato nas serras de Ibiapaba; descrição de um conteúdo histórico da Nação Tabajara, assim como a descrição de um sentido, ao traduzir o momento em que come um “bicho sustento muito ordinário do gentio”. Utiliza-se neste artigo os elementos teóricos da análise de discurso da linha francesa: sujeito do discurso; contexto histórico; formação ideológica e discursiva desse sujeito, com o propósito de compreender o discurso do Pe. Ascenso Gago presente nessa carta ânua. Sobre o Pe. Ascenso Gago (sujeito do discurso), Serafim Leite na “História da Companhia de Jesus do Brasil” descreve-o como: Missionário do Tobajaras. Nasceu cerca de 1664 em S. Paulo. Entrou na companhia, com 16 anos, a 3 de julho de 1680. Ordenou-se sacerdote em 1692 e fez profissão solene a 24 (não 2) de abril de 1706. 2383

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Email: [email protected] ELLIOTT, John H. El viejo mundo y el nuevo, 1492-1650. Madrid: Alianza Editorial, 1972, p.20. 1 Os enunciados do Pe. Ascenso Gago aparecem neste trabalho sob a forma de texto itálico. 2384

751 ISSN 2358-4912 (Cat. 1707). Principal reorganizador da Missão de Ibiapaba, e o fundador da Aldeia no seu lugar definitivo. “Vir fuit si quis alvis, Brasiliorum saluti studiosissimus”. Faleceu, a 17 de maio de 1717, no caminho de Ibiapaba à Bahia.1 Fator que merece ser ressaltado é que o missionário Ascenso Gago era um missionário nascido nas “terras brasis”, porém, ele não tinha “estas terras” como referência de cultura, como é possível perceber neste enunciado: “se começam a meter bichos à maneira de carochas”; onde o termo carochas: inseto típico de Portugal, é escolhido como “signo referência” nesta tradução. Qual era, então, o contexto histórico em que o Pe. Ascenso Gago estava envolvido? O contexto temporal é o da Idade Moderna. Contexto marcado pelo: Humanismo, Renascimento, Expansão das fronteiras no Ultramar, Absolutismo, Contra Reforma, Concílio de Trento e Reformas Religiosas, assim como, pelo início da formação do “método científico”. É dentro desse período histórico que nasce a Companhia de Jesus. Ordem religiosa fundada, em 1540, pelo “ex cavaleiro” Inácio de Loyola, com o propósito apostólico e missionário em pleno período da Contra Reforma e da Reforma Católica. Os missionários formados por essa ordem religiosa eram, como afirma Cristina Pompa: “obedientes, por um lado à regra expressa nos Exercícios Espirituais e intérprete, por outro, da ideia de cristianismo proposta pela Contra reforma”.2385 Os jesuítas tinham suas atividades regidas por três documentos: os “Exercícios Espirituais” de Loyola, as “Fórmulas da Instituição” e as “Constituições da Companhia de Jesus”. Assim como, tinham sua formação intelectual marcada pelo contexto da teologia humanista neotomista. O aprimorado sistema de troca de correspondências da Companhia permitia que se tivesse conhecimento do que ocorria nas diversas missões jesuítas espalhadas pelo mundo: (...) a documentação jesuítica é de longe a mais completa o que possibilita acompanhar a evolução do que poderíamos chamar de “teologia missionária”, entre filosofia neotomista, o plano eclesiástico tridentino, o sonho utópico e heroico da Conquista Espiritual e a realidade do cotidiano colonial.1 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

De posse dessas informações era possível elaborar as estratégias diante “das novas terras e das novas gentes”: A reflexão (principalmente jesuítica, no caso) sobre a evangelização e sobre seus resultados em terra americana, levou a repensar a prática missionária, dentro de um horizonte mais amplo da nova filosofia da história da igreja contra reformista.2 A missão empreendida pelo Pe. Ascenso Gago ocorre em um período de estabelecimento das fronteiras - resultado da expansão leste-oeste, rumo ao “sertão” do Brasil, iniciada na segunda metade do século XVII. Movimento marcado pelos conflitos envolvendo índios e o que representava o “seu outro”: colonos e outros índios. Conflitos que deram origem a um período denominado de “Guerra dos Bárbaros”: diferentes conflitos, em diferentes áreas de fronteira. O contexto político dessa segunda metade do século XVII é marcado pelo “pensamento vieiriano”, principalmente, pela influência das percepções de Viera dos índios. Compreende que a manutenção da paz com os índios é o melhor modo de proceder, inclusive para a Coroa portuguesa. Entende que essa relação de paz concede à Coroa a possibilidade de conquistar mais vassalos enquanto a Igreja Católica propagava a fé cristã sob os preceitos católicos. Relaciona, assim, os interesses da Coroa ao trabalho missionário realizado pela Companhia de Jesus.2386 Herzog afirma: Uno de los resultados evidentes de una maniobra tal seria demonstrar que al contrario de lo que haya afirmado la mayoria de los historiadores, no hubo necesariamiente una contradicción entre la empresa misionaria y la agenda imperial de Portugal. 1

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/ Rio de Janeiro/ Portugália/Civilização Brasileira, 1938, 10v. 2385 POMPA, Cristina. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. São Paulo: EDUSC, 2003. 1 POMPA, Cristina. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. São Paulo: EDUSC, 2003. 2 Idem. 2386 HERZOG, Tamar. Vieira, Los Jesuitas y La Formación de una frontera entre Portugal y España en el Nuevo Mundo.

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ISSN 2358-4912 Ainda de acordo com Herzog, o pensamento de Vieira colocava que “sólo la acción misionaria garantizaba la lealtad (y sujecion) al rey, (...)”. Assim: Presenteando a si mismos como descubridores, pacificadores y conquistadores, los miembros de las órdenes religiosas argumentavam que sus actividades expandián no sólo la iglesia (por insertarse em ella nuevos mimbros) sino también el estado (que aumentava sus vasallos).1 A missão da Ibiapaba é compreendida em três fases. Na primeira delas em 1607, os padres Francisco Pinto e Luiz Figueira tinham como objetivo evangelizar os “gentios” e abrir caminho até o Maranhão. Esta expedição propiciou um reconhecimento da região em seus aspectos geográficos e étnicos. Entretanto, chega ao fim com a “morte violenta” do padre Francisco Pinto pelos índios do grupo tocarijus. Com o apoio do padre Antônio Vieira, Superior da Companhia de Jesus no Maranhão, foi iniciada entre 1656 e 1662, a segunda fase da missão da Ibiapaba empreendida pelos padres Pedro Pedrosa e Antônio Ribeiro. Após essas duas missões, são enviados os padres Ascenso Gago e Manuel Pedroso sob a ordem de fundar uma aldeia: “havia de aldear o gentio de língua geral (segundo a ordem que trouxe)”. Estabelecem definitivamente no ano 1700, a aldeia Nossa Senhora da Assunção. Esse contexto histórico político cultural marca as formações ideológicas e discursivas do Pe. Ascenso Gago, que tem em seu discurso atravessamentos da ordem das ações reformistas da Igreja Católica da segunda metade do século XVII e do contexto colonialista de expansão das fronteiras e dos vassalos da Coroa. Assim como do contexto de formação do conhecimento científico. Sobre a Natureza, o conceito desta é admitido por Lenoble como “(...)um conjunto, isto é, uma ordem, >”2. A Natureza analisada aqui sob dois tipos: “natureza do sujeito do discurso” e “natureza do outro”. Posto os contextos e discorrido sobre a Natureza, convém atentar sobre a tradução feita pelo jesuíta. A tradução é compreendida como uma descrição de “coisas” a fim de criar “imagens” para aquele(s) que não se encontra(m) naquele espaço; sendo marcada, no caso dos jesuítas, pelo seu modo de proceder diante uma “outra natureza”, seja para justificar esse modo de proceder seja para reforçar o pedido contido na carta. Na historiografia, o conceito de tradução é tratado por Pompa, como: “leitura e versão de uma realidade complexa”1. Para Maia, a tradução é preenchimento de um “vazio” que cria, assim, uma imagem daquele “outro” desconhecido2. Sendo assim, o trabalho de tradução dos missionários foi importante para alcançar a compreensão sobre este “outro desconhecido” e confeccionar imagens para “tapar o vazio” na imaginação daqueles que não se faziam presentes naquele espaço. Essas imagens permitiam traçar estratégias e táticas para “enfrentamento” desse “outro”. Assim, quanto mais aproximada a tradução estivesse da “realidade” dessa outra “alteridade”, “mais fácil” seria o caminho para alcançar a sua “compreensão”. Portanto, não era em vão, o envio de um etnógrafo, como era o caso do Pe. Ascenso Gago, para uma região onde estava a maior concentração de nações indígenas das terras brasis. Para Lenoble, “as coisas” que formam a Natureza “estão submetidas a uma lei”. E que: (...) bastar-nos-á conhecer estas leis para nos situarmos a nós mesmos no nosso lugar neste conjunto, para entrar nele e não nos deixarmos mais dominar por ele – e isso será uma primeira conquista. Depois, dir-se-á um dia: se conhecermos as leis, podemos, pois, servi-nos das coisas e tornar-nos ‘donos e senhores’ da natureza, e isso será uma segunda fase. (LENOBLE, p.185)

Sob o propósito edificador de formação de novos missionários - característica de uma carta ânua – percebe-se nesse discurso, enunciados que denotam: obediência: “(segundo a ordem que trouxe), procurei em primeiro lugar pacificá-los”; santificação pessoal: “(....) porque como estivessem todos em 1

HERZOG, Tamar. Vieira, Los Jesuitas y La Formación de una frontera entre Portugal y España en el Nuevo Mundo. LENOBLE, Robert. História da ideia de natureza. Lisboa: Edições 70. 1990, p.184. 1 POMPA, Cristina. Leituras e traduções: o Padre Francisco Pinto na Serra de Ibiapaba. Ilha, Florianópolis, v. 1, n. 0, p. 139-167, 1999. 2 MAIA, Lígio de Oliveira. Cultores da Vinha Sagrada. Missão e tradução nas Serras de Ibiapaba (séc. XVII). 2005. 2

753 ISSN 2358-4912 guerra e inimizade não me foi possível achar quem de minha parte quisesse ir falar com eles (...). Pelo que me resolvi a fazê-lo eu por mim mesmo”; caráter apostólico: “fizemos em chegando, logo igrejas não grandes, por não haver ainda modo para isso, porém quanto fosse suficiente para doutrinar e ensinar aos de língua geral” - caracteres típicos da ordem jesuítica. Tradução muito importante tendo em vista o contexto de expansão das fronteiras tanto católicas quanto da Coroa portuguesa: o que requeria “bons missionários”. A “natureza do sujeito do discurso”, em questão, “age sobre o mundo” obedecendo duas ordens: a ordem expansionista de estabelecer uma aldeia; e a ordem “científica” de formar um conhecimento sobre algo. Elliott considera que foram vários os obstáculos que dificultaram a incorporação do “Novo mundo”: “Hubo obstáculos de tiempo y de espacio, de herancia, de entorno y de lenguaje; y se necesitaron de muchos esfuerzos de diferentes niveles para que fuesen salvados”. Designa, assim, quatro etapas diferentes para a incorporação dessa outra alteridade: 1) Observação; 2) Descrição; 3) Propagação; 4) Compreensão. Obedecendo a “ordem científica”, o sujeito do discurso - o Pe. Ascenso Gago – descreve esse outro sob caracteres: geográficos: “(...) começa pela parte do norte do Rio Pará ou por outro nome Paranaíba pelo qual se distingue do grande Rio das Amazonas que também se chama Pará”; históricos: “(...) segundo se acha em os anais de suas próprias memórias”; e de âmbito etnográfico distinguindo as nações que travou contato: “(...) nos costumes não difere muito do Tapuia Reriú”. Observa-se que é uma tradução das “coisas” que já estavam incorporadas à “bagagem mental do europeu”, sendo, por isto, utilizada para construir um “conhecimento” de “caráter científico” sobre esse “outro”. Descrições que darão vazão, no século XIX, a Ciências como a Antropologia e a Geografia.1 Posto isto, é entendido aqui que o modo de proceder do Pe. Ascenso Gago frente a estes caracteres da “natureza do outro”, citados acima, é marcado pelo olhar “científico” do jesuíta. Apresentando inclusive em um documento cuja regra era a de objetividade, sensações ao provar um alimento ordinário do sustento dos índios: “É este bicho sustento muito ordinário do gentio e eu o comi já, por necessidade, o qual (vencido o primeiro e natural asco e horror da natureza) é em si gordo e bastante gostoso” – enunciado entendido neste artigo como uma metáfora do processo de incorporação desses caracteres da “natureza do outro”. Enunciado que tem como marca a descrição do sentido, obedecendo as minúcias dos “Exercícios” de Loyola e os critérios do “método científico”. A tradução de alguns costumes do particular dos seus casamentos (poligamia) e costumes sociais (bebedices constantes) da “natureza do outro” é entendida neste artigo dentro da etapa da “compreensão”. Tendo como propósito de com a compreensão dessa “outra alteridade”, é possível justificar seu modo de proceder frente a ela e possibilitar o estabelecimento de táticas e estratégias para atender melhor ao que se almeja. Sob esses caracteres da “natureza do outro”: bebedices e poligamia, o modo de proceder do Pe. Ascenso Gago foi marcado pelo ato estratégico da “dissimulação”, guiado pela “prudência jesuítica” seja diante as bebedices: “É muito dificultoso o tirar-lhes estas bebedices, e nestes princípios convém permitir-lho porém ao menos temos acabado com eles não haja brigas nem feridas”; seja diante a poligamia de algum Principal: “(...) Só um Principal conserva ainda duas que tem, ambas irmãs, com o qual dissimulamos ainda, por justas causas”. Ou seja, um modo de proceder mais “tolerante” foi a melhor tática diante estes costumes, tendo em vista o contexto de “tensão” em que a missão estava inserida: formação de fronteiras (culturais e físicas) e atenção à ordem (obediência do jesuíta) de estabelecimento de uma aldeia. Convém lembrar que as missões anteriores tinham tido problemas com algumas nações indígenas, sendo um dos episódios recordado pelo próprio Pe. Ascenso Gago: “nessa mesma missão mataram os Tapuias chamados Caicaís ao Padre Pedro Pinto, haverá 40 anos, ao mesmo tempo que o Padre os estava pacificando”. Esse modo de proceder do Padre Ascenso Gago é claramente atravessado pelo caráter reformista que a Igreja Católica estava disposta a atender. Marcando a “acomodação” frente a este “outro desconhecido”1. Podendo ter acarretado importantes consequências seja no contexto cultural, ao V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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PINHO, L. G. Jesuítas, antropologia e contexto colonial luso-brasileiro: uma reflexão sobre a formação do conhecimento em ciências humanas. Locus (UFJF), Juiz de Fora, v. 09, n.01, p. 101-112, 2003. 1 Segundo o “Dicionário das ciências sociais”, acomodação é: “(...) uma forma de adaptação de uma coisa a outra”.

754 ISSN 2358-4912 consentir momentos de bebedices contínuas: costume que tinha relação com alguns rituais dos índios, aparecendo inclusive no discurso do missionário ao descrever um ritual com meninos da nação tabajara: Tanto que os meninos tem sete para oito anos, os fazem professar esta arte. Assim como, consequências políticas com a “concessão de poderes” a alguns Principais que marcaria o período posterior na Serra de Ibiapaba. Outro caractere da “natureza do outro” que aparece na tradução do jesuíta é de ordem política e é compreendida aqui atendendo à etapa de propagação, onde o objetivo era divulgar novos dados: “(...) la difusión de nueva información, de nuevas imágenes y de nuevas ideas, de tal manera que llegasen a formar parte del bagaje mental comúmmente aceptado”2. Sendo esta etapa de propagação teoricamente já suprimida pelo grau de alcance da atividade epistolar da Companhia de Jesus. Pode-se dizer que é um “novo aspecto” que está sendo observado, pois ainda se encontra na “fase inicial” do contato com este “outro”, onde não foi fundamentado uma compreensão sobre este caractere da “natureza do outro” nem muito menos foi possível inferir sobre ela um “olhar científico”. O propósito desta tradução é propagar este aspecto de ordem política da “natureza do outro”, criando uma imagem “positiva” sobre ele, sendo sua imagem construída sob os seguintes enunciados: É esta nação Tobajara, entre todas as do Brasil, a de melhor juízo; São eloquentes; propõem qualquer negócio com boas razões e polideza de palavras; Tem natural apetite a honras e postos. A exaltação desse caráter político do índio pode ser interpretado levando-se em conta o “petitio” da carta, no qual o Padre Ascenso Gago “pede” que sejam concedidas sesmarias a essas nações.

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Considerações Finais Este trabalho tentou “traduzir” a partir da análise de discurso, a tradução feita pelo Pe. Ascenso Gago da missão da Serra de Ibiapaba. Foram observando elementos teóricos da tendência francesa de análise de discurso: o sujeito do discurso, a formação ideológica e discursiva. Entende-se que cada documento: carta, relatório, tratado, mesmo atendendo a propósitos comuns maiores (no caso, o da Igreja católica e o da Coroa Portuguesa) possui sua “singularidade”. Sendo esta identificada aqui pelo: “caráter científico” com o qual o discurso se apresenta; pelo modo de proceder desse jesuíta, haja vista que mesmo imbuídos da mesma formação intelectual e discursiva, os padres das missões anteriores não empreenderam em sucesso, como a missão do Pe. Ascenso Gago; e pela justificativa apresentada ao enaltecer a natureza política do índio com o fim, entendido aqui, de justificar o “petitio” da carta: concessão de sesmarias. Portanto, o que este artigo pretende é “traduzir” uma tradução. Referências ASSUNÇÃO, Paulo. A terra dos brasis: a natureza da América portuguesa vista pelos primeiros jesuítas (1549-1596). São Paulo: Annablume, 2000. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola.. Paris: Éditions Du Seuil, 1971, p. 47. EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. ELLIOTT, John H. El viejo mundo y el nuevo, 1492-1650. Madrid: Alianza Editorial, 1972. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 6a edição,1998. HERZOG, Tamar. Vieira, Los Jesuitas y La Formación de una frontera entre Portugal y España en el Nuevo Mundo. In: Pedro Cardim, Caetano Sabatini (org.). Antonio Vieira e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: CHAM, 2011, p.175-179. KOCH, Ingedore G. Villaça. Inter-ação pela Linguagem. Editora Contexto: São Paulo, 2006. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/ Rio de Janeiro/ Portugália/Civilização Brasileira, 1938, 10v. LENOBLE, Robert. História da ideia de natureza. Lisboa: Edições 70. 1990.

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RELAÇÕES TRANSFRONTEIRIÇAS NO VALE DO RIO BRANCO (1790-1822)2387 Lodewijk Hulsman2388 Introdução O vale do rio Branco funcionou desde a pré-história como uma conexão entre a bacia do rio Amazonas e as bacias do rio Essequibo e Orinoco. Depois do tratado de Madrid em 1750, a política pombalina procurou estabelecer o domínio português nessa região confrontando espanhóis e holandeses, os quais mantiveram relações transfronteiriças com os povos indígenas. Depois da construção do Forte de São Joaquim em 1775, a criação do gado bovino foi introduzida e muito bem sucedida a ponto de gerar um comércio de carne salgada com os holandeses no Rupununi. Apesar do esforço do governo colonial de Portugal, esse comércio continuou mesmo depois que as colônias holandesas se tornaram Guiana Inglesa em 1814. A presente contribuição procura explorar essas relações transfronteiriças no interior das Guianas num período turbulento da história colonial da região. O Vale do Rio Branco O rio Branco é formado pela confluência do rio Tacutu, que desce da Serra Pakaraima na fronteira da República Cooperativa da Guyana e o rio Uraricoera, que nasce na Serra do Parima, na fronteira da Venezuela, trinta quilômetros a norte de Boa Vista, capital do estado. O rio Branco segue um curso sul-sudoeste para 482 milhas (775 km), antes de se juntar ao rio Negro, um dos principais afluentes do Amazonas, através de vários canais. O curso inferior do Branco é facilmente navegável, mas o curso superior contém inúmeras corredeiras. Em períodos de seca o nível da água cai acentuadamente, tornando a viagem entre Boa Vista, capital do Estado, e do Rio Negro difícil. O vale do Rio Branco pode ser considerado como um importante caminho pré-histórico que ligava os povos que viviam na bacia amazônica com a costa atlântica das Guianas pelos rios Rupununi e Essequibo. Sítios arqueologicos revelaram petróglifos e objetos líticos que testemunham esse trafego.2389 Em um mapa espanhol do século XVI que retrata Guiana, se encontra uma referência que o cacique aruaque Jaime passou em 1553 com quatro pirogas pelo rio Essequibo para o rio Amazonas.2390 Os primeiros mapas da Guiana retratam um lago enorme chamado de Parime ou Rupununi onde se situava a cidade mística Manoa que era a sede do El Dorado. Muitos historiadores rejeitaram posteriormente essa cartografia como imaginária, mas estudos recentes de biólogos mostram que cada ano se inunda uma área de 3,480 km² pelas chuvas, o que possibilita um intercâmbio entre os peixes da bacia atlântica e a bacia amazônica.2391 De qualquer jeito pode se constatar que o Rupununi forma um corredor natural entre o Atlântico e o rio Amazonas que funciona desde a pré-história até hoje como um caminho para a circulação de pessoas e objetos.2392 2387

Esta apresentação faz parte do projeto Fazenda e Trabalho na Amazônia: o caso da criação bovina em Roraima -pósdoc CAPES/PNPD - sob a supervisão do Prof. Dr. Alberto Carlos Marinho Cirino. 2388 CAPES/UFRR [email protected]; [email protected]; [email protected]. 2389 DUBELAAR, C.N. South American and Caribbean petroglyphs. Dordrecht, 1986; VIDAL, Silvia M. Kuwé Duwákalumi: The Arawak Sacred Trade Routes of Migration, Trade and Resistance. Ethnohistory 47: 3-4, American Society for Ethnohistory, 2000, p. 635-667; WILLIAMS, Denis. Prehistoric Guiana. Miami, 2003. 2390 Question des limites sou mise a l'arbitrage de S. M. le Roi d'Italie par le Brésil et la Grande-Bretagne - Annexes du Premier Mémoire du Brésil, vol. I. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1903. 2391 LESLEY S. de Souza, Jonathan W. ARMBRUSTER & David C. WERNEKE. The influence of the Rupununi portal on distribution of freshwater fish in the Rupununi district, Guyana. In Cybium 2012, 36(1), p. 31-43. 2392 HUMBOLDT, A.F. Von Orinoko zum Amazonas; Reise ín die Aquinoktialgegenden des neuen Kontinents nach der Ubersetzung von Herman Hauff, bearbeitet von Adalbert Plott herausgegeben und mit einer Einfuhrung Versehen von Adolf-MeyrAbich. Wiesbaden: FA. Brockans, 1959; DALTON, Henry G. The History of British Guiana: Comprising a General Description of the Colony; a Narrative of Some of the Principal Events from the Earliest Period of Its Discovery to the Present Time;

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ISSN 2358-4912 O Tratado de Madrid e o Vale do Rio Branco O primeiro contato histórico entre holandeses e portugueses no vale do Rio Branco foi registrado em 1740, quando Nicholas Horstman, um explorador Alemão a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, que governou a colônia holandesa de Essequibo, penetrou na área e acabou sendo preso pelas autoridades portugueses. A presença portuguesa na época se limitou para atividades junto aos missionários e tropas de resgate à procura de escravos indígenas.2393 A documentação histórica do litígio entre Brasil e Inglaterra sobre a questão do Pirara documenta que produtos holandeses foram encontrados na bacia amazônica pela expedição de Pedro Teixeira em 1637, mas não tem documentação sobre o papel dos holandeses nesse comércio. Os diplomatas brasileiros argumentavam contra as pretensões territoriais dos ingleses que o comércio desses manufaturados era uma atividade exclusiva da população indígena.2394 A primeira fonte que documenta a presença de comerciantes holandeses é o relato de Gerrit Jacobsz que visitou o vale do Rio Branco em 1718. Provavelmente outros possam ter visitado o lugar antes de Jacobsz, contudo, não há documentação que possa comprovar tais viagens.2395 A relação entre espanhóis e holandeses no Oeste das Guianas continuou ambígua apesar do tratado de paz de Münster entre Espanha e a República Neerlandes de 1648. Nesse tratado a Espanha concedeu a legitimidade jurídica das colônias holandesas na costa da Guiana, abdicando assim o direito concedido no Tratado de Tordesilhas.2396 Os caribes no Orinoco que resistiam a imposição do governo espanhol mantiveram um comércio vivo com os holandeses do Essequibo para obter mercadorias europeias que foram importantes para estabelecer seu domínio sobre os povos indígenas na região. Entretanto, a decadência do governo de Habsburgo, no final do século XVII, impediu qualquer expansão territorial a partir da chamada Província de Nuevo Granada, porção oriental da Venezuela colonial.2397 Porém essa situação se transformou depois da guerra da sucessão espanhola (1702-1714). O conflito terminou com o tratado de Utrecht (1713-1714) que confirmou a acessão do Rei Felipe V da casa de Bourbon ao trono da Espanha. O novo governo estimulou o desenvolvimento da colônia de Nuevo Grenada e a administração colonial foi reorganizada. A República Neerlandesa e Espanha confirmaram a legitimidade das colônias holandesas nas Guianas e o direito de cidadãos de ambas as nações se deslocarem livremente a partir de um tratado firmado em 1714.2398 Porém, a incerteza e indecisão nessa região periférica do império espanhol foram substituídas por uma política de expansão ativa para conter as incursões de franceses, ingleses e holandeses. As missões dos Jesuítas, Franciscanos e Capuchinos foram um instrumento importante para estabelecer a presença colonial na região no período 1730-1750.2399 A ocupação do vale do Rio Branco foi marcadamente importante depois do tratado de Madrid em 1750, ocasião em que Espanha e Portugal procuravam definir suas fronteiras coloniais na Amazônia. Portugal havia estendido seu domínio além da linha de Tordesilhas e ambos os governos estavam conscientes de que era necessário formular um novo acordo diplomático. O conflito principal concentrou-se na colônia portuguesa de Sacramento na região do Rio de la Plata, mas a fronteira na Amazônia inteira gerou conflitos menores pelas atividades de missionários e bandeirantes paulistas.

Together with an Account of Its Climate, Geology, Staple Products, and Natural History, Vol.1. London, 1855; FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões : os povos indígenas no rio Branco e a colonização. São Paulo, SP Paz e Terra, 1991. 2393 HEMMING, J. Roraima: Brazil's Northernmost Frontier. Research paper 20. London: Institute of Latin America Studies, University of London, 1990, p. 2. 2394 RIO BRANCO, Barão do. Obras, vol. 2: Questões de limites -Guiana lnglesa. Rio de Janeiro, 1945, p. 124; HULSMAN, L.A.H.C. Nederlands Amazonia; handel met indianen tussen 1580 en 1680. UVA, Amsterdam, 2009. 2395 HULSMAN, L.A.H.C. Routes of the Guiana’s: a voyage from Suriname to the Rio Branco in 1718, In: OLIVEIRA, Reginaldo GOMES & IFILL Melissa (Orgs.). Dos caminhos históricos aos processos culturais entre Brasil e Guyana. Boa Vista: EdUFRR, 2011. 2396 Goslinga The Dutch, 1971, p. 312-313; ISRAEL, J.I. The Dutch republic. Oxford, 1998. 2397 WHITEHEAD, N.L. Lords of the Tiger Spirit. Dordrecht, 1988, p. 95-114. 2398 GOSLINGA, CORNELIS CH. The Dutch in the Caribbean and in the Guianas, 1680-1791. Assen, 1985, p. 437. 2399 WHITEHEAD, Lords of the Tiger Spirit, 1988, p. 104-105.

758 ISSN 2358-4912 As atividades dos bandeirantes estenderam-se para o Rio Negro e o alto Orinoco gerandoconflitos com os missionários espanhóis que procuravam estender seu domínio na região.2400 Ambos os governos concordaram de instituir comissões para delimitar as suas fronteiras depois de concluir o tratado de Madrid. A Real expedición de Límites espanhola chegou em 1754 em Cumaná, o capital do Nuevo Granada. O objetivo da empresa sob o comando de José Ituriaga era delimitar a fronteira na Guiana ocidental e a região do Rio Negro. O plano era que as comissões da Espanha e Portugal se encontrariam no Rio Negro.2401 Na realidade, a Real expedición se concentrou na pacificação da região do Orinoco. Forças militares se concentraram e as entradas dos padres capuchinos na região da Imataca se intensificaram. Em 1758 o posto holandês no rio Cuyuni foi atacado e destruído por forças espanholas. Gradualmente os caribes rebeldes foram forçados de se retirar do rio Orinoco para o interior. Padre Caulin que acompanhou a Real expedición escreveu que os Caribes mantiveram o comércio com a população indígena no Orinoco através do rio Uraricoeira, o qual desemborca no rio Branco.2402 Em 1763, José Solano foi nomeado governador de Guayana e logo começou um projeto para construir uma nova capital em Angostura. Solano conseguiu providenciar a nomeação de Manuel Centurion como governador da Guiana em 1765. Centurion era firmemente anti-clerical e instrumentalizou a remoção dos jesuítas depois desses terem perdido o poder no império espanhol em 1767, tal como tinham sido forçados a sair do Brasil por Pombal. Centurion finalmente forçou para que os Carib ficassem longe do Orinoco e sob seu comando, os espanhóis não só se infiltraram na Guiana Holandesa, mas também cruzaram a cabeceira dos rios Paragua, Caroni e Caura, de modo a atingir o rio Uraricoera.2403 Os espanhóis estabeleceram entre 1773 e 1775 três postos fortificados no rio Uraricoera chamados de San Juan Batista de Cadacada, Santa Bárbara de Curaricara e Santa Rosa de Curariscaspra. O comandante holandês do Essequibo, chamado Trotz, preferiu não tomar nenhuma ação, mas os portugueses perceberam essa presença espanhola como uma ameaça direta à sua integridade territorial. Tinoco Valente, o Governador da Capitania do rio Negro, tomou medidas para expulsar os espanhóis do alto Rio Branco. Ele organizou uma expedição de Barcelos e a fortaleza de São José do rio Negro foi colocada sob o comando do capitão engenheiro Philipp Sturm. Os Portugueses conquistavam a fortificação espanhola chamada Cadacada em novembro 1775. Os espanhóis abandonaram em seguida suas outras posições e um contingente espanhol que retornou depois de ter explorado as Montanhas Kunuku - na Guyana moderna – tornou-se prisioneiro dos portugueses em Janeiro de 1776.2404 Capitão Sturm, então, construiu uma fortaleza - chamada Forte de São Joaquim - perto da confluência do rio Uraricoera com Tacutu. “A mão-de-obra foi fornecida pelo vizinho Aldeamento São Felipe localizado no Rio Tacutu. Parte do armamento do Forte foi trazida do Grão-Pará e outra parte foi tomada dos espanhóis durante confrontos entre soldados espanhóis habitantes do Rio Branco que foram expulsos pelos portugueses”.2405 O governador da Guayana, Centurion, opôs-se à ação portuguesa, argumentando que a área em questão não era portuguesa, mas território espanhol. Tinoco Valente argumentou que a área era e sempre tinha sido portuguesa e se recusou a acomodar Centurion.2406 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A introdução do gado no Vale do Rio Branco

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REIS, A. C. Ferreira. Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira, A fronteira com as Colônias Espanholas Vol.2. Belém, 1993. 2401 REIS, Limites 1993, p. 71-83; 102-107. 2402 WHITEHEAD, Lords of the Tiger Spirit, 1988, p. 126-127. HARRIS, C.A. and J.A.J. DE VILLIERS. Storm Van ’s Gravesande, the Rise of British Guiana, Compiled from His Despatches. London: Hakluyt, 1911. 2403 WHITEHEAD, Lords of the Tiger Spirit, 1988, p. 128-129. 2404 Question des limites 1903, p. 151 – 162. 2405 OLIVEIRA, Reginaldo Gomes de. A herança dos descaminhos na formação do Estado de Roraima. PhD USP, São Paulo, 2003, p. 91. 2406 Question des limites 1903, p. 163-175.

759 ISSN 2358-4912 As fontes históricas indicam que a criação bovina em Roraima começou no final do século XVIII com gado oriundo da Amazônia espanhola. “Assim, o Coronel Lobo d’Almada fundou na região uma das primeiras fazendas particulares, denominada São Bento. Seguindo o mesmo modelo, o próprio comandante do Forte São Joaquim, Sá Sarmento, instalou uma fazenda (São Marcos) nas proximidades do Forte. Ao mesmo tempo, um rico morador do rio Negro, o capitão José Antonio Évora, instalou também uma fazenda denominada São José”.2407 Lobo d’Almada escreveu em 1787 que a introdução do gado tinha várias vantagens. Evitaria o estrago que se fez nas tartarugas por aproveitar-se só em pequena parte dos animais que foram mortos; outra vantagem seria a carne seca para abastecer povoações na capitania, ademais, a criação do gado faria também crescer os rendimentos reais pelo pagamento de impostos.2408 Naquele ano o forte dispôs de um complemento de 42 praças (soldados) dos quais oito ficaram em aldeias.2409 Conego Andé Fernandes de Sousa escreveu no seu relato que Lobo d’Almada encontrou em 1793 gado depois de ter expulsado os espanhóis da Vila de Ega, hoje chamado de Têfe. Esse gado foi enviado por Lobo d’Almada para formar uma fazenda no vale do Rio Branco. Notificando que Lobo d’Almada também comprou dois casais de “bestas muares”,- mulas ou jumentos- da Espanha por “via do comandante de S. Carlos.” O gado de Évora foi comprado em vários povoações da Capitania do Rio Negro, enquanto o gado do comandante Sá Sarmento foi comprado da fazenda do Rei com o nome de S. Marcos. O gado no vale do Rio Branco se multiplicou, pois, após a morte de Lobo d’Almada por descuido dosseus herdeiros, o gado se espalhou nas savanas. Mesmo assim o gado continuou a se multiplicar tanto a ponto de expandir o comércio dos holandeses de carne bovina salgada. Exportavase além da carne salgada, couro, manteiga e queijos para Barcelos. Segundo Fernandes de Sousa a fazenda do Rei e a do Sarmento “ofereciam a mesma profusão e abundância, em quanto não foram addidas ao cuidado dos comandantes militares do forte S. Joaquim”. Fernandes de Sousa escreveu que depois da morte de José Antonio Évora, o seu herdeiro acabou de perder a posse da fazenda que em 1815 foi unida com as do Rei e do Sarmento.2410 O papel da Espanha na introdução do gado no Vale do Rio Branco é interessante por várias razões. Em primeiro lugar deve se destacar que a introdução do gado na Amazônia Venezuelana pelos espanhóis começou no início do século XVII quando Fernando de Berrio introduziu a gado na região do Orinoco, resultando em um rebanho estimado em 50.000 cabeças em 1637.2411 As missões dos padres Capuchinos na missão Divina Pastora no rio Yuruari mantiveram 145.000 cabeças de gado em 1772, enquanto isso, o governo de Guyana só controlava 14.000 cabeças.2412 O primeiro rebanho no Vale do Rio Branco aparamente provinha da criação espanhola. Outro aspecto é a falta de comunicação entre o rebanho espanhol na Guyana e o gado no Vale do Rio Branco. Apesar da referência do gado provindo dos espanhóis na Amazônia não tem nenhuma informação sobre a introdução do gado dos grandes rebanhos da Guyana no Vale. A concentração de fazendas de gado na região do Uraricoeira no final do século XIX talvez possa ser uma indicação desse processo.2413 O comércio do gado e cavalos da Guyana para a colônia holandesa do Essequibo já era importante na segunda metade do século XVII. Contudo, a importância só aumentou no século XVIII com a expansão da agricultura em forma de plantages, sendo essas de fazendas de cana de açúcar, café, algodão e cacau mantidas com o trabalho de africanos e indígenas escravisados. O comércio de carne V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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OLIVEIRA, A herança dos descaminhos, 2003, p. 103; AMOROSO, MARTA ROSA, NÁDIA FARAGE (ed.) Wilckens, Henrique João e Alexandre Rodrigues Ferreira. Relatos da fronteira amazônica no século XVIII : documentos. São Paulo NHII-USP, 1993. 2408 LOBO D'ALMADA, M. Gama. Descrição relativa ao Rio Branco e seu território. In Rev. Trimestral do Inst. Historico Geographico e Ethnographico do Brasil, vol. XXIV, Rio de Janeiro, [1787] 1861, p. 663. 2409 LOBO D'ALMADA, M. Gama. Descrição, 1861, p. 683. 2410 FERNANDES DE SOUZA, A. Noticias geographicas da Capitania do Rio Negro na grande Rio Amazonas. In RIHGB, vol. X, [1848] 1870, p. 455-457. Esse documento dedicado ao emperador Pedro primeiro não é datado, mas deve ser datado antes de 1830 quando Pedro I abdicou. As referências no texto não passam de 1820, sugerindo que o texto devia ser escrito depois de 1822. 2411 WHITEHEAD, Lords of the Tiger Spirit, 1988, p. 72. 2412 WHITEHEAD, Lords of the Tiger Spirit, 1988, p. 135. 2413 SANTILLI, Paulo. Fronteiras da República / história e política entre os Macuxi no vale do rio Branco. São Paulo: NHIIUSP, 1994.

760 ISSN 2358-4912 salgada do Vale do Rio Branco para as Guianas holandesas corresponde com a demanda da zona costeira onde uma população cada vez maior necessitava de alimentos para sua manutenção.2414

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A relação do Vale do Rio Branco com Guiana Inglesa Um aspecto interessante dos relatos históricos a respeito do Vale do Rio Branco é a ausência de dados sobre o período 1780-1815 onde as colônias holandesas de Berbice, Essequibo e Demerara gradualmente foram incorporadas no império britânico. O relato de Fernandes de Sousa menciona as relações dos indígenas com holandeses num época em que as colônias já haviam se tornado inglesas. Os ingleses ocuparam Essequibo, Demerara e Berbice pela primeira vez em 1781, mas os franceses expulsaram eles em 1782 e devolveram as colônias para a República Neerlandes em 1784. A Companhia das Índias Ocidentais foi suprimida em 1792 e o governo do Essequibo e Demerara passou para o governo holandês. A instituição da República Batava com apoio da França em 1795 resultou de novo na ocupação das Guianas holandesesas pelos Ingleses em 1796. O domínio inglês durou mais tempo, até 1802 quando a Inglaterra devolveu as Guianas holandesas depois do tratado de Amiens. A renovação da guerra em 1803 resultou na terceira ocupação britânica. O congresso de Vienna confirmou a possesão definitiva das colônias holandesas de Berbice, Essequibo e Demerara para Grã Britania.2415 O comércio entre o Vale do Rio Branco para o Rupununi provavelmente continuou depois que as colonias holandesas foram definitivamente ocupadas pela Grã Bretagna em 1803. Pois, conforme relatou Schomburgk, ao visitar a região no período 1836-1839,2416 ele mesmo encontrou boiadeiros viajando do interior para a costa Aparentamente se desenvolveu uma criação de gado na região do Rupununi no século XIX, mas a relação dessa criação com a do Vale do Rio Branco ainda figura como um tópico histórico pouco documentado. As aparências como o tipo de cavalo, o stilo de corrida (quarter mile) entre outros detalhes, sugerem que existiram, no passado, relações entre os fazendeiros Guyanenses nas savanas do Rupununi e os fazendeiras brasileiros no norte do estado de Roraima. Referências AMOROSO, MARTA ROSA, NÁDIA FARAGE (ed.) Wilckens, Henrique João e Alexandre Rodrigues Ferreira. Relatos da fronteira amazônica no século XVIII : documentos. São Paulo NHII-USP, 1993. Brazil & Britsh Guiana Boundary - Anexos da Memória Inglesa (Question de Ia Frontière entre la Guyane Britannique et le Brésil, Annexes au Mémoire Présenté par le Gouvernement de Sa Majesté Britannique, 1903. Rio de Janeiro, 1903. DALTON, Henry G. The History of British Guiana: Comprising a General Description of the Colony; a Narrative of Some of the Principal Events from the Earliest Period of Its Discovery to the Present Time; Together with an Account of Its Climate, Geology, Staple Products, and Natural History, Vol.1. London, 1855. DUBELAAR, C.N. South American and Caribbean petroglyphs. Dordrecht, 1986. FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões : os povos indígenas no rio Branco e a colonização. São Paulo, SP Paz e Terra, 1991. FERNANDES DE SOUZA, A. Noticias geographicas da Capitania do Rio Negro na grande Rio Amazonas. In RIHGB, vol. X, [1848] 1870, p. 411-504. GOSLINGA, CORNELIS CH.The Dutch in the Caribbean and in the Guianas, 1680-1791. Assen, 1985. _______________________________. The Dutch in the Caribbean and in Surinam 1791/5-1942. Assen, 1990. 2414

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O PORTO DO RECIFE E A ALFÂNDEGA DE PERNAMBUCO Luanna MariaVentura dos Santos Oliveira2417 Introdução As Embarcações que atravessavam o Atlântico buscavam um lugar seguro para atracar, encontrado no Porto do Recife, um ambiente propício. A formação de arrecifes de pedra separava o mar turvo, e proporcionava um ambiente de calmaria, além de limitar a entrada de embarcações, dentro do porto. Segundo Frei Vicente do Salvador se alcançava o porto “ao se entra pela boca de um recife de pedra, tão estreita, que não cabe mais de uma nau enfiada após outra”2418. A entrada do porto ou poço (seta branca na figura 1, abaixo), estava situada ao norte do Forte do Brum (seta preta na figura 1, abaixo), achava-se a 500 passos ao norte do recife de pedra.2419 O porto (seta azul) estava entre o bairro do Recife e o recife de pedra.2420

Figura 1: MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. Planta da cidade do Recife 04 de 1733. Imagem do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. As dinâmicas comerciais são inúmeras, no Império Português, os fluxos de cargas e de pessoas movimentavam todo o Atlântico. O Porto do Recife estava muito bem posicionado geograficamente, e foi extremamente ambicionado por várias marinhas mercantes europeias, que inúmeras vezes frequentaram o litoral das capitanias do norte, tentaram dominar esse importante entreposto comercial. Confirmando esse interesse, temos na história de Pernambuco o período de dominação dos holandeses na Capitania, que perdurou por mais de duas décadas 1630 a 1654. 2417

O primeiro Autor é mestranda do programa de pós-graduação em História social da cultura regional da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e bolsista Capes [email protected], orientado pela Dra. Suely Creusa Cordeiro de Almeida, Professor Associado I do Departamento de História, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). 2418 PEREIRA COSTA, DA F. A. Anais pernambucanos. Recife, FUNDARPE, 1983 Vol.I pág. 90. 2419 Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambuco (Recife, V. 11, n.60, Dez. 1903)pág.57. 2420 Idem

763 ISSN 2358-4912 Tendo o Porto do Recife, um fluxo de carga e descarga intenso, proporcionava o desenvolvimento do Recife causando um grande inconveniente à sede da Capitania de Pernambuco, Olinda. É relevante frisar, que no decorrer das lutas pela manutenção e melhoramento do Porto do Recife, as pelejas pelo poder entre os agricultores e comerciantes, que tomavam partido, a favor de Olinda ou do Recife serão uma constante. A Câmara que se situava em Olinda, não via com bons olhos, o desenvolvimento da Vila do Recife e tentou de todas as formas boicotar, as melhorias no porto. A Câmara de Olinda era formada por uma nobreza da terra, a açucarocracia local que teria ascendido de status após a guerra de restauração, utilizando-se do argumento de ter vencido “a guerra da liberdade divina” a todo o momento para legitimar seus interesses junto à coroa, e lutando contra a emancipação do Recife, para conseguir manter Olinda como sede do governo da Capitania de Pernambuco.2421 O Recife era formado por uma população majoritariamente de portugueses, os quais, não tinham perspectiva na metrópole. Em busca de enriquecimento atravessavam o Atlântico, trabalhando inicialmente como caixeiros viajantes ou “mascateando pelos distritos rurais” ao longo do tempo. Uma parte deles conseguiu se tornar grandes negociantes ou de grosso trato2422 “mercador de sobrado” que faziam o comércio do açúcar com a metrópole e outros Estados.2423 Quando assumiu o governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro2424 ficou do lado dos olindenses, além de afirmar em uma carta enviada ao rei do dia 6 de junho de 1701,2425 que a Alfândega de Pernambuco se achava situada em Olinda, e da preferência dos governadores, em residirem na mesma. Além das vantagens que o Porto de Olinda tinha, onde descarregavam os navios, e “representou ao rei pedindo a construção de um molhe sobre os recifes daquela cidade, com o fim de melhorar o seu porto, e para ali convergir então toda a navegação, ficando em abandono o do Recife.”2426 A resposta ao governador veio através de uma Carta Régia de 23 de dezembro 1701:

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Determinando-lhe, - que de acordo com o engenheiro visse e examinasse o Porto de Recife, por se entender ser mais útil que o de Olinda, e que se devia por todo o cuidado na sua conservação, fazendo-se tudo aquilo que se tivesse por conveniente para melhor surgidouro e conservação dos navios no porto.2427

Em decorrência dessa disputa de poder, a Câmara de Olinda continuou dificultando o termino da obra, no Porto do Recife. Notícia sobre o molhe há até 1707, pois ainda prosseguiam-se seus trabalhos. Solicitava-se a vinda de uma porção de gatos-de-bronze para a junção de pedras. Nenhuma referência apareceu mais sobre esse trabalho, após esta data.2428 Como mencionou a carta régia de 6 de junho de 1701, a Alfândega de Pernambuco ainda se localizava em Olinda2429, porém não sabemos o ano exato, referente a data de transferência da Alfândega de Pernambuco para o velho edifício flamengo da Praça do Corpo Santo, onde se localizou até o ano de 1711. Foi transferida novamente para um prédio na Rua do Trapiche, depois chamada de Rua do Comércio.2430 Por conta de uma carta régia de 4 de fevereiro de 1711 sabemos que foi chamada de “Alfândega Grande das Fazendas de Pernambuco”, nessa mesma carta era determinado a cobrança de um imposto de dez por cento, que acreditamos ser o imposto da dízima da alfândega, sobre todas as

2421

MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda da dos Mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo. Ed: 34, 2003. 2 edição, pág.159. 2422 Na historiografia, o trabalho do Professor George Cabral, Tratos e Mofatras: O grupo mercantil do Recife colonial (1654-1759), da Universidade Federal de Pernambuco é referência em relação ao estudo sobre os “negociantes de grosso trato” que circularam pelo Recife, no período colonial. 2423 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit. 2003. 2 edição, pág.144. 2424 Governou a capitania de Pernambuco de (5 de março 1699 – 3 novembro 1703). 2425 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.4 pág. 457. 2426 Idem 2427 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.4 pág. 457. 2428 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.4 pág. 458. 2429 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.4 pág. 457. 2430 GODOY, José Eduardo Pimentel de. As Alfândegas de Pernambuco. Brasília. Ed. ESAF, 2002. Pág.13.

764 ISSN 2358-4912 mercadorias despachadas com intuito de fortificar a Capitania de Pernambuc Pernambuco, o, sendo a recolha do 2431 imposto feita a cada triênio. A Alfândega de Pernambuco será novamente transferida em 1724, pois a alfândega da Rua Trapiche, já não tinha capacidade de recolha das mercadorias que vinham da Europa, proporcionando os descaminhos e ilicitudes icitudes de mercadorias, e causando grandes danos a Fazenda Real.2432 Seu novo domicílio foi à casa do trapiche2433 de Pedro Mascarenhas, por uma ordem régia de 17 de agosto de 1724, ordenando que se fizessem as obras necessárias na casa, para o bom expediente, sendo a obra custeada, pela Fazenda Real. Na mesma carta se detalha algumas características estruturais da nova sede: “Visto ter casas de sobrado por cima do trapiche, com escadas de pedras para a rua...” sendo o aluguel da dita casa de 320$000 anuais.2434 Na sequência foi iniciada a construção de uma alfândega dentro do Forte do Matos ( letra Q, na figura 2, abaixo), porém uma provisão de 3 de março de 1744, suspendeu a execução da obra, por ser impraticável fazer-se se no Forte. Continuou a Alfândega de Pernambuco Pernambuco no armazém do Mascarenhas (letra A, na figura 2, abaixo), até o ano de 1826.2435 A figura 2 abaixo é uma planta do bairro do Recife, feita pelos engenheiros João Macedo Corte Real e Diogo da Silveira Velloso de 1733, depositada no Arquivo Histórico Ultramarino, Ultramarino, como a figura foi 2436 reproduzida no livro: Atlas Histórico Cartográfico do Recife , a legenda ficou comprometida, porém conseguimos com auxílio de uma lente de aumento identificar que a letra “A”, em 1733 é a “Alfândega que de presente está servindo”,, e “B”, “C” e “D”, os trapiches, sendo a letra “B”, o “trapiche ou ponte da mesma Alfândega”, o “C” o “trapiche por onde se carregam as caixas”, e a letra “D” o “trapiche chamado passo por onde também se carregam caixas.” A letra “Q”, é referente “ o forte forte chamado de Matos em que se aponta fazer a nova alfândega...”2437 a mesma que pela ordem régia de 1744, foi suspensa a construção.2438 V Encontro Internacional nal de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao a XIX)

Figura 2: MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. Página 29, Recife de 1733, levantada pelos engenheiros João Macedo Corte Real e Diogo da Silveira Velloso. Imagem do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. 2431

PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.3 pág. 507. PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.3 pág. 508. 2433 Veja o trapiche na figura 2, letra “B”, na imagem abaixo. 2434 Idem. 2435 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.3 pág. 509. 2436 MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. Página 29, Recife de 1733, levantada levantada pelos engenheiros João Macedo Corte Real e Diogo da Silveira Velloso. Imagem do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. 2437 Idem 2438 PEREIRA COSTA, DA F. A. op. cit. 1983 Vol.3 pág. 509. 2432

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ISSN 2358-4912 Percebemos que a Alfândega de Pernambuco, foi sempre sendo transferida por interesses políticos e administrativos, sendo essa instituição de extrema importância, para fiscalizar e controlar as dinâmicas comerciais da Capitania de Pernambuco. A instituição alfândega, para o sistema aduaneiro português, é uma repartição fiscal que cobra impostos sobre as mercadorias que entram no país. Segundo José Eduardo Pimentel Godoy, em sua obra Dicionário de História Tributária do Brasil, o termo alfândega, “em Portugal remontam a monarquia, e que os impostos alfandegários eram dois, a sisa e a dízima da alfândega, que somavam 20% do valor das mercadorias.” 2439 Na documentação pesquisada, até este momento, em relação à Alfândega de Pernambuco, encontrou-se apenas citado o imposto da dízima da alfândega. O mesmo autor prossegue na explicação do termo, expondo que no Brasil, as aduaneiras foram criadas junto com o sistema de capitanias hereditárias em 1534, sendo todas as aduanas do período colonial marítimas, e integravam as Provedorias da Fazenda de cada capitania.2440 No século XVIII, “as aduanas passaram a ser divididas em secções internas, denominadas “mesas”: Mesa Grande, Mesa de Abertura, Mesa da Balança, Mesa da Descarga, Mesa da Estiva, Mesa da Entrada e Mesa da Saída. Com a extinção das Provedorias da Fazenda Real, a partir de 1770, substituídas pelas Juntas da Real Fazenda, as alfândegas foram sendo emancipadas...”2441

Não sabemos o ano exato dessa emancipação, nem a dimensão desta em relação à Alfândega de Pernambuco, e o que efetivamente ela significou, porém podemos encontrar na documentação que o donativo pago a fazenda real pelos “funcionários” da alfândega, será pago até os anos finais do século XVIII. 2442 Na documentação encontrada no APEJE (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano), identificamos vários “oficiais”, exercendo atividades nas diversas mesas citadas anteriormente, porém a Mesa da Estiva, não foi localizada no período estudado até o presente momento (1793-1799). Encontramos na documentação, dois impostos, os quais são pagos pelos oficiais ao assumirem os cargos, referentes à alfândega que são: o donativo a Fazenda Real, e o imposto do Novo direito. Em relação ao primeiro imposto encontramos no Dicionário de História Tributária do Brasil, o “Donativo dos Ofícios” que era pago sobre o provimento de cargos públicos. Criado em 1722, os cargos eram vendidos em leilão2443. O imposto do “Novo Direito” segundo o mesmo dicionário, que assim se chamava em contraposição aos Velhos direitos de Chancelaria, incidia sobre as nomeações de cargos públicos, as concessões de títulos de nobreza e de pensões, regulamentado pelo Alvará de 11 de abril de 24 de janeiro de 1643. 2444 Percebemos que este período é extremamente complexo, que coexistiram nesse momento várias mudanças em relação à cobrança de impostos sobre produtos que adentravam neste porto do Recife. Primeiramente temos que levar em consideração a criação da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba em 1759 e sua extinção em 1780, a criação da Junta da Real Fazenda e o que ela modifica em relação à administração alfandegária. Outro ponto também é compreender como no final do século XVIII, aparecem novas repartições e novos cargos, como: Intendência da Marinha e a Superintendência do Tabaco na Capitania de Pernambuco, se eles dialogam ou não com a Alfândega de Pernambuco. Buscamos também compreender como a Alfândega de Pernambuco, se articulava no universo colonial. Como a historiografia sobre essa temática é muito escassa, buscamos obras sobre administração e burocracia colonial, como o livro clássico: Fiscais e Meirinhos de Graça Salgado2445, o livro de Angelo Alves Carrara: Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil século XVIII2446 essas 2439

GODOY, José Eduardo Pimentel de. Dicionário de História Tributária do Brasil. Brasília. Ed. ESAF, 2002. pág.27. GODOY, Ibid., pág. 28. 2441 Site: www.receita.fazenda.gov.br/memoria/administracao/reparticoes/colonia/alfandegas/default.asp 2442 APEJE_R.pro 16-1 folha 270 2443 GODOY, José Eduardo Pimentel de. op. cit. 2002. pág. 94. 2444 GODOY, Ibid., pág. 79 2445 SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. 2.ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/ Nova Fronteira, 1985. 2446 CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Ed. UFJF, 2009. 2440

766 ISSN 2358-4912 obras nos auxiliam metodologicamente a trabalhar com a documentação referente à burocracia alfandegária. Porém sobre o tema específico alfândega, encontramos até o presente momento uma coleção da Receita Federal, sobre a Memória Tributada da Receita Federal de José Eduardo Godoy, que não é um historiador de carreira tendo sua formação em Direito2447, no entanto, muito tem auxiliado no desvendamento da história da instituição tratada. No livro As Alfândegas de Pernambuco2448 faz uma breve narrativa sobre a localização da Alfândega de Pernambuco, e expõem alguns oficiais que trabalharam na administração da instituição ao longo de sua existência até a atualidade. Acredito que é relevante salientar que essa obra foi construída com fontes que não estão depositadas em Pernambuco, mas com fontes sobre Pernambuco, depositadas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional e entre outras. Propormo-nos a adicionar informações ao trabalho que ainda não foram muito exploradas pela historiografia, e estão depositadas em nosso estado visando enriquecer nossas discussões, especificamente com as fontes sob a guarda do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano. A riqueza dessa documentação nos possibilitara alargar os horizontes, e analisar a temática de uma forma mais minuciosa. As informações contidas na documentação nos permite analisar, até o presente momento, o cargo ocupado por cada funcionário, o nome, o período em que exerceu o cargo, o donativo pago a Fazenda Real, entre outras especificações, que a documentação irá nos permitir posteriormente cotejar com outras fontes existentes no AHU, e com trabalhos já produzidos pela historiografia como, por exemplo, o já citado do historiador George Cabral que apresenta um perfil dos comerciantes do Recife na primeira metade do século XVIII2449. O trabalho de dissertação de Renata Moreira Ribeiro intitulado “A Alfândega do Rio de Janeiro no período pombalino (1750-1777)”2450, também contribui bastante para nossa pesquisa, pois foi o único trabalho acadêmico encontrado até o presente momento que aborda a temática na segunda metade do século XVIII, mesmo sendo um trabalho sobre a alfândega de outra capitania, possibilita pensar mas sistematicamente nosso objeto, a instituição como um todo que é a alfândega. Grandes questionamentos dentro de nossa pesquisa conseguiram ser sanados, com a dissertação de Renata Moreira, visto que, a elucidação dos impostos que é uma recorrência em nossa documentação, além ter conseguido trabalhar com agentes, que circulavam na Alfândega do Rio de Janeiro e os negociantes da mesma capitania, são informações que ajudam a elucidar e problematizar de nossa pesquisa. Outro trabalho que encontramos que ajudou a elucidar o universo dentro da alfândega foi à dissertação de Valter Lenine Fernandes, intitulada: Os Contratadores e o contrato da Dízima da Alfândega da cidade do Rio de Janeiro (1726-1743)2451. Que aborda as práticas administrativas dentro da Alfândega do Rio de Janeiro, quais eram os oficiais e as funções que eles exerciam na instituição, os descaminhos desses funcionários e os seus próprios comércios. Estes trabalhos nos propiciam a análise e comparação entre as duas instituições, compreender as particularidades da Alfândega de Pernambuco, além da possibilidade de fechar algumas lacunas na documentação pernambucana. Este paper faz parte do trabalho de dissertação, que está sendo desenvolvido e, no qual buscamos esclarecer a localização a Alfândega de Pernambuco, durante todo o século XVIII. Ainda ampliar uma discussão historiográfica, sobre o tema Alfândega, o qual ainda e pouco explorado pela historiografia brasileira. Pretendemos dessa forma, contribuir para o enriquecimento dos estudos sobre as Alfândegas portuguesas, no além mar. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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GODOY, José Eduardo Pimentel de. As Alfândegas de Pernambuco. Brasília. Ed. ESAF, 2002. GODOY, José Eduardo Pimentel de. op.cit. Brasília. Ed. ESAF, 2002. 2449 SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e Mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c.1654-c.1759). Recife, Ed. Universitária UFPE, 2012. 2450 RIBEIRO, Renata Moreira. A Alfândega do Rio de Janeiro no período pombalino (1750-1777). São Gonçalo: UERJ, 2012. 87p. Dissertação ( Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores. São Gonçalo, 2013. 2451 FERNANDES, Valter Lenine. Os contratadores e o contrato da dízima da Alfândega de cidade do Rio de Janeiro (17261743). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010. 217p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010. 2448

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ISSN 2358-4912 Referências BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. CARRARA, Angelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco. Ed. UFJF, 2009. FERNANDES, Valter Lenine. Os contratadores e o contrato da dízima da Alfândega de cidade do Rio de Janeiro (1726-1743). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010. 217p. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010. FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. GODOY, José Eduardo Pimentel de. As Alfândegas de Pernambuco. Brasília. Ed. ESAF, 2002. GODOY, José Eduardo Pimentel de. Dicionário de História Tributária do Brasil. Brasília. Ed. ESAF, 2002. MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda da dos Mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo. Ed: 34, 2003. 2 edição MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. PEREIRA COSTA, DA F. A. Anais pernambucanos. Recife, FUNDARPE, 1983 Vol.1. PEREIRA COSTA, DA F. A. Anais pernambucanos. Recife, FUNDARPE, 1983 Vol. 4. RIBEIRO, Renata Moreira. A Alfândega do Rio de Janeiro no período pombalino (1750-1777). São Gonçalo: UERJ, 2012. 87p. Dissertação ( Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores. São Gonçalo, 2013. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambuco (Recife, V. 11, n.60, Dez. 1903) RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-1808. Revista Brasileira de História. Vol.18. N. 36; São Paulo, 1983. SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. 2.ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/ Nova Fronteira, 1985. SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e Mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c.1654-c.1759). Recife, Ed. Universitária UFPE, 2012.

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O RIO DAS AMAZONAS E O RIO DA PRATA NA CARTOGRAFIA QUINHENTISTA: ESPAÇOS DE FRONTEIRA DA AMÉRICA PORTUGUESA Lucas Montalvão Rabelo2452 O presente artigo procura estudar, nos mapas do século XVI, como o Rio 'das' Amazonas e o Rio da Prata foram sendo identificados às fronteiras do espaço territorial da América Portuguesa. O surgimento deste questionamento se deu com a constatação do mito cartográfico da chamada ilha Brasil presente em exemplares portugueses em fins do Quinhentos. Com o reconhecimento desta construção espacial, por meio dos mapas, cogitou-se uma possível origem ligada a uma associação entre o plano ideal da divisão da América portuguesa e espanhola (Tratado de Tordesilhas) e o progressivo descobrimento dos contornos geográficos do continente (os grandes rios americanos, o Amazonas e o Prata). As fontes utilizadas para verificar estas questões foram mapas regionais (da América do sul ou Atlântico) produzidos por cartógrafos portugueses. Dentre eles encontram-se alguns exemplares como a Terra Brasilis de Lopo Homem, de 1519. Este questionamento insere-se nas perspectivas defendidas pelo autor Braian Harley. Muito mais do que representarem uma “realidade” geográfica, os mapas apresentam nas suas “entre linhas” uma série de intencionalidades do autor e de sua sociedade. O mito da Ilha Brasil2453 O mito cartográfico da chamada ilha Brasil refere-se a ideia de uma junção dos rios da bacia amazônica e da bacia do rio da Prata no interior do continente americano. Em sua obra História do Brasil nos velhos mapas, o autor Jaime Cortesão expõe esse mito. Teria surgido a partir da segunda metade do século XVI através de uma série de cartógrafos portugueses e depois passou para a cartografia universal, notadamente os holandeses, mas também franceses, italianos e alemães. O autor defende o início da aparição do mito no mapa de André Homem de 1559: O mapa de André Homem representa uma nova forma de figurar a unidade brasileira, mas por meio dum traçado extremamente confuso. Verdadeiramente três afluentes do Amazonas, o mais oriental dos quais deve ser o Tocantins, comunicam com o lago central, donde por sua vez nasceu o Paraguai e o Paraná, e com o qual comunicam o Parnaíba, o S. Francisco e mais dois rios, um dos quais o Real. O meridiano de Tordesilhas, traçado na carta, abrange quase todo este espaço insular, incluindo a quase totalidade do vale do Prata.2454

Portanto, o exemplar expõe pela primeira vez a concepção de uma rede hídrica separando as terras portuguesas do restante do continente. A adoção dessa formatação do espaço brasileiro ocorreu em inúmeras cartas do século XVI, XVII e até XVIII. Mas, segundo Cortesão, a última expressão do mito estaria na carta de Nicolas Sanson, de 1650, mesmo que perdurasse até meados do século seguinte. 2452

Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas com a pesquisa intitulada A Representação do Rio ‘das’ Amazonas na Cartografia Quinhentista: entre a tradição e a experiência. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). 2453 Não confundir com a ilha medieval chamada Brasil e localizada possivelmente no Atlântico. Segundo Gustavo Barroso: “No meio de todas essas ilhas que pontilhavam o Mar Tenebroso, a do BRASIL é das que aparecem nos mais antigos documentos cartográficos. Começa a figurar em cartas e portulanos do século XIV, mais ou menos cento e cincoenta anos antes de se descobrir a parte da América meridional destinada a receber êsse nome. Era como que uma ilha caprichosa, “movediça”, que se deixava vêr algumas vezes e logo maliciosamente se sumia no horizonte, se escondia nas brumas, se afundava nos misterios do mar, a ilha APRÓFITAS ou INACESSIVEL a que aludiam certos cartógrafos antigos.” Ver: BARROSO, Gustavo. O Brasil na Lenda e na Cartografia Antiga. São Paulo/Rio de Janeiro/Recife/Porto Alegre: Companhia Editoria Nacional, 1941. 2454 CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos Velhos Mapas. Tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, p. 383.

769 ISSN 2358-4912 Dentro da vigência do mito da ilha Brasil, o mapa de Bartolomeu Velho, de 1561, se destacou. Pela primeira vez surgiu uma lagoa entre as ligações da bacia amazônica e da bacia do Prata. Era a Lagoa Eupana da qual partiria também o rio São Francisco, conhecido como uma espécie de espinha dorsal do território brasileiro. Este modelo foi seguido na carta de cerca de 1600 de Luís Teixeira. Mas a lagoa central no território americano se filiou a tradição espanhola e foi nomeada de Dourado.2455 Segundo Cortesão, as origens dessa lenda estaria ligada ao próprio conhecimento indígena da hidrografia brasileira. Pois, a experiência das migrações dos índios tupi ao longo do território, hoje correspondente ao Brasil, levou a essa crença. As bacias hidrográficas do Amazonas e da Prata se aproximam muito na região entre o rio Guaporé (bacia do Madeira/ Amazonas) e o rio Paraguai (Rio da Prata). Desta forma, os relatos indígenas e a experiência dos navegadores ao longo dos sertões davam crédito a tal ideia. O autor atribui à essa ideia uma importância grande para as diretrizes da expansão lusa e a configuração de seu território na América.2456 Outra autora que abordou a questão do mito da ilha Brasil foi Enali de Biaggi. Em seu artigo L'île Brésil: la force d'un mythe cartographique, ela busca as raízes do mito em uma coformação do espaço americano dentro do Tratado de Tordesilhas. Os portugueses utilizaram mapas que demonstravam suas terras na América, mas tinham um aumento considerável tendo por referência o acordo divisório acertado com os espanhóis. A ilha Brasil seria uma estratégia a partir dos interesses políticos do reino de Portugal para assegurar o domínio sobre uma grande área de terras para além do combinado. Esta estratégia só funcionou porque na época os mapas contavam com algumas deformações provindas dos seguintes problemas: a impossibilidade de estabelecimento da longitude através de cálculos matemáticos e da navegação; dificuldade de estabelecer as posições das embocaduras do rio Amazonas, ao norte, e o rio da Prata, ao sul. Através dessas duas indeterminações foi possível instaurar o mito que favorecia os lusos.2457 E como será visto na sequência, também contribuíram para o estabelecimento dos dois rios americanos como fronteiras das terras lusas. No final do século XVI se consolidou o mito cartográfico da ilha Brasil. Porém, as fronteiras que separavam a América portuguesa baseadas no rio Amazonas e Prata já existiriam ao longo do período no plano cartográfico? V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

As origens das fronteiras da América Portuguesa A proposta deste artigo é analisar, antes da configuração do mito cartográfico da ilha Brasil, como se dava a identificação do espaço luso na América. Dentro desta proposta, os dois rios sul-americanos seriam as fronteiras? Como isso se deu nos exemplares cartográficos e de que maneira representavam os interesses lusos? Para tanto, faz-se necessário voltar-se as origens das fronteiras entre as possessões portuguesas e espanholas. O início do enquadramento do espaço sul-americano ocorreu antes da sua própria identificação, em 1500. Suas origens remontam a divisão oficial estabelecida com o Tratado de Tordesilhas, em 7 de Junho de 1494, assinado pelo rei D. João III, de Portugal, e os Reis Católicos de Espanha. Ficou acertado que o oceano Atlântico seria dividido, em duas partes iguais, a partir de uma linha divisória imaginária traçada 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde.2458 De acordo com o tratado: A suas altezas praz e os ditos seos procuradores e seu nome e por virtude dos ditos seus poderes outorgarã e consentirã que se faça e asyne pollo dito mar oceano huma Raya ou linha direta de poolo a poollo, scilicet, do pollo artico ao pollo antartico que he de norte a sul. A qual Raya ou linha se aja de dar e de direita, como dito he norte e sul. A qual Raya ou linha se aja de dar de direita, como dito he a trezentas e setenta legoas das ilhas do cabo verde pera a parte do ponente por graaos ou por outra maneira como milhor e mais prestes se possa dar de maneira que nõ saiam mais E que todo o que the qui he achado e descuberto e daqui adiante se achar e descubrir por o dito Señor Rey 2455

Ibid, p. 384 e 385. Como bem lembrou a autora Maria de Fátima Costa, Sergio Buarque de Holanda criticou a forma como este mito teria influenciado na expansão lusa. Ver: COSTA, Maria de Fátima. História de um País Independente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade/ Kosmos, 1999, p.139. 2457 BIAGGI, Enali de. “L'île Brésil: la force d'un mythe cartographique.”. In: Mappe Monde nº69, 2003. 2458 Ibid, p. 191. 2456

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ISSN 2358-4912 de purtugual e por seos navios, asy ilhas como terra firme das a dita raya e linha dada na forma suso dita hyndo polla dita parte do levaãte dentro da dita raya aa parte do levãte ou do norte ou do sul della tanto que nõ seja atravessando a dita raya , que esto seja e fique e perteçã ao dito Señor Rey de purtugual e a seus sucesores para sempre jamais; E que todo ho outro, assy ilhas como terra firme achadas e por achar descubertas e por descobrir que som ou fore achadas pellos ditos Señores Rey e Raynha de castella e daragã e etc. e per seos navios des a dita raya dada na forma suso dita hindo por a dita parte do ponente depois de pasada a dita raia pera o ponente ou ao norte ou ao sul della que todo seja e fique e pertença aos ditos Señores Rey e Raynha de castella e de liam e etc. E a seus sucesores pera sempre jamais.2459

De acordo com tratado fica evidente que as referências à divisão do hemisfério terrestre foram feitas a partir das conhecidas ilhas do arquipélago de Cabo Verde. No entanto, a referência geográfica concreta finda aí. Pois, o local exato do meridiano de Tordesilhas não era conhecido na época o que já introduz uma margem a imprecisões. De acordo com Cortesão2460, havia dúvida sobre qual das ilhas do arquipélago seria usada para traçar a linha, e se a contagem da linha seria feita sobre este paralelo ou sobre o Equador. A isso se soma o referido problema na determinação da longitude. O Tratado ainda assegura a permissão da posse de terras descobertas e a se descobrir desde que não sejam controladas por nenhum monarca cristão. O que retirava dos nativos quaisquer pretensões de serem respeitadas suas gerências sobre seus territórios. O acordo acertado entre os monarcas ibéricos era uma consequência direta dos resultados das viagens atlânticas de Cristóvão Colombo. No período, o almirante genovês a serviço dos Reis Católicos tinha encontrado, em 1492, as Antilhas. Ao retornar à Europa, comunicou seu feito ao monarca português, antes de retornar para a Espanha. Seguiu-se uma crescente tensão entre as duas monarquias ibéricas que resultou na solução diplomática do Tratado de Tordesilhas. Foi neste contexto de corrida pelas terras americanas que seguiu-se a descoberta dos dois gigantes azuis sulamericanos. O descobrimento do Rio das Amazonas e do Rio da Prata O descobrimento do rio Amazonas deu-se com a chegada da expedição comandada por Vicente Yáñez Pinzón à sua foz. O objetivo inicial era encontrar um caminho, através do oceano, para se atingir à Ásia. Depois de encontrar terras no atual Ceará, em 24 de janeiro de 1500, a expedição prosseguiu viagem passando pela atual baía de São Marcos, na região da ilha de São Luís, no Maranhão. Na sequência, os espanhóis chegavam ao Rio Pará e depois reconheceram o arquipélago de desembocadura do Amazonas. Era descoberto o então rio Santa Maria de La Mar Dulce e posteriormente chamado de rio Marañon pelos espanhóis.2461 Após este contato inicial, a região foi percorrida por outros navegadores de passagem nos anos seguintes. O grande interesse pelo rio foi despertado, em fins dos anos de 1530, através de uma expedição enviada por Alonso Mercadillo. O desbravamento do rio aconteceu na direção oposta a de Pinzón, da nascente para a foz. Com o objetivo de conquistar os índios Chupacho e Iscaicinga, a expedição visitou locais desconhecidos. Um destacamento de soldados foi enviado para descobrir melhores caminhos na região acabou por descobrir passagem entre o rio Huallaga e o Marañon tendo atingido, possivelmente, a “Província de Machifaro”. Pouco tempo depois, os tripulantes da expedição de Mercadillo se rebelaram, prenderam o comandante e regressaram.2462 Depois desta expedição, outra foi destinada ao rio Amazonas. Ela provinha da grande expedição formada por Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco Pizarro - conquistador do Peru, para buscar o País da 2459

“Tratado de Tordesilhas, segundo o original em português, existente no arquivo de Índias, de Sevilha” in: CORTESÃO, Jaime. Op. Cit., p. 208. 2460 Ibid, p. 190. 2461 MARCOS, Jesús Varela. “Juan de La Cosa: La cartografia de los descubrimientos” In: MARCOS, Jesús Varela (coord.). Juan de La Cosa: La Cartografía Histórica de los Descubrimientos Españoles. Sevilla: Universidad Internacional de Andalucía, 2011, p. 82. 2462 UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de Bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos – séculos XVI-XVII. Manaus: Editora Valer, 2009, p36.

771 ISSN 2358-4912 Canela e o El Dorado. A descoberta da existência de árvores de canela, mas com exploração comercial inviável frustrou os exploradores. Neste contexto de desolação, Pizarro organizou um grupo de espanhóis para irem atrás de alimentos rio acima, para isso nomeou Francisco de Orellana como capitão. Dava-se início a grande jornada ao longo do rio Amazonas: “Em verdade, começava uma epopeia que duraria 9 meses, de dezembro de 1541 a agosto de 1542, e seria a primeira expedição a percorrer quase todo o rio Amazonas até a foz, no oceano Atlântico.2463” Durante a viagem, os espanhóis entraram em contato com inúmeros grupos indígenas, inclusive teriam entrado em contato com índias guerreiras associadas às lendárias amazonas gregas. Diante da importância do rio ‘das’ Amazonas como via de acesso a América e principalmente ao Peru, os próprios portugueses cogitaram lançar uma expedição para desbravá-lo depois da viagem de Orellana. Era uma viagem proposta por Diogo Nunes de Quesada, espanhol, e o português João de Sande que buscavam convencer o monarca português da importância do ato. No entanto, ela não foi realizada.2464 O rio da Prata foi descoberto em 1515 pelo cosmógrafo e primeiro piloto espanhol, Juan Díaz de Solis. Ao subir o então rio de Solis, se depararam com uma tribo de indígenas canibais no rio Uruguai que devoraram o comandante e alguns tripulantes à vista dos seus companheiros, que estavam na caravela. Os sobreviventes conseguiram retornar e se refugiaram na atual ilha de Santa Catarina. Ali souberam por meio dos indígenas das riquezas em ouro e prata trazidas por tribos mais ao norte do rio. Estes relatos animaram o português Aleixo Garcia, um dos sobreviventes da primeira viagem, que com mais cinco sobreviventes e uma tropa de mais de mil índios, decidiu partir por terra ao grande local das riquezas. Antes mesmo de Pizarro, chegou a regiões vassalas do império Inca adquirindo riquezas em prata. No regresso, Aleixo Garcia se estabeleceu no Gran Chaco e enviou à ilha de Santa Catarina alguns homens para contar sobre o que sucedera. Nesse meio tempo, os índios da região se reuniram e mataram Aleixo Garcia e os outros espanhóis.2465 Graças a Melchior Ramírez e Enrique Montes, as histórias da viagem pela região do rio da Prata foram conservadas. Quando o navegador veneziano Sebastião Caboto, a mando da coroa espanhola, fez uma escala na ilha de Santa Catarina, em sua missão de contornar o globo repetindo o feito de Magalhães/Elcano, em 1522, ele ficou sabendo das histórias sobre as riquezas em prata, o rei branco2466 e outras. Neste momento encontrou-se em um dilema: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Inicialmente, Caboto negou-se a fazer esta entrada, mas logo foi atraído pelas fascinantes narrativas de Ramírez e Montes; mandou construir uma “galeota que pescasse pouca água” e começou a fazer o “descobrimento do rio de Solis”. Assim, o grande Sebastião Caboto, cosmógrafo e piloto maior de Sua Real Magestade Católica, deixou-se seduzir pelo sonho de riquezas e, acompanhado por Melchior Ramírez e Enrique Montes, no final [de] 1526 trocou o itinerário de sua expedição, adentrando as águas platinas. Subiu este rio, confirmando a cada generación de índios que encontrava a veracidade das ricas notícias que sobre aquelas terras se contavam.2467

Depois da viagem de Caboto, em fins da década de 1520, as notícias de riquezas que poderiam ser encontradas ao longo do rio da Prata e Paraguai chegaram a Europa e estimularam outros viajantes. Assim, os dois grandes rios americanos foram conhecidos já na década de 1510. E, a partir das suas descobertas pelos espanhóis, eles integrariam rapidamente as fronteiras cartográficas entre os domínios das coroas ibéricas. Eram fontes de acesso a grandes riquezas. Os gigantes sul-americanos como fronteiras do território português

2463

Ibid., p. 41. Outra expedição de Orellana foi realizada a partir da Espanha e que entraria pela foz, mas teve fim trágico quando os expedicionários entraram no rio Pará e não conseguiram encontrar a embocadura do rio Amazonas. Outra seria feita em 1560, a trágica expedição espanhola de Pedro Ursúa/ Lopo de Aguirre. 2465 COSTA, Maria de Fátima. História de um País Independente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade/ Kosmos, 1999, p. 33 e 34. 2466 Ibid., p. 35. 2467 Ibid., p. 36. 2464

772 ISSN 2358-4912 Diante da dificuldade da implementação do Tratado de Tordesilhas, devido aos problemas apontados no primeiro tópico, progressivamente as delimitações regionais teriam passado a serem identificadas com os acidentes geográficos. Em especial aos dois gigantes hídricos americanos. A cartografia serviria de grande auxilio na compreensão do entendimento do espaço e do enquadramento dele, antes mesmo de uma colonização efetiva. Entretanto, a identificação com a geografia local sempre foi favorável aos interesses de quem a estabelecia e para quem a estabelecia. Os primeiros sintomas da identificação da incorporação dos dois rios americanos como fronteiras físicas, desligando-se da fronteira artificial da linha retilínea, poderiam ser observados no mapa português Terra Brasilis (figura 1) confeccionado por Lopo Homem2468, no ano de 1519. Ao analisar este exemplar, Jaime Cortesão focou em uma precoce identificação da ilha Brasil. No entanto, mesmo que não pudesse apontar para ela, o mapa estaria identificando os rios como fronteiras do espaço americano. Ao norte, o rio Amazonas aparece identificado juntamente à ilha de Marajó e o rio Pará. É interessante notar que na margem esquerda existe uma bandeira de Portugal. O que indicaria uma intencionalidade para com esta região. Já no extremo sul, de forma análoga, o rio da Prata aparece delimitado e na margem sul também está cravada uma bandeira portuguesa. Ao centro do mapa encontram-se cursos hídricos provindos do rio da Prata e outros que não provém especificamente de nenhum rio. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Figura 1Terra Brasilis de Lopo Homem (c. 1519). In: Mapas Históricos Brasileiros (Col. Grandes Personagens da Nossa História). São Paulo: Abril Cultural, 1970. O caso específico do mapa de Lopo Homem parece apontar para a delimitação espacial da América portuguesa com os limites nos rios Amazonas e da Prata. No entanto, mesmo que essas delimitações estavam estabelecidas, ainda existem pretensões para as regiões que estavam adiante. Como sugerem as bandeiras portuguesas estabelecidas além das margens dos dois rios americanos. Outros exemplares portugueses sugerem os dois rios como fronteira do território americano. Na carta do Atlântico de Jorge Reinel de c.1540, ao representar o oceano atlântico ao centro, o autor insere nas margens direita e esquerda a África e a América do Sul respectivamente. Na última existe apenas o 2468

Lopo Homem foi um importante cartógrafo português sempre a serviço da coroa portuguesa sendo cavaleiro fidalgo da Casa do Rei de Pertugal. Foi o precursor da chamada “escola dos Homem”. Da qual fizeram parte Diogo Homem e André Homem nas décadas de 50 a 70. Ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Edição ELO, 1994, p. 57.

773 ISSN 2358-4912 território português delimitado pouco antes do rio Amazonas e alguns graus acima do rio da Prata. No mapa da América Meridional, feito em 1558 por Diogo Homem, o rio da Prata parece delimitar a América portuguesa, enquanto que o rio Amazonas teria a mesma função ficando encostado na linha fronteiriça de Tordesilhas. A carta de Sebastião Lopes também reproduz a mesma configuração, salvo na presença da foz do Amazonas dentro da região que pertenceria aos portugueses. No mapa de Bartolomeu, o velho, surge a configuração da chamada ilha Brasil como apontado por Jaime Cortesão. Os dois gigantes americanos fazem a fronteira das terras portuguesas, e a linha divisória passa exatamente por cima do rio Paraguai. Um exemplar sintomático da ideia de fronteira das terras americanas realizada pelo Amazonas e Prata encontra-se no mapa da costa do Brasil feito pelo português Vaz Dourado, em 1571. Em uma nota nas bordas do exemplar aparece escrito: “Nesta folha esta lançado toda a costa do Brazil do rio das Amazonas ate o rio da Prata.” O trecho é importante para a construção cartográfica que ele apresenta do espaço brasileiro. Como indicado nas bordas, a configuração geográfica do território segue esse padrão. A forma de fronteira não segue um padrão retilíneo que normalmente acompanharia o mediterrâneo de Tordesilhas no traçado da fronteira. Pois, na margem oeste/sul do rio da Prata, há o indicativo “Terra do Emperador”. Desta forma, além da delimitação geográfica presente no exemplar, o autor ainda acrescentou uma informação escrita para reforçar a ideia da fronteira do Brasil. Esta estratégia poderia indicar um esforço de convencimento do enquadramento do território dentro das pretensões lusas fugindo da configuração retilínea estabelecida pelo meridiano de Tordesilhas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Figura 2 Costa do Brasil de Vaz Dourado (1571). In: Mapas Históricos Brasileiros (Col. Grandes Personagens da Nossa História). São Paulo: Abril Cultural, 1970. O cartógrafo português Luís Teixeira também apresenta a configuração indicada. No mapa das capitanias hereditárias de 1574, o rio Amazonas e o rio da Prata são fronteiras, mas estão acompanhados da linha demarcatória de Tordesilhas. Inclusive, a região da margem sul do rio da Prata estaria na região portuguesa graças a essa divisão. No exemplar produzido em cerca de 1600, há a indicação da linha demarcatória de Tordesilhas, porém, não se sobrepõe a divisão que cabe aos rios Amazonas e da Prata juntamente com as ligações hídricas que ocorrem entre os rios possuindo ao centro um grande lago.2469 2469

Este lago seria representado a partir das impressões de cronistas sobre a região pantaneira. Isso daria origem ao mito de uma grande lagoa no centro da América. Os espanhóis associaram essa lagoa, no século XVII, ao lago de Xarayes. Para mais detalhes ver: COSTA, Maria de Fátima. Op. Cit.

774 ISSN 2358-4912 Esta formatação do território brasileiro colonial não foi exclusividade das fontes cartográficas, em escritos quinhentistas podem ser observados os dois rios como marcos da identidade da região. As palavras de Diogo Nunes de Quesada espanhol que estava a serviço de Portugal expõe a ideia comum das fronteiras da América portuguesa após a viagem de Francisco de Orellana:

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Esta terra (dizia) está entre o rio da Prata e o Brasil pela terra a dentro, e por esta terra vem o grande rio das Amazonas. Por êste rio se há de prover esta terra, porque podem ir navios por êle até onde se poderá povoar uma vila, que seja pôrto e escala de tôda esta terra, porque sobe a maré 200 léguas rio acima; e deste ponto onde se povoar a primeira vila subirão bergantins mais de 300 léguas, porque o rio vai chão e muito bom. Haverá 300 léguas desta província até ao mar, e sai êste rio à costa do Brasil2470 Dentro do objetivo de colonizar a região amazônica, o autor expõe a ideia de que o Brasil estaria dentro das fronteiras com o rio das Amazonas e o rio da Prata. Outro autor que confirmaria essas ideias foi Pedro de Magalhães de Gandavo. Na sua obra História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil há uma descrição da localização da província portuguesa, Gandavo delimita sua área da seguinte forma: Esta província de Santa Cruz está situada naquela grande América, uma das quatro partes do mundo. Dista o seu princípio dois graus da equinocial para a banda do sul e daí se vai estendendo para o mesmo sul até quarenta e cinco graus, de maneira que parte dela fica situada abaixo da zona tórrida, e parte abaixo da temperada. Está formada esta província à maneira de uma harpa.2471 Gandavo coloca a fronteira norte próxima ao Amazonas e ao sul estabelece uma área de 45 graus para as terras do Brasil. Isso significa que englobaria muito mais que a foz do rio da Prata, atingindo uma região maior. Desta forma, tanto os relatos quanto os mapas produzidos pelos portugueses estavam dentro de um interesse em estabelecer uma ideia de espaço próxima aos grandes rios sulamericanos. Conclusão A linha imaginária estabelecida em Tordesilhas, antes do conhecimento dos contornos geográficos da América do Sul, moldou-se à realidade local com o conhecimento progressivo das novas terras. O descobrimento do rio Amazonas e do rio da Prata, e sua consequente exploração, trouxeram novas bases para delimitação das fronteiras americanas entre as coroas ibéricas. Antes de parecer meramente técnica, a divisão se apropriou das realidades geográficas abandonando a “frieza” da linha imaginária buscando favorecer os portugueses na propriedade das terras. E, em alguns casos, existiram pretensões mais além do que os grandes rios. Porém, além deste uso, não se pode esquecer que talvez esta configuração cartográfica funcionasse enquanto uma prévia da ocupação colonial. Talvez pensar no caminho que Jaime Cortesão formulou para o mito cartográfico da ilha Brasil, ou seja, como uma ponte para a ocupação do território nacional. No caso dos rios americanos como fronteira construída no século XVI, é inegável que a política portuguesa da fundação do forte do Presépio (Belém) e da Colônia do Santíssimo Sacramento, no século XVII, sejam atitudes voltadas a ocupar as regiões fronteiriças do que ele considerava seu território. Este que havia sido germinado cartograficamente no século XVI. Com isso estar-se-ia próximo das palavras de Brian Harley em relação aos usos dos mapas nas questões políticas: “Al igual que las armas de fuego y los barcos de guerra, los mapas han sido armas del imperialismo. Em la medida em que los mapas se usaron en la promoción colonial y se adueñaron de las tierras en papel, 2470

QUESADA, Diogo Nunes de. Apud AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, p.17 e 18. 2471 GANDAVO, Pero de Magalhães de. A Primeira História do Brasil: História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 48.

775 ISSN 2358-4912 antes de ocuparlas efetivamente, los mapas anteciparon el império.2472” Destarte, a frase de Harley poder-se-ia ser complementada com o caso dos mapas portugueses quinhentistas que seriam inauguradores dos projetos de estabelecimento dos impérios coloniais. Antes de uma ocupação específica, criou-se uma identidade pautada em fronteiras físicas reias em detrimento dos estabelecimentos iniciais no plano teórico. E esse exercício moldava quem seria o dono das terras americanas, mesmo que já fossem ocupadas a tempo.

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Fontes e Referências Biliográficas BIAGGI, Enali de. “L'île Brésil: la force d'un mythe cartographique.”. In: Mappe Monde nº69, 2003. COSTA, Maria de Fátima. História de um País Independente. São Paulo: Est. Liber./ Kosmos, 1999 CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos Velhos Mapas. Lisboa: Imp. Nacional, 2009. HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica, 2005. MARQUES, Alfredo Pinheiro. A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. ELO, 1994. UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de Bárbaros. Manaus: Editora Valer, 2009.

2472

HARLEY, J. B. La Nueva Naturaleza de los mapas. México: Foundo de Cultura Econômica, 2005, p. 85.

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CRER E DESCRER: RELAÇÕES ENTRE INCONSTÂNCIA E LIBERDADE INDÍGENA NOS DISCURSOS JESUÍTICOS Ludmila Gomides Freitas Durante os séculos XVI e XVII, os jesuítas foram essenciais no processo de ocupação da terra e de submissão dos índios da America portuguesa. Além disso, o projeto teológico-político da Companhia de Jesus justificativa a presença portuguesa na América, pois trazer os índios para o lume da Fé e para pólis cristã eram os propósitos que fundamentavam a colonização. Podemos afirmar que os discursos jesuíticos conformam um campo privilegiado para a escritura do outro e, por esta razão, são fontes incontornáveis para os estudos cujas temáticas passam pela tradução e incorporação do gentio à ordem colonial. O projeto político-teológico da Companhia de Jesus para os índios reconhecia a humanidade indígena na sua inteireza e, portanto, como homens plenamente capazes de aperfeiçoamento e recebimento da graça da salvação. Neste sentido, o projeto seguia de perto as ideias formuladas pelos teólogos da Segunda Escolástica dos séculos XVI e XVII. No entanto, os parcos resultados de décadas de evangelização explicitavam as dificuldades interpostas ao anúncio da Palavra aos naturais da terra. Neste artigo, apresentaremos alguns aspectos que permitem entender a maneira como os jesuítas e, particularmente, o Pe. Antônio Vieira, representaram o selvagem e como essa representação endossava o papel que a Companhia de Jesus teria de exercer na construção de uma sociedade colonial cuja principal finalidade era a expansão e universalização da Fé católica. Ademais, tal representação fomentou a política de tutela dos índios a ser exercida pelos missionários, o que, por sua vez, ajudou a definir a noção de liberdade indígena prevista na política e na legislação colonial dos séculos XVI e XVII. Quando recém chegados a colônia, o otimismo tomava conta do espírito dos missionários. A conversão por meio da Palavra e do exemplo parecia suficiente para escrever na alma indígena, “papel em branco”, as verdades da Fé. A inclinação cristã dos índios foi muito ressaltada nas primeiras cartas. Os jesuítas acreditavam no potencial de elevação espiritual dos gentios, e para isso bastaria acender a centelha da Fé deixada por Deus em todos os homens. A humanidade brasílica estava inscrita dentro da universalidade cristã: descendentes de Adão e Eva, os índios deveriam ser os herdeiros de Cam, filho maldito de Noé; a nudez gentílica era um sinal. Um passo importante para o processo de conversão foi o aprendizado das línguas indígenas, que foram sistematizadas em uma só – a língua geral estruturada pelo padre Anchieta ainda no século XVI. A gramática indígena era um instrumento indispensável de catequese, pois reduzir a língua (sob o modelo da escrita e, consequentemente, do alfabeto e das regras gramaticais latinas) era uma etapa fundamental para reduzir o indígena. Porém, bastou alguns anos de experiência missionária para que os jesuítas reconsiderassem suas primeiras impressões sobre os índios do Brasil Ao passo que a missionação jesuítica avançava, ficavam para trás as imagens dos índios como “tábula rasa” e “papel em branco”, dando lugar ao estigma da ausência: desprovido tanto das letras ‘F’, ‘L’, ‘R’, na sua língua, quanto da Fé, da Lei e do Rei, em sua vida.2473 Contudo, o desafio de reduzir a língua e criar um catecismo em tupi, não esbarrava somente na ausência das letras, mas, principalmente na dificuldade de traduzir conceitos próprios da cultura cristã, para os quais não existiam equivalentes no quadro linguístico, mental e cultural dos gentios. Rapidamente os missionários perceberam os limites da conversão feita a partir da adaptação da linguagem e das idéias cristãs ao modo de vida e crenças nativas. As fontes demonstram que a representação jesuítica do índio era o bárbaro. A nudez foi duplamente interpretada, ora como natural (não despertando a lascívia), ora como luxuriante. A poligamia e os casamentos sem as interdições de parentesco comuns à cultura ocidental foram sempre condenados. A antropofagia era o ápice do barbarismo e levou o indígena a ser comparado aos cães. Assim diz Pe. Manuel da Nóbrega: 2473

AGNOLIN, Adone. Jesuítas e Selvagens. A negociação da Fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (sec. XVI-XVII). São Paulo: Humanitas, 2007, p.80.

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ISSN 2358-4912 (...)são cães em se comerem e matarem e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem.” (...) “são mais esquecidos da Criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das víboras que comem suas mães.2474

As guerras intertribais motivadas pela vingança mostravam-se atávicas nestas sociedades. Por fim, as cauinagens eram vistas como um empecilho forte à conversão, pois quando “davam a beber”, os índios recalcitravam em todos os demais vícios.2475 Contudo, dentro da concepção teológica jesuítica, tais abominações não eram constitutivas da natureza indígena, mas sim resultado do esquecimento e corrupção da Palavra. A insistência dos missionários quanto aos poucos “frutos” da evangelização dos índios compôs uma outra tópica bastante comum nas cartas inacianas: o relato das dificuldades diárias da empresa missionária aproximava os padres dos mártires. Quanto maior o sofrimento e as adversidades, maior a misericórdia e a devoção dos soldados de Cristo; quanto mais bárbaro fosse o pagão, mais elevada e providencial seria a missão da Companhia. Fé, abnegação e altruísmo compunham, enfim, a imagem que os padres faziam de si mesmos. Todavia, esta percepção do processo de conversão foi sendo adquirida ao passo que a missionação deparava-se com as provações do dia-a-dia. A docilidade e a facilidade com que os índios se dispunham a escutar a pregação não resultava na interiorização dos ensinamentos, pois aparentemente convertidos, os índios logo voltavam às suas “práticas abomináveis”. Enfim, a “inconstância da alma selvagem” tornou-se uma tópica incontornável na representação do indígena. No Diálogo da Conversão do Gentio, escrito por Manuel Nóbrega, a bestialidade expressava-se pela inconstância; assim diz o personagem Gonçalo Álvares: Sabeis qual é a maior dificuldade que lhes acho? Serem tão fácil de dizerem a tudo si ou pâ, ou como vós quiserdes; tudo aprovão logo, e com a mesma facilidade com que dizem pâ[sim], dizem aani [não].2476

Os obstáculos à conversão e as dificuldades no trato com o indígena obrigavam a um fervor apostólico, que, na opinião dos jesuítas, era uma prerrogativa da Companhia, pois esta era a ordem religiosa providencialmente instituída como universalizadora da Fé. Esta temática é tratada no célebre Sermão do Espírito Santo, pregado por Vieira a seus irmãos inacianos, na cidade de São Luís do Maranhão (no ano de 1657) e que agora passaremos a analisar com mais vagar. Naquela ocasião, partia ao rio das Amazonas uma grande missão para o descimento dos índios e, naquelas terras, segundo as palavras de Vieira, era necessário “muito mais amor de Deus, que em nenhuma outra.” Os motivos eram dois: a má qualidade das gentes e a dificuldade das línguas. O primeiro movimento do sermão é, portanto, apresentar as razões que tornam o índio deficiente para o aprendizado da Fé. Segundo a concepção doutrinária cristã, Deus revelou a Palavra, a Boa Nova, em tempos imemoriais universalmente, porém os índios não guardaram a essência do viver cristão. Quando Deus mandou seus Discípulos anunciarem a Palavra a todas as gentes, coube a S. Tomé as gentes do Brasil.2477 Ao passo que receberam com docilidade a pregação, os naturais não guardaram seus ensinamentos A explicação está na inconstância destas gentes, deficientes na vontade:

2474

NÓBREGA, Pe. Manuel da. “Diálogo da conversão do gentio”. In: LEITE, Serafim, Cartas dos Primeiros. Jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão IV Centenário, l954, vol II. 2475 O cauim era uma bebida alcólica produzida a partir do fermento da mandioca. A embriaguez pelo cauim fazia parte dos rituais antropofágicos dos Tupinambá, que viviam ao longo da costa central do Brasil. 2476 NÓBREGA, Pe. Manuel da. “Diálogo da conversão do gentio”. Op.Cit. 2477 Vieira explica que os discípulos foram punidos por reagirem com incredulidade diante da ressurreição de Cristo. Assim, foram mandados a pregar a todo o mundo. O mais incrédulo foi, pois, São Tomé. Consequentemente, foi destinado a anunciar a Palavra aos homens mais obtusos que há. “Como se dissera o Senhor: os outros Apóstolos que foram menos culpados na incredulidade, vão pregar aos Gregos, vão pregar aos Romanos, vão pregar aos Etíopes, aos Árabes, aos Armênios, aos Sármatas, aos Citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos Gentios do Brasil, e pague a dureza da sua incredulidade com ensinar a gente mais bárbara e

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ISSN 2358-4912 Tal é a fé dos brasis: é fé que parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé: é fé, porque creem sem dúvida, e confessam sem repugnância tudo o que lhe ensinam; e parece incredulidade, porque com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem; e com a mesma facilidade com que creram, descreem.2478

Na colônia, “há de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há de estar sempre plantando o que já está nascido, sob pena de perder o trabalho e mais o fruto”.2479 Vieira cria, então, a célebre metáfora na qual explica a diferença que há entre os povos, gentios e infiéis, quando recebem o ministério apostólico. Os povos são como estátuas: as de mármore resistem tomar a forma, para serem cinzeladas despendem esforço e razão, mas quando esculpidas, são eternas. As de murta são de fácil plasticidade, porém o artífice não pode descurar do cuidado um só instante sob o risco de perderem a forma. Os que andastes pelo Mundo e entrastes em casas de prazer de Príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A Estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria, mas depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão, sempre conserva e sustenta a mesma figura: a Estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos; mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo, que lhe atravessa os olhos; sai outro, que lhes descompõe as orelhas; saem dois, que de cinco dedos lhe fazem sete; e o pouco que antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da Fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a Fé e deixam os erros de seus antepassados: resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas uma vez rendidos, uma vez que receberam a Fé, ficam nela firmes e constantes como nas Estátuas de mármore, não é necessário trabalhar mais com eles. Há outras pelo contrário (e estas são as do Brasil) que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar e sem resistir; mas são Estátuas de murta, que levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas, uma vez que lhe corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez que lhe cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez que lhe decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da Gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural e compostura dos ramos.2480

O trabalho dos jesuítas junto aos índios deve ser como o do artífice à sua estátua de murta: não pode levantar jamais a mão da obra, “porque está sempre por obrar, ainda depois de obrada”. A assistência deve ser contínua, o zelo incansável, o esforço tenaz e, para isso, não valerá o entendimento e a razão, somente o amor e mais amor. O exemplo vem de Deus, que, desde a Criação, não descuidou um só instante de sua obra. Podemos afirmar que esta passagem do sermão expressa uma ideia essencial do pensamento paulino. Na teologia de São Paulo, não existe ignorância da Palavra, mas, no caso dos sábios pagãos, um saber inchado pela razão e desprovido de caridade/moralidade. No caso dos idólatras, o não reconhecimento devido da origem divina de toda a Criação. No caso dos judeus, uma cegueira da graça, ofuscada pela prática mecânica da lei. Mas a Palavra se mostra a todos universalmente por meio da obra de Deus, o “livro da Natureza”, todas as “coisas visíveis” que testemunham as “realidades invisíveis” da graça de mais dura.”, “Sermão do Espírito Santo, São Luís do Maranhão, 1657”. VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. São Paulo, Hedra, 2000, p.421. 2478 Idem, p.424. 2479 Idem, p.424. 2480 Idem, p.425.

779 ISSN 2358-4912 Deus. A ilação com o Sermão do Espírito Santo está em perceber que, entre os índios do Brasil, muito embora a Boa Nova tenha sido anunciada, a memória enfraquecida emudeceu a Palavra e a deficiência da vontade – sempre inconstante – exige amor e persistência dos ministros de Deus. Como desdobramento dessa ideia, podemos também observar a estreita relação que Vieira mantém com as formulações produzidas pela Segunda Escolástica. Lembremos que Francisco de Vitória e seus discípulos, ao refutarem a ideia de que os índios eram bárbaros por natureza, os consideraram efetivamente humanos, livres, racionais, dotados de livre-arbítrio e capazes de receber a Graça e a salvação. A rudeza e a bestialidade dos costumes derivavam de uma educação má e bárbara (descrita como uma segunda natureza). Segundo Anthony Pagden ao insistir que a educação era responsável pelo comportamento do índio,

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(...) Vitória o havia liberado efetivamente de uma semi-racionalidade intemporal e vazia, e o havia colocado em um espaço histórico onde podia estar sujeito às mesmas leis de transformação, progresso e crescimento intelectual que os demais homens, cristãos ou não cristãos, europeus ou não.2481

Na esteira dessa ideia, Vieira concebe o indígena dotado de completo domínio de si mesmo, todavia, devido à sua condição degenerada, devesse ser tutelado para alcançar a idade da razão. A segunda circunstância que atrapalhava a evangelização era a dificuldade das línguas. Tal obstáculo impunha um grande cabedal de amor e muita graça do Espírito Santo. Segundo Vieira, Deus distingue o ofício de pregar em três modalidades: a primeira – fácil – é pregar para gente da mesma nação e de mesma língua. A segunda – dificultosa – é pregar a gente de diferente nação e diferente língua. A terceira – dificultosíssima – é pregar “a gentes não de uma só nação e uma só língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender.”2482 Aqui, Vieira lança mão de sua própria experiência missionária para ilustrar a complexidade e a dificuldade de aprender as línguas gentias: Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais, ou consoantes, de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas ou três semelhantes, ou compondo-se (o que é mais certo) com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta, que pronunciadas na língua (...).

A provação de aprender o idioma bárbaro é mais um sinal da obediência e do fervor missionário dos jesuítas. É bastante sugestivo que Vieira compare os índios do Brasil a estátuas de murta e, em outros momentos, afirme que são toscos como raízes torcidas e rudes como as pedras. Em outro sermão, eles foram assim descritos (...) gente de tão pouco cabedal que uma árvore lhe basta para o necessário da vida: com folhas se cobrem, com frutos se sustentam, com ramos se armam, com os troncos se abrigam e sobre a casca navegam.2483

O índio é classificado como próximo à natureza, seu modo de vida espontâneo e natural o faz alheio às normas e apartado da civilidade. Podemos dizer que esta imagem deita raízes na concepção que opõe natureza e política. Nos séculos XVI e XVII a vida civil era entendida como um modo de aperfeiçoamento do humano; o adjetivo mais frequente para a natureza é “bruta”. O ideal é que ela seja tocada, cinzelada, alterada e construída pelo cristianismo. No entanto, descrever os índios aproximando-os ao mundo da natureza criava uma ambiguidade. A natureza, como criação divina, segue algumas leis. O modo de viver indígena, além de estar fora da 2481

PAGDEN, Anthony. La Caida del Hombre Natural. El indio americano y los orígenes de la etnología comparativa. Trad. Esp. Madri: Aliaza Editorial, 1988, p.141. (tradução nossa). 2482 VIEIRA, “Sermão do Espírito Santo”, Op.Cit. 2483 VIEIRA, Pe. Antônio. “Sermão da Epifania”. In: Sermões. Lello e Irmão, Editores, Porto, 1959, tomo VII, p. 195.

780 ISSN 2358-4912 civilidade, não respeita nem ao menos as leis naturais (haja vista a antropofagia) Podemos afirmar que, de maneira geral, o ambiente natural do selvagem – a selva- é, por vezes, utilizada como uma tópica à amplificar os atributos bárbaros do indígena: as características geográficas e biológicas do meio são alçadas a metáforas que traduzem a rusticidade, a ausência de normas, . O julgamento moral da natureza – presente desde as primeiras crônicas das conquistas espanhola e portuguesa – emprestava sentido à condenação moral a que eram submetidos os homens americanos. É, portanto, neste contexto, que podemos entender a centralidade do projeto das missões. O índio aldeado, comparado a uma estátua de murta no Sermão do Espírito Santo, requer a assistência constante e piedosa dos missionários para permanecer no reto caminho da conversão. Para isso, nada mais apropriado do que sua permanência no aldeamento – instituição política e juridicamente autônoma – capaz de moldar, pela forja do trabalho, seu corpo rude e incivil. Configura-se aqui, o passo inicial e indispensável para a remissão de sua alma. Os brasis estavam no mais baixo nível da escala evolutiva das civilizações, portanto, mais afastados do plano divino. Entretanto, esta condição era, sobretudo, contingente e reversível, desde que fossem assegurados os meios sociais, políticos e jurídicos que viabilizassem as missões. Podemos ainda afirmar que o modelo de inserção na ordem colonial por meio da tutela subsidiou a política indigenista. Uma vista mais superficial do extenso corpus documental das leis indigenistas indica o movimento oscilante entre leis que defendiam a liberdade irrestrita dos naturais da terra e leis que permitiam a escravidão em determinados casos (mormente, as guerras justas e os resgates de índios de corda). No entanto, esta ambiguidade deve ser percebida como uma estratégia do poder metropolitano para acomodar os conflitos e os interesses de setores basilares daquela nascente sociedade. Num jogo político e jurídico essencialmente casuísta e pragmático, as leis de liberdade e escravidão respondiam às urgências colocadas a cada circunstância histórica: por vezes, sustentando o caráter cristão da colonização e, consequentemente, apoiando a Companhia de Jesus; em outros muitos momentos, cedendo aos imperativos econômicos dos colonos. O equilíbrio e a concórdia do corpo social eram, pois, a finalidade da administração e da justiça que, contudo, foram incapazes de mediar projetos que, na prática, mostravam-se inconciliáveis. Enfim, o que predominou foi a tensão entre jesuítas e colonos, além de episódios mais graves como a expulsão dos missionários, entre eles, padre Vieira, em 1661. Porém, o mais importante a ser destacado é o conceito de liberdade que vigorava à época. A liberdade era para aqueles que aceitavam ser integrados ao corpo místico e político do Estado. Ou seja, a condição de liberdade implicava em obrigações (ser produtivo, moldar-se à ordem cristã), e não em ausência de jugo. Porém, a recusa e a mesma integração de forma compulsória também significava, aos olhos cristãos, estar em liberdade. Pois, a vida em pecado e a “liberdade natural do mato”2484 eram entendidas como a verdadeira escravidão – os maus costumes eram o cativeiro do inferno na vida terrena. O olhar católico cindindo a realidade entre o Bem e o Mal informaram os caminhos da política indigenista portuguesa. Para finalizar, gostaríamos de pontuar que Vieira, ao propor a metáfora da estátua de murta, alçou simbolizar a inconstância da alma selvagem2485. Este topos essencial dos escritos jesuíticos foi determinante para a orientação das políticas inaciana e real portuguesa. De matriz agostiniana, o pensamento jesuítico concebia a alma humana tripartida em entendimento, memória e vontade. Como vimos, a potência do entendimento mostrava-se aguda, pois com relativa presteza os índios absorviam os ensinamentos bíblicos. A memória parecia-lhes fraca, haja visto o esquecimento dos brasis quanto ao apostolado de São Tomé. Porém, a origem de todo o mal era creditada à vontade. A deficiência nesta potência da alma fazia com que o índio recalcitrasse nos maus costumes e na idolatria. Sem a vontade ele poderia compreender, mas ainda assim, não teria Fé. A correção deste erro – tal como postulado por Vieira – V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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HANSEN, João Adolfo. “A sevidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”. In: A Descoberta do Homem e do Mundo. Adauto Novaes (org), São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.352. Segundo o autor: “Na propaganda fidei jesuítica, a alma do índio deve ser salva do inferno por meio da conversão; pode-se mesmo obrigálo a ser salvo, pois é preferível que seja cativo e tenha a alma salva a que viva a liberdade natural do mato com ela condenada ao inferno.” Ver, p.352. 2485 CASTRO, Eduardo Viveiros de. “O Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: Revista de Antropologia, São Paulo: USP, vol.35, 1992.

781 ISSN 2358-4912 dependia do esforço abnegado dos jesuítas, que, no interior dos aldeamentos missionários, esculpiriam a murta selvagem. E podemos dizer que o empenho militante em defesa dos aldeamentos e da tutela sobre os índios foi uma luta política constante na vida do Pe. Antônio Vieira.

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Referências EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno. Encontros Culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG/Humanitas, 2000. CASTRO, Eduardo Viveiros de. “O Mármore e a Murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: Revista de Antropologia, São Paulo: USP, vol.35, 1992. GILSON, Étienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Foentes, 2006. HANSEN, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”. In: A Descoberta do Homem e do Mundo. Adauto Novaes (org), São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.347373 NÓBREGA, Pe. Manuel da. “Diálogo da conversão do gentio”. In: LEITE, Serafim, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão IV Centenário, l954, vol II. PAGDEN, Anthony. La Caida del Hombre Natural. El indio americano y los orígenes de la etnología comparativa. Trad. Esp. Madri: Aliaza Editorial, 1988. PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. A unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. Campinas: Editora Unicamp/ São Paulo: Edusp, 2ª ed., 2008. VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. Alcir Pécora (org). São Paulo: Ed. Hedra, vols I e II, 2000. __________________ Sermões. Lello e Irmão, Editores, Porto, 1959, tomo VII.

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A CAPITANIA DE SERGIPE DEL REI NO SÉCULO XVII E A DINASTIA DE BRAGANÇA Luís Siqueira2486 Introdução Este trabalho faz parte da pesquisa que venho realizando sobre a militarização2487da capitania de Sergipe del Rei na segunda metade do século XVII e primeira do seguinte, e o papel que os capitães mores exerceram quando estiveram no exercício do cargo. As principais fontes utilizadas são provenientes do Arquivo Histórico Ultramarino, informações de cronistas e documentos impressos da Biblioteca Nacional, que se encontram publicados. O objetivo consiste em dialogar com a historiografia local acerca do lugar ocupado pela capitania sergipana no sistema colonial, e apresentar as ações administrativas determinadas pela dinastia de Coroa portuguesa para a localidade. Os estudos sobre a capitania sergipana no século XVII ainda são raros na historiografia sergipana. As afirmações destacadas por Felisbelo Freire e Maria Thetis Nunes se fazem ecoar como memória, principalmente quanto ao lugar ocupado por Sergipe del Rei no contexto da colônia brasileira.2488 No caso do tema da administração, ainda é pouco explorado pelos estudiosos locais e as pesquisas existentes são rarefeitas, resumindo-se a citar nomes de capitães mores que atuaram em cargos de mando.2489 Nessa perspectiva, ainda não existe trabalho que analise o papel desempenhado pela Coroa portuguesa para Sergipe Colonial nem sobre as estratégias empreendidas. Para realizar a contextualização da capitania sergipana no período seiscentista tomo de empréstimo as considerações referentes ao “sentido da colonização” de Fernando Antônio Novais. Segundo esse autor, a colonização que se projetou no Novo Mundo, em especial o Brasil, teve características próprias como estar voltada para o fornecimento de riquezas para sustentar a metrópole. Essa situação estava estruturada politicamente em dois polos, sendo que na condição de centro de decisão estava a metrópole e, no outro, as colônias, como locais subordinados; relações essas que estabeleceram o quadro institucional para que a vida econômica metropolitana fosse dinamizada. Nesse sentido, entendo e situo a capitania no enquadramento paulatino do sistema colonial, caracterizado pela política mercantilista da época.2490Assim, seguindo a linha interpretativa de Novais, a capitania sergipana ao longo do século XVII foi se estruturando para melhor atender as necessidades políticas, econômicas, geopolíticas e militares de Portugal, sob o governo da dinastia de Bragança. A capitania de Sergipe del Rei e as estratégias administrativas A região que compreende a capitania de Sergipe del Rei é cortada pelos rios São Francisco, o rio Vasa-Barris, o rio Real, o rio Sergipe e afluentes que foram importantes para a metrópole portuguesa porque permitia a comunicação, fluxo de gente, de mercadorias e metais preciosos da colônia brasileira, articulando, dessa forma, os centros produtores de açúcar, a exemplo de Pernambuco e a Bahia, centro administrativo do Estado do Brasil na época. Esses rios mesmo antes da efetiva colonização no século XVI já tinham sido relatados por religiosos, como o padre Gabriel Soares de Sousa, quando percorria as localidades do que depois passou a ser a capitania, na tentativa de 2486

Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFBA, sob a orientação da professora Drª Maria José Mascarenhas Rapassi. Email: [email protected] 2487 Chamo de militarização a capacidade e condição e capacidade que a Coroa portuguesa teve de transformar a população da colônia em soldados em estado de defesa contra inimigos externos e internos. 2488 Faço referência às obras História de Sergipe, de Felisbelo Freire; Sergipe colonial I e Sergipe colonial II, de Maria Thetis Nunes. 2489 LIMA Jr. Francisco de Carvalho. Capitães mores de Sergipe (1590-1820). Aracaju: Segrase, 1985. 2490 NOVAIS, Fernando Antônio. A colonização e sistema colonial: discussão de conceitos e perspectivas. In.: Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosacnaify, 2005. p. 27. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1995. Nessa segunda obra, o autor expõe a dinâmica e estrutura do Antigo Sistema Colonial, explicitando que as relações entre metrópole e colônia se dão em dois níveis: na legislação e no comércio.

783 ISSN 2358-4912 estabelecer bases evangelizadoras e povoadoras, registrando em seus escritos e chamando atenção para a presença de piratas europeus que visitavam com frequência a costa litorânea.2491 Da mesma forma que o cronista Gabriel Soares de Sousa descreveu sobre as condições espaciais, Frei Vicente do Salvador narrou o acontecimento acerca do processo da Conquista do território que ocorreu no período da União Ibérica.2492 Outra testemunha de época foi Ambrósio Fernandes Brandão, alertando que a capitania sergipana era real.2493 Após essa fase, o território foi tomado dos grupos indígenas e parcelado em sesmarias, sendo e doado aos que fizeram parte do grupo de Cristóvão de Barros2494. No início do povoamento de Sergipe del Rei, a partir de 1590, a economia estabelecida na capitania foi a pecuária, voltada para abastecer o mercado interno. Nesse momento, no Brasil, já existiam dois núcleos importantes que estruturava o sistema colonial, a exemplo de Pernambuco, que estava em processo de expansão da cultura da cana de açúcar e a Bahia, centro administrativo da colônia brasileira. A intenção da Coroa portuguesa com as atividades pecuaristas era também promover a contiguidade territorial da colônia estabelecendo condições para rotas terrestres e comerciais com a criação de gado.2495 Nessa condição, já se pode perceber o lugar e o sentido atribuído pela metrópole a capitania sergipana dentro do sistema colonial estruturando o território com objetivos de estar voltado para abastecer o mercado interno e servir como elo de ligação intercapitania. A economia do gado começou a prosperar de forma rápida em Sergipe del Rei. Em 1611 Gabriel dos Campos Morenos atestou essa realidade, além de informar sobre o quadro populacional e a presença da capital São Cristóvão, que já se constituía com status de cidade. As informações desse cronista revelaram o desenvolvimento rápido dessa atividade econômica com pouco contingente populacional residente e um incipiente aparelho administrativo que contava com a presença de juízes, vereadores, almoxarife e milicianos organizados em regime de ordenanças.2496 No momento da invasão holandesa no nordeste açucareiro, a quantidade de gado chamou atenção dos soldados e serviu para alimentar as tropas beligerantes que usavam a capitania como local para espoliação. Cientes da importância dessa economia para as tropas inimigas, os soldados holandeses saquearam, incendiaram e devastaram o que havia de atividade econômica, de vida social e de paisagem urbana existente. A guerra holandesa deixou danos irreparáveis para Sergipe, pois a presença dos soldados desestruturou a pecuária na capitania. A estratégia utilizada pelos soldados consistiu em atingir o inimigo baiano destruindo o território que servia como espaço de abastecimento de carne e couro das capitanias produtoras de açúcar, desarticulando assim as relações comerciais que havia entre elas. O resultado foi de destruição total e fuga dos moradores para capitanias vizinhas, situação narrada por Gaspar Barleus.2497 A restruturação da capitania de Sergipe del Rei começou assim que a União Ibérica teve fim e a dinastia de Bragança ascendeu ao trono de Portugal sob o governo de D. João IV. Esse momento foi importante para o Brasil porque o século XVII marcou definitivamente a virada do domínio português para o Atlântico e, como tal, para colônia brasileira.2498 Em consequência da queda de metal precioso na Europa, em especial prata da América Espanhola; das guerras em diversos flancos como na África, no oceano Índico e no nordeste brasileiro, fez Portugal se voltar para o Brasil. Assim, depois da expulsão dos holandeses, em 1654, da crise geral europeia, e da queda dos preços do açúcar resultante V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert. 1851. p. 43-46. 2492 SALVADOR, Frei Vicente do Salvador. História do Brasil. 5 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1965. p. 301-303. 2493 BRANDAO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1977. p. 53. 2494 Cristóvão de Barros, foi o comandante que a mando do governador geral Luís de Brito, empreendeu a conquista da região. 2495 MELLO, Astrogildo Rodrigues de. O Brasil no período dos Filipes. In.: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Época colonial. Tomo I. Rio de Janeiro,: Bertrand Brasil, 1997. pp. 176-189. 2496 MORENO. Diogo de Campos. Livro que dá Razão ao Estado do Brasil. In.: Revista de Aracaju, Aracaju, v. 2, 1944. p. 257. 2497 BARLEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício o conde de Nassau. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1940. p. 65-66. 2498 WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 105.

784 ISSN 2358-4912 da concorrência antilhana, as finanças de Portugal como da colônia brasileira ficaram precárias. Para sair da situação de crise algumas medidas foram importantes como a criação de companhias de comércio, a proibição de arrematação de engenhos de açúcar e estímulo oficial à busca de metais preciosos no interior, o incentivo à colonização, vigilância das capitanias contra a presença de piratas inimigos, dentre outras. Essas ações tendiam a fixar, de uma vez por todas, a administração portuguesa em terras brasileiras. Na capitania de Sergipe del Rei o rei D. João IV nomeou como capitão mor Baltazar de Queirós, em 1648. O objetivo era reestruturar Sergipe del Rei do ponto de vista militar, econômico e social. As preocupações podem ser notadas a partir da atuação do novo governador geral, o conde de Castelmelhor que em carta destinada ao capitão mor deixou claras as intenções para com a capitania: a reedificação da cidade de São Cristóvão, resolver problemas de cobrança abusiva de impostos e aumentar a riqueza pública com as fazendas de gado.2499 O interesse em desenvolver a capitania sergipana pode ser percebido através de missivas que eram enviadas pelos agentes portugueses para os administradores locais, e começava pelas condições materiais, com a reedificação da cidade de São Cristóvão, que fora destruída pelos holandeses quando estiveram em Sergipe. Na mesma carta, o governador pediu ao capitão mor que passasse informação pormenorizada de tudo, relatando a infantaria, o número de moradores e quantos seriam capazes de tomar armas, as fortificações, e se havia companhia de ordenanças e se poderia fazer planta da cidade, dentre outros. Essa tarefa era urgente porque a capital sergipana situada entre duas regiões importantes da colônia necessitava ser reedificada e guarnecida de soldados. Ao nomear o capitão mor Baltazar de Queirós para administrar, o governador geral expressava, de forma clara, essa necessidade. Na sua ótica, seria importante essa tarefa porque afastaria o inimigo. Em consequência dessa fragilidade foi designado, em junho de 1650, quinze soldados para fazer defesa da mesma localidade.2500 Cinco meses depois, o Conde de Castelmelhor agraciou a cidade com o envio de artilharia, composta por duas peças de bronze.2501 A administração do capitão mor Baltazar de Queirós foi substituída pela de João Ribeiro Villa Franca, que segundo a historiografia local, foi tumultuada, marcada com requintes de desobediência e vaidade pessoal em relação ao seu superior, o governador geral. De acordo com Felisbelo Freire, esses atos fizeram com que a Câmara de São Cristóvão fizesse uma representação junto ao governo baiano solicitando a suspensão dos direitos de governo do capitão mor. Nas Justificativas apresentadas, estava arrolada a cobrança de impostos abusivos, a intromissão em jurisdição que não era de sua alçada.2502 A historiografia sergipana afirma que a situação da capitania no período que vai da época da Restauração até a criação da Comarca, em 1696, foi de exploração, desmando, conflitos e abusos de poder por parte das autoridades administrativas, tanto em relação às determinações baianas como internamente.2503 Do ponto de vista econômico, a população sergipana, criadora de gado, reclamava assiduamente, através da Câmara de São Cristóvão, dos abusos dos impostos ou tributos cobrados pelas autoridades baianas, como afirmou Francisco José Alves.2504 Como foi dito, a historiografia sergipana aponta um clima de desordem, conflito interno e abusos de poder em Sergipe del Rei no século XVII. No entanto, as cartas enviadas pelo governador geral aos camaristas de São Cristóvão evidenciam práticas determinadas pelo governador geral para diminuir essas tensões e impor a autoridade metropolitana nessa relação, revelando práticas absolutistas para a capitania. A título de exemplo, pode ser citado quando se determinou a delimitação do poder dos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CARTA para o capitão mor da capitania de Sergipe Del Rei Baltazar de Queirós em 01/06/1650. In.: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (1648-1661). Vol. III da Série I. p. 61. 2500 CARTA para o capitão Garcia D’Ávila em 09/06/1650. In.: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (1648-1661). Vol. III da Série I. p. 66. 2501 CARTA para o capitão mor da capitania de Sergipe del Rei 10/11/1650. In.: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (1648-1661). Vol. III da Série I. p. 85. 2502 FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. Op. Cit. p. 175-176. 2503 No rol da documentação que venho pesquisando há abundante referências sobre os conflitos internos, envolvendo os moradores abastados. 2504 Sergipe nessa época pagava imposto pelo gado comercializado em Salvador, pela produção de farinha e de fumo. ALVES, Francisco José. A Novilha esfolada: tributação da Bahia sobre Sergipe no século XVII. IN.: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe; n. 33, 200-2003, p. 97-104.

785 ISSN 2358-4912 vereadores sergipanos em criar mais tributos sobre o gado.2505Outro caso ocorreu quando se advertiu o capitão mor João Ribeiro Villa Franca para que não se intrometesse em assuntos que não era de sua alçada, restringindo-o à esfera meramente militar.2506 A vida social em Sergipe del Rei, estava em fase de reestruturação e era, ainda, de instabilidade, com grandes demandas de prédios públicos ocasionando transtornos na ordem pública. Essa situação pode ser percebida através da carta enviada pelo capitão mor Jerônimo de Albuquerque ao rei em 20 de julho de 1657, na qual o informava que tratou de “ajuntar” os moradores dispersos, a guarnição da cidade de São Cristóvão e término do processo de reedificação da mesma. 2507 Pelas informações contidas na carta enviada pelo capitão mor ficou claro o estado de pobreza em que se encontrava a capitania. Essa situação de incipiente vida social foi ratificada na descrição que Gonçalo Soares fez em seu poema da cidade de São Cristóvão nesse século. O texto traz um tom sarcástico e desprezador em relação à localidade, mas dá ideia de como era a capital sergipana, no século XVII.2508 De acordo com o que se presencia no soneto, São Cristóvão aparece com 120 casas construídas e com vida administrativa pouco eficiente, cujo representante da alçada judiciária fazia ouvidos moucos para o que ocorria de anormal. Essa situação fez com que a Coroa determinasse ações para a capitania como a criação de um corpo de ordenança seguido da divisão do território em distritos militares, como se pode evidenciar atarve´s das patentes dos capitães providos nos cargos.2509 Outro exemplo foi a representação que os oficiais da Câmara de São Cristóvão fizeram ao rei, em 01 de junho de 1686, solicitando ajuda de custo para concluir a construção da igreja matriz, porque a pobreza em que se encontrava a população impedia o término das obras. De acordo com o documento, a culpa da miserabilidade da população estava na extorsão dos impostos pagos para o dote da rainha da Grã Bretanha.2510 A última estratégia que a Coroa portuguesa determinou para Sergipe del Rei no século XVII foi a criação da ouvidoria, em 1696.2511 Essa ação foi uma tentativa de fincar a justiça em terras de além mar e colocar a população sobre a jurisdição do poder real. Além disso, desburocratizava a alçada da justiça que dependia do Tribunal da Relação da Bahia e facilitava a vida da população sergipana.2512 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações O estudo das estratégias políticas empreendida pela Coroa portuguesa para Sergipe del Rei no século XVI evidencia que esta capitania tinha um lugar importante no sistema colonial ao articular o 2505

CARTA para em que se respondeu as propostas dos oficiais da Capitania de Sergipe del Rei em 8/07/1651. Documentos Históricos (1648-1661). vol. III da série E I dos Docs. da Biblioteca Nacional. p. 123. 2506 CARTA para o capitão mor da capitania de Sergipe del Rei João Ribeiro Villa Franca em 4/11/1651 . Documentos Históricos (1648-1661). vol. III da série E I dos Docs. da Biblioteca Nacional. p. 140-141. 2507 CARTA do o capitão mor Jerônimo de Albuquerque ao rei informando o estado da capitania em 20 de julho de 1657. Arquivo Histórico Ultramarino.Cx. 01, Doc. 09. 2508 Descrição de Sergipe del Rei, de Gonçalo Soares: Dez dúzias de casebres remendados, seis becos com mentrastos entupidos, trinta soldados rotos e despidos, cinco igrejas, dez frades, três letrados. Seis curados sem cura emancebados, um juiz com bigodes sem ouvidos, doze presos de piolhos carcomidos, e dois meirinhos por comer cansados. Mulatas com capote de baeta, palmilhas de tamancos, como frades, saia de chita, cintas de raqueta. Muito feijão que faz ventosidade, muito enredo, trapaça, embuste, treta. De Sergipe del Rei é a cidade. MOTT, Luiz. Três sonetos seiscentistas sobre São Cristóvão de Sergipe del Rei. In.: Sergipe colonial e imperial: religião, família, escravidão e sociedade. Fundação Oviêdo Teixeira, 2008. p. 124. 2509 Felisbelo Freire afirma ue essa medida ocorreu na década de 1660, mas a documentação revela que ocorreu no inicio dos anos 50 desse mesmo século. 2509 PATENTE de capitão de infantaria da ordenança dos distritos de Rio Real e Pyaguhy provido na pessoas de Francisco Nunes Vassalo; e PATENTE de capitão de infantaria da ordenança da Praça de Sergipe del Rei provido na pessoas de Vicente Murim Passos. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (1650-1693). Provisões, Patentes e Alvarás. vol. XXXI. p.74-75. 2510 REPRESENTAÇÃO dos oficiais da Câmara de São Cristóvão pedindo auxilio ao rei para concluir a igreja paroquial. Arquivo Histórico Ultramarino. Cx. 01. Doc. 48. 01/06/1686. 2511 PRADO, Ivo. A capitania de Sergipe e suas ouvidorias: memória sobre questões de limites. Rio de Janeiro: Papelaria Brasil, 1919. p. 97. 2512 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia. E seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 208.

786 ISSN 2358-4912 mercado interno. O fato de esse território está situado entre Pernambuco e Bahia, dois ponto importante da colônia brasileira requereu medidas que garantissem organização interna, defesa de fronteiras, reedificação da cidade de São Cristóvão e impulso na economia. Essas ações vão de encontro ao que afirmou a historiografia local acerca da realidade do passado colonial sergipano. O que se pode também tirar como conclusão preliminar é que as estratégias criadas pela Coroa portuguesa para Sergipe del Rei ocorreram de forma paulatina e envolvia a participação dos sujeitos que estavam na esfera administrativa local, revelando uma situação na qual o rei se fazia presente através de atos normativos ao se comunicar com seus vassalos em terras distantes.

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NEGOCIANTE JOÃO RODRIGUES DE MIRANDA: ALIANÇAS E EMBATES NO MARANHÃO VINTISTA Luisa Cutrim2513 Introdução O período vintista no Maranhão foi marcado pela intensa circulação de ideias. Influenciados pela Revolução do Porto, opositores passam a contestar mais ativamente as ações do governo local. O constitucionalismo se fortalece, ganhando adeptos (sinceros ou não), tanto no governo quanto na oposição. Cada grupo faz uso das transformações visando seus próprios interesses com os embates contribuindo para a formação de alianças que definiram mais claramente as posições políticas agora assumidas. A ativa participação de negociantes2514, comerciantes, militares e advogados nos embates do período, exige um olhar mais acurado sobre essas atuações. Assim como Calero (2012, p.18) ressaltou, háausência de uma “intra-história”sobre os deputados das Cortes –na Espanha e em Portugal -, ou seja, “histórias mais profundas que relatem e indaguem sobre sua formação intelectual, suas conexões, suas relações, seu patrimônio, suas carreiras profissionais”. Há, também, essa carência sobre os homens que viveram as possibilidades do vintismo no Maranhão. A análise do período constitucional no Maranhão, realizada a seguir, possui como fio condutor o personagem João Rodrigues de Miranda, de ativa participação nos debates ocorridos na província a partir da adesão ao constitucionalismo português, embora ainda seja quase um desconhecido pela historiografia maranhense. Como não atuou isoladamente, as teias de relações e também seus desafetos serão aqui evidenciados. O objetivo deste trabalho é, então,perceber os novos discursos dos grupos em disputa, os quais se pautaram nas ideias advindas da Revolução do Porto. A trajetória de Miranda pode ser percebida também pelos debates impressos travados nas páginas do jornal Conciliador2515e através dos Autos Cíveis de Libello de Filiação e Publicação de herança2516. *** João Rodrigues de Miranda iniciou suas atividades comerciais no Maranhão em 17982517, segundo o curador de sua herança Antônio Dias de Araújo Guimarães2518. Não por acaso, Miranda émencionado 2513

Graduada pela Universidade Estadual do Maranhão, 2014. Este artigo faz parte do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado Negócios e política em tempos constitucionais: percursos do negociante João Rodrigues de Miranda, sob a orientação do Prof. Doutor Marcelo Galves, apresentado em dezembro de 2013 na Universidade Estadual do Maranhão. 2514 O termo negociante refere-se aqui ao conceito de Théo Lobarinhas Piñeiro (2003, p. 72-73) como definição aos proprietários de capital com atividade diversificada: abastecimento, tráfico de escravos, empréstimos a particulares e ao erário. 2515 O Conciliador foi o primeiro jornal do Maranhão, criado em 15 de abril de 1821 - com as primeiras edições manuscritas -, apenas nove dias depois da adesão da província à Revolução do Porto. A criação do jornal foi amplamente apoiada por Pinta da Fonseca o que transparece, segundo Marcelo Galves (2010, p.74), “a preocupação de criar canais públicos de legitimidade”. O jornal se torna, assim, o espaço de defesa do governo agora constitucional de Pinto da Fonseca. 2516 O documento encontra-se em CADH/TJMA – Comarca de São Luis – Autos Cíveis/ 1836 – 5.f. Estes autos foram motivados por Isac Espós de Miranda, filho do negociante com sua ex-escrava Joana Maria Conceição, para comprovar a paternidade e ter o direito de receber a herança do pai já falecido. 2517 O negociante João Rodrigues de Miranda possui escassas documentações com informações biográficas. Informações sobre idade, local de nascimento, etc. são praticamente inexistentes (ou ainda não foram localizadas). Os dados aqui relatados foram encontrados em um dos poucos documentos com informações sobre o negociante, os Autos Cíveis de Libello de Filiação e Publicação de herança. 2518 Araújo Guimarães possuía loja em São Luis e foi assinante do Conciliador, assim como anunciante neste jornal (GALVES, 2010, p. 130; 347).

788 ISSN 2358-4912 continuamente como “antigo negociante desta praça”(Autos Cíveis de Libello..., 1836, p. 142)2519. Sendo Miranda natural de Portugal2520 e tomando como base a data mencionada pelo curador para sua chegada ao Maranhão, entende-se o seu interesse nesse deslocamento, visto que a então capitania se encontrava em ascensão econômica, estimulada anos antes, pela atuação da Companhia do Comércio do Grão-Paráe Maranhão. O desenvolvimento gerou aumento demográfico e de distribuição de terras: “450 doações de terras entre 1792 a 1798”(MOTA, 2012, p.28- 29). A região possivelmente ficou conhecida no além-mar como zona de oportunidades, além disso, jáse encontrava no Estado do GrãoParáe Maranhão um de seus irmãos, Antônio Rodrigues de Miranda2521, na época da Companhia de Comércio (CARREIRA, 1988, p.270; 286). Anos depois, João Rodrigues se instala no Maranhão, assim como seu outro irmão, Domingos Rodrigues de Miranda. Durante o governo de Pinto da Fonseca e perante as possibilidades abertas pelo vintismo2522, os irmãos Miranda se posicionaram em lados opostos nas refregas políticas2523: enquanto Domingos e João se tornam sócios2524 na arrecadação de importantes Contratos Régios2525e entram em rota de colisão com o governador, Antônio apoia a administração de Pinto da Fonseca2526. Antônio era membro do Corpo de Comércio, instituição que fortemente influenciada pelo comendador Meirelles2527, importante aliado do governador Pinto da Fonseca. Noutro contexto, os três irmãos, aparecem em lista publicada pelo Conciliador (nº166, 12/2/1823, p.3), entre os senhores “que possuídos de puros sentimentos de salvar esta Província”doam sacas de arroz para auxílio às tropas que lutavam contra a adesão a Independência em 1823, sendo Antônio Rodrigues um dos maiores doadores –20 sacas de arroz –; João e Domingos Rodrigues doaram 5 sacas cada um. Como jáobservado por Marcelo Galves (2010), as disputas constitucionais no âmbito do vintismo, pouco se articulavam a projetos de emancipação política. Contudo, a família unida contra a Independência parece, de fato, cindida sob outros assuntos. Anos mais tarde, no processo de Isac Espóz de Miranda, o testemunho de Antônio Rodrigues atesta a existência de sobrinhos –filhos de suas irmãs Maria Rodrigues de Miranda e Antonia Rodrigues de

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João Rodrigues de Miranda atuou, então, como homem de negócios sendo assim, era um dos responsáveis pela circulação de capital (CAMPOS, 2010, p.128) dentro do Maranhão. Fator determinante a partir de 1808, quando uma nova estrutura tributária é criada: Os Contratos Régios. 2520 Não foi encontrado o passaporte de João Rodrigues de Miranda. Chego à sua naturalidade através de seu irmão, Antonio Rodrigues de Miranda, que, como testemunha, afirma ser natural de Portugal. Autos Cíveis, 1836, p.20v. 2521 Antônio Rodrigues de Miranda aparece em dois registros da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, levantados por Antonio Carreira: Lista nominal dos indivíduos que enviavam ouro do Pará e do Maranhão, consignado à Companhia (1988, p.270); e Relação nominal dos colonos residentes no Pará que carregaram gêneros à consignação nos navios da Companhia (1988, p.285). 2522 Vantuil Pereira (2010, p. 65-71) aponta diversas transformações ocorridas na América portuguesa após a adesão ao movimento do Porto, tais como: a liberdade de imprensa e sua utilização como meio de disseminação de ideias; as tensões políticas geradas dentro da Assembleia Constituinte; e a constante busca pelo controle das ações revolucionárias. 2523 A documentação levantada não oferece subsídios para maiores considerações sobre o relacionamento dos irmãos antes do período aqui analisado. 2524 Há um registro de Domingos Rodrigues de Miranda como capitão de milícias em 1821 (AHU, CU 009, cx. 167, doc. 12.168). Em 1836, já com idade avançada, se apresenta como capitão reformado (Autos Cíveis de Libello..., 1836, p. 22v). 2525 João Rodrigues de Miranda possuía como sócio, além do seu irmão Domingos, Manoel José Medeiros. Juntos, arrematam três importantes contratos: Nacional das Meias Sizas dos Escravos Ladinos (AHU- ACL-CU-009CX.168, D.12249, doc. 0045); Rendimento do Subsídio Literário (AHU-ACL-CU-009- CX.168, D.12249, doc. 0064); e Rendimento dos Impostos para auxiliar o Banco do Brasil (AHU-ACL- CU-009-CX.168, D.12249, doc.0066). 2526 Fonseca torna-se governador do Maranhão em 1819 e após a adesão da Província a Revolução do Porto, em 1821, tenta se manter no poder, afirmando formar um novo governo constitucional. A partir de então, os grupos se dividiram favoráveis ou não ao novo governo de Fonseca. Vale ressaltar que o grupo opositor, que não aceitava o governador como representante possível do constitucionalismo português, provavelmente era o mesmo que se opunha anteriormente ao seu governo, formado por aqueles que “viam agora, a possibilidade de mudanças” (GALVES, 2010, p.21). 2527 Meirelles é considerado “o segundo maior comerciante da praça mercantil de São Luis”, que ganha destaque a partir do crescimento das exportações na província (MOTA, 2012, p.126).

789 ISSN 2358-4912 Miranda –vivendo em Portugal, “porém ignora os seus nomes e quantos são”. Em contrapartida, Domingos, também como testemunha, nomeia os filhos de suas irmãs que moravam em Portugal2528, segunda cartas que havia recebido (Autos Cíveis de Libello..., 1836, p. 20v.; 22v). Tais testemunhos transparecem certo distanciamento entre Antonio Rodrigues e seus familiares. Assim como possuía estreitas relações com seu irmão Domingos, João Rodrigues também possuía vínculos com seu outro sócio nas arrematações dos contratos régios, Manoel JoséMedeiros. Não por acaso, todos os três aparecem em abaixo-assinados de 18212529, com denúncias ao governo de Pinto da Fonseca. Deste modo, percebe-se as alianças feitas visando defender os mesmos interesses, o que caracteriza essas relações como familiares, econômicas e políticas. Dentro dessa mesma lógica, João Rodrigues de Miranda publica no Conciliador uma carta em defesa de Medeiros em 18232530, ano em que fora preso e expulso do Maranhão, pedindo a publicação da devassa que comprovava a inocência de Medeiros da acusação de conspirar pela Independência. Isto porque, o negociante era “procurador do Constitucional e probo cidadão procurador da primeira Câmara Constitucional da Cidade”(Conciliador, nº 208, 9/7/1823). Observa-se a continuação das relações após o fim dos contratos com o fortalecimento do grupo tanto para denúncias ao governo quanto para defesas entre si, exaltando suas atitudes como cidadãos. Ademais, a preocupação em provar que Medeiros não conspirou pela Independência, em pleno mês de julho de 1823, reforça a dissociação entre os embates na província e projetos de Independência. As defesas também ocorreram no sentido inverso. Quando Miranda encontrava- se preso2531, advogaram em seu nome integrantes da oposição, como: Miguel Inácio dos Santos Freire e Bruce2532, Manoel Paixão dos Santos Zacheo e Honório JoséTeixeira. Essas figuras de destaque na política do Maranhão, também encontradas nos abaixo-assinados que circularam àépoca, tentaram assegurar os direitos de Miranda. Miguel Bruce assina a Representação dos moradores... como advogado, proprietário e lavrador (AHU, CU 009, cx. 167, doc. 12.168). Ainda que não haja comprovação desta formação, Bruce era reconhecido como advogado, indicando que possuía um nível de conhecimento aceito ou, em última hipótese, ele poderia ser provisionado, ou seja, “advogado não formado que atua mediante a autorização dos órgãos competentes”(GALVES, 2010, p. 85). Em 1821, o juiz de fora JoséBento da Rocha e Mello elabora um Autoamento2533 contra Miranda, em que este éacusado de irregularidades na administração do Contrato da Meia Siza. Neste período, são nomeados procuradores pelo negociante: “o Reverendo Padre Felipe Benicio Rodrigues do Amaral, o

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Maria Rodrigues de Miranda foi casada com Pedro Antonio de Moraes e tiveram os filhos: Antonio Miranda de Moraes, João de Miranda Moraes, Maria Andre Moraes, Antonia Azevedo Moraes. A outra irmã, Antonia Rodrigues de Moraes casou-se com Manoel Rodrigues Ledo, sendo os filhos: João Rodrigues de Miranda Ledo e Antonia Rodrigues Miranda Ledo. Esta ultima também encontrada na documentação com o nome de Anna Rodrigues Miranda Ledo (Autos Cíveis..., 1836, p.18). 2529 Os abaixo-assinados são: Representação dos moradores do Maranhão ao rei..., de outubro de 1821, com 27 assinaturas (AHU, CU 009, cx. 167, doc. 12.168) e o Protesto de lealdade e reconhecimento..., de dezembro de 1821, contando com 65 assinaturas (IHGB, lata 400, pasta 10). Ambos com queixas e denúncias contra o governador Pinto da Fonseca e seus aliados, como o juiz de fora José Bento da Rocha e Mello. 2530 A carta também faz a defesa do “digno cidadão capitão” Bernardo Pereira de Berredo, expulso com Medeiros (Conciliador, no 208, 9/7/1823). 2531 João Rodrigues de Miranda foi preso em novembro de 1821 acusado pelo governo da província de falha na prestação de contas do contrato régio das Meias Sizas dos Escravos Ladinos e extorsão dos seus clientes (AHUACL-CU-009-CX.168, D.12.249, ft. 83). Para análise do processo aberto contra ele ver Luisa Cutrim (2013). 2532 A partir de 1823, Bruce presidiu as duas primeiras juntas de governo no pós-independência, antes de ser nomeado, pelo imperador, como presidente da província, cargo que ocupou até dezembro de 1824. (GALVES, 2010, p. 80). 2533 O processo completo está dividido em três partes: Requerimento enviado ao Soberano Augusto Congresso de João Rodrigues de Miranda, Negociante; Certidão com o theor dos Autos com que arrematou os ditos Contratos; e Autoamento do desembargador Juiz das Sizas José Bento da Rocha e Mello, contra João Rodrigues de Miranda (AHU-ACL-CU-009-CX.168, D.12249, ft. 44-120). A primeira delas consiste na defesa feita pelo próprio negociante, já na prisão; a segunda parte explica de que maneira foram arrematados os seus contratos; por fim, a explicação da sua prisão pelo desembargador Rocha e Mello, em que é feita também as defesas pelos seus procuradores. A análise de todo o processo é encontrado em Luisa Cutrim, 2013, Capítulo III.

790 ISSN 2358-4912 Capitão Miguel dos Santos Freire e Bruce, Antonio Manoel de Moraes Rego, e Joaquim Joze Simoes”(AHU-ACL-CU-009-CX.168, D.12.249, ft. 85). Como procurador, Bruce assume a condição de seu advogado, elaborando diversas peças de defesa, em que enumera os equívocos do processo. Ademais, Antonio Manoel Moraes Rego, também procurador de Miranda, pertencia a uma família de antigas relações com o grupo de oposição, que atuou ao lado de Bruce2534 (GALVES, 2010, p.193)2535. Os nomes daqueles que se alinharam como procuradores do negociante apontam para o delineamento de um grupo opositor agindo ativamente contra o governo provincial, inclusive na defesa do aliado Miranda, ainda que a organização entre oposição e aliados dependesse de diversos fatores e interesses mais complexos, não possuindo uma estrutura única e inalterada. Outro aliado de Miranda, Manoel Paixão dos Santos Zacheo2536, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1800. Dez anos depois, desembarcou em São Luís, cidade que vivia “as possibilidades abertas pela ampliação jurídica da capitania”2537(COSTA; GALVES, 2011, p. 28). Entre os anos de 1821 e 1822, Zacheo publicou diversos folhetos sobre a situação política do Maranhão. Em Os ultimos adeoses do Epaminondas Americano ao despotismo2538, publicado em 1822, aponta injustiças cometidas contra Miranda e faz sua defesa. O seguinte trecho evidencia sua posição:

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O Rendeiro das sisas dos Escravos, João Rodrigues de Miranda que em o anno de 1819 tinha feito sobir este ramo entrepidamente, e mais 4 em que se lançou [...] e tirado como por força e arrebatado da mão do antigo, e nato arrematante geral das Rendas Publicas; por quem houve a Junta da Fazenda huma constante affeição, teve huma enorme perda em se não effectuarem as vendas prohibidas naquella cautella desmedida. Esta cautela parece tendia sóacabrunhar hum tão digno Rendeiro, e a fortificar a liga que contra elle tinha feito a Junta da Fazenda auxiliada pelo Desembargador Presidente da Camara JoséBento da Rocha e Mello, exigindo daquelle admirável Arrematante, Miranda, manifestos de lucros, perdas, orçamentos, declarações erubricas de livros, que além de não terem sido estipuladas no Contracto de 1819, expunhão de mais a mais, ou a huma inveja ou a huma irrisão sua boa ou máfortuna (ZACHEO, 1822, p.17).

O advogado sempre que possível aponta as qualidades de Miranda, como “tão digno Rendeiro”e o aumento dos lucros das arrematações em sua administração; também se refere à“constante affeição”que possuía na Junta da Fazenda o antigo arrematante, sem citar o nome (provavelmente, trata-se do comendador Meirelles, antigo arrematador dos contratos régios, como das sizas e da carne verde). Zacheo também acusa o “antigo rendeiro”e a Junta da Fazenda de dificultar a atuação de novos contratantes, jáque Miranda teria “tirado como por força”os rendimentos que arrematou. O comendador Antonio José Meirelles era desafeto de Miranda desde 1817, quando este assumiu o cargo de Almotacé, no período da administração do governador Paulo Joze da Silva Gama (1811-1819), e fora acusado por Meirelles de obstruir seus interesses2539 (GALVES, 2010 p. 164). Nos inúmeros 2534

No ano seguinte, em fevereiro de 1822, Miguel Bruce encaminhou às Cortes “huma queixa contra o governador Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, mostrando a necessidade da creação da nova Junta” (Conciliador, nº 97,11/5/1822). 2535 No entanto, essas relações são muito mais complexas e fluidas, como o exemplo do Pe. Felipe Benicio que anos depois, em 1824, participa da Junta Expedicionária, agrupamento heterogêneo que tentou depor Miguel Bruce da presidência da província (GALVES, 2010, p. 204-205). 2536 O nome de batismo do advogado provavelmente era apenas Manoel Paixão dos Santos. “Zacheo” teria sido acrescido depois, provavelmente nos embates vintistas, momento em que tornou-se um importante publicista, com a impressão de, pelo menos, sete folhetos. Segundo Yuri Costa e Marcelo Galves (2011, p.27), “Zacheo” seria uma possível referência ao “puro”, termo de origem hebraica. 2537 No período da chegada de Zacheo no Maranhão, foi aprovada a instalação na capitania de um Tribunal da Relação. Zacheo atuou como advogado e juiz em diversas vilas do interior da capitania (COSTA; GALVES, 2011, p. 28). 2538 Epaminondas Americano era o heterônimo usado por Zacheo, numa referência ao general tebano, que seria conhecido por jamais mentir (COSTA; GALVES, 2011, p. 27). 2539 Ao final do processo de João Rodrigues de Miranda há atestações de figuras públicas sobre a boa atuação do negociante como almotacé, defendendo os interesses da população em um período de dificuldade no abastecimento da carne verde na cidade e altos preços. Possivelmente, as reclamações de Meirelles sobre Miranda referem-se a essa “intromissão” nos seus negócios, visto que era o responsável pelo Contrato das Carnes Verdes (ACL-CU-009-CX.168, D.12.249, ft. 156-158).

791 ISSN 2358-4912 instrumentos de defesa de João Rodrigues de Miranda constam reclamações ou denúncias ao comendador, sendo continuamente responsabilizado - juntamente com Pinto da Fonseca e a Junta da Fazenda - pelo processo que respondia. A afirmação recorrente era de haver “motivos particulares" para acusação e consequente prisão do negociante, sendo a má administração do Contrato da Meia Siza apenas um pretexto. (AHU-ACL-CU-009-CX.168, D.12.249, ft.0046) Outra figura importante no grupo opositor foi o coronel Honório JoséTeixeira, recorrente nos embates do período, principalmente por também ser desafeto de Antonio JoséMeirelles. Teixeira foi um importante comerciante no Maranhão e assim como outras figuras jáanalisadas, não constava no Corpo de Comércio e Agricultura, agrupamento controlado por Meireles. Sobre tal ausência, Marcelo Galves (2010, p. 126) observa: “A sintomática ausência de Teixeira revela que a ascensão econômica e política dos negociantes não se deu de forma homogênea e aponta as clivagens existentes dentro dessa fração”. O pai do negociante Teixeira era Caetano JoséTeixeira, um dos principais comerciantes de escravos da capitania. Após a morte do pai, em 1818, ele não consegue deixar os negócios no mesmo patamar e, neste contexto, Meirelles se fortalece como comerciante de escravos2540. A partir da adesão do Maranhão ao movimento do Porto, Teixeira passa a atuar ativamente no cenário político2541, opondose ao governo de Pinto da Fonseca a partir do financiamento de impressões dentro e fora do Maranhão (GALVES, 2010, p. 73). Como exemplo da atuação de Teixeira, junto a outros personagens de oposição2542, há o suplemento ao nº 82 do Conciliador, de março de 1822, com a reprodução do Requerimento Dirigido ao Soberano Congresso por 48 habitantes, em que se colocam como “públicos acusadores” do governador Pinto da Fonseca e do comendador Antonio José Meirelles. Dentre outras denúncias, está a que trata da “prisão do honradíssimo, e probo Negociante, João Rodrigues de Miranda”, afirmando ter sido ocasionada por vingança tanto do comendador Meirelles quanto do desembargador Rocha e Melo (Conciliador, no 82, 24/4/1822, p.5); o coronel Honório José Teixeira também assina, ao lado de Miranda, o Protesto de Lealdade... (IHGB, lata 400, pasta 10),abaixo-assinado enviado para as Cortes portuguesas em 1821 com denúncias a administração de Pinto da Fonseca, que contava com 65 assinaturas.O que se percebe a partir dos abaixo-assinados são as relações entre figuras influentes no Maranhão, unindo forças para tornar públicos seus descontentamentos, novidade dos tempos constitucionais. Além disso, observa-se o delineamento de um grupo opositor até certo ponto coeso. Ademais, as defesas feitas aos aliados no grupo opositor, como João Rodrigues de Miranda e Manoel JoséMedeiros, demonstram a utilização dos novos preceitos constitucionais, como o Direito do agora cidadão, assim como a liberdade de imprensa, instituída pelo vintismo. É importante observar que as denúncias, em sentido inverso, também se pautam nas leis vigentes, o que fortalece a ideia do constitucionalismo.

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Considerações Finais A partir dos percursos do negociante épossível apreender figuras importantes e em conflito dentro dos grupos dominantes, como: Antônio JoséMeirelles, Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, JoséBento da Rocha e Mello, Domingos Rodrigues de Miranda, Honório JoséTeixeira e Miguel Bruce. As redes que envolviam Miranda possibilitam o entendimento dos grupos em litígio, cujas disputas foram potencializadas pelo constitucionalismo. De um lado, encontrava-se o governador Pinto da Fonseca e seus aliados, tentando se manter no poder por intermédio de novos preceitos constitucionais.; do outro lado, o grupo opositor que, utilizando-se do mesmo constitucionalismo, lido de outra maneira, se posiciona contra a continuidade do antigo governo.

2540

Em 1822 Meirelles perde seu contrato régio das carnes verdes para outros negociantes, incluindo Honório Teixeira. 2541 Honório José Teixeira chega a ser preso em 1821 acusado de “sublevação por ocasião da chegada das notícias da Revolução do Porto no Maranhão” (GALVES, 2010, p.62). 2542 Dentre eles, o próprio irmão de João Rodrigues de Miranda, Domingos Rodrigues de Miranda (Conciliador, no84, 24/3/1822).

792 ISSN 2358-4912 Deste modo, por meio das teia de relações do negociante épossível perceber os grupos que então se formavam atécerto ponto coesos e que se utilizam das novidades do constitucionalismo para alcançar transformações dentro do Maranhão. Com o fortalecimento da oposição háas contínuas denúncias contra o governo local, por meio de abaixo-assinados e folhetos, ambos com a participação de Miranda. Muitos desses folhetos e abaixoassinados também eram encaminhados às Cortes, reafirmando o papel que possuía como instância reguladora das refregas provinciais. Além disso, o Conciliador –jornal disseminador das ideias ditas constitucionais do novo governo –foi também centro desses dissensos, publicando os reclames para fazer as devidas réplicas. Os embates impressos também faziam parte das transformações advindas com Revolução do Porto. João Rodrigues de Miranda e os personagens a sua volta possibilitam visualizar mais de perto o Maranhão no contexto vintista, levando, consequentemente, a uma compreensão mais completa. Adentrando naquilo que Hespanha (2005, p.44) chama de “dimensões interindividuais do poder”, ou seja, quando questões muitas vezes invisíveis analisadas em macroescala “tornam-se altamente significativas na microescala de um pequeno grupo”.

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A PRÁTICA DA MÚSICA E SUAS FRONTEIRAS: A ARTE LIBERAL ENTRE A ESCRAVIDÃO E O TRABALHO MECÂNICO NAS MARGENS DO ATLÂNTICO (SÉCULOS XVII – XIX) 2543

Luiz Domingos do Nascimento Neto

Ainda na Idade Média, a música se enquadra entre as sete artes liberais2544, pertencente a um sistema de classificação dos campos do saber que remota o século XII, cuja fonte de influência é a Antiguidade Clássica, que tem a Filosofia como Ciência suprema. A música se localiza numa categoria chamada quadrivium juntamente com a geometria, a aritmética e a astronomia compondo as artes do número e das coisas2545. Porém, para este período, ela é tida como mais um saber fazer de artesão, executada por “gente miúda” ligada as corporações de ofício e indigna de ser considerada uma arte liberal de fato. Cenário que começa a se transformar no Período Moderno com o advento do movimento renascentista, responsável por pleitear a inserção da música e de outras linguagens no hall das artes liberais. Neste interim, a fixação da corte portuguesa em Lisboa contribui para a formação de uma categoria de profissionais especializados ligados a música, atendendo assim o interesse crescente desta nobreza palaciana por serviços e obras que não podiam mais ser executadas por qualquer um “entendido de música” que não trouxesse em si as prerrogativas acadêmicas necessárias. O crescimento da Corte levou a uma correspondente necessidade de obras com conteúdo profano, colaborando também para que os mandatários contratassem ou artistas itinerantes ou aqueles disponíveis nas cidades, mas ainda presos ao sistema das corporações medievais. Por vezes, conduzidos para as cortes da Europa Centro Ocidental em razão de seus talentos, os artistas foram incorporados em cargos e funções incompatíveis com sua qualidade e condição social inferior, recebendo seus pagamentos mediante salários fixos, diferentemente das encomendas específicas, e casuais dos artesãos das cidades nos séculos XVII e XVIII2546. À medida que suas obras ganhavam o reconhecimento e a reverência da sociedade de corte, o artista recebia um tratamento distinto com direito a títulos e honrarias, insígnias extremamente cobiçadas por seus pares, designações valiosíssimas no universo das cortes, como a de: familiar do rei, de mestre da capela real, de valete ou camareiro do rei, condições especiais que pressupunham o convívio direto com os soberanos2547. Pensando sobre o paradoxo artista/artesão, tanto em Portugal como em outras Cortes da Europa as Artes Liberais eram percebidas como resultado do trabalho do espírito prontamente associada às camadas elevadas da sociedade, e com a sedimentação de uma cultura cortesã algumas artes como a pintura e a música tiveram uma ampliação daquilo que nelas era devido ao espírito, à função intelectual, em detrimento de seus aspectos artesanais2548. Entre os músicos portugueses fica evidente sua tentativa de enobrecimento de sua arte à medida que esses se organizam sob o amparo da Irmandade de Santa Cecília e conseguem aprovação de seu Compromisso (1766), deixando claras as interdições ao acesso a aqueles que possuíssem a “mácula mecânica”. Fato que coloca em apuros a reputação e a pretensa superioridade do artista em relação ao artesão. Realidade que inclusive é compartilhada pelos músicos que também atuam na América Portuguesa ao longo dos setecentos. Como exemplo, o músico 2543

Texto adaptado de: NASCIMENTO NETO, Luiz Domingos do. Cor, suor e som: Inserção social e prática musical no Recife (c.1789- c.1822). Recife: UFPE, 2014. pp. 52-67. (Dissertação de Mestrado) Email: [email protected] 2544 Chamava-se “livre” (liberalis), a “arte” (ars) que fosse digna de um homem livre, portanto, a que não fosse exercida por meio do trabalho físico nem em vista de uma remuneração; a que fosse exercida por prazer desinteressado. WARNKE, Martin. O artista da Corte: os antecedentes dos artistas modernos. São Paulo: Editora da USP, 2001. p. 65. 2545 VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Bauru: EDUSC, 2001. p. 74. 2546 WARNKE, Op. Cit., pp. 183-193. 2547 Idem, p. 165-183 2548 GOMES JÚNIOR, Guilherme Simões. Vidas de artistas: Portugal e Brasil. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 22 n. 64, jun. 2007. p. 34. Disponível em: em:

795 ISSN 2358-4912 Ascênsio Correia, mestre de capela da Sé de Olinda em requerimento enviado em 24 de maio de 1727 registra as queixas do músico e de seus pares que estão sofrendo impedimento no exercício de sua arte por parte do vigário geral. O requerente clama em nome de si e de seus pares pela real mercê para livrálos das intromissões eclesiásticas em sua arte e nas suas finanças2549. Este exemplo demonstra que mesmo antes da provável existência de Santa Cecília, os músicos procuravam articulações com as instâncias de poder, visando à tranquilidade no exercício de sua arte; para que seu saber não fosse amplamente difundido, e consequentemente, considerado um “relés” ofício mecânico. Percebendo que os que vivem da música nas duas margens do Atlântico encontram-se por vezes em condições distintas, ora inseridos, ora negociando por esta inserção. É provável que esta inconstância seja fruto dos limites que circunscrevem o lugar social da arte da música nestes dois espaços. Mas quais são estes limites? Por que os músicos perseguem este estatuto de arte liberal? Não procuraremos aqui fechar esta e outras questões, antes lançar luzes sobre o tema. Partindo destas questões, vejamos o trecho extraído do documento abaixo que diz: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Não serão admitidos na Irmandade se não, os professores, que tenhão verdadeira inteligência da Música, ou pessoas nobres, excluindo toda a que exercitar officio mecânico, ou mulheres, que ocupem em tratos baixo, e vis. Poderão porém ser admitidos letrados, Medicos e Cirurgioes, não só pela nobreza de seus officios mas tambem pela utilidade, que deles póde refultar á Confraria; e o mesmo se permite a respeito dos Religiosos, que se obrigarem as leys deste compromisso2550. As primeiras linhas do Compromisso da Irmandade de Santa Cecília de Lisboa de 1766 deixam claros os critérios de seleção de seus confrades. Se haviam restrições, é por que provavelmente se faziam presentes no cenário urbano da cidade, aqueles que ao mesmo tempo atuavam de forma profissional com a arte da música e estavam envolvidos em “degradantes” ofícios mecânicos. No entanto, as interdições dos confrades de Santa Cecília não impediram que a atividade musical fosse desempenhada por gente que não possui a verdadeira inteligência da Música. Assim sendo, a especificidade deste documento parece querer nos revelar um “território de tênues fronteiras”, onde a arte musical se assenta. Estas fronteiras são demarcadas pela existência do trabalho escravo e o desprezo aos ofícios mecânicos, características compartilhadas pelas sociedades, apenas divididas pelo Atlântico, mas unidas sob signos de poder da Casa Real dos Bragança. Seguindo este curso, os profissionais da música estabelecem um limite que visa os distanciar do que vamos chamar de: territórios estigmatizados (escravidão e ofícios mecânicos), responsáveis por lançar os sujeitos para a base da estrutura hierárquica da sociedade. Em primeiro lugar, vale ressaltar, que mesmo antes da implementação da escravidão africana nos seus Domínios Atlânticos, Portugal abre-se para um lucrativo comércio desde o século XV (mais precisamente em 1441) mediante as primeiras levas de escravos oriundas da chamada: África Negra.2551. Este crescente contingente de escravos, gradativamente, começou a partilhar os espaços de trabalho em regiões mais ruralizadas, mas principalmente no cenário urbano em funções especializadas2552. Aspectos do estatuto jurídico do modelo romano em relação à escravidão se mesclaram com elemento do pensamento cristão propiciando a legalidade e legitimidade da ampla difusão deste tipo de mão de obra que contou com o crescimento das cidades portuárias, como Lisboa e Porto, onde os pretos (assim chamados) foram direcionados para os trabalhos domésticos e artesanais atendendo as demandas

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AHU – Avulsos de Pernambuco - Cx. 35, D. 35, D. 235. ANNT- Ministério do Reino, livro. 519. Compromisso da Irmandade da Gloriosa Virgem, e Martyr S. Cecília, sitio na Igreja de S. Roque desta cidade, confirmado por El Rey Fidelíssimo D. Jozé I como régio protecto da dita Confraria e ordenado pela dita Irmandade em o anno de 1766. Lisboa, na officina de Miguel Rodrigues, Impresso do eminentíssimo Cardial Patriarca – M.DCCLXVI. p.2. 2551 SCHWARTZ. Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.p. 23. 2552 TINHORÃO, José Ramos. Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. Lisboa: Editorial Caminho, 1988. pp. 92-93. 2550

796 ISSN 2358-4912 geradas pelo processo de expansão marítima e comercial, o que fez destes centros polos de atração populacional de grande envergadura na “era dos descobrimentos” 2553. Mesmo após o remanejamento do comércio escravo para atender a economia canavieira entre os séculos XVI e XVII, e por seguinte, a mineração ao longo do XVIII, Portugal contava com um pequeno, mas não totalmente inexpressível contingente de negros que comercializavam nas ruas das grandes vilas e cidades. Neste cenário setecentista de sociedade de corte2554, a participação de forma profissional de músicos negros na execução da música nos espaços permeados pela elite cortesã era pouco provável. Em primeiro lugar, desde o início do governo de D. João V, este monarca buscou rivalizar com seu contemporâneo Luís XIV (o famigerado Rei Sol) em termos de ostentação e requinte, e, sobretudo, no cultivo das belas artes2555. Destarte, seria inadmissível na Corte e nos espaços privilegiados da música (igrejas, teatros e casas de ópera) a atuação de escravos, já que na corte francesa, e consequentemente na portuguesa, os músicos profissionais eram formados por renomados artistas do Reino e de seus vizinhos. Em segundo lugar, a admissão de negros, com o agravante de serem escravos seria considerada uma afronta aos nobres praticantes desta arte digna de um homem livre, e um elemento de inferioridade frente à Corte dos Bourbons. Segundo Nobert Elias entre o século XVIII e o XIX, a Europa assistiu a construção de um gosto musical requintado patrocinado por uma burguesia outsider que disputava em todos os campos do simbólico se estabelecer aos moldes de uma aristocracia de corte, mesmo sendo estes últimos establishment com amplos poderes e redes de influência. Através da trajetória de Mozart na corte austríaca, Elias aponta para um mercado profissional extremamente competitivo, onde músicos profissionais dependiam quase inteiramente do patronato, submetendo sua produção enquanto artista ao gosto da corte e dos círculos aristocráticos. Em termos hierárquicos, os músicos se encontravam na condição de criados de libré, tão essenciais nos ritos do cotidiano da corte quanto um pasteleiro ou cozinheiro, sendo a maioria destes artistas satisfeitos quando estavam empregados e poderiam garantir sua subsistência2556. Logo a participação escrava no mundo musical cortesão foi restringida por uma concorrência de músicos especializados, sendo a musicalidade dos primeiros relegada aos seus ajuntamentos e festejos em torno da Irmandade do Rosário. Já na margem oeste do Atlântico, a escravidão negra estava amparada por: uma longa tradição no trato negreiro; e pelo volume considerável de negócios que implicava no comércio de pessoas, gerando uma grande fonte de divisas ao Reino. As demandas lançadas pela economia açucareira nos séculos XVI e XVII e, por conseguinte, com o advento da mineração foram essenciais para o incremento do comércio escravo2557. Na segunda metade do XVIII registramos mudanças estruturais na economia

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Inclusive neste contexto, a própria Corte portuguesa experimentou um crescimento populacional considerável (com a atração da nobreza rural para a sede da monarquia) após sua fixação em Lisboa, o que alavancou ainda mais as necessidades de mão de obra especializada em determinadas artes e ofícios. SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império asiático português 1500-1700: uma história política e econômica. Lisboa: Difel, 1993. pp. 54-56. 2554 Entendemos a sociedade de corte, segundo a perspectiva de Nobert Elias que a compreende como um fenômeno social bem definido, formado por indivíduos interligados, e que não é planejado, desejado ou almejado por nenhum indivíduo em particular, nem por um grupo em específico. Antes todos se encontram imersos numa rede de competição por prestígio, formando um cenário de inúmeras rivalidades, por vezes manipuladas ao bel prazer do monarca que busca demonstrar com este controle a legitimidade do seu poder sob os signos, ritos e sujeitos que compunham a nobreza palaciana. ELIAS, Nobert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2001. pp. 61-65. 2555 MARQUES, António Henrique Rodrigo de Oliveira. História de Portugal. v. 1. Lisboa: Edições Agora, 1973. p.569. 2556 ELIAS, Nobert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. pp. 16-18. 2557 Segundo os dados levantados a partir da The Atlantic slave trade por Luiz Felipe Alencastro, entre 1551 e 1860, o Brasil registra a entrada de cerca de 4. 029, 800 de escravos em seus portos, o que de longe o coloca na primeira posição do rank em nível de importações durante o período, superando inclusive todo o contingente de escravos embarcados para toda a América Espanhola que contabiliza pouco mais de um milhão e meio de escravos africanos. ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.69. É evidente que estes dados são passíveis de variação, dado o fato da inexistência de grande parte da documentação referente ao comércio negreiro para o Brasil durante este longo

797 ISSN 2358-4912 colonial que apontam para uma situação de declínio, e consequentemente, queda da média de escravos transmigrados da África, entretanto, essas mudanças não significaram o colapso total do comércio negreiro2558. Esta presença substancial de uma população de cor (sob condição escrava ou não) foi percebida em meados do século XVIII, como uma ameaça interna a segurança dos domínios coloniais portugueses, sendo caracterizada como uma massa heterógena (devido à existência de africanos procedentes de diversas regiões do continente negro) 2559 de vadios e desocupados sempre propensos à rebelião2560. Deixando de lado os temores, em relação ao exercício da já referida arte, cronistas e viajantes registraram informações que dão conta, inclusive, da atuação de escravos como músicos. Em alguns casos, como signo de jactância, senhores de engenho, ainda no século XVIII, mantinham em suas propriedades pequenas orquestras musicais responsáveis em solenizar as celebrações do calendário litúrgico da igreja católica, ou animavam a família senhorial e seus convidados nos ritos da vida privada no inteiro da casa grande. Na região das minas, os negros eram conhecidos por atuarem como charameleiros2561 junto às irmandades católicas, recebendo por tocar instrumentos de sopro nas festas religiosas2562. Para reforças a presença escrava no exercício da música, um carta de 5 de novembro de 1774, emitida por Afonso Botelho de Sampaio e Sousa ao governador da Capitania de São Paulo, Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão o seguinte: Ordena-me a V. Exª para a que mande para esta cidade um mulatinho músico que assiste em casa de João de Maciel. Logo o mandei aprontar foi preciso estes dous dias de dilação para se trazerem algum fato2563, porém foram enviado de Santos para a sede da capitania quatro músicos negros para que os melhores sejam escolhidos para estarem a serviço do governador. Temos aí exemplos da atuação de cativos na prática musical, no entanto, o que de fato se sabe é que foram raríssimas as informações sobre a música praticada e a identidade destes músicos negros, sejam eles escravos, ou mesmo libertos, num período que vai até fins do século XVIII. A ausência destes registros se explica na preocupação destes cronistas em relatar maiores detalhes da atividade musical indígena, do que a que era realizada por africanos e crioulos. Ademais, na maior parte dos casos da documentação colonial a identidade dos cativos aparece unicamente em registros de batismo ou casamento, alforrias, inventários ou testamentos de seus donos. Sendo assim, os nomes de músicos negros que atuavam nos espaços de sociabilidade ou no mercado profissional aberto a está arte, foram silenciados por grande parte dos registros. Geralmente, estes sujeitos que reproduziam peças musicais europeias para “saciar” o gosto elitista, apareciam indiscriminadamente nos relatos sob a nomenclatura de orquestra de negros; já os envolvidos em manifestações populares eram descritos como uma massa uniforme de vadios que promovia os batuques, calundus e outras manifestações de origem africana, corriqueiramente desprezadas pelo olhar estrangeiro e combatidas pelas autoridades V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

período, contudo este resultado reforça a concepção de quão relevante e profunda foram as marcas deixadas pela escravidão africana. 2558 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: família escrava e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c. 1850: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p.47. 2559 Para uma maior compreensão, indicamos: HALL, Gwendolyn Midlo. Cruzando o Atlântico: etnias africanas nas Américas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 6, n. 10, jan.-jun. 2005. Disponível em: < http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi%2010/topoi10a2.pdf>. LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do termo mina. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 20, jan. 2006. Disponível em: < http://www.historia.uff.br/tempo/site/?cat=48 >. 2560 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 156. 2561 Segundo Bluteau: o que toca charamela ( instrumento músico de sopro, a modo de trombeta direita, de certas madeiras fortes tem uns buracos). BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. v. 1 Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1727. p 263. Disponível em:< http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1>. 2562 LANGE, Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica: Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. v.5. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1981. pp. 147-189. 2563 BN/RJ- Catálogo de Manuscritos - I-30,19,007 nº003, fl. 1.

798 ISSN 2358-4912 instituídas2564, salvo o tratamento dado pelo governador José César de Menezes a estes ajuntamentos de negros numa querela envolvendo frades regulares no Recife setecentista2565. Opondo as realidades Atlânticas chegamos as seguintes conclusões: em Portugal a circulação de músicos negros nos espaços da vida cortesã protagonizadas pelas elites da corte é praticamente nula, devido o grande número de músicos reinóis e estrangeiros disponíveis e o caráter degradante de se manter orquestras compostas por homens de cor; enquanto na margem de cá, as raízes profundas da escravidão fincadas na sociedade mestiça da América Portuguesa não inviabilizaram completamente as possibilidades de atuação de cativos na prática da arte musical, responsáveis em reproduzir músicas sacras e profanas ao modo português para entreter uma elite, que se percebiam como extensão de uma sociedade de corte2566. Ademais, os músicos profissionais, que buscavam prestígio na América Portuguesa conviviam com a realidade da presença escrava atuante no mercado musical. Pois ao contrário do Reino, essa presença não se limitou aos batuques improvisados que mesclavam elementos culturais distintos que não exigiam apropriação técnica da música ocidental, nem se figurava numa atuação remunerada (em muitos casos). No entanto, outro limite, por vezes se estabelecia como fronteira da arte musical nas duas margens do Atlântico: o trabalho mecânico. Ele foi um importante elemento sociocultural que ajudou a construir a “inferioridade social” dos artesãos na Europa moderna, que de certa forma, eram herdeiras da Roma antiga e, por conseguinte, “cultuavam o ócio”. Na sociedade grega, ao hierarquizar e classificar as especializações profissionais, o filósofo Aristóteles realizou a distinção entre as artes mecânicas como “menores” porque eram definidas como mercenárias e pouco intelectualizadas. Nesta perspectiva, elas eram desvalorizadas socialmente porque objetivavam, principalmente, a especulação financeira e a desonestidade. Estes seriam, portanto, na Antiguidade, os elementos que constituiriam a “essência” do “defeito mecânico”. Já no período medieval, por sua vez, o “defeito mecânico” se associou ao “tabu da impureza” cristã, que desprezava as vivências no mundo do trabalho manual. Sendo assim, os trabalhadores artesanais e os demais profissionais que executavam esforços físicos ainda acumularam sobre si os estigmas da “pouca inteligência” e o do “pecado original2567”. Sob a perspectiva da sociedade escravista entre trabalho e punição, o ócio era um dos principais valores culturais que distanciavam o homem livre do cativo, assim sendo, a demonstração social do ócio se transformou num dos principais signos de abastança, ou de conforto, ou de “vida digna” 2568 dos que pretendiam se afastar da “mácula mecânica”. Porém não só o ócio se impôs como signo maior de distinção social nas margens do Atlântico, segundo Nuno Gonçalves, a busca dos chamados “ofícios da governança” eram uma constante aqueles que queriam angariar prestígio, principalmente quando não possuíam um esclarecido nascimento. Exercer um cargo de governança, muitas vezes sem remuneração alguma, antes com ônus a pagar significou graus distintos de nobilitação que variam do ser nobre ao viver como nobre2569. Também os músicos coloniais se apropriaram deste vetor de distinção, dado o fato que muitos V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CASTAGNA. Paulo. “Música na América Portuguesa”. In: MORAES, José Geraldo Vinci de; SALIBA, Elias Thomé (Org.). História e música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. pp. 50-51. 2565 Em 1778 o então governador entrou em choque como os monges Capuchinos do Convento da Penha em relação as concessão dada a população negra em relação aos batuques realizados em seus festejos. Depois da investida violenta dos Regulares em relação aos batuques e ajuntamentos negros, José César de Menezes repreendeu os frades e obrigou os mesmo a indenizarem os negros prejudicados. Para maiores informações ver: SILVA, Wellington Barbosa da. Burlando a vigilância: repressão policial e resistência negra no Recife do século XIX (1830-1850). Disponível em: 2566 Podemos perceber está ideia de vassalagem real por parte da sociedade colonial, tomando como exemplo: os rituais fúnebres da realeza que eram reproduzidos em diversas vilas coloniais com o intuito de aproximas os reinóis e seus descendentes da figura do rei, ou seja, trazer o ausente para perto, potencializando de forma representativa e simbólica o sentimento de pertencimento. PAULA, Rodrigo Teodoro de. Música e Representação nas Cerimônias de Morte em Minas Gerais (1750-1827): Reflexões para o estudo da memória sonora na festa. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Geral, 2006. pp. 81-83. (Dissertação de Mestrado). 2567 RIOS, Wilson de Oliveira. A Lei e o Estilo: a inserção dos ofícios mecânicos na sociedade colonial brasileira (Salvador e Vila Rica, 1690-1750). Tese de doutorado. Niterói, ICHF-UFF, 2000. pp. 15-19. 2568 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.p. 95. 2569 MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas Monteiro. Elites e poder: entre o antigo regime e o liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007. pp. 48-49.

799 ISSN 2358-4912 buscavam se inscrever nos corpos de milícias não remunerados2570. Enfim, nas sociedades de corte a indiferença ao trabalho manual persistiu como elemento que viabilizava a distinção clara entre nobres e plebeus, acentuando ainda mais o caráter hierárquico das relações sociais que não ficaram restritas apenas aos centros políticos europeus, antes se estenderam também aos domínios coloniais. No Novo Mundo, os códigos de inclusão e exclusão utilizados pelas elites locais, somados as regulamentações régias determinam, inclusive, a composição hierárquica entre os grupos marginalizados. Por exemplo, na América Portuguesa entre escravos e libertos criam-se hierarquias relacionadas à gradação da cor (mulato, pardo, crioulo, etc.), procedência (africanos ou filhos destes) e cargos exercidos em irmandades ou corporações de ofício. Estas hierarquias buscam dar coesão às relações sociais dos outsiders entre si, e entre outras insiders em estamento superior. Logo entendemos que os antagonismos presentes entre as elites refletiam-se nos diversos extratos sociais, definido campos de intensa luta por poder e dinâmica redes de negociação. Podemos perceber a mácula gerada pelo “defeito mecânico” na citação de Evaldo Cabral de Mello quando discuti acerca das estratégias de nobilitação na Colônia, mediante a aquisição de hábitos militares:

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Ademais da distinção racial, o “defeito mecânico”, ou seja, o trabalho manual, reputado envilecedor, exercido seja pelo próprio interessado seja por seus antecedentes. Das camadas dominantes, o exclusivismo filtrou para toda a sociedade, inclusive para a população rural2571.

Este sentimento de exclusivismo é tal qual o “fio de Ariadne”, que guia, inclusive, os sujeitos praticantes da arte da música nos labirintos da sociedade colonial, pois a distinção social e a proximidade com as artes liberais sempre foi um bem perseguido por estes sujeitos tanto no Reino como na Colônia. Já que a hierarquização das funções tinha consequências ao nível do estatuto jurídico e político das diversas camadas da população, onde a cada grupo era reservada uma função e garantia, a cada um, os meios para seu desempenho2572. Sendo assim os músicos não fugiram a regra e buscavam criar uma hierarquia horizontalizada para se distanciarem do trabalho mecânico e da condição escrava. Em 05 de novembro de 1818 os músicos da Irmandade de Santa Cecília de Ouro Preto, sediada na matriz do Pilar, por intermédio de um requerimento solicitam ao Rei D. João VI que observe o Alvará Régio assinado por D. José I em 17602573, e garanta aos músicos desta vila, associados à irmandade, primazia sobre os serviços musicais na região2574 já que se encontravam molestados no tocante a sua arte e em paupérrimas condições2575. Este exemplo nos releva que os músicos se puseram cientes da legislação concernente a sua atividade, fato que revela a face de um grupo atuante, dominante, em partes, de uma cultura letrada que os possibilita remeter-se ao próprio monarca, tendo o respaldo legal para que se faça valer seus interesses frente às pretensões de terceiros que 2570

NASCIMENTO NETO, Op. Cit., pp.146-154. MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. Rio de Janeiro: Topboocks, 2000. p. 26. 2572 COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (Séculos XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: Fapemig, 2009. p.74. 2573 O referente documento, afirma a proteção real sobre a prática da música realizada pelos confrades da Irmandade de Santa Cecília em Lisboa, que viam se molestados em sua arte por sujeitos não associados a agremiação. Com base neste documento, os músicos oitocentistas das Minas Gerais buscavam as mesmas garantias. Este alvará encontra-se disponível em: 2574 BN/RJ – Seção de Manuscritos - II-36,05,059. 2575 É digno de nota o estado de declínio econômico da região e de pobreza generalizada afirmada pelos confrades de Ouro Preto neste documento, entretanto, este fato deve ser observado com cautela. Não devemos perder de vista que se trata de um documento de suplica repleto de bajulações e superlativos com intenção de mobilizar a atenção real. Como já discutimos anteriormente, a estagnação da produção mineradora em níveis bastante inferiores a partir de meados do XVIII não significou o “eclipse total” desta região, antes contribui, por exemplo: para uma diversificação das atividades profissionais. PAIVA, Eduardo França. Minas depois da mineração (ou o século XIX mineiro). In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Império: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 271-308. Inclusive Laura de Melo e Souza aponta a atividade musical como uma das possibilidades de inserção, principalmente, de homens de cor livres ou escravos. SOUZA, Laura de Melo e Souza. Opulência e Miséria das Minas Gerais. São Paulo: Brasiliense, 1997.p. 55-56. 2571

800 ISSN 2358-4912 “inviabilizam” o sustento de Santa Cecília e o monopólio sob os serviços músicas. São estes sujeitos que enquanto artistas estão aparados pelo beneplácito régio, e não se julgam como oficiais mecânicos (a margem desta proteção). A escravidão como parâmetro condicionou um lugar de inferioridade a todas as atividades manuais, mesmo as que exigissem de forma visível maior elaboração intelectual, em detrimento da força física, como era o caso da música. Logo os que sobreviviam desta arte caiam por vezes no desprestígio por serem frequentemente associados à escravidão, pois o seu “saber fazer” ainda encontrava se associado noção de um fazer artesanal mais percebido como serviço prestado ao custo de uma remuneração, o que o distanciava da noção de arte liberal2576. Percebemos que a realidade colonial com suas especificidades em seu tecido social permitiu de forma circunstancial os músicos estabelecerem um status de distinção por vezes conferindo-lhes um lugar a salvo dos estigmas imputados a mecânicos e escravos. O que semelhantemente não ocorreu no ambiente cortesão do centro do poder metropolitano português. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Condição que começa a mudar apenas com o estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808) e a vinda da Missão Francesa em 1816 que contribuíram para formatação de um novo lugar para o artista numa sociedade onde a realeza de fato se faz presente. GRNBERG. Piedade Epstein. Arte e arquitetura no início do século XIX e o ensino de arte no Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). Op. Cit, pp. 354-355.

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A RECEPÇÃO DO CURSUS CONIMBRICENSIS NO BRASIL COLONIAL; A ÉTICA DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS E A LIBERDADE DO ÍNDIOS Luiz Fernando Medeiros Rodrigues2577 Fundamentos do Pensamento Jesuítico do Século XVII a XVIII A diferença da recepção da escolástica barroca na América hispânica colonial, cujas universidades foram influenciadas por ou adoram os paradigmas acadêmicos ibéricos, no Brasil colonial, esta foi bem menos perceptível. Ainda assim, é no chamado “pensamento escolástico” que se deve buscar a dinamis (δύναµις) do pensamento à qual estiveram ligados os missionários da Companhia de Jesus e, mais especificamente, o agir dos jesuítas da Vice-Província do Grão-Pará e Maranhão na afirmação da liberdade dos índios2578. A filosofia escolástica, no pensamento cristão, sempre foi entendida na sua função auxiliar à teologia. E, em linhas gerais, pode ser considerada como resultante de três grandes tradições filosóficas: a patrística, o neoplatonismo e o aristotelismo (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 211, 229). Como corrente filosófica, teria três grandes momentos de desenvolvimento: a escolástica primitiva, a escolástica clássica e a escolástica tardia. Numa aproximação histórica-conceitual, a escolástica primitiva sedimentou-se com os tratados de Anselmo de Cantuária (1033-1109), considerado o “pai da escolástica”, e Pedro Abelardo (1079-1142), quem promoveu a relação entre o nominalismo e o ultra-realismo (MARÍAS, 2004, p. 154-160). Alberto Magno (1193/1206-1280), mestre de Tomás de Aquino, da nova escola dominicana, que o agostinianismo, principalmente o de São Boaventura (1221-1274) e da antiga escola dominicana, evoluiu para uma síntese aristotélico-agostiniana (ABBAGNANO, 2003, p. 23). Tomás de Aquino (1224-1274), completou esta síntese, tornando-se o mais importante sistematizador do pensamento escolástico clássico (BOEHNER; GILSON, 2000, p. 448). É na Summa Theologica que se operará a mais sofisticada síntese entre o pensamento cristão escolástico e a filosofia aristotélica (MARÍAS, 2004, p. 181-183). No séc. XV, ao perder-se em sutilezas e formalismos, a escolástica tardia se caracterizará por um declínio do pensamento, principalmente porque não consegue dialogar com o intenso movimento de renovação cultural do Renascimento. O Humanismo italiano da segunda metade do séc. XIV, ao mesmo tempo que se difundia pela Europa, promovia o retorno à filosofia grega, mas independente da tradição escolástica, impondo-lhe críticas, as quais esta não soube rebater satisfatoriamente. Todavia, a crise do pensamento escolástico não significou o seu fim. Este teve nova vida com os pensadores ibéricos dos sécs. XVI e XVII, que mantiveram substancialmente os seus princípios básicos e a sua metodologia (BAUER, 2003, p. 268). O novo fôlego do pensamento escolástico expressou-se no movimento filosófico, teológico e político-jurídico que ficou conhecido por Segunda Escolástica Moderna. Sua origem liga-se aos pensadores da Universidade de Salamanca, com o dominicano Francisco Vitória (1480-1546), comentador de Tomás de Aquino, o qual concluiu das teses filosóficas e teológicas suas implicações jurídicas. Suas teses sobre o direito dos povos granjeou discípulos em toda a península (MARÍAS, 2004, p. 222). Mas foi após o estabelecimento da Companhia de Jesus na Espanha e em Portugal, que os jesuítas se destacaram como promotores do movimento de renovação da escolástica. Os jesuítas que mais ligaram ao processo de renovação da escolástica foram Alfonso Salmerón (1515-1585), Francisco Suarez(1548-1617), Luiz de Molina (1535-1600) e o “Aristóteles português”, Pedro da Fonseca (15282577

PPG-História – Unisinos. Email: [email protected] A presente relação utilizou como fonte as pesquisas de Sidney Luiz Mayer, o qual desenvolveu as categorias do pensamento jesuítico no projeto missionário da Companhia no Maranhão, marcadas por continuidades e descontinuidades. Cf. Sidney Luiz Mayer. Jesuítas no estado do Maranhão e Grão Pará: convergências e divergências entre Antônio Vieira e João Filipe Bettendorff na aplicação da Liberdade dos índios. Dissertação de Mestrado defendida no PPGHistória Unisinos, 2010 (datiloscrita).

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803 ISSN 2358-4912 1599). Foi sobre os tratados destes mestres jesuítas que a Segunda Escolástica se sustentou. Nos tratados que escreveram, eles analisaram os elementos e os contextos que a descoberta do novo mundo, a reforma e contrarreforma suscitavam, sempre reafirmando a tradição do pensamento cristão escolástico frente à crítica do humanismo renascentista e da física experimental (MARÍAS, 2004, p. 221). Estes jesuítas não se limitaram a mera proposição do paradigma gnosiológico medieval, mas, ao comentar e analisar os velhos axiomas, buscaram esclarecê-los. Neste sentido, ao mesmo tempo que concebem um cosmos pré-ordenado e conservado em sua ordem pelo primeiro motor imóvel, ato puro, isto é, pelo Deus criador, paradoxalmente, também voltam as suas reflexões ao contingente, ao fluxo constante da existência das criaturas. Ao mesmo tempo que buscam estruturas ordenadoras da realidade e essenciais, a exemplo do paradigma da filosofia grega, tomam consciência da fragmentação daquela mesma realidade face a multiplicidade imposta pela experiência (CALAFATE, 2001, p. 704). É importante aqui observar que o desconcerto da fragmentação da realidade e da contingência, no qual se insere o tempo do efêmero, é impregnado pela tensão com uma história teleológica, segundo a qual todos os fragmentos se direcionam para um fim último. É neste sentido que o arcabouço de ideias que constroem para pensar Deus, o cosmos e o homem é a “grande síntese” do pensamento jesuítico da segunda escolástica. As Universidades de Coimbra e de Évora foram os principais centros de difusão da nova escolástica. Em Coimbra, os estudos no Colégio das Artes (1548) (COXITO; SOARES, 2001, p. 456) foram fundamentais para a reproposição do pensamento escolástico em terras lusitanas. O objetivo deste colégio era dotar a Universidade de Coimbra de um curso intermediário ou de preparação – que incluísse o estudo das letras clássicas, do latim e da filosofia – para os cursos de teologia, leis, e medicina. As disputas entre escotistas e tomasianos ganharam novos contornos com a revitalização do pensamento tomasiano na Europa seiscentista. Foi neste contexto que os jesuítas constituíram uma filosofia jesuítica (conforme a proposição de Emmanuel J. Bauer) ao aproximaram as diversas correstes do pensamento cristão. Esta surgiu entre as demais correntes com uma alternativa paralela, mas, ao mesmo tempo, em consonância com a escolástica, amalgamou conceitos do pensamento escotista e nominalistas com o realismo tomasiano, sem esquecer as novas ideias que o pensamento humanístico trazia. A síntese mais sofisticada deste grande esforço se sedimentou nos tratados dos jesuítas Pedro da Fonseca, Luís de Molina e Francisco Suarez (1548-1617). Fonseca, comentava os textos aristotélicos, como até então se fazia. Mas os seus comentários eram ao mesmo tempo edição, tradução e exegese dos textos do Estagirita, de forma que, ao estabelecer o texto, apresentava a respectiva tradução latina. E, mediante explanationes, explicava o texto aristotélico. Desta maneira, Fonseca apresentava aos alunos as quaestiones sobre a metafísica, as quais davam à matéria a nova perspectiva típica da sua filosofia. As teses de metafísica de Pedro da Fonseca explicitaram os elementos mais relevantes deste trabalho de síntese, isto é, a ciência média (conhecimento que Deus possui de todas as coisas desde sempre, até daquilo que os homens fariam em todas as circunstâncias possíveis, por previsão e não por decreto). A mesma tese fundamentará as argumentações tanto de Luís de Molina, quanto posteriormente de Francisco Suarez. Pedro da Fonseca desenvolveu o seu próprio comentário à Metafísica aristotélica, conjugando a tradição interpretativa à fidelidade ao texto. Como resultado, a interpretação tomásica foi aceita como textus princeps entre os comentadores. Por outro lado, Fonseca também soube ser um pensador com ideias próprias ao utilizar em seus comentários interpretações oriundas de outras correntes da escolástica, como as do escotismo, por exemplo (COXITO; SOARES, 2001, p. 481). A relação entre Deus e o Homem, bem como a salvaguarda da autonomia e da liberdade humanas, foi um dos principais problemas enfrentados por Pedro da Fonseca. Para o jesuíta, na relação entre Deus e o homem, a liberdade deste último não é violada. Ora, esta conclusão, que nos seus detalhes é extremamente teórica, influiu de maneira significativa na práxis missionárias dos jesuítas no norte do Brasil. E quem melhor formulou esta ligação entre a teoria metafísica e os desafios que os jesuítas enfrentavam na questão da liberdade dos índios, desde os sécs. XVI-XVII, foi o filósofo Luís de Molina. Um dos principais exponentes da segunda escolástica, em sua filosofia, Molina se fundamentou na ciência média e as suas ideias formaram uma corrente conhecida como molinismo. Para ele, o principal V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

804 ISSN 2358-4912 problema filosófico e teológico, examinado na sua obra Concordia2579, foi a tematização das relações entre Deus e o homem, cujo ponto fulcral foi a afirmação da liberdade humana. O monismo não foi isento de críticas, mas teve muitos seguidores entre os mestres jesuítas. As teses sobre a ciência média de Molina afirmavam que a vontade humana continuava livre e ativa na construção do mundo humano, apesar de ser portadora da graça divina. Com isto, Molina reafirmava as causas segundas de Tomás de Aquino, isto é, reafirmava a ação de Deus através da liberdade humana. Com o desenvolvimento das teses sobre a ciência média, o mestre jesuíta separava a esfera natural e transcendente da ação do homem. Com isto, afirmava que o homem tinha capacidade de chegar às verdades da fé sem a intervenção direta Deus (como defendia Santo Agostinho). Para ele, a própria observação do mundo criado já possibilitaria chegar ao Deus revelado. Todavia, uma fé natural não seria suficiente para que homem chegasse à salvação, uma vez que não se poderia prescindir da graça de Deus. Como não poderia deixar de ser, as teses de Molina deram novo fôlego aos estudiosos escolásticos, sobretudo porque o jesuíta construía o seu sistema no momento em que a teologia católica era criticada pelos reformistas, os quais tendiam ao determinismo da graça divina. Mas quais forma as consequências da introdução destas teses no debate sobre a liberdade do homem? A primeira e mais imediata consequência foi a afirmação de que o homem não é criatura passiva no criado. Enquanto imago Dei, o homem, guardadas as devidas proporções, é ativo na criação e cooperador de Deus na continuação da obra de criação do mundo (SILVA, 2001, p. 553 ). Daí a responsabilidade humana em ser coparticipe da obra divina. Esta linha de raciocínio fez com que o metre jesuíta se voltasse à reflexão das implicações das consequências da liberdade do homem no criado. Sem se distanciar muito das teses de Pedro da Fonseca, ao manter a discussão entre contingência e necessidade, liberdade e determinação, Molina afrontou a espinhosa questão da justiça e do direito. E foi justamente a partir de um de seus mais importantes tratados, De Iustitia et Iure2580, que a discussão metafísica repercutiu profundamente na constituição do legislação indígena lusitana. A repercussão das teses de Molina e da sua escola foram tão importantes que estas se tornaram no esqueleto filosófico-teológico para a discussão sobre a autonomia do sujeito. Estas implicaram de forma direta numa concepção ético-jurídica do sujeito, com base no direito natural. No De Iustitia et Iure, o jesuíta, usando o método escolástico, desenvolve o conceito de justiça em sua forma geral e em suas espécies: a justiça comutativa em relação aos bens, a origem e natureza da sociedade, a origem da autoridade política, as relações da autoridade civil com a Igreja, a colonização, a escravidão e a guerra justa (SILVA, 2001, p. 553 ).

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O Pensamento Escolástico no Brasil Colonial e a recepção do Cursus Conimbricensi Em sua obra, As missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno2581, José Eisenberg analisa a primeira geração de missionários jesuítas da Província do Brasil entre 1549 a 1610, e mostra como estes jesuítas buscaram encontrar soluções concretas para os problemas que a realidade da nova Colônia trazia. Para isto, face à inadequação dos antigos sistemas, estes jesuítas buscaram ampliar as bases teóricas pelas quais se guiava a Igreja Renascentista. Segundo Eisenberg, este movimento de compreensão do Novo Mundo, a partir de uma ampliação dos sistemas teóricos levado a cabo pelos jesuítas, antecipou e promoveu a adequação sistemas conceituais pensados nas universidades europeias no final do séc. XVI. E, justamente a partir do conceito de Molina sobre direito subjetivo no seu tratado De Iustitia et Iure, Eisenberg individualiza as 2579

Luduvicus Molinae. Concordia Libitrij cum Gratiae Donis Diuina Praescentia, Prouidentia, praedestinatio- ne, et Reprobatione, ad Nonnullos prime Partis D. Thomae Articulos... Olyssipone: apud Antonium Riberium Typografhum Regium: a Costa de Domingos Martinez, Mercador de Livros, 1588. 2580 Luduvicus Molinae. De Iustitia et Iure Opera Omnia. Nimirum: de Iustitia in Genere, Partibusque Illi Subiectis: nec non de Ultimis Volontatibus. De Iustitia Commutativa Circa Bona Externa: alias de Contractibus. De Maioratibus & tributis. De Delictis & Quasi Delictis. De Iustitia Commutatiua Circa Bona Corporis, Personarumque Nobis Coniunctarum.... Cum Triplici Indice, Altero Disputationum, Altero Vero Locorum Sacrae Scripturae, & alio Materiarum Amplissimo atque Locupletissimo. Venetiis, apud Mini- mam Societatem [etc.], 1602-1611. 2581 José Eisenberg. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno: Encontros Culturais, Aventuras Teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

805 ISSN 2358-4912 origens do pensamento político da Segunda escolástica que, segundo ele, não se deu nas universidades europeias, mas a partir das discussões entre missionários e autoridades coloniais sobre a escravidão do ameríndio. No caso do Brasil colonial, por exemplo, o conceito de direito subjetivo usado pelo jesuíta Quirício Caxa (1538-1599) foi fundamental para a discussão sobre o jusnaturalismo da segunda escolástica, o qual influir sobremaneira para a formulação da justificação da escravidão voluntária formulada por Luís de Molina (EISENBERG, 2000, p. 126). Desta forma, teria sido a busca de solução dos problemas cotidianos vividos pelos missionários que possibilitou aos primeiros missionários jesuítas a ampliação dos antigos sistemas filosóficos da escolástica clássica, a colocar em relação os conceitos e sistemas da segunda escolástica e a práxis missionária. Este encontro de culturas promovido pelos primeiros missionários na América portuguesa pode ser visto como uma primeira aproximação entre os conceitos da segunda escolástica e a Colônia lusitana. Os problemas encontrados por Manuel da Nóbrega sobre a liberdade dos índios exigiram a revisão do quadro teórico que até então tinha orientado a práxis colonial sobre a questão. Até então, a submissão do indígena era concebida como escravidão de pagãos, fundada no direito dos povos, o ius gentium (EISENBERG, 2000, p. 125). Segundo este, a escravidão do indígena era permitida somente em caso de guerra justa. Mas como anota Eisenberg, se o índio se recusasse em deixar os seus sítios de origem e não se quisesse aldear, junto com outras diferentes tribos, os missionários poderiam usar a força (a ameaça, o medo) para lograr o intento da missionação. E a justificação teoria para tal procedimento era que a recusa do índio significava oposição à propagação da fé e, portanto, poder-seia declarar-lhes guerra justa e com ela submetê-los à justa escravidão (EISENBERG, 2000, p. 90). A solução encontrada, ou pelo menos defendida, pelos colonos era de que os índios se entregavam voluntariamente ao regime escravo. Mas, pensar que um homem livre, no caso os índios, abdicasse de sua liberdade, conforme a Bula Sublimus Dei de 1537, para voluntariamente se submeter a um regime de submissão era, quanto menos, pura especulação teórica. Por isso, para os mestres da Companhia, somente o exame da questão a partir do conceito de direito natural conforme a arquitetura tomásica poderia fornecer uma outra possibilidade. Nobre e Quirício Caxa voltaram-se ao exame da questão da liberdade segundo Tomás de Aquino (EISENBERG, 2000, p. 90-150). No âmbito da discussão, Quirício Caxa introduz uma novidade: propõe os conceitos de liberdade e domínio de forma conjunta, ou seja, de que os homens podem ser senhores da sua própria liberdade. Com esta formulação Caxa rompe com os antigos esquemas de liberdade como direito objetivo e inalienável, até então defendida por muito filósofos franciscanos e dominicanos. A discussão teórica entre os dois jesuítas revela o arcabouço categorial subjacente: as categorias de pensamento aristotélico-tomásiano que lhes serviam de fundamento para as suas argumentações. Um dos resultados da discussão entre Nóbrega e Quirício Caxa foi que a distinção mais importante a ser feita era entre verdade e liberdade. Em termos práticos, a vontade do indivíduo até pode consentir com a sua livre escravidão, mas para que isto fosse possível, ele deveria fazê-lo segundo os ditames da razão. E, como não podia deixar de ser, nesta busca de soluções, que tinha suas raízes na escolástica que buscava a harmonização entre fé e razão, as universidades europeias entraram na discussão teórica. A primeira foi a universidade de Salamanca, e, pouco depois, se juntaram os mestres da universidade de Coimbra. Do encontro entre o movimento do Humanismo e a herança medieval escolástica, deu-se a síntese que formou o assim chamado “pensamento jesuítico”. Este, por sua vez, tomou forma sistemática nos manuais do Cursus Conimbricensis. Os mestres jesuítas conimbricenses ficaram marcados por serem os comentadores da filosofia de Aristóteles, cuja obra tinha sido publicada entre 1592 e 1606 sob o título de Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu. É importante ter presente que neste período, o ensino universitário das disciplinas filosóficas na Península Ibérica baseava-se nas obras de Aristóteles. E isto a tal ponto, que alguns autores modernos chegam a afirmar que não se poderia sequer falar em Renascimento sem entender que neste período os estudos filosóficos foram dominados pelo Corpus Aristotelicum, que em grande parte seguiu as correntes tardo-medievais, mas que também e deixou influenciar pelo humanismo clássico e por outras novas ideias (PACHECO; MASSIMI, 2011, p. 240). Assim, o Corpus Aristotelicum, editado em cinco tomos, passou a ser conhecido com o nome de Cursus Conimbricensis e foi uma das mais importantes sistematizações da filosofia aristotélica-escolástica em Portugal, mas também nas universidades da Alemanha, da França e da Itália (JURADO, 2001, p. 223-224).

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806 ISSN 2358-4912 Em 1561, quando Jerônimo Nadal (1507-1580), enviado a Portugal pelo fundador da Companhia, Inácio de Loyola, visitava o Colégio das Artes de Coimbra, que Pedro da Fonseca foi instado a redigir e publicar um curso de filosofia que servisse de manual para os escolásticos da Companhia. Todavia, dadas as inúmeras incumbências de Pedro da Fonseca, somente a partir de 1579, sob a coordenação de Manuel de Góis (1543-1597), que o curso de filosofia passou efetivamente a ser pensado. A edição definitiva dos comentários só teve início de 1592, com o primeiro volume denominado Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu in octo libros Physicorum Aristotelis Stagiritae2582 . Neste manual, a concepção de homem que está subjacente ao tratado é aquela que nasce da releitura tomista da obra aristotélica. No que diz respeito à categoria da liberdade, o Cursus conclui os seus axiomas na exposição da liberdade em sentido pleno, isto é, no plano ético, como adesão da vontade ao bem que a razão apresenta como conforme ao sentido último da exist6encia humana. Esta concepção de liberdade, por sua vez, supõe o livre arbítrio, mas que corresponde a um autodeterminarse segundo a recta ratio. E no seu exercício, a vontade (que pode ser inclina às paixões, a prazeres e interesses, sensíveis ou não) volta a sua predisposição ao bem racional, ao valor universal, à dinâmica da autêntica realização do ser humano segundo o plano divino. Isto significa que a verdadeira liberdade só é alcançada quando o indivíduo se desfaz das paixões egoísticas, colocando o bem (o valor moral) acima do seu próprio interesse particular, ou quando compreende que o seu verdadeiro bem coincide com a felicidade ao bem segundo os ditames da razão (PACHECO; MASSIMI, 2011, p. 241-247). O caminho percorrido pelos mestres jesuítas da segunda escolástica, desde Pedro da Fonseca, com a afirmação da liberdade do indivíduo diante de Deus, até Luís de Molina, com as consequências éticas da afirmação do homem livre, resultou em dois vetores da ação dos missionários jesuítas no Brasil colonial: as concepções filosófico-teológicas, que oriental a ação concreta dos missionários, e as categorias jurídicas do direito natural, que fundamentam as a busca de soluções para os problemas que os jesuítas enfrentam diante das contingências da realidade colonial em contínua transformação. Para Molina, a solução para o problema da escravidão colonial seria que o monarca português declarasse que os índios eram seus súditos livres e que decidisse clara e especificamente o que era lícito no comércio escravista e o que era proibido. Somente assim se placariam os confrontos entre missionários e colonos nesta questão. António Vieira (1608-1697), numa das suas exortações, descrevia o Grão-Pará e todo o território do rio das Amazonas como uma imensa “universidade de almas”. De certa forma, com esta analogia retórica, o visitador já traçava o início do Curso das Artes no Estado do Maranhão e Pará, com os escolásticos da província do Brasil que tinham ido para o reforço da Vice-Província do norte em 1688, juntamente com alguns filhos da terra. O curso no Maranhão iniciava quando as tentativas de fundação de uma universidade jesuíta no Brasil tinham sido encerradas. O curso das Artes do GrãoPará e Maranhão ficaram subalternos à legislação do estado nortenho, diferente daquela do Brasil, mas sujeitos ao mesmo regimento interno do Ratio Sudiorum, e, no regimento esterno, à legislação dos Estatutos da Universidade de Coimbra. Foi com este arranjo legal que o curso de filosofia no Grão-Pará se desenvolveu até alcançar certa maturidade, com as Conclusões Filosóficas, no período áureo de 1730, com o mestre P. Bento da Fonseca (1702-1781), depois, procurador das missões em Lisboa até a supressão. A dependência dos colégios do Brasil da legislação dos colégios portuguesas fez prevalecer a filosofia escolástica desenvolvida pelos conimbricenses. Desta forma, a escolástica ensinada nos colégios da Companhia no Brasil colonial foi um reflexo daquela vigente nos institutos jesuítas metrópole. A filosofia escolástica ensinada nas instituições religiosas portuguesas, especialmente nos colégios e universidades da Companhia em Portugal, moldada pelo método e pelas ideias dos professores do curso conimbricense, e regida segundo as normas do Ratio studiorum, foi basicamente a única fonte de formação filosófica no Brasil da época. O colégio da Companhia na Bahia foi fundado em 1556 e foi a primeira faculdade de filosofia no séc. XVI. Ali atuou o P. Paulo da Costa (1594-1649), mestre de António Vieira, o qual, em 1635, escreveu o seu curso filosófico, lido até os fins do séc. XVIII. Já o colégio do Rio de Janeiro (fundado em 1567) foi a primeira faculdade de filosofia do Rio. Em 1638, iniciou-se o ensino da filosofia, que logo foi V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu. In octo libros Physicorum Aristotelis Stagiritae. Conimbricae : typis et expensis Antonij à Mariz, 1592.

807 ISSN 2358-4912 equiparada com o de Coimbra, com o título de “Real colégio das Artes”. De igual forma, em outros colégios da Companhia ensinou-se senão toda a filosofia, pelos menos algum tratado: no de Nossa Senhora da Luz, em S. Luiz do Maranhão (fundado em 1652); no de Santo Alexandre, em Belém do Pará (fundado em 1652), onde lecionou Gabriel Malagrida (1689-1761); no de Santo Inácio, em São Paulo (fundado em 1554); no de Santiago, em Vitória do Espírito Santo (fundado em 1654); no de São Miguel, na vila de Santos (fundado em 1642); no de Nossa Senhora do Terço, em Paranaguá (fundado em 1754); e finalmente, no de Nossa Senhora do Ó, em Recife (fundado em 1678). Nestes colégios, os jesuítas ensinavam, segundo os padrões do Ratio Studiorum a física, metafísica, a moral e a matemática. Todas disciplinas da filosofia. E os prefeitos dos estudos, os reitores e o próprio provincial (último responsável) velavam para que tantos os mestres quanto os discípulos não se afastassem do método e das doutrinas ao modo dos Conimbricenses. O Cursus Conimbricensis, segundo Serafim Leite, era o livro de fundo no Colégio da Bahia (LEITE, 1949, VII, p. 220). O primeiro tratado filosófico escrito no Brasil foi o curso perdido de António Vieira. Outro manualista importante foi Baltazar Teles que, em 1652, dedicou a quarta edição da sua Summa Universae Philosophiae aos jesuítas do Brasil2583. Havia ainda o Cursus philosophicus de Domingos Ramos (ARSI, BRAS 1, f. 19r)2584, impresso em Lyon em 1687; também o Cursus philosophicus de António de Andrade e as Quaestiones selectiores de philosophia problematice expositae de Luís de Carvalho (LEITE, 1948, p. 137). Neste sentido, alguns superiores da Companhia chegaram a insinuar que se evitassem publicar novos tratados para não banalizar a autoridade dos mestres conimbricenses. Em todos estes manuais, o ensino seguia os moldes do Colégio das Artes, com a filosofia escolástica ao modo conimbricense, tratada em comentários e textos físicos e lógicos aristotélicos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações finais Ao explicitarmos as origens do chamado “pensamento jesuítico” e examinar, mesmo que sucintamente, as categorias fundamentais acerca da liberdade do homem da segunda escolástica, buscamos mostrar como estas serviram de instrumento organizador e referencial teórico para a realidade que os missionários vivenciaram no Brasil, especialmente no Grão-Para e Maranhão. E, como os problemas que tocavam a liberdade dos índios tornaram-se terreno de férreas disputas entre missionários e autoridades coloniais, os instrumentais fornecidos pela escolástica mostraram-se, por vezes, insuficientes face à complexidade dos dados do real vivido. O que fica claro, porém, é que os jesuítas, na sua práxis missionária, usaram o móvel filosófico da segunda escolástica para construir o seu “projeto jesuítico” na América lusitana. E mesmo se acomodando à legislação portuguesa, favorável à escravidão, os jesuítas, servindo-se das teses de Luís de Molina, propuseram a liberdade do indivíduo – a liberdade do sujeito diante de Deus –, mesmo que com exceções (por exemplo, aceitando a escravidão do africano). Embora aceitassem a possibilidade da escravatura com tal – conformando-se, de certa forma, aos condicionamentos sociais que viviam, nunca deixaram de denunciar os exageros praticados pelo regime escravista. E isto levou-os a se submeteram à pressão do contexto colonial lusitano, conformando-se a uma consciência possível. E, ao contrário do que se poderia esperar, foi esta acomodação do pensamento filosófico-teológico aos determinantes da realidade dos missionário que se converteu no plano de fundo para a ação missionária dos jesuítas no Brasil colonial. Referências ARSI, BRAS 1, f. 19r: Registo da Carta Soli do P. Alexrande de Gusmão. Bahia, 8 de fevereiro de 1687. ABBAGNANO, Nicola. “Agostinismo ou Augustinismo”. In: Nicola Abbagnano (Org). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ALDEN, Dauril. “Aspectos Econômicos da Expulsão dos Jesuítas do Brasil”. In: Henry Keith; S. F. 2583

Cf. Baltazar Telles, Summa universae philosophiæ cum quaestionibus theologicis quae hodie inter philosophos agitantur. Ulyƒƒipone: Laurent. Anvers, 1641-1642. 2 vols. 2584 Esta obra do P. Domingos Ramos (1653-1728) estava do nihil obstat de Roma, que não chegou a ser dado. Cfr. ARSI, BRAS 1, f. 19r: Registo da Carta Soli do P. Alexrande de Gusmão. Bahia, 8 de fevereiro de 1687.

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SAMBA DE RODA: TRAÇOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA TABUA GRANDE NO MUNICÍPIO DE GUANAMBI-BA Maiza Messias Gomes2585 Traços iniciais A comunidade de Tabua Grande2586 está localizada a 06 km da cidade de Guanambi-BA e aproximadamente a 796 km da capital, Salvador. Com uma população negra, de laços familiares e coletivos, esses moradores mantêm ainda tradições vivas de cultivo da terra, de práticas culturais que configuram e reconfiguram suas identidades como sujeitos individuais e/ou de grupo. Visto como uma manifestação cultural, o samba de roda da Tabua Grande conhecido como Vai de Virá surge em meio às marcas de um viver rural de tradições culturais africanas. Sua expressão artística perpassa pelo aspecto da diversão, do lazer, do espaço festivo, alegre e descontraído, que se traduzem também nos aspectos identitários do grupo como sujeitos sócio-históricos. Os ritmos dessa tradição cultural resistem às diferenças sociais e atendem a um anseio de socialização e sobrevivência do grupo. Isso acontece, segundo Sodré, Ao contrário da música ocidental, porém o ritmo africano contém a medida de um tempo homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica), capaz de voltar continuamente sobre si mesmo, onde todo fim e recomeço cíclico de uma situação. (...) A informação transmitida pelo ritmo não é algo separado do processo vivo dos sujeitos da transmissão-recepção. Transmissor e receptor se convertem na própria informação advinda do som (SODRÉ, 1998, p. 19-20).

Assim, como parte da produção cultural no Brasil, a música e a dança carregam vestígios da ritualidade e ancestralidade dos negros provenientes da África e que, ao chegarem ao Brasil, desenvolveram e incorporaram marcas da cultura indígena, configurando-se a cultura brasileira. Esses ritmos possibilitaram a manutenção de traços das danças de origem africana, somados à sensualidade, ao molejo do corpo, ao rebolado e alegria, que caracterizam a identidade do brasileiro. Segundo Sodré, Entre os negros, tanto na África como nos territórios da diáspora escrava, jogos de expressão como a dança e a música, articulam-se simultaneamente com jogos de espaço e jogos miméticos (de mimicry na classificação de Caillois), em que se simula parodicamente uma outra identidade

(SODRÉ, 2002. p. 139). Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tem enfatizado as trajetórias de populações africanas e afro-brasileiras, redefinindo uma atuação ativa, de resistência e de luta pelo reconhecimento de suas experiências e contribuições à sociedade. As práticas culturais, como os batuques2587 frequentes nas senzalas, representavam forma de superar o processo escravista, de rememorar suas histórias e tradições. O corpo que interage com a música e que se entrega aos ritmos do batuque, através da dança, é o mesmo corpo que é violentado e reprimido pela escravatura (SODRÉ, 1998). 2585

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade /PPGMLS – UESB e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, Campus Guanambi. Email: [email protected] 2586 De acordo com o documento de Registro de Imóvel, datado em 16 de Janeiro de 1990, Protocolo de nº 23850, Livro nº 2-B5 / Sob o nº ordem R1/13.587, Autos sob nº 6.169/87, a Tabua Grande está situada na antiga Fazenda Carnaíba de Dentro. 2587 Segundo Cascudo (2010), batuque é uma denominação genérica para toda dança de negros na África. Era o nome dado pelos portugueses às danças africanas no Brasil. “Não configurava um baile ou um folguedo, em si, mas uma diversidade de práticas religiosas, danças rituais e forma de lazer” (TINHORÃO, 2008, p. 55).

811 ISSN 2358-4912 Os batuques dos negros nas senzalas deram origem a outras danças africanas, em destaque o samba. De acordo com Cascudo (2010), “a dança de roda, inicialmente é o mesmo batuque (...) Determinou o verbo sambar, dançar, e sambista quem canta ou dança o samba, que provém do semba, umbigada em Loanda” (2010, p. 789). Para Sarmento,

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A dança consiste n’um bambolear sereno do corpo, acompanhado de um pequeno movimento dos pés, da cabeça e dos braços. (...) Em Luanda e em vários presídios e distritos (...) o batuque consiste também num círculo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou uma preta que depois de executar vários passos vai dar uma umbigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do círculo, substituí-lo. (SARMENTO, 1880, p. 127)

Dessa forma, o samba surge por influência dos ritmos africanos, o semba, e teria sido formado a partir de referências dos mais diversos ritmos africanos. A diversidade cultural das expressões artísticas de matriz africana no Brasil era bastante visível, pois os escravos, que vinham de diferentes regiões da África, traziam consigo elementos de suas vivências que, ao chegarem aqui, transformavam nas mais variadas formas de convívio social. Como se não bastasse o lugar desconhecido e o rompimento dos laços familiares, passaram a conviver com pessoas desconhecidas, unidos pela cor e pelos laços étnicos de pertencimento. Por outro lado, isso influenciou a formação dos diversos sambas brasileiros, como a criação de formas musicais dentro de um diferente e dinâmico contexto social. Conforme nos aponta Sodré2588, “os diversos tipos de samba (samba de terreiro, samba duro, partido-alto, samba cantado, samba de salão e outros) são perpassados por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra”. Foi através de conexões culturais que os ritmos africanos ganharam formas e cores em terras brasileiras, e dessa forma, o samba foi se firmando e ganhando espaço, saindo das senzalas para os centros urbanos e redes comerciais. Ainda segundo Sodré (1998), O “encontrão”, dado geralmente com o umbigo (semba, em dialeto angolano) mas também com a perna, serviria para caracterizar esse rito de dança e batuque, e mais tarde dar-lhe um nome genérico: samba. Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social (escravista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural e africano (SODRÉ, 1998, p. 12).

Com base nos autores citados, vê-se que muitas danças carregam características que confirmam elementos dos batuques africanos. A formação em círculo, a expressão de alegria, a roda, os músicos, o canto, a dança ou o acompanhar do ritmo batendo palmas, envolvem todos os participantes do grupo de forma direta e indireta. As danças como a umbigada, conhecidas como o “lundu” e outras danças como o coco, danças de roda, o jongo, o caxambu, o tambor de crioula e as diversas modalidades de samba, evidenciadas por Sarmento (1880), seriam danças originárias do semba. Ainda sobre a variedade dos sambas e suas terminologias, batuque e samba, Reis (2002), ao abordar “A festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”, levanta algumas questões sobre tais termos, alegando que eles são carregados de diversos sentidos: “Quantas formas de dançar, tocar e cantar se abrigavam sob esses termos, em momentos específicos do século XIX?” 2589 O autor considera improvável que algum dia tenhamos essa certeza, pois continua havendo várias maneiras de sambar, vários tipos de samba, inclusive variações regionais de samba, em destaque, o Vai de Virá. As práticas históricas, sociais e culturais de um viver rural dos habitantes da Tabua Grande ficaram por muito tempo isoladas e desconhecidas. Nessa perspectiva, a pesquisa sócio-histórica oferece condição de desvendar as diversas atividades desses sujeitos, desenhando os caminhos que precisam ser percorridos e discutidos. O primeiro esboço do desenho 2588 2589

SODRÉ (1998, p. 35). REIS, 2002, p. 103.

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ISSN 2358-4912 Desde o processo de colonização, os ritmos africanos se espalharam por diversas regiões do Brasil, em especial, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco. Todavia, em se tratando de Bahia, a literatura contemporânea tem apontado a existência de diversos tipos de samba nas mais variadas regiões, não só na capital baiana e Recôncavo, conforme se acreditava, mas também é identificada a presença de sambas nos sertões da Bahia2590. De acordo com Ivo (2012), as interações africanas fizeram-se presentes nos sertões desde o século XVIII, a partir das conexões dos sertões da Bahia aos de Minas Gerais na exploração do ouro e pecuária2591. Assim, esse processo dinâmico que se deu nos sertões permitiu que muitos negros enveredassem pelas terras baianas, em busca de trabalho e de liberdade. Junto com os negros, vieram também os ritmos musicais, a religiosidade, a cultura e a culinária. À medida que se distanciavam da capital e das cidades portuárias, os traços culturais foram sendo modificados e, junto a esses, foram incorporados traços de outras culturas, como a sertaneja. Apesar do processo de repressão por parte da cultura dominante, as rodas de samba e batuques seguiram caminhando Bahia adentro, expandindo os saberes e significados, deixados como heranças pelos nossos ancestrais africanos. Em ritmos frenéticos foram se desenvolvendo e tomando força; posteriormente, viriam a se tornar um dos principais símbolos de identidade do povo baiano e, consequentemente, do povo brasileiro. O ritmo é uma maneira de transmitir uma descrição de experiência, de tal modo que a experiência é recriada na pessoa que a recebe não simplesmente como uma “abstração” ou emoção, mas como um efeito físico sobre o organismo – no sangue, na respiração, nos padrões físicos do cérebro (...) Um meio de transmitir nossa experiência de modo tão poderoso que a experiência pode ser literalmente vivida por outros (WILLIAMS, 1961 apud SODRÉ, 1998, p. 20).

É importante ressaltar que esses ritmos marcantes e presentes sobreviveram na Bahia, como também em outras partes do Brasil, e são decorrentes do processo de mestiçagem entre os povos que aportaram nessas terras e os nativos. Essas conexões permitiram variadas formas de expressão que particularizaram os costumes, os valores, as crenças e os hábitos da região. Segundo Tinhorão, Toda a história das músicas e danças que compõem o vasto painel de criações populares, quer na área do campo (onde se desenvolvem as tradições folclóricas), quer na área da cidade (onde as mudanças são mais rápidas, pela interferência da indústria cultural), só pode ser estudada a partir da realidade dessa mistura de influências crioulo-africanas e branco-européias (TINHORÃO,

2008, p. 56). Dessa forma, entre avanços e recuos, conformismos e resistências, grupos e comunidades, como a Tabua Grande, vêm mantendo tradições dos batuques e sambas, que são transmitidos de geração a geração. Inicialmente, como contam a história local e os memorialistas, o Vai de Virá era apresentado nos terreiros das casas-grandes, geralmente pelos negros descendentes de escravos, comemorando as festas de casamento, as festas religiosas ou para animar qualquer encontro ou reunião. De acordo com a descrição de Guimarães (1991) no livro intitulado Leocádia, morava na pequena Vila Beija-Flor2592 uma senhora chamada “Bonifaça”, idosa, que constantemente organizava em sua casa uma festa para a dança do Vai de Virá. No dia da festa, o terreiro da sua casa ficava cheio de convidados, conforme relata o autor: Esta dança era formada por homens e mulheres rodando em círculo, tocando gaitas, bumbas, caixas, pandeiros, canzá e cantando. Como tudo que nasce do sertão o Vai de virá é de uma simplicidade sem par e seus participantes, geralmente compositores das músicas, dançavam, 2590

A título de informação sobre o samba nos sertões da Bahia, vejam-se: Miranda (2009), Samba de lata de Tijuaçu – Senhor do Bonfim; Miranda (2010 / 2011), samba de roda do Rio das Rãs – Bom Jesus da Lapa; Sá e Souza (2010), samba de Veio do Vale do Rio São Francisco – Juazeiro/Petrolina e Barra/Xique-Xique. 2591 A partir do século XVIII. 2592 Atual cidade de Guanambi-BA, situada a 790 quilômetros de Salvador, a povoação teve início por volta de 1870, conhecida como Arraial do Quebra, depois Vila Beija-Flor, localizada nas margens do Rio Carnaíba de Dentro (TEIXEIRA, 1991, p. 52.).

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ISSN 2358-4912 cantavam nos terreiros da casa do festeiro, bebendo a pinga que aqui mesmo fabricavam

(GUIMARÃES, 1991, p. 46). Naquela época2593, a Vila Beija-Flor abrigava pessoas vindas das diversas regiões da Bahia, e por falta de registros, não identificamos a origem da referida senhora. Guimarães (1991) faz apenas uma citação quando se refere às festas que ela organizava em sua residência. Apenas no relato D. Dete2594 é que a figura de Sá Bonifaça é trazida à baila: “Mãe Filó, que é bisavó de Messias, meu esposo, contava que Sá Bonifaça era comadre dela, ela falava dessa Sá Bonifaça, disse que lavavam roupas juntas, ela era uma mulher negra, trabalhadeira e gostava de fazer festa”. A partir desses encontros, de pessoas vindas de outras regiões, com saberes e fazeres diferentes é que surgem as tradições culturais de Guanambi. A singularidade do samba do Vai de Virá é uma característica peculiar dessa região. No diálogo com a história oral, fomos traçando as linhas do desenho e mergulhando nas experiências vividas pelas famílias da Tabua Grande, entendendo os seus saberes e fazeres e percebendo como os fatos do passado estão presentes no cotidiano dessa comunidade. Os traços do desenho estão sendo encaixados e os riscos que os unem são as experiências vivenciadas por esses sujeitos históricos. Algumas narrativas orais sugerem a construção da comunidade de Tabua Grande, a partir da presença de negros e indígenas. D. Maria relata: A minha mãe contava que as vó delas, as bisavó delas, foi pegadas no mato, como cachorro do mato é, como é que é? mestiça a índia. Era, eu conheci nessa região aqui, agora se foi pra outro canto, eu não sei, já conheci aqui. Nós nascemo e criemo aqui, o nosso pai também, nasceu e criou aqui. (D.

Maria). Sobre as dinâmicas de mestiçagem, Ivo (2012) nos lembra: a singularidade múltipla, os trânsitos e a mobilidade verificados nos sertões levam à constatação de que esses espaços eram “um locus de misturas e trocas também de conhecimentos e hábitos” (2012, p. 33). Assim, o movimento de coisas e pessoas apontado por Ivo revela os sertões como um espaço propício para a mestiçagem. Os sertões, “foram um locus não apenas de diferentes idiomas europeus, africanos e indígenas, mas, o espaço das misturas biológicas e culturais” 2595 constatadas nos saberes, nas experiências e nas diferentes ações oriundas dos diversos lugares do mundo. A presença da cultura africana é marcada na comunidade de Tabua Grande com a realização dos batuques, dos sambas e outras expressões culturais. E é fazendo uma ponte entre o passado e o presente que buscaremos elementos que visem a explicar como essa manifestação vem se construindo e se desenvolvendo nessa comunidade. Às veis, assim dia de sábado, as veis nóis fazia uma festinha, ia dançar, tocar violão e tal, cantar, a gente saía assim, hoje, nóis vamos pra casa de Fulano fazer divertimento lá, vumbora! Aí juntava aqui, a gente ia, chegava lá, a gente ia cantar e dançar, tinha veis que manhecia o dia (risos). (Sr.

Otelino). Quando perguntamos sobre o Vai de Virá, os entrevistados expressaram suas lembranças e saudades do tempo em que essa manifestação era praticada com mais frequência. Segundo os relatos, o Vai de Virá estava presente quase em todas as comemorações festivas e nos trabalhos comunitários: Sempre nos reunia no período da colheita, fazia o mutirão para construção de casa, ou pra fazer reforma da casa de algum morador daqui da comunidade, ou no trabalho na roça, era sempre em mutirão, abertura de cisterna no período da seca, sempre começava com as cantigas de roda,

depois começava com o batuque com uma lata ou uma bacia, depois que apareceu a caixa, mais de primeiro era só com a lata ou a bacia. (Nequinho). 2593

Por volta de 1870, Teixeira (1991). Gildete Nascimento, professora aposentada, faz parte da Fundação Joaquim Dias Guimarães e participa das rodas do Vai de Virá. 2595 IVO, 2012, p. 18. 2594

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ISSN 2358-4912 O Vai de Virá esteve sempre associado às atividades do cotidiano dos moradores, como nos afazeres do campo, no trabalho da roça, no cuidar das hortas, no caminho para buscar água. Qualquer instrumento de trabalho, como uma lata, uma bacia, uma enxada, ou, até mesmo, o próprio corpo poderiam ser transformados em objetos de percussão. Isso permitiu que as práticas cotidianas da comunidade de Tabua Grande fossem se desenvolvendo em meio à musicalidade e à dança, sendo comum, nos intervalos de um trabalho para o outro, e mesmo nas horas de descanso, os moradores encontrarem espaços para essas práticas. Assim descreve o Sr. Antônio: Aqui qualquer coisa nóis inventava, aqui, quando ia casar uma moça, que ela era, que ela era caçula, aí nóis ia brincar com a panela na cabeça, cheia de bala doce, cheia de dinheiro (...) era o quebra-panela. Aí nóis sapateava com aquilo na cabeça e o povo ria. Nóis fazia muita estripulia.

(Sr. Antônio). É nesse espaço de diversão e alegria que essas tradições vão sendo inventadas e reinventadas como uma atividade espontânea e cotidiana, simbolizando luta e resistência, lazer e socialização entre os moradores de uma comunidade negra rural. Em comunidades rurais, a simplicidade e a tranquilidade são características marcantes na vida dos moradores. O sentar nas portas de casa, andar livremente, passear e brincar pelas estradas e pelos quintais, enquanto estão trabalhando ou se dirigindo para executar atividades, tornam-se atividades prazerosas e descontraídas, muitas são realizadas em clima de diversão, como se eles soubessem aproveitar o tempo e usar esses afazeres como atrativos para o cotidiano. Segundo Ivo (2012), práticas culturais como essas caracterizam a presença dos traços culturais africanos na cultura sertaneja; assim, a cultura sertaneja é o resultado de processos dos encontros culturais centenários. Outra característica do viver rural é que muitas atividades são realizadas na presença dos vizinhos; apesar de ocuparem espaços particulares, suas vidas são compartilhadas, as conversas são sempre em voz alta, a música é ouvida de forma coletiva, os movimentos e sentimentos são expressos publicamente. Os gritos, as risadas e, até mesmo, os insultos nos momentos de raiva são pronunciados ali em público, sendo presenciados por todos os moradores e pelos que trafegam por aquela comunidade, os espaços públicos são considerados propriedades particulares, eles fazem uso dos espaços públicos como se fossem seus. Quando conhecemos a comunidade de Tabua Grande e começamos a estabelecer contato com os moradores e a frequentar suas residências, tivemos a impressão de que todos os moradores dançavam o Vai de Virá, pois ali sabiam um verso e contavam um pouquinho da história. Era com muita frequência que novos nomes apareciam, a cada visita descobríamos um novo participante, sempre alguém dizia: “Fulano dançava!”. Percebemos que, apesar de as apresentações não serem mais frequentes, as músicas, a dança e os encontros do Vai de Virá permanecem vivos nas lembranças dos moradores. No decorrer das visitas, conversas e entrevistas, identificamos que nem todos os moradores dançavam o Vai de Virá, mas mesmo os que não dançavam arriscavam cantar um verso: “Virou, virou, vai de virá, eu também sei virá, vai de virá”, como D. Dionísia, uma senhora de 78 anos, uma das moradoras mais antigas da Comunidade de Tabua Grande, que, segundo o seu relato, apesar de acompanhar as apresentações, nunca entrou na roda do Vai de Virá. Eu nunca entrei na roda do Vai de Virá, vejo assim, acho bunito, só oiando, é bunito! Ali eles dançava, e eu ia lá nessas brincadeiras. Teve uma ocasião aí que teve uma brincadeira do Va de Virá, e eu fui oiar, mas alí eles cantam essas cantigas veia, ‘Virou, virou, vai de virá, eu também sei virá, vai de virá’, batendo as palmas e pulano, pulano, pulano, achava bunito, mas eu mermo não dançava não. A natureza num pidia e eu não dançava, também que ficava com medo de cair. Era um que passava pra lá e passava pra cá, rodando. Não entrava não, ficava oiando os otros dançar. (D.

Dionísia). Apesar de não participar da roda do Vai de Virá, D. Dionísia estava presente nos festejos da comunidade, ela não se adentrava na roda, mas vivenciava o seu entorno. Mesmo não dançando, ela absorve traços culturais dessa tradição e, consequentemente, marcas do próprio grupo, identificandose com ele.

815 ISSN 2358-4912 O relato de D. Dionísia nos abre uma página da história do samba Vai de Virá; e as circunstâncias em que esse samba vem se desenvolvendo, enriquecem as memórias da existência de personagens que foram importantes na história do Vai de Virá da Tabua Grande, principalmente para as novas gerações. Entre esses relatos, D. Dionísia nos apresenta D. Antônia e a sua família, esposa do Sr. Anacleto2596, ambos já falecidos. Apesar de não viver mais na comunidade, D. Antônia é uma personagem sempre lembrada no relato de D. Dionísia, como organizadora do samba Vai de Virá. Sem muitas informações sobre sua vida, a história nos conta que a sua casa servia de encontro do Vai de Virá. Era D. Antônia que organizava as rezas das Ladainhas, uma prática comum na comunidade, quando as famílias se dirigiam, ao entardecer, a sua casa para rezar e cantar os benditos, e logo após, “ali mesmo no terreiro começavam a folia do Vai de Virá” 2597. Sobre o movimento na casa de D. Antônia, conta D. Dionísia: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Hora que chegava, agora eles formava aquela rodona no terreiro, home e muié. Aí batia palma, tirava um samba, até hoje eu lembro, ela dizia assim: ‘Oh muenda de ferro, pilão de arueira, ocê não quer, mas tem quem queira’. E ficava pulano, pulano e bateno palma, bateno palma. Ota hora ela cantava, deixa eu ver como é que era, ‘Chegou, chegou, quem chegou foi eu, a cancela bateu, cavaleiro sou eu’. Eu não esqueci das cantigas não. Lá batia pandero, caxa, corrichar e pulano. (D.

Dionísia). Apesar de poucos detalhes, a presença de D. Antônia deixa vestígios na história do Vai de Virá, comprovando que suas experiências cotidianas e culturais contribuíram com a comunidade. Ao ser lembrada pelos seus feitos, junto com as lembranças aparece, também, o reconhecimento dos seus saberes transmitidos de geração em geração, da sua participação e das suas histórias. Segundo Perrot (2007), evidencia-se não só “o que acontece, a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o dever das sociedades. Mas também o relato que se faz de tudo isso” (2007, p. 16). Assim, as atividades cotidianas, as experiências, os costumes e as tradições, os saberes e fazeres, tudo isso é história. A história de D. Antônia passa a ser contada, não por ela, mas através da tradição que segue se reinventando de geração em geração, até chegar aos nossos dias. Contornos inconclusos A escassez de estudos no sertão sobre tradições culturais sensibilizou um olhar mais atento para essas questões, até então pouco conhecidas na região. As narrativas dos moradores mais antigos permitiram conhecer melhor a comunidade e, consequentemente, o samba Vai de Virá. Para a realização da pesquisa vêm sendo utilizadas fontes documentais, como revistas, fotografias, vídeos e, principalmente, fontes orais. Nesse sentido, a comunidade de Tabua Grande, por meio da prática cultural do Vai de Virá, demonstrou, pelos laços étnicos, familiares, coletivos e pela solidariedade, que é possível resistir e prosseguir na produção e transmissão dos saberes de uma geração a outra. Assim, os moradores passaram a valorizar as suas práticas culturais e experiências cotidianas, através do reconhecimento e da visibilidade dada às expressões culturais, reveladoras de identidades, caracterizadas pela diversidade que perpassa pelo universo da comunidade atrelada à constituição de novas invenções. Referências CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. Ediouro, Rio de Janeiro, 2010. GUIMARÃES, Elísio Cardoso. Leocádia: romance histórico. Rio de Janeiro: Companhia brasileira de Artes Gráficas, 1991. IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. 2596

D. Dionísia não lembrava o sobrenome do Sr. Anacleto. Segundo ela, ele abandonou D. Antônia e os filhos. “Ele foi pra Son Paulo, nunca mais voltou”. Na história da comunidade, encontramos muitas mulheres que foram abandonadas pelos maridos, muitas até hoje não receberam nenhuma informação sobre o paradeiro deles. 2597 Fala de D. Dionísia, entrevistada pela autora em 14/04/2012, em sua residência na fazenda Tabua Grande.

816 ISSN 2358-4912 MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiências da comunidade negra rural de Tijuaçu – BA. 1. ed. - São Paulo: Annablume, 2009. MIRANDA, Rosângela Figueiredo. Experiência das mulheres negras do Rio das Rãs: Resistência, cotidiano e cultura – Bom Jesus da Lapa-Ba. (1970-2009). Dissertação de mestrado – Programa de Pós-graduação em história regional e local – UNEB, Santo Antônio de Jesus, 2011. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Angela M. S. Côrrea. São Paulo: Contexto, 2007. REIS, João José. In: Carnavais e outras f(r)estas. 1ed. Campinas: ed. Unicamp, 2002. SARMENTO, Alfredo de. Os sertões d’África: Apontamento de Viagem. Lisboa: Editor-proprietário Francisco Arthur da Silva, 1880. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed. SalvadorBA, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002. ________. Samba - O dono do corpo. 2. ed. - Rio de Janeiro: Mauad,1998. TEIXEIRA, Domingos Antônio. Respingos históricos. Salvador: Ed. Arembepe, 1991. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Ed. 34, 2008. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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NOVO MUNDO: ESCRITOS E MEDIAÇÕES Manoela Freire Correia2598 O artigo ora apresentado tem como objetivo primacial trazer à baila considerações sobre os primeiros escritos produzidos acerca do Novo Mundo, os quais mediatizavam informações atinentes aos rios, mares, plantas, animais, engenhos, gentios, governadores locais, entre outras. Para tanto, deter-se-ão nos tratados produzidos por Pero de Magalhães Gandavo, pelo missionário Fernão Cardim e por Gabriel Soares de Sousa em fins do século XVI. Em se tratando de tais escritos, é bom que se diga que Gandavo, ao escrever a “História da Província de Santa Cruz”, assim como o “Tratado da Terra do Brasil”, procurou dar notícia da fertilidade da terra e da temperança dos ares da província de Santa Cruz, cuja história, até aquele momento, estava sepultada no mais absoluto silêncio. Nas palavras do autor: [...] ha nella cousas dignas de grande admiraçam e tam notáveis que parecêra descuido e pouca curiosidade nossa, nam fazer mençam dellas em allgum discurso, e da-las à perpetua memória, como costumavão os antigos: aos quaes nam escapava cousa alguma que por extenso nam reduzissem a historia, e fizessem mençam em suas escrituras de cousas menores que estas, as quaes hoje em dia vivem entre nós como sabemos, e viverão eternamente (GANDAVO, 1964, p. 23).

Analogamente a Gandavo, o padre Cardim, missionário e reitor, procurador e provincial, sédulo informante que muita luz trouxe à compreensão do fenômeno da primeira colonização do país, deu a conhecer o sucedido durante a visita do padre Cristovão de Gouveia à província do Brasil, do qual foram companheiros o próprio Cardim e Barnabé Tello. Tal visita tinha por objetivo tratar de “todas as cousas pertencentes não somente ao serviço de Deus, mas também ao governo da terra e conservação do [...] estado” (CARDIM, 1980, p. 141). Finalmente, no que tange a Sousa, é interessante notar que foi senhor de engenho e proprietário de roças e fazendas, o qual produziu um memorial com o fito de evidenciar as qualidades e estranhezas do Brasil e, mais estritamente, da Bahia de Todos os Santos, ressaltando a existência de metais e pedras preciosas nessas terras pouco vigiadas, as quais necessitavam de premente fortificação: É esta província mui abastada de mantimentos de muita substância e menos trabalhosos que os da Espanha. Dão-se nela muitas carnes, assim naturais dela, como das de Portugal, e maravilhosos pescados; onde se dão melhores algodões que em outra parte sabida, e muitos açúcares tão bons como na ilha de Madeira. Tem muito pau de que se fazem as tintas [...], do que haverá muita qualidade se Sua Majestade mandar prover nisso com muita instância e no descobrimento dos metais que nesta terra há, porque lhe não falta ferro, aço, cobre, ouro, esmeralda, cristal e muito salitre [...] (SOUSA, 2001, p. 32).

No tocante ao século XVI, período aqui abordado, é mister esclarecer que testemunhou a expansão de uma cultura de viagem, assim como o desenvolvimento de um gênero literário voltado para a descrição das rotas exploradas, sejam elas terrestres ou marítimas. Nesse contexto, emergiram importantes mudanças na concepção de espaço, de modo que as histórias deixaram de ser vistas separadamente e passaram a ser encaradas de forma conectada. Isso implica dizer que as grandes descobertas no Ocidente propiciaram o trânsito de mantimentos e metais preciosos que tornou fluidas as fronteiras geográficas, conformando uma vasta rede interconectada, mas com manifestações locais diferentes. Assim sendo, chama-se a atenção para o fato de que, no presente artigo, não se deterá no estudo de uma história do Brasil que se quer nacionalista, mas, partindo da noção de histórias conectadas, tratar-se-ão, tomando por base os referidos escritos, das primeiras impressões acerca da província do Brasil, impressões estas que circularam no Velho Mundo, indo ao encontro de uma etnografia que desejava “mapear o mundo inteiro e situar cada ‘espécie’ humana em seu nicho e assim, 2598

Discente do Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.

818 ISSN 2358-4912 separar o civilizado do incivilizado, como também distinguir os diferentes graus de civilização” (SUBRAHMANYAM, 1997, p. 22). Optou-se, portanto, neste artigo, por uma maneira de revisitar o passado que leva em conta as redes internacionais constituídas não apenas pelas ordens religiosas, mas também pelos demais cronistas e viajantes que, além de mapear lugares afastados no espaço e na história e seus habitantes, difundiram saberes e confrontaram-nos com as principais culturas do globo. De acordo com Serge Gruzinski, há, nesse período, uma compressão sem precedente das distâncias: o aumento do consumo de tabaco, antes restrito a alguns grupos da América, pelos europeus; a circulação de novas plantas e drogas e as transformações das farmacopeias europeias, entre outros aspectos que patenteiam as etapas de transmissão e difusão do mundo ameríndio para o mundo europeu.2599 Destarte, desvela-se a pertinência do estudo ora apresentado, à medida que trata, dentre outras coisas, do nomadismo dos homens do Império ultramarino – conquistadores, exploradores, missionários, eclesiásticos e mercadores – que, conforme suas vocações e interesses, deslocaram-se entre diferentes continentes, produzindo observações extraídas das sociedades e das línguas mais diversas. Segundo Gruzinski, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Apesar dos estereótipos, dos preconceitos e das segundas intenções de que estes textos estão repletos, estes olhares revelam uma vontade contínua de acumular informações sobre os diferentes territórios da monarquia e de seus vizinhos. É claro que expressam um desejo de dominação e de conquista impulsionado dos centros da Monarquia, mas ao mesmo tempo traduzem a capacidade sistemática de se abrir aos demais (GRUZINSKI, 2001, p. 191).

Nesse diapasão, não se pode perder de vista que as terras da Monarquia católica eram terras de mesclas, confrontações e conflitos, onde se formaram sociedades híbridas, num processo de mestiçagens biológicas e culturais que fez com que os europeus se americanizassem e/ou africanizassem. Tal análise obriga a superar as frágeis fronteiras das disciplinas e das áreas culturais tradicionais, levando a preterir estudos que relegam as sociedades ditas ‘coloniais’ a uma posição de dependência política e de exploração econômica em relação à metrópole, em valoração daqueles que consideram as capacidades de autonomia, reação e invenção de tais sociedades. Dito isso, cumpre asseverar que esse intenso trânsito de gente e culturas que se deu no mundo ibero-americano trouxe à tona a necessidade de compreensão mútua, tendo em vista a fruição das relações sociais. Tal fato, evidentemente, não era desconhecido dos conquistadores, os quais, desde os primeiros tempos de domínio, buscaram alternativas para superar essa dificuldade, a saber: empregar ‘línguas’, ou seja, intérpretes, que traduzissem e interpretassem o que estava sendo dito de ambas as partes. Nesse ínterim, torna-se oportuno dizer que era costume, adquirido nos contatos mantidos com populações do continente africano e do Oriente, deixar degredados nas terras das conquistas para se adaptarem aos costumes e línguas dos nativos, transformando-se, posteriormente, em intérpretes. Tratavam-se, pois, dos ‘lançados’ ou ‘tangomaus’. À vista disso, é salutar citar Caminha que, na carta de achamento do Brasil, enviada ao Rei D. Manuel, refere-se a esse costume: E que melhor e muito melhor informação da terra dariam dous homens destes degradados que aqui deixassem do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende; nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor o estoutros não digam, quando cá Vossa Alteza mandar (CAMINHA, 1974, p. 53).

Quanto aos ‘línguas’, é lícito mencionar, ainda, o tratado de Sousa supramencionado, em que ele se refere a Diogo Álvares, o ‘Caramuru’, como ‘grande língua dos gentios’2600:

2599

A esse respeito, é bom que se diga que o contrário também aconteceu, uma vez que frutas, animais e mercadorias também foram trazidos do Reino para a Província de Santa Cruz, os quais cresceram abundantemente nesta terra. 2600 Acerca disso, ver também Cardim, In: Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. No ensejo, o autor se refere ao ‘língua’ como ‘senhor da fala’: “Estimam tanto um bom lingua que lhe chamam o senhor da falla. E sua mão tem a morte e a vida, e os levará por onde quizer sem contradição. Quando querem experimentar um e saber se é grande lingua, ajuntam-se muitos para ver se o podem cançar, fallando toda a noite em peso com elle, e ás vezes dois, tres dias, sem se enfadarem” (CARDIM, 1980, p. 152).

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ISSN 2358-4912 E no tempo que Tomé de Sousa desembarcou, achou na Vila Velha a um Diogo Álvares, de alcunha o Caramuru, grande língua dos gentios, o qual, depois da morte de Francisco Pereira, fez pazes com o gentio; e, com elas feitas, se veio dos Ilhéus a povoar o assento das casas em que dantes vivia, que era afastado da povoação, onde se fortificou e recolheu com cinco genros que tinha, e outros homens que o acompanharam [...] (SOUSA, 2001, p. 100).

Seguindo por essa seara, Isnara Ivo demonstrou, com grande evidência, que esses ‘línguas’, assim como missionários, artistas e aventureiros, eram verdadeiros ‘agentes mediadores’, que abriam inusitados caminhos por mares e florestas, mobilizando experiências, sentimentos, identidades, técnicas, culturas, crenças e valores. Para a autora, foram esses mediadores que “realizaram a transposição das fronteiras culturais, fomentando a mestiçagem, mas não de maneira unilateral – no ato de mediação, os mediadores culturais tanto sofrem as ações como são agentes dela” (IVO, 2012, p. 34). Diante do que vai dito acima, é sobremaneira importante ressaltar que, na ausência dos ditos ‘línguas’, ou intérpretes, a compreensão tornava-se menos precisa, de modo que algumas incompreensões poderiam acontecer, inclusive arbitrária e convenientemente. Em meio à frenética movimentação de gente e culturas já mencionada em outros pontos deste artigo, transitaram, por assim dizer, vocábulos, línguas e formas de comunicação. Em concordância com Eduardo França Paiva, pode-se apregoar a necessidade de um léxico compartilhado por europeus, índios, africanos e os descendentes deles, no sentido de evitar confusões e desentendimentos, “algo potencialmente perigoso em sociedades nas quais a forte desigualdade jurídica e política e a diferença cultural entre os habitantes eram características marcantes” (PAIVA, 2012, p. 24). A bem dizer de Paiva, tal léxico se conformou e se consolidou, levando na devida conta as dinâmicas de mestiçagem associadas às formas de trabalho, mormente o compulsório. Na tese supracitada, o autor patenteia uma taxonomia usual, adotada por todos os grupos sociais, posto que construída em conjunto, e adaptada no mundo ibero-americano, que servia para identificar, classificar e hierarquizar grupos sociais. Tratava-se, pois, de um léxico das mestiçagens que tinha como grandes categorias de distinção: ‘qualidade’, ‘casta’, ‘raça’, ‘nação’, ‘cor’ e ‘condição’. Quanto a essas categorias, é relevante assinalar que, com o fito de evitar anacronismos, foram analisadas historicamente, “[...] com os valores e códigos que vigoravam nessas sociedades fortemente marcadas pelas dinâmicas de mestiçagem que aí se associaram precocemente às formas de trabalho, mormente à escravidão” (PAIVA, 2012, p. 130). No que concerne às categorias abordadas por Paiva, é fundamental esclarecer que uma demonstração mais longa é dispensável, haja vista que algumas delas não aparecem amiúde nos escritos dos cronistas aqui analisados. Destarte, é sumamente importante dizer que, no presente artigo, focar-se-ão nas seguintes categorias: ‘qualidade’, ‘casta’, ‘nação’, ‘cor’ e ‘condição’. Face ao exposto, é imperativo afirmar, em primeiro lugar, que ‘qualidade’, explicitada na ‘nação’, na ‘casta’ e na ‘raça’, está associada às características físicas resultantes de cruzamentos biológicos, de crenças religiosas, origens e nações. Dito de outro modo, a ‘qualidade’ se relaciona, ao mesmo tempo, com origem, fenótipo e ascendência. Em Cardim, esta categoria aparece, detalhando a procedência e a crença dos religiosos – homens nobres, brancos, cristãos e ocidentais – que, partindo da Capitania no Rio de Janeiro, foram acolher, na Bahia, os companheiros vindos de Lisboa e, na oportunidade, foram acometidos por ventos e tempestades: Tendo o padre visitado o collegio do Rio, e assentando de invernar alli aquelle anno, recebeu cartas de como N. Padre geral mandava doze a estava provincia, e que estavam para partir de Lisbôa; para os agasalhar e receber se partiu para a Bahia com seus companheiros, padre provincial, padre Ignacio Tolosa, e alguns irmãos; gastámos na viagem trinta e dois dias, e quiz-nos Nosso Senhor [...] dar a entender quam trabalhosa era a navegação desta costa [...], que vindo embocar na Bahia e estando á vista de terra, nos deu tão forte tempo que estivemos perdidos uma noite com o navio meio alagado, e o traquete desaparelhado, e nós confessados nos aparelhamos para morrer, e se daquella foramos, lá ia a maior parte da provincia, não em numero, mas em qualidade (CARDIM, 1980,

p. 175). No que diz respeito à ‘casta’, basta que se diga que é definida como ‘boa linhagem’, provavelmente referindo-se a animais irracionais. Essa categoria já existia na Península Ibérica anteriormente às conquistas e, no Novo Mundo, onde encontrou solo fertilíssimo, adquiriu contornos inéditos. A título

820 ISSN 2358-4912 de exemplificação, trar-se-á à liça um excerto do tratado de Cardim, em que o missionário vale-se do termo para citar as distintas espécies de animais do Brasil:

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Cães – Os cães têm multiplicado muito nesta terra, e ha-os de muitas castas; são cá estimados assi entre os Portuguezes que os trouxerão, como entre os Indios que os estimão mais que quantas cousas têm pelos ajudarem na caça, e serem animaes domesticos, e assi os trazem as mulheres às costas de huma parte para outra, e os crião como filhos, e lhes dão de mamar ao peito

(CARDIM, 1980, p. 58).2601

Analogamente a Cardim e Gandavo, Sousa usa a categoria ‘casta’, indiscriminadamente, para expor as diferentes espécies animais e vegetais, bem como os distintos grupos de gentios. No que se relaciona à ‘nação’, categoria que se associou à de ‘qualidade’, é escusado dizer que se trata da região, província, país ou reino de origem, sem falar na filiação ou ancestralidade religiosa. Nos escritos aqui analisados, tal categoria foi reservada aos diferentes grupos de índios do Brasil: Pelo sertão da Bahia, além do Rio de São Francisco, partindo com os amoipiras da outra banda do sertão, vive uma certa nação de gente bárbara, a que chamam ubirajaras, que quer dizer ‘senhores dos paus’, os quais se não entendem na linguagem com outra nenhuma nação do gentio; têm contínua guerra com os amoipiras, e cativam-se, matam-se e comem-se uns aos outros, sem 2602 nenhuma piedade (SOUSA, 2001, p. 257).

Em Cardim, a categoria ‘nação’ é usada de forma idêntica. Em consonância com Cardim e Sousa, Gandavo, em seu “Tratado da terra do Brasil”, utiliza a categoria ‘nação’, chamando a atenção, no trecho subsequente, para o barbarismo do gentio ‘que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil’: Não se pode numerar nem comprender a multidão de barbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguem pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de indios armados contra todas as nações humanas, e assi como são muitos permittiu Deos que fossem contrarios huns dos outros, e que houvesse entrelles grandes odios e discordias, porque se assi não fosse os portuguezes não poderião viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente (GANDAVO, 1964, p. 87).

Pode-se depreender do excerto extratado que uma das estratégias utilizadas pelos europeus para a colonização da Ibero-América foi fomentar as guerras entre as nações inimigas dos gentios, as quais pelejavam amiúde por conta dos grandes ódios e discórdias associados à vingança dos antepassados mortos em guerras, sem o que não seria possível aos portugueses ‘conquistar tamanho poder de gente’. Concernentemente à categoria ‘cor’, convém deter-se um pouco mais para dizer que os primeiros viajantes e cronistas, ao chegar ao novo continente, não o perceberam para além do mundo europeu, comparando, assim, ‘verdades’ próprias do Velho Mundo com a realidade americana. Desvela-se, aí, pois, a questão da alteridade, visto que os europeus não reconheceram os brasis como diferentes de si, mas sim como homens primitivos, ainda não corrompidos pela civilização. Em palavras mais perspícuas: As primeiras certificações sobre o Novo Mundo e seus habitantes ressaltavam [...] as diferenças e semelhanças com relação ao mundo ibérico e às conquistas que se havia realizado até então. O

2601

Gandavo, em texto anteriormente mencionado, vai ao encontro de Cardim no que respeita ao uso da categoria ‘casta’, uma vez que a usa para referir as diferentes espécies de animais e plantas da província de Santa Cruz. 2602 Note-se que, em Sousa, há referências, outrossim, à procedência dos africanos, nomeadamente ‘escravos de Guiné’: “Esta vila de Olinda terá setecentos vizinhos, pouco mais ou menos, mas tem muito mais no seu termo [...]; de maneira que, quando fora necessário a juntar-se a esta gente com armas, pôr-se-ão em campo mais de três mil homens de peleja com os moradores da vila de Cosmos, entre os quais haverá quatrocentos homens de cavalo. Esta gente pode trazer de suas fazendas quatro ou cinco mil escravos de Guiné e muitos do gentio da terra” (SOUSA, 2001, p. 46).

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ISSN 2358-4912 olhar dos navegadores era marcado por aquilo que se aproximava e pelo que se distanciava das referências portadas por eles (PAIVA, 2012, p. 164).

Nesse sentido, torna-se útil argumentar que a cor da pele dos nativos provocou indagações desde a chegada dos primeiros descobridores, os quais a compararam com a dos negros da África e do Oriente, ressaltando as diferenças e semelhanças. Isso se verifica, primeiramente, em Caminha, na já citada carta ao rei D. Manuel. Conseguintemente, na paleta dos cronistas aqui analisados, aparece cor ‘baça’ dos gentios, incrementada com a cor branca dos homens livres e a negra dos escravos africanos.2603 Gandavo, na “História da Província de Santa Cruz”, faz menção à ‘cor baça’ dos índios, numa descrição que vale a pena trazer à tona: Estes Indios sam de côr baça, e cabello corredio; tem o rosto amassado, e algumas feições delle á maneira de Chins. Pela maior parte sam bem dispostos, rijos e de bôa estatura; gente mui esforçada, e que estima pouco morrer, temeraria na guerra, e de muito pouco consideraçam: sam desagradecidos em gran maneira, e mui deshumanos e crueis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo (GANDAVO, 1964, p. 54).

Finalmente, em que pese à categoria ‘condição’, é digno de nota, de acordo com Paiva, que se relaciona à condição jurídica do indivíduo – livre, escravo ou forro. O autor em foco menciona, outrossim, as subcondições de ‘administrado’ e ‘coartado’, sendo que a primeira diz respeito a índios que estavam submetidos à administração particular de um homem livre, ao passo que a segunda, não oficialmente regulamentada até o século XIX, está ligada à auto-compra da alforria, em parcelas, por escravos, que negociavam, junto aos senhores, a sua liberdade e a de seus familiares. Contudo, juridicamente, o índio ‘administrado’ era considerado livre, e o ‘coartado’, escravo. Como se pode facilmente presumir, a ‘condição’ também é evidenciada nos escritos aqui analisados, à medida que Cardim, Sousa e Gandavo fizeram um sem-número de referências aos índios escravos2604 e forros, aos homens brancos – livres – e, em última instância, aos escravos africanos: E como el-rei D. João III, de Portugal, fosse informado como os franceses tinham feito neste rio uma fortaleza na ilha de Viragalham, que foi o capitão que nela residia, que se assim chamava, mandou a D. Duarte da Costa, que neste tempo era governador deste Estado, que D. Duarte da Costa fez muita diligência e avisou disso a S. A. a tempo, que tinha sido eleito para governador-geral deste Estado a Mem de Sá, a quem encomendou particularmente que trabalhasse de pôr esta ladroeira fora deste Rio. E falecendo el-rei [...] a rainha D. Catarina, sua mulher [...] escreveu ao mesmo Mem de Sá, que com brevidade possível fosse a este Rio e lançasse os franceses dele, ao que [...] fez prestes armada, que do reino para isso lhe fora, de que ia por capitão-mor Bartolomeu de Vasconcelos; [...] e feita a frota prestes, mandou embarcar nela as armas e munições de guerra e os mantimentos

2603

Em vários trechos do tratado, Cardim menciona a cor branca dos portugueses: “Antes de terem conhecimento dos Portuguezes, usavão de ferramentas e instrumentos de pedra, osso, pau, cannas, dentes de animal, etc., e com estes derrubavão grandes matas com cunhas de pedra, ajudando-se do fogo [...], porém gastavão muito tempo a fazer qualquer cousa, pelo que estimão muito o ferro pela facilidade que sentem em fazer suas cousas com elle, e esta é a razão porque folgão com a communicação dos brancos” (CARDIM, 1980, p. 9495). É curioso notar, em tal excerto, para além da questão da circulação de objetos variados, conhecimentos, técnicas – no caso, o ferro trazido pelos portugueses –, deslindando conexões entre o lócus (espaço local) e o orbis (outras partes do mundo), que a cor branca dos portugueses remete à sua condição jurídica, ou seja, de homens livres. Neste caso, a cor define o lugar social, ao mesmo tempo em que remete ao cativeiro no concernente aos negros. 2604 Nessa perspectiva, não se pode deixar de mencionar a utilidade dos ‘escravos índios da terra’ para o sustento das pessoas que no Brasil viviam, conforme explicita Gandavo (1964, p. 82), em seu “Tratado da terra do Brasil”: “As pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se fazem moradores da terra, por pobres que sejão, se cada hum alcançar dous pares ou meia duzia de escravos [...] logo tem remedio pera sua sustentação; porque huns lhe pescão e cação, outros lhe fazem mantimentos e fazenda e assi pouco a pouco enriquecem os homens e vivem honradamente na terra com mais descanço que neste Reino, porque os mesmos escravos indios da terra buscam de comer pera si e pera os senhores, e desta maneira não fazem os homens despeza com seus escravos em mantimentos nem com suas pessoas” (GANDAVO, 1964, p. 82).

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ISSN 2358-4912 necessários, na qual se embarcou a maior parte da gente nobre da Bahia, e os homens de armas que se puderam juntar, com muitos escravos e índios forros (SOUSA, 2001, p. 81).

O trecho supramencionado faz alusão aos franceses que vieram para o Brasil no século XVI para se juntar a Villegagnon, cavaleiro da Ordem de Malta, e fundar no Novo Mundo a França Antártica, a qual seria, também, um refúgio para os franceses da Igreja Reformada contra as perseguições dos adeptos da Igreja Católica. Entre eles, destaca-se Jean de Léry2605, que veio para o Brasil acompanhado dos missionários Pedro Richier e Guilherme Chartier. Léry, assim como os cronistas aqui analisados, efetuou descrições dos silvícolas, bem como de seus costumes e crenças, além daquelas atinentes aos animais e plantas do Novo Mundo. Nessa ordem de ideias, é de interesse óbvio esclarecer que o projeto da França Antártica no Brasil fracassou, haja vista que os tais franceses foram desbaratados pelos portugueses. Feitas essas considerações, torna-se indispensável retomar as ‘grandes’ categorias elencadas por Paiva, as quais se constituíram em ferramentas essenciais para ordenar, organizar, classificar e compreender o Novo Mundo. Bem entendido, cabe lembrar que tais categorias integraram o léxico ibero-americano das mestiçagens associadas ao trabalho e foram operadas pelos vários grupos sociais, com intensidades e motivações distintas, tornando-se parte importante do viver cotidiano das Américas. Destarte, não se pode prescindir de dizer que esse conjunto lexical não se trata de um arsenal classificatório imposto pelos administradores e autoridades representantes das coroas ibéricas, antes se consolidou na comunicação cotidiana entre os europeus, índios, africanos e os seus descendentes, num processo intenso de mestiçagens biológicas e culturais. Abordadas essas questões, é já altura de caminhar para a conclusão do artigo ora apresentado. Portanto, face ao exposto, conclui-se que os escritos de Gandavo, Cardim e Sousa lançam luz sobre a colonização portuguesa, a qual se processou numa profunda simbiose entre fé e comércio que, como demonstram os cronistas aqui analisados, pleiteava a expansão da fé cristã, a luta contra o infiel e a conversão do gentio. Tais cronistas revelam, ainda, que a colonização do Novo Mundo tornou tênues as fronteiras geográficas e culturais, e os seus escritos, à semelhança das mercadorias, sentimentos, experiências, saberes e pessoas, conforme afirma perspicazmente Isnara Ivo (2012, p. 112), levaram informações do Novo Mundo a todas as partes do planeta: Os novos horizontes do Império lusitano tingiram com novos tons não somente o mundo ibérico, mas toda a Europa. A expansão colonial e a formação do Império ultramarino português propiciaram à monarquia católica espaços comerciais novos e novas possessões de caráter inédito na história. A Europa Ocidental assistiu estupefata à chegada de novas especiarias e metais preciosos. As conexões intercontinentais patrocinadas pelas conquistas interligaram, além de coisas e mercadorias, sentimentos, experiências, saberes e pessoas oriundas das quatro partes do mundo. As informações chegadas pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico enriqueceram as bibliotecas europeias com relatos, textos, e informações de todas as partes do planeta.

Em última análise, é imperioso destacar que Gandavo, Cardim e Sousa legaram à posteridade informações provenientes de sua observação arguta, informações estas imprescindíveis para que se possa revisitar o passado e, como bem salientou Gandavo em trecho citado no início deste artigo, ‘dálas à perpétua memória’. Referências CAMINHA, Pêro Vaz de. Carta a El-rei d. Manuel. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte:Itatiaia, 1980. 2605

Léry, ao chegar ao Brasil, em fevereiro de 1557, depois de narrar todos os tormentos sofridos durante a viagem, incluindo-se aí saques a navios portugueses e espanhois, chuvas fétidas, inconstância de ventos, sol fortíssimo, além das descrições de peixes voadores e aves, legou-nos uma descrição marcada pela agudeza de sua observação, em que contempla, entre outros aspectos, os habitantes, seus costumes e crenças, os animais e as plantas do Novo Mundo. Para mais informações, ver: Jean de Léry. Viagem à Terra do Brasil. Tradução e notas de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda, 1980.

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ISSN 2358-4912 GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz e Tratado da Terra do Brasil: introdução de Capistrano de Abreu. São Paulo: Obelisco, 1964. GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories. In: Rio de Janeiro: Topoi, mar. 2001. p. 175-195. IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos, comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2012. LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Tradução e notas de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda, 1980. PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda, 2001. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: Notes towards a reconfiguration of early modern Eurasia. In: LIEBERMAN, V. (Ed.) Beyond binary histories. Re-imagining Eurasia to c. 1830. Michigan: The University of Michigan Press, 1997. p. 289-315.

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PODER E SOCIEDADE NA ÁSIA PORTUGUESA NA ÉPOCA MODERNA: OS CLÃS COSTA E HORNAY EM TIMOR Manuel Lobato2606 Um “império sombra” nos confins do arquipélago malaio Como é sabido, a penetração territorial portuguesa em Timor constituiu um processo pouco linear e algo sui generis. A primeira tentativa de fixação em Cupão, em 1646, por iniciativa do dominicano frei António de São Jacinto, terminou abruptamente em 1652 com a captura do fortim pelos holandeses. A descrição que dele nos deixou o capitão holandês de Solor, Willem Verbeek, que visitou Cupão em 1648 (BOXER, 1990, p. 187), sugere que se tratava de um estabelecimento precário, talvez uma feitoria fortificada erguida em chão cedido para o efeito pelo rei local, o qual previamente havia sido batizado com o nome de D. Duarte, juntamente com sua mulher, D.ª Mariana, declarando-se ambos vassalos da coroa portuguesa (SANTOS, 1995, p. 235). Notemos de passagem que a cessão do solo aos portugueses por parte dos reis austronésios com vista à fundação de sedes políticas e administrativas permanentes e fortificadas não determinou, por si só, um estatuto idêntico geralmente aplicável a todos esses estabelecimentos. Como exemplo, poderse-ia apontar os casos das fortalezas-feitoria de Ternate e Tidore, nas ilhas Molucas, a nordeste de Timor, cujo solo foi cedido pelos respetivos sultões em 1522 e 1576. Assim, enquanto em Ternate os portugueses detinham plena soberania intramuros e liberdade de se movimentarem nos domínios do sultão, em Tidore, pelo contrário, foram-lhes impostas várias restrições, nomeadamente ao direito de comerciar livremente nos domínios do sultão local, estando-lhes também vedado o direito de converter os nativos ao catolicismo. Este pormenor, aparentemente pouco significativo, conduz-nos ao cerne de uma magna questão. No processo de formação das chefaturas e estados malaios, a construção do poder político não decorria do alargamento do território, frequentemente descontínuo, que cada chefe reunia sob o seu domínio, por vezes de forma bastante instável, mas do incremento do número daqueles que reconheciam o seu primado político e espiritual latu sensu, como também da riqueza móvel que o soberano acumulava, tesouro pessoal do qual fazia parte um conjunto de objetos e poderes espirituais que se traduziam em prestígio. Os europeus - primeiro os portugueses (1511) e depois holandeses (1605) - não se comportaram de forma muito diferente. Adotando uma postura prestigiante, apresentavam-se aos olhos dos nativos – na sua maior parte animistas e muçulmanos convertidos recentemente à fé de Mafoma – como alienígenas detentores não apenas de uma superior tecnologia militar mas também de poderes espirituais ou sobrenaturais, já que a associação entre uma e outros resultava localmente indissociável. Independentemente de qual tenha sido o estatuto de soberania que regulou os estabelecimentos portugueses no chamado arquipélago oriental, a coroa portuguesa apenas foi associada a posteriori à sua administração, ou seja, numa fase já tardia do desenvolvimento do processo informal dessas fundações. Tal foi o caso de Solor, fundada em 1562, onde algumas comunidades muçulmanas foram desalojadas dos seus bairros ou kampung portuários e piscatórios, e de Ende Menor, fortificação erguida em 1598 num ilhéu próximo, ou ainda de Larantuca, onde em 1613 se refugiaram os mestiços da fortaleza de Solor após a sua captura pelos holandeses. Esses refugiados não ergueram em Larantuca qualquer fortificação digna de nota, optando por emular os modelos de resistência dos nativos e evitando, assim, tornar-se num alvo provocatório da hostilidade holandesa. Este modelo de colonização, em que a coroa segue na esteira dos interesses privados, teve como precedente imediato, nesta região, o estabelecimento português na ilha de Amboino, criado em 1562, que poderá, por sua vez, ter sido inspirado pela fundação de Macau escassos anos antes, pesem embora as condições muito particulares que rodearam o estabelecimento dos portugueses na foz do rio das Pérolas. Se quisermos recuar ainda mais, todas estas fundações poderão ter sido inspiradas nos 2606

Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa

825 ISSN 2358-4912 estabelecimentos informais criadas espontâneamente no Golfo de Bengala ainda durante a primeira metade do século XVI, o chamado “império sombra” na expressão cunhada por George Winius. O traço comum a todos estes estabelecimentos residia no claro predomínio dos mestiços de origem portuguesa, constituindo comunidades cujos marcadores identitários lhes permitiam intermediar numa escala regional o trato e a diplomacia entre os europeus e os diferentes grupos étnicos aí presentes. Antes mesmo de se estabelecerem em diferentes zonas de Timor, os moradores luso-asiáticos de Larantuca, conhecidos por larantuqueiros, cindiram-se em duas fações antagónicas encabeçadas pelos clãs Costa e Hornay. A mescla de grupos que contribuiu para a sua composição social não é, porém, conhecida com rigor. O núcleo fundador foi constituído, como se disse, pela comunidade expulsa da ilha de Solor pelos holandeses em 1613. Solor havia funcionado durante meio século como base naval portuguesa na região para efeito do comércio de sândalo branco de Timor, madeira aromática muito apreciada na China. Esse comércio fora controlado numa primeira fase pelos mestiços luso-malaios vindos de Malaca e, após a fundação de Macau, por meados do século XVI, passaria a ser controlado pelos mercadores desta praça. Já frequentado por agentes destes grupos, Solor fora fundado em 1562 por frades dominicanos, para ali enviados pelo bispo daquela cidade, D. frei Jorge de Santa Luzia (1558-1576). A fundação religiosa de Solor e o facto de o capitão da sua fortaleza e principal autoridade civil e militar ser escolhido pelos frades dominicanos entre os moradores mais proeminentes de Malaca2607 designados por “casados” – conferiu ao novo estabelecimento um carácter único e sem paralelo no panorama das possessões portuguesas situadas a leste do Cabo da Boa Esperança. Em 1585, a Coroa chamou a si a nomeação formal do capitão, que continuou a ser escolhido entre os casados de Malaca2608, e em 1593 passou a considerar oficialmente a fortaleza como sede da denominada “capitania de Solor e Timor”2609, embora na época os portugueses e os mestiços luso-asiáticos apenas visitassem sazonalmente Timor, onde não existia um estabelecimento português permanente que justificasse tal pretensão. Para prevenir incidentes com navios muçulmanos e também pela perigosidade e mesmo hostilidade de alguns reis ou liurai nos ancoradouros de Timor, as embarcações, que podiam atingir 300 toneladas, zarpavam regularmente de Solor para Timor levando a bordo alguns soldados mestiços pagos em sândalo. Após a queda do forte português de Solor, os soldados mestiços passaram a ser recrutados em Larantuca. Ocasionalmente, alguns navios retornavam apenas com parte da carga de sândalo prevista. Entre 1605 e 1608, alguns destes pequenos navios foram mesmo capturados pelas frotas holandesas de Steve van der Haguen e Cornelis Matelieff de Jonge (SOLT, 1725, pp. 86, 90, 239). Além de servirem como homens de armas, os moradores de Solor atuavam como intermediários nas transações dos portugueses e chineses vindos de Macau com os régulos timorenses, as quais por vezes se revestiam de alguma dificuldade já que os reis timorenses faziam exigências em tecidos, utensílios de metal e géneros alimentícios, a troco do sândalo que mandavam cortar no interior da ilha e era transportado para a costa a dorso de cavalo2610. Quando os holandeses capturaram Solor, em 1613, o comércio de sândalo atravessava uma fase depressiva. Segundo as fontes holandesas, a fortaleza e povoação anexa era então habitada por mais de 90 “brancos”, incluindo sete missionários dominicanos, e 450 mestiços, além de um número indeterminado de “negros”. Sobre estes últimos, o relato refere a sua capacidade de manejar armas de fogo, mas não menciona se eles seriam escravos africanos, naturais convertidos ao cristianismo, ou refugiados luso-asiáticos das ex-possessões portuguesas recentemente conquistadas pelos holandeses nas vizinhas ilhas Molucas. Ao todo, nove aldeias dispersas pelas ilhas de Solor, Flores e Adonara estavam sob domínio português, sendo habitadas por 2.100 famílias. Em todas elas podiam ser encontradas armas de fogo, a par dos armamentos tradicionais, como escudos e arcos e flechas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Alvará do governador António Moniz Barreto, Goa, 14 Set. 1571, in SÁ, 1958, V, p. 3. Nomeação régia de António de Vilhegas para capitão e procurador dos defuntos do baluarte de Solor, 15 Mar. 1585, ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Liv. 15, fls. 28-28v. 2609 Nomeação régia de António de Andria, 18 Mar. 1593, ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Liv. 28, fls. 81-81v (LEITÃO, 1948, p. 101). Veja-se ainda SANTOS, 1995, pp. 116, 127. Vilhegas e Andria eram ambos naturais de Malaca. Para uma pequena biografia de Andria, ver PINTO, 2012, pp. 226-227. 2610 Padre Gomes Vaz S.J., Dos Contratos dos Bares de Sandolo, 1599, ANTT, Manuscritos da Livraria, cod. 805, fl. 221v. 2608

826 ISSN 2358-4912 (SCHOT, 1705, pp. 201-202). Perdida a sede política em Solor, não seria difícil a estas comunidades expandir a sua influência, dada a ausência na região de um poder político unificado e consolidado (SANTA CATHARINA, 1866, p. 274.).

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Os larantuqueiros A comunidade luso-asiática de Larantuca, que haveria de “colonizar” a costa norte de Timor, exibia algumas características habitualmente presentes nas fases iniciais de formação de qualquer estado malaio: um chefe que exigia tributo, trabalho e serviço militar, concentrando na sua mão as relações comerciais quase exclusivas com o mundo exterior, especialmente com os bugis de Macáçar e os visitantes chineses e europeus. Entre 1641 e o final da década de 1660, esta comunidade integrou novos grupos luso-asiáticos provenientes de Malaca e de Macáçar. Os chefes dos mais poderosos clãs mestiços de Larantuca, conhecidos por larantuqueiros, topasses ou portugueses “pretos”, estribavam-se no poder das armas de fogo e na sua articulação com as redes asiáticas e europeias de comércio interregional de sândalo e de escravos, surgindo desde 1636 envolvidos nas guerras internas que grassavam em Timor ocidental. Nessa época, os líderes larantuqueiros foram capazes de estender a sua influência política sobre alguns reinos situados em Timor ocidental e, em finais do século XVII, também na parte oriental da ilha, como se dirá adiante. Essa penetração foi propiciada pela existência de laços de sangue entre as famílias reais das ilhas das Flores e de Timor remontando a épocas anteriores à chegada dos europeus à região. Os reis de Larantuca acreditavam ter a sua origem em Timor, cujos reis “eram tidos em elevada consideração [em Larantuca] pela sua coragem e espírito guerreiro” (STEENBRINK, 2003, p. 88, tradução nossa). Aproveitando o longo cerco holandês a Malaca, a monarquia dual de Macáçar decidiu incluir a zona de influência portuguesa em Larantuca e Timor como alvo das suas expedições marítimas, cujo propósito era a pilhagem, a captura de escravos e a submissão de populações a quem era exigido tributo anual2611. De acordo com os cronistas dominicanos, as expedições macáçares contra Timor forneceram o pretexto para a admissão de mosqueteiros de Larantuca em Timor, que ali compravam sândalo regularmente, tendo os soberanos timorenses solicitado a sua proteção na sequência do oferecimento diplomático de frei António de S. Jacinto nesse sentido. Nessa fase inicial de estreitamento das relações entre os larantuqueiros e os soberanos (liurai) de Mena, Ambeno (Lifau) e Amunaban, os quais aceitaram receber o baptismo, os luso-asiáticos agiam sob estrita orientação dos frades dominicanos (SANTA CATHARINA, 1866, pp. 295, 299-300). Pascoal Barreto, um comerciante de Macau estabelecido em Macáçar, onde negociava em sândalo de Timor, foi provavelmente o primeiro observador que, em 1645, em carta para o rei de Portugal, assinalou uma clara ligação entre a resistência timorense às incursões muçulmanas e a aceitação do catolicismo por parte dos reis locais2612. Penetração dos “portugueses pretos em Timor” O apoio assim obtido pelos liurai de Timor consistia em proteção “espiritual” e militar prestada, respetivamente, pelos frades dominicanos e pelos mosqueteiros de Larantuca contra os invasores macáçares. Ainda que de forma débil e algo vaga, a soberania portuguesa foi então reconhecida e aceite por alguns dos mais poderosos reis de Serviang, a parte ocidental do Timor, nomeadamente pelo Sonbai, que detinha os mais elevados poderes espirituais, mas não políticos, nessa região. Inicialmente aliciado pelos macáçares para expulsar os larantuqueiros, ele acabou por aceitar o batismo das mãos de frei António de S. Jacinto. A parte centro-oriental da ilha reconhecia a autoridade espiritual do Behale, soberano que os autores portugueses designam por vezes sob o epíteto de “imperador”. O Behale foi derrotado em 1642 pela milícia larantuqueira sob o comando do capitão-mor de Larantuca, Francisco Fernandes, e do comissário-geral das ilhas de Solor e futuro inquisidor, fr. Lucas da Cruz (SÁ, V, 1956, p. 423), contribuindo para a perda definitiva do prestígio de que este soberano 2611

“Fundação das primeiras cristandades nas Ilhas de Solor e Timor”, s.d., BN (Lisboa), Fundo Geral, cód. 465, in SÁ (IV, 1956, pp. 501-503), previamente publ. in VASCONCELOS (1929, pp. 78-80). 2612 Pascoal Barreto ao rei D. João IV, Macáçar, 1 Dez. 1645, AHU, Macau, cx. 1, doc. 53, in VASCONCELOS, 1937, p. 20.

827 ISSN 2358-4912 anteriormente desfrutava, tornando ainda mais fluida, fragmentária e turbulenta a situação política naquela parte da ilha (LEITÃO, 1948, p. 149). Na sequência destes eventos, uma onda de “conversões” ao catolicismo percorreu as elites dominantes em Timor ocidental e central. Entre os soberanos então convertidos conta-se a rainha do Amakono, havia muito tempo espiritualmente assediada por frei António de S. Jacinto Os holandeses observavam a situação em Timor com alguma apreensão e decidiram-se a intervir para salvaguardarem a sua participação no comércio de sândalo. Receosos de uma intervenção holandesa, os dominicanos e os líderes larantuqueiros resolveram estabelecer-se em Cupão, o melhor porto de Timor em termos marítimos e estratégicos, situado no interior da baía de Babau, na extremidade ocidental da ilha, onde ergueram um pequeno forte. Esta iniciativa pretendia ser uma jogada de antecipação, impedindo que os holandeses viessem a apoderar-se daquele porto. Para melhor o conseguir, os larantuqueiros comprometeram-se em partilhar com a Companhia Holandesa das Índias Orientais (Verenigde Oost-Indische Compagnie, vulgo VOC) o comércio de sândalo, o que aconteceu até 1652, quando a Companhia Holandesa finalmente capturou aquela posição fortificada, prontamente renomeada de Fort Concordia, capital de Timor holandês nos três séculos seguintes (LOBATO, 2000, p. 368). Esta importante mudança na geografia política do extremo ocidental de Timor teve repercussões imediatas nos mercados de Macau e Cantão, onde os preços de sândalo cairam temporariamente. Expulsos de Cupão, os larantuqueiros viram-se confrontados com três rebeliões sucessivas contra as suas posições na costa norte durante a década de 1650, consequência da perda de prestígio que a conquista holandesa lhes tinha trazido. Os capitães-mores de Larantuca passariam então a residir por períodos mais longos em Lifau, no reino de Ambeno, como fez Francisco Carneiro de Sequeira (MATOS, 2006, p. 351). Dez anos depois de os holandeses terem capturado Cupão, Lifau já era o principal porto “português” em Timor, quando em 1663, ali morreu o cabo-de-guerra, mercador e capitão-mor Simão Luís, que nunca chegaria a receber o hábito de Cristo para que o célebre Francisco Vieira de Figueiredo, capitão-general dos mares do sul, o havia proposto (BOXER, 1967, p. 39).

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Hornays e Costas Por via da conquista territorial e pela via pacífica do casamento entre as famílias reais, que normalmente selava as alianças ofensivas e defensivas firmadas pelos mestiços em Timor, estes construíram um vasto espaço de influência política – que se estendia até às portas do estabelecimento holandês em Cupão. Parte desse espaço de influência acabaria por ser colocado debaixo do seu domínio direto e efetivo, enquanto sangue novo mestiço era enxertado em antigas linhagens reais. Dessas campanhas no interior de Timor emergiram dois senhores da guerra, os mestiços Mateus da Costa e António de Hornay, este último filho de uma escrava nativa e de Jan de Hornay, antigo comandante (Opperhoofd) do forte holandês em Solor, o qual desertara em 1629 para Larantuca, onde trocou os rigores da caserna por uma existência abastada própria de um líder político larantuqueiro, tal como fizera o seu antecessor, Jan Thomaszoon Dayman, em 1625 (BOXER, 1990, p. 184). Em duas ocasiões durante a década de 1660, poderosas frotas holandesas lançaram âncora em frente de Larantuca, ameaçando o principal reduto do poderio luso-asiático donde os mestiços estabelecidos em Timor recebiam apoio externo. Valeu-lhes neste transe a falta de empenho dos holandeses, cuja estratégia passava por seduzir os diversos reis de Serviang mais próximos de Cupão, ao invés de se envolverem directamente nas contendas timorenses. Em apenas duas décadas, os larantuqueiros consolidaram o seu poder territorial em redor de Animata, seis léguas para o interior do porto de Lifau, na região de Oecusse, atingindo um século mais tarde cerca de 25 a 30 léguas de costa (LOMBARDJOURDAN, 1982, p. 93). As suas origens mescladas levaram estes “portugueses pretos” a afirmar política e culturalmente a sua própria identidade. Têm sido justamente apontados como um dos três poderes externos ativos em Timor por mais de dois séculos, a par da coroa portuguesa e da VOC. Neste sentido, a partir do final do século XVII, vieram a opôr-se às expedições militares dos portugueses “brancos” enviadas de Goa e Macau para impor a autoridade do Estado da Índia nas Flores e em Timor. A posição de subordinação como intermediários na longa cadeia de comércio de sândalo foi finalmente um motivo para as tensões crescentes que desencadearam a “guerra” entre os “portugueses pretos” e os agentes dos comerciantes de Macau, mencionada no início do século XVIII pelo viajante inglês Alexander Hamilton, a qual,

828 ISSN 2358-4912 segundo a mesma fonte, quase teria arruinado esta praça comercial luso-chinesa (HAMILTON, 1727, pp. 139-140, 218), causando a subida do pico de sândalo em Macau de 20 para 150 patacas2613. Tal facto não implicou uma diminuição das exportações de sândalo timorense para a China. Pelo contrário, o abate florestal e as remessas aumentaram durante o período de maior controle dos larantuqueiros sobre o noroeste de Timor, escoando-se a produção no quadro de acordos comerciais celebrados entre os mestiços luso-asiáticos e os holandeses estabelecidos em Cupão (ROEVER, 2002, p. 352). Os capitães-mores de Solor e Timor, eleitos pela assembleia de moradores de Larantuca designada por adjunto, eram escolhidos entre os líderes dos dois clãs mais poderosos, as famílias Hornay e Da Costa, sob cujas ordens combatiam 600 mosqueteiros. Na sua descrição de Lifau, William Dampier refere-se a um António Henriques, supostamente um português branco, que apelida de capitão-mor, mas que de facto havia sido eleito tenente-superior em 1697 ou 1698. Aparentemente, Henriques fundara um novo estabelecimento em Hera, no leste da ilha, denominado Porto Novo, assim diversificando os pontos de comércio de sândalo e de escravos (DAMPIER, 1703, pp. 65-65, 79). Esta parece ter sido uma iniciativa política empreendida à revelia do - e mesmo contra o - clã da Costa, cujo líder, Domingos da Costa, reagiu rapidamente recuperando o controlo sobre o litoral norte de Timor. Não é este o lugar para traçar o percurso dos clãs larantuqueiros, de resto bastante complexo e, em parte, igualmente obscuro. A ascensão e governação de Mateus da Costa e Antonio de Hornay são bem conhecidas, mas foi dada menos atenção à decada que se seguiu à morte deste último, em 1693 (LEITÃO, 1948, p. 262, n. XV), e precedeu a fundação do primeiro governo colonial estabelecido em Timor, em 1702. Embora não saibamos se o tipo de organização dominial dos clãs mestiços em Larantuca, cujo perímetro em redor da casa, ou lopo, era defendido por peças de artilharia, foi ou não aplicado em Timor, conhecemos algo da sua organização hierárquica. Além do tenente-superior, deparamo-nos em Timor com referências, em finais do século XVII, a outros cargos de chefia política e militar informal entre os mestiços, como o de capitão-mor-do-campo, em Animata, no interior de Oecussi, o qual Dampier designa por “governador” e que detinha também jurisdição sobre Lifau, e o de tenentegeneral, sediado nesta povoação, ambos os cargos exercidos por mestiços proficientes nas línguas portuguesa e nativa, ainda que não saibamos exactamente qual. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A segunda geração e a luta pelo poder De acordo com Dampier, quando ancorado em Lifau em outubro de 1699, o capitão do porto, Aleixo Mendes, informou-o de que os mestiços de Larantuca e Timor apenas esperavam pela aprovação de Goa antes de desalojar os holandeses de Cupão. Embora essa afirmação aparentemente mereça pouco crédito, ela é mencionada numa carta do capitão-mor Domingos da Costa para o vice-rei conde de Villa Verde2614. O conjunto de informações fornecido a Dampier em Lifau tem sido visto como uma forma de esconder a ausência de governo e organização política entre os “portugueses pretos”. No entanto, tais informações coincidem com o conteúdo de duas cartas escritas pelos moradores de Larantuca e de Lifau ao vice-rei, em que confirmam a demissão de António de Mesquita Pimentel, ex-governador nomeado por Goa, e a sua substituição pelo capitão-mor Domingos da Costa, bem como a eleição de António Henriques, tenente de Larantuca, para o cargo de tenente-superior do porto de Hera provavelmente o Porto Novo mencionado por Dampier -, na “província” de Belu, onde Henriques se revoltou contra a autoridade de Domingos da Costa, em Julho de 1699. Na década que se seguiu à morte de António de Hornay, ocorrida em 1693, os moradores de Larantuca rejeitaram os novos governadores nomeados por Goa e começaram a eleger novos líderes, seguindo talvez a prática habitual das câmaras de algumas cidades portuárias portuguesas na Ásia, especialmente Macau, embora nenhum senado da câmara ou qualquer outra instituição formal tenham existido em Larantuca ou em Lifau. Em 1695-1696, o adjunto ou assembleia de moradores elegeu

2613

D. Pero da Silva, bispo de Cochim, “Informações sobre se introduzir o comercio das Ilhas de Solor e Timor”, Goa, 7 Jan. 1691, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Avulsos de Timor, cx. 1, doc. 9. 2614 Domingos da Costa ao vice-rei conde de Villa Verde, Timor, 5 Maio 1697, Biblioteca da Ajuda (BA), 51-V-49, fl. 261v.

829 ISSN 2358-4912 António Álvares e Domingos da Costa para o cargo e capitão-mor2615. Até certo ponto, esta eleição representou o retorno ao poder do clã da Costa. Recém-chegado a Lifau em Dezembro de 1696 (MORAIS, 1944, p. 121), o novo governador, António de Mesquita Pimentel, enviou Domingos da Costa contra Lamahala, uma das formações políticas muçulmanas ou Watan Léma, que compunham as Cinco Costas de Solor (malaio: Solor Lima Pantai) na costa sul de Adonara. Seus habitantes pertenciam ao agrupamento étnico Paji, cultural e politicamente oposto ao grupo Demon de que os nativos de Larantuca faziam parte (BARNES, 2001, p. 275). Domingos da Costa, em carta para o vice-rei, não conseguiu esconder a sua satisfação por ter queimado todas as aldeias e barcos inimigos em Lamahala2616. Várias facções passaram a desafiar a liderança de Domingos da Costa. Gaspar Calaça Tenreiro, apoiado pelo rei de Sikka - reino na ilha das Flores que reclama até hoje uma origem europeia -, assaltou o chamado lopo ou sede senhorial do clã da Costa em Larantuca, parte do plano para demitir o governador Mesquita Pimentel. No seu breve relato, Domingos da Costa dizia que, ripostando, arrancara o “bastão” do poder da mão de Calaça Tenreiro, um símbolo da autoridade real de Sikka (ABDURACHMAN, 2008, p. 83). No entanto, o plano para afastar o governador recebeu o apoio do conjunto dos habitantes de Larantucan, incluindo do rei local, D. Domingos de Larantuca, e visitantes de passagem no porto, os quais instaram Domingos da Costa para levar a cabo o plano de afastamento do governador Mesquita Pimentel, cujo comportamento - exigindo que os reis de Serviang lhe entregassem quantidades de sândalo a título pessoal – esteve na origem da rebelião. Na sua carta ao vice-rei, Domingos da Costa refere-se ao rei de Mauta, provavelmente D. Lourenço da Costa, que ainda estava no poder seis anos depois, e também menciona factos violentos envolvendo a morte de três tumengung ou regentes timorenses, bem como seis outras pessoas mortas a bordo de um navio de Macau ancorado num porto de Timor 2617. O conflito ganhou uma nova frente depois de António Henriques, o tenente-superior da região de Belu citado por William Dampier, ter tomado posse de Lifau pela força. Henriques deixou no reino de Ade - actualmente Vemasse, um porto perto de Manatuto onde António de Hornay tinha criado um estabelecimento larantuqueiro duas décadas antes (HÄGERDAL, 2012, pp. 170, 356) - uma força de guerreiros sob o comando de um príncipe de Sikka e partiu de Hera para Oecussi à frente de uma frota de cerca de 16 coracoras com uma milícia de timorenses e gente de Sikka, alguns dos quais membros da sua família. Para garantir a posse de Lifau, Henriques fez uma série de promessas e distribuiu dádivas aos seus moradores, contando entre os seus apoiantes mais chegados com Filipe dos Remédios, seu “conselheiro”, Nicolau Pereira Soares, capitão de três companhias de milícias de Sikka e, particularmente, o seu braço direito, o capitão-mor-de-campo, Aleixo Mendes, um mestiço que comandava Lifau no momento em que Dampier visitou este porto em outubro de 1699. Embora Mendes tenha dito a Dampier que Henriques era um branco nomeado pelo vice-rei, o mais provável é que ele fosse também um mestiço luso-asiático. Tendo rompido hostilidades contra Domingos da Costa, Henriques forçou a sua eleição em Lifau como capitão-mor de Solor e Timor, mas não conseguiu ser reconhecido como tal pelos habitantes de Larantuca. Forçado a refugiar-se em Belu após Lifau ter sido ocupada por uma força expedicionária de 40 navios comandados pessoalmente por Domingos da Costa, Henriques foi confrontado com o fracasso da sua aventura, que o teria levado ao suicídio algum tempo depois, segundo então se disse. Na sua carta ao vice-rei, os moradores de Lifau mostraram-se pessimistas a respeito de rumores de uma eventual nova coligação entre Sikka, grupos de Solor e Gaspar Calaça Tenreiro2618. Para apaziguar as forças de Sikka derrotadas no conflito entre Costa e Henriques, as quais possuíam estreitos laços de parentesco com famílias reais timorenses na região de Belu, bem como para compensar o rei de Sikka, D. Domingos, cujo sobrinho morrera defendendo Ade contra Domingos da Costa, um filho seu, o príncipe D. Pedro de Sikka, foi nomeado para a mesma categoria e posição - capitão do reino de Ade – que o seu falecido primo ocupava2619.

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2615

António Álvares ao vice-rei conde de Villa Verde, Larantuca, 20 Jun. 1698, BA, 51-V-49, fls. 258-v. Domingos da Costa ao vice-rei conde de Villa Verde, Timor, 5 Maio 1697, Biblioteca da Ajuda (BA), 51-V-49, fls. 260-261v. 2617 Idem, ibid., fls. 261-v. 2618 O povo de Lifau ao vice-rei, Lifau, 25 Maio 1700, BA, 51-V-49, fls. 263-264. 2619 O povo de Solor ao vice-rei [Maio-Jun. 1700], BA, 51-V-49, fl. 267. 2616

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ISSN 2358-4912 Conclusão Como procurámos mostrar, a associação entre títulos milicianos de segunda linha e poderes soberanos fora introduzida em Timor pelos mestiços de Larantuca antes mesmo de, em 1702, tais títulos se terem multiplicado por iniciativa do primeiro governador português estabelecido em Lifau, António Coelho Guerreiro. Este concedeu-os aos régulos e regentes - anteriormente designados por tumungões (mal. tumengung) - dos reinos aliados, estabelecendo assim a paridade entre os reinos timorenses e os potentados mestiços, que na época se mostravam pouco favoráveis ao estabelecimento dos agentes directos da coroa portuguesa tanto em Larantuca como em Timor. Assim, a par das armas de fogo e dos produtos importados, os portugueses passaram a dispor de um cobiçado elemento político de prestígio que daria origem a toda uma encenação ou etiqueta, sob a forma de um cerimonial político-religioso, mais tarde designado por estyllos, continuamente renovado à chegada de um novo governador, ou aquando do baptismo de um membro de uma família real timorense, ou ainda por ocasião da confirmação de um novo rei. Não é pois de estranhar que tal relacionamento, apesar de ter sofrido inúmeras vicissitudes, só tenha desaparecido definitivamente de Timor com os primeiros passos do Estado Novo colonial e salazarista na década de 1930. Entretanto, intensificaram-se os laços familiares entre os “portugueses pretos” e as elites timorenses. A proliferação de armas de fogo no século XIX, reequilibrando as forças exógenas e nativas, desvaneceu a superioridade militar dos larantuqueiros, acelerando a sua integração na sociedade local, um processo em grande parte concluído no início desse século, quando se esbateu a distinção entre famílias de origem luso-asiática e muitas das famílias reais tradicionais. Referências ABDURACHMAN, Paramita R. “Atakiwan, Casados and Tupassi: Portuguese Settlements and Christian Communities in Solor and Flores (1536-1630)”, in P. R. Abdurachman, Bunga Angin Portugis di Nusantara. Jejak-jejak kebudayan Portugis di Indonesia. Jacarta: Lembaga Research Kebudayaan Nasional LIPI Press, 2008, pp. 51-95. BARNES, R. H. “Alliance and Warfare in an Eastern Indonesian Principality. Kédang in the Last Half of the Nineteenth Century”, Bijdragen tot de Taal-, Land- en Volkenkunde, 157, 2, 2001, pp. 271-311. BOXER, C. R. Francisco Vieira de Figueiredo: A Portuguese Merchant-Adventurer in South East Asia, 1624-1667, The Hague: Martinus Nijhoff, 1967 (Verhandelingen KITLV series vol. 52). BOXER, C, R, “Timor turbulento”, in C. R. BOXER, Fidalgos no Extremo Oriente, 1550-1770. Macau: Fundação Oriente / Centro de Estudos Marítimos de Macau, 1990, pp. 181-204. DAMPIER, William. A Voyage to New Holland, &c. In the Year 1699, III, London: James Knapton, 1703. HÄGERDAL, Hans. Lords of the Land, Lords of the Sea. Conflict and Adaptation in Early Colonial Timor, 16001800. Leiden: KITLV Press, 2012. HAMILTON, Alexander. A New Account of the East-Indies, vol. II, Edinburgh: John Mosman, 1727. LEITÃO, Humberto. Os portugueses em Solor e Timor de 1515 a 1702. Lisboa: Liga dos Combatentes da Grande Guerra, 1948. LOBATO, Manuel. “Timor”, in A. H de Oliveira Marques (dir.). História dos Portugueses no Extremo Oriente, 1.º vol., t. II: De Macau à periferia. Lisboa: Fundação Oriente, 2000, pp. 351-374. LOMBARD-JOURDAN, Anne. “Un mémoire inédit de F. E. de Rosily sur l’île de Timor (1772)”, Archipel, 23, 1982, pp. 75-104. MATOS, Artur Teodoro de. “Tradição e inovação na administração das ilhas de Solor e Timor: 16501750”, Colóquio Internacional ‘O humanismo latino e as culturas do Extremo Oriente’. Macau 6-8 de Janeiro de 2005. Treviso: Fondazione Cassamarca, 2006, pp. 345-357. MORAIS, A. Faria de. Sólor e Timor. Lisboa: AGU, 1944. PINTO, Paulo Jorge de Sousa. The Portuguese and the Straits of Melaka, 1575-1619. Power, Trade and Diplomacy. Singapore: NUS Press, 2012. ROEVER, Arend de. De jacht op sandelhout. De VOC en de tweedeling van Timor in de zeventiende eeuw, Zutphen: Walburg Pers, 2002. SÁ, A. B. de (org.), Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Insulíndia, 6 vols., Lisboa: AGU / CEHCA-IICT, 1954-1988.

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ATRITOS E CONFLITOS: PROVIMENTOS DE OFÍCIOS E SESMARIAS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE (1712-1715) Marcos Arthur Viana da Fonseca2620 A sociedade e o governo português no Antigo Regime foram caracterizados por um caráter corporativo e jurisdicional. Segundo António Manuel Hespanha, o pensamento político medieval concebia a sociedade formada por diversos corpos sociais que possuíam funções diferentes no conjunto da ordem universal. Cada corpo social, todavia, não era dispensável, tornando-se indispensável para o bom funcionamento da sociedade. Esta característica corporativa da sociedade ligava-se ao ideal de atuação de cada um desses corpos no âmbito do governo. A jurisdição seria a autonomia política-jurídica pela qual esses corpos poderiam exercer os seus poderes.2621 De acordo com Pedro Cardim, A possibilidade de acção de cada um desses corpos era condicionada pela possibilidade de acção dos demais, e nessas condições a sociedade acabava por formar um aglomerado de ordenamentos corporativos justapostos e coexistentes, comunicando entre si através de canais jurisdicionais. Pela mesma ordem de razões, as fricções e os conflitos ocorriam sempre que um dos corpos via a sua área jurisdicional violada ou desrespeitada, e boa parte da interacção entre esses grupos corporativos 2622 era também regulada por instâncias jurídicas.

Dessa forma, estes diversos corpos possuíam áreas de jurisdição que lhes competiam determinada atuação e determinados poderes. Estes corpos, todavia, entravam constantemente em choques por causa de disputas jurisdicionais. Estas disputas ocorriam em muitos casos por causa de uma política deliberada da Coroa portuguesa de sobrepor estas jurisdições umas às outras de forma a criar um constante clima de vigilância. Na América portuguesa, os conflitos jurisdicionais ocorreram de forma constante durante toda a colonização. Além dos casos decorridos da política de sobreposição de jurisdições incentivada pela Coroa por meio de regimentos e da legislação extravagante. Outros casos, todavia, decorriam dos interesses das próprias autoridades coloniais, que poderiam obter alguma vantagem ao se imiscuir em uma jurisdição alheia, fora dos limites do seu ofício. Por fim, outros conflitos poderiam decorrer devido a questões pessoais destas autoridades, que acabavam permeando a sua administração.2623 Um famoso atrito ocorreu entre o governador de Pernambuco André Vidal de Negreiros (16571661) e o governador-geral Francisco Barreto de Meneses (1657-1663). Quando Vidal de Negreiros assumiu o governo da capitania de Pernambuco, em 1657, entrou em choque direto com o governadorgeral do Estado do Brasil Francisco Barreto de Meneses acerca da questão dos provimentos militares. A volumosa legislação régia sobre este tema era ambígua sobre qual autoridade detinha a atribuição de indicar os postos militares vagos.2624 Outro exemplo de conflito ocorreu na capitania da Paraíba. O provedor da Fazenda Real, Salvador Quaresma Dourado, na década de 1680 possuía uma larga jurisdição fazendária. Acusado de corrupção e abuso de poder por moradores da capitania, teve sua

2620

Graduando em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político em Portugal – século XVII. Coimbra: Editora Almedina, 1994. p. 299-300; CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. p.20. 2622 CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. p.19. 2623 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 162-163; ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997. p. 1-6. 2624 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: Aspectos da administração colonial, Pernambuco – Século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997. p. 92-96. 2621

833 ISSN 2358-4912 jurisdição diminuída com a criação da ouvidoria geral da Paraíba, em 1688.2625 Deste modo, uma relação conflituosa com os moradores locais pode levar a um conflito que resulte em uma diminuição ou aumento/ampliação de jurisdição. Este artigo pretende analisar um conflito de jurisdição ocorrido na capitania do Rio Grande, nos anos de 1712 a 1715, entre os capitães-mores Salvador Álvares da Silva (1711-1715) e Domingos Amado (1715-1718) e o governador de Pernambuco Félix José Machado de Mendonça Eça Castros e Vasconcelos (1711-1715) acerca da jurisdição de concessão de datas de sesmarias, provimentos de postos militares e de ofícios de justiça e de fazenda, no sentido de perceber as relações entre essas autoridades após a anexação do Rio Grande como capitania anexa e as nebulosidades na delimitação de jurisdição que contribuíam para a emergência desses conflitos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Sesmarias e ofícios: A questão dos provimentos O conflito de jurisdição iniciou-se em 5 de maio de 1712. Nesta data, o governador de Pernambuco, Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcelos, escreveu uma carta ao rei reclamando das concessões de sesmaria e provimentos de ofícios realizadas pelos capitães-mores do Rio Grande. As alegações feitas pelo governador de Pernambuco eram a de que os provimentos poderiam ser feitos mais por conveniência própria em favor dos capitães-mores do que por qualidade e benemérito dos providos, prejudicando assim o serviço real. Além disso, as concessões e provimentos acarretavam em dano a Fazenda Real, pois as provisões e cartas eram registradas sem o pagamento das meias anatas e dos novos direitos, cujo escrivão dos novos direitos, oficial que registrava o pagamento destes tributos, somente existia em Pernambuco, e o pagamento do foro, no caso das cartas de sesmaria.2626 Antes de esperar qualquer resposta da Coroa, o governador tomou um novo posicionamento. Em 17 de junho de 1712, Félix José Machado enviou uma carta ao capitão-mor do Rio Grande, Salvador Álvares da Silva, em que notificava a todas as pessoas providas em ofícios de justiça e de fazenda da cidade do Natal que deveriam apresentar as provisões pelas quais foram providas nos ditos postos na secretaria do governo da capitania de Pernambuco no termo de vinte dias, sob pena de serem suspensas do seu provimento.2627 Percebe-se que Félix José Machado tinha um interesse em controlar os provimentos dos ofícios realizados pelos capitães-mores do Rio Grande, ou no mínimo ter um conhecimento daqueles que eram providos. Isto era possível devido à anexação da capitania do Rio Grande à esfera de Pernambuco por meio da carta régia de 11 de janeiro de 1701.2628 Esta anexação concedia plenos poderes aos governadores de Pernambuco, que se transformaram em superiores hierárquicos na administração e nas questões militares aos capitães-mores. Um pouco mais de um mês depois da carta enviada por Félix José Machado a Salvador Álvares, em 23 de julho de 1712, uma ordem régia foi emitida pela Coroa como resposta a carta de 5 de maio enviada pelo governador. Na carta, o rei D. João V concordou com a argumentação exposta por Félix José Machado sobre o provimento de postos militares e ofícios e a concessão de sesmarias realizadas pelos capitães-mores do Rio Grande. Dessa forma, a Coroa ordena o fim deste “abuso” e que os capitães-mores se abstenham de realizar qualquer concessão ou provimento.2629 Segundo Carmen Alveal, uma das principais razões deste conflito estava na disputa acerca de quais autoridades detinham a jurisdição de conceder sesmarias, já que as concessões das cartas acarretavam em emolumentos para as autoridades responsáveis. Outra razão era o interesse da Coroa em garantir o

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MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação: Fiscalismo, Economia e Sociedade na capitania da Paraíba (1647 – 1755). 2005. 300 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 86-98. 2626 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 25, D. 2304. 2627 Registo de uma carta do senhor governador de Pernambuco escrita ao capitão-mor desta capitania o senhor Salvador Álvares da Silva sobre os oficiais de justiça e os da fazenda apresentem suas provisões na secretaria de Pernambuco no termo de vinte dias. Fundo documental do IHGRN. Caixa 01 de cartas e provisões do Senado da Câmara. Livro 5 (1708 – 1713). fl. 117. 2628 LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3. ed. - Natal: EDUFRN, 2008.p. 163. 2629 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 25, D. 2304.

834 ISSN 2358-4912 pagamento dos impostos relacionado ao registro dos documentos, o imposto do foro para as sesmarias e o pagamento dos novos direitos e das meias anatas para as cartas e provisões.2630 Deste modo é possível apontar como um dos interesses de Félix José Machado não somente o desejo de garantir o pagamento dos impostos devidos à Fazenda Real, que somente poderia ser feito em Pernambuco, mas também com o intento de aumentar a sua autoridade e jurisdição sobre a capitania subordinada do Rio Grande. Este fato pode ser evidenciado com relação às suas ações. A carta que enviou à Coroa relatando o problema dos provimentos datava de 5 de maio de 1712, um mês anterior a carta enviada ao capitão-mor Salvador Álvares da Silva, e dois meses anteriores à resposta da Coroa, o que evidencia o seu desejo em agir. Outra hipótese que pode ser levantada condiz com o contexto da administração de Félix José Machado em Pernambuco.2631 Em meio a um governo marcado pela repressão e julgamento dos responsáveis implicados na Guerra dos Mascates (1710-1711), o aumento de jurisdição com a centralização na concessão de sesmarias e de ofícios na pessoa do governador de Pernambuco tornava-se uma boa forma de controlar quem eram as pessoas e quais os ofícios e postos militares concedidos nas capitanias anexas, neste caso, a capitania do Rio Grande. Dessa forma, Félix José Machado possuiria uma forma eficiente e eficaz de barrar o acesso à terra e aos ofícios da Coroa às pessoas que haviam participado da Guerra dos Mascates, mas que haviam fugido de Pernambuco. Em 4 de fevereiro de 1713, todavia, a Coroa reconsiderou a questão dos provimentos. Em carta régia destinada ao governador de Pernambuco, D. João V reiterou a proibição dos capitães-mores do Rio Grande de doarem terras, proverem ofícios e postos, pois não eram permitidos pelo seu regimento, mas eram atos da jurisdição dos governadores de Pernambuco. O rei autorizou aos capitães-mores que informem sobre as pessoas mais capazes e beneméritas ao governador, que como seu superior deveria provê-las. Para avaliar a situação com mais cuidado, contudo, a Coroa solicitou ao capitão-mor do Rio Grande os argumentos que justificavam as concessões e os provimentos feitos por seus antecessores.2632 Ao se analisar os regimentos dos capitães-mores do Rio Grande, é possível confirmar a argumentação de José Félix Machado e da Coroa acerca da jurisdição da concessão de sesmarias e do provimento de ofícios. Criado em 1663 pelo vice-rei D. Vasco de Mascarenhas, conde de Óbidos (16631667), o regimento destinava-se a todos os capitães-mores do Estado do Brasil, fossem de capitanias régias ou de donatarias e tinha o intuito de organizar a administração das capitanias. Como o próprio vice-rei indicou, o regimento foi feito para se evitar as “dúvidas que os provedores da Fazenda Real e os ouvidores das mesmas capitanias costumam fazer e as queixas que os moradores ordinariamente fazem de suas autoridades”.2633 Em três parágrafos do regimento constam instruções para os capitãesmores dos limites da sua jurisdição com relações aos provimentos e concessões de terra. No parágrafo quinto, acerca do provimento de postos militares de tropas pagas, auxiliares ou ordenanças, o capitãomor não deveria prover nenhuma pessoa, mas apenas informar ao vice-rei das pessoas mais beneméritas e qualificadas para que apenas este último provesse os cargos. O sexto parágrafo determinava que em caso de vacância de algum ofício de justiça e fazenda, o capitão-mor não tinha jurisdição para provê-lo definitivamente, pois tal atribuição competia ao vice-rei, mas para não atrasar o funcionamento do serviço real o capitão-mor poderia indicar as pessoas mais beneméritas da capitania para os postos por tempo de dois meses, com condição de confirmação perante o vice-rei. Caso a condição não fosse cumprida, a indicação tornava-se nula. Por fim, o décimo segundo parágrafo proibia aos capitães-mores de doarem sesmarias, pois era atribuição exclusiva do vice-rei, sendo-lhes permitido somente a emissão de um parecer acerca das terras solicitas pelos suplicantes.2634 O regimento do conde de Óbidos limitava as áreas de jurisdição dos capitães-mores, retirando as possibilidades de provimento dos ofícios que vagassem e da própria concessão de terras, tornando a V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Converting Land into Property in the Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. 2005. 387 f. Tese (Doutorado em História) – John Hopkins University, Baltimore. p. 151-185. 2631 MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos Mazombos: Nobres contra Mascates, 1666-1715. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 403-471 2632 AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 25, D. 2304 2633 Regimento do Conde Vice-rei com que veio o Capitão-mor Valentim Tavares Cabral, a entrar no governo desta Capitania. In: LEMOS, Vicente de. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro:Typografia do Jornal do Commercio, 1912. v. 1.p. 85-89. 2634 Idem, p. 86-88.

835 ISSN 2358-4912 administração cotidiana da capitania extremamente dependente e ligada à capitania da Bahia e ao vice-rei. Com a anexação da capitania do Rio Grande a Pernambuco, as limitações jurisdicionais dos capitães-mores transferem-se dos governadores-gerais e vice-reis em Salvador para os governadores em Olinda e Recife. Neste sentido, a argumentação de Félix José Machado acerca da falta de jurisdição de Salvador Álvares da Silva e dos seus antecessores encontra eco jurídico, pois não lhes eram permitidos nem concederem terra nem proverem ofícios, à exceção dos de justiça e da fazenda por dois meses, com condição de confirmação superior. Em 3 de agosto de 1713, seis meses após a ordem régia em que a Coroa solicitava os argumentos de Salvador Álvares da Silva, o capitão-mor respondeu ao rei. A carta continha os argumentos que justificavam os provimentos e as concessões de sesmaria. Salvador Álvares alegou ao rei que o provimento dos ofícios e a concessão de sesmarias feitas por ele e seus antecessores era uma prática antiga, que datava há mais de 50 anos, originado de ordens que vieram dos governadores-gerais. Com relação aos postos militares, o capitão-mor enumerou as patentes em que concedeu provisão, sendo elas as de: comissário geral da cavalaria, coronel, tenente-coronel, sargento-mor, capitão de cavalo, tenente de cavalo e capitão de ordenança. Salvador Álvares alegou que nestas patentes não alterou coisa alguma e nem criou nenhum novo posto. E todas as patentes possuíam a condição de confirmação dentro de seis meses pelo governador de Pernambuco, bem como os ofícios de justiça e fazenda em que o prazo de confirmação era de três meses. Segundo o capitão-mor, todos os provimentos estavam em conformidade com a ordem régia de 9 de maio de 1703, em que o rei D. Pedro II consentiu o mesmo grau de subordinação do Rio Grande a Pernambuco, incluso a jurisdição do capitão-mor sobre os provimentos, com condição de posterior confirmação, em detrimento das intenções do governador D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre (1699-1703).2635 As justificativas do capitão-mor, da mesma forma que as do governador de Pernambuco, também encontravam base jurídica. Salvador Álvares utilizou dois argumentos principais para justificar o benefício ou privilégio que as provisões representavam para o seu cargo. O primeiro foi o argumento do costume. Segundo o capitão-mor, o provimento de oficiais e a concessão de terras constituíam-se em uma prática antiga de mais de 50 anos, que tinha fundamento em ordens vindas do governo-geral da Bahia. Deste modo, todos os antecessores de Salvador Álvares tinham desfrutado desta prática que estava associado ao seu cargo, garantindo assim ares de uma tradição. Segundo António Manuel Hespanha, durante o Antigo Regime português, diversos ordenamentos jurídicos coexistiam entre si (tais como o direito costumeiro, o direito canônico e o direito do reino). Estes diversos ordenamentos possuíam, em muitos casos, valores de leis, sendo capazes de derrogar ordens e decretos reais.2636 Apesar do regimento dos capitães-mores limitarem a jurisdição dos capitães-mores em concederem terras e proverem ofícios e patentes, sempre estando na dependência dos governadores-gerais para confirmarem suas provisões, o capitão-mor queria dar um discurso de legitimidade as concessões feitas por seus antecessores ao descrevê-las como uma prática antiga. Seguindo o raciocínio do capitão-mor, os provimentos tornariam-se legítimos, pois tinham estatuto de tradição, que era validado pelo direito costumeiro. Apesar disso, os atos eram ilegais segundo o regimento do conde de Óbidos. O segundo argumento de Salvador Álvares repousava também em fundamentação jurídica. Segundo o capitão-mor, todas as concessões e provimentos feitos eram legais, pois estavam em conformidade com a ordem régia de 9 de maio de 1703. Esta ordem régia garantia a jurisdição dos capitães-mores de concederem sesmarias e proverem ofícios com a condição de confirmação em seis meses, da mesma forma quando os capitães-mores estavam subordinados à Bahia. Esta ordem foi motivada pelas pretensões do governador de Pernambuco, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre que havia tentando concentrar a concessão de terras e provimentos de ofícios no seu cargo. Deste modo, Salvador Álvares não somente demonstrava que a concessão e provimentos haviam sido debatidos e legalizados recentemente pela Coroa em favor dos capitães-mores, ao conservarem a sua jurisdição, mas também revelava que o mesmo intento realizado pelos governadores de Pernambuco, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 81. HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que consiste um direito colonial brasileiro. In: PAIVA, Eduardo França. (Org.). Brasil-Portugal: sociedade, culturas e forma de governar no mundo português (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Annblume, 2006. p. 21-41. 2636

836 ISSN 2358-4912 agora na figura de Félix José Machado, voltava a ocorrer, e que a Coroa deveria dar novamente apoio a capitania subordinada. Os planos de Salvador Álvares da Silva, todavia, não se concretizaram. A Coroa não forneceu nenhuma resposta a sua argumentação e os capitães-mores continuaram proibidos de doarem sesmarias e proverem oficiais. Esta situação perdurou até a posse do novo capitão-mor, Domingos Amado (1715-1718), no ano de 1715. O novo capitão-mor realizou uma nova petição àa Coroa, reiterou os argumentos do seu antecessor no cargo e acrescentou outros. Segundo Domingos Amado, assim que tomou posse do governo da capitania, os moradores reclamaram da falta de oficiais, tanto da fazenda como da justiça, pois ninguém tinha interesse nos cargos. Este problema era ocasionado pela falta de jurisdição do capitão-mor, que não podendo prover o cargo, somente poderia indicar pessoas ao governador de Pernambuco. De acordo com o capitão-mor, devido à distância de 70 léguas para Pernambuco, onde ocorriam os provimentos, e de 200 léguas para a Bahia, onde as provisões eram confirmadas, nenhuma pessoa demonstrava interesse nos cargos devido aos custos financeiros de deslocamento e nem solicitavam datas de sesmarias, por mais que o interior da capitania estivesse cheio de terras devolutas.2637 Domingos Amadou reiterou os argumentos de Salvador Álvares com o intuito de sensibilizar a Coroa. Alegou que uma das razões para as concessões de sesmarias e o provimento dos oficiais estava na antiquíssima posse do benefício dos capitães-mores, desde a criação do cargo para a capitania e posteriormente confirmado pelo governador-geral Francisco Barreto de Meneses (1657-1663) em carta de 16 de maio de 1660. Esta prática também havia sido reconhecido pelas cartas régias de 9 e 26 de maio de 1703 que sancionava a jurisdição dos capitães-mores sobre a concessão das datas de sesmarias. Domingos Amado ainda relatou que os únicos cargos que foram providos por seus antecessores eram: escrivão da fazenda, almoxarife, meirinho, escrivão das execuções, provedor da Fazenda Real (em caso de vacância), escrivão da câmara, tabelião do judicial e notas, alcaide, escrivão da vara, juiz de órfãos e o seu escrivão. Segundo o capitão-mor, todos estes provimentos eram realizados com a condição de posterior confirmação do governador de Pernambuco no tempo de três meses. Além disso, Domingos Amado, diferentemente de Salvador Álvares da Silva, enviou junto com a carta uma cópia de cada lei que corroborava os seus argumentos.2638 A primeira cópia era a da provisão de Francisco Barreto de Meneses de 16 de maio de 1660. Nela, o governador-geral concedia ao capitão-mor o direito de prover os ofícios, com a cláusula de confirmação ao governo-geral no tempo de seis meses, e a capacidade de doar as terras devolutas a todos que a solicitarem. A segunda cópia era uma carta régia de 9 de maio de 1703 endereçada à câmara da cidade do Natal, na qual o rei confirmava a jurisdição dos capitães-mores sobre os provimentos e concessões no mesmo estilo de quando estavam subordinados ao governo-geral da Bahia. Esta ordem régia havia sido emitida diante do intento do governador de Pernambuco, D. Fernando Martins Mascarenhas, de concentrar e aumentar a jurisdição do seu cargo após a anexação do Rio Grande como capitania subordinada, em 1701. A última cópia era a carta régia de 26 de maio de 1703 dirigida ao desembargador Cristóvão Soares Reimão na qual o rei esclarecia e determinava que as terras devolutas da capitania do Rio Grande deveriam ser solicitadas ao capitão-mor dela e posteriormente confirmadas pelo rei pelo Conselho Ultramarino.2639 Os argumentos de Domingos Amado eram extremamente parecidos com o do seu antecessor, Salvador Álvares da Silva. A jurisdição que possuíam sobre os ofícios e as datas de terra havia sido estabelecida há mais de 55 anos e posteriormente confirmada por várias provisões e ordens régias, o que levava esta jurisdição a um caso especial. Sendo confirmada primeiramente pelo governo-geral, em 1660, foi posteriormente revogada pelo mesmo por meio do regimento do conde de Óbidos, em 1663. Apesar disso, os capitães-mores do Rio Grande continuaram a exercer sua autoridade sobre os ofícios e as sesmarias como se fosse legítima e legal, mesmo sendo desautorizados pelo seu regimento. Entre os anos de 1663, data do regimento do conde de Óbidos, e os anos de 1712, data da revogação da jurisdição dos capitães-mores, foram doadas cerca de 100 sesmarias na capitania do Rio Grande. Destas, apenas 20 sesmarias (20%) foram doadas pelos governadores-gerais ou governadores de Pernambuco, perfazendo um total de 80 sesmarias (80%) doadas ilegalmente pelos capitães-mores do V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 81. AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 81. 2639 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 81. 2638

837 ISSN 2358-4912 Rio Grande.2640 Deste modo, ao ignorarem a legislação que anulava a sua jurisdição, os capitães-mores deram aos seus provimentos e concessões um ar de legitimidade baseado no uso e na prática. De toda forma, os provimentos e as concessões foram legalizadas pela Coroa, como lembrou Domingos Amado, pelas duas cartas régias que asseguravam a jurisdição dos capitães-mores. A decisão acerca da questão foi levada ao Conselho Ultramarino em reunião ocorrida em 23 de novembro de 1715. Os conselheiros ultramarinos argumentaram que devido à distância que existia entre a capitania do Rio Grande e a capitania de Pernambuco, muitos vassalos não se mostrariam animados em servir ao rei devido dificuldade de se ter acesso aos provimentos e ao grande custo financeiro. Os conselheiros também alegaram que devido à prática na qual os capitães-mores procediam sobre os provimentos e as concessões de terras, e considerando que o rei deveria manter e conservar a autoridade e jurisdição do capitão-mor, igual aos de seus predecessores. D. João V acatou o parecer do Conselho Ultramarino. Em carta régia de 22 de dezembro de 1715, endereçada ao capitãomor do Rio Grande, o rei confirmou o parecer do Conselho e concedeu ao capitão-mor plena jurisdição sobre as datas de terra de sesmaria e sobre os provimentos dos ofícios da fazenda, da justiça e de guerra, concedendo-lhe o direito de passar provisões por tempo de um ano, para conservar o estilo e prática em que seus antecessores possuíam.2641 A Coroa deste modo confirmava os argumentos dos capitães-mores, Salvador Álvares da Silva e Domingos Amado, que estavam fundamentados no direito. O argumento do direito, contudo, não foi o único que sensibilizou o rei. O fato de os vassalos do Rio Grande terem de se deslocar mais de 70 léguas causava um grande prejuízo, não somente financeiro, mas também sobre a moral dos moradores da capitania. O Bem Comum e a Boa Ordem, os ideais de bem-estar e de prosperidade geral dos moradores da capitania, eram ideais a serem seguidos por todas as autoridades régias.2642 Estes ideais, porém, estavam seriamente ameaçados devidos justamente a este conflito administrativo. Não somente os moradores não tinham acesso fácil às terras devolutas e aos ofícios administrativos e militares menores, como o serviço real poderia ser paralisado devido a falta de oficiais e o povoamento de capitania abandonado, sem pessoas que se dispusessem a solicitar e cultivar terras. Deste modo, o bem-estar dos moradores capitania foi também uma razão decisiva para o posicionamento favorável da Coroa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações finais Conflitos de jurisdição ocorreram constantemente entre autoridades régias quando estas viam as atribuições dos seus cargos limitadas por outros oficiais. O confronto entre os capitães-mores do Rio Grande e o governador de Pernambuco foi uma disputa por poder, em que ambas as autoridades requeriam manter o status que o seu cargo lhe proporcionava. O direito, porém, não era nenhuma garantia, de fato, de que as jurisdições de um cargo eram imutáveis ou garantidas. As recorrentes ordens régias e regimentos, além do próprio costume, estavam sujeitos ao arbítrio da Coroa, que ora concedia e ora retirava a jurisdição dos capitães-mores, do mesmo modo que concedia e retirava a jurisdição dos governadores de Pernambuco. Assim, os conflitos de jurisdição foram além de disputas jurídicas por poderes locais, mas se tornaram-se importantes disputas no momento em que afetavam negativamente ou positivamente a governança nas áreas coloniais.

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As cartas doadas foram: RN 0012, RN 0015, RN 0017, RN 0018, RN 0019, RN 0028, RN 0034, RN 0044, RN 0046, RN 0047, RN 0088, RN 0089, RN 0118, RN 0503, RN 0541, RN 0908, RN 0909, RN 0910, RN 0912, RN 0913. Todas as cartas concedidas pelos governadores-gerais e os governadores de Pernambuco, entre os anos de 1663 e 1712, encontram-se disponibilizadas na Plataforma SILB. A Plataforma SILB (Sesmarias do Império LusoBrasileiro) é uma base de dados que pretende disponibilizar on-line as informações das sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa no mundo atlântico. Acesso em 25 de junho de 2014: disponível em www.silb.cchla.ufrn.br 2641 AHU-RN, Papéis Avulsos, Cx. 1, D. 81. 2642 RUSSELL-WOOD, A.J.R. A base moral e ética do governo local no Atlântico luso-brasileiro durante o Antigo Regime. In: VENÂNCIO, Renato Pinto (Org.); GONÇALVES, A. L. (Org.); CHAVES, C. M. G. (Org.). Administrando Impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. 1. ed. Belo Horizonte: Fino Traço/FAPEMIG, 2012. v. 1. p. 13-44.

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AS METAMORFOSES DE UM IMPÉRIO: PORTUGAL-BRASIL DA DINASTIA DE BRAGANÇA AO IMPÉRIO HÍBRIDO COLONIAL Marcos Aurélio de Paula Pereira* Na história Brasil e Portugal figuram como nações filiadas numa relação paternal, que passado os primeiros percalços da infância e adolescência, teriam se entendido, alcançando fases próximas de desenvolvimento. A metáfora filial acima é para inserir uma questão: dentro de um sistema geopolitico pluricontinental que era o império de Portugal e seus domínios, quando e como o Brasil teria atingido sua maturidade? Nossa hipótese de análise remete para as décadas finais do século XVIII principalmente sobre o processo de transferência da sede desse império para sua dileta e vasta colônia. Outra pergunta a partir dessas considerações é: como e porque o império ultramarino português continuou existindo e como classifica-lo perante aos impérios surgidos na Idade Moderna? Utilizamos o termo império para Portugal pensando a partir da expansão ultramarina e das navegações do século XV em diante. Não nos referimos entretanto numa simples relação de metrópole-colônia, mas num império articulado através de redes no oriente e no ocidente. 2643 Do mesmo modo a Espanha e Inglaterra, após o pioneirismo lusitano, cada uma a seu modo, criaram seus impérios articulados. Usando a expressão de John Elliott: O império chama ao império.2644 Diferente dos portugueses que nos séculos XV e XVI constituíram um império ultramarino através de fortalezas e feitorias, os espanhóis se empenharam desde o inicio a construir um império de conquista e colonização. Segundo as analises de Elliott, Inglaterra e Espanha tiveram de lidar com os mesmo problemas e estabelecer semelhantes medidas, mas suas diretrizes estavam igualmente condicionadas às aspirações do Velho mundo e que então se propunham a explorar bem o Novo Mundo.2645 Por sua vez, Portugal e seus domínios além-mar constituíam uma monarquia pluricontinental. Leituras historiográficas de 1808-1822 Na sua obra clássica da historiografia, A interiorização da metrópole e outros estudos, Maria Odila Leite da Silva Dias, chama atenção para o processo sui generis de transição da América Portuguesa para o Império do Brasil e as leituras recorrentes na historiografia sobre o assunto. Um dos argumentos da historiadora é que as interpretações históricas estariam cheias de vícios como os da dicotomia metrópole-colônia; identificações com o naturalismo e nacionalismo, além de influencias do modelo de independência norte americano. Fazendo referencia a Sérgio Buarque de Holanda, afirma que a independência do Brasil em 1822 seria fato consumado desde 1808 com a vinda da Corte e por motivos que seriam alheios aos desejos tanto da colônia como metrópole. A historiadora identifica que entre 1808 e 1822 teria ocorrido uma evolução no Brasil, de colônia para o império e que, a opção de fundar um novo Império nos trópicos já significaram por si uma ruptura interna nos setores políticos do velho reino.2646 Os apontamentos levantados por Maria Odila, são rediscutidos por Maria de Lourdes Viana Lyra, em sua obra a utopia do poderoso império. Maria de Lourdes, partindo da analise de que o ideário iluminista em Portugal e no Brasil foi de cunho mais conservador que inovador, infere que o quadro teórico orientador da nova política, em sintonia com as luzes do século XVIII, concebia a união de Brasil e Portugal como um dado natural. A autora identifica o projeto de um Novo Império português, com um centro comum, primeiro em Lisboa, depois no Rio de janeiro, como ponto de referência na unidade nacional portuguesa. Ou seja, o mundo que os portugueses criaram manteria a unidade, estivesse a sede no Brasil ou na Europa. Entretanto Maria de Lourdes Viana – e nem Maria Odila Leite *

Professor adjunto do departamento de História da Universidade de Brasília - UnB Sobre o uso do conceito de império, as leituras historiográficas e novas aplicações revisadas, bem como ampliação do mesmo ver o texto de Maria Fernanda Bicalho. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira. BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 91-105 2644 ELLIOTT, John H. Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830) Madrid: Taurus, 2006, p. 55 2645 ELLIOTT, John H. Op. Cit. 2006, pp. 58- 60 2646 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 11- 13. 2643

840 ISSN 2358-4912 – não analisa a configuração que surge a partir de 1808 como continuidade ou transformação, acaba por valorizar a ruptura. Enquanto Maria Odila identifica na vinda da corte para o Brasil como o real motivo da independência brasileira, Maria de Lourdes volta ao sonho utópico de Antonio Vieira do Quinto Império do Mundo relacionando-o a visões de grandeza de um Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e que o mesmo estaria inserido no processo de nossa independência. A transferência da sede do império ultramarino português para o Brasil era um projeto antigo. Já em 1580, o prior do Crato foi aconselhado por D. Pedro da Cunha, para evitar que Felipe II herdasse o trono lusitano devido à ascendência materna, a buscar reduto em terras além do Atlântico. No século XVII o padre Antonio Vieira, após a restauração de 1641, propôs a D. Luisa de Gusmão, viúva de D. João IV, a fundação do Quinto Império em terras americanas, num misto de pensamento político e milenarismo. Um século depois, o célebre diplomata D. Luis da Cunha defendeu de forma elaborada a transferência da sede do império ultramarino português para o Brasil. No século XIII o ouro e as pedras preciosas, teriam reflorescido o comércio português com o Brasil, permitindo que Portugal resolvesse seu problema de balança deficiente com o resto da Europa. Evidenciava-se a dependência que Portugal tinha das suas colônias, especialmente, da rica região mineradora. Tal condicionamento da economia portuguesa à exploração mineral era tão marcante que D. Luís da Cunha, embaixador plenipotenciário, aconselhou a transferência da sede do império para o Brasil. Advertia que a defesa do território brasileiro era primordial, antes que as minas viessem a cair em mãos que melhor aproveitassem seus recursos. Ou seja, além de valorizar mais a periferia como produtora de riqueza que o reino, D. Luís da Cunha percebia que os portugueses não sabiam administrar bem as minas e a região.2647 Nas instruções deixadas a seu sobrinho Marco Antônio de Azevedo Coutinho, D. Luis escreveu propostas de melhoria da economia do império português. O embaixador tinha preocupação com o governo, a administração e a economia. Entretanto, seus conselhos não foram seguidos. No contexto das guerras napoleônicas resurgiu a proposta de transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Em 1801, D. Pedro de Almeida, 3º Marquês de Alorna, propôs a mudança que serviria, também, para ameaçar com a presença do regente em terras da América do sul, os domínios da monarquia espanhola. Assim, a partir do Brasil, preservava-se a monarquia lusitana e se conservavam os domínios ultramarinos.2648 O marquês aconselhava:

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A balança na Europa esta, tão mudada que os cálculos de há dez anos saem todos errados na era presente. Em todo o caso o que é preciso é que V. A. R. continue a reinar, e que não suceda à sua coroa, o que sucedeu á de Sardenha, à de Napoles e o que talvez entra no projeto das grandes potencias que suceda a todas as coroas segunda ordem na Europa V. A. R. tem um grande império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem, talvez que trema, e mude de projeto, se V. A. R. o ameaçar de que se dispõe a ir ser imperador naquele vasto território adonde pode facilmente conquistar as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potencias da Europa” E continuava exortando a necessidade de se conservar a monarquia “(...) e então V. A. R. parte com toda sua famílias para os seus estado do Brasil, e a nação portuguesa sempre ficará sendo nação portuguesa, porque ainda que estas cinco províncias padeçam algum tempo, debaixo do jugo estrangeiro: V. A. R. poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgata-las, 2649 mandando daqui um socorro que junto com o amor nacional se liberte de tudo.

Dois elementos nessa citação chamam atenção para as hipóteses aqui enunciadas. O primeiro é que Alorna considerava o Brasil, por sua extensão, um império que poderia ter suas fronteiras aumentadas por meio de conquistas de domínios espanhóis. Segundo é a perspectiva de que a monarquia pluricontinental portuguesa se assentava na realeza e na sua corte. O Antigo Regime não estava de todo morto. A corte girava em torno da família real e isso acontecia desde os tempos de D. Pedro II de Portugal e de D. João V. A corte erige-se como lugar geométrico das hierarquias, disse Ladurie.2650

2647

CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, Lisboa: CNCDP, 2001, p. 366. PEDREIRA, Jorge. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Cia das letras, 2008, pp. 181-182 2649 LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4ª edição. Pref. Wilson Martins. Rio de janeiro: Topbooks, 2006, p. 45. 2650 LADURIE, Emmanuel L. R. Op. Cit. p. 15 2648

841 ISSN 2358-4912 Seria o “lugar central” 2651 da vida dos nobres de onde seus valores e comportamentos irradiavam aos demais estratos sociais. Através dela surgiam padrões de conduta e era concomitantemente espaço privilegiado da política. Noutros casos, a corte era onde o rei estava. Aonde o monarca ia, uma corte o seguia.2652 Ainda no dezenove a monarquia, nas palavras dos ministros e diplomatas de Portugal, estaria resguardada salvando-se a família real e a dinastia de Bragança.2653 O príncipe seria o responsável por devolver à sociedade a estabilidade perdida.2654 Assim o Novo Império a ser erigido no Brasil assentava-se me premissas do Antigo Regime. A vinda da família real teria, além de causar uma reconstrução do Estado brasileiro com o deslocamento do eixo do poder, também alterou definitivamente o status da colônia, disseminando fortemente na América a cultura da corte propriamente europeia, como explanado na obra de Jurandir Malerba. A Europa tão almejada se encontrava na colônia. A situação de 1801 ficou no ar. Seria retomado de novo em poucos anos de forma mais elaborada. Foi D. Rodrigo de Souza Coutinho, absolutista, ilustrado, reformador e diplomata, que defendeu de forma mais veemente a transferência da Corte para o Brasil. Seu objetivo, além das mesmas justificativas econômicas de D. Luis da Cunha, era a sobrevivência da monarquia portuguesa. Mas é possível ir além e ver que antes mesmo do translado da corte, D. Rodrigo propunha reformas que tornassem o Brasil mais integrado ao restante do império. Aconselhava a criação de auditorias administrativas e judiciais, maiores salários aos funcionários régios procurando o aumento da eficiência. Além das questões administrativas, enfatizava a emergência do alivio da carga tributária, huma taxação mais doce e mais productiva em todas as capitanias do Brazil; e uso de princípios liberais; no sentido que os ingleses lhe atribuem, sobre as Minas. Em 1798, numa exposição ao regente, D. Rodrigo projetava que o império ultramarino fosse visto como sendo composto de “províncias da monarquia, condecoradas com as mesmas honras e privilégios (...) todas reunidas ao mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para contribuirem para a mutua e recíproca defesa da monarquia.”2655 Chamamos atenção ao fato de que nem D. Luis da Cunha, nem D. Rodrigo de Souza Coutinho ou mesmo o Marquês de Alorna, esperavam que Portugal se desfizesse de seus domínios ultramarinos. A proposta era de continuidade do império com a mudança de sua sede de Lisboa para o Rio de Janeiro. Kenneth Maxwell comenta que a ideia do império luso-brasileiro tinha pontos fracos. Havia diferenças básicas de opinião em questões vitais como a escravatura.2656 Segundo Oliveira Lima tendo D. João VI ouvido a desembargadores e procuradores, do fiscal da junta dos três estados e do da real fazenda do ultramar sobre a ida para o Brasil, à época cogitavam que fosse a família ou só o príncipe da Beira - D. Pedro de Alcântara – teriam alguns recomendados como refugio a Ilha da Madeira. Outros julgaram a ilegalidade do fato, devido a leis que proibiam a saída do herdeiro da coroa de Portugal. Primeiro o príncipe teria concordado com esse ultimo parecer, por ser o que desejava: irem ou ficarem todos. Depois que se convencera de que seria rematada loucura ficar esperando a deposição e o cativeiro. Em 1803, após a retomada das hostilidades entre França e Inglaterra, D. Rodrigo argumentava com príncipe regente D. João VI: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quando os novos riscos e iminentes perigos se aproximam para a conservação da Monarquia(...) quando se considera que Portugal por si mesmo muito defensável, não é a melhor parte da Monarquia; que depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu soberano, e ais seus povos o irem criar um poderoso império no Brasil, donde 2651

MONTEIRO, Nuno G. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José. (Dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Circulo de Leitores, 1994, p. 341 2652 MONTEIRO, Nuno G. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José. (dir.). Op. Cit. p. 368. 2653 Em 1807, Antonio de Araujo Azevedo, ministro e secretário de estado dos negócios estrangeiros e da guerra escrevia ao ministério britânico : “por esta mesma razão reservo escrever a V. As. Em outra ocasião paras V. As. Tratar nesta corte sobre o modo com que ela poderá contribuir com a segurança da Família Real, protegendo com as suas forças navais a sua retirada no caso que as circunstâncias obriguem a esta mesma resolução. Tomarei as ordens de S. A. R. a respeito deste triste, e importante negócio que interessa tanto aos nossos corações, pois que só por este modo poderá salvar huma parte da Monarquia Portuguesa, e transmiti-la aos seus Descendentes.” Observações feitas por Antonio de Araujo de Azevedo à convenção de 22 de outubro de 1807. In: FUNCHAL, Marquês de. O conde de Linhares. 2 ª edição fax-simile. Brasília: Thesaurus, 2008, 293. 2654 Id. Ibid. pp. 331-333. 2655 MAXWEL, Kenneth. Chocolates, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 185. 2656 MAXWEL, Kenneth. Op. Cit. 1999, pp. 190-191

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ISSN 2358-4912 se volte a reconquistar o que se possa ter perdido na Europa, e onde se continue uma guerra eterna contra o fero inimigo, 2657 que recusa reconhecer a neutralidade de uma potencia, que mostra desejar conservá-la, (...).

O projeto de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, muito semelhante ao de D. Luis da Cunha, acabou aceito em 1807. D. Rodrigo esperava também reformar o Estado do Brasil promovendo uma série de melhorias, que modernizariam a colônia e beneficiaram Portugal através do comércio. Mas a transferência da corte lisboeta para sua mais lucrativa colônia se deu num momento de fuga pouco antes de tropas francesas invadirem o Reino. A Coroa ciente da eminente invasão francesa contava com o apoio e proteção da marinha inglesa para a travessia. Assim visto os projetos de transferência da corte para o Brasil ao mesmo tempo em que valorizam a manutenção da dinastia dos Bragança, mencionam que a partir do Brasil se teria grande um império. A vinda da família real para o Brasil cimentava as relações e hierarquias sociais reforçando a imagem paterna do rei e os laços entre soberano e vassalo. Kirsten Schultz percebe nesse fenômeno a forma como a monarquia compreendia seu regnun, não mais limitando a identidade do vassalo ao espaço da corte, mas que a comunidade portuguesa de vassalos estendera-se juntamente com o império português, para incluir os residentes das possessões ultramarinas da Coroa. Anulava-se o único elemento que diferenciava vassalos europeus de americanos: a distância. Utilizamos a situação da transferência da Corte para elucidar uma visão de projeto de império luso-brasileiro e de como a realeza por si carregava consigo as insígnias e identidades dos múltiplos tipos de vassalos existentes no ultramar. Entretanto, como demonstrado, na historiografia essa situação de Reino Unido de Brasil e Portugal têm sido comumente abordado como premissa para a independência brasileira. Não é essa a nossa questão principal. Nossa pesquisa incide-se em outros elementos. Como teria funcionado a monarquia portuguesa nesse período? Se o império ultramarino português não se esfacelou com a sede então no Rio de janeiro, como se comunicava, comandava e mantinha as outras colônias e mesmo Portugal ainda sobre a Coroa portuguesa da dinastia dos Bragança? Ao responder a essas questões, o pesquisador-historiador, examinando os arquivos, verificará que a manutenção dos domínios de Portugal e a sobrevivência da Corte entre 1808 e 1822 permitiram a continuidade do império ultramarino lusitano que tinha domínios em África, Brasil, Índia, e extremo oriente, chegando até Macau. Para tal é preciso verificar quais medidas a Coroa adotou ao mudar de sua sede da Europa para a América portuguesa. Fugir da metrópole para manter a Coroa e o império: a singularidade luso-brasileira Oliveira Lima, seguindo as informações do jornal Correio, afirmava que o governo português teria seguido a cartilha de Lisboa, não criando nada especifico para o Brasil. No Rio de Janeiro foram criados um desembargo do paço, um conselho da fazenda, uma junta de comércio, pelo fato de já existirem em Portugal. O conselho da fazenda substituía o antigo Conselho Ultramarino e suplantava o do Reino. Mantiveram-se também as secretárias de Estado vigentes. Entretanto, não foi apenas isso, certas mudanças ocorreram. Em 1808 foi criada a casa de suplicação do Brasil, com a mesma alçada da sua congênere de Lisboa, com a mesma importância jurídica. A real junta do comércio também tinha funções jurídicas além de acumular prerrogativas administrativas. Para questões de entendimento do funcionamento do império, além do conselho da fazenda foi criado em 1808 a secretária de estados dos negócios da marinha e domínios ultramarinos que tinha entre suas competências: “(…) As nomeações do vice-reis, governadores e capitães generais dos estados da Índia, da América, e da África ocidental, e oriental, ilhas da madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé; em suma de todas as colônias, conquistas, presídios, e domínios pertencentes à minha real coroa do continente deste reino e Algarves.” Segundo Dilma Cabral, em 1811, foram estabelecidas Juntas de Justiça em todos os domínios ultramarinos com a mesma jurisdição das mesas do desembargo do paço. Essas tinham atribuições como eleição dos vereadores, conceder reformas de cartas de seguro, emitir alvarás de fianças, provisões e perdões. Essa medida estava além das fronteiras americanas configura uma tentativa da Coroa de estabelecer homogeneidade administrativa em seu vasto território. Em 1808 também foi 2657

LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 110

843 ISSN 2358-4912 criado, como em Lisboa, o cargo de intendente geral de policia. É a partir dessa estrutura rapidamente enunciada que lançamos a perspectiva de pensar a situação do império português e seu funcionamento a partir do Brasil e de como uma colônia tornou-se sede de um império como nunca antes na história das monarquias modernas. É a partir das premissas acima que lançamos em nossos estudos a tese de que um império hibrido colonial se formou. Portugal manteve seus domínios, a dinastia dos Bragança permaneceu no poder aqui e na Europa. Segundo Kenneth Maxwell, para muitos, à época, a corte portuguesa no Novo Mundo parecia uma aberração, uma anomalia. Entretanto o historiador enfatiza que para a história dos dois países, teria sido um marco e que o Rio de janeiro transformou-se então na verdadeira sede de um governo que ainda conservava um império mundial.2658 Passado o breve período de ocupação dos exércitos franceses, a metrópole voltou a manter relações políticas e comerciais com seus domínios e especialmente o Brasil. Em termos comparativos, de todas as monarquias europeias com domínios além-mar, apenas a portuguesa viveu a experiência de ter a sede numa ex-colônia. Mendo Castro Henriques lembra que ao longo da história mundial alguns personagens foram mal incompreendidos e acusados de ambiguidades ao terem transferido as capitais de seus impérios e reinos, tendo ao fim do processo e passados anos, triunfados (Amenofis IV, Constantino O Grande, Frederico II e Henrique IV de França). Entretanto, governavam um mesmo território e não mudaram de continente. Na análise de Castro Henriques, de 1792 a 1826, em todas as fazes de seu governo, D. João VI teria sido sempre o eixo no qual girava a história de Portugal.2659 Houve algumas questões sobre domínio e influência de outras Coroas em territórios governados por Portugal. Os domínios portugueses na Ásia – Goa, Diu e Macau – foram ocupados por tropas enviadas pela Companhia das Índias Orientais, entretanto o embaixador português comunicara ao seu irmão, D. Rodrigo, a garantia de restituição dos ditos territórios que os ingleses fizeram. Houve outras situações como na Ilha da Madeira em que tropas inglesas, que tinham acordo de proteção e de comércio com Portugal, invadiram a região e prontamente tiveram reação através da ação dos embaixadores lusitanos e de D. Rodrigo de Souza Coutinho que em carta ao príncipe regente D. João VI asseverava a autoridade da Coroa na Ilha.2660 Mas não nos esquecemos da nossa especificidade Portugal-Brasil: nem antes e nem depois tal situação foi vivenciada no ocidente. A historiadora Maria de Fátima Silva Gouvêa, em texto sobre o Rio de janeiro em 1808 enfatiza a singularidade a que chamo atenção: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O processo de transmigração da corte joanina para a cidade do rio de janeiro se constitui em um evento absolutamente singular na história da época moderna. Tal singularidade se reveste de enorme relevância à luz dos estudos mais recentes sobre as dinâmicas históricas que entrelaçaram os processos de formação das monarquias europeias e de seus impérios ultramarinos 2661 no período.

O que ressalta tal peculiaridade da história do Brasil, além do singular processo de independência, é que em termos de estudos comparativos Portugal, enquanto Reino Unido, teria sido uma situação hibrida e única. Há de se considerar que dado o numero de potencias colonizadoras e a multiplicidade das sociedades que se estabeleceram nas Américas, é provável que uma comparação que abarca-se todo o Novo Mundo, acabe - como bem menciona John Elliott - superando os esforços de qualquer historiador que o almeje fazê-lo. Assim, a comparação se faz de inicio será restrita aos impérios coloniais de Inglaterra e Espanha. O modo dessa comparação será em leitura e debate com a historiografia que aborda a cultura política e características administrativas de Espanha e Inglaterra – comparando com Portugal – em fins do século XVIII e inicio do século XIX. Por fim, esclareço que a leitura de império hibrido colonial apresentada não se trata do híbrido colonial que Homi K. Bhabha 2658

BETHENCOURT, Francisco. CHAUDHURI, Kirt.(dir.). História da expansão portuguesa: o Brasil na balança do império. 1697-1808. Vol 3. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998, p. 418 2659 HENRIQUES, Mendo Castro. D. João VI, monarca de uma transição política. In: CARDOSO, José Luis. MONTEIRO, Nuno G. SERRÃO, V. Joel. (orgs.). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: ICS, 2010, pp. 142143. 2660 FUNCHAL, Marquês de. O conde de Linhares. 2 ª edição fax-simile. Brasília: Thesaurus, 2008, p. 325 2661 GOUVEA, Maria de Fátima S. 1808: Rio de janeiro, única capital imperial das Américas. In:CARDOSO, José Luis. MONTEIRO, Nuno G. SERRÃO, V. Joel. (orgs.). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: ICS, 2010, p. 323

844 ISSN 2358-4912 interpreta ao pensar os contatos culturais no colonialismo inglês do século XIX. Apropriamo-nos da noção de hibrido expandindo-a para uma análise da história política, sem menosprezar o universo cultural, percebendo como algumas características dos hibridismos na história podem ser ampliadas em perspectivas, conservadas ou mesmo invertidas, sem contudo negá-las.

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Referências BICALHO, Maria Fernanda B. Da colônia ao império:um percurso historiográfico. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia Ferreira. BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009. ELLIOTT, John H. Impérios del mundo atlántico: España y Gran Bretaña en América (1492-1830) Madrid: Taurus, 2006. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005. CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas, Lisboa: CNCDP, 2001. PEDREIRA, Jorge. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Cia das letras, 2008. LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4ª edição. Pref. Wilson Martins. Rio de janeiro: Topbooks, 2006 LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado monárquico, França, 1460-1610. – São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FUNCHAL, Marquês de. O conde de Linhares. 2 ª edição fax-simile. Brasília: Thesaurus, 2008 PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre Capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII. In: Penélope. Fazer e desfazer a História. nº 6, 1991 MAXWEL, Kenneth. Chocolates, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e Terra, 1999 LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994 BETHENCOURT, Francisco. CHAUDHURI, Kirt.(dir.). História da expansão portuguesa: o Brasil na balança do império. 1697-1808. Vol 3. Lisboa: Circulo de Leitores, 1998 HENRIQUES, Mendo Castro. D. João VI, monarca de uma transição política. In:CARDOSO, José Luis. MONTEIRO, Nuno G. SERRÃO, V. Joel. (orgs.). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: ICS, 2010. GOUVEA, Maria de Fátima S. 1808: Rio de janeiro, única capital imperial das Américas. In: CARDOSO, José Luis. MONTEIRO, Nuno G. SERRÃO, V. Joel. (orgs.). Portugal, Brasil e a Europa napoleônica. Lisboa: ICS, 2010. MONTEIRO, Nuno G. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José. (Dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Circulo de Leitores, 1994.

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RECONHECIMENTO E HERESIA: A ANTINOMIA FEMININA NAS PRÁTICAS

MÁGICO-RELIGIOSAS A PARTIR DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO À AMÉRICA PORTUGUESA (1591-1595) Marcus Vinicius Reis2662 Este trabalho versará sobre o olhar da Inquisição portuguesa para com a mulher, ou, em outras palavras, de como as representações a seu respeito se construíram entre a própria figura feminina e a figura masculina no contexto de atuação do Santo Ofício português, tendo por base a perseguição às práticas mágico-religiosas2663 entendidas a partir do delito da feitiçaria. Em especial, nosso objetivo se direcionará para a Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa, reunindo denúncias, confissões e processos relacionados à suposta existência de feiticeiras na Bahia e em Pernambuco. Enfim, trata-se, a nosso ver, de importante recorte apto a nos fornecer as bases para a reconstrução de um contexto estreitamente ligado à presença da mulher voltada para a intervenção no sobrenatural e as diversas consequências decorrentes dessa intimidade no espaço em questão. *** Oficializada em 28 de julho de 1591, a Visitação encabeçada por Heitor Furtado de Mendonça fora prevista para percorrer a Capitania da Bahia – primeira região que foi visitada – bem como Pernambuco, São Vicente, Rio de Janeiro e as ilhas de Cabo Verde e São Tomé. Sua atuação, contudo, não foi para além de Olinda, sendo obrigado a retornar ao Reino em 1595 por conta das suas atuações por diversas vezes distantes das diretrizes definidas pelo Conselho Geral do Santo Ofício, em Lisboa. Exemplo que pode ser identificado no interesse do Visitador em promover até mesmo processos na América sem o consentimento de seus superiores2664. A respeito das suas atribuições, estas se direcionaram para o interesse em investigar os crimes de blasfêmia, bigamia, sodomia, bestialismo, luteranismo, islamismo, desvios do próprio corpo clerical e práticas judaizantes. Vale menção, também, o seu olhar para as pessoas que faziam “certas invocações dos diabos, andando como bruxas de noite em companhia dos demônios, como os maléficos, os feiticeiros, maléficas, feiticeiras, costumam fazer”2665. Sua prática estava, portanto, integrada em uma visão que se consolidava na Inquisição portuguesa a respeito dos principais delitos que ameaçavam a unidade católica e a vivência dos fieis na retidão pretendida pela Igreja. O entendimento a respeito dos rituais delimitados na noção de feitiçaria seguia, por sua vez, esse mesmo tradicionalismo, como já é possível identificar no trecho acima, retirado do Monitório do Inquisidor Geral, de 1536. Conforme destacou José Pedro Paiva, a interpretação letrada portuguesa a respeito desse fenômeno se delimitou em dois movimentos principais: entendia-se a existência do “pacto expresso”, em que era definido um contrato entre Diabo e indivíduo a fim de obter poderes e, em troca, algo era ofertado à criatura; e havia, também, o “pacto tácito”, quando prevalecia o interesse do indivíduo em alcançar determinados fins, como, por exemplo, a cura de 2662

Doutorando em História Social da Cultura pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, sob orientação da Profa. Dra. Júnia Ferreira Furtado. Trabalho resultante da Dissertação de Mestrado intitulada Descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa (1591-1595), sob orientação da Profa. Dra. Daniela Buono Calainho, financiado pela CAPES. 2663 As referências principais que nos utilizamos para a definição desse termo são as obras de Francisco Bethencourt, Marcel Mauss e Maria Benedita Araújo. Cf: BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004; MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 1950; ARAÚJO, Maria Benedita. Magia, demônio e força mágica na tradição portuguesa: século XVII e XVIII. Lisboa: Edições Cosmos, 1994. 2664 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 282-283. 2665 Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações e Confissões da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3. v. p. 43.

846 ISSN 2358-4912 doenças, tendo a intermediação dos diabos para a concretização do objetivo2666. No nível da religiosidade na América portuguesa, seja em seu caráter “expresso” como, também, no seu caráter mais grave aos olhos das autoridades, ou seja, o “pacto tácito”, a presença do Diabo também foi marcante. Os Gráficos2667 abaixo servem, inicialmente como corroboração dessa assertiva: V Encontro Internacional nal de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao a XIX)

Gráfico 1: Porcentagem das práticas mágico-religiosas denunciadas à Primeira Visitação do Santo Ofício e praticados por mulheres.

7%

6%

52%

16%

Ritos mágicos de invocação dos diabos Ritos mágicos amorosos

19%

Ritos mágicos de adivinhação Ritos mágicos de encantamentos Ritos mágicos de invocação de espíritos

Gráfico 2: Porcentagem das práticas mágico-religiosas mágico religiosas denunciadas à Primeira Visitação do Santo Ofício e praticados por homens.

13%

Ritos mágicos de invocação dos diabos

13%

37% 12%

Ritos mágicos de adivinhação Ritos mágicos de encantamentos

25%

Ritos mágicos de cura Ritos mágicos de proteção

Como parte inicial de nossa discussão, vale apontar alguns pressupostos que nos guiaram para a confecção ção dos Gráficos anteriores. Primeiramente, uso do termo “rito mágico” em todas as expressões se baseia nas proposições de Marcel Mauss, ou seja, “fatos de tradição” que possuem um caráter de repetição, eficácia e reconhecimento existentes em dado grupo ou sociedade. Trata-se, Trata desse modo, de um termo que nos possibilita sintetizar o modo como a religiosidade via intervenção direta no sobrenatural se desenvolveu entre homens e mulheres na América portuguesa do século XVI2668.

2666

PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774. Lisboa: Editorial Notícias, 1997. p. 39-40. 2667 É importante mencionar que ambos foram retirados da minha Dissertação de Mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação Graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação ção de Professores, sob orientação da Profa. Dra. Daniela Calainho. Cf: REIS, Marcus Vinícius. Descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa (1591-1595).. 2014. 216f. Dissertação (Mestrado ( em História Social) - Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Janeiro, São Gonçalo, 2014. p. 143. 2668 A ressalva necessária a ser feita a respeito desse trabalho de sistematização das crenças mágico-religiosas em questão diz respeito à nem sempre sólida fronteira estabelecida entre um ritual de caráter amoroso e outro de invocação aos diabos. Como destaca Francisco Bethencourt, a diversidade semântica do conceito de feitiçaria pode ser encarada como um doss maiores desafios do pesquisador desse fenômeno. O caso envolvendo a portuguesa “Nóbrega” revela esse limiar nem sempre visível das práticas mágico-religiosas,, visto que tanto rituais de cunho amoroso como de caráter de invocação demoníaca emergem na denúncia denúncia de Guiomar D´Oliveira e João Ribeiro, o que nos levou a inseri-la, la, portanto, em duas classificações: “ritos “ mágicos de invocação dos diabos” e “ritos mágicos amorosos”.

847 ISSN 2358-4912 Sendo assim, os “ritos mágicos de invocação dos diabos”, dizem respeito a práticas denunciadas ao Visitador que possuíram como elemento central da intervenção mágica a participação decisiva do Diabo, via “expressa”, alcançando relativo interesse entre a população que se dispunha a recorrer a indivíduos reconhecidos por essa capacidade como, por exemplo, a trajetória de Maria Gonçalves. Denunciada por nove vezes ao longo da Visitação na Bahia, sendo, inclusive, processada, Maria Gonçalves foi majoritariamente associada à presença do Diabo, à relação que supostamente possuía com essa criatura a fim de conseguir poderes e ingredientes capazes de suprir as mais diversas demandas dos que a procuravam. Na denúncia de Isabel Antónia, a acusada foi citada por ter lhe mostrado, certa vez, um vidro com azeite que servira de comunicação com o Diabo, sendo feita em lugar aberto, desenhando-se, em seguida, um signo de Salomão2669. Quanto aos “ritos mágicos amorosos”, seu uso é justificado pela recorrência de algumas mulheres no campo amoroso, na sua intervenção por meio de práticas mágico-religiosas, tanto na busca pela manutenção do casamento ou mesmo na conquista de outrem. Por exemplo, a confissão de Paula de Siqueira mencionou a cristã-velha Maria Villela por ter lhe ensinado determinados rituais como forma de amansar seu marido, fazendo-o que lhe quisesse bem. Tal ritual consistia no uso da pedra d´ara, que deveria ser triturada pela denunciante e imediatamente servida ao seu cônjuge em qualquer bebida que ele tomasse. A respeito da categoria “ritos mágicos de adivinhação”, o próprio título justifica sua utilização. Felícia Tourinho, segunda mulher a ser processada na Visitação por práticas mágico-religiosas, foi denunciada por Domyngas Jorge por supostamente invocar os diabos “felpudo, guadelhudo e orelhudo” além dos santos Pedro e Paulo, utilizando-se um chapim e uma tesoura, visando adivinhar uma sentença que sairia para si bem como o paradeiro de um conhecido seu2670. Ressaltamos que, mesmo com a participação dos diabos mencionados no processo de Felícia Tourinho, os rituais não se integram na primeira categoria mencionada a partir do momento em que essa invocação segue uma lógica distinta do “pacto expresso”, já que, conforme afirma Francisco Bethencourt, a existência dessas potências sobrenaturais se dá mediante conjuros iniciais – com o uso da vassoura ou mesmo do chapim e da tesoura – e não como elementos principais do ritual através da relação de troca estabelecida entre indivíduos e Diabo2671. A suposta irreverência ou mesmo a possível vulgarização dos diabos, denominando-os de “felpudo”, “orelhudo” e “guedelhudo”, indica, a nosso ver, que não somente a existência de uma problemática aos olhos inquisitoriais, mas, também, ao nível da “cultura popular” se fez presente, revelando a quase infinidade de representações promovidas pela população comum durante a modernidade a respeito do então grande inimigo da Igreja. Já a reconstrução feita por Francisco Bethencourt do universo mágico quinhentista em Portugal revela, por exemplo, a recorrência da familiaridade com santos católicos, assim como no processo de Felícia Tourinho. Na mesma centúria, o culto à Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, era “objeto especial de devoção como propiciadora de bons casamentos”2672. Avançando na análise dos Gráficos, os “ritos mágicos de encantamentos” foram utilizados no intuito principal de reunir indivíduos denunciados à Visitação por supostas práticas maléficas direcionadas a outrem. Citamos, assim, a denúncia contra Joana Ribeiro, em que Francisca Rodrigues a acusou de ter assassinado seu filho a partir de encantamentos promovidos com o cordão umbilical do recémnascido. João Rodrigues Palha, português, optou por se confessar, relatando um episódio em que teria praticado encantamentos maléficos para com o gado de seu vizinho, ainda no período em que residia no Reino2673. Quanto aos “ritos mágicos de invocação de espíritos”, embora pouco expressivos, também circularam entre a sociedade colonial, revelando indivíduos conhecidos pela capacidade de praticarem prodígios V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2669

DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 01268. Processo de Felícia Tourinho. 1593-1595. fl.18. 2670 DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 01268. Processo de Felícia Tourinho. 1593-1595. fl.06. 2671 BETHENCOURT, Francisco. Op.cit. p. 59. 2672 BETHENCOURT, Francisco. Op.cit. p. 145. 2673 Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Confissões da Bahia 1591-1593. São Paulo: Paulo Prado, 19221929, 3 vols. p. 158-159.

848 ISSN 2358-4912 por meio da comunicação espiritual. Na denúncia de Catarina Rodrigues, Anna Fernandes é apontada por ter feito um rito em que a acusada “fazia vir uma pessoa donde quer que estava se era viva ao terceiro dia e se era morta que lhe aparecia um vulto”2674. Por fim, embora também se refira a episódios esparsos, os “ritos mágicos de cura” também integraram os Gráficos anteriores por terem sido relacionados a dois escravos ainda na Visitação na Bahia2675. Esta breve análise a respeito dessas categorias merece ser debatida, por sua vez, juntamente com três Tabelas2676, citadas a seguir, que dizem respeito à participação masculina e feminina – tanto de modo ativo quanto indireto – no campo do sobrenatural via práticas mágico-religiosas: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 1: Número de denunciantes e denunciados na Primeira Visitação à Capitania da Bahia por rituais mágico-religiosos:

Mulheres Homens Total

Denunciantes 19 10 29

Denunciados (as) 25 06 31

Tabela 2: Número de denunciantes e denunciados na Primeira Visitação à Capitania de Pernambuco por rituais mágico-religiosos:

Mulheres Homens Total

Denunciantes

Denunciados (as)

05 03 08

05 02 07

Nota-se, portanto, o peso considerável da participação da mulher tanto no interesse por quem era reconhecidamente capaz de intervir no sobrenatural a partir de determinados rituais, na participação ativa quanto à intervenção nesse domínio e, por fim, na necessidade de denunciar à Visitação quaisquer informações referentes àqueles, em especial, àquelas que se enquadravam na noção de feitiçaria delimitada pelo Monitório. A problemática avança quando nos debruçamos nos únicos processos referentes ao recorte em que nos situamos no qual esse delito foi causa principal: como já destacado, Maria Gonçalves e Felícia Tourinho. O processo de Maria Gonçalves merece relevo não somente por ter sido motivado pelo delito da feitiçaria. Chamou-nos mais a atenção o fato de sua trajetória revelar como a diversificação dos seus rituais esteve diretamente relacionada à amplitude de seu reconhecimento na sociedade em que se inserira. Por exemplo, Teresa Rodrigues, cigana, ao se apresentar às autoridades da Visitação em 2674

Ibidem. p. 307. O primeiro escravo, sem menção ao seu nome, foi denunciado por António Botelho. Cf: Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-1593. Op.cit. p. 536. O segundo, também sem nome, foi denunciado por Agostinho de Seixas, em Olinda. Cf: Ibidem. p. 20. 2676 As três Tabelas foram retiradas da minha Dissertação de Mestrado, defendida no Programa de PósGraduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores, sob orientação da Profa. Dra. Daniela Calainho. Cf: REIS, Marcus Vinícius. Descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa (15911595). 2014. 216f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2014. p. 118. 2675

849 ISSN 2358-4912 agosto de 1591, confessou que por volta de dois anos uma mulher conhecida por “arde-lhe-o-rabo” – alcunha pela qual Maria Gonçalves era conhecida na região – se comunicava diretamente com o Diabo, chegando a oferecê-la “uma mezinha tal que quem tocasse com ela a outra pessoa logo lhe fazia fazer quanto queria”2677. Vale destacar a longa tradição existente nesse rito, incluindo Portugal, no qual o interesse em condicionar as vontades de outrem esteve relacionado diretamente ao papel decisivo dos mágicos2678. Já na denúncia de Catherina Fernandes, é destacado que a acusada tinha perdido uns papéis contendo pós que a própria teria torrado. Ao todo seriam nove desses papeis que teriam sido distribuídos para Salvador da Maia, cristão-novo, além de um homem conhecido por “Granada”, Gonçalo Fernandes, Pero Godinho, Cristóvão de Barros, um Ouvidor Geral e o então bispo Dom. Antônio Barreiros2679. Enfim, uma clientela respeitável e que, a nosso ver, compartilhou e, por que não, contribuiu para a crença coletiva a respeito da eficácia dos rituais de Maria Gonçalves. Trata-se de lembrar, portanto, que a imagem da feiticeira, segundo salientou Marcel Mauss, é produzida, consolidada, fora do indivíduo, tornando-se resultado principalmente das crenças direcionadas da sociedade a ele, reconhecendo-o, assim, como mediador direto para com o sobrenatural2680. Presa, antes da chegada da Visitação à América, na cadeia pública de Olinda por ter desferido uma bofetada em Inês de Brito dentro de uma Igreja, a cristã-velha Felícia Tourinho foi denunciada por Domyngas Jorge por ter invocado santos católicos e os diabos em algumas práticas de adivinhação. Como já citado, o interesse nessas práticas residiu tanto em descobrir se sua sentença referente à bofetada lhe sairia ruim como em esclarecer o paradeiro de um homem chamado João. A menção de ambos os processos juntamente com os dados anteriormente levantados se justifica, assim, por nos fornecerem indícios capazes de constatar que a intrínseca relação entre a presença da mulher e o campo do sobrenatural integra um movimento maior em que a figura feminina não se resumiu em ser apenas elemento passivo na delimitação do contexto misógino da época e também presente na América portuguesa. Resta-nos questionar o que sustentou, portanto, essa proximidade entre o universo mágico-religioso presente nesse espaço e o interesse feminino em contar com esse âmbito tanto de modo indireto como direto. Além disso, o que levou os indivíduos, principalmente mulheres, a associar a existência desse universo à predisposição das próprias mulheres em manipulálo? A justificativa para a notável recorrência indireta de mulheres – vinte e quatro ao todo – em questões do sobrenatural no recorte em questão é também identificada em outro importante dado por nós levantado, referente à condição civil das mesmas no período da Visitação: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 3: Estado civil das mulheres denunciantes do delito de feitiçaria na Primeira Visitação do Santo Ofício na América portuguesa (1591-1595). Estado civil das denunciantes Casadas Solteiras Viúvas Total

19 2 3 24

Com sua obra endereçada ao “longo processo de domesticação da mulher” que se construiu ao longo período colonial, Mary del Priore apresentou todo um quadro moralista português que também desembarcou no Novo Mundo: havia um discurso que buscava regular o comportamento feminino também nesse espaço – vale mencionar, por exemplo, as preocupações com a honra da mulher 2677

DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593. fl. 09. 2678 PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas: o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra: Minerva-história, 1992. p. 134-137. 2679 DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593. fl. 06-07. 2680 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 1950. p. 70.

850 ISSN 2358-4912 presentes na obra de Frei Heitor Pinto, Imagem da vida cristã2681; e, em segundo lugar, prevaleceu, também na América, todo um discurso normativo embasado pela medicina do período, arraigado de um tom religioso, que consolidava a opinião de que à mulher cabia apenas o caráter de procriadora2682. Diante dos dados mencionados acima, em que é considerável a presença de mulheres casadas entre os indivíduos interessados em contar com alguém capaz de se interpor entre os domínios natural e sobrenatural, é necessário problematizar até que ponto esse código misógino obteve sucesso para com a submissão feminina. Afirmamos, assim, que a dominação masculina vigente nesse período não deve ser encarada como mero sinônimo de um “patriarcado universal”. Conforme ressaltou Judith Butler, mesmo que consideremos a existência de períodos nos quais essa dominação foi notável, não significa, por sua vez, sustentar que esse domínio foi singular ou homogêneo, tampouco que as atitudes das mulheres se resumiram no simples caráter de passividade2683. Essa noção de universalismo referente à dominação masculina é tão questionável a partir do momento em que as próprias mulheres, por diversos momentos, recorriam às chamadas feiticeiras, a fim de que práticas amorosas fossem promovidas, seja na conquista ou mesmo na manutenção de seus casamentos. Antónia Fernandes, conhecida por “Nóbrega”, teria ensinado a Guiomar D´Oliveira que o uso de pós torrados de pessoas já mortas ou até mesmo o sêmen de seu marido servidos na bebida que o próprio tomasse, faria com que ele a tratasse bem, evitando novas crises em seu casamento2684. A interação entre os “mágicos” na Coimbra seiscentista foi identificada por José Pedro Paiva tanto no mercado nupcial, por conta da intermediação entre os interessados no matrimônio e os ritos mágicos de caráter amoroso, como também ao nível da vida conjugal, já que por vezes prevaleciam as relações conturbadas2685. Em outras palavras, antes de pensar num possível sucesso do discurso moralista português, por que não levar em consideração que essas mulheres sabiam que o casamento era sinônimo de estabilidade social e, por isso, recorriam ao sobrenatural como forma de garantir essa condição? Retomando as duas primeiras Tabelas, dos trinta e oito indivíduos acusados por rituais mágicoreligiosos – a partir das categorias destacadas nos dois Gráficos aqui apresentados –, trinta mulheres foram o alvo principal das denúncias durante a Primeira Visitação. Essas, por sinal, foram promovidas por vinte e quatro mulheres, praticamente o dobro de homens denunciantes. Trata-se, portanto, da consolidação, ou seja, do sucesso alcançado pelas autoridades inquisitoriais nas suas ações e definidas por Bartolomé Benassar como “pedagogia do medo”2686? Qual o peso da misoginia nas atitudes das mulheres, e não das autoridades, que, antes interessadas na figura feminina como mediadora para com o sobrenatural, se dispuseram a denunciar ao Visitador as mesmas mulheres a quem recorreram? O processo de Maria Gonçalves é novamente essencial para destrincharmos essas duas questões. A expressão “mulher feiticeira e ruim” pode ser considerada como síntese das denúncias contra a ré, sendo acompanhada, em alguns relatos, pelo adjetivo “vagabunda”, após a afirmação de que era feiticeira. Tanto desavenças pessoais e até mesmo a impossibilidade de conferir um sentido ao desconhecido que estivesse deslocado de uma explicação sobrenatural compuseram, por exemplo, a denúncia de Isabel Sardinha. A forma mais coerente por ela encontrada a fim de justificar os motivos que fizeram um mestre da galé agasalhar Maria Gonçalves, deixando a denunciante ao relento, se V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2681

PINTO, Frei Heitor. Imagem da vida cristã (1563-1572). 2. ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1958. p. 38. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 23-24. 2683 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 20-21. 2684 Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Confissões da Bahia 1591-1593 Op.cit. p. 78. 2685 PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990. p. 180-182. 2686 Nas palavras do autor, a “pedagogia do medo” pode ser entendida como “la sutil difusión del miedo entre las capas del cuerpo social” por parte dos agentes da Inquisição na modernidade. Cf: BENNASSAR, Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su “pedagogia del miedo”. In: ALCALÁ, Ángel (et al). Inquisición Espanola y mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984. p. 175. 2682

851 ISSN 2358-4912 resumiu à expressão “feiticeira e ruim”2687. Nas palavras de Margarida Carneira, a acusada era “mulher vagabunda” e que dormia com o Diabo, revelando como as desavenças pessoais poderiam se converter em atitudes pertencentes ao código misógino da época para com as mulheres2688. A relação da mulher com o Diabo, e não mais com o sobrenatural de modo benéfico, sofria, assim, uma mutação na medida em que a própria sociedade passou a compartilhar da noção de feitiçaria delimitada pelas autoridades. Conforme destacou Stuart Clark, são nesses laços culturais, nesse processo de mutação em que não apenas a “cultura erudita” é integrante, referentes a esse crime e aos comportamentos femininos, que o pesquisador deve se situar. Deve-se questionar, ou mesmo perceber, o que significava, para dada sociedade, relacionar alguma mulher ao delito da feitiçaria e quais as principais condições que contribuíam para que determinados indivíduos se tornassem mais propensos a esse tipo de delação. Para nossa pesquisa, o que se tornou possível identificar foram perfis de mulheres que participaram ativamente das relações com o sobrenatural, alcançando até mesmo importante reconhecimento social, como no caso de Maria Gonçalves, mas que tiveram suas trajetórias relacionadas ao Santo Ofício muito por conta de mulheres interessadas na construção de “bodes expiatórios” até como forma de se resguardarem de eventuais acusações. Há, portanto, uma relativa participação feminina frente ao contexto misógino desse período, seja na tentativa de buscar autonomia, mesmo que limitada, frente ao discurso moralista a partir do uso das práticas mágico-religiosas, ou mesmo na ressignificação desse contexto. Contribuíram, assim, não somente para o entendimento de que as mulheres eram mais predispostas ao sobrenatural, mas, inclusive, na delimitação dessas práticas na noção de heresia ou, melhor dizendo, no entendimento de que a outra era uma legítima feiticeira, até como forma de se resguardar dessas acusações. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ARAÚJO, Maria Benedita. Magia, demônio e força mágica na tradição portuguesa: século XVII e XVIII. Lisboa: Edições Cosmos, 1994. BENNASSAR, Bartolomé. Modelos de la mentalidade inquisitorial: métodos de su “pedagogia del miedo”. In: ALCALÁ, Ángel (et al). Inquisición Espanola y mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984. BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 1950. PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990. PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas: o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740). Coimbra: Minerva-história, 1992. PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774. Lisboa: Editorial Notícias, 1997. PINTO, Frei Heitor. Imagem da vida cristã (1563-1572). 2. ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1958. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009. REIS, Marcus Vinícius. Descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa (1591-1595). 2014. 216f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2014. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 282-283. 2687

DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593. fl. 05-07. 2688 DGA/TT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo no 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593. fl. 11.

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ESTRATÉGIAS DE TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO NA FREGUESIA DE JACAREPAGUÁ (SÉCULO XVIII) Mareana Barbosa Gonçalves Mathias da Silva2689 Introdução A pesquisa por nós delineada tem por objeto as estratégias de transmissão patrimonial no Rio de Janeiro em fins do século XVIII, contemplando, entretanto, dados de todo o século. Especificamente, nos ocuparemos da freguesia de Jacarepaguá, fundada no século XVI. Região caracterizada como eminentemente rural, comportava, principalmente, engenhos de açúcar escravistas pouco numerosos, correspondentes, no início do século, a uma ínfima parte do total de moendas existentes no Rio de Janeiro. Sua importância periférica, no entanto, não oferece obstáculos à nossa análise: nos convida a ler a modulação local2690 da transmissão patrimonial operada no Antigo Regime português. Por transmissão patrimonial entendemos o conjunto de bens simbólicos e materiais que passavam de uma geração à outra, cuja lógica se pautava pelos hábitos que presidiam a herança, em plano relativamente rígido, no qual se inscreviam as estratégias individuais. Para a efetividade de uma pesquisa que se dedique a este tema, é necessária a conjugação entre práticas sucessórias, estruturas familiares, economia doméstica, estratégias matrimoniais, reportando-se a um conjunto de práticas, instituições e modos de pensamento2691. Por estratégia, usamos a definição de Giovanni Levi, em que o indivíduo, provido de racionalidade, a emprega na “obra de transformação e utilização do mundo social e natural.”2692 Essas estratégias não são, neste sentido, livres. Estão, antes de tudo, ligadas a valores, são estratégias complexas realizadas em busca de adaptação a um mundo que está em constante movimento. Portanto, não são ditadas por uma lei de reprodução simples. Como Edoardo Grendi salientou, a sociedade é um universo relacional, em que cada informação observada, exprime uma relação que permite a reconstrução desse universo2693, ainda que de forma fragmentária. Como continuidadede uma pesquisa anterior2694 que privilegiou o estudo de Campo Grande e a transformação de suas elites senhoriais no século XVIII, pretendemos aprofundar o estudo do sistema de parentesco e de transmissão de patrimônio. Estes legados patrimoniais, materiais ou não, visavamà perpetuação ou a melhora do status político e material destas famílias. No entanto, nosso estudo não se restringe às elites, mas inclui todos os agentes que mantinham relações com aqueles,com os escravos ou entre si, sejam eles recém-advindos da escravidão, como os pardos, ou estrangeiros, vindo, em sua maior parte, do norte de Portugal.2695Entre um caso e outro, do partidista de cor ao morgado, julgamos ser possível nos aproximar dos meandros das estratégias testamentárias e matrimoniais das famílias do Império Português, em busca de manutenção ou ascensão social. O presente artigo apresenta apontamentos preliminares de uma pesquisa em andamento. Os dados aqui apresentados, portanto, não são definitivos, mas, antes, devem ser retificados ao longo do estudo. Para observação deste universo relacional, as propostas anunciadas pelo artigo de Edoardo Grendi, “Microanálise e História Social”, são indispensáveis. Segundo este autor, a reconstrução das famílias permite a identificação dos núcleos base da sociedade. Esta assertiva se torna especialmente 2689

Email: [email protected] REVEL, Jacques. História ao rés do chão. In: LEVI, Giovani. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 25 2691 PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: redes de parentela, transmissão de terras e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande (Rio de Janeiro, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011. p. 96 2692 LEVI, Giovanni. Op. Cit. p. 45. 2693 GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: ALMEIDA, Carla e OLIVEIRA, Mônica. (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 23. 2694 CRUZ, Jerônimo A. D.; BARBOSA, Mareana G. M.; Nobreza principal da terra: reprodução social em tempos de mudanças. Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. Texto inédito. 2695 SCOTT, Anna Silva Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste português. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012. pp. 55-58. 2690

853 ISSN 2358-4912 pertinente no que se refere à esta sociedade de Antigo Regime, na qual, como já assinalamos, a família é a célula mais elementar da organização social. Como se trata de uma sociedade corporativa do Antigo Regime católico, temos uma sensível quantidade de fontes paroquiais, de 1700 a 1800, acessíveis pelo Family Search. Além disso, utilizaremos um Mapa da População da região de 17972696, que nos fornece uma verdadeira fotografia da região ao fim do século. Será este documento nosso ponto de partida. A preocupação com a inserção na comunidade cristã, através do batismo, e a salvação da alma, que incluía a fragmentação da riqueza em missas em verbas testamentárias, nos fornece um conjunto de documentação seriáveis. Documentação esta que será observada através do método onomástico proposto por Carlo Ginzburg2697, tendo sempre em vista as diversas redes de relação social experimentadas pelos agentes. Para isto, utilizaremos um banco de dados que viabilizará a observação das representações dessas práticas sociais. Entretanto, adotar como método a procura do nome próprio dos indivíduos torna-se problemática nas sociedades ibéricas. A grande quantidade de homônimos e a adoção dos nomes de seus senhores pelos ex-escravos certamente dificultam a construção de genealogias. Uma combinação de dados sem uma preocupação de padronização dos nomes e cruzamento entre fontes induziria ao erro, levando a informações falsas. Sabemos, entretanto, que, ao historiador, está sempre no horizonte a verdade. Neste sentido, é primordial o cruzamento exaustivo da documentação, visando sempre a comparação onomástica desses indivíduos.

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Transmissão de patrimônio no Antigo Regime ibérico: uma pequena discussão bibliográfica Para a estruturação da família portuguesa, Burguiére nos apresenta algumas pistas. Em trabalho síntese sobre a família europeia, e, portanto, estratégias de reprodução social através do matrimônio e da transmissão de patrimônio, este autor nos apresenta, através de ampla revisão bibliográfica, tipologias presentes para a família ocidental. Impossível não concluir pela diversidade de formas familiares , suas funções e atitudes frente às relações parentais. Dessas “mil e uma famílias da Europa”, sua caracterização acerca de Portugal aponta para a existência de dois modelos principais, o modelo do Sul (região do Alentejo) e o modelo do Norte (região do Minho). Para o primeiro, teríamos idades baixas quando do matrimônio, famílias nucleares e residência neolocal dos nubentes, enquanto que para o segundo, encontramos a família troncal e idades elevadas para os casamentos. Em estudo sobre São Tiago de Ronfe, freguesia minhota do século XVIII, Ana Scott demonstra que os sistemas familiares troncais estão intimamente relacionados com os mecanismos de herança que privilegiam um dos herdeiros. Para ela, os casamentos tardios podem ser explicados pela frequente imigração de homens que ocorre, havendo um descompasso entre homens e mulheres disponíveis para o matrimônio. Nesta área, onde o solo é intensamente ocupado e caracterizada pela pequena dimensão, os costumes de herança preveniam uma excessiva fragmentação da terra que levaria à sua inviabilização econômica e ao consequente desmantelamento do grupo familiar a ele atrelado.2698 Manoela Pedroza parece ter encontrado estratégias parecidas para as famílias senhoriais de Campo Grande. Ao menos de fins do século XVIII até meados do XIX, a historiadora aponta para a escolha de um herdeiro preferencial. Ao mesmo tempo, a lógica matrimonial obedeceria ao equilíbrio a longo prazo, ou seja “numa ponte entre famílias senhoriais circulariam mulheres por várias gerações.” Ademais, a reprodução endógena desses senhores se valeu de uma produção de “bons partidos”, bons chefes e bons padres para que a lógica da hierarquia social continuasse a funcionar a seu favor.2699Para Campos dos Goytacazes no século XVIII, também região agrária, embora muito mais produtiva que Campo Grande, Sheila de Castro Faria apresenta conclusões semelhantes. A partilha dos bens de

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Mapas descritivos da população das freguesias de Campo Grande, Jacarepaguá, Guaratiba, Marapicu, Jacotinga, Aguassu e Taguaí do distrito de Guaratiba, capitania do Rio de Janeiro, feitos por ordem do vice-rei do Estado do Brasil, Conde de Resende [D. José Luís de Castro]. AHU-Rio de Janeiro, cx. 165, doc. 62. 2697 Cf. GINZBURG, Carlo. “O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico”. In: GINZBURG, C., PONI, C. (orgs.). A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Editora DIFEL, 1989 e GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 2698 Idem. Ibidem. pp. 619-626. 2699 PEDROZA, Idem. Ibidem. pp. 126-127.

854 ISSN 2358-4912 forma igualitária era normalmente desrespeitada a partir de mecanismos que mantivessem íntegro o patrimônio familiar.2700

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A legislação reguladora da transmissão patrimonial A transmissão de riquezas, em Portugal, era regulada pelas Ordenações Filipinas (1603) e, na colônia, pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Em linhas gerais, as leis garantiam a liberdade na deliberação dos bens aos homens e mulheres maiores de 14 e 12 anos, respectivamente. Entretanto, em caso de herdeiros necessários/forçados (ascendentes ou descendentes), o testador (aquele que testa suas últimas vontades em forma de testamento), somente poderia dispor da terça parte dos seus bens. Em caso de matrimônio, cujo contrato mais comum era o da meação, ao testador apenas cabia a metade dos bens do casal e a outra metade seria dividida em três partes, dois terços para herdeiros e um terço à sua vontade. Outro elemento estruturante do sistema de transmissão de bens, e mais especificamente, do matrimônio, era o dote. Criado para sanar problemas relativos a perda de patrimônio pelo casamento de filhas, o dote adquiria duas formas: como adiantamento da legítima paterna ou como exclusão da partilha.2701 Se fosse da vontade do testador, respeitando-se sempre a terça, este poderia dispor dos bens e vinculá-los em forma de capela ou de morgado, sendo a partir de então, inalienáveis. Ao nosso estudo, interessam as especificidades do segundo vínculo. De acordo com Manuel Álvares Pegas2702, jurista do século XVII, os morgados “eram a concessão perpétua e benévola, pura ou condicionada, feita por um instituidor, por ato inter vivo ou mortis causa, ao primogênito, a fim de que os bens se conservassem inalienáveis na posse da mesma família e se transmitissem por sucessão”. Regulado pela Lei Mental (1434), a instituição do morgado tinha como objetivo a manutenção dos bens e do poder da família e, como principal razão, a conservação e o engrandecimento da nobreza para melhor servir ao seu soberano. Portanto, muito embora não houvesse restrições à sua instituição no que se refere à qualidade social do instituidor2703, a posse de um vínculo quase sempre é um indicador de nobreza, sendo bens que se transmitem por sucessão e não por herança.2704 Embora não tenha alcançado os números das ilhas atlânticas, os morgados no Brasil foram mais numerosos do que a literatura convém mencionar2705. Nossa escolha pela freguesia de Jacarepaguá, tem como uma das motivações a existência, em seus territórios, de bens vinculados ao morgado dos Asseca, instituído em 1667 pelos pais de Martim de Sá e Benevides à sua assunção. Entretanto, segundo Abreu, em importante estudo acerca da estrutura fundiária fluminense nos séculos XVI e XVII, o engenho de Nossa Senhora da Cabeça, ao longo do “Setecentos, seria apenas sombra do que havia sido anteriormente.”2706 Portanto, nossa preocupação é menos a capacidade produtiva do engenho e mais as lógicas de reprodução social desta tão importante família quinhentista. Integrante da nobreza da terra, além da reconhecida nobreza pela monarquia, denominada nobreza titulada ou de sangue, também possuía o mando político local que era concedido aos conquistadores. Fazia parte deste jogo, então, conferir títulos e terras a homens que prestassem serviço ao monarca e lutassem pela defesa do Império católico, através da economia das mercês2707. Nem toda nobreza da terra, porém, possuía o título de nobreza, tendo a ascensão à governança da terra, uma eficácia, 2700

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. pp. 256-273 2701 PEDROZA, Idem. Ibidem. p. 101. 2702 Apud: CALDEIRA, João Luis Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Editora Tribuna, 2007. p. 27. 2703 Até as leis pombalinas de 1769, que, quando de sua política regalista, restringiram a instituição de bens vinculados. 2704 MONTEIRO, Nuno G. O crepúsculo dos grandes: A casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (17501832). Lisboa: Imprensa Nacional, 1995. pp; 58-59 2705 Cf. MOTTA, Marcia. Justice and violence in the Lands of the Assecas (Rio de Janeiro, 1729-1745). In: Historia Agraria, 58, Diciembre 2012. pp. 13-37. 2706 ABREU, Maurício de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700) vol. I e II. Rio de Janeiro: Editora Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda. & Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010. pp. 116-117. 2707 FRAGOSO, João. Introdução. In: In: FRAGOSO, J. SAMPAIO, A. Monarquia Pluricontinental e a Governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2012. pp. 7-16.

855 ISSN 2358-4912 sobretudo, local e não reconhecida em todos os territórios do Império. Sendo esta elite majoritariamente constituída por quinhentistas, ou através da aliança com estes, entendemos por famíliasde conquistadores aqueles “que, ao longo de duzentos anos, à custa de suas vidas e fazendas serviram à monarquia no domínio da América (...) e que se viam como nobreza de origem imemorial”, achando-se com prerrogativa exclusiva de mando através do acesso aos cargos de vereança e do reconhecimento de seus vizinhos, muitas vezes corroborado pela concessão de mercês régias.2708

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O Antigo Regime nos Trópicos e os instrumentos de controle Para que nossa proposição de caracterizar essa sociedade do agro fluminense setecentista seja compreensível, é necessário inserir estes agentes na lógica de Antigo Regime, ao qual a freguesia de Jacarepaguá, enquanto território da capitania do Rio de Janeiro, fazia parte. As experiências obtidas nas ilhas atlânticas de Madeira e Açores constituíram-se como um balão de ensaio para o que seria realizado na colônia americana, no que diz respeito aos engenhos de açúcar e à reprodução da lógica social da monarquia lusa, cuja arquitetura política pode ser caracterizada como corporativa e polissinodal2709, ou seja, pluralisticamente organizada por mecanismos não visíveis ou explícitos, mas por um sentimento de ordem que se confundia com a lei. Concordamos com João Fragoso quando este afirma que, em consonância com a sociedade reinol, o Antigo Regime nos Trópicos é definido, entre outros fenômenos, pela não separação entre política e economia. Esta última seria, neste sentido, caracterizada como pré-industrial, na qual as relações comerciais seriam pautadas pelas relações pessoais entre os agentes e não pelo mercado. De acordo com Antonio Manuel Hespanha, a lei era pautada, sobretudo, pelas relações amorosas2710 que se davam no âmbito da família, da casa, sendo esta a célula elementar de organização da vida social. Este modelo doméstico de organização social era reproduzido em todos os âmbitos da sociedade e deveria ser respeitado em suas próprias instâncias, isto é, um vereador da câmara não poderia se intrometer em problemas relativos a uma família, assim como o rei deveria respeitar a autonomia dos poderes locais. No que diz respeito aos instrumentos de controle, estes eram realizadas por uma observação quase molecular, o que não quer dizer que a sociedade vivia sobre si, mas que o controle era partilhado pelas diversas corporações – as igrejas com as paróquias e as próprias famílias, por exemplo – e não por uma central de controle. Não se pode desprezar, este sentido, o caráter vigilante da própria comunidade que, preocupada com a salvação da alma, atuava como vigia e guarda de si mesmas e de seus vizinhos. Trata-se da disciplina moral católica intrínseca a essa sociedade do período moderno2711. Entretanto, segundo Mafalda Cunha e Nuno Monteiro2712, a coexistência desta pluralidade jurisdicional deve ser cruzada com a crescente uniformização institucional e administrativa do Império que começou com as Ordenações Manuelinas e Filipinas, para o Reino, e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, para a colônia americana. Este “modo de funcionar” característico do Antigo Regime não deve ser tomado como regra universal sem exceções. Principalmente no que diz respeito à sua aplicação na terra brasilis, o Antigo Regime nos Trópicos não é um conceito circular que explica tudo e é explicado por tudo, mas, insistimos, um modelo de funcionamento que pressupõe a agência dos indivíduos e suas próprias recepções acerca do que lhes é, grosso modo, imposto. Se há um leque de potencialidades no que se

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FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, J.; ALMEIDA, C.; SAMPAIO, A. (org). Conquistadores e Negociantes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 35-50 2709 Sobre o assunto, ver Fragoso et al. Monarquia Pluricontinental (...) 2710 HESPANHA, Antonio M. A monarquia: a legislação e os agentes. In: MONTEIRO, Nuno G. (coord.) MATTOSO, J. (dir.). História da Vida Privada em Portugal. A idade moderna. Lisboa: Círculo de leitores, 2010. pp. 1520. 2711 HESPANHA, António Manuel. “A ordem”. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. Minas Gerais, Editora Anna Blume, 2010. passim 2712 CUNHA, M.; MONTEIRO, N. “As Grandes Casas”. In: MONTEIRO, Nuno G. (coord.) MATTOSO, J. (dir.). Op. Cit. p. 207.

856 ISSN 2358-4912 refere às opções, é nos pequenos grupos, nas trajetórias2713, que conseguimos rastrear pistas do que estava dado a escolher. Em melhores palavras, “quem assegurava a manutenção da ordem das coisas na quase totalidade do território eram os que lá estavam, as instituições e a coletividade locais, as suas elites e os seus vínculos de solidariedade.”

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Conclusões preliminares Articulando a freguesia com o Império Ultramarino português, analisaremos a lógica de funcionamento do cotidiano destes indivíduos através da teia relacional que permitia sua reprodução sócio-política e os mecanismos e estratégias engendradas para melhorar a qualidade social dessas famílias. Seria esta sociedade herdeira da lógica da transmissão patrimonial da família ocidental2714, com padrões de casamento homogâmicos, alta idade média dos casamentos e herdeiros preferenciais, ou guardaria suas especificidades? O acesso à terra e o capital político continuariam, ao longo de um século, a sobrepujar a riqueza material? No presente artigo, devido ao diminuto espaço de que dispomos, cabe fazer algumas observações acerca do comportamento de transmissão na freguesia de Jacarepaguá. Cabe salientar que são apontamentos preliminares, algumas hipóteses que pretendemos aventar com o andamento da pesquisa. Percebemos que, ao fim do século, as relações entre senhores e escravos era intermediada pela ação dos partidistas ou pessoas de “menos qualidade”, o que se percebe pelo fato de que os melhores da terra pouco batizam filhos de escravos, apontando para transformações na dinâmica do compadrio. A nobreza da terra já não dispõe dos mesmos bens materiais e o açúcar está perdendo espaço como principal produto de exportação, mas o acesso à terra ainda é um dos indicadores de status para aquela população. Por isso, as famílias engendram estratégias de bons casamentos aos seus filhos a fim de perpetuar ou aumentar a posição social, apostando em relações que garantam sua reprodução. Neste sentido, essas estratégias não correspondiam à norma estabelecida para a transmissão patrimonial, qual seja, a divisão igualitária entre herdeiros. Esta regra, quando necessário, era frequentemente burlada para manter a unidade familiar, cuja fragmentação dos bens resultaria numa diminuição tanto de bens quanto de prestígio político. Apesar de não apresentarem-se muitos bens vinculados na colônia portuguesa, como já dito, além de terras vinculadas ao morgado dos Asseca, muitas famílias tentariam manter seu patrimônio indiviso, apesar da legislação da divisão igualitária. Quanto aos casamentos, percebermos que o matrimônio era um enlace realizado relativamente tarde, com mais de 20 anos e que, entre os chefes de domicílio, quase 80%, em um total de 252 fogos, são casados ou viúvos. Entretanto, isso não se repete entre os agregados, ou seja, não detentores de terra, cuja porcentagem de casados cai abruptamente, sendo os solteiros a maioria. Ao que tudo indica, o matrimônio era um dos caminhos para o acesso à terra. Quem casa quer casa e engana-se quem acredita que esse é um ditado contemporâneo. Bem sabemos que as famílias compreendiam muito bem a dança que os pais dos noivos deveriam dançar, formando alianças que poderiam lançar jovens nubentes e seus “nomes” a um futuro glorioso. Referências Livro de batismos, casamentos e óbitos da freguesia de Jacarepaguá e Campo Grande do Bispado do Rio de Janeiro entre 1700-1800. Disponível em familysearch.com Mapas descritivos da população das freguesias de Campo Grande, Jacarepaguá, Guaratiba, Marapicu, Jacotinga, Aguassu e Taguaí do distrito de Guaratiba, capitania do Rio de Janeiro, feitos por ordem do vice-rei do Estado do Brasil, Conde de Resende [D. José Luís de Castro]. AHU-Rio de Janeiro, cx. 165, doc. 62. Lei Mental. Acessível em: http://www.monarchia.org/Leis/Lei_Mental.htm 2713

Porém, concordamos com Michel de Certeau quando este afirma que quando se opta pela noção de trajetória, temos um traço no lugar dos atos, uma relíquia no lugar das performances. É apenas o seu resto, o sinal de seu apagamento, e não o “desenho” real do que, efetivamente, lhe ocorreu. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. p. 99. 2714 BURGUIÈRE. Op. Cit. p. 15-80.

857 ISSN 2358-4912 Ordenações Filipinas. Acessível em:http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm VIDE, Sebastião Monteiro da.Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Estudo introd. de Bruno Feitler e Everton Sales Souza. São Paulo: Edusp, 2010. AGUIAR, Julia Ribeiro. As práticas de reprodução social das elites senhoriais da freguesia de São Gonçalo: um estudo de caso da família Arias Maldonado (séculos XVII – XVIII). Rio de Janeiro, 2012. Monografia (Graduação em História) – Instituto de História. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. BURGUIÉRE, A., ZANABEND, F. SEGALEN, M. (dir.). História da família. Vol. III. O choque das modernidades: Ásia, África, América, Europa. Portugal: 1998 [1ªed.1986 França]. CALDEIRA, João Luis Picão. O morgadio e a expansão no Brasil. Lisboa: Editora Tribuna, 2007. CRUZ, Jerônimo A. D.; BARBOSA, Mareana G. M.; Nobreza principal da terra: reprodução social em tempos de mudanças. Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. Texto inédito. FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FRAGOSO, J., BICALHO, F., GOUVÊA, M.F. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ______________. SAMPAIO, A. (orgs.) Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2012. ______________. O capitão João Pereira Lemos e a parda Maria Sampaio: notas sobre hierarquias rurais costumeiras no Rio de Janeiro do século XVIII. In: ALMEIDA, C.; OLIVEIRA, M. (org.) Exercícios de Micro-História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. ______________. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c.1600 – c.1750). Conferência apresentada no Concurso Público para Professor Titular de Teoria da História do Departamento de História da UFRJ. Rio de Janeiro, 2005. GINZBURG, Carlo. “O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico”. In: GINZBURG, C., PONI, C. (orgs.). A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Editora DIFEL, 1989 ______________. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: ALMEIDA, Carla e OLIVEIRA, Mônica. (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009 HESPANHA, António Manuel. “A ordem” In: Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010. LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ____________. Economia Camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: ALMEIDA, Carla e OLIVEIRA, Mônica. (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. MOTTA, Marcia. Justice and violence in the Lands of the Assecas (Rio de Janeiro, 1729-1745). In: Historia Agraria, 58, Diciembre 2012. MONTEIRO, Nuno G. O crepúsculo dos grandes: A casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional, 1995 ________________. (coord.) MATTOSO, J. (dir.). História da Vida Privada em Portugal. A idade moderna. Lisboa: Círculo de leitores, 2010. PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: redes de parentela, transmissão de terras e direitos de propriedade na freguesia de Campo Grande (Rio de Janeiro, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2011. REVEL, Jacques. História ao rés do chão. In: LEVI, Giovani. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. SCOTT, Anna Silva Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste português. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CAPELAS COM PLANTA CENTRALIZADA: UMA SINGULAR ARQUITETURA DOS SÉCULOS XVII E XVIII NO NORDESTE DO BRASIL Maria Berthilde Moura Filha Compõem o objeto de estudo desta comunicação quatro capelas edificadas entre o final do século XVI e o início do século XVIII. São elas: na Bahia, Nossa Senhora da Conceição que integra o conjunto edificado da Casa da Torre de Garcia D´Ávila; Nossa Senhora da Pena que foi parte do Engenho Velho do Paraguassú; Senhor Bom Jesus de Bouças remanescente do Engenho D’Água. Na Paraíba, a Capela de São Gonçalo, pertencente ao antigo Engenho Una, posteriormente denominado Nossa Senhora do Patrocínio. Estas capelas foram reunidas para uma análise em conjunto por se observar que têm em comum as seguintes características: foram edificadas por iniciativa de particulares, estão situadas na área rural e associadas a uma casa senhorial ou a um engenho de açúcar e, principalmente, foram concebidas sob o partido de planta centralizada. O reduzido número de exemplares que apresentam tal partido, em todo o Brasil, faz com que estas capelas sejam uma exceção na produção da arquitetura religiosa, mas apesar desta singularidade foram pouco valorizadas pelos historiadores, em particular entre as décadas de 1930 e 1960, enquanto os estudos posteriores lhes dedicaram alguma atenção. Perante este panorama, tomamos por objetivo apontar a significação deste tipo edificado no conjunto da arquitetura religiosa produzida na Região Nordeste do Brasil, bem como proceder a uma revisão da restrita literatura que levanta hipóteses sobre a apropriação de tal partido arquitetônico, verificando a pertinência dos dois percursos sugeridos: a transferência de modelos oriundos de uma tradição popular portuguesa, ou a ressonância de uma vertente erudita filiada à permanência da tratadística italiana em Portugal. Apresentando o objeto de estudo Procedendo a uma revisão da literatura sobre a arquitetura religiosa no Brasil verifica-se que poucos estudos contemplam o reduzido acervo edificado remanescente dos séculos XVI e XVII. Esta observação é pertinente considerando a época de construção das capelas em análise, situadas entre o final do século XVI e o início do século XVIII, dado que coloca nossa investigação à margem do período mais estudado, limitando as informações disponíveis. A isto se soma a difícil tarefa de trabalhar com a arquitetura rural, tão pouco observada na história da arquitetura brasileira. Ultrapassando tais percalços, foram estes os dados recolhidos sobre a história e contexto em que surgiram estas quatro capelas. Principiamos pela única destas capelas datada do século XVI: Nossa Senhora da Conceição, localizada em Tatuapara, município de Mata de São João, a cerca de 50 Km da cidade de Salvador. Seu fundador foi Garcia D´Ávila, natural de São Pedro de Rates, que chegou à Bahia em 1549 e, em 1561 recebeu uma extensa sesmaria que abrangia o litoral, desde Itapuã até Tatuapara, onde ergueu a Casa da Torre para ser a sede do seu morgado (CALMON, 1983). A construção desta casa ocorreu em etapas: a primeira, por volta de 1570, compreendendo a capela de planta hexagonal e uma pequena casa, uma segunda etapa data, provavelmente, entre 1660 e 1676, verificando-se outro acréscimo que teria sido iniciado em 1716 (AZEVEDO. In. MATOSO, 2010). Sobre a capela disse Fernão Cardin ser ela “a mais formosa que há no Brasil, feita toda de estuque e tintim de obra maravilhosa de molduras, laçarias e cornijas; é de abóbada sextavada com três portas” (CARDIN, 1939, p. 266). A Capela de Nossa Senhora da Pena integrou o Engenho Velho do Paraguaçu, localizado à margem do rio de mesmo nome, no município de Cachoeira, na Bahia. Havendo controvérsias sobre o início da ocupação desta região, há consenso que isto ocorreu a partir da construção de engenhos, que acabaram por induzir a formação da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, em 1698 (ANDRADE, 2010). No termo desta vila estava o Engenho Velho, o qual foi saqueado e destruído juntamente com outros do Recôncavo devido aos conflitos com os holandeses que assediaram a Bahia entre 1627 e 1645 (AZEVEDO, 1990). Após este período foi reconstruído sendo também erguida a capela que tem gravada na portada o ano da sua conclusão, 1660 (BAHIA, 1982a, p. 122).

859 ISSN 2358-4912 Em uma região do Recôncavo Baiano, também consolidada a partir da cultura açucareira, está a Capela do Senhor Bom Jesus de Bouças que integrava o Engenho D’Água, inserido no atual município de São Francisco do Conde. Sobre este engenho há poucas informações. Em meados do século XVII, quando foi construída a capela, era seu proprietário Gaspar de Faria Bulcão, natural da Ilha do Faial. Com a morte deste, a propriedade permaneceu com seus herdeiros, pois um dos descendestes da família, Baltazar da Costa Bulcão, reconstruiu a capela, em 1763, sendo sepultado na mesma, em 1796 (FONSECA, 1975, p. 8). Na várzea do Rio Paraíba está o Engenho Una, inserido em importante área de produção de açúcar. A princípio denominado de São Gonçalo, teve por origem, provavelmente, uma sesmaria doada a João Afonso Pamplona, em 1586. Há referência sobre a existência deste engenho já em 1623, sendo considerado o maior produtor da região em 1639. Em 1683 pertencia a Francisco do Rego Barros, que foi vereador e presidente da Câmara de Olinda (CARVALHO, 2005a, vol. 2, p. 120). Sua capela deve ter sido edificada pelo mestre de campo Matias Soares Taveira estando inscrita na fachada o ano de 1700, atribuído à sua conclusão. Porém, como tal inscrição foi aposta em 1913, é questionada sua precisão, considerando o longo tempo transcorrido entre 1700 e 1776, data registrada na lápide de sepultamento de Taveira, existente no interior da capela (SOUSA, 2007). Ao contextualizar o surgimento destas quatro capelas confirma-se a adoção da planta centralizada por um longo período: Nossa Senhora da Conceição, em 1570; Nossa Senhora da Pena, em 1660; São Gonçalo, em 1700; Senhor Bom Jesus de Bouças, edificada no século XVII e reconstruída em 1763. Além disso, o partido formal destas capelas leva a questionar porque ocorreram em situação tão específica: a área rural da Região Nordeste do Brasil.

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As capelas: caracterização arquitetônica Antes de avançar com a descrição individual, cabe antecipar algumas características que são recorrentes nestas capelas: para além do partido em planta centralizada, elas transmitem a solidez própria da alvenaria autoportante e têm um programa muito simples, constituído basicamente de nave, capela-mor e sacristia, ora acrescido de um alpendre. Como definiu Carvalho (2005b, p. 38), “trata-se de uma arquitetura simples, mas não simplória”. A Capela de Nossa Senhora da Conceição da Casa da Torre de Garcia D’Ávila está constituída por quatro ambientes. A nave tem planta hexagonal, coberta em cúpula apoiada sobre pendentes e se comunica através do arco cruzeiro com a capela-mor em abside, inserida em um volume edificado de forma regular e com pé direito mais baixo. À direita da nave está a sacristia que constitui, junto com o confessionário, um bloco anexo. Internamente, não há elementos integrados relevantes e, externamente prevalece a simplicidade das paredes brancas sem marcação de pilastras e cornijas. (Fig. 1A e B) Ao inserir a Capela de Nossa Senhora da Pena do Engenho Velho entre aquelas que têm o partido da planta centralizada, observa-se que tal característica reporta-se à disposição de sua nave quadrada coberta por uma cúpula sustentada por pendentes. Um generoso arco-cruzeiro interliga a nave à capela-mor, em forma de abside com coberta em meia cúpula. Ladeando a capela-mor estão duas sacristias, resultando em uma planta em forma de “T”, muito comum na arquitetura religiosa da Bahia, no século XVII (AZEVEDO, 1990, p. 122). Internamente, a nave e a capela-mor são, predominantemente, revestidas de azulejos de tapete. Externamente, o volume principal da capela está delimitado por cunhais terminados por pináculos piramidais. Em seu frontispício tem destaque a portada, em arco pleno, encimada por um frontão clássico e ladeada por duas janelas baixas de vergas retas. No mesmo eixo da portada, sobre a cornija, está o arco sineiro, com frontão triangular. (Fig. 2A e B) Por sua vez, a Capela do Senhor Bom Jesus de Bouças do Engenho D’Água tem sua planta constituída por uma nave octogonal recoberta por telhado de oito águas, circundada por um anel com pé direito mais baixo, que reproduz a mesma forma e abriga os demais ambientes que envolvem o corpo central: um alpendre, que ocupa três lados do octógono, tendo a coberta sustentada por colunas toscanas com pedestais; do lado esquerdo da nave está a sacristia e do lado direito o ossuário, ambos com portas que comunicam com o alpendre. Completa este anel periférico a capela-mor, de planta retangular, com telhado de duas águas que se situa em nível intermediário em relação às demais

860 ISSN 2358-4912 cobertas. É provável que a primitiva capela fosse constituída pela nave e capela-mor, tendo sido acrescida de sacristia, ossuário e alpendre, em 1763, quando foi reconstruída. (Fig. 3A e B) A Capela de São Gonçalo do Engenho Una está constituída de nave, capela-mor e uma sacristia situada à direita desta. A nave tem forma de hexágono ligeiramente alongado sobre o eixo que conduz à capela-mor, retangular e relativamente profunda. Anexas à nave, externamente, existem duas escadarias que dão acesso ao coro e ao púlpito, as quais resultam, provavelmente, da reforma realizada em 1913 (SOUSA, 2007). Externamente, são em cantaria as pilastras que marcam os vértices do volume da nave, a cornija e a portada bem ornamentada e com frontão interrompido (Fig. 4A e B). Originalmente, a coberta era em telha cerâmica, talvez com seis águas, mas foi substituída pela atual cúpula com platibanda que deve ter resultado, também, da reforma de 1913 (CARVALHO, 2005a, vol. 2, p. 119). O resultado desta caracterização é, em grande parte, fruto da observação das capelas em estudo, contando com subsídio de uma escassa bibliografia que atentou para a arquitetura religiosa produzida na área rural do Nordeste brasileiro. Entre estes, enumera-se: Esterzilda Azevedo (1990), Geraldo Gomes (1998) e Juliano Carvalho (2005a) que trabalharam, respectivamente, a arquitetura dos engenhos nos estados da Bahia, Pernambuco e Paraíba. No entanto, outros trabalhos também fornecem informações pontuais e diretrizes para identificar em nossas capelas traços da arquitetura portuguesa, ou resquícios da tratadística italiana que chegou ao Brasil, no século XVI e XVII através de Portugal.

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Figura 1A

Figura 1B

Capela de Nossa Senhora da Conceição

Capela de Nossa Senhora da Conceição – planta baixa

Fonte: Acervo Mariely Cabral de Santana

Fonte: BAHIA, 1982b, p. 90 / Desenho: Gabriela Pontes, 2010

Figura 2A

Figura 2B

Capela de Nossa Senhora da Pena

Capela de Nossa Senhora da Pena – planta baixa

Fonte: Fotografia de Anibal Bittencourt. Escritório Técnico do IPHAN – Cachoeira – Bahia

Fonte: BAHIA, 1982a, p. 122 / Desenho: Gabriela Pontes, 2010

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Figura 3A

Figura 3B

Capela do Senhor Bom Jesus de Bouças

Capela do Senhor Bom Jesus de Bouças – planta baixa

Fonte: BAHIA, 1982a, p. 185

2010 Fonte: BAHIA, 1982a, p. 185 / Desenho: Gabriela Pontes, 2010

Figura 4A

Figura 4B

Capela de São Gonçalo

Capela de São Gonçalo – planta baixa

Fonte: Acervo Maria Berthilde Moura Filha

Fonte: CARVALHO, 2005a, vol. 2, p. 119 / Desenho: Gabriela Pontes, 2010

Revendo as hipóteses para adoção da planta centralizada Myriam Ribeiro nos dá o ponto de partida para a revisão de literatura sobre a presença das capelas de planta centralizada na área rural do Nordeste, ao situar três importantes autores que estudaram a arquitetura religiosa no Brasil, entre as décadas de 1940 e 1960: Germain Bazin, Robert Smith e John Bury (BURY, 1991, p. 9). Bazin estudou a matéria enfocando, prioritariamente, a arquitetura monástica e o barroco em Minas Gerais, pouco se reportando à arquitetura religiosa existente no meio rural sobre a qual disse: “Todos esses templos são de construção rústica, exceto a pequena capela do engenho da Pena, em Santiago do Iguape, no Rio Paraguaçu”. Assim, entre as capelas que integram nosso objeto de estudo, apenas esta foi referida por Bazin, mas com tal intensidade que o levou a considerá-la “um monumento único no Brasil”, por “sua elegância esmerada” e por lembrar o “espírito da Renascença” (BAZIN, 1983, p. 124).

862 ISSN 2358-4912 Por sua vez, Robert Smith mantendo sua postura de de subestimar nossa arquitetura e a comparar modelos de Portugal, disse: “A arquitetura do Nordeste deste período não é a mais interessante do país. Nunca produziu inovações comparáveis à da torre oval e redonda das igrejas mineiras. É sempre imitada da de Portugal, ou seja da de Lisboa ou das províncias portuguesas” (SMITH, 1979, p. 38). Acrescentou ainda como uma das características da Região Nordeste a presença desta “igreja de campo”, sobre as quais pouco se deteve por julgá-las “simples sem a pretensão de ordens clássicas, nem molduras elegantes, a cuja torre baixa falta todo traço de ornamentação” (SMITH, 1979, p. 30). Entre as capelas que integram o conjunto em análise, Smith se referiu apenas à de Nossa Senhora da Conceição, quando no artigo denominado “Arquitetura Civil do Período Colonial” tratou sobre a Casa da Torre. No entanto, pouco falou sobre a capela, embora seja importante registrar as hipóteses que apresentou para justificar o partido arquitetônico da casa:

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Estas feições eruditas da planta da Torre e sua data antiga levam-nos a crer que o arquiteto desconhecido que a traçou tenha tido em mente os riscos de casas feitas na França por Sebastiano Serlio em meados do século XVI (SMITH, 1981, p. 109).

Confirma-se que estes clássicos trabalhos sobre a arquitetura religiosa do Brasil colonial pouco atentaram para a existência do reduzido acervo de capelas com plantas centralizadas situadas no meio rural, mas entre as poucas referências já apontavam uma relação com o Renascimento e com a obra de Serlio. No entanto, outras contribuições trouxeram dados relevantes para o presente estudo. Na década de 1980, foi realizado pelo IPAC um inventário que reuniu informações sobre o acervo patrimonial da Bahia, incluindo as capelas que integram a Casa da Torre e os engenhos Velho e D´Água. Os autores deste inventário levantaram possíveis filiações entre estas capelas e a similar produção portuguesa, encaminhando a busca de referências para entender a presença deste partido arquitetônico na Bahia. Para a capela de Nossa Senhora da Conceição, não encontraram um exemplo anterior em Portugal senão coevo: São Gregório de Tomar, também edificada no século XVI. Mas sendo o partido geral da Casa da Torre atribuído a uma influência renascentista, absorvida através do tratado de Serlio, o mesmo se pode aplicar à capela, cuja forma hexagonal era recomendada para os templos de planta centralizada (BAHIA, 1982b, p. 90). Posição oposta assume Alberto Sousa (2007), atentando para o aspecto externo do edifício onde a ausência de pilastras de canto e do entablamento contínuo, distancia esta capela dos modelos serlianos. Por sua vez, a Capela de Bom Jesus de Bouças teve sua planta octogonal também associada à arquitetura de plano centrado renascentista (BAHIA, 1982b, p. 90). Na correspondência com os exemplos portugueses foram citadas as capelas da Madre de Deus, em Aveiro, e novamente a de São Gregório, em Tomar, com a qual mais se assemelha, por estar a nave octogonal envolvida por um alpendre e elevada acima dos outros elementos do programa, embora a capela portuguesa seja recoberta por cúpula (BAHIA, 1982b, p. 186). Sobre a Capela de Nossa Senhora da Pena, seu partido de planta quadrada com cúpula também foi associado ao espírito do Renascimento. Não foi descartada a possível influência de outros exemplares baianos: Nossa Senhora da Conceição, onde fora usada a solução de uma cúpula sobre a nave, e Nossa Senhora das Neves, na Ilha de Maré, cuja capela-mor, em forma de abside é recoberta por meia cúpula (BAHIA, 1982a, p. 122). Para a Capela de São Gonçalo, os modelos foram apontados por Alberto Sousa (2007): a Capela do Senhor dos Aflitos, em Lamarosa, embora a referência mais evidente seja a Capela de Nossa Senhora da Encarnação, em Santa Maria da Feira. Ambas têm planta em hexagono, forma explorada por Serlio em seu tratado publicado em 1547, de onde teria origem, também, o uso das pilastras de canto e do entablamento contínuo, traços marcantes da sua imagem (SERLIO, 1982. Livro V: fol. 6). Portanto, para Alberto Sousa a capela de São Gonçalo tem uma influência serliana, quer seja direta ou indireta. Cabe aqui recordar o nosso ponto de partida: verificar a pertinência dos dois percursos apontados pelos historiadores da arte para explicar a presença do partido de planta centralizada na remota área rural da Região Nordeste do Brasil. A primeira hipótese seria a transferência de modelos oriundos de uma tradição popular portuguesa. Neste percurso, deparamos com um impasse: a própria historiografia portuguesa não dá respostas sobre esta questão, uma vez que os estudos consultados não aprofundaram no tratamento das pequenas capelas rurais de planta centralizada em Portugal.

863 ISSN 2358-4912 Ocorre que dentro do restrito número de capelas rurais citadas pelos historiadores portugueses, comparecem, muito mais, aquelas que caracterizam estar próximas de uma linguagem erudita, sendo recorrente a referência à obra de Serlio. Paulo Varela Gomes (2001), por diversas vezes cita o tratado de Serlio, em específico, os “desenhos do templo octogonal”, publicado pela primeira vez no seu Livro V, de 1547. Entre os templos apresentados neste livro serliano, predominam as plantas centralizadas: círculos, hexágonos, octógonos, cruz grega. Nas elevações e cortes, comparecem pilastras que fazem a marcação dos panos de parede e o enquadramento das aberturas, somando-se cornijas, entablamentos e cúpulas. Todo um repertório formal que, com maior ou menor evidência, permeia muitas das capelas portuguesas citadas, assim como as capelas do Nordeste, em análise. A mesma associação fizeram os historiadores sobre a arquitetura brasileira. O “espírito da Renascença” foi a expressão utilizada por Bazin para caracterizar a Capela de Nossa Senhora da Pena. Por sua vez, Robert Smith se referiu diretamente a obra de Serlio para justificar o partido da Casa da Torre de Garcia D´Ávila. Estas alusões dão suporte à hipótese da ressonância de uma vertente erudita filiada à permanência da tratadística italiana em Portugal. Outros historiadores brasileiros também estabeleceram comparações entre exemplares portugueses e a produção brasileira. Para tanto, selecionaram algumas das capelas presentes na historiografia portuguesa, coincidentemente, aquelas que parecem ter uma maior carga de erudição. Não por acaso, pois buscavam as ressonâncias daquele “espírito renascentista”, referido por Bazin, o qual foi traduzido no uso das plantas em polígonos regulares, das cúpulas, pilastras e cornijas delimitando os panos de alvenaria das fachadas. Talvez uma análise epidérmica, mas a possível, diante da defasagem de conhecimento ainda existente sobre este tipo edificado.

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Algumas considerações finais, mas ainda longe de qualquer conclusão Confirma-se haver ainda um longo percurso investigativo a trilhar, até ser possível identificar quais foram os modelos de arquitetura que apoiaram os incógnitos construtores das capelas de planta centralizada hoje quase esquecidas na paisagem rural do Nordeste brasileiro. Perante tal situação, assumimos uma posição: julgamos que estas capelas estão, de fato, muito mais próximas de modelos eruditos, trazendo ecos da permanência da tratadística italiana que teve presença em Portugal. Têm, também, uma imagem que não se afasta dos volumes maciços e brancos que caracterizam a arquitetura portuguesa, demonstrando, certamente, a capacidade de articular diversas referências de arquitetura sem deixar de lado uma identidade própria. Por hora, assumimos esta posição, que não deve ser definitiva, pois para tanto se faz necessário aprofundar no conhecimento sobre este tipo edificado, em Portugal e no Brasil, tornando possível avançar sobre a concretização de uma das hipóteses preliminares. Referências ANDRADE, A. B. O outro lado da Baía: a rede urbana do Recôncavo Baiano setecentista. Salvador: UFBA, 2010. (Tese de doutoramento do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo) AZEVEDO, E. B. Arquitetura do Açúcar. São Paulo: Nobel, 1990. AZEVEDO, P. O. Casa da Torre de Garcia D´Ávila e Capela de Nossa Senhora da Conceição. In. MATTOSO, J. (org) - Património de Origem Portuguesa no Mundo. Arquitetura e Urbanismo. América do Sul. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. p. 133 – 134. BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA. Inventário de proteção do acervo cultural. Monumentos e Sítios do Recôncavo. II Parte. 1ª Ed. Salvador, 1982a. BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA. Inventário de proteção do acervo cultural; Monumentos e Sítios do Recôncavo. I Parte. 2ª Ed. Salvador, 1982b. BURY, J. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel, 1991. CALMON, P. História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1983. CARDIM, F. Tratados da Terra e Gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. CARVALHO, J. L. Pré-inventário dos engenhos da várzea do Rio Paraíba. 2 vol. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2005a. (Monografia de conclusão do curso de Arquitetura)

864 ISSN 2358-4912 CARVALHO, J. L. Capelas rurais da várzea do Paraíba: a construção de séries como metodologia para a história da arquitetura. Pergaminho. João Pessoa, ano 1, nº zero, 2005b, p. 31 – 51. FONSECA, F. L. O Convento de São Francisco do Conde. Salvador: Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, 1975. GOMES, G. Engenho & Arquitetura. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 1998. GOMES, P. V. Arquitectura, Religião e Política em Portugal no Século XVII. A Planta Centralizada. Porto: Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, 2001. SERLIO, S. The Five Books of Architecture. New York: Dover Publication, 1982. SMITH, R. C. Igrejas, Casas e Móveis. Aspectos da Arte Colonial Brasileira. Recife: MEC; Universidade Federal de Pernambuco; Iphan, 1979. SMITH, R. C. Arquitetura Civil do Período Colonial. In. Arquitetura Civil I. São Paulo: MEC; Iphan; FAUSP, 1981. p. 95 – 190. SOUSA, A. Uma igreja brasileira de planta hexagonal: a capela do antigo Engenho Una, na Paraíba. Arquitextos. São Paulo: Vitruvius, 2007. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.080/277. Acesso em 12/08/ 2010.

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FRONTEIRAS POLÍTICAS NO INTERIOR DA FRONTEIRA OESTE BRASILEIRA: CUIABÁ E VILA BELA DA SANTÍSSIMA TRINDADE Maria do Socorro Castro Soares2715 Este trabalho procura acompanhar o desenvolvimento político em Mato Grosso, no período de formação e estabelecimento do Primeiro império brasileiro. Toma como eixo de análise as disputas internas das elites locais em busca da territorialização do poder. As táticas e estratégias de enfretamentos culminam na dualidade de governo, colocando em lados opostos Vila Bela da Santíssima Trindade (capital legal da província) e Cuiabá (cidade pioneira). A organização política e administrativa do Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, é assinalada por profundas mudanças. A transferência da corte de Bragança, a elevação institucional do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e a coroação de D. João VI, fundamentam a nova ordem a ser estabelecida em terras da América portuguesa. O Brasil se oferecia como berço que possibilitaria um renascimento do Estado português, não fossem as Cortes portuguesas desfraldarem a bandeira constitucionalista, tendo como pano de fundo o movimento “vintista”2716, que ditou as bases para a Revolução do Porto, em 1820, terminando por impor a presença real em Portugal. Nesse contexto, coube a D. Pedro, Príncipe Regente, a responsabilidade de permanecer no Brasil e evitar a fragmentação das províncias através da imposição de uma autoridade central, medida que vai se fortalecendo à medida que as Cortes de Lisboa exigem também o seu retorno a Portugal. Esse retorno representaria o rebaixamento do Brasil à condição de colônia de Portugal, hipótese contestada pela elite política e social brasileira, que a partir de então passa a fazer frente ao processo de emancipação política do Brasil, culminando com a coroação de D. Pedro como Imperador do Brasil, em primeiro de dezembro de 1822. Em que pese o apoio dado pelas elites na construção da independência brasileira, o processo emancipatório não foi pacífico, revoltas contra a independência se manifestaram em várias províncias ocupadas por tropas portuguesas, que permaneciam fiéis à Corte de Lisboa. As divergências de interesses entremearam o processo que culminou com a dissolução da primeira Assembleia Nacional Geral Constituinte e Legislativa brasileira. Como consequência, a nação que se estava tentando estabelecer, recebeu uma Constituição imposta pelo Imperador D. Pedro I, acrescida de um quarto poder: o Moderador. Assim, a unidade territorial centrada no governo que partia do Rio de Janeiro, na figura do Imperador, se fazia sentir na construção do Império brasileiro. A dissolução da Assembleia Constituinte somada à falta de autonomia das províncias, provoca um grande desconforto aos grupos políticos locais, proporcionando arranjos e alianças que davam rumos aos interesses das elites regionais. Esses reflexos ecoam na província de Mato Grosso, a partir do momento em que interesses, também divergentes, são buscados pelos grupos políticos aí representados. Nessa perspectiva, importa recuar cronologicamente e buscar ainda nos idos coloniais a compreensão do processo de formação desses “blocos”. Ou seja, percorrer os meandros políticos que vão dando contornos ao aparecimento de uma elite econômica e política local. O povoamento de Mato Grosso teve como primeiro aglomerado urbano o Arraial denominado Forquilha (1719), em 1827 é elevado à condição de Vila, com o nome de Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e, em 1818 elevada à categoria de cidade, com o nome de Cuiabá. Em relação às minas do Mato Grosso, à época da fundação da capitania, em 1752, recebeu a denominação de Vila Bela da Santíssima Trindade, constituindo-se na primeira capital da então capitania de Mato Grosso. Sofreu uma 2715

Doutoranda em História pelo Departamento de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. 2716 Movimento de caráter burguês, de ideologia liberal que deu início à revolução do Porto, em 1820. Visava o fim do absolutismo através de uma constituição democrática, propondo uma aliança do rei com as representatividades sociais das Cortes.

866 ISSN 2358-4912 mudança toponímica para Mato Grosso em 1818, por ocasião de sua elevação à categoria de cidade. Através da Lei estadual nº 4014, de novembro de 1978 voltou à denominação de Vila Bela da Santíssima Trindade. Embora fazendo parte da mesma capitania, esses dois núcleos urbanos constituíram-se em repartições e interesses políticos distintos, que buscaram através de variadas estratégias a ampliação ou manutenção de poderes. Isso terminou gerando um embate de forças, sedimentado ainda na criação da vila-capital, em preterimento a Cuiabá, primeiro núcleo urbano já constituído. Quando à época da criação da capitania, a população cuiabana viu na emancipação proporcionada pelo Alvará de 9 de maio de 1748,2717, “novos horizontes que deveriam alvoroçar as aspirações sertanejas”,2718 contudo, as Instruções trazidas pelo Capitão-General, Antonio Rolim de Moura, frustraram os sonhos cuiabanos de sediar a nova capitania, considerando as recomendações reais feitas:

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§ 1º Suposto entre os distritos de que se compõe aquela Capitania geral, seja o de Cuiabá o que ache mais povoado, contudo atendendo a que no Mato Grosso se requer a maior vigilância, por causa da vizinhança que tem, houve por bem determinar que a cabeça do governo se pusesse no mesmo 2719 distrito Mato Grosso; no qual a vossa mais costumada residência.

Em relação à escolha do local para sediar a capital da nova capitania, percebe-se já nos escritos de Barbosa de Sá uma insatisfação pelo preterimento da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá em detrimento da nova sede administrativa que se estava tentando erigir, em 1752: “[...] foi neste ano fundada a Vila Bela de Mato Grosso pelo General e Juiz de Fora, levantando-se Pelourinho, erigindo-se Senado de Câmara e Oficiais de Justiça; em um charco moradia de jacarés e capivaras [...]”. 2720 Correa Filho referindo-se ao Alvará que determinava a criação da capitania de Mato Grosso assevera: A emancipação que lhe outorgara a Alvará de 9 de maio de 1748, descerrava as aspirações sertanejas. Entretanto, Cuiabá via nesse lance escapar-lhe o primado adquirido. Não lhe seria de modo favorável a presença do governador, cuja preferência, sem dúvida, escolheria aquele oásis acolhedor, que se abria, como flor de civilização, no seio dos sertões brutos.2721

Dessa forma Correa Filho coloca Cuiabá como o foco de “civilização” nos sertões brutos da capitania, portanto, espaço detentor da primazia de sediá-la e, se não fossem as determinações da Coroa lusa, sem dúvida, o Capitão-General escolheria Cuiabá que, segundo ele, era o local que reunia condições para dispor de status de capital. Como “flor de civilização” seria capaz de civilizar os desprovidos dessa qualidade: os “incivilizados” das minas de Mato Grosso. As rivalidades ufanistas tornam-se mais visíveis a partir do início do século XIX, tomando aqui como ponto de partida o governo do penúltimo Capitão-General, João Carlos O’eynhausen Gravemburg, por tratar-se de referencial comparativo com Francisco de Paula Magessi Tavares, último Capitão-General da capitania. Embora o arrefecimento aurífero já se fizesse sentir de forma bem acentuada, provocando sérias dificuldades financeiras, já é possível perceber a presença de uma elite local que permite a Cuiabá uma posição política privilegiada, em relação ao restante da capitania: Apesar da precariedade econômica da região, os proprietários dos grandes latifúndios, também militares e burocratas, além de comerciantes, conseguiam um enriquecimento individual que os 2722 situava acima do conjunto da população [...]. 2717

Alvará de criação da capitania de Mato Grosso. CORREA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1996, p. 319. 2719 Apud MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso. 4ª ed. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1982, p. 32. 2720 SÁ, Joseph Barbosa de. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até os presentes tempos. Cuiabá: UFMT/SEC, 1975, p. 46. 2721 CORREA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1996, p. 319. 2722 VOLPATO, Luíza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza. São Paulo: HUCITEC, Brasília-DF: INL, 1987, p. 155. 2718

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ISSN 2358-4912 Apreende-se que proprietários rurais, comerciantes, burocratas e militares é que foram dando corpo à chamada elite cuiabana e, como tal, agenciadores da dinâmica por que vai passar a capitania nas primeiras décadas dos oitocentos. Em relação a essa multiplicidade de atividades, Maria Adenir Peraro nos lembra que: [...] essa era uma situação comum dos grandes proprietários, que tinham na diversificação das atividades uma possível alternativa para a crise econômica advinda da mineração. Ela pontua, portanto, a imbricação de papeis reservados aos destacamentos militares como mantenedores da 2723 segurança nas fronteiras e agentes fixadores do povoamento.

Segundo Carlos Alberto Rosa2724, a elite cuiabana pode ser exemplificada a partir de nomes como: Jerônimo Joaquim Nunes (Tenente-Coronel de artilharia de linha; comandante da Legião de Milícias; Cavaleiro da Ordem de São Bento de Aviz e proprietário de imóveis rurais e urbanos); André Gaudie Ley (sargento-Mor das Milícias; Tesoureiro Geral das rendas Reais; Cavaleiro da Ordem de Cristo e proprietário de imóveis urbanos); Antonio Navarros de Abreu (Tenente-Coronel de Milícias e abastado comerciante); João Poupino Caldas (Comerciante de grande prestígio; Tenente-Coronel de Milícias e proprietário de imóveis e Cuiabá); Padre José da Silva Guimarães (Comissário Subdelegado da Bula da Santa Cruzada e homem de extensa cultura); Antonio Correa da Costa (proprietário de bens rurais em Chapada dos Guimarães e Tesoureiro Geral da Provedoria dos Ausentes). Em Vila Bela, a situação não era diferente. O grupo participante da política local atuava em diferentes esferas da administração civil, do universo militar, mercantil e/ou agrário. O mesmo militar graduado poderia ser grande comerciante, grande proprietário e ainda exercer funções políticas. Por volta da primeira metade do século XIX, enquanto a região de Cuiabá apresentava uma população em torno de 73%, a região liderada por Vila Bela representava 20% do total da província,2725 onde os brancos representavam apenas 7,5% desse total. Em relação ao comércio, Cuiabá e região detinham 79% da província, enquanto Vila Bela contava com uma participação de 14%. No que tange às forças militares, embora Vila Bela tivesse sobre si a responsabilidade de resguardar a fronteira oeste mato-grossense, contava, em 1818, com apenas 34% do efetivo militar, enquanto a região de Cuiabá reunia 54% do total da província2726. A partir dessa conjuntura, Vila Bela, que abrigava a sede da capitania, durante o governo dos últimos Capitães-Generais (de forma mais aguda, Magessi), foi preterida em favor de Cuiabá que, conforme estatísticas, reunia condições estruturais mais sólidas que a velha capital. Porém, mesmo em desvantagem econômica, populacional e militar, Vila Bela não abriu mão de seu antigo status de capital e, não querendo subordinar-se a Cuiabá, se municia de elementos e táticas para a defesa do seu primado. A não aceitação da capital em Vila bela da Santíssima Trindade foi um pensamento que esteve presente no imaginário da elite econômica que liderou o processo político em Mato Grosso, como nos faz supor a carta de João Severiano Maciel da Costa2727, ao presidente da província: Senhor Presidente e Sua Majestade o Imperador a representação do Presidente da província de Mato Grosso, em que expõe os motivos que julgou poderosos, para ser removida a capital da província do lugar, em que se acha, por ser o mais insalubre, e quase nos limites dela, para outro mais sadio e central, designado para este efeito a vila de Alto Paraguai Diamantino, que oferece todas as vantagens aos seus habitantes; igualmente a necessidade de se fazer convocação do Conselho da província interinamente na cidade de Cuiabá. O mesmo Augusto Senhor, tomando em consideração a importância destes objetos e deferindo benignamente a segunda parte da 2723

PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império. São Paulo: Contexto, 2001, p. 124. ROSA, Carlos Alberto. O processo de independência de Mato Grosso e a hegemonia cuiabana. Cadernos Cuiabanos-I, Cuiabá-MT: Prefeitura Municipal, 1976, p. 13. 2725 Nome dado às capitanias a partir da instalação do Império brasileiro (1822), sendo substituído pela denominação de Estado a partir da proclamação da República (1889). 2726 ROSA, Carlos Alberto. O processo de independência de Mato Grosso e a hegemonia cuiabana. Cadernos Cuiabanos-I, Cuiabá-MT: Prefeitura Municipal, 1976, p. 20. 2727 Ministro do Império e Marquês de Queluz. 2724

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ISSN 2358-4912 mencionada representação: manda pela Secretaria de estados dos Negócios do Império participar ao dito Presidente que há por bem que a convocação do sobredito Conselho seja interinamente na cidade do Cuiabá até que se tomem as convenientes medidas para a ereção de uma capital, que reúna em si os dois cômodos de ambas povoações. Ficando, porém, obrigado a ir a capital de Mato 2728 Grosso o maior número de vezes que lhe for possível.

Observa-se que a busca pelo status de capital não alvoroçou apenas os ânimos dos de Cuiabá e Vila Bela. Em 1805, a liberação da exploração diamantífera no distrito de Alto Paraguai Diamantino, com o passar dos anos vai fazer com que essa vila tenha também suas pretensões de se tornar capital, colocando-se, segundo o documento acima, em muito melhor condição de sediar a capital. Entretanto, interinamente, Cuiabá sediaria até que se tivessem condições de estruturar a nova capital. Eram as elites se articulando e buscando alianças para a conquista do poder político. A elite cuiabana vislumbrava na transferência da capital uma possibilidade de ligar seus interesses econômicos a um contexto mais amplo. Isso começa a tomar forma a partir do governo do penúltimo Capitão-General, João Carlos Augusto O’eynhausen de Gravemburg, que em 1812 fixou residência em Cuiabá. As intenções do Capitão-General em fazer de Cuiabá a capital da capitania tornam-se mais claras a partir do momento em que o mesmo, além de fixar residência, passa a dotar a cidade de algumas melhorias estruturais, medidas que o levam à conta de um “governo fecundo”: [...] governo fecundo e para perpetuá-lo bastava os seguintes atos: a criação em Cuiabá de uma sala de cirurgia e anatomia, como preliminar para a fundação de uma escola de medicina; a fundação dos hospitais de São João dos Lázaros e o de Nossa Senhora da Conceição; a criação de uma escola 2729 marinheiros e construções navais e a instalação de um horto botânico.

O que bem caracterizou a administração “fidalga” de O’eyhausen foram as grandiosas festas em Cuiabá, que o colocavam frente à elite cuiabana como protótipo de perfeito administrador “[...] grandes comerciantes eram simpáticos às repetidas festas, especialmente os banquetes faustosos. O senhorio rural, por sua vez, encontrava no governador os padrões de fidalguia que ansiava incorporar as suas vidas rústicas.”2730As justificativas se estendem também às classes menos favorecidas de Cuiabá “[...] um governador como O’eynhausen, que permitia aos negros e mulatos a participação nas festas oficiais, jogando capoeira e dançando o batuque e o cururu, só poderia ser estimado.2731 Atravessando a capitania forte crise financeira, ficam claras as intenções do Capitão-General em promover essas festividades, ou seja, uma forma prazerosa de desviar a atenção, onde a participação popular imprimia uma máscara de igualdade. As festas “anestesiavam” por alguns dias a real situação financeira da capitania e, o fundamental, transmitiam ideologicamente o sentimento de pertencimento, de união, como se todos os níveis sociais comungassem os mesmos desejos. Contudo, a crise financeira que assolava a capitania nas primeiras décadas dos oitocentos se sobrepôs e fez descortinar o pseudo fausto mascarado pelas festas “fidalgas” de O’eynhausen. Afirma Correa Filho, que as correspondências encaminhadas ao Capitão-General, enviada pelos comandantes militares das Câmaras de Vila Bela e Cuiabá, era sempre a “mesmice” de pedidos de recursos com que pudessem suprir as ameaças de fome, como esta de Manuel Rebelo Leite: Meu amo e Senhor [...] por ora não há como mais dignamente representar a V. Exª. A pobreza que reina na capital é indizível, e principalmente naqueles que estão com a boca aberta sobre os cofres das Rendas Reais. Que aflições não padeceria o generoso coração de V. Exª. Se estivesse presente [...].

2728

Carta de João Severiano Maciel da Costa, pedindo a transferência da capital da cidade de Vila Bela. Arquivo D. Aquino Correa, pasta 16 nº. 2208. 2729 MENDONÇA, Estevão de. Datas mato-grossenses. Goiânia: Rio Bonito, 1973, p. 287. 2730 ROSA, Carlos Alberto. O processo de independência de Mato Grosso e a hegemonia cuiabana. Cadernos Cuiabanos-I, Cuiabá-MT: Prefeitura Municipal, 1976, p. 30. 2731 ROSA, Carlos Alberto. O processo de independência de Mato Grosso e a hegemonia cuiabana. Cadernos Cuiabanos-I, Cuiabá-MT: Prefeitura Municipal, 1976, p. 30.

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ISSN 2358-4912 Eu sou um dos que desejo estar coberto das vistas de V. Exª., porém desejava que V. Exª. se 2732 comovesse livrar sempre das nossas misérias.

Mesmo usufruindo da simpatia de boa parte da população mato-grossense, O’eynhausen, “supliciado” pelas dificuldades financeiras, ansiava por se ver substituído no cargo e essa substituição ocorre em 6 de janeiro de 1819, quando chega a Cuiabá o Tenente-Coronel Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, nomeado por Carta Régia de 7 de julho de 1817. Como homem afeito às atividades militares, Magessi resolveu colocar em prática uma política rígida, dando especial atenção à militância. Dentre as medidas tomadas pelo Capitão-General, com o fito de melhor estruturar a capitania pode-se apontar:2733 a organização de expedição às “minas dos martírios”; franquia do porto geral de Cuiabá ao comércio com as províncias espanholas; garantia do monopólio da exportação de ferro à Companhia de Mineração de Cuiabá e a transferência, de Vila Bela para Cuiabá de importantes organismos públicos. As medidas tomadas por Magessi não amenizaram a crise financeira por que passava a capitania, entretanto, visibilizaram a preferência do mesmo por Cuiabá, cidade que, segundo seu gosto, deveria achar-se a capital.2734 Essa afeição pode ser perceptível pela sua permanência de 18 meses em Cuiabá, durante os 19 meses do seu governo. Mesmo as ações “empreendedoras” do capitão-General não foram capazes de reverter a opinião dos mato-grossenses em relação a sua pessoa, sempre comparada a João Carlos O’eynhausen Gravemburg. Aproveitando-se da fundamentação legal dada às províncias, através do Decreto de 24 de abril de 18212735, a elite cuiabana viu nessa abertura a possibilidade de constituir-se em sede administrativa da província mato-grossense, criando uma Junta que deveria, em substituição ao Capitão-General, governar toda a capitania, acalentando assim suas antigas aspirações. A conjuntura política nacional favoreceu a elite cuiabana, que se apropriando dos acontecimentos tomou para si a incumbência de gerir os destinos políticos de Mato Grosso e, com essa pretensão, reuniu representantes do clero, nobreza, povo e tropa, elegendo uma Junta Governativa2736, em 20 de agosto de 1821. Com a Junta Governativa formada, o Capitão-General foi comunicado em 21 de agosto. Vila Bela não teve parte na eleição, apenas foi notificada sobre o novo governo, motivo pelo qual a Junta de Cuiabá foi reconhecida unicamente pelos núcleos subordinados a Cuiabá. Diante da formação da Junta de Cuiabá, Vila Bela viu afrontado seu foro de capital e fez erguer também sua própria Junta, segundo a qual caberia a governança legal da província, negando literalmente qualquer ordem advinda da Junta de Cuiabá. A disputa estava posta e a rivalidade aflorada. É nesse clima que é instalada a Junta Governativa2737 de Vila Bela, em 11 de setembro de 1821, constituída por representantes do Clero e tropa. Após a formação das Juntas deu-se início às ações em nome do poder que cada qual julgava ter. A Junta de Cuiabá tomou providências no sentido de, alem de comunicar o fato a Francisco de Paula Magessi, Capitão-General de Mato Grosso, efetuar a nomeação dos comandantes militares e expedir ofícios notificando o governante de Vila Bela, aos comandos militares da região, aos Registros do Sul e do Norte e às principais vilas da Capitania. Por sua vez, a Junta de Vila Bela, através do seu Quartel-Mestre João Francisco dos Guimarães e do Ajudante da Legião de Milícias Vaz Pacheco, propõe o estabelecimento da abolição dos escravos, incluindo os de Cuiabá, que aderissem à causa de Vila Bela, bem como “[...] a dissolução do vínculo conjugal e a castidade das donzelas, aconselhando umas e outras que se podiam desonestar”2738. A esse conjunto de intenções deu-se o nome de “Lei Nova”. A chamada “Lei Nova” era considerada um ataque direto à honra, vista como sustentáculo moral da elite não só cuiabana como nacional. Em relação à abolição dos escravos, constituía-se em ponto 2732

Ofício de Manuel Rebelo Leite a Gravemburg, em junho de 1817. Arquivo D. Aquino Correa, pasta 71, nº 1830. SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. O processo histórico de Mato Grosso. Cuiabá: Guaicurus, 1990, p. 96. 2734 CORREA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1996, p. 459. 2735 Decreto que autorizava às províncias erigirem seus governos através de Juntas Governativas. 2736 MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1982, p. 26. 2737 MENDONÇA, Rubens de. História de Mato Grosso. Cuiabá: Fundação Cultural de Mato Grosso, 1982, p. 26. 2738 Auto Sumário a que mandou proceder a Junta Governativa de Cuiabá. Manuscrito, APMT, lat 1822 a. 2733

870 ISSN 2358-4912 crucial para essa mesma elite, que via nessa possibilidade perdas econômicas imensas e um ataque ao sistema escravista, base da sustentação econômica nacional. A rivalidade entre as duas cidades consubstanciou-se na dualidade de governos. A Junta de Cuiabá buscou apoio e reconhecimento junto às autoridades do Rio de Janeiro, enquanto a de Vila Bela recorreu a Lisboa. D. Pedro I, na condição de Imperador do Brasil, evitou se manifestar a favor de qualquer uma das Juntas. Não queria entrar em conflito com os correligionários de Cuiabá, tidos como cônscios e obedientes ao seu programa de governo. Por outro lado, o processo de independência desencadeado nas vizinhanças castelhanas poderia influenciar os moradores de Vila Bela, implicando negativamente em suas já dilatadas dificuldades administrativas. Assim, determinou o estabelecimento de um único governo provisório na província, que deveria permanecer em Vila Bela, o que ocorreu em 11 de maio de 1823. Dos membros eleitos Poupino Caldas e Félix Merme, representantes de Cuiabá, não tomaram posse em Vila Bela, atitude vista por Correa Filho como manifestação de protesto “[...] Cuiabá apenas protestou pelo silêncio, não indo os seus representantes ocuparem os lugares para os quais foram eleitos”.2739 Em 25 de março de 1824, entrou em vigor a Constituição do Império do Brasil. As Capitanias passaram à denominação de províncias, sendo os presidentes nomeados pelo Imperador, porém, o Governo Provisório regeu Mato Grosso até 1825, quando assumiu o governo da Província José Saturnino da Costa pereira. Como em todo território nacional, Mato Grosso também recebeu os reflexos do processo de consolidação da independência nacional. Aos olhos da elite local a formação das Juntas Governativas representava, a princípio, tomar para si as rédeas do poder de decisão na Província. Contudo, a falta de objetivo comum conduziu Cuiabá e Vila Bela à formação de suas próprias Juntas. Essas medidas nada acrescentaram ao desenvolvimento da Província, uma vez que, além dos desajustes políticos, a crise econômica que se arrastou durante o capitanato ofereceu-se como herança aos governos que se tentaram erigir.

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CORREA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Rio de Janeiro: INL, 1996, p. 239.

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O ROL DE CULPADOS E A PRÁTICA DA JUSTIÇA: DELITOS, DEVASSAS E QUERELAS NA VILA DO RIBEIRÃO DO CARMO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII Maria Gabriela Souza de Oliveira2740 Segundo Antonio Manuel Hespanha, a justiça no Antigo Regime pode ser entendida como “é um campo de atividade do poder”. É a primeira virtude do príncipe através da qual ele confere a cada um o que lhe cabe. Inserida numa sociedade em que as circunstâncias sociais eram regidas por direitos adquiridos, uma vez consolidados, somente através da justiça poderiam ser alterados. 2741 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa define o Juízo Criminal como o espaço onde se tratam as causas crimes, ou seja, “as questões acerca de fatos que ofendem a paz pública, ou os direitos dos cidadãos.” 2742 As causas criminais podiam ser públicas ou privadas. As causas “públicas” podiam ser intentadas por qualquer um e as “particulares” somente pela parte ofendida. Em nota de rodapé, o jurista aponta onde são descritos nas Ordenações Filipinas os objetos caracterizados como crimes públicos e particulares. 2743 “O direito penal das monarquias corporativas correspondia ao sistema político que as enquadrava.”2744 É desta forma que Hespanha apresenta a discussão acerca do direito penal e sua real efetivação na sociedade do Antigo Regime. Apontando a existência de uma pluralidade de formas, além da Justiça oficial, para disciplinar a sociedade, o autor afirma que estes mecanismos variavam dos meios privados, como os domésticos, aos extraterrenos. Havia variados mecanismos para monitorar comportamentos desviantes, tornando a punição penal subsidiária de outras formas de controle. No âmbito do juízo criminal, as devassas e querelas eram tipos processuais comuns no Antigo Regime e no espaço colonial. As devassas2745 constituíam-se na inquirição de testemunhas a respeito de algum crime. Bluteau as define como “ato jurídico em que por testemunha se toma a informação de algum caso de crime. Este ato faz público e manifesto o crime e o autor dele. É um ato de inquirição.”2746

2740

Doutoranda em História ,Universidade Federal de Ouro Preto, email: [email protected] HESPANHA, António Manuel. “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução.” In: HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993 p. 385. 2742 SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal. 3ª edição aumentada e acrescentada com hum repertorio dos lugares das Leis Extravagantes, Regimentos, Alvarás, Decretos, Assentos, e resoluções régias promulgadas sobre matérias criminais antes e depois das Compilações das Ordenações, por ordem chronologica, e com hum índice dos regimentos por ordem alfabética. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1820. p. 18. 2743 Os crimes públicos são aqueles definidos pelas Ordenações no item em que se definem os casos passíveis de querelas (liv. 5, tit. 117) tratados oportunamente; e os crimes particulares são o adultério, feridas ou nódoas por “rixa nova de que não resulta lesão ou deformidade, injúria,” arrancamento de marcos ou corte de arvore silvestre, “furto módico, que não chega a trezentos réis, exceto se acompanha violência ou é feito na estrada ou no ermo.” SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal... p. 18-19. 2744 HESPANHA, Antonio Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012. p. 131. 2745 “Mortes, forças de mulheres que se queixarem que dormiram com elas carnalmente a força, fogos postos, moeda falsa, incêndios propositais, sobre fugida de presos, quebrantamento de cadeia, resistência, ofensa da Justiça, cárcere privado, furto de valia de marco de prata e dai pra cima, arrancamento de arma em igreja ou procissão, ferimentos feitos à noite seja a ferida grande ou pequena; ferida no rosto ou aleijada de algum membro, ou sendo ferida com besta, espingarda, ou arcabuz seja de dia ou de noite e das assuadas.” Ordenações Filipinas, liv. 1. tit.65-68 dos Juízes Ordinários e de Fora; §31 – Casos de devassa. Porém, se fosse requerido pelas partes, furtos de menor valor “(contanto que não desçam da valia de 200 réis) que tirem sobre isso inquirição, tirá-la-ão dando primeiro juramento dos Santos Evangelhos á parte se se queixa bem e verdadeiramente e se lhe foi feito furto juntamente duzentos reis ou dai pra cima ou sua valia. E jurando que sim, tirarão somente ate oito testemunhas a custa das partes que requerem.” p. 139-141. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p144.htm. 2741

872 ISSN 2358-4912 A querela2747 “é a delação que alguém faz em juízo competente de algum fato criminoso por interesse particular ou público”2748; eram dadas pelas partes ofendidas e não por procuradores.2749 Como se viu acima, as devassas diziam respeito a forma de descoberta de delitos. As querelas, por sua vez, envolviam a delação. Bluteau define as últimas como “queixa perante o juiz”, que “deve ser assinada pela parte que a der e pelo julgador”.2750 Dessa forma, o querelante devia apresentar ao juiz petição na qual constassem o nome, o ofício, a ocupação e a moradia do acusado, o tipo de delito cometido, e a hora e o lugar em que ocorrera. As querelas deviam acontecer no intervalo de até um ano depois do ocorrido e não podiam ultrapassar os vinte dias para a apresentação de testemunhas e provas desde sua abertura. 2751 Após efetuar as diligências relativas à devassa ou querela, o juiz encontrando provas ou indícios suficientes contra uma pessoa, ele a pronunciava à prisão e livramento. A pronúncia é a sentença que o juiz forma como resultado de uma devassa ou querela, declarando o réu suspeito do delito e incluindoo no Rol dos Culpados. A determinação para incluir ou não um nome no rol provinha da etapa investigativa da devassa ou da querela. A estrutura dos procedimentos jurídicos no âmbito criminal revela a fonte em questão como um divisor de etapas. Os nomes lá listados já haviam passado por uma etapa de denúncia, investigação e inquirição de testemunhas, sendo considerados culpados pela justiça; tiveram, então, o nome lançado no livro. A partir dai, o réu era pronunciado e começava a etapa do livramento. Durante todo o processo, o nome se mantinha no livro de culpas, só sendo retirado se o culpado conseguisse a liberdade; caso contrário, lá permanecia até findar a pena recebida. O “Rol dos culpados” era mantido pelo escrivão e era obrigatória a existência do livro nos cartórios. Nele eram lançados os nomes dos culpados pela justiça, como também informações sobre sua condição, qualidade e moradia, sobre o crime cometido e o processo pelo qual respondiam (devassas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2746

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez& latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1. p. 188. 2747 “Quando for querelado de algum que, sendo cristão (ora antes fosse judeu ou mouro, ora nascesse cristão), se tornou depois a fazer judeu ou mouro, ou de outra seita que arrenegou ou pesou, ou por outra maneira pôs indevidamente a boca em Nosso Senhor ou nos santos, que é feiticeiro, sorteiro, adivinhador, que cometeu crime de lesa-majestade, que é roubador de estradas que matou alguém ou dormiu com mulher de ordem, cometeu pecado de incesto, forçou alguma mulher, é sodomítico, alcoviteiro, falsário, pôs fogo em pães e vinhas, ou em outras coisas, que é ladrão de cem réis ou daí para cima, que feriu seu pai ou mãe, fez assuada, quebrantou cadeia, saltou por cima do muro estando a cidade ou vila cercada ou guardada ou sendo carcereiro, lhe fugiram presos, fez moeda falsa ou a despendeu acinte ou cerceou verdadeira, disse testemunho falso ou o fez dizer, que casou ou dormiu com criada daquele com que vive ou casou com duas mulheres, sendo ambas vivas, ou mulher que casou com dois maridos, sendo ambos vivos ou, sendo nosso oficial, dormiu com mulher perante ele requerida, que sendo infiel dormiu com alguma cristã ou cristão que dormiu com alguma infiel, que é barregueiro casado, barregã de homem casado, barregueiro cortesão, barregã de homem cortesão, que é manceba de clérigo ou outro religioso, ou é rufião, que sendo degredado não cumpriu o degredo, que ajudou a fugir cativos, levou coisas defesas para terra de infiéis sem nossa licença, ou foi ou mandou resgatar à cidade de São Jorge de Mina ou às partes e mares de Guiné, que arrancou uma arma na Corte ou em procissão, ou na igreja, que tirou com besta ou espingarda, posto que não ferisse, que resistiu ou desobedeceu à Justiça, fez cárcere privado, tolheu algum alguém preso à Justiça, que sendo preso fugiu da cadeia, sendo julgador deu o preso sobre fiança antes da sentença final, de que não haja apelação nem agravo, ou se disser que cometeu algum caso no qual é posta certa pena de açoites ou degredo temporal para fora de certo lugar ou daí para cima por alguma nossa ordenação a quem o tal caso cometer, porque nestes cada povo pode querelar, não sendo inimigo.” Ordenações Filipinas: livro V. Em que casos se devem receber querelas. Organização: Silvia Hunold Lara - São Paulo: Companhia das Letras, 1999.p. 383. 2748 Idem. Tomo II. p. 413. 2749 CABRAL, Antonio Vanguerve. Pratica judicial, muyto util e necessária para os que principiao os officios de julgar e advogar, & para todos os que solicitao causas nos auditorios de hum, & outro foro, tirada de vários autores praticos, e dos estilos mais praticados nos auditórios, Coimbra, Officina de Ferreyra, 1730. p. 45. 2750 Ordenações Filipinas: livro V. Organização: Silvia Hunold Lara - São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 383. 2751 SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras linhas sobre o processo criminal... p. 43.

873 ISSN 2358-4912 ou querelas). A Novíssima prática judicial ou regimento dos escrivães de primeira instância2752, de Innocêncio de Sousa Duarte, descreve sua estrutura

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ordem alfabética, que deve conter os nomes de todos os pronunciados com as declarações de idade, naturalidade, filiação, sinais e mais circunstancias para se verificar a todo o tempo a identidade deles, designação da natureza dos crimes, épocas em que se cometeram, data dos despachos de pronúncia, condenações, absolvições ou indultos que os culpados tiverem. Esse livro deve ser 2753 encadernado, com termo de abertura e encerramento, e numerado pelo juiz.

As “cotas” são entradas localizadas geralmente no canto esquerdo do livro, antes do registro, eram anotados os procedimentos legais pelos quais o réu passava ou também situações diversas que influenciavam no andamento do juízo, tais como “fuga”, “ausente”, “morto”, “apelado”, “livre”, “preso”, “seguro” ou “encaminhado à Junta da Justiça”. Assim, todo este movimento da justiça e do réu nos permite acompanhar os caminhos percorridos pelo culpado até o juízo. Desta forma, o rol nos apresenta as etapas judiciais vividas pelo réu, permitindo visualizar toda a trajetória até o livramento ou condenação. A justiça, bem como a violência e a criminalidade, são temas caros à historiografia recente. Os aparatos administrativos e judiciais são objeto de estudos hoje quando se trata dos mecanismos de controle e organização social no século XVIII. A produção historiográfica tem trazido muitas contribuições acerca da administração colonial e da justiça, destacando temas como as revoltas coletivas, os embates entre autoridades, os conflitos cotidianos nas diversas esferas sociais e as tentativas de controle e normatização. De maneira sucinta, para Laura de Mello e Souza a justiça foi uma das facetas do poder que contribuiu de forma decisiva para a manutenção do sistema colonial.2754 Contudo, a justiça não logrou o controle total da capitania. Espaços de ineficiência do poder no tocante à normatização e ao controle social estiveram sempre evolvidos com infrações, violação das normas e cooptação de autoridades. 2755 Os anos compreendidos entre 1707 e 1740 foram um período crítico para o governo das Minas.2756 A Coroa, para ampliar o mando nas áreas mineradoras, elevou vários arraiais à condição de vila, disseminando, desta forma, uma máquina administrativa que exerceria maior controle em diversas concentrações populacionais de Minas Gerais.2757 A justiça foi fundamental para a manutenção do sistema colonial, porém, não aconteceu de maneira homogênea. Para Laura de Mello e Souza, a reconhecida força da justiça se viu às voltas com a ineficiência do poder em normatizar e controlar as populações que estavam envolvidas com o universo da transgressão, da cooptação de autoridades e violação das normas.2758 Em direção similar, Álvaro de Araújo Antunes, estudando a justiça em Mariana, observa que na segunda metade do século XVIII o Estado, apesar dos esforços de centralização política, teria alcançado um domínio limitado em diversas áreas, incluindo a própria administração da justiça.2759 O autor contudo, não nega a importância da justiça como um dos principais elementos de “sociogênese” 2752

DUARTE, Innocencio Sousa. Novíssima Prática Judicial ou Regimento dos Escrivães de Primeira instância. Porto: em casa de Cruz Coutinho – Editor, 1863. Vale destacar que este manual pertence a segunda metade do século XIX, porém, poucas são as informações localizadas sobre este tipo de documento, o que justifica a inserção desta no texto. 2753 DUARTE, Innocencio Sousa. op. cit. p. 167. 2754 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. p. 20. 2755 SOUZA, Laura de Mello. Norma e Conflito: Aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.p. 80. 2756 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: op. cit. p.89. 2757 SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: A pobreza mineira no século XVIII. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2004. p. 34. 2758 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito. op. cit.p. 86. 2759 ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP, Campinas, p.244.

874 ISSN 2358-4912 do Estado. Para Antunes, a justiça e os direitos oficiais surgiam com a instituição do Estado, ao mesmo tempo constituíram um alicerce, “servindo de mecanismo de ordenação social.”2760 Vários foram os mecanismos implantados pela Coroa para controle, ordenamento e administração do espaço mineiro. Entretanto, esse aparato não logrou sucesso em toda sua extensão, dando margem para o aparecimento da violência e da criminalidade, e para a formação de poderes paralelos, inclusive dentro da própria estrutura administrativa. Não obstante, a justiça tinha como função primária o fortalecimento do poder real, sendo um dos principais instrumentos de poder no Antigo Regime, sendo constituída por um grupo de oficiais deviam fazer valer a lei. Isto é, através da justiça oficial e da lei, o rei buscava regular as ações dos súditos.2761 Sob as bases de um estado corporativo, o rei delegava funções a oficiais escolhidos diretamente por ele para atuarem e fazerem valer as normas do Reino e nas longínquas, mas fundamentais, terras de Minas Gerais. A tabela 1 apresenta os crimes encontrados no livro do rol de culpados e os respectivos tipos de processo a que estão relacionados. Localizamos no rol 422 culpados por devassas, abarcando grande variedade de crimes durante todo o período. Há no total, 259 devassas e 137 querelas, dentro desta contagem, há culpados por devassas individuais e coletivas, que indicam não somente o perfil do universo criminal, como também a maior ocorrência dos delitos no período entre 1731 e 1740. A totalidade de culpados por devassas mostra que os delitos que predominaram envolveram tiros (14), furto e abalroadas (20), furto (35), ferimento (39), resistência aos oficiais da justiça (39) e morte (199). Observadas as Ordenações Filipinas2762, estes crimes se enquadram nos casos de delitos que atentavam contra a ordem pública e contra o Estado. Em menor quantidade, os crimes de “assuada”, “defloramento”, “ferimentos”, “ferimento; furto”, “ferimento; roubo”, “furto”, “morte”, “pancadas; nódoas e pisaduras”, “tiros” também foram alvo das ações judiciais. As querelas, por sua vez, envolvem informações lacunares que impossibilitam compreender as razões das culpas dos indivíduos - diferentemente do que ocorre com as devassas, que tiveram maior atenção do escrivão quando registradas. As querelas levantadas correspondem a um número pequeno de culpados (171 querelados), além de poucas delas indicarem o tipo de delito a que estão associados; o que se revela são crimes contra a moral, como o defloramento, ou contra os bens, como os furtos e roubos. Ao observar os processos criminais referentes ao século XVIII arrolados no Arquivo Histórico da Casa Setecentista (AHCS), percebemos que boa parte das querelas localizadas comportam crimes de injúria e injúria atroz, delitos normalmente relacionados às agressões verbais e físicas entre indivíduos, apresentando como pano de fundo a questão patrimonial e a da honra. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 1: Tipologia dos crimes e processos abertos por décadas (1711 – 1740) 2763 2760

ANTUNES, Álvaro de Araújo. Em meio às cutiladas e triagas: leis e justiça dos sábios e dos rústicos em Vila Rica e Mariana (1750-1808) I Simpósio de História Impérios e Lugares no Brasil - Território, Conflito e Identidade. UFOP, ICHS - Mariana – MG, 2007. p.2. 2761 ANTUNES, Álvaro de Araújo. Administração da Justiça nas Minas Setecentistas. In: História de Minas Gerais – As Minas Setecentistas vol.1. Belo Horizonte: Autêntica: Companhia do Tempo, 2007. p.170. 2762 Casos de devassas: “mortes, forças de mulheres que se queixarem que dormiram com elas carnalmente a força, fogos postos, moeda falsa, incêndios propositais, sobre fugida de presos, quebrantamento de cadeia, resistência, ofensa da Justiça, cárcere privado, furto de valia de marco de prata e dai pra cima, arrancamento de arma em igreja ou procissão, ferimentos feitos à noite seja a ferida grande ou pequena; ferida no rosto ou aleijada de algum membro, ou sendo ferida com besta, espingarda, ou arcabuz seja de dia ou de noite e das assuadas.” Porém, se fosse requerido pelas partes, furtos de menor valor “(contanto que não desçam da valia de 200 réis) que tirem sobre isso inquirição, tirá-la-ão dando primeiro juramento dos Santos Evangelhos á parte se se queixa bem e verdadeiramente e se lhe foi feito furto juntamente duzentos reis ou dai pra cima ou sua valia. E jurando que sim, tirarão somente ate oito testemunhas a custa das partes que requerem.” Ordenações Filipinas, liv. 1. tit.6568: Dos Juízes Ordinários e de Fora; §31. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p144.htm. 2763 Outros: Apagado (1 – devassa); Defloramento (1 – querela); Descaminho da fazenda (1 – devassa); Ferimento; furto; incêndio (1 – devassa); Ferimento; pancadas (1 – devassa); Ferimento; tiro (1 – devassa); Furto; Abalroadas; Morte (1 – devassa); Furto; tiro (1 – devassa); Pancadas; Nódoas e Pisaduras (1 – devassa); venda proibida (1 – devassa). Foram suprimidas também 3 colunas: Devassas Janeirinhas (4); Não Consta (NC) o tipo de processo (3); Devassa com data apagada (1). As devassas Janeirinhas culparam 4 pessoas, porém os crimes cometidos por elas não está explicitado na fonte. Há na documentação pouquíssimos lançamentos para a década de 1741 a 1750,

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ISSN 2358-4912 Devassas Tipo de processo/Tipo de 11 21 31 - crime 40 20 30 Açoite 0 0 3 Assuada 2 0 0 0 4 0 Cutiladas Desaparecimento 0 0 3 Ferimento 1 6 30 Ferimento; 0 0 4 Assuada Ferimento; Furto 3 0 0 Ferimento; Roubo 6 0 0 Fuga de pessoas 2 7 7 da Cadeia 0 0 35 Furto Furto; Abalroadas 0 0 20 Furto; Bordoadas 0 0 6 Furto; Roubo 0 1 1 2 0 0 Levante 2 0 0 Levante de 1713 Morte 17 47 119 Pancadas 1 0 0 Resistência aos 0 3 36 oficiais de Justiça Roubo 0 0 2 Tiros 0 0 14 2 2 2 NC Outros Total 40 70 297

Querelas 11 21 31 NC Total - - 20 30 40 0 3 0 0 0 0 2 0 0 2 1 5 0 0 0 0 3 0 0 0 0 39 0 1 22

Total 11 21 Total - 20 30 0 0 0 2 2 0 0 0 4 0 0 0 23 1 7

3 2 0 3 52

0 0 1 0 0

3 4 5 3 62

0

4

0

0

0

0

0

0

4

0

4

0 0

3 6

0 2

0 0

1 0

1 2

3 8

0 0

1 0

0 0

4 8

0

18

0

0

0

0

2

7

7

0

18

0 0 0 0 0 0 4 0

35 20 6 2 2 2 199 1

0 0 0 0 0 0 3 0

2 0 0 0 0 0 4 0

13 0 0 0 0 0 0 3

15 0 0 0 0 0 7 3

0 0 0 0 2 2 20 1

2 0 0 1 0 0 51 0

48 20 6 1 0 0 120 3

0 0 0 0 0 0 4 0

50 20 6 2 2 2 207 4

0

39

0

0

0

0

0

3

36

0

39

0 2 1

2 16 7

0 0 0 0 0 0 1 1 24 57 33 115

2 15 37

0 2 1

8

422

29 64 76 171

2 17 128 10 600

0 0 0 0 28 61 71

31 NC Total 40

136 369 8

Fonte: Rol dos Culpados - AHCS

É interessante perceber que o número de culpados por devassa é muito maior do que por querela. A década de 1731-1740 apresenta expressivo número de culpados, tanto pelas devassas quanto pelas querelas, totalizando 365. O que merece ser destacado é a explosão de culpados por devassa no referido período. Os dados apresentados apontam para algumas situações interessantes acerca da estrutura judicial de Ribeirão do Carmo e seu termo. De acordo com Marcos Magalhães Aguiar, até o final da década de 1720, Vila Rica e Mariana possuíam dois tabeliães, um para cada termo. O autor informa que nas décadas de 1730 e 1740 novos tabelionatos foram introduzidos, somando-se, no fim do século XVIII, três em Vila Rica e dois em Mariana. Esse dado aponta alguns caminhos. O primeiro deles refere-se á possível consolidação da possível estrutura administrativa; a outra indica uma jurisdicionalização dos conflitos, já que, em 1725, Vila Rica solicita à Coroa a criação dos cargos de escrivão do crime e tabelião do judicial, pois “experimentam notável prejuízo pela pouca expedição que os escrivães dão números desconsiderados na análise pois indicam somente 15 culpados por devassas e 2 culpados por querelas. Acredita-se que os registros pertencentes a este período foram feitos em um novo livro.

876 ISSN 2358-4912 aos seus papéis”. 2764 Aguiar ainda afirma que, em Mariana, no mesmo ano, somente um tabelião concentrava a expedição dos processos-crime,2765 corroborando a ideia de saturação dos cargos. A “disfuncionalidade” do corpo de agentes judiciais levou à dificuldade de manutenção dos equilíbrios sociais, caracterizando as Minas do século XVIII como um espaço em que a criminalidade consistia em elemento decisivo do cotidiano. 2766 Os dados apresentados nos levam a perceber intensificação das ações judiciais, principalmente na década de 1730, com presença expressiva de crimes de violência física e de ordem pública refletindo o momento de “introdução das estruturas políticas, judiciais e administrativas que delinearam os traços gerais da administração portuguesa em Minas.” 2767 Ao observar os registros do rol de culpados da Vila do Ribeirão do Carmo, vimos que a ação da Justiça, em sua incumbência de estabelecer o controle e o ordenamento numa sociedade em formação em que os aparatos administrativos e judiciais começavam a se instituir lidou com indivíduos e crimes dos mais variados tipos. Partindo dos dados apresentados e da concepção de que as devassas serviam para encontrar os culpados de um crime, é nítida a presença das ações frente aos crimes que ameaçavam a ordem, constatando a tentativa da Justiça de se fazer presente na mediação dos conflitos. Assim, dos 600 nomes registrados no livro, 70,3% foram culpados por devassa no período de 1711 a 1740, evidenciando uma atividade judicial intensa, por parte dos agentes públicos, num momento de implementação do aparelho administrativo e jurídico Em contrapartida, 28,5% dos culpados foram incriminados em autos promovidos pela iniciativa de particulares, as querelas. O rol dos culpados é uma fonte que abre possibilidades de análise de grande importância não só para a compreensão do aparelho jurídico das Minas setecentistas, como também das práticas e formas de atuação diante de uma sociedade em formação. Até então inexplorada, esta documentação do termo da Vila do Ribeirão do Carmo é de extremo valor para entendermos com mais profundidade o funcionamento da Justiça no que diz respeito à criminalidade. O que há registrado neste livro permite que se perceba um pouco mais sobre o momento de solidificação das estruturas administrativas e judiciais, quando observamos, de um lado, o número de ações que partiram da própria Justiça, o público atingido e a tipologia criminal. Ao longo desta pesquisa, a reflexão sobre a criminalidade, a ação da justiça e o perfil dos criminosos foi constante. Os culpados se constituíram, portanto, como ponto de partida para a investigação sobre quem eram, o lugar na sociedade que ocupavam e a tipologia criminal em que estavam evolvidos. Todas estas informações foram de extrema importância para compreender as formas com que a Justiça agiu num período marcado por revoltas e violência cotidiana. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras Minas Gerais: Uma história da diáspora africana no Brasil colonial. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História FFLCH/USP, São Paulo. ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP, Campinas. ANTUNES, Álvaro de Araújo. Em meio às cutiladas e triagas: leis e justiça dos sábios e dos rústicos em Vila Rica e Mariana (1750-1808) I Simpósio de História Impérios e Lugares no Brasil - Território, Conflito e Identidade. UFOP, ICHS Mariana – MG, 2007. ANTUNES, Álvaro de Araújo. Administração da Justiça nas Minas Setecentistas. In: História de Minas Gerais – As Minas Setecentistas vol.1. Belo Horizonte: Autêntica: Companhia do Tempo, 2007.

2764

AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras Minas Gerais: Uma história da diáspora africana no Brasil colonial. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História FFLCH/USP, São Paulo. p. 79- 85. 2765 Idem. 2766 ANTUNES, Álvaro de Araújo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UNICAMP, Campinas, p. 47. 2767 AGUIAR, op. cit. p. 50.

877 ISSN 2358-4912 HESPANHA, António Manuel. “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução.” In: HESPANHA, António Manuel. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. HESPANHA, Antonio Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012.

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LARA, Silvia Hunold (org) Ordenações Filipinas: livro V. Organização: Silvia Hunold Lara - São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SOUZA, Laura de Mello. Norma e Conflito: Aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: A pobreza mineira no século XVIII. 4ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2004.

Fontes impressas: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez& latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1. CABRAL, Antonio Vanguerve. Pratica judicial, muyto util e necessária para os que principiao os officios de julgar e advogar, & para todos os que solicitao causas nos auditorios de hum, & outro foro, tirada de vários autores praticos, e dos estilos mais praticados nos auditórios, Coimbra, Officina de Ferreyra, 1730. DUARTE, Innocencio Sousa. Novíssima Prática Judicial ou Regimento dos Escrivães de Primeira instância. Porto: em casa de Cruz Coutinho – Editor, 1863. ORDENAÇÕES FILIPINAS. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l1p144.htm. SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal. 3ª edição aumentada e acrescentada com hum repertorio dos lugares das Leis Extravagantes, Regimentos, Alvarás, Decretos, Assentos, e resoluções régias promulgadas sobre matérias criminais antes e depois das Compilações das Ordenações, por ordem chronologica, e com hum índice dos regimentos por ordem alfabética. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1820. Fonte Manuscrita Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Mariana Rol dos Culpados- 1º livro: 1711 – 1741: 2º ofício – Caixa 69.

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ENTRE ARRAIAIS E ALDEAMENTOS: OS MILITARES NO SERTÃO DE PIRANHAS E PIANCÓ DA CAPITANIA DA PARAÍBA EM FINS DO SÉCULO XVII E INÍCIO DO SÉCULO XIII Maria Simone Morais Soares2768 Introdução É consenso entre os pesquisadores que se dedicaram a síntese da história da Paraíba, tais como Joffily (1977 [1892]), Pinto (1977 [1908]), Machado (1977 [1912]), Mariz (1994 [1922]) e Almeida (1978), que a partir da segunda metade do século XVII, especificamente com a expulsão dos holandeses em 1654, inicia-se na então Capitania da Paraíba a colonização de seus “Sertões”, espaços compreendidos pelo colonizador como áreas longínqua, desconhecida, habitada por “Bárbaros”, que se opunha ao “Litoral”, tido como espaço conhecido, colonizado ou em processo de colonização (AMADO, 1995, p. 145). O Sertão ora estudado teve por denominação nos documentos dos séculos XVII e XVIII de “Sertão de Piranhas e Piancó”, devido à sua localização enquanto espaço banhado pelo rio Piranhas e seus afluentes, cujo principal é o rio Piancó. Outros afluentes também se destacavam dando nome a áreas inseridas no contexto espacial aqui analisado: Sertão do Rio do Peixe, Sertão de Espinharas, Sertão de Sabugy e Sertão do Seridó2769. O processo de ocupação desse Sertão de Piranhas e Piancó foi marcado por conflitos, que ficaram conhecidos na documentação do período e na historiografia de “Guerra dos Bárbaros”, embates entre “[...] os colonos e os povos nativos do grupo denominado Tapuia, inserida no contexto da expansão da pecuária nos sertões nordestinos durante a segunda metade do século XVII e inicio do século XVIII” (PIRES, 1990, p.17). O desses conflitos era a limpeza e o controle dos povos indígenas para a posterior ocupação do território pela pecuária. A estratégia utilizada pela Coroa portuguesa para resolvê-los, de modo a garantir os interesses de todos esses agentes, foi implementar a “Guerra Justa”, a qual, em linhas gerais, previa o cativeiro e o extermínio para os “índios bárbaros” e o aldeamento para os “índios mansos”. As nações que aderiam ao processo de colonização, seja se entregando, seja até contribuindo com os colonos, eram aldeadas em missões religiosas. Para que tais estratégias fossem praticadas, era lançado o corpo militar para os sertões, sendo criados vários cargos de ordenanças e doadas patentes militares e sua atuação se materializava em dois tipos de núcleos de aglomeração de população: um de ordem militar, os arraiais, e outro de ordem religiosa, os aldeamentos. O objetivo do presente artigo é discorrer sobre a participação dos militares na formação dos arraiais e aldeamentos do Sertão de Piranhas e Piancó da Capitania da Paraíbaem fins do século XVII e início do século XVIII, tendo em vista a sua espacialização através de uma cartografia retrospectiva. O trabalho é resultante da pesquisa de mestrado desenvolvida entre 2010 e 2012 no âmbito do PPGAU – UFPB2770, cujo objetivo estava voltado para a compreensão da formação e a estruturação da rede urbana no Sertão de Piranhas e Piancó na Capitania da Paraíba durante o século XVIII. Teve por base uma revisão historiográfica do tema e a pesquisa documental. Além da introdução e das considerações finais, o artigo está dividido em duas partes: na primeira, discute-se a formação dos arraiais; na segunda, trata-se da formação dos aldeamentos. Os Arraias

2768

Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU / UFBA. Email: [email protected] 2769 A utilização dos nomes dos rios como delimitador está relacionada ao fato de que eles foram os vetores mais propícios à ocupação, uma vez que o elemento água é essencial à existência humana, assim, essa associação era muito comum no Período Colonial. 2770 Pesquisa financiada pelo Programa de Bolsas da Capes.

879 ISSN 2358-4912 No século XVII e XVIII, o vocábulo arraial significava, conforme o dicionário de Rafael Bluteau, “[...] um alojamento de hum exército na campanha [...]” (1713, p.544). Era, assim, um acampamento militar, para o qual o Estado conduzia suas tropas em momentos de conflitos. Mas, nem sempre tinha esse caráter. Na região de Minas Gerais, por exemplo, apresentava-se como acampamento para a população que se estabelecia no garimpo do ouro. O surgimento dos arraiais no Sertão de Piranhas e Piancó está associado, como já mencionado, à Guerra dos Bárbaros, mais especificamente aos conflitos que ficaram conhecidos como Guerra do Açu. Esses conflitos começaram em fins do século XVII e, conforme Pires (1990: 65), o início progredia a favor dos povos indígenas, pelo fato de serem muitos e conhecerem melhor a área, o que fez com que os colonos começassem “[...] a pressionar as autoridades para que preparem expedições militares contra esses povos." Tal pressão resultou em esforços por parte do Estado em enviar expedições militares para reprimir os esforços de resistência indígena, como assim é exposto em trabalhos que se dedicaram ao tema, a exemplo de Taunay (1936), Pires (1990), Medeiros (2000), Puntoni (2002) e Silva (2010). As expedições militares apresentavam topas de natureza diversa, sendo elas:

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[...] tropa burocrática, ou seja, o exército profissional português, conhecido também como tropa regular ou tropa de linha; as tropas institucionais – milícias e ordenanças. Essas ultimas são classificadas como institucionais devido ao fato de serem organizadas e sancionadas pela Coroa,mas, de não serem profissionais, nem pagas, nem permanentes. Contrapõem-se, em geral, tanto às tropas burocráticas quanto às tropas irregulares; nesta última categoria estando classificados todos os tipos de tropa de cunho privado, organizadas à revelia do Estado,mas sob a órbita da sociedade colonial, como as tropas dos senhores de engenho e as bandeiras. (SILVA,

2010: 247) Essas tropas se organizavam em terços, burocráticos, institucionais ou privados, que eram chefiados por um Mestre-de-campo, que "comandavam alguns Capitães da Infantaria, seus soldados e uma certa quantidade de índios armados, retirados das aldeias missionárias. Era comum, também, a participação de criminosos e degradados nesses terços, pois recebiam perdão do crime se fossem lutar contra os povos indígenas [...]. (Pires, 1990, p.28) Os terços burocráticos eram, portanto, formados pelo comando de um mestre-de-campo de tropas burocráticas e organizavam-se a partir de Olinda e Recife. Nesta classificação, no espaço estudado, atuaram os terços de Manoel Soares de Abreu e Antônio de Albuquerque Maranhão. Por sua vez, os terços institucionais eram chefiados por um mestre-de-campo de milícias ou ordenanças, sendo exemplos os terços dos Henrique2771, o de Jorge Luis Soares e as infantarias de ordenanças de Antônio de Oliveira Ledo. Em relação aos terços privados, entre os quais se destacaram os bandeirantes paulistas, nos conflitos da Guerra do Açu foram chefiados por Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso e Morais Navarro, e enviados pelo Governo Geral do Brasil, sendo considerados experientes no assunto, "por possuir um estilo militar perfeitamente adaptado às condições ecológicas do sertão [...] Sabiam manejar a situação de carência alimentar e eram destros para a navegação nos matos fechados, nos cerrados ou caatingas." (PUNTONI, 2002:196) O primeiro acontecimento que marca a presença dos militares ocorreu em 1687, tratou-se da fundação Arraial de Açu no Rio Grande, por Manoel Soares de Abreu, às margens do Rio Açu, onde hoje está localizada a Cidade de mesmo nome2772. Em seguida, ainda no mesmo ano, são instalados os arraiais de Jaguaribe e de Piranhas. O primeiro localizou-se onde hoje é a Cidade de Icó, no Ceará, na confluência do Rio Salgado com o Rio Jaguaribe, e, embora sempre haja referência a ele, os documentos não informam quem estava no seu comando entre os anos de 1687 e 1690, quando o Paulista Matias Cardoso nele se instala. O segundo estava localizado na Capitania da Paraíba, onde, atualmente, encontra-se a Cidade de Pombal, na confluência do Rio Piancó com o Rio Piranhas, e esteve, até 1690, sob a jurisdição de Antonio de Albuquerque Câmara. Além dos arraiais citados, outro ponto militar foi fundado na ribeira do Seridó chamado Casa Forte do Cuó, sobre o qual hoje está instalada a Cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte. A referida casa 2771

Tropa de negros livres formada durante as guerras holandesas por Henrique Dias. (Silva, 2010, p. 91) Antes da fundação do Arraial, já havia sido feita um expedição ao local, organizada na Cidade de Natal e comandada por Manoel Prado Leão, conforme exposto na Tabela 01.

2772

880 ISSN 2358-4912 forte foi fundada antes mesmo dos arraiais de Açu, Piranhas e Jaguaribe, como apontam alguns documentos do Cartório de Pombal, levantados por Macedo (2004), que se referem a ela já em 1683. Este foi um ponto estratégico nos conflitos, pois em 1687, Taunay (1936:36) registra uma expedição burocrática a ela enviada, comandada por Antônio de Albuquerque Câmara, a partir de Olinda em direção ao Açu, a fim de aumentar as forças militares no conflito. No mesmo ano de 1687, Antônio de Albuquerque Câmara sai da Casa Forte do Cuó, deixando nela instalada seu Sargento-mor, partindo para a ribeira de Piranhas, onde funda uma Estacada2773, a qual, segundo Horácio de Almeida (1966), estava localizada onde hoje é a Cidade de Pombal, na ribeira de Piancó. Tratava-se, pois, da fundação do Arraial de Piranhas. A escolha do local decorreu do seu caráter de ponto estratégico para o combate contra povos indígenas, por estar no entroncamento dos dois principais rios da região, Piranhas e Piancó. Antônio de Albuquerque Câmara ficou instalado no Arraial das Piranhas até 1690, provavelmente voltando para seu antigo posto na Casa Forte do Cuó, pois um documento de 1698 autoriza sua permanência neste local (MACEDO, 2004:06). Com sua saída, o Arraial de Piranhas fica sendo comandado por Constantino de Oliveira Ledo, que foi nomeado, em 1688, para o posto de Capitão-mor das Fronteiras de Piranhas, Cariris e Piancó, em substituição de seu tio, Antonio de Oliveira Ledo. Na Capitania da Paraíba, além do Arraial de Piranhas, havia outro arraial comandado pelo mestrede-campo paulista Domingos Jorge Velho, que chegou a Açu em 1688 e partiu para o rio Piranhas em 1689. A localização dele é imprecisa, contudo, Machado (1977) diz que foi chamado de Arraial da Formiga, mas não mostra a fonte de tal informação. Por outro lado, Almeida (1966) afirma que, embora os documentos oficiais informem que foi instalado no Rio Piranhas, por essa expressão “[...] entendiase todo o alto sertão da Paraíba, das Espinharas ao Rio do Peixe e parte do Rio Grande do norte. A geografia da época estava ainda por definir-se. Há, contudo que admiti-lo no território rio-grandense.” (1966, p. 56) Essa afirmação de Almeida (1966) pode ser questionada pela própria documentação por ele utilizada, visto que nos documentos está expresso que o quartel localizava-se no “rio” Piranhas e não no “Sertão” de Piranhas. Isso demonstra o fato de que este arraial tenha se instalado na margem do referido rio. Há também outro fato que merece ser exposto: Domingos Jorge Velho parece ter sido o único Paulista a instalar ponto fixo no Sertão de Piranhas e, nele, verifica-se a presença de um riacho, que deságua no Rio Piranhas, chamado Riacho do Paulista, onde foi identificado um arraial chamado Queimado. É bem possível que aí tenha se instalado o paulista, porém não há maiores indícios esclarecedores. A representação cartográfica da síntese das informações sobre as expedições e formação dos arraiais está exposta na Figura 01. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Figura 01 - Arraiais e expedições em fins do século XVII e início do século XVIII

Fonte: Sobreposições de bases em CAD da divisão administrativa dos Estados e da hidrografia do Brasil (IBGE, 2010).] 2773

O termo Estacada pode ser entendido como sinônimo de arraial.

881 ISSN 2358-4912 A cartografia revela a localização aproximada dos arraiais, deixando evidente a posição imprecisa do Arraial do Paulista Domingues Jorge Velho. Revela também as principais expedições, de onde partiam e o seu destino.

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Os Aldeamentos A formação dos aldeamentos no Sertão de Piranhas e Piancó, podem ser estudados através de trabalhos de síntese histórica, como o de Pires (1990), Medeiros (2000) e Puntoni (2002), bem como por aqueles que se dedicaram exclusivamente a esse espaço, como são os casos de Guedes (2006) e Sarmento (2007). Neles, há sempre referência a quatro aldeamentos, dos Pegas, Panatis, Icós e Curema, sobre os quais trataremos. Contudo, cabe expor algumas considerações sobre um primeiro aldeamento que não aparece relatado nos trabalhos citados. Já instituídos os arraiais de Piranhas, Assu e Jaguaribe, a Coroa Portuguesa lança uma ordem, em 06 de março de 1694, para que em cada um destes arraiais sejam fundados dois aldeamentos, cada qual composto por 100 casais de índios e 20 soldados com seus cabos. Há uma vasta documentação de correspondência do Governador Geral do Brasil, então D. João de Alencastro, para os capitães das Capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande no sentido de colocar em prática tal ordem. No caso do Arraial de Piranhas, a ordem estabelecia que o provessem de aldeamento com “caboclos da Aldeia que chamam Mamanguape e dos Caryrys, além de vinte soldados escolhidos e um Cabo de Satisfação a Ordem de Custódio de Oliveira”, a quem o Governador solicitava essa ação, em carta de 02 de novembro de 1694 (D.H.B.N., V.38, p. 325 – 328). Entretanto, em 1695, este aldeamento ainda não tinha sido fundado, pois o Capitão-mor da Capitania da Paraíba não achava necessário, visto que não havia novas investidas dos índios “Tapuias”. A resposta enviada pelo Governador Geral foi a seguinte: Vossa Mercê a execução desta ordem [de fundar aldeamento no Arraial de Piranhas] de que me daria conta, em Carta sua de 22 de Março deste ano, que informando-se de pessoas daquelles Sertões, não havia novas de Tapuyas, e nunca, outra tal se vira por ahi, e parecia que se haviam passado a outras terras. Os que informaram a Vossa Mercê lhe occutaram a verdade, porque no mesmo tempo me fizeram aqui petições alguns donos de curraes que tem no Pinhancó, donde se padeceram algumas hostilidades de Tapuyas que mataram mais de doze pessoas, e muito gado, roubando-lhe as casas com tal ferocidade, que não há quem queira ir assistir naquelles curraes, e ficam perdidos todos os gados: o que eu não acabava de crer, pela supposição de estar provido o posto das Piranhas, e pela confiança que faço a Custódio de Oliveira de cuja jurisdição são os Pinhancós. [...]. (D. H.B.N., V.38, p. 331 – 334).

Ou seja, havia um interesse por parte do Governador do Brasil em estabelecer um aldeamento no Arraial de Piranhas, como ponto estratégico de defesa. Porém, em 1701, ainda não havia ocorrido, , conforme documento de (JOFILLY, 1977, p.313-314). Em 1702, um documento dá notícia da ordem de se fazer o aldeamento, porém não identifica se o mesmo havia sido estabelecido: Capitão mor da Parahiba. Eu El Rey vos envio muito saudar. Havendo visto o que representastes sobre o requerimento que vos fizera os índios das aldeias que mandei se situar no Camaratuba para haverem de ser passados para a Bahia da Traição,asy por ser o mesmo de indio, como também para poderem socorrer a Atalaya que tenho mandado fazer nella e ajudar a obra da sua edificação e o Capellão ficar administrando os sacramentos a infantaria da Atalaya ou fortificação ou dos mesmos índios. E porque estas conveniências se não vem deprezar. Me pareceu aprovar que se faça na dita parte a dita igreja e no que respeita a nomeação dos Capellães para esta Igreja e para as que madei se fizessem nas Piranhas e na Campina Grande. Me pareceu dizervos que estas nomeações pertecem ao Bispo de Pernambuco e os providos nestas capellanias com os seus provimentos [...]. (Apud PINTO, 1977, p. 96)

Nele também pode ser visto que a jurisdição já se encontrava sobe o Bispado de Pernambuco, na Junta de Missões. A confirmação de que, de fato, este aldeamento foi instituído é feita pelo seguinte documento:

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ISSN 2358-4912 Hachãose hoje os certões desta capitania muy povoados de gente, fazendas, e gados,e entre muitos citios, se hacha o das Piranhas, Pahó e Cariris como povoações;capela e capelão que lhe administra os sacramentos; distão estes 50 - 60 – e 80 léguas desta Praça e outros muitos mais.

(AHU_ACL_CU_014, Cx. 4, D. 310, 1710) Ou seja, somente a partir de 1710 é possível afirmar que já havia uma Igreja nas Piranhas, com o primeiro intuito de ser aldeamento, localizada onde estava o Arraial de Piranhas que, posteriormente, estabeleceu-se enquanto Povoação com o nome de Nossa Senhora do Bom Sucesso. A referência à igreja do aldeamento é feita a partir da denominação “Igreja Velha”, encontrada na delimitação da doação do Patrimônio da Igreja do Rosário: “[...] cem braças de terra principiando das ribanceiras do rio Pinhancó, para o Nascente e mais tudo por detraz da parede da Igreja Velha lhe encher as ditas cem braças dentro das quais fica a Igreja Nova Matriz desta povoação.“ (Apud SEIXAS, 1962, p.44). Tendo sido demonstrado a instalação do primeiro aldeamento no Arraial de Piranhas, passa-se a tratar dos demais que surgiram nesse período: Pegas, Panatis, Coremas e Icós. A primeira questão que surge: em que período esses aldeamentos surgiram? Não há documentação que especifique essa data, no entanto, um documento existente no Arquivo Histórico Ultramarino de Pernambuco, datado de 1699 (AHU_ACL_CU_015, Cx. 18, D. 1794, 1699/ Pernambuco)2774, já faz uma referência ao aldeamento em missão dos Curemas, ou seja, antes mesmo daquele instituído na Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso. É provável que os demais tenham surgido no mesmo período, como resposta à estratégia de colonização implementada pelo Estado. Um dos primeiros documentos que já identificam todos eles é o seguinte: Representei a V. Mag.de q seria mui conven.te nestas contendas dos religiosos observantes de N. Shra do Carmo com os da Reforma, que V. Mag.de deve esses da Reforma o convento de Olinda com obrigação de tomarem a sua conta as miçoins desta capitania; e por q de presente se achão os gentios destes certoins com algua desconfiança, e se achão sem mecionario a nação dos Curêmas, a dos Panatis, a do Fagundes, a dos Icos, e a dos Pegas, Canindes, e Caburé, gentios, com q a maior parte dellestiverão já mecionario e se achão sem elle. (...) Me pareceu dar esta carta a V. Mag.de p.a q se faça servido do remédio a esta falta, ao mandando encarregar estas miçoins a dita Religião da Reforma, ou aos de Santa Tereza ou aos da Comp. de Jesus por q nos mais ha mui pouco zello, como mostrarei de algua em outra carta q darei junto com esta e V. Mag.de mandara o que for servido. (AHU_ACL_CU_015, Cx. 5, D. 349, 1715)

Assim, já em 1715, há referência da existência de todos os quatro aldeamentos no Sertão de Piranhas e Piancó. A localização dos mesmos foi feita por uma minuciosa pesquisa por sua referências nos documentos nas Cartas de Sesmarias, cruzando essas informações na cartografia da SUDENE (1974). O resultado e a localização está exposto na Figura 02.

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Infelizmente, a qualidade em que se encontra o documento não possibilita a sua transcrição.

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ISSN 2358-4912 Figura 02 - Aldeamentos do Sertão de Piranhas e Piancó no início do século XVIII

Fonte: sobreposições de bases em CAD da divisão administrativa dos Estados e da hidrografia do Brasil (IBGE, 2010), SUDENE (1974)

O fim da formação dos arraiais e aldeamentos se justifica pelo fato de que as menções aos índios e às guerras vão sumindo na documentação, “[...] à medida que os índios que estabeleceram pazes e foram reduzidos em aldeias, tiveram suas aldeias transformadas em vilas e povoados, dentro das transformações impostas pela política indígena no período pombalino” (Medeiros, 2007, p.02). Contudo, a fundação desses núcleos abre espaço para a colonização efetiva dos Sertões de Piranhas e Piancó. Nota-se que eles estavam localizados em pontos estratégicos, principalmente próximo à confluência de rios e dos caminhos que se formaram, o que tornou as povoações surgidas a partir deles nos pontos nodais mais importantes da rede urbana a partir do século XVIII. Referências ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba. Volume 1 e 2. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1978. AMADO, Janaína. “Região, Sertão, Nação”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Lisboa; Oficina de Pascoal da Sylva, 1713. Disponívem em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1. DIREÇÃO com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, XLVI, 1883, pp. 121-171. GUEDES, Paulo Henrique de Q. A colonização do sertão da Paraíba: agentes produtores do espaço e contatos interétnicos: 1650-1730. Dissertação (Mestrado)- Programa de Pós Graduação em Geografia, Centro de Ciências Exatas e da Natureza, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2006. JOFFILY, Irineu. Notas sobre a Paraíba. Brasília: Thesaurus, 1977. Edição fac-similar de 1892. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Os Documentos do Cartório de Pombal-PB e sua importância para o entendimento da História Colonial do Sertão do RioGrande do Norte. In: Mneme, Revista de Humanidades. V. 05. N. 12, out./nov. de 2004. MACHADO, Maximiano Lopes. Historia da Província da Parahyba. João Pessoa: Universitária, 1977.

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Documentais Arquivo Histórico Ultramarino – Documentos Avulsos da Paraíba AHU_ACL_CU_014, Cx. 4, D. 310, 1710 - CARTA do capitão-mor da Paraíba, João maia da Gama, ao rei [D. João V], sobre povoados, gados e mais fazendas, e a falta de administração nos Sertões. AHU_ACL_CU_015, Cx. 5, D. 349, 1715 - CARTA do capitão-mor da Paraíba, João da Maia da Gama, ao rei [D. João V], propondo os religiosos observantes de Nossa Senhora do Carmo e os da Reforma para as aldeias que se encontram sem missionários. Arquivo Histórico Ultramarino – Documentos Avulsos de Pernambuco AHU_ACL_CU_015, Cx. 18, D. 1794, 1699/ Pernambuco - CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre as cartas do Bispo de Pernambuco, [D. frei Francisco de Lima] ao [secretário] Roque Monteiro Paim, acerca das visitas nas missões do sertão; demarcações das terras de Piagui; das queixas contra o capitão da aldeia de Santo Amaro dos caboclos; dos delitos cometidos na vila de Porto Calvo; da falta de ministros de letras e ouvidor para as Alagoas e de São Francisco; do aldeamento dos índios da nação Corema e eleição de capitão mor para governá-los; do excesso cometido por soldados, ferindo um padre missionário que não permitiu o rapto das índias; e pedindo um coadjutor para o ajudar em suas obrigações. Documentos Históricos da Biblioteca Nacional D.H.B.N., V.38, p. 325 – 328 – CARTA do Governador do Brasil, Dom João de Lancastro,para Agostinho Cesar de Andrade, Capitão-mor do Rio Grande (02 de novembro de 1694). D.H.B.N., V.38, p. 331 – 334 – CARTA do Governador do Brasil, Dom João de Lancastro,para o Governador e Capitão Geral de Pernambuco, Caetano de Mello de Castro, sobre a Guerra do Bárbaros no Rio Grande (20 de maio de 1695).

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O CAMINHO DAS CARTAS: REFORMAS POSTAIS E ESTRATÉGIAS DE ENVIO DE CORRESPONDÊNCIA NO EPISTOLÁRIO DE LUÍS JOAQUIM DOS SANTOS MARROCOS (1811-1821) Mayra Calandrini Guapindaia2775 Durante muito tempo, a correspondência foi a única maneira de manter comunicação à distância. Especialmente após a Expansão Ultramarina e o surgimento dos espaços coloniais, as cartas eram responsáveis por vencer fronteiras territoriais, permitindo que ausentes se fizessem presentes e dividissem novidades, anseios e relatos da vida do além-mar. Tão essenciais se fizeram as cartas na modernidade portuguesa que o seu fluxo foi alvo constante de preocupação dos governantes. As medidas políticas nesse sentido iniciaram-se no século XVI, com a criação do ofício de Correio-Mor e perpassaram por inúmeras mudanças ligadas as novas concepções de poder adotadas pela Coroa ao longo dos séculos. A Reforma Postal de fins dos setecentos relacionase com essas transformações. Certamente, a tentativa de regularização dos serviços de Correios por parte da Coroa portuguesa teve impacto no cotidiano daqueles que se correspondiam assiduamente. Questões como a regularidade da entrada e a saída dos navios, a obrigatoriedade do pagamento da taxa de porteamento, e, principalmente, questões de segurança relacionadas com extravio ou censura estavam na ordem de preocupações daqueles que utilizavam os serviços postais. A mudança da administração da Coroa no que diz respeito aos Correios em fins do século XVIII foi responsável por renovar a relação das pessoas com a escrita e o envio de cartas. Nesse sentido, o Epistolário de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, bibliotecário da Real Livraria que se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1811, se apresenta como corpus documental interessante para compreender a relação entre correspondentes e as transformações na administração dos serviços postais. Portanto, o objetivo do presente artigo é compreender quais as estratégias de envio de correspondência de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, e como a narrativa epistolar foi construída a partir da percepção desse indivíduo das novas regras do despacho de cartas. *** Desde o século XVI o fluxo de correspondência passou a ser entendido pela Monarquia Portuguesa como essencial para a manutenção do bom governo do Reino e dos domínios coloniais. A criação do Ofício de Correio-Mor, doado em Mercê ao Cavaleiro da Casa Real Luís Homem em 1520, foi fruto da vontade de se possuir uma estrutura que garantisse a comunicação efetiva da Coroa e outras pessoas com as demais partes de suas possessões territoriais. Em 1606 o Ofício foi vendido por Felipe II à Luís Gomes da Matta, e permaneceu em posse vitalícia desta família até 1796, quando seria finalmente extinto. A organização postal resultou na produção de legislações e documentos normativos que abrangem o século XVI ao XIX, que visavam controlar as atividades a ela relacionada. A partir dessa documentação, é possível perceber que duas questões específicas entravam em jogo quando a questão era o controle político do caminho das cartas: a garantia da eficiência da comunicação, ligada, principalmente, à inviolabilidade das mensagens; e o recolhimento de taxas para a Coroa, proveniente da cobrança do transporte. Esses dois pontos centrais foram discutidos e reelaborados ao longo dos séculos, adquirindo peculiaridades de acordo com os diferentes momentos da Monarquia portuguesa. Até fins do século XVIII, a segurança das cartas e o fluxo de dinheiro proveniente da entrega estão intimamente ligados com a estrutura da Monarquia Corporativa. A doação em Mercê do direito de explorar os correios a um nobre seguia o conceito de escolher e agraciar pessoas que prestaram serviços valiosos ao Rei, ligado à economia do bem comum (FRAGOSO el al., 2000). Além disso, ao descentralizar o serviço, colocando-o sob responsabilidade de um terceiro, garantia-se menores gastos com uma estrutura paga diretamente pela Coroa. 2775

Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB)

886 ISSN 2358-4912 Uma das características do poder centrífugo estruturado em Portugal durante boa parte do período moderno era a multiplicidade de poderes existentes, sendo que cabia ao Rei, enquanto cabeça, fazer justiça entre as diversas partes do corpo. Nesse sentido, havia, também, pluralidade de direitos, sendo que cada grupo ou pessoa seriam julgados de acordo com o status social (HESPANHA, 1994). Isso se aplica no caso do Correio-Mor. Apesar dos documentos de nomeação garantirem relativa monopolização dos serviços, diversos eram os casos de serviços paralelos de entregas de cartas que eram, na maioria das vezes, aceitos pela Coroa. Esse foi o caso, por exemplo, da resistência do Arcebispado de Braga ao Correio-Mor, ocorrida no século XVIII. No que diz respeito aos domínios coloniais, pode-se afirmar que eram locais que gozavam de maior pluralidade em relação ao Reino, possuindo forças centrífugas ainda mais potentes devido às distâncias, que parecia fazer alongar a sombra do rei e na sombra parasitamente engordada dos seus funcionários (HESPANHA, 2007: 58). Daí explica-se as resistências, provenientes principalmente das Câmaras, aos assistentes de Correio-Mor que tentaram implantar seus serviços em capitanias como Bahia e Pernambuco no século XVII. Em meados do século XVIII, a partir do período Pombalino, ocorreu mudança significativa no entendimento das formas de governar. A partir de então, foram tomadas medidas para garantir maior centralização e controle nas estruturas governativas. Surgiu, assim, um Estado de Polícia, que passou a normatizar e a interferir em aspectos sociais variados pela via administrativa (SUBTIL, 2012). No caso específico do sistema de Correios, isso significou a extinção do Ofício de Correio-Mor, em 1796, e a criação de uma Administração ligada diretamente à Coroa. Por um lado, a tentativa de organização e controle pelo poder Real fez parte de um plano concreto de recuperação econômica de Portugal, e tinha em vista, principalmente, o recolhimento mais eficiente de taxas provenientes do porteamento das cartas. Por outro lado, as novas normas eram mais enfáticas no que diz respeito à segurança e à violação das cartas, o que seria típico, arriscamos afirmar, de um Estado de Polícia no qual havia maior preocupação com controle social e consequentes punições. Essas diferenças na concepção de Poder e sua implicação nos serviços postais pode ser percebida se acompanharmos as legislações existentes sobre o assunto ao longo do tempo. Já no século XVI, é possível encontrar documentos no qual se relaciona a eficiência das entregas das mensagens escritas à segurança e à manutenção do segredo. A Carta de D. Manuel I, que cria o Ofício de Correio-Mor, avisa que era necessário garantir fyelldade e segredo que pera tal caso compre (DOCUMENTOS, 2008: 28). Portanto, de acordo com a visão da época, possuir um nobre de confiança a serviço da entrega de cartas era uma maneira de impedir que informações se extraviassem ou fossem entregues diretamente a inimigos. Embora a importância do segredo seja ressaltada nos documentos desse período, as previsões de punição por violação são escassas. Elas aparecerão de maneira significativa somente no século XVII, nas Ordenações Filipinas2776. Os castigos obedeciam a visão do Direito da época, sendo hierarquizados de acordo com o status social da pessoa que sofria o delito. Contudo, outras regulamentações que poderiam conter indícios nesse sentido, como o Regimento do Correio-Mor de 1644, deixam o assunto passar em branco (DOCMENTOS, 2008: 207-2011). No que diz respeito ao recolhimento da taxa de entrega, vale ressaltar que essa não era remetida totalmente aos cofres reais. O direito de cobrança recaia sobre o serviço de entrega, sendo que cabia ao destinatário o pagamento e o Correio-Mor ficava com 10% do valor total. O restante deveria ser remetido à Coroa (SOBRAL NETO, 2005). Além disso, era proibido que quaisquer outros indivíduos além dos autorizados pelo Correio-Mor transportassem cartas, correndo o risco de se pagar o dobro da taxa caso fossem denunciados. Isso garantia uma relativa centralização dos serviços, mas existia resistência de outras instâncias de poder, ou seja, Correios paralelos tolerados pela Monarquia, conforme apontado anteriormente. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Nas Ordenações Filipinas, Livro 5 Tit.8, intitulado Dos que abrem as cartas do Rei, ou da Rainha, ou de outras pessoas, garantia punições como morte ou degredo aos mensageiros que violassem a correspondência da Família Real e de pessoas nobres. Não há menção de castigos para casos envolvendo pessoas de outros grupos sociais. Vale ressaltar que António Manuel Hespanha (2007: 58), em estudo sobre o Livro 5 das Ordenações, concluiu que as penas mais pesadas, como morte, raramente eram aplicadas em Portugal, o que comprova a pluralidade dos entendimentos das leis nesse período.

887 ISSN 2358-4912 A mudança na concepção corporativa de poder no século XVIII resultou em uma revisão do recolhimento fiscal. Assim, o direito da família Gomes da Mata à arrecadação passou a ser entendido como prejudicial aos Cofres Reais, pois havia desvio de uma parte significativa da renda. A Reforma Postal desse período seguia os preceitos Ilustrados da economia, colocados em prática pelo Ministro de Estado D. Rodrigo de Souza Coutinho, que visavam garantir maior lucro e arrecadação (COSTA, 2007). Uma série de Alvarás, Decretos e Instruções datam desse período, e por meio deles é possível acompanhar a transformação dos serviços de Correios, ligada especialmente a questão da segurança das cartas e à melhor arrecadação do porte. Ou seja, se antes a taxa deveria ser paga ao Correio-Mor, de onde a Coroa retirava uma parte dos lucros, após a Reforma, essa exigência estava ligada ao recolhimento de um tributo arrecadado diretamente. Como o dinheiro dos serviços postais era um dos pontos essenciais para recuperar a receita do Reino, as normas da época sobre o assunto são mais insistentes e detalhadas. Vejamos alguns exemplos relativos à obrigação do pagamento do porte. O artigo XI do Alvará de Criação do Correio Marítimo, de 20 de janeiro de 1798, deixa claro que os capitães de Navios e quaisquer outras pessoas não poderiam levar carta fora da Mala de Correio, ou seja, sem o prévio pagamento, sob o risco de serem punidos. A única exceção eram as cartas de recomendação, as quais eram isentas, e deveriam seguir abertas (ALVARÁ, 1798: 480). Já o Regulamento Provisional para o Estabelecimento dos Correios, de 01 de abril de 1799, permite outras pessoas transportarem cartas contanto que paguem ao Correio local. O artigo XII previa cadeia e pagamento de multa em favor aos Correios da terra aos que desobedecessem essa regra (REGULAMENTO, 1799:530). Acompanhando essa tentativa de centralização fiscal por parte da Coroa, vinha o esforço de promover eficiência, tendo como faceta principal a inviolabilidade. A criação de novos ofícios resultou na elaboração de normas para o bom comportamento dos empregados, e, também, na previsão de punições em casos de desvio. Os trabalhadores deveriam ser sempre eficientes, decentes, moderados e de boa fé, tudo isso para garantir o segredo das cartas. A Instrução para os Correios do Reino do modo como hão de haver-se com as cartas para o Brasil e Ilhas, depois de estabelecidos os Paquetes Marítimos, de 26 de fevereiro de 1798, afirma o seguinte: 22º - Na casa do laboratório do correio não entrarão pessoas de fora. O Administrador fará guardar toda a boa harmonia e decência entre os Oficiais, e será responsável pelas faltas que acontecerem se assim o não cumprirem (APUD MACHADO, 2002: 10). Em tom semelhante, na Instrução para as Juntas de Fazenda dos Estados do Brasil sobre os Correios, de 26 de Fevereiro de 1798, encontramos o que se segue: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

8º - Faltando qualquer destes empregados à sua obrigação em parte essencial da mesma depois de haver sido admoestado, será despedido e provido o seu lugar. Se cometer o crime de abrir cartas ou de as entregar maliciosamente e de caso pensado a outra pessoa que não seja seu dono, será preso e punido segundo as leis (APUD MACHADO, 2002: 11).

Embora, durante as Reformas Postais, tenha existido o esforço de centralização, isso não significou, em nenhum momento, falta de resistência na adoção do meio oficial de circulação de cartas. A preocupação com a inviolabilidade nos novos instrumentos normativos, por exemplo, não foi garantia da extinção desses casos. Além disso, a maior insistência na obrigatoriedade do porte fez com que muitos correspondentes adaptassem suas cartas ou escolhessem outras formas de envio, com o intuito de evitar oneração. Podia-se optar, por exemplo, pela escrita de uma missiva menor (menos pesada, e consequentemente, mais barata, visto que o porte era cobrado por peso). Ou, ainda, utilizar-se de portadores conhecidos para cartas mais longas, escapando à norma. A questão da relação entre os correspondentes e o sistema Postal, a partir do entendimento de como os primeiros adaptavam suas narrativas a depender da forma de envio escolhida é interessante para compreender o alcance do serviço na sociedade luso-brasileira. Um exemplo prático pode ser encontrado no epistolário de Luís Joaquim dos Santos Marrocos. *** As cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos podem ser classificadas como familiares, pois, no total de 200, 165 são escritas ao pai, e um número menor à irmã e à outros amigos e parentes. O

888 ISSN 2358-4912 epistolário sobreviveu graças à ação de Francisco José dos Santos Marrocos, pai de Luís. Funcionário da Biblioteca da Ajuda em Lisboa, Francisco, por algum motivo, esqueceu ou deixou as cartas do filho no seu ambiente de trabalho. Por isso, esse interessante conjunto passou a integrar o acervo da biblioteca. Marrocos não é figura estranha em estudos historiográficos recentes. Suas cartas já foram subsídio para a pesquisa da historiadora Lilia Mortiz Schwarcz (2008) sobre a Real Biblioteca de Lisboa e a questão dos livros como importantes símbolos de poder. Já Adriana Angelita da Conceição (2011) investigou a prática de escrita de cartas e os sentimentos e sensibilidade do bibliotecário português diante da nova vida na então recente sede da corte. O epistolário em questão foi publicado por duas vezes: inicialmente nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em 1934, e, em 2008, no livro Cartas do Rio de Janeiro: 1811-1838, lançado pela Biblioteca Nacional de Portugal. Para os fins de produção desse artigo, utilizamos a versão transcrita pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Não obstante esse conjunto documental ter sido trabalhado sob diversas frentes, as estratégias de envio das cartas sob a perspectiva das transformações administrativas dos Correios ainda permanecem como um aspecto insuficientemente explorado. A única autora a se debruçar sobre a questão foi Ana Cristina Araújo (2008), quando explorou questões da cultura material da carta, ligado ao circuito e às práticas de expedição do correio (p.17). O conjunto epistolar de Luís Joaquim dos Santos Marrocos revela-se de particular interesse para compreender estratégias de envio de correspondência no período imediatamente após a Reforma Postal de 1798. Em praticamente todas as cartas, Marrocos fazia questão de indicar por qual meio as emitiria, fundamentando muito bem sua escolha, utilizando-se de argumentos que compõem a construção narrativa. Por isso, dentre os diversos assuntos tratados na correspondência, nos atentaremos a esse ponto específico. São vários os motivos para que Marrocos adotasse estratégias variadas para despachar correspondências. Independente das intenções do remetente, seja para relatar novidades e saber notícias de família e amigos ou para tratar de assuntos relativos à ascensão política, a manutenção do pacto epistolar se fazia necessária. Ou seja, era importante garantir que, ao escrever, houvesse resposta, sem interrupções indevidas entre remetente e destinatário (CONCEIÇÃO, 2012). Seguindo esse preceito, na primeira carta, escrita antes de chegar ao Rio de Janeiro, a bordo da Fragata Princesa Carlota, além de relatar as dificuldades e os perigos da viagem, Marrocos roga ao pai que lhe escreva sempre: espero que V.Mce me escreva assim que receber esta, dirigindo-a p.a o Rio de Janeiro (ANAIS, 1934: 30). Nessa primeira carta, na qual inicia o pacto epistolar com o pai, Luís Joaquim indica que a remeterá por Correios quando saltar em terra, justamente por temor que a mesma não chegue em segurança:

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Agora estamos na esperança de avistarmos amanha a Ilha de Santiágo, hã das de Cabo-Verde, e por não deixar hã tão boa occasião, tenho tenção de saltar em terra, não obste. os máos ares de terreno, a fim de lançar esta Carta no Correio, por não confiar esta empreza de outrem (ANAIS, 1934:

31). Ou seja, por estar em lugar estranho e não conhecer alguém de confiança, Marrocos opta por remeter a carta por Correios, acreditando ser essa a forma mais segura e eficiente de garantir a chegada ao destino. Não obstante, quando afirma não confiar esta empreza de outrem, revela a possibilidade de existirem outros meios comumente utilizados para o envio que não pela via direta da Administração Postal. A hipótese de outras formas de despacho é confirmada logo no início da segunda carta, de 24 de junho de 1811, escrita do Rio de Janeiro, na qual Luís Joaquim pede ao pai procurar João Emydio, pois o mesmo possuía uma carta dele, na qual se alarga em dar notícias suas (ANAIS, 1934: 31). Percebe-se a evidente mudança de estratégia. Se, anteriormente, a carta foi enviada via Correios por entender ser esta a forma mais segura, nesse outro momento Marrocos escreve ao pai (também por Correios) para anunciar que havia outra carta nas posses de um conhecido viajando do Rio para Lisboa. Da mesma forma, é perceptível a indicação de mudança na narrativa epistolar. Na carta enviada pelo portador, João Emydio, Marrocos se alarga em dar notícias ao pai. Ou seja, na carta confiada a um terceiro, pessoa conhecida, havia mais espaço para se alongar no escrito e comentar outros assuntos não seguros de serem tratados por missiva enviada pelos serviços postais.

889 ISSN 2358-4912 Portadores de confiança pareciam ser a primeira escolha quando a questão era o envio de informações. Marrocos utilizou-se desse meio inúmeras vezes, sendo muito comum enviar uma carta menor via Correios ao pai, para alertá-lo a procurar o portador de uma mais extensa. Isso pode ser notado na carta do dia 26 de outubro de 1811: Queira procurar a João Emygdio, por q.m escrevo a V.M.ce com mais largueza e vagar: e por elle continuarei a enviar as m.as Cartas mais gordas, por causa do seu importe, e segurança. Ainda q.e pelo Correio sempre escreverei a m.a Carticula (ANAIS, 1934: 40). São dois os motivos listados para escolher o portador em detrimento aos Correios: o importe (ou porte) e a segurança. Portanto, temos um exemplo prático de como o maior controle Coroa para garantir que os correspondentes sempre pagassem o porte atingia missivistas assíduos. Conforme os inúmeros exemplos do epistolário trabalhado, é possível perceber que os correspondentes transitavam entre o cumprimento das novas normas e a busca por caminhos alternativos, tentando escapar da obrigatoriedade de pagamento. Luís Joaquim preocupava-se em poupar o pai do pagamento do porte, especialmente porque a família em Portugal não se encontrava em situação financeira estável, fato comentado diversas vezes na correspondência. Com o mesmo intuito de evitar o pagamento de taxas por parte do filho, o pai também quase sempre confiava em um portador. Entretanto, são vários os pedidos de Luís para que o pai utilize os Correios. Isso provavelmente ocorria pela falta de confiança nos portadores escolhidos pelo genitor. Na carta do dia 22 de novembro de 1811, escreve o seguinte:

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Sei q.e na d.a Charrua veio também o P.e Luiz m.to doente em toda a viagem; porem, não podendo eu ir a tempo a bordo procurar not.as e Cartas de V.M.ce por mão delle, como V.M.ce me observou na sua prim.ra, e isto em razão de m.as occupações, q.e me prendem totalm.te, agora não acho not.a do d.o P.e, o q.e me aflige bem; e por isso q.do os Portadores não são dilig.es, he melhor escrever pelo Correio (ANAIS, 1934: 49, grifo meu). Em de 2 de dezembro do mesmo ano, reclama da demora da última carta do pai, escrita em agosto e recebida somente naquele dia. Então, pede mais uma vez o cuidado de utilizar os Correios, revelando o motivo de achar essa via mais segura: Por este motivo devo lembrar a V.M.ce q.e para a promta entrega das suas Cartas ou encomendas siga sempre o systema de as remetter ao Correio, com sobrescripto a mim, e q.do lhe parecer, com segundo sobrescripto p.a o Administrador do Correio daqui, Manoel Theodoro da Silva, com quem tenho amizade, e q.e tem ordem absoluta e antecipada p.a me entregar promptam.te quando lhe vier à mão, q.e me respeite (ANAIS, 1934: 51). Ou seja, para Luís, o Correio era a forma mais segura de receber cartas devido sua amizade com o Administrador Manoel Theodoro da Silva, mas a melhor estratégia de envio para Lisboa era encontrar um portador de confiança, tendo como um dos motivos poupar a família do pagamento de porte. Outra questão fundamental sobressai-se no que diz respeito a escolha de um portador: a segurança. Essa preocupação está eminentemente ligada ao medo de extravio e, principalmente, de leitura por parte de pessoas impróprias. Era fundamental garantir que as cartas fossem conhecidas somente por quem interessasse, evitando-se olhares curiosos. A questão do segredo está intimamente ligada a dupla dimensão privada e pública das cartas pessoais. De acordo com Raquel Bello Vázques (2006), no século XVIII, o gênero epistolar não era necessariamente escrito somente para o conhecimento do destinatário, sendo comum a leitura conjunta em círculos letrados, fazendo com que o conteúdo circulasse por espaços mais amplos. Sabendo dessa dimensão pública das missivas privadas, muitos autores escreviam intencionalmente para tentar incutir ideias em determinados círculos intelectuais e políticos. Figuras importantes e constantemente vigiadas, na tentativa de difundir determinadas ideias, selecionavam previamente os assuntos a serem tratados, sabendo que suas cartas seriam abertas pelo Correio oficial. Por outro lado, caso realmente desejassem manter sigilo do escrito, escolhiam canais alternativos de envio. Esse era o caso de Leonor de Almeida Portugal, cuja correspondência foi estudada por Vázques (2006).

890 ISSN 2358-4912 Nas cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, é perceptível o jogo entre o que ele escolhe revelar e esconder. Em determinado momento, agradece ao pai pelo envio de cartas seletas com notícias variadas acerca de Portugal. Afirma utilizar a leitura pública das mesmas como artifício para conquistar amizades no ambiente de trabalho, ponto importante para ascender na corte:

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...que fiquei mui contente com as Cartas selectas p.a o fim, q.V.M.ce sabe, as quaes vem matizadas com judicioso artifício: por manha deixei-as, como por acaso, sobre a mesa grande juntas à escrivaninha, na Sala em q.trabalho, e posso dizer-lhe q. já se me perguntou se eu tinha tido noticias de Lisboa? He m.to bom q. V;M.ce vá continuando; porem mais de espaço, por não virem com datas tão próximas hûas às outras (bem entendido q. eu fallo das d.as selectas): se lhe parecer, misture as noticias bellicas com algumas místicas, como alguma Função da Igreja, Procissão, &. cousa q. cheire a murmuração, nada; e pelo contrario, venha hum ressabido de erudição politica nos seus vastos ramos; formando-se assim hum lindo ramalhete (ANAIS, 1934: 88).

Essas cartas, escritas com o propósito específico de serem reveladas, foram lidas para um público específico, escolhido meticulosamente como estratégia de crescimento social. Entretanto, caso determinadas informações caíssem em mãos erradas, poderiam surtir o efeito contrário. Por isso, Marrocos pediu algumas vezes ao pai total sigilo do conteúdo das missivas enviadas a Lisboa. Vejamos uma reclamação relativa ao fato de sua primeira carta, escrita de Cabo Verde, ter sido lida por outras pessoas e até copiada: Meu Pay. Depois de acabar hua carta p.a V.M.ce vi-me obrigado a dirigir-lhe este bilhete a pedir-lhe hua cousa, q. já em outra Carta anunciei a V.M.ce; e he: q. não mostre nem fie de pessoa algua as m.as Cartas, q. daqui lhe for escrevendo. Eu sei q. a m.a Carta escrita junto de Cabo Verde, e que V.M.ce ou mostrou ou confiou de alguas pessoas, foi notada e até copiada, pelo grd.e desacordo de eu fallar em falta de providencias, vindo aqui ter essa Nota às mãos de q.m a soube escarnecer, por q. não era de m.ma estofa. E como V.M.ce não sabe quem pertende deslumbrar-nos (tentando em vão), he por isso mui necessária esta reserva. Espero merecer-lhe este favor muito especial. Nem tambem comunique esta m.a advertencia. (ANAIS, 1934:74).

A dimensão privada/pública das cartas trocadas entre Luís e seu pai também está diretamente relacionada com as estratégias de envio. Por exemplo, o fato de o segundo ter preferência por portadores para envio pode significar não só uma tentativa de eximir o filho do pagamento do porte, mas também falta de confiançano trâmite dos Correios e o temor que as missivas fossem desviadas. Já Luís Joaquim parece depositar maior crédito nos Correios para o recebimento de cartas, talvez devido a amizade com o Administrado Manoel Theodoro da Silva. Entretanto, quando remetia cartas ao pai e queria se se alargar em determinados assuntos, também tinha preferência por portadores, indicando preocupação com um possível desvio na chegada em solo português, local onde não possuía influência junto aos servidores postais. A relação interpessoal com o Administrador dos Correios do Rio de Janeiro nem sempre garantia o não-extravio. Em 17 de junho de 1812, há indicação de sumiço de uma das cartas do pai: Finalmente antehontem chegarão a este Porto os Navios Flor de Lisboa, Bom Sucesso, e Nova Alliança, e fazendo eu as dilig.as devidas, me certificou José Lopes de Gouvêa, q. não tinha vindo Carta algua sua p.a mim, mostrando-me todas quantas tinhão vindo no bahú do d.o Cap.am. Por outra parte depois de me ter fatigado em ir a bordo dos outros Navios p.a o m.mo fim e tudo inutilm.te, vou achar o meu nome na Lista do Correio, mas com o maior espanto vi q. me tinhão tirado a Carta do Correio por engano ou temerária curiosid.e. (ANAIS, 1934: 86).

A utilização do termo temerária curiosidade é particularmente interessante, pois demonstra o receio de Marrocos em ter suas cartas recebidas e lidas por alguma pessoa de pouca confiança ou mesmo algum inimigo. Portanto, as estratégias de envio e recebimento de correspondências adotadas por Luís Joaquim dos Santos Marrocos revelam como questões externas associadas à circulação dos Correios eram um

891 ISSN 2358-4912 dos condicionantes da construção da narrativa epistolar. A depender da estratégia adotada, os missivistas desenvolviam ou escondiam determinados assuntos. Pode-se partir da hipótese que notícias de aspectos negativos do governo ou difamadoras de determinados indivíduos, por exemplo, necessitavam de maiores cuidados, sendo melhor talvez enviá-las pelas mãos de conhecidos. Entretanto, se não houvesse portador de confiança, escolhia-se enviar por Correios. Essa é uma faceta interessante dos tempos da Reforma Postal. Por um lado, há um crescente interesse da Coroa em controlar o caminho das cartas para garantir insumo financeiro, e isso esteve intimamente associado à um aumento das medidas punitivas pela violação e pelo extravio. Por outro, a organização dos serviços de Correios não significava a completa adoção do mesmo por parte dos missivistas. Interessava, a estes, garantir o trajeto mais seguro e menos custoso, e as vias oficiais nem sempre seriam a primeira opção.

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OS MODOS DE ALIMENTAR NO BRASIL COLONIAL: UM ESTUDO DOS REGISTROS HOLANDESES SEISCENTISTAS2777 Melissa Mota Alcides2778 No contexto do período colonial brasileiro, os registros textuais e imagéticos legados pelos naturalistas e artistas da comitiva de Maurício de Nassau, nos permite entender a importância dos significados e das propriedades culturalmente atribuídas às espécies vegetais, no que tange ao modo particular de eleger o que serve de alimento e de como prepará-los. Neste sentido, a comida tem uma função básica, ligada à cultura material, que diz respeito, em primeiro lugar, à subsistência e desta forma evidencia uma relacão bem específica nas trocas culturais entre o negro, o índio e o branco. Neste trabalho, portanto, pretende-se revisitar os registros produzidos no século XVII, enfocando os modos de alimentar e produzir os alimentos, como forma de entender os costumes alimentares no Brasil Colônia, através de uma abordagem histórico-antropológica. Introdução O período das grandes navegações pode ser visto como o primeiro grande movimento em escala global a interligar nações e terras distantes. A separação pelo espaço geográfico e pelas diferenças culturais, começou a ser diminuída pelas rotas marítimas. As embarcações traziam em seus porões registros e exemplares dos mundos diferentes. Se a distância espacial não poderia ser alterada, a do conhecimento certamente o foi. Plantas, animais e povos, antes fixos em seus ambientes originais agora são levados de canto a canto do mundo recém conhecido. A descoberta das rotas orientais através do sul da África e o Descobrimento do continente americano ampliam significativamente a compreensão espacial. Os jardins botânicos europeus recebiam a flora estrangeira. Os mapas antes com informações míticas e fantásticas dos oceanos eram modificados em uma rigorosa representação do real existente. Era necessário o registro do novo. A produção e comércio açucareiro da antiga Capitania de Pernambuco atraiu o interesse da Companhia das Índias Ocidentais, que financiou no século XVII a invasão da Capitania por tropas holandesas. Sete anos depois, em 1637, o Conde Maurício de Nassau é designado para o comando do então recém formado Brasil-Holandês, trazendo uma comitiva de naturalistas, cartógrafos e pintores, entre eles Frans Post, Albert Eckhout, George Marcgrave e Guilherme Piso que produziram um conjunto de imagens da paisagem nordestina nos séculos XVI e XVII. Este acervo é certamente o melhor e mais completo retrato da América Portuguesa nesse tempo. Não bastava apenas estar no espaço, mas conhecê-lo e registrá-lo. O inventário iconográfico tinha 2777

Este trabalho foi orientado pela Profa. Dra. Maria Angélica da Silva, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado – DEHA, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU/ UFAL. O Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem aborda recortes paisagísticos do Nordeste brasileiro considerando seus elementos, dinâmicas e temporalidades. Registrado na base do CNPq, desde 1998, é integrante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFAL e um dos suportes do seu Programa de Pós Graduação. As investigações produzidas pelo Grupo, consideram-se os elementos materiais e imateriais da cultura paisagística, tendo como ferramentas de pesquisa prioritárias a iconografia, os relatos de época, a história oral e a observação sensorial e afetiva dos espaços. O Grupo também atua, através de seu Laboratório de Criação Taba-êtê, na perspectiva de transformar os resultados de pesquisa em produtos culturais voltados ao reconhecimento do patrimônio natural e citadino, com destaque ao uso das linguagens digitais. Conta com o apoio de instituições como o CNPq, CAPES, FAPEAL, PETROBRÁS, BNB e a Fundação Calouste Gulbenkian. Dentro da temática dos estudos botânicos referentes ao Brasil colonial, realizamos um trabalho de sistematização dos dados referentes às espécies vegetais descritas na Historia naturalis Brasiliae que gerou a dissertação de mestrado da autora deste artigo. Em parceria com o Dr. Dante Martins Teixeira, Biólogo com doutorado em Zoologia (UFRJ), Possui larga experiência na temática do Brasil Holandês, tendo organizado as suas principais obras de referência, traduzidas das fontes originais. 2778 Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem. Email: [email protected]

894 ISSN 2358-4912 várias funções: o detalhamento geográfico imprescindível para o controle militar e econômico; as representação da flora, e da fauna que indicava as possibilidades de subsistência e comércio; as vistas dos núcleos urbanos que revelavam a paisagem natural e edificada e as cenas de práticas do cotidiano evidenciavam as trocas culturais entre os índios, os negros e os brancos, transportando para o além mar a imagem “mais expressiva” da colônia. A colônia era organizada em torno do açúcar, mas os diversos gêneros alimentícios locais adquiriram valores emblemáticos nas representações dos pintores e cientistas convidados a acompanhar Nassau ao Brasil, gerando imagens convincentes do domínio holandês. Elegeu-se para este artigo, a temática das propriedades culturalmente atribuídas às espécies vegetais, no que tange à questão alimentar. Através dos minuciosos registros holandeses, pode-se entender o que foi eleito enquanto alimento e as trocas culturais evidenciadas nos modos de preparar a comida e atribuir-lhe significados. A comida é uma temática que dá o que pensar sob vários aspectos se levarmos em consideração que não há grupo humano que não coma, assim como não há sociedade que deixe de criar significados acerca daquilo que come. Dessa forma, os povos falam de si na forma como fazem do alimento uma representação da sua realidade. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A experiência e tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida.2779

Os povos que aqui habitavam, negros, índios e colonizadores, integravam este rico cenário, emprestando ao mesmo suas tradições, impressas nos seus mais diversos saberes e fazeres, e que ainda hoje, podem ser verificados em pequenas cidades nordestinas. Estas práticas venceram os séculos por terem sido integradas ao cotidiano dessas populações e ficaram registradas nas telas do rico acervo do Brasil-Holandês seiscentista. A Cana-de-açúcar A cana-de-açúcar foi o primeiro alimento em questão na história do Brasil Colônia por representar a possibilidade de grandes lucros para os colonizadores, gerando toda a questão exploratória das novas terras, primeiramente pelos portugueses que já dominavam as técnicas de plantio e de produção do açúcar desde o século XV, quando transformaram as recém-conquistadas ilhas atlânticas em centros açucareiros. Logo descobriu-se que o clima quente e úmido e o rico solo massapê do litoral do Brasil, especialmente na Bahia e em Pernambuco, tornariam o Nordeste a principal área para o cultivo do açúcar, atraindo a cobiça dos holandeses que após algumas tentativas, conseguiram conquistar Recife e Olinda em 1630. Após a conquista, sob o governo de Maurício de Nassau, foram produzidos mapas dos territórios conquistados que deveriam dar conhecimento aos financiadores da invação e conquista holandesa do Nordeste do Brasil. Muitos desses mapas indicam a localização dos engenhos de açúcar e os caminhos para chegar a eles. Este fato demonstra e reforça a importância do açúcar para o Brasil-Holandês. Inúmeros documentos produzidos no período, tanto portugueses quanto holandeses, descrevem a cana-de-açúcar sob os seus mais variados aspectos. As características da espécie, o modo de plantio, o tipo de solo ideal, o processo de preparação do açúcar em suas diversas fases de produção e os produtos da cana. Segundo descrição de Guilherme Piso, a cana chamada viba pelos índios “exabunda num suco doce. É mui parecida com a cana silvestre pelo aspecto externo.” 2780 Também explica com riqueza de detalhes o processo de preparo do açúcar e dos sub-produtos da cana nas moendas: As moendas se firmam em três pesadíssimos cilindros feitos de madeira fortíssima e circundados de círculos de ferro. A cana, continuadamente metida entre os cilindros e esmagada pela apertada compressão deles, que se entretocam, escorre um licor dulcíssimo. As moendas movidas à água não 2779 2780

HOLANDA, 1995: 40. PISO, 1948: 58.

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ISSN 2358-4912 precisam de trabalho animal, sendo postas a girar pela força do líquido, trazido por um canal muito longo, cai impetuoso no alto das canoas superiores de uma roda de enorme grandeza. Mas embora assim a moagem se acelere e produza mais açúcar (...), o trabalho destes porém expreme a cana mais perfeita e completamente.2781

Da cana surgem, a partir deste processo, vários produtos: uma espuma chamada cagassa que serve de comida e bebida aos animais e o suco ou caldo, que depois de cozido e coado fornece alimento aos escravos. Este suco, misturado com água transforma-se num vinho chamado garapa, muito consumido pelos “naturais” e “ainda podem fazer, com o primeiro licor, o vinho sacarino, a cachaça, o vinagre, o mel cozido e o próprio açúcar.”2782 Paralelamente ao crescimento da produção açucareira, desenvolveu-se na colônia um setor de subsistência responsável pela produção de gêneros que vinham a atender às necessidades dos colonos e escravos. Assim, à medida em que a lavoura canavieira crescia, tornava-se fundamental o conhecimento e uso de outras espécies na alimentação. A Mandioca Com potencial para a economia, sem dúvidas era a cana-de-açúcar fonte de imbatíveis lucros, porém, para a alimentação a mandioca revelava-se enquanto a grande promessa. Neste sentido, Nassau lançou durante sua administração uma série de normas para a plantação da cana-de-açúcar, estabelecendo áreas para a policultura. Previa o plantio da mandioca, através de medidas como os decretos do Alto Conselho da WIC, obrigando os senhores de engenho e todos os lavradores disponíveis a plantar quantidades estipuladas de covas de mandioca por escravo possuído e a fornecer duas vezes por ano farinha de mandioca à Companhia. (...) No ano seguinte, foi reprimida por lei a violência de militares contra lavradores, pois a eles cabia garantirem as fazendas e lavouras. Publicou-se também uma lei sobre plantação de mandioca e sobre o peso dos pães, para favorecer os famintos, assim como sobre o valor da moenda, em benefício dos mercadores.2783

A mandioca era um alimento bastante conhecido pelos indígenas e estava presente nos dois elementos inseparáveis da sua alimentação: a farinha e os beijus.2784 Os negros escravos logo adaptaram seu paladar aos produtos derivados da mandioca e os portugueses rapidamente perceberam sua utilidade como provisão e recurso, ampliando seu cultivo. A massa torrada e transformada em farinha de todas as qualidades, claras e escuras, finas e grossas, era usada também nos tempos de guerra, como ração, fácil de carregar, quando precisavam mudar de um lugar para outro. Assim foi chamada de farinha de pau ou farinha de guerra. Apesar da necessidade da mandioca de servir de alimento para o população do período, em muitos relatos holandeses havia queixas quanto ao produto: “Uma farinha que ora é branca, ora é cinza com o grão pardacento de aspecto semelhante ao de nossa sêmola, e muitas milhares de pessoas devem se utilizar desta raiz moída em vez de pão.”2785 A história da utilização da mandioca, portanto, está imbricada aos primórdios da história da alimentação brasileira. “A farinha é para os brasileiros o que o trigo é para os europeus”, registrou Gaspar Barléus em 1647 ao historiar a presença holandesa no Brasil.

2781

Idem, 59. Idem, ibidem. 2783 BARLEUS, 1977: 344. 2784 A farinha , produto essencial, acompanha todos os alimentos consumidos, entre carnes, peixes ou frutas. O beiju estava sempre presente nos momentos de caça, pesca, guerra e permutas, além de fornecer matéria – prima para produção de bebidas fermentadas chamadas de “Cauim”, também feitos com milho e frutas. 2785 Zacharias Wagener In: MOREAU, 1979: 110. 2782

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ISSN 2358-4912 Constitui-se o açúcar uma das delícias para o estrangeiro, e a mandioca é um alimento para os naturais. Das raízes desta fabricam uma farinha, assim como os mais ricos se alimentam de trigo e 2786 de pão .

Piso e Marcgrave registraram a grande diversidade das espécies de raízes e das técnicas do seu preparo, classificando os processos de fabricação e os produtos obtidos. Quanto ao preparo e uso na alimentação: Arrancadas da terra, as raízes mal duram o espaço de três dias, mesmo bem guardadas em celeiro. Limpas e despojadas da casca tenuíssima que as envolve, levam-se a um moinho de mão, cuja figura daremos a seguir, movido por dois homens, e são moídas por umas pontas de ferro, recebendo um cocho a farinha das raízes trituradas. (...) As raspas em seguida se lançam num largar ou prelo que, com sua grande pressão, lhes expreme o líquido supérfluo e nocivo, tornando-se secas e sem nenhuma umidade. Depois se coam numa peneira chamada Urupeba, e são logo lançadas num recipiente, alguidar de barro ou cobre, posto ao fogo e agitado um pouco até cozerem. Semi-cozidas e ainda moles, são comestíveis e se chamam Farinha relada, isto é, farinha cozida não dessecada. O mais restante e que se quer guardar misturam, em fogo mais ou menos intenso, à vontade, e secam 2787 bem. Pois, essa farinha, quanto mais seca e cozida, tanto mais durável é .

A civilização açucareira se fez acompanhar do negro e nas cozinhas das casas-grandes os produtos cultivados e conhecidos pelos índios, como o milho e a mandioca, unidos ao açúcar transformaram-se pela tradição europeia, especialmente portuguesa, enriquecida pelas mãos dos africanos em novos doces e bolos ainda hoje presentes nas mesas nordestinas, como o beiju e o bolo de massa-puba. Ainda nos dias atuais, a mandioca e seus derivados mantém-se como a base da alimentação de grande número da população brasileira, especialmente no norte e nordeste do país e pode-se afirmar que o próprio processo de fabricação descrito na Historia naturalis, ainda é realizado em inúmeras casas de farinha. Os Alimentos Eleitos e Descritos pelos Holandeses Os novos alimentos que os holandeses encontraram no Brasil foram avaliados quanto a seus sabores, aromas, texturas, valores nutritivos e conveniência para a saúde ou a economia. As fontes de subsistência eram precárias e estando inseridos no contexto do cotidiano indígena, muitos dos vegetais eram vistos com preconceito. Durante o período colonial, muitos foram os relatos dos cronistas viajantes que continham descrições dos aspectos relacionados aos diferentes alimentos encontrados no Brasil, desde seu cultivo até as diferentes formas de preparo dos mesmos, seus aspectos nutricionais e até medicinais. Entre elas podemos citar a obra de Gaspar Barleus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil; A Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil de Joan Nieuhof; Brasil Holandês: diário de uma estada no Brasil de Cuthbert Pudsey, dentre outras. Esses relatos também deixam explícito que a inserção dos novos alimentos na dieta dos colonizadores europeus e em especial dos holandeses, foi uma tarefa bastante difícil. Contudo, uma das obras produzidas pela comitiva de Nassau no Brasil, a Historia naturalis Brasiliae nos chama a atenção por uma preocupação em entender e se aproximar da alimentação praticada pelos índios. Nela estão estão embutidos os principais elementos de uma lógica que junta preocupação medicinal, exotismo, arte, comércio e história natural, marcadamente uma das particularidades da cultura holandesa: o casamento do clássico da cultura com a linha realista, científica, descritiva, sendo este um valioso material para estudos interdisciplinares e no caso deste artigo, os aspectos relacionados aos modos de alimentar no período em questão. Portanto, os hábitos dos íncolas assumiram um lugar fundamental na obra de Piso e Marcgrave, pois eram reveladores da maneira pela qual se deveria proceder e sobreviver.

2786 2787

BARLEUS, 1977: 93. PISO, 1948: 60.

897 ISSN 2358-4912 Esta obra é considerada por muitos estudiosos que se debruçaram sobre seus trabalhos, como uma das mais importantes contribuições à História Natural desde Plínio e Aristóteles. Apenas dois séculos depois, mais precisamente em 15 de julho de 1817, é que vieram ao Brasil viajantes como Spix e Martius que legaram às futuras gerações um largo levantamento da flora e da fauna americanas. A primeira edição da Historia naturalis Brasiliæ data de 1648 e foi impressa em Amsterdã, sendo que os originais da obra encontram-se na biblioteca Albertina, em Viena. Apenas em 1942 e 1948, veio a ser traduzida integralmente para o português. Considerada uma verdadeira coleção da botânica brasileira fixada em papel, reuniu 429 ilustrações de autoria dos pintores da comitiva de Nassau e algumas xilogravuras do próprio Marcgrave, sendo aberto por uma folha de rosto ilustrada por Theodoro Martham. Foram arroladas na obra trezentos e sessenta e sete espécies e destas, Piso descreveu cento e vinte e Marcgrave trezentos e seis das quais cinquenta e nove foram descritas por ambos. Do total de espécies descritas na obra, constatou-se que acerca de cento e vinte e uma é mencionado o uso alimentício, o que corresponde a 32,97%.2788 Uma preocupação que observamos nas descrições, principalmente de Marcgrave é a possibilidade de providência de alimento para o caso de haver alguma escassez. Desta forma o autor cita a chamada agutiguepo-obi: “assada e cozida serve de alimento em tempo de penúria.” 2789 e a aninga iba (Montrichardia linifera): “Nasce no alto, entre as folhas um julus formado de muitos outros quase quadrados; come-se este fruto em caso de necessidade.” 2790 Nos escritos de Piso, observamos com freqüência a descrição de espécies vegetais que apenas seriam comestíveis para os “bárbaros” ou para os animais, reduzindo, desta forma, os primeiros à categoria destes últimos, como é caso da copaíba: (Copaifera officinalis) ou simplesmente, copaifera: “Os macacos apreciam imenso essas frutas. Os índios comem chupando-lhe o suco e rejeitando-lhe a casca.” 2791 Na obra, as descrições dos modos de preparar e consumir os alimentos são os mais diversos possíveis. Podem ser utilizadas “em saladas”, preparadas com açúcar ao modo dos doces por eles conhecidos na Europa, cozidas ou cruas. Para as saladas, dentre outras espécies, Piso descreve a acaricoba (Hydrocotyle umbellata): “(...) nas mesas servem-nas como saladas.” 2792; e Marcgrave a acetosa (Talinum racemosum), muito conhecida hoje com o nome vulgar de brêdo: “(...) é empregado com utilidade nas saladas.” 2793 Na dieta alimentar de certas regiões do Nordeste, O brêdo hoje é um prato especial para o período da Semana Santa. Em alguns casos os autores descrevem com riqueza de detalhes o modo de preparo do fruto para ser utilizado na alimentação, explicando por vezes até como descascá-los: Marcgrave trata desta forma a ambaiba (Cecropia pachystachya ): “os bagos (...) são tirados como dentes e comidos.” 2794 E a belingela (Solanum melongena): “Come-se este fruto cozido com óleo e pimenta e tem o sabor do limão.” 2795 Com relação às espécies frutíferas, essas mereceram destaque especial na obra de Piso e Marcgrave. As cores, os perfumes, as texturas e sabores das frutas brasileiras deslumbraram não só os holandeses, mas muitos portugueses no Brasil Colônia, a ponto de algumas terem sido eleitas como saborosíssimas e de modo entusiasta. É o caso do abacaxi e do caju. O abacaxi ou nana (Ananas comosus) como é denominado na Historia naturalis Brasilae é descrito por Piso como sendo “(...) sem dúvida o melhor fruto hortense do Brasil, prazer e ornato das sobremesas, quer cru, quer preparado com açúcar.” 2796 E Marcgrave informa ainda sobre a maneira adequada de cortar a polpa do abacaxi: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2788

Ver dissertação de Mestrado de Melissa Mota Alcides: História naturalis Brasiliae: Um estudo do registro botânico Holandês seiscentista. Maceió, UFAL, PRODEMA, 2001. 2789 MARCGRAVE, 1942: 53. 2790 Idem, 106. 2791 PISO, 1948: 65. 2792 Idem, 102. 2793 MARCGRAVE.1942: 23. 2794 Idem, 92. 2795 Idem, 24. 2796 PISO, 1948: 98.

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ISSN 2358-4912 O fruto é de agradabilíssimo sabor, como os morangos, muitíssimo suculento. Tira-se a casca, divide-se as partes em sentido longitudinal e depois se come, sendo também muito apreciada a parte 2797 central, que fica, depois de dividido em partes, como se fosse uma coluneta quadrado .

No contexto do século XVII, antes da chegada dos holandeses, estiveram no Brasil muitos cronistas portugueses que deram especial destaque ao abacaxi, como por exemplo o Frei Cristóvão, natural de Lisboa que chegou ao Maranhão em 1624, retornando a Portugal em 1632. Durante sua estadia, escreveu a História dos animais e árvores do Maranhão, na qual apresenta cento e um peixes, sessenta e seis pássaros e cinquenta dois vegetais. Frei Cristóvão de Lisboa se antecipa à produção holandesesa de Piso e Marcgrave no esforço da sistematização de um estudo da natureza brasileira. Com relação às espécies emblemáticas descritas na Historia naturalis, destacamos a acayaiba ou acaiuiba (Anacardium occidentale), hoje conhecida popularmente por caju, que merece a atenção de Piso e Marcgrave pelo inusitado uso que os indígenas fazem da espécie. Segundo Piso: “Com ele contam a idade a seu modo, porque êste fruto é produzido só uma vez ao ano, nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, desaparecendo depois (...).” 2798 E Marcgrave: “Os indígenas contam os anos de idade pelas castanhas do cajú, guardando uma a cada ano; denominam também a castanha Acaguacaya, Acajuti e Itimaboera.” 2799 Segundo Guilherme Piso o caju é utilizado pelos índios há muitos séculos e chega a comparar a espécie com o carvalho, além de mencionar que ela foi motivo de guerras entre os primeiros habitantes do Brasil: Para os índios, não menos que para os arcádios outrora o carvalho, tanto este fruto como a castanha a ele aderente, e que lhe nasce na extremidade, são, desde já muitos séculos, de utilidade para a vida. As guerras freqüentemente suscitadas, como de costume, entre eles, o foram em parte por mor desta fruta. Pois, os vencedores, armados os seus acampamentos, permanecem por tanto 2800 tempo de posse do lugar expugnado, até terem comido todas as frutas das árvores.

Piso finaliza sua descrição falando da importância desta espécie e desejando, por este motivo, que ela pudesse ocorrer em mais regiões do Brasil: (...) o Acaju, sem contestação a principal árvore das árvores do Brasil. Oxalá a natureza a fizesse crescer igualmente nos sertões e nas montanhas remotas e florestas do Brasil, como nos lugares 2801 mais vizinhos do mar

Ainda sobre o caju, cabe notar a frequência com que serão reportados na iconografia holandesa, como por exemplo, nas paisagens de Frans Post e nas obras de Albert Ekhout. Conclusão Todo esse material textual e pictórico descrito ao longo deste texto levantam duas questões. Por um lado, registrar significava conhecer e explorar. Por outro, as representações das espécies vegetais contidas na obra de Albert Eckhout deixa muito claro a preocupação estética impressa ao conjunto. Eckhout foi responsável pelo melhor registro visual das espécies vegetais empreendido nos dois primeiros séculos da colonização. Como nenhum artista anterior, retratou a diversidade de espécies nativas e exóticas do Brasil. Suas naturezas-mortas guardam muita semelhança com os desenhos contidos na Historia naturalis, o que demonstra que o compêndio naturalista serviu de inspiração para a produção de uma obra artística cuja finalidade era colecionar e enviar para a Holanda o quadro da dominação flamenga no Brasil. Cabe ainda lembrar que os desenhos da obra de Eckhout e as paisagens de Frans Posts serviram de inspiração para a confecção das tapeçarias das Índias. Diversos elementos atraem a atenção no conjunto da obra de Eckhout, dentre eles a existência de correspondências entre detalhes representados e comentários de Marcgrave sobre a maneira adequada de cortar a polpa dos ananases ou partir frutos de maracujá. 2797

MARCGRAVE, 1942: 33. PISO, 1948: 66. 2799 PISO, 1948: 95. 2800 PISO, 1948: 66. 2801 Idem, 67. 2798

899 ISSN 2358-4912 Às frutas e legumes do Brasil coube o papel de descrever com grande qualidade artística, a fartura do Brasil-Holandês.

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A POLÍTICA INDÍGENA DOS HABSBURGOS ESPANHÓIS NA AMÉRICA PORTUGUESA (1580-1611) Miguel Luciano Bispo dos Santos2802 Considerações Iniciais: a União Ibérica (1580-1640) O nosso marco cronológico está delimitado entre os anos de 1580 a 1611, em razão disso, temos que fazer uma breve contextualização do período denominado na historiografia como União Ibéria (15801640), época na qual o reino de Portugal estava “unido” a Coroa Espanhola dos Habsburgos. A união dessas duas coroas proporcionou o surgimento do primeiro Império mundial em que o Sol nunca se punha, que se entendia de Macau, na China, a Potosi, no Peru. “As Coroas de Espanha e Portugal continuaram unidas nos sessenta anos seguintes, um período que os patriotas portugueses comparam subsequentemente ao cativeiro dos judeus na Babilônia.” (Boxer, 2011, p. 116) Esse fato histórico iniciar-se com a morte do rei D. Sebastião (1554-1578), que ocorreu em 04 de agosto de 1578. O monarca português morrera em um combate desastroso contra os mouros no campo de Alcácer Quibir, em Marrocos. O jovem rei falecera sem deixar nenhum herdeiro direto para o trono do Império Ultramarino. Sem um sucessor direto, a Coroa lusitana acabou ficando nas mãos do seu tio-avô, o idoso e doente cardeal D. Henrique (1512-1580). Este, em menos de dois anos a frente do Império, acabou falecendo (janeiro de 1580), não deixando também um sucessor ao trono. Esse vazio na sucessão real desencadeou uma grave crise dinástica em Portugal. Seis pretendentes surgiram para ocupar o trono, no entanto, destacaremos somente os dois principais candidatos à Coroa. O primeiro foi D. Antônio (1531-1595), o prior do Crato, filho ilegítimo do rei Manoel I, que contava com o apoio da maioria do povo (arraia miúda) e o baixo clero. O segundo pretende a sucessão da coroa portuguesa foi o rei da Espanha, Felipe II (1527-1598), o qual contava com o apoio de boa parte da nobreza e do alto clero lusitano, cujos membros que desejavam usar o dinheiro da coroa espanhola para pagar o resgate de seus parentes em poder dos mouros, em decorrência da humilhante derrota na batalha de Alcácer Quibir. O rei castelhano fez valer as suas pretensões ao trono vago, pois este, além de ser neto legítimo de D. Manuel I de Portugal (1469-1521), contava com o forte exército espanhol ao seu favor. Mas sua coroação não ocorreu de forma pacífica. Quando o cardeal D. Henrique faleceu, D. Antônio tentou tomar a Coroa, Felipe II foi obrigado a tomar o poder na força. Diante dessa situação, o rei espanhol ordenara o duque de Alba junto com seus soldados que solucionassem aquela situação em Lisboa. Ao assumir a coroa lusitana, Felipe II declarou a celebre frase “Herdei-o, comprei-o, conquistei-o”. Todavia, os portugueses que lutaram contra a coroação de Felipe II tiveram alguns resultados importantes, como a promessa do recém monarca de garantir uma relativa autonomia administrativa de Portugal e suas colônias em relação à Espanha, como salienta o historiador inglês Charles Ralph Boxer: [..] No entanto, o sentimento nacional português era bastante forte e o próprio Filipe foi bastante prudente para assegurar que, em 1581, na assembleia das Cortes que sancionou legalmente a sua ocupação da Coroa, os dois impérios coloniais deviam permanecer entidades separadamente administradas. A união destas duas Coroas ibéricas era uma união pessoal, como a do Reino Unido da Escócia e da Inglaterra nas pessoas dos monarcas Stuart, desde a adesão de Jaime IV da Escócia (e I de Inglaterra) ao Acto de União no reinado da rainha a língua portuguesa, consultar os conselheiros portugueses em todos os assuntos respeitantes a Portugal e às possessões portuguesas e nomear apenas funcionários portugueses para essas possessões. Os Espanhóis estavam expressamente proibidos de comerciar ou estabelecer-se no Império Português, e os portugueses de comerciar e de estabelecer-se no Espanhol. (Boxer, 2011, p. 116-117)

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Aluno de Graduação do Curso de História na Universidade Gama Filho e Bolsista de Iniciação CientíficaUGF/CNPq. Email para contato: [email protected]

901 ISSN 2358-4912 Nesse sentido, criou-se um Conselho de Portugal para aconselhar o rei em questões portuguesas, e um vice-rei que governava em Lisboa em nome do rei. Em outras palavras, o soberano castelhano reinava nas duas Coroas, mas cada uma mantinha seus costumes, leis, administração e integridade nacional. Essa solução, regularizada por Felipe II nas Cortes do Tomar (abril de 1581), continuou sendo o conjunto de princípios norteadores durante todo o período da União Ibérica de 1580-1640. Essa junção das monarquias Ibéricas teve consequências importantes para Portugal e seu Império colonial, em especial ao Brasil. A historiadora Guida Marques aponta que a história da América portuguesa durante a União Ibéria teve pouca atenção dos historiadores, os quais preocuparam-se mais com o Brasil holandês2803 do que para outros fatos históricos. No entanto, a historiadora ressalta que esse período histórico constitui um fato relevante para a história do Brasil, além da invasão holandesa as capitanias de Salvador (1624-1625) e Pernambuco (1630-1654). V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O chamado “Brasil holandês”, desde sempre suscitou uma abundante produção historiográfica, e nos últimos anos, esses interesse não diminui. Em contrapartida, a situação do Brasil durante a União Ibérica jamais despertou a mesma atenção dos historiadores, sendo poucos os trabalhos sistemáticos sobre a temática. E, no entanto, os anos de que vão de 1580 até 1640 constituem um momento importante da história do Brasil. O desenvolvimento da sua economia açucareira, o vigor da sua expansão territorial, ou a crescente influência da América portuguesa no seio do império português, são aspectos que testemunham bem a importância de transformações registrada naquele período. Este processo de transformação foi acompanhado pela extensão da burocracia, tanto civil como militar, através da qual a Coroa procurou alargar a sua autoridade sobre aquele território. O adensar da rede de oficiais régios no Brasil, a reorganização das capitanias, a criação de novas circunscrições administrativas, e, ainda, a fundação de um tribunal na cidade da Bahia, são fenômenos que remetem, todos eles, para um dado fundamental: as mutações ocorridas no Brasil, durante a União Ibérica, possuem uma incontornável dimensão política. (Marques, 2002, p.

7) Está claro que houve uma ingerência direta da administração espanhola nos negócios portugueses no Brasil, sobretudo, na situação jurídica dos ameríndios. Logo, tratarei das leis indígenas de 1595, 1605, 1609 e 1611 e as tensões geradas na aplicação dessas normas régias na América portuguesa, que envolvia funcionários régios, colonos e autoridades eclesiásticas. A política indígena dos Habsburgos Espanhóis na América Portuguesa (1580-1611) Com a União das Coroas Ibéricas, os Habsburgos procuraram deixar clara sua intenção política na condução da questão indígena, ou seja, a salvaguarda da liberdade dos naturais da terra. O governo filipino interviu diretamente na legislação em relação à escravidão e liberdade indígena na América portuguesa, com as leis de 1595, 1605, 1609 e 1611. Como aponta o historiador Luiz Felipe Alencastro: Como é sabido, o Acordo de Tomar (1581), pelo qual as Cortes portuguesas reconheciam Filipe II de Espanha como rei de Portugal, assegurava a autonomia administrativa lusitana no Reino e nas suas colônias. A tal título que a historiografia portuguesa recente, num exagero que subestima a dimensão nacionalista do evento, chega a considerar a Restauração de 1640 como um conflito suscitado entre diferentes modelos de exercícios de poder. E não como o “restabelecimento” de uma independência usurpada. Contudo, a influência doutrinária hispânica também pesou sobre a política imposta aos nativos do Atlântico Sul no início do século XVII. Pouco suspeito de condescendência com Madri, o padre Antônio Vieira admitia, entretanto, que a constância das leis de proteção aos índios da América portuguesa havia sido maior no período filipino que no período bragantino. (Alencastro, 2000, p. 86)

2803. Dentre os novos inimigos de Portugal herdado da União Ibéria estava sua parceira de comércio Holanda. A Holanda estava em guerra com a Espanha para ter reconhecida sua independência desde 1568. Assim a União Ibérica rompera os laços comerciais entre portugueses e holandeses. Dessa forma, em busca de lucros e de medidas contra os espanhóis, os holandeses viram-se estimulados a empreender a conquista das zonas de produção açucareira no Brasil, como Salvador (1624-1625) e Pernambuco (1630-1654).

902 ISSN 2358-4912 Não é nossa intenção, no entanto, mostrar como essas normas foram teorizadas. Porém, alguns aspectos são importantes para compreendermos como era intenso e conflitante o dilema em torno da escravização do ameríndio na América Portuguesa, que envolvia colonos, jesuítas e funcionários régios durante o período da União Ibérica. A administração da justiça no Brasil colônia cumpria as mesmas leis que vigoram em Portugal. As Ordenações Manuelinas (1514-1521) e, posteriormente, as Ordenações Filipinas (1603) eram os códigos legais adotados para todo Império, independente das peculiaridades de cada localização geográfica, diferente, por exemplo, do que ocorria na América espanhola, que criou uma legislação própria para seus domínios, as Leyes de Índias (1512). No entanto, a metrópole promulgou algumas normas jurídicas específicas para as questões de suas possessões ultramarinas, como a legislação indigenista. O órgão administrativo metropolitano responsável pela confecção desse dispositivo jurídico fora a Mesa de Consciência e Ordens, instalada em 1532. No Brasil, a primeira legislação indigenista foi trazida juntamente com o Regimento de Tomé de Sousa, em 1549. Neste documento, o rei delegava o poder de decretar a guerra justa para o Governador Geral. Os índios considerados aliados (os aldeados e convertidos) tinham a sua liberdade legalmente assegurada, e aqueles considerados inimigos (hostis à ação colonizadora e a evangelização) eram passíveis de escravização legal. Uma brecha importante para que os colonos pudessem conquistar novos índios e de certo modo opor-se as pretensões religiosas, que também explorava e talvez quisesse manter para si o domínio do gentio da terra.

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De maneira geral, a guerra contra o índio era legal, e justa, quando o ‘gentio’ atacava o branco europeu, quando impedia a pregação do Evangelho ou quando negava o batismo e a catequese, pois, o motivo final da colonização era a propagação da Fé e conversão do pagão. Ao índio aliado era assegurada a sua liberdade, pois representava a mão-de-obra necessária na dinâmica do tipo de colonização implantada no Novo Mundo, além de constituir um meio de defesa do território. Já o índio “bravo”, “bárbaro”, inimigo, era destinado ao cativeiro.(Monteiro, 1994, p. 48)

A violência contra os gentios da terra (índios) e as violações da clausula de “guerra justa” para escravizá-los, levou a coroa espanhola a promulgar a lei 1595, que definia “guerra justa” como aquela que consistia apenas de ações autorizadas pela Coroa. De acordo com essa nova legislação, os colonos deveriam pagar salários para os trabalhadores indígenas e que os governadores, magistrados e capitães da Colônia eram obrigados aplicar a legislação. Além disso, a Coroa instituiu que os padres jesuítas tinham a prerrogativa de trazer os nativos do sertão para aldeias sob seu controle. Os colonos podiam contratar índios, mas não tinha permissão para empregá-los por mais de dois meses de cada vez, e um magistrado especial, um leigo português, julgaria todas as disputas surgidas entre índios e brancos. Segue abaixo trecho da lei de 1595, assinada pelo rei Felipe II: [...] sou informado que os moradores do Estado do Brasil usam de modos ilícitos, inventando causas para dizerem que conforme a dita lei os cativam em justa guerra [...] e querendo eu ora nisso prover com o parecer dos de meu conselho [...] [àqueles que] procuram fraudar a dita lei, hei por bem de a revogar como por esta revogo e [ ...] que por nenhum caso [...] os gentios [...] se possam cativar, salvo aqueles que se cativarem na guerra que contra eles eu houver por bem que se faça [ ...] por provisão minha [ ...] por mim assinada [...] (Siqueira, 2011, p. 8)

A lei de 1605, agora sobre a soberania do monarca Felipe III, foi promulgada para reforçar a lei de 1595, em razão do não cumprimento desta pelos colonos luso-brasileiros na América portuguesa, como nos informa a Provisão de 5 de junho de 1605: E por quanto fui informado que, sem embargo das ditas declarações da dita lei [a de 1595], não cessam grandes inconvenientes contra o serviço de Deus, e meu, e consciência dos que assim os cativavam com grande perda das fazendas daquele Estado; mandei por uma provisão de 5 de junho de 1605, que em nenhum caso se pudessem os ditos gentios cativar porque posto que em algumas razões justas de direito se possa em alguns casos introduzir o dito cativeiro, são de tanta maior condição as que se têm em contrário, principalmente pelo que toca à conversão dos gentios à nossa fé católica, que se deve antepor a todas as mais […]. (Siqueira, 2011, p. 11)

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ISSN 2358-4912 De acordo com o historiador norte-americano Stuar B. Schawartz, essas duas leis tinham o objetivo claro de mostrar para os colonos lusitanos que a coroa acompanharia de perto a questão da escravidão indígena na América portuguesa ou até mesmo reproduzir as políticas indigenistas vigoradas na América espanhola. Essas leis deveriam deixar claro para os colonos brasileiros que a política dos Habsburgos relativamente à liberdade dos índios no Brasil seguiria de perto ou mesmo reproduziria às políticas aplicadas na América Espanhola. Ali, a Coroa de há muito transformara a liberdade dos índios em lei, abandonara a concessão de grupos de índios como mão de obra ou tributo a colonos individuais (sistema conhecido como encomienda) e adotara o repartimento, um tipo de trabalho forçado mas pago. A encomienda chegara ao apogeu nos anos de 1540 e, embora prosseguisse até o século XVII (em alguns lugares por mais tempo ainda), a Coroa deixara bem claro que por razões políticas, morais e demográficas queria que essa instituição desaparecesse. (Schawartz, 2011, p. 119)

No entanto, essas duas primeiras leis (1595 e 1605) sobre a questão da escravidão indígena promulgada pela Coroa espanhola não foi tão polêmica e conflitosa como a lei de 1609. Essa lei declarava que todos os índios, cristãos ou pagãos, eram livres por direito natural, e somente os jesuítas tinham o poder de descer os índios do sertão e colocá-los nas aldeias, logo acabou com a brecha legal dos colonos de cativarem os gentios da terra. Além disso, ordenava que todos gentios da terra ilegalmente escravizados deveriam ser alforriados. Como segue: [...] e assim pelo que convém ao bom governo e à conservação da paz daquele Estado e para se atalharem os grandes excessos que poderia haver se o dito cativeiro em alguns casos se permitir, mas de todo se cerrar a porta a isto com o parecer dos do meu conselho, mandei fazer esta lei, pela qual declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme a direito e seu nascimento natural, assim os que já forem batizados e reduzidos a nossa santa fé católica, como os que ainda servirem como gentios, conforme a seus ritos e cerimônias os quais todos serão tratados e havidos por pessoas livres (como são) e não serão constrangidos a serviço nem a cousa alguma contra sua livre vontade […]. (Siqueira, 2011, p. 12)

Enfim, essa Carta Régia de 30 de julho de 1609, garantia a liberdade absoluta e irrestrita dos naturais da terra e o Tribunal Relação, instalado naquele mesmo ano, era o órgão responsável de executar, fiscalizar e punir os transgressores. Ao tomar conhecimento dessa lei, os colonos reagiram com extrema violência em várias capitanias do Brasil. Como argumenta Stuart Schwartz: [...] No Rio de Janeiro, houve uma sinistra ameaça de tumultos, e na Paraíba a Câmara de Filipeia abertamente denunciou a interferência espanhola, afirmando que a lei fora “feita e consulada no reino de Castela”, e que tinha pouca aplicabilidade no Brasil. Os colonos que tinham, reiteradamente, citados exemplos espanhóis em suas tentativas de estabelecer a encomienda, diante de uma lei impopular viraram a casaca no primeiro momento, dizendo que os usos e precedentes espanhóis eram inaplicáveis no Brasil. (Schawartz, 2011, p. 121)

Os colonos da vila de São Paulo também não ficaram de fora dessa reação violenta contra essa legislação que proibia a escravização indígena. “Em 1609, a nova proibição da ordem régia no tocante à escravização dos indígenas provocou protestos em São Paulo, também dirigidos contra ação dos jesuítas e sua política de aldeamentos [...]” (WEHLING, 2005, p. 119). Contudo, os protestos mais violentos ocorram na capital da colônia. Na Bahia, a Câmara saiu em defesa dos interesses dos colonos que se utilizavam da mão-de-obra indígena em suas atividades econômicas. Os membros camarários apontaram que os padres da Companhia de Jesus foram os principais patrocinadores da nova norma régia. Sugeriu-se que os padres fossem expulsos da cidade. Mas as acusações contra os jesuítas não se restringiu somente nos prédios governamentais. Uma multidão fizera uma manifestação contra os religiosos em frente ao Colégio Jesuíta da cidade. Para apaziguar a situação, os jesuítas negaram qualquer participação na formulação da Lei de 1609. Esse episódio evidencia que as reivindicações dos colonos não ficavam somente na esfera de atuação da Câmara Municipal e que essas tensões de poder

904 ISSN 2358-4912 em relação ao controle da mão de obra indígena eram mais complexas e conflitosas na América portuguesa. Os distúrbios populares e as ameaças aos padres fizeram com que o governador-geral, Diogo de Meneses escrevesse a corte descrevendo os problemas gerados pela Lei de 1609 e que essa esta apenas favorecera as conveniências dos padres inacianos e não do bem comum da colônia, como segue abaixo:

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[...] Meneses escreveu à Coroa, em nome dos colonos, enfatizando a importância da mão de obra indígena e os “milhares de inconvenientes” da nova lei. Ressaltou que as entradas para levar índios à costa eram benéficas e nova lei. Ressaltou que as entradas para levar índios à costa eram benéficas e que impedi-las resultaria na redução da força de trabalho, ao passo que o controle dos jesuítas sobre as aldeias só beneficiaria os interesses dos jesuítas, e não do bem comum. (Schawartz,

2011, p. 122) Em razão da forte pressão dos colonos luso-brasileiros, o Rei revogou a lei 1609. Para substituí-la, a Coroa promulgou a Lei de 1611, que reafirmava a liberdade dos índios, mas reabilitava o critério de escravização no caso de guerra justa. A partir dessa lei, a declaração de guerra justa contra os índios deveria ser deliberada através de uma comissão composta pelo governador geral, bispo, padres de várias Ordens e magistrados. Ao governador era dado o direito de autorizar os resgates de índios condenados à morte ritual no terreiro. Os aldeamentos jesuíticos, também a partir dessa lei, seriam administrados por capitães leigos, que seriam escolhidos pelo governador-geral e confirmados pelo chanceler da Relação. Nesse sentido, os capitães leigos passariam a ter a exclusividade do poder temporal sobre os índios nos aldeamentos, não mais os padres jesuítas, mudando assim administração e controle sobre os gentios aldeados. Porém, sucedendo caso, que os ditos gentios movam guerra, rebelião e alevantamento, fará o Governador do dito Estado, Junta com o Bispo, sendo presente, e com o Chanceler, e Desembargadores da Relação, e todos os Prelados das Ordens que for em presentes no lugar onde se fizer a tal Junta e nela se averiguará se convém e é necessário ao bem do Estado fazer -se guerra ao dito gentio e se ela é justa; e do assento que se tomar, se me dará conta com relação das causas que para isso há, para eu mandar ver a aprovando que se deve fazer a guerra, se fará e serão cativos todos os gentios que nela se cativarem. (Mendonça, 1972, p. 323)

Logo, a lei de 1611 tornou-se norma jurídica norteadora da questão dos indígenas, que permaneceu em vigor até 1640, e posterior à Restauração. Ainda segundo o historiador Stuart Schwartz, a lei de 1611 representou um atrás sobre a questão da liberdade indígena no Brasil, retornando a situação legal anterior da polêmica Lei de 1609, que proibia o cativeiro indígena, assim permitindo uma lacuna lícita para os colonos luso-brasileiros a continuarem a escravizar os negros da terra, como segue abaixo: Apesar de cuidadosamente redigida e apoiada por controles legais, a lei de 1611 foi um passo para trás e um retorno ao status quo anterior a 1609. Queixas locais no Brasil tinha obrigado a Coroa a mudar de política. A Relação, a quem foi dado o papel principal na aplicação da lei de 1611, aparentemente não fez uso extensivo de seus poderes nessa esfera, com qualquer regularidade. Outra importante legislação indígena não entraria em vigor antes de 1647 e o estatuto de 1611 continuou a ser a lei da natureza. (Schawartz, 2011, p. 123)

Conclusão Como podemos acompanhar, a proposta deste Artigo está voltada em analisar a política dos Habsburgos espanhóis, durante a União Ibérica (1580-1640), na condução da questão escravidão indígena na América portuguesa, no período compreendido entre 1580 e 1611. Entendemos que a análise da colonização brasileira durante o período filipino exige a ultrapassagem da discussão da historiografia mais tradicional sobre a maior ou menor autonomia de Portugal e suas colônias no período. Nesse sentido, queríamos deixar bem notório, portanto, que apesar da relativa autonomia político-administrativa de Portugal, estabelecida e regularizada por Felipe II nas Cortes do Tomar

905 ISSN 2358-4912 (abril de 1581), que houve uma ingerência direta da administração espanhola nos negócios portugueses no Brasil, sobretudo, na situação jurídica dos ameríndios. Logo, explanamos sobre leis indígenas de 1595, 1605, 1609 e 1611 e as tensões geradas na aplicação dessas normas régias na América portuguesa, que envolvia funcionários régios, colonos e autoridades eclesiásticas. Percebemos que nessas leis o conceito de guerra justa legitimou o uso da força e a imposição de trabalhos forçados aos indígenas resistentes à conversão católica e que fossem hostis com os colonos. Assim, a legislação indígena ao invés de proteger os silvícolas de ações predadoras dos povoadores, acabou legitimando-a com a legação de guerra justa. A abolição da escravidão indígena ocorreu de forma definitiva somente na segunda metade do século XVIII, por iniciativa do marquês de Pombal. Enfim, apesar da relativa autonomia político-administrativa de Portugal, durante a União das Coroas Ibéricas, percebe-se à influência do pensamento produzido na Espanha na questão sobre a escravidão indígena e que essa política foi um dos pontos de maior tensão durante o período colonial no Brasil e envolveu diferentes interesses dentro da sociedade colonial. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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CAPITANIA DE MATO GROSSO NO SÉCULO XVIII: O SERTÃO ENTRE AUTORIDADES, MEDOS, DOENÇAS E HOSPITAIS Miksileide Pereira2804 Considerações Iniciais Buscar índios e encontrar riquezas auríferas eram os objetivos quando Portugal olhava para o sertão colonial: ao mesmo tempo que disseminava medo do desconhecido, recheava as ideias dos viajantes sobre riquezas, terra e poder (GALETTI, 2012, p.50). A região do Mato Grosso colonial já estava entre conhecimento desde o século XVII, como local de captura de nativos. Mas foi no século XVIII, que as terras passaram a ser devassadas pelos sertanistas (CANOVA, 2008, p.76). Em 1719 Paschoal Moreira Cabral descobriu ouro junto a um afluente do rio Cuiabá e em 1722 foi descoberto ouro em Cuiabá, erguida a categoria de Vila em 1727 , quando passou a ser conhecida como Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, Vila Real ou Vila do Cuiabá e em 1752 para ser a sede da Capitania, foi fundada Vila Bela da Santíssima Trindade, região estratégica de defesa do território. Um ilustre que participou de seu povoamento foi Rodrigo César de Menezes, estabeleceu o fisco, administrou a Câmara e aparelhou a burocracia (Idem, 2008, p.77). Logo no início do desenvolvimento da região, em 1738, uma carta dos oficiais da Câmara da Vila do Cuiabá descreveu sobre tudo o que consideravam necessário para a conservação da povoação. A vinda de missionários para os infiéis indígenas, a assistência, a construção de edifícios na vila, o envio de artilharia para a defesa do território2805 e para as doenças existentes na região, era sugerida a ideia de Casas de Hospitais com remédios necessários e pessoas que pudessem aplicá-los2806. Somente na segunda metade dos Setecentos é que se tem documentos sobre Hospitais Militares na região como espaços de curas legitimados. Tanto em Vila Bela como em Vila do Cuiabá, Hospitais Militares estiveram no atendimento das tropas, mas também da população. Assim, cuidar do corpo era uma preocupação administrativa. Outros espaços médico-hospitalares também são construídos ao longo do século XVIII, como na região do Forte de Miranda que após sua fundação em 1797, o hospital também passou a ser acrescentado nos documentos como parte do cotidiano do presídio na região (TULUX, 2012, p.187). Moradores doentes e seus pedidos Se na América portuguesa os primeiros contatos se realizavam imbuídos de uma admiração do maravilhoso até então desconhecido e um fascínio diante da natureza exótica e exuberante (HOLANDA, 2010), as doenças fizeram parte de outra construção sobre o Novo Mundo em que o medo das doenças desconhecidas caracterizou outras representações dos novos domínios portugueses. As doenças então podem ser vistas pela historiografia como parte modificadora da sociedade e de suas relações (NASCIMENTO; CARVALHO; MARQUES, 2006). Viajar para o interior da Colônia em meados do século XVIII era uma oportunidade de conquista, porém as doenças encontradas eram obstáculos para esse empreendimento. A Colônia ofereceu muitas riquezas, mas era importante vencer alguns obstáculos, domar a natureza e o clima com suas intempéries (RIBEIRO, 1997, p.22). No ano de 1743 Manoel Antunes Nogueira chegou a Vila Real para tomar posse de seu cargo como ouvidor2807. No ano seguinte enviou uma carta ao rei Dom João V onde sua obrigação estava limitada devido à sua precária condição de saúde. Em carta, descreveu que o clima tanto de Vila Real como nos 2804

Mestranda em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)/MS. Contato: [email protected] 2805 Ataques indígenas e ameaças de invasão pelos colonos espanhóis. 2806 CARTA (cópia) dos Oficiais da Câmara da Vila do Cuiabá ao rei D. João V. Vila de Cuiabá, Setembro de 1738. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 107. 2807 Annaes do Senado da Camara do Cuyabá: 1719-1830/ [transcrição e organização Yumiko Takamoto Suzuki]. – Cuiabá, MT: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. p.73.

907 ISSN 2358-4912 Arraiais próximos se tinham por “pestilencial” aonde “ninguém vai a ele sem que morra, ou esteja em perigo de vida”2808. Assim, descreveu não poder continuar seu ofício, pois segundo o ouvidor “eu esteja para isso impossibilitado pelas contínuas e graves queixas que padeço”2809. Manoel Antunes Nogueira faleceu cinco anos depois, em 17482810, mas não se teve acesso aos possíveis motivos de sua morte. O ouvidor acrescentou também um certificado dos vereadores:

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Certificamos que o Doutor Ouvidor Geral desta Comarca Manoel Antunes Nogueira desde que a ela chegou a exercer o dito cargo até o presente tem padecido de contínuas moléstias, e sem esperança de perfeita saúde, segundo informou os cirurgiões, por despeito do clima do país ser 2811 contrário a sua natureza .

A mudança de ares era uma prática terapêutica constante, afinal, acreditava-se que o ar poderia estar “doente” e “pestilento”, e que carregaria então, toda sorte de doenças (LE GOFF, 1997). Assim se fazia necessário essas mudanças, sempre que possível para outros lugares desprovidos de “ares pútridos”, para manter o corpo sempre limpo e saudável (MIRANDA, 2011, p. 33). Uma autoridade que merece atenção é governador-capitão General Luis Pinto de Sousa Coutinho. O terceiro governador e capitão general da Capitania de Mato Grosso entre os anos de 1769 – 1773, teve suas moléstias sempre relatadas em suas cartas. No ano de 1770 o governador e capitão-general Luis Pinto de Sousa Coutinho passou em torno de uns seis meses no Forte de Bragança para a sua reconstrução após várias enchentes destruiu o Forte que anteriormente fora erguido no local2812. No mês de Novembro, enviou um ofício ao Conde de Oeiras, para ser lida diante da presença do rei Dom José I. Deu notícia de seu estado de saúde, que segundo o governador era “deplorável”. Em ofício salientou que: (...) ponho na presença de Sua Majestade com os documentos justificativos, do deplorável estado de saúde a que me tenho reduzido em o decurso deste presente ano, e como além das graves moléstias que tenho padecido, não cessam de repetir-me as contínuas de fluxos que me atacaram os olhos, e os ouvidos, reduzindo-me quase ao estado de uma inteira surdez, e de uma gravíssima ofensa na vista 2813

.

O seu desejo de não mais estar na região fez com que enviasse mais cartas e ofícios para o Conselho Ultramarino, para serem lidas diante do rei Dom José I. No mesmo ano de 1770, no mesmo mês, ainda estava no Forte de Bragança e redigiu mais um ofício onde pediu seu imediato afastamento. Para o governador o “infeliz estado de saúde em que me acho conduzido, me obriga a despachar sem perda de tempo...”. No mais, também que fosse possível ser nomeado para ares mais compatíveis com a sua constituição. Em seu ofício: (...) não tenho logrado um único instante de saúde, porque, além da continuação de algumas febres tenazes, que me puseram por vezes em evidente perigo; tenho sido acometido ao mesmo tempo de

2808

Carta do Ouvidor da Vila de Cuiabá Manoel Antunes Nogueira ao rei D. João V. Vila de Cuiabá, 22 de Novembro, 1744. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 186. 2809 Ibidem. 2810 Annaes do Senado da Camara do Cuyabá: 1719-1830/ [transcrição e organização Yumiko Takamoto Suzuki]. – Cuiabá, MT: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. p.75. 2811 Carta do Ouvidor da Vila de Cuiabá Manoel Antunes Nogueira ao rei D. João V. Vila de Cuiabá, 22 de Novembro, 1744. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 186. 2812 O Forte de Bragança reconstruído em 1771, tinha sido erguido em 1761, com o nome de Forte de Nossa Senhora da Conceição. A principal razão para a construção de uma fortaleza na região, lado direito do rio Guaporé, foi a defesa do território dentro de um discurso de legitimação do poder português no local e da sua proteção. Após a expulsão dos espanhóis na região, a guarda militar Santa Rosa se fixou no local que mais tarde denominou-se Nossa Senhora da Conceição. O Forte, de maneira rústica e simples, não resistiu às enchentes de 1771, sendo necessária a reconstrução do Forte. Em: FERNANDES, S. E. Fortes Militares. In: JESUS. N. M. de. Dicionário de História de Mato Grosso, p. 142 – 143. 2813 Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso Luiz Pinto de Sousa Coutinho ao Conde de Oeiras. Forte de Bragança, 1770. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 912.

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ISSN 2358-4912 dois fortíssimos ataques, tanto aos olhos, como aos ouvidos, os quais, quase me tem deixado surdo, e 2814 com grande ofensa na vista:(...) .

O primeiro documento encontrado do governador sobre a sua condição física e seus “apelos” foi do ano de 1769. De Vila Bela, antes de sua viagem para o Forte de Bragança, descreveu que sua saúde que já se encontrava “péssima”. Segundo o governador: “conto as diversas e respectivas sezões que tenho tido, pelos diferentes meses que aqui tenho residido”2815. Enfatizou que suas moléstias lhe causavam fraqueza de ânimo, o que o frustrava muito, pois para o governador a “honra de servir a Sua Majestade me é mais preciosa que a vida”2816. Ao finalizar seu ofício, concluiu que: “espero merecer da singular proteção de Vossa Excelência: sendo-se um estímulo que poder servir-me sobre os meus próprios defeitos, e que pode fazer suprir com zelo aquele talento que me dotou a natureza” 2817. Demonstrar interesse em servir à Coroa e obedecer as ordens reais fazia parte da política portuguesa que se entrelaçava entre o interesse da Coroa, seus Conselhos administrativos e os vassalos que pudessem se dispor de recursos numa rede de fidelidade dentro do corpo social português (OLIVAL, 2009). Deste modo, as correspondências que eram enviadas à Portugal se mesclava com dois fatores: demonstrar a posição de vassalo dos colonos diante da ordem real e também uma possível chance de terem, os colonos, seu interesses alcançados, pois a distribuição de recompensas faziam parte da própria estrutura política portuguesa no século XVIII (SCHWARTZ, 1988. p. 212). Contudo não se pode desconsiderar a saúde do governador. Dores agudas na cabeça, quase uma cegueira, desmaios e febres eram indícios de que a saúde do governador não estava de toda “saudável”. Ao desconsiderar seus “exageros”, também é possível fazer uma observação dos sintomas que afligiam o governador. De Vila Bela, em 1771, o governador Luis Pinto de Souza Coutinho colocou em evidência mais uma vez seu estado de saúde onde registrou que vinha padecendo dor sobre os olhos, que já o tinha ameaçado por três vezes de uma completa cegueira 2818. No parecer em anexo, o cirurgião Antônio da Silva Coutinho confirmou que: (...)o Senhor Luis Pinto de Sousa Coutinho, Governador e Capitão General desta Capitania esta padecendo a dez meses, continuamente uma febre intermitente e muitas sezões cotidianas e dupla, uma relaxamento no estômago, um zunido de ouvidos, e tem sido acometido em várias ocasiões de 2819 vertigens tão fortes, que o fazem cair, ficando fora de seus sentidos por algum espaço de tempo .

O cirurgião também alertou sobre o estágio da moléstia que atacava o governador: (...) por razão de complicação das febres, enfermidade neste País em todo o tem passado os seus habitantes, e por estas causas se acha o dito Senhor em evidente risco de ficar cego, com qualquer maior acometimento que tenho na dita oftálmica: como também depender a vida com tão contínuas enfermidades, e não poder resistir, por ser de um temperamento e constituição sumamente débil (...) 2820

.

No fim do ano de 1771, Luis Pinto de Souza Coutinho finalizou seu pedido, numa, quem sabe, última tentativa de conseguir sua mudança. Em ofício enviado ao Marquês de Pombal, descreveu que:

2814

Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso Luiz Pinto de Sousa Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça. Forte de Bragança, 1770. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 914. 2815 Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Luiz Pinto de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Vila Bela, 1769. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 860. 2816 Ibidem. 2817 Ibidem. 2818 Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Luis Pinto de Sousa Coutinho a Martinho de Melo e Castro. Vila Bela, 1771. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 921. 2819 Ibidem. 2820 Ibidem.

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ISSN 2358-4912 A contínua opressão que sofro, é mui dolorosa; este é o fiel retrato do meu estado presente e a relação do pretérito: Não tenho nada mais que suplicar a Vossa Excelência, porque seria ofender de 2821 alguma sorte o seu generoso coração cheio de humanidade, de inteireza e de justiça .

Alertou o governador para seus achaques, que segundo ele, estavam num estágio pior: Eu me tenho visto por muitas vezes quase cego, e surdo, e os contínuos ataques que me sobrevêm, me prognosticam uma total ruína, num País em que tenho tido em 3 anos 19 vezes sezões, quase sempre febre, e 2 esquinências perigosas 2822.

Fazer das doenças motivos para se ausentarem do Mato Grosso colonial fez parte da política das autoridades ou outros sujeitos que pudessem de alguma forma, expor seus interesses e intenções. No campo político, o corpo social das Câmaras era multifacetado entre autonomia, barganhas e adaptações (JESUS, 2011, p.12). Por meio de documentos régios, as doenças forma importantes personagens que permeavam essas relações políticas na Colônia. O tenente general Victoriano de Freitas da Cunha, em 1753, se achando em Vila Real, viu-se doente e pediu uma licença pra ir ao reino tratar de suas moléstias, que segundo o mesmo eram enfermidades causadas pela sua debilidade e crueza do estômago2823. O médico José S. Machado certificou o estado de saúde em que se encontrava o tenente general: (...) tem padecido de repetidas obstruções nos Hipocôndrios, mesentério, as (...) e ao presente se acha o enfermo de uma vertigem e dores de cabeça periódicas, que mais se agravam com belo dia a lua e o céu: causada (...) e que padecem de semelhantes obstruções; (...). Atendendo a estes princípios, se acha o enfermo em dificuldade a dedicar-se na cura, de sorte em clima tão oposto e a falta de vigorosos 2824 remédios e regime que precisam-se mediante moléstias .

Seria uma enfermidade considerada tão grave para que esse pedido fosse enviado? Não haveria remédios disponíveis na Capitania ou agentes de curas habilitados? Antônio Manoel, cabo da esquadra da Companhia de Dragões, salientou em seu requerimento em Maio de 1753 sobre suas “sezões tão rebeldes, que no decurso não tem aproveitado os remédios que pode haver naquele Continente ante continuação de sorte, ameaçam perigo devido (...)”. Para Antônio Manoel, suas sezões não poderiam encontrar a cura num lugar em que não houvesse remédios “adequados” para o tipo de moléstia que contraiu 2825. O cabo Antônio Manoel, pediu para se retirar para o Reino num período de três anos, pois “sem esperança de melhora naquele clima” acreditava que sua saúde seria restaurada em ares “pátrios”. Em resposta: “A Antônio Manoel, cabo da Esquadra da Companhia de Dragões da guarnição de Mato Grosso, se há de passar a Licença por tempo de dois anos”2826. Outras autoridades, porém, descreviam a região com outros olhares. Anos antes do governador Luis Pinto de Souza Coutinho, o governador Antônio Rolim de Moura Tavares - Conde de Azambuja – que governou a Capitania entre 1751-1765, enviou a Tomé Joaquim da Costa Corte Real (secretário do Ultramar), em 1756, um ofício descrevendo entre outras coisas, que o “clima” da terra já não era o mesmo de antes, que se tornara melhor. Salientou:

2821

Ofício do governador e capitão general da Capitania de Mato Grosso, Luis Pinto de Souza Coutinho ao Marquês de Pombal. Vila Bela, 1771. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 958. 2822 Ibidem. 2823 Requerimento do tenente general Victoriano de Freitas da Cunha ao rei [D. José. Vila Real, Fevereiro de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 509. 2824 Ibidem. 2825 Requerimento do cabo da esquadra da Companhia de Dragões Antônio Manoel Infante ao rei D. José. Maio de 1753. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc. 419. 2826 Ibidem.

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ISSN 2358-4912 Eu tenho passado melhor do que podia esperar desta terra; ainda que até os climas se domesticaram (...), há de haver sucedido que posto era doentio, é muito diferente do que os seus antigos habitadores 2827 . (...) Fico para servir a Sua Excelência com prontíssima vontade

Os que conseguiam a mudança para outras capitanias ou tinham seus pedidos atendidos, restavalhes honrar a Coroa com novos votos de fidelidade. Em ofício para o secretário Francisco Xavier de Mendonça Furtado em 1763, o governador Conde de Azambuja louvou sobre sua nomeação para a Bahia2828. Deixar a Capitania de Mato Grosso e estar mais “próximo do mar” poderia representar estar mais próximo da Coroa: (...) que as circunstâncias mais estimável delas é a demonstração pública, que Vossa Majestade quis dar por este meio, de que lhe não, em qual eu trabalho, que aqui tenho sido no seu serviço, pois o fim a que anda o meu desejo e a minha diligência é servir ao dito Senhor a sua satisfação, cuja obrigação, sendo-nos rigorosíssimas como vassalos, como Portugueses e como Católicos, só faz 2829 ainda mais precisa e obrigatória na felicidade de servir a um Rei tão generoso .

As doenças, através dessas leituras, estiveram dentro dos interesses políticos de autoridades na Capitania de Mato Grosso. Obter mercês e recompensas eram objetivos dos colonos na América portuguesa (RICUPERO, 2009) e conseguir permissões para se ausentarem devido as doenças também podem ser entendidas como partes dessas concessões que a Coroa fornecia. Considerações Finais Este artigo tentou ressaltar que na região do Mato Grosso colonial, as doenças muitas vezes foram utilizadas como caminhos para alcançar determinados interesses de moradores doentes, principalmente autoridades. Não se negou as doenças descritas em suas correspondências, no entanto, tentou demonstrar as tentativas de interesses, solicitações pessoais que uma parte da elite local na Capitania de Mato Grosso exerceu diante das doenças sofridas na região. A região do Mato Grosso colonial era permeada de medos e doenças que fizeram presença na política local. Conseguir essa permissão de se ausentar ou até mesmo a mudança para outros lugares fez parte das autoridades na Capitania de Mato Grosso. Todo o século XVIII vai ter a região sempre vista em suas mais negativas formas, pelo menos por boa parte das autoridades em suas descrições. Assim, o sertão era encarado como lugar de doenças, de barbárie, onde o clima estimulava a dor no corpo com suas mazelas. As doenças na historiografia são abordagens muito ricas para entender de forma mais ampla as representações de valores no corpo social. A doenças assim, é um fenômeno cultural que permeia as situações, como aconteceu na Capitania de Mato Grosso, durante o século XVIII. Referências ANNAES DO SENNADO DA CAMARA DO CUYABÁ: 1719-1830. Transcrição e sua organização Yumiko Takamoto Suzuki. Cuiabá, MT: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007. Fontes do Arquivo Histórico Ultramarino - AHU CARTA (cópia) dos Oficiais da Câmara da Vila do Cuiabá ao rei D. João V. Vila de Cuiabá, Setembro de 1738. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 107. Carta do Ouvidor da Vila de Cuiabá Manoel Antunes Nogueira ao rei D. João V. Vila de Cuiabá, 22 de Novembro, 1744. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 186. 2827

Ibidem. Ofício do Conde de Azambuja ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Nossa Senhora da Conceição, Novembro de 1763. Arquivo Histórico Ultramarino. Doc.715. 2829 Ibidem. 2828

911 ISSN 2358-4912 Ofício do Conde de Azambuja ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Nossa Senhora da Conceição, Novembro de 1763. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 715. Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Luiz Pinto de Souza Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Vila Bela, 1769. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 860. Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso Luiz Pinto de Sousa Coutinho ao Conde de Oeiras. Forte de Bragança, 1770. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 912. Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso Luiz Pinto de Sousa Coutinho a Francisco Xavier de Mendonça. Forte de Bragança, 1770. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 914. Ofício do governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, Luis Pinto de Sousa Coutinho a Martinho de Melo e Castro. Vila Bela, 1771. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 921. Ofício do governador e capitão general da Capitania de Mato Grosso, Luis Pinto de Souza Coutinho ao Marquês de Pombal. Vila Bela, 1771. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 958. Requerimento do cabo da esquadra da Companhia de Dragões Antônio Manoel Infante ao rei D. José. Maio de 1753. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 419. Requerimento do tenente general Victoriano de Freitas da Cunha ao rei [D. José. Vila Real, Fevereiro de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Documento: 509.

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ISSN 2358-4912

EM MEIO AO SAGRADO, A FUGA DO PECADO: OS SENTIMENTOS ENVOLTOS NOS CASAMENTOS NO BRASIL COLONIAL Mona Mirelly Viana Bandim2830 Introdução Discutir sobre a intimidade entre homens e mulheres no casamento na atualidade pode soar um tanto irrelevante, já que, além de escolher os próprios cônjuges, entende-se que nas relações íntimas do casamento é necessário que haja prazer em consequência do amor que os uniu. No entanto, não era dessa maneira que procedia ao matrimônio na colônia. Pelo contrário, além de o casamento ser tido, pela Igreja e sociedade civil, como “uma instituição básica para a transmissão do patrimônio”, as relações sexuais tinham como única finalidade a de procriação, pois o prazer era sinônimo da “desordem e do perigo”. E a mulher era sempre associada como “instrumento do pecado”, que por sua vez submetia-se a “domesticação do amor conjugal”. O presente artigo, portanto, objetiva analisar como se dava, na prática, a purificação do casamento e a predisposição das mulheres em dar lugar aos seus sentimentos e desejos num contexto onde as relações de gênero eram extremamente desiguais, e ir de encontro às regras poderia trazer consequências desastrosas para elas mesmas. Questões de gênero Ao falar de gênero, sua definição é simplificada à gramática, supondo a diferença dos sexos feminino e masculino e não como a diferença biológica passou a ser determinante para a construção de uma sociedade de dominação de um ser sobre o outro. Portanto, o termo gênero, analisado historicamente, segundo Carla Pinsky, faz parte de uma construção social onde as diferenças sexuais são perceptíveis. Não se resume, contudo, ao domínio do homem sobre a mulher, mas é bem mais ampla do que se costuma saber: domínio de uma raça sobre outra, da superioridade econômica, da subserviência de mulheres às próprias mulheres (no período de escravidão no Brasil, por exemplo, o tratamento dado a mulher branca era diferenciado do da mulher negra. Se a mulher já era desprovida de direitos, a negra nem sequer era considerada gente, subserviente a homens e mulheres, de acordo com suas necessidades). No entanto, iremos nos deter a essa dominação mais comum, porém não menos instigante, que era o poder que o homem exercia no período colonial, mais que a mulher e sobre a mulher. A partir das diferenças de gênero, as relações entre o feminino e o masculino se distanciaram absurdamente e durante um longo período desde quando tais distinções não eram feitas apenas pela caça e coleta, pois até então, a divisão de tarefas servia mais para facilitar o cotidiano das famílias do que medir forças a fim de controlar o outro. Seria um equívoco absurdo afirmar que no século XXI homens e mulheres são vistos igualmente e tenham superado uma sociedade historicamente machista e manipuladora. Entretanto, cada época essa relações se dão de maneira distinta, já que, fazem parte de um processo cultural, se produzem e reproduzem de acordo com variados contextos, no qual, “a desigualdade não é a divisão do trabalho em si, mas o valor que as sociedades atribuem às atividades desempenhadas”2831. No interior do casamento do período colonial no Brasil a subjetividade é um elemento forte que serviu para a permanência da interferência de Instituições e da ciência entre os casais. Pois, na sociedade, a mesma pode ser influenciada pelas relações de gênero, o que irá definir

2830

Graduanda em História, UPE – Garanhuns. Email: [email protected] PINSKY, Carla Bassanezi. (org.), Novos temas nas aulas de História. 2. Ed., 2° reimpressão, São Paulo, Contexto, 2013, p. 43, 44 2831

913 ISSN 2358-4912 os modos e os limites pelos quais uma pessoa é educada, tem experiências familiares, afetivas e de trabalho, vê o mundo e a si mesma e é vista pela sociedade, em época e contexto determinados.2832

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Tornando o matrimônio paradoxal e vazio de sentimento. Repleto de pensamentos radicais, porém, de comportamentos promíscuos e arriscados. Santificação do leito conjugal A relação de poder já implícita no escravismo, presente entre nós desde o século XVI, reproduzia-se nas relações mais íntimas entre maridos, condenando a esposa a ser uma escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa. Sua existência justificava-se por cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao chefe da família com seu sexo2833.

A colônia portuguesa, por influência dos próprios colonizadores, era muito religiosa e devota, sendo regida pelos preceitos da Igreja Católica que interferia nos assuntos mais íntimos da colônia, inclusive o casamento. Dando orientações desde a finalidade, o processo para encontrar a pessoa ideal até como o casal deveria se comportar nas relações sexuais, a fim de o leito conjugal não ser manchado pelo pecado. Na escolha do cônjuge a Igreja propunha que pessoas de condição social distinta não se relacionassem, ainda que ambos nutrissem algum afeto. Mas, ao contrário do que busca ter entre os casais nos dias atuais, o sentimento era a última coisa que se incentiva encontrar num indivíduo com quem deveria passar a vida inteira juntos. E o divórcio estava fora de cogitação, caso as coisas não saíssem como planejado. Por isso, A escolha do futuro cônjuge, baseada no princípio da igualdade, exigindo do homem um estabelecimento sólido, um modo de vida definido, era, portanto, uma questão na qual o entendimento e a razão deviam ser guias condutores2834.

Todo esse cuidado na escolha do esposo/esposa não passava de uma estratégia para preservação do patrimônio, “sendo sua origem fruto de acordos familiares e não da escolha pessoal do cônjuge. – para impedir a dispersão de fortunas acumuladas”2835. A Igreja ainda orientava o homem a escolher a esposa pela capacidade dela de inspirar sentimentos de devoção e piedade, não pela beleza física, caso contrário, ele estaria a mercê das vontades femininas, ameaçando o equilíbrio do matrimônio, e a mulher poderia usar desse artifício para mandar no lar, invertendo os valores bíblicos. Quem ama sua mulher por ser formosa, cedo se lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é verdadeiro amor, senão apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muito não durará [...] e logo a natureza muda os desejos, a vontade, os efeitos, o amor fica fingido e o casamento desordenado2836.

Depois de tantas regras e cuidado, presume-se que os casais, enfim casados, executassem suas próprias regras, podendo se relacionar sexualmente com a finalidade que bem entendessem, para a procriação ou pelo prazer. Entretanto, a Igreja não se limitava, no que se refere as interferências nas famílias, mas limitava as famílias à obrigação do cumprimento de papeis na sociedade. Ao homem, foi constituído ser o cabeça e provedor do lar. Já a mulher, deveria estar confinada em casa obedecendo ao 2832

Idem. DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, p. 17. 2834 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, p. 21. 2835 Idem, p. 21. 2836 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, p. 26. 2833

914 ISSN 2358-4912 marido e cuidando dos filhos. E o que acontece no leito conjugal seria apenas para dar continuidade à descendência humana, ou seja, procriar.

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Alguns manuais de confessores espelhavam o ponto de vista do jesuíta Tomás Sanchez que, na virada do século XVII, fazia soprar novos ventos sobre o discurso da sexualidade conjugal. Ele julgava o prazer pelo prazer totalmente condenável. Mas o prazer que levasse à procriação, fim último do ato sexual, era permitido2837.

Sendo assim, não seria necessário que ele [o amor] preexistisse ao casamento2838. A amizade no mesmo, era suficiente e inofensivo a desordem humana, já que, “não é nem "um suplemento", nem um "luxo", mas um dos componentes dos laços sociais existentes — e necessários — entre as famílias”2839. O amor está submetido ao ritmo do desejo, "fogo temerário e inconstante": ao contrário da amizade, "o gozo o destrói, pois tem uma finalidade corporal e sujeita à saciedade" e “ele se esvai e se enlanguesce”2840.

É no mínimo curioso, como uma instituição religiosa que, se utilizava dos preceitos bíblicos para orientar seus fieis se utilizavam desses textos, deturpando suas interpretações, a fim de aprisiona-los em seus próprios interesses e dos do Estado, contribuindo ainda mais para uma sociedade machista e desviada. Pois, ao “obedecer a Deus” mantendo a pureza do casamento, sem poder ter a sua mulher como a uma “amante”, o marido iria em busca de uma amante literalmente, mantendo relacionamentos extraconjugais e descarregando todos seus desejos e paixões fora de casa, para que quando voltasse tivesse forças suficientes para controlar suas vontades mais lascivas, podendo corromper-se a si mesmo e a sua mulher, correndo o risco de irem para o inferno por ter cometido tão grande pecado: o prazer e possibilidade da vidaa dois. Há, entretanto, um paradoxo no casamento colonial. A cama é imaculada, mas os casais se mancham sem culpa e sem medo com o “consentimento” da Igreja, já que que é colocado um fardo insuportável que nem mesmo a bíblia coloca. Pelo contrário, o livro bíblico “Cântico dos cânticos” ou “Cantares de Salomão” expressa, do início ao fim, uma mistura de amor, paixão e amizade entre o casal sem que haja punição divina, e onde a mulher expressa paixão tanto quanto o homem: Ah, se ele me beijasse, se a sua boca me cobrisse de beijos... Sim, as suas carícias são mais agradáveis que o vinho. A fragrância dos seus perfumes é suave; o seu nome é como perfume derramado. Não é à toa que as jovens o amam! Leve-me com você! Vamos depressa! Leve-me o rei para os seus aposentos! Estamos alegres e felizes por sua causa; celebraremos o seu amor mais do que o vinho. Com toda a razão você é amado!

(Cânticos 1:2-4) Ainda no mesmo livro bíblico, o amado, como é tratado o interlocutor masculino descreve com satisfação sua amada. Seus lábios são como um fio vermelho; sua boca é belíssima. Suas faces, por trás do véu, são como as metades de uma romã. Seu pescoço é como a torre de Davi, construída como arsenal. Nela estão pendurados mil escudos, todos eles escudos de heróicos guerreiros.

2837

DEL PRIORI, Mary História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, p. 30. Idem, p. 77. 2839 CHARTIER, Roger. (org.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes,Tradução Hildegard Feist. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 444. 2840 Idem, p. 445. 2838

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ISSN 2358-4912 Seus dois seios são como filhotes de cervo, como filhotes gêmeos de uma gazela que repousam entre os lírios. Enquanto não raia o dia e as sombras não fogem, irei à montanha da mirra e à colina do incenso.

(Cânticos 4:3-6) Então, se na própria bíblia, que é o guia dos cristãos, não condena o casamento vivido com amor envolto de prazer, como a Igreja asseverava que, caso os maridos se amassem apaixonadamente suas esposas e vice-versa, iria “perverter a obra divina”? E ao invés de toda repressão no matrimônio, fosse dado ao casal a liberdade satisfazer seus desejos livremente, o adultério não poderia diminuir? Tal ato também era condenado pela Igreja. A fuga do pecado Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona a mente2841.

A citação acima foi feita por dois dominicanos, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, e incutida pela Igreja aos fieis, pelo Estado aos colonos e até mesmo pela medicina que passa a “tornar-se cada vez mais uma instituição de policiamento de costumes e de repressão moral”2842. Contribuindo assim, para a tentativa de “adestramento da sexualidade feminina”, enfatizando ainda mais a superioridade masculina. Contudo, em meio a obediência da mulher para com a Igreja e marido, havia muitas que não eram vencidas pelas regras e, “predispostas ao amor, mesmo no século XVIII elas também sabiam atrair e... trair”2843. Mas como as mulheres, subservientes aos seus maridos, impedidas de sair de casa, a não ser para ir à igreja, conseguiam ter também relacionamentos extraconjugais? Enquanto o homem tinha liberdade de sair quando e hora que lhe fosse conveniente, a mulher só tinha liberdade de ir à igreja fazer suas orações e confissões, e era nesse lugar onde conseguia despistar Igreja, Estado e marido, e “enquanto se faz o sinal da cruz, pronuncia-se no tom da mais fervorosa prece a declaração de amor2844.” Não apenas as mulheres casadas, fugindo de seus casamentos monótonos, fazia da igreja um local de sedução e libertação das paixões, mas as mocinhas protegidas e comumente vigiadas por seus pais também tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões sedutoras, para as quais contribuíam os moleques-de-recados e as alcoviteiras, ajudando a tramar encontros. ... um dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, os quais envolviam nada menos do que os próprios confessores. E tais jogos eram perpetrados até mesmo, (...), no refúgio dos confessionários2845.

Se o adultério já era condenável, o adultério cometido pela mulher então, era uma afronta à estabilidade social e virilidade do marido, e quando descobertas, as ligações consensuais poderiam se tornar em tragédia. As ordenações eram bem claras ao punir essas transgressoras: Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero, fidalgo, desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Assim, enquanto a condição social do parceiro do adultério era levada em conta, à

2841

DEL PRIORI, Mary. (org.), História das mulheres no Brasil, 9. Ed. 1 reimp., São Paulo, Contexto, 2008, p. 46 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, descrição de imagem, p. 104. 2843 Idem, p. 59. 2844 DEL PRIORI, Mary. (org.), História das mulheres no Brasil, 9. Ed. 1 reimp., São Paulo, Contexto, 2008, p. 62 2845 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, descrição de imagem, p. 41 2842 13

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ISSN 2358-4912 condição social da adúltera não se revestia da menor importância. Tanto podia ser morta pelo marido a plebéia como a nobre. Outra punição para as adultas, o confinamento em um convento2846.

Mesmo com todo o risco de ser flagradas e punidas severamente, a paixão era forte demais para ser contida, e as mulheres usavam dos mais variados artifícios e dos momentos mais sagrados para fazer com que o pecado escapasse e os homens ficassem perdidamente apaixonados. As festividades da Igreja eram momentos oportunos para esse jogo de sedução e corrupção do espírito e do corpo. “Trajes sumários, trajes excessivos, trajes descompostos, todos eram artifícios culturalmente aceitos e admirados para incitar o desejo masculino, confirmar posição social e sublinhar a sedução do feminino2847.” A mulher, no entanto, poderia ser redimida da condição de pecado, na qual não estava através dos atos cometidos, mas herdados desde seu nascimento, por causa do primeiro pecado cometido por Eva. “A maternidade era o ápice da mulher. Afastava-se da imagem pecadora de Eva e passava a ser comparada a virgem Maria2848”. A maternidade até que poderia redimir a condição da mulher pecadora para a Igreja, mas não era capaz de subjugar o coração ardente de paixão, no qual, não poderia ser revelado e consumado com seu marido. Tendo apenas duas opções: enlouquecer de desejos, mas continuar sendo a esposa virtuosa e dedicada ao lar, ou a que servia de “instrumento do pecado”, mas findava a agonia. A segunda opção, de certo, era mais atrativa aos olhos e ao corpo inteiro, e não importava o quanto as leis e sermões repreendiam tal conduta, muitas mulheres se permitiam viver e exteriorizar o que sentiam. De modo algum concordo com o adultério, seja cometido por homem ou por mulher, mas ao compreender o contexto social no qual a mulher se encontrava no período colonial no Brasil, cativa às vontades masculinas, fossem pais, irmãos e maridos, e ainda a Instituição religiosa, que deveria orientar segundo as escrituras que defendia, mas corroborava ainda mais com a sociedade machista e sobrecarregava os indivíduos que poderiam viver um casamento amistoso, duradouro e sinceramente puros, não pela obrigação de cumprir tarefas sociais, mas pela satisfação de estar com alguém que nutrisse sentimentos recíprocos e mútuos, serve para enfatizar a mulher como agente ativo na história, não se rendendo perpetuamente ao contexto vivido. Estratégias vezes engraçadas vezes trágicas executadas pelas mulheres para fugir dos casamentos da colônia e render-se as paixões, momentâneas ou não, demonstram resistência ao regime imposto a elas. E por mais errada que fosse expressar essa, contribuíram para a possibilidade de movimento e mudanças na história. Pouco a pouco, a diferença entre amor fora e dentro do casamento dilui-se, pelo menos no imaginário das pessoas letradas. (...)o erotismo extraconjugal deveria entrar no casamento afugentando a reserva tradicional. Nesse ideal, passa a existir um único amor, o amor-paixão, enquanto as características que retardavam o triunfo do amor, feito de sentimento e sexualidade, 2849 começam a ser postas em xeque .

Considerações finais Ao conquistar o Novo Mundo os portugueses trouxeram consigo seus costumes e sua religião cristã, no qual seus representantes impunham severamente os pensamentos e as leis “bíblicas” em toda a colônia, a fim de, intervir em todas as áreas da vida de seus indivíduos. Inclusive nas relações amorosas. Desde o propósito do casamento até a forma de o marido e a mulher se relacionar sexualmente, tendo o matrimônio como “uma instituição básica para a transmissão do patrimônio” e a sexualidade apenas para procriação. Anulando assim, todo tipo de sentimento avassalador entre o casal. Pelo contrário, o casamento era justamente “o remédio que Deus dera aos homens para que estes se preservassem da imundície”. No entanto, para os homens era mais fácil manter seu leito conjugal “puro”, pois ele tinha liberdade de para sair de casa quando bem entendesse, possibilitando um 2846

DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, descrição de imagem, p. 57 DEL PRIORI, Mary. (org.), História das mulheres no Brasil, 9. Ed. 1 reimp., São Paulo, Contexto, 2008, p. 58 2848 DEL PRIORI, Mary. (org.), História das mulheres no Brasil, 9. Ed. 1 reimp., São Paulo, Contexto, 2008, p.52 2849 DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006, descrição de imagem, p. 112 2847

917 ISSN 2358-4912 relacionamento extraconjugal. Já para a mulher a solução era conter suas paixões e vontades inflamadas e se portassem com uma conduta moral irrepreensível diante de Deus e de seu marido. Entretanto, muitas delas não agiam nessa “santidade” e passividade ante as leis civis e eclesiásticas, mas encontravam, além de coragem para desafiar a sociedade patriarcal na qual viviam, formas de consumar seus desejos.

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Referências Bíblia NVI; traduzido por Omar de Souza. São Paulo. Mundo Cristão, 2009 CHARTIER, Roger. (org.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes,Tradução Hildegard Feist. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009. DEL PRIORI, Mary. (org.), História das mulheres no Brasil, 9. Ed. 1 reimp., São Paulo, Contexto, 2008. DEL PRIORI, Mary. História do amor no Brasil, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006. PINSKY, Carla Bassanezi. Gênero.

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DIREITO E PUNIÇÃO NO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS ENTRE OS REGIMENTOS INQUISITORIAIS E AS ORDENAÇÕES FILIPINAS Monique Marques Nogueira Lima2850 Perscrutar a História quer dizer, variavelmente, lançar o olhar sobre um mundo com regras e pactos de verdade próprios. O olhar sobre os homens de diferentes épocas é absorvido naquela mentalidade, naquele imaginário, naquela verdade, bem como, no seu mundo jurídico. Os estudos sobre a história do Direito demonstram sua necessária existência em sociedade, o que significa dizer para diferentes épocas, que o Direito nasce da construção de relações sociais com um número essenciais de regras e ordenamentos. Em outras palavras, as práticas judiciárias e os modos como os homens de determinada época definiam suas regras, dizem muito sobre o mundo por trás construído, sobre sua subjetividade2851. Seus códigos, regimentos, livros de lei, manuais e demais tipos de documentos jurídicos, podem ser objetos para estabelecer uma análise sobre as Instituições e sobre a cultura política- jurídica de determinada época. O Antigo Regime português, nessa esteira de informações, se situa como um lugar específico de estudo quando seus códigos refletem a ordem que perpassa sua administração e sua justiça. A partir dessas perspectivas, a intenção do trabalho ora proposto é apresentar as aproximações e distanciamentos, o trânsito entre as jurisdições - referente aos crimes e as penas - e o ordenamento inerente presente no livro V das Ordenações filipinas de 1603 e nos Regimentos do Santo Ofício da Inquisição. A noção central de ordem enlaça as relações e levantam os privilégios sociais da sociedade de Antigo Regime portuguesa. Conforme Antonio Manuel Hespanha, era da natureza das coisas que os súditos seguissem os mandamentos dos monarcas, cujo papel era ordenar em vista do bem comum. As leis e os juristas obedeciam e identificavam, necessariamente, a justiça com respeito aos equilíbrios sociais2852. Nesse contexto, os códigos e os documentos de lei deixam transbordar essa natureza ordenada que os une a mesma tradição jurídica. As hierarquias são ressaltadas em ambas as processualísticas, levantando as interpenetrações e intersecções das suas jurisdições. Uma vez que não há uma distinção clara entre os fundamentos que sustentavam o Direito eclesiástico e aquele praticado pelos tribunais Reais, a análise comparativa entre os documentos de lei aqui priorizados nos permite entender os códigos legislativos como parte de um emaranhado jurídico maior das sociedades portuguesas. Nos tempos da União Ibérica, a redação legislativa e a compilação dos livros de lei ganhavam força normativa. Entre 1583 e 1585, as leis civis, fiscais, administrativas e penais portuguesas ganhavam acréscimos e importantes modificações. Assim, os diferentes documentos de leis foram compilados e, como objeto do historiador, revelam muito das aspirações do homem português da sua época. Compilação legislativa que sucedeu as Ordenações Afonsinas (promulgadas em meados do século XV) e Manuelinas (1ª edição de 1514 e 2ª edição de 1521), o Código Filipino entrou em vigor a partir de 1603, quando Portugal ainda estava unido à coroa espanhola. As Ordenações filipinas foram por muito tempo o mais duradouro documento de lei do Reino de Portugal e, apesar de pensado e realizado durante a união das coroas, seu conteúdo tem por base a tradição legal portuguesa. O código constituiu um dos componentes dentre as fontes do Direito da época que refletem o contexto histórico e político do reino de Portugal, bem como as relações de poder que o emendava. Recopiladas sob o

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Mestranda em História do programa de Pós graduação da UNESP – campus de Franca, bolsista CAPES sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira. 2851 Parte-se da premissa de que as práticas judiciárias deu vida aos modelos de verdade que os homens de diferentes épocas construíram. Como para Foucault, as práticas judiciárias definiram também modelos de verdade, tipos de subjetividade, formas de saber e a relação que o homem estabeleceu com a verdade. Ver em: FOUCAULT, Michel. As verdades e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. 2852 HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas: As bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.p.184.

919 ISSN 2358-4912 título de Ordenações e leis do Reino de Portugal por mandado do muito alto rei Dom. Filipe, foi promulgada em 1603 no reinado de Filipe II. Das Ordenações, nos atentamos ao Livro V dedicado ao Direito penal - legislação que deixava transbordar a estrutura hierárquica da sociedade ordenada. O livro V levanta principalmente o caráter afirmativo/exemplar da punição quando deixa transbordar o significado das “mil mortes”, ou seja, o código penal filipino não simplesmente punia, mas relacionava a gravidade da falta ao rigor da punição. As leis estavam na base para as ações que envolviam a justiça, reafirmando o poder régio e emanando a organização hierárquica da sociedade, estava ali o ordenamento natural garantido pelo monarca. A punição exemplar e afirmativa ficava clara no espectro das “mil mortes” que, na representação jurídica, se mostrava muito mais rigorosa que na prática efetiva2853. Dessa maneira, o significado do rigor sem precedentes entre as promulgações de tradição portuguesa estaria, conforme a historiadora Silvia Lara, na relação entre a gravidade da falta e a respectiva pena, e principalmente, em relação a ordem inerente, ou, as qualidades sociais. Em suas palavras, “Degredo, açoites e outras marcas corporais, penas pecuniárias ou qualquer uma das ‘mil mortes’ eram distribuídos desigualmente, conforme a gravidade do crime e, sobretudo, os privilégios sociais do réu ou da vítima”2854. Nesse sentido, as penas, os delitos e as faltas, de acordo com os respectivos acusados no jogo de distinções hierárquicas, também deixam evidente a ordem perpassada nos códigos, característica essencial daquela sociedade. Demonstrando a relação intrínseca dos poderes régio e religioso, e reafirmando a figura do rei, a realização da justiça conclamava uma estratégia plural que relacionava as penas e os castigos com o perdão e a graça. No primeiro título do Livro V – Dos Hereges e apóstatas -, as prescrições e as ressalvas se dão, justamente, de acordo com essa relação2855. . É importante ressaltar que as leis penais do código secular também previam a relação do Rei com a Igreja, em outras palavras, as leis regulamentavam a estrutura da sociedade e dos cargos públicos, assim como as relações com o poder religioso, ou seja, a justiça do monarca entrava em ação respeitando às hierarquias sociais. O juízo eclesiástico pertencia principalmente ao Direito Canônico e o Tribunal do Santo Ofício era o principal agente de julgamento e punições dos crimes de caráter herético e de ordem religiosa. A ação inquisitorial não ligava sua ação às execuções das penas, dessa forma, entregava os réus julgados ao braço secular. Sua justiça, baseada nas leis do seu Regimento especifico, e de acordo com as prescrições também presentes nas Ordenações, julgavam e davam a sentença necessária. Ficava a par da justiça do Rei cumprir as penas que se previa nas respectivas legislações. Nesse sentido, diversos crimes presentes no Livro V demonstravam as aproximações entre os poderes e a confusão das jurisdições. As heresias, as blasfêmias, as arrenegações, as bênçãos fora da aprovação da igreja, a feitiçaria, os crimes de caráter sexual – bigamia, sodomia - e os crimes referentes aos mouros e judeus eram delitos que demonstram o trânsito entre os poderes. Como sabido, em uma sociedade de ordens é natural que os súditos seguissem as determinações dos monarcas, por isso, fica explicito no livro V as disposições jurídicas de cada lugar e o compromisso dos governantes ao bem comum. Era da natureza das coisas que “[...]a mulher obedecesse ao marido, que o casamento fosse monogâmico e indissolúvel, que os poderosos protegessem os mais fracos, que os amigos ou parentes se favorecessem mutuamente”2856. Entende-se que a diferença faz parte da V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Bicalho afirma que “Voltando às Ordenações, embora elas prescrevessem a pena de morte para um grande número de crimes, estudos recentes tendem à conclusão de que, em termos estatísticos, ela foi menos usada em Portugal do que poder-se-ia imaginar diante do rigorismo da lei escrita”. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Crime e castigo em Portugal e seu Império. Revista Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, pp. 224-231. 2854 LARA, Silvia H. Introdução. In: Ordenações filipinas. Livro V. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p.40. 2855 “O conhecimento do crime de heresia pertence principalmente aos juízes eclesiásticos. E porque eles não podem fazer as execuções nos condenados no dito crime por serem de sangue, quando condenarem alguns hereges, os devem remeter a nós com as sentenças que contra eles derem, para os nossos desembargadores as verem, aos quais mandamos que as cumpram, punindo os hegeres condenados, como por direito devem. E, além das penas corporais que aos culpados no dito malefício forem dadas, serão seus bens confiscados, para se deles fazer o que nossa mercê for, posto que filhos tenham”. Ibidem, Ordenações filipinas, p.56. 2856 HESPANHA, Antonio Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna. Mimeo Disponível em Http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3843.pdf. Consulta realizada em:11/07/2013. p.9

920 ISSN 2358-4912 lógica do ordenamento, como se a diversidade das coisas estivessem intrinsecamente relacionadas e assim encontravam disposição estável. A partir dessas perspectivas, o livro V do código filipino também revela a característica integrista – que visa uma direção integral da vida pela moral cristã e explica a presença da teologia sobre os universos normativos2857 - inclusive sobre o código penal, o que nos permite considerar os atributos que despontam as características de uma sociedade corporativa, cujo universo normativo demonstra a confluência das tendências do Direito e a dualidade fundamental entre os poderes. Os Regimentos, por sua vez, davam ao Tribunal da Inquisição a estruturação final e processualística necessária. Com uma cultura administrativa baseada na classificação e identificação, os Regimentos apresentam três aspectos basilares importantes na sua fundamentação: a atenção dedicada a organização administrativa, a sistematização dos ritos e o reforço da qualidade da origem social dos funcionários2858, além do cuidado especifico com a heresia, com os crimes e as penas referentes. Em 1552, o primeiro Regimento já tinha sua estrutura complexa, sistematizando a função e os cargos dos inquisidores e demais funcionários da rede inquisitorial, entre outras medidas, foram institucionalizadas a especificidade de todas as etapas da instrução dos processos, a instituição da prática do segredo e a normatização dos ritos de punição2859. De acordo com a tendência portuguesa recorrente da codificação, depois do primeiro Regimento, o Tribunal do Santo Ofício dava um grande passo para sua Instituição como poder na sociedade portuguesa e determinava já sua estruturação, seu funcionamento e processualística, sob a égide e acuidade do Rei. Por sua vez, os Regimentos continham a organização judiciária necessária para a sua normatização, sua processualística dependia da autoridade real. Por meio da justiça do monarca, a disposição jurídica era estabelecida, isto é, “o Papa criara o Tribunal, mas era o Rei quem organizava através do Regimento”2860. A partir dessa perspectiva, as leis previstas faziam parte das tendências jurídicas da época, sua estrutura era a síntese das confluências do Direito e transbordava a dualidade entre as autoridades. Os delitos transitavam de esferas, eram previstos na alçada do Tribunal eclesiástico, assim como, na alçada civil e presente nas Ordenações. Como já dissemos, diferentes leis puniam crimes que estavam em ambos os documentos, à demonstrar a confusão entre as jurisdições e, mais do que isso, a reafirmação do poder real sobre o Tribunal do Santo Ofício. Nas palavras de Siqueira, “Se de um lado o Direito Canônico e os decretos do Concílio de Trento constituíam a base sobre a qual se assentava a justiça inquisitorial, dado o seu caráter essencialmente eclesiástico, de outro lado, sua estruturação e seu funcionamento em território português recaíam sob a égide da Coroa”2861. O Regimento de 1613 especificava os modos de proceder dos inquisidores e minuciosamente também organizava as funções dos demais funcionários do Santo Ofício. Ao mesmo tempo em que o código penal do Livro V das Ordenações filipinas reafirmava o poder do Rei sobre todas as esferas da vida em sua justiça em vista do bem comum, os Regimentos do Santo Ofício, especialmente os redigidos no século XVII, burocratizava e organizava cada vez mais a ação do Tribunal. Foi nesse momento de centralização cada vez maior do Tribunal que a prescrição das atividades de todos os cargos foram previstas no seu código, deixando à vista a natureza hierárquica que perpassa sua organização, quando “a preocupação com o rigor da hierarquia transparece com maior nitidez”2862. No título I do Regimento de 1613 – Dos Ministros do Santo Ofício, e qualidades, e das coisas, que são necessárias para o ministério da Inquisição – os cargos ficam delineados de acordo com a qualidade social do funcionário. Nessa perspectiva, nos foi permitido avaliar o caráter ordenado nas determinações do Santo Ofício, ou seja, sua estruturação passava pela natureza da sociedade corporativa. Desde a reafirmação do poder do Rei sobre a redação do Regimento até as disposições dos lugares sociais dos seus funcionários, a mesma noção central de ordem embasa o código. Ao

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Ibidem, p.9. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das letras, 2000. p.47. 2859 Ibidem, p.45. 2860 SIQUEIRA, Sonia A. A disciplina da vida colonial: Os Regimentos da Inquisição. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, n.392, jul./set.1996, p.511. 2861 Ibidem, p.509. 2862 Ibidem, 1996, p.515. 2858

921 ISSN 2358-4912 estabelecer o estado social para a função de inquisidor, são relembradas suas qualidades e sua posição. Fica ordenado primeiramente que

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[...] as cidades e os lugares onde residir o Ofício da Santa Inquisição, haja ordinariamente três inquisidores, os quais serão letrados, de boa consciência, prudentes e constantes, e os mais aptos e suficientes que se puderem haver, cuja vida, honestidade e honesta conservação dê exemplo de sua 2863 pureza e bondade

Aquilo que ficava determinado nos Regimentos deixava transparecer a organicidade da estrutura administrativa do Santo Ofício e a hierarquia de uma sociedade de ordens. Reiterar essas características significa entender os documentos também como parte do imaginário jurídico e das tendências do Direito da sua época. A divisão dos lugares sociais e os privilégios são prerrogativas para a justiça do Rei e para a justiça Divina. Por isso, os homens que ingressavam no Tribunal tinham um compromisso com suas atitudes e subordinavam-se conforme a lógica hierárquica de dentro do Santo Ofício. Por meio da análise dos seus códigos, percebemos o Tribunal do Santo Ofício em seu tempo, à demonstrar as mudanças na órbita de diferentes Instituições na sociedade ocidental do limiar dos séculos modernos. O segundo (1613) e o terceiro (1640) Regimentos demonstravam o aumento do rigor e o fortalecimento do Santo Ofício. Para nós, interessa deixar claro a relação intrínseca, salientada em seus funcionários e nos seus cargos, entre os poderes de alçada eclesiástica e civil, e sua processualística. A ordem perpassa suas leis em diferentes aspectos. Nas palavras de Sônia Siqueira, “A organicidade das estruturas administrativas do Santo Ofício repousava sobre o princípio da hierarquia que se harmonizava com a mentalidade portuguesa do tempo[...]”2864. Nos resta estabelecer uma comparação mais direta das relações entre as prescrições – delitos e penas – que se acometem nos códigos do Santo Ofício e no código penal secular. Como já dissemos, podemos rastrear nas documentações traços da indistinção estabelecida entre os poderes secular e religioso. O trânsito entre os crimes e penas em suas jurisdições responde à dualidade fundamental do Santo Ofício, erigido especialmente sob a égide do Rei. Na sociedade integrista, onde a moral cristã e o Direito se entrelaçavam constantemente, o código filipino abrangia também as suspeitas de heresia, blasfêmia e os crimes de moral sexual. Em outros termos, significava a ocorrência do instituto mixti fori – reconheciam que os casos de delitos públicos, como a feitiçaria, o sacrilégio, a simonia, o incesto e vários crimes de natureza moral podiam ser competência de ambas as justiças, a civil ou a eclesiástica2865. Os crimes de natureza moral, que englobam prioritariamente os desvios sexuais, deixam a mostra, mais facilmente, a interdependência e o trânsito dos delitos e das penas entre o livro V das ordenações e os Regimentos da Inquisição. No título 13 do Livro V – Dos que cometem pecado de sodomia e com alimárias – fica previsto que Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos os seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos reinos, posto que tenham descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e seus netos ficarão inábeis e infames, assim como 2866 daqueles que cometem crime de lesa-majestade

A descrição da pena para qualquer pessoa passa pelo espectro das “mil mortes”. No caso do crime de sodomia, qualquer homem de qualquer qualidade, recebe a pena de morte na fogueira. A ação afirmativa tem a função de ser exemplar, relegando também aos descendentes a memória de seu crime. Não há no crime de sodomia previsto no Livro V, as distinções de estado social, mas há um 2863

Regimento de 1613, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, n.392, jul./set.1996, p. 615. 2864 SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.p.115. 2865 Op.cit. SIQUEIRA, 1996, p.508. 2866 Ordenações filipinas: livro V/ organização Silvia Hunold Lara. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.55. p.90.

922 ISSN 2358-4912 alargamento específico da penas em relação as mulheres cuja “lei queremos que também se entenda e haja lugar que umas com as outras cometem pecado contra natura, e da maneira que dito nos homens”2867. De modo similar, nos Regimentos, os crimes de sodomia são tratados com a rigorosidade da lei. Os inquisidores, visitadores, demais funcionários incumbidos na denúncia e julgamento dos crimes contra a fé, assim como toda e qualquer pessoa que suspeita da ocorrência dos crimes, devem denunciar as suspeitas do crime ao Tribunal do Santo Ofício, com a proteção do segredo. No título II do Regimento de 1613 – Da ordem que se há de ter na visitação que se faz por parte do Santo Ofício, e do tempo da graça concedida aos culpados no crime de heresia e apostasia – o rigor sobre o crime de sodomia é visto na urgência de sua denúncia. Fica determinado que “[...] serão obrigados a denunciar de tudo o que souberem contra alguma pessoa, ou pessoas, de qualquer qualidade de que sejam, que cometeram o abominável pecado de sodomia, contra naturam”. A gravidade do crime é demonstrada na rigorosidade da sua pena, atitude jurídica também prevista no código penal secular. Já no título XXV do Regimento do Santo Ofício de 1640 – Dos que cometem o nefando crime da sodomia – a intersecção entre as jurisdições e a conformidade das penas em relação as Ordenações é prevista na própria lei, isto é, no crime de sodomia V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Os inquisidores procederão contra os culpados[...] de qualquer estado, grau, qualidade, preeminência e condição ainda que isentos, religiosos sejam, guardando a mesma forma, com que procedem no crime de heresia; e quanto as penas, os poderão condenar, nas que merecem por suas culpas, podendo também usar das que por direito civil; e ordenações do Reino estão impostas aos 2868. que cometem este crime, até os relaxarem à justiça secular

Também fica determinado que qualquer pessoa, estado, grau, preeminência e condição seja apenado pelo crime nefando da sodomia. A liberdade de usar a lei secular para determinar as penas, nos legitima e corrobora a hipótese da dualidade fundamental entre os poderes e da interdependência das jurisdições. A lei que pune os sodomitas de acordo com o Regimento, prevê ainda diferentes penas às diferentes condições e privilégios sociais. Nesse sentido, os artigos seguintes do mesmo título determinam penas conforme o ordenamento social inerente daquela sociedade. Como exemplo, fica previsto que aqueles que pela primeira vez vierem de forma voluntária apresentar a confissão do crime de sodomia na mesa do Santo Ofício, se não tiverem ainda testemunhas, não serão condenados a pena alguma, a partir disso, as condições do crime podem fazer mudar as penas, e não há uma obrigatoriedade na execução das lei seculares, apesar do trânsito das jurisdições. No Tribunal do Santo Ofício, representante do Direito divino e da lei eclesiástica, o processo era conduzido sempre no sentido de fazer com que os réus confessassem sua culpa e se arrependessem plenamente do crime cometido, ainda que a pena de execução já fosse dada. Há, pois, nessa atitude, a intenção de demonstrar a natureza misericordiosa do Tribunal e de seus membros em detrimento da rigorosidade da justiça, como representado nas Ordenações. No título LV do Regimento de 1613 – Do preso que confessa depois de ser acusado – fica predito que o réu confesso que fizer a confissão inteira “[...] em tal maneira que os Inquisidores [...] conheçam e presumam que se converte à nossa Fé Católica, devem receber a conciliação em forma”2869 Assim também pode ocorrer com os crime de bigamia, dos frades que for achado com alguma mulher e os demais crimes contra moral cristã. O crime de bigamia aparece nas Ordenações no título 19 – Do homem que casa com duas mulheres e da mulher que casa com dois maridos. A pena do crime também deixa à vista o espectro das “mil mortes”, ou melhor, recai sobre o acusado a designação de “morra por isso”. Há, ainda, na lei, previsões específicas referente às qualidades e condições do réu, isto é, se o condenado for menor de 25 anos ou for fidalgo, e a segunda mulher for de baixa condição, ou mesmo se o homem casou sem saber ao certo se a primeira mulher era morta, há o cuidado de não fazer a execução sem a certificação2870.

2867

Ibidem, p.91. Op, cit. Regimento de 1640, Revista do Instituto histórico e geográfico brasileiro, 1996, p.871. 2869 Ibidem, Regimento de 1613, p.649. 2870 Op. Cit. Ordenações filipinas, p.107. 2868

923 ISSN 2358-4912 De modo similar, no título XV do Regimento de 1640 – Dos bígamos – as penas recaem contra todo homem e toda mulher de qualquer qualidade ou condição. Nesse caso, quando condenado, o réu recebe pena de abjuração em Auto público, exceto quando a qualidade da pessoa e as circunstâncias da culpa pedirem maior abjuração. Fica previsto ainda que

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sendo pessoa plebeia, será açoitada pelas ruas públicas, e degredada para as galés, por tempo de cinco até sete anos; e sendo mulher vil, terá a mesma pena de açoites, e será degredada pelo mesmo tempo para o Reino de Angola, ou partes do Brasil, segundo parecer aos Inquisidores, com respeito à 2871 qualidade da pessoa, e circunstâncias da culpa.

Os crimes de ordem moral se estendem nas duas documentações. O livro V das Ordenações punia os diferentes comportamentos moral de ordem sexual, ou que ferissem a fé e o poder da Igreja. Há punições para qualquer tipo de desvio sexual ou adultério, os Regimentos legislavam sobre a hierarquia dos cargos da Inquisição e dos crimes de ordem moral cristã, além da heresia e da apostasia. O caráter dual que invade os códigos nos parece claro, as determinações do código do Rei sobre aqueles que blasfemam ou arrenegam contra Deus, ou sobre aqueles que praticam feitiçaria, dos que fazem vigílias de dormir, comer e beber em igreja, e ainda dos judeus e mouros que andam sem sinal, dão exemplos do trânsito das jurisdições e das interdependências entre as legislações. No pesar das perspectivas, ainda que as dissidências da fé no Antigo Regime fossem controladas com base nos rigores da Igreja, diferentes crimes foram julgados tanto pelo Tribunal da Inquisição, quanto pelos Tribunais seculares que funcionavam sob a autoridade exclusiva do Rei. Entre os atos pecaminosos que caiam na alçada da justiça secular, o questionamento dos dogmas e a postura contra a moral sexual, tidos como afronta à doutrina da Igreja, eram relacionados como crimes incidentes e, por sua vez, denunciados e julgados. Tais crimes encontravam culpa nos dois códigos – nas Ordenações e nos Regimentos - e configuravam a Heresia perseguida por uma igreja pós Concílio de Trento, preocupada em apagar a difamada imagem do seu clero, preservar sua força política e, mais que isso, salvaguardar o poder da lei e do Rei. O Tribunal do Santo Ofício nascia como instrumento de poder coercitivo às sombras do trono português2872, sua ação não redespertou como uma oposição ao exercício do poder real, antes se tornou uma parte complementar e, em muitos sentidos, inseparável da Coroa2873. Na verdade, o mundo onde erigiu-se o Santo Ofício dependia das tendências respectivas que coexistiam e relacionavam o poder do Rei e da Igreja. Portanto, a Inquisição e sua legislação se colocou frente a dualidade inerente de um mundo pragmático e intensivamente hierarquizado português, arquitetava suas leis com base na relação entre a legislação régia e seu tradicionalismo canônico. Por isso, os Regimentos maiores do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal, assim como as Ordenações do Reino, se inseriam em uma sociedade edificada pela noção central de ordem que perpassa essencialmente sua organicidade e dinâmica. Assim, o estudo comparativo das documentações demonstram, amiúde, as intersecções jurídicas que alicerçavam a justiça no Império português de Antigo Regime, permitindo justamente perceber que aquele mundo, embora parte de um processo de mudança e de heterogeneidade cada vez maior da fé, permanecia refletindo a elaboração das linhas de força que sustentavam as relações de poder. Da mesma forma que a máquina punitiva Inquisitorial funcionava usando dos seus artifícios específicos e levantando seu caráter afirmativo e exemplar, assim também se fazia no livro V das Ordenações direcionado ao Direito penal. 2871

Op. cit. Regimento de 1640, Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, p.857. SIQUEIRA, Sonia. O Poder da Inquisição e a Inquisição como poder. Revista Brasileira de História das Religiões. Dossiê Identidades Religiosas e História. Ano I, no. 1, 2008. p.85. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/09%20Sonia%20Siqueira.pdf. Acesso em: 10/06/2014.p.85. 2873 Na opinião do historiador Francisco Bethencourt, a grande diferença dessa iniciativa em relação à inquisição de pouco mais de duzentos anos antes — ou seja, em relação à inquisição medieval — era de que, pela primeira vez, havia uma união clara relação entre as jurisdições eclesiástica e civil. Embora continuasse submetido ao papa, o inquisidor estabelecia uma nova rede de fidelidades ao ser nomeado pelo príncipe. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. (Sécs. XV-XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.44. 2872

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HEREGES JUDAIZANTES: UMA FAMÍLIA DE CRISTÃOS-NOVOS FLUMINENSES NAS MALHAS DA INQUISIÇÃO Monique Silva de Oliveira2874 Este trabalho pretende esmiuçar um objeto que, embora já tenha recebido significativa atenção da historiografia, ainda permanece com algumas lacunas: a atuação da inquisitorial na América Portuguesa, mais precisamente na capitania do Rio de Janeiro no início do século XVIII, quando muitos cristãos-novos foram levados presos aos cárceres do Santo Ofício de Lisboa2875. A escala de análise, porém, é reduzida para investigar a trajetória de uma família cristã-nova, conforme será explicitado mais adiante. Apesar de não serem exclusividade nas investidas do Santo Ofício- existindo ainda acusados de heresias como a sodomia, o luteranismo, solicitação, feitiçaria, blasfêmia- os cristãos-novos foram, em números, os mais perseguidos2876. Para Ronaldo Vainfas, esse é um traço distintivo das Inquisições ibéricas, se comparadas à Inquisição papal: o aspecto antissemita, que serviu, inclusive, de pretexto para a instalação dos tribunais em Espanha e Portugal2877. A Idade Moderna inauguraria uma fase menos tolerante em relação a esse grupo2878. A própria distinção entre cristãos-novos e velhos em Portugal é fruto desse período, quando houve, em 1497, a conversão forçada de milhares de judeus ao catolicismo, dando início à “geração dos batizados em pé”. E a Inquisição Portuguesa, criada quase quarenta anos depois, contribuiria para vigiar os cristãosnovos, vistos como hereges em potencial, suspeitos de voltarem às práticas judaicas de seus ancestrais. Na América Portuguesa, estiveram presentes desde os primórdios da colonização, inserindo-se na sociedade, possuindo engenhos, formando famílias2879. No entanto, a despeito de nunca haver existido um tribunal inquisitorial nos trópicos, a Inquisição se faria presente. Seja através de visitações, seja por meio de denúncias dos familiares, os cristãos-novos seriam mandados aos cárceres do Santo Ofício, numa tentativa sempre frequente da Igreja de normatizar a fé católica e punir aqueles que se desviavam dela. Considerando o período em que a Inquisição atuou sobre a América Portuguesa, Anita Novinsky afirma que “o auge das perseguições inquisitoriais no Brasil deu-se na primeira metade do século XVIII, quando a produção do ouro dominava a economia colonial. Nessa ocasião a maior parte dos prisioneiros era composta de cristãos-novos do Rio de Janeiro” 2880. Trata-se de um período emblemático tanto para o Rio de Janeiro quanto para os cristãos-novos que residiam nele. Com efeito, o século XVIII inaugurou uma fase de grande crescimento econômico para o Rio de Janeiro, provocada pela descoberta do ouro em Minas Gerais. A partir de então, a cidade confirmaria 2874

Mestranda em História pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação do professor Ronaldo Vainfas. Bolsista CAPES. 2875 Menciono especialmente dos números fornecidos por NOVINSKY, Anita. Inquisição: Prisioneiros do Brasil – séculos XVI-XIX. São Paulo: Expressão e Cultura, 2002. pp. 27-44. 2876 Idem, p. 39. 2877 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 248. Além dele, outros historiadores também assimilam a ideia de que a Inquisição portuguesa foi criada tendo como alvo principal os conversos de origem judaica: Cf. NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 35; BOXER, Charles. “Pureza de sangue e raças infectas”. In: Império Marítimo Português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2012, p. 261. 2878 Hermann e Vainfas destacam que no período anterior (Idade Média) cristãos, mouros e judeus coexistiam e viviam integrados às sociedades ibéricas, algo rompido com o estabelecimento das Inquisições Espanhola e Portuguesa entre os séculos XV e XVI. Cf. VAINFAS, Ronaldo. “Judeus e conversos na Ibéria no século XV: sefardismo, heresia, messianismo”. In: GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp. 15-41. 2879 Cf. ASSIS, Ângelo; VAINFAS, Ronaldo. “A esnoga da Bahia: cristãos-novos e criptojudaísmo no Brasil quinnhentista”. In: GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 45 2880 NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p. 79.

926 ISSN 2358-4912 seu papel preponderante como praça mercantil e marítima, servindo como escoadouro dos veios de ouro proveniente das Gerais. Todo um aparato administrativo, fiscal e militar metropolitano passa a ser estruturado em seu território e a economia intensifica-se. Esse quadro favorável atrairá a atenção dos franceses, que invadirão a cidade em dois momentos: em 1710 através das tropas de Duclerc e em 1711 sob a liderança de Duguay-Trouin2881. É nesse início de século marcado por transformações e crescimento que a Inquisição empreenderá uma série de prisões no Rio de Janeiro, enviando muito de seus moradores cristãos-novos presos a Lisboa sob a acusação de judaizar. Para pensar as prisões feitas pelo Santo Ofício no recorte em questão uma importante contribuição veio dos trabalhos de Lina Gorenstein, desenvolvidos na década de 1990 e divulgados por meio de dois livros principais: Heréticos e Impuros e Inquisição contra as mulheres. Nas duas obras Lina procura caracterizar o perfil dos cristãos-novos que viviam no Rio de Janeiro na primeira metade do Setecentos, sendo que no segundo livro dedica uma atenção especial às mulheres, amplamente processadas pela Inquisição nesse período. Lina chega à conclusão de que o grupo conseguira inserirse na sociedade fluminense, formando famílias extensas, mantendo relações com os cristãos-velhos, possuindo engenhos e atividades urbanas. Tal integração foi favorecida, destaca a autora, pelo fato de no século XVII os cristãos-novos conseguirem se estabelecer na capitania sem muitas restrições e interferências do Santo Ofício, que na época priorizava suas ações no nordeste .2882 Desse modo, a população cristã-nova adentrou o século XVIII bem estabelecida na capitania, dona de engenhos no recôncavo e na cidade do Rio, com atividades comerciais importantes. Trata-se, para ela, de uma comunidade próspera que atrairia a atenção do Santo Ofício, principalmente num momento em que a capitania serviu para escoar o ouro das Minas Gerais e abastecer a região com produtos necessários à alimentação e subsistência2883. Tal explicação é devedora das concepções de Antonio José Saraiva e Anita Novinsky, para os quais interessava à Inquisição o confisco de bens dos cristãos-novos, o que contribuiu para o aumento de suas receitas2884. Assim, o aumento das prisões no Rio de Janeiro teria uma motivação econômica, já que a capitania teria enriquecido e, juntamente, seus moradores cristãos-novos. Ana Margarida Santos Pereira, em trabalho recente, procura dar outras explicações para o aumento das prisões. Ela concorda sim que a descoberta de ouro em Minas Gerais e a importância assumida pelo Rio de Janeiro como entreposto comercial tenham despertado a atenção dos inquisidores, mas ressalta também que isso provocou um crescimento populacional nas duas capitanias, o que igualmente atraiu o olhar da Inquisição. Além disso, a consolidação do povoamento e a estabilização da vida nas na região fez aumentar os quadros da Inquisição, ou seja, o número de funcionários e familiares designados para vigiar os moradores dessas áreas e enviá-los, presos, a Lisboa2885. Independente das motivações, os agentes do Santo Ofício empreenderiam muitas prisões a muitos indivíduos cristãos-novos no espaço-tempo em questão. Famílias inteiras foram processadas e se viram obrigados a confessar e abjurar a heresia de que eram acusadas. É o caso dos Azeredo, família onde cinco irmãos foram processados entre os anos de 1712 e 1713. Luis Matoso de Azeredo, Clara de Azeredo Coutinho, Izabel Maria de Azeredo, Maria Josefa da Glória e Branca Vasques do Pilar não escapariam à sanha inquisitorial e podem fornecer algumas contribuições importantes para o estudo V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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BICALHO, Maria Fernanda. “A Cidade do Rio de Janeiro e a Articulação da Região em torno do AtlânticoSul: Séculos XVII e XVIII”. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 1998. 2882 GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 67-72. Ainda pensando no século XVII, Lina sustenta uma afirmação desafiadora: a de que houve uma visitação às Capitanias do Sul e Pernambuco em 1627. Embora alguns autores defendam que a documentação não é sólida para confirmar isto, Lina assegura que, mesmo não extensa, é consistente para afirmar que o Santo Ofício delegou uma visitação àquelas bandas. GORENSTEIN, Lina. “A terceira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII)”. In: FLEITER, Bruno et al.Op. Cit, pp. 25-31. 2883 GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres. Op. Cit, p.51-54. 2884 SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 5. 2885 PEREIRA, Ana Margarida Santos. “Por comprazer a seu pay. Afrodescendentes, Judaísmo e Inquisição no Bispado do Rio de Janeiro (sécs. XVII-XVIII)”. Cadernos de Estudos Sefarditas, v. 10-11, 2012, pp. 325-328.

927 ISSN 2358-4912 do tema2886. Como este trabalho faz parte da pesquisa de um Mestrado ainda em fase inicial, serão feitos alguns apontamentos preliminares, considerados mais significativos até o momento. Do contato com a documentação, foi possível observar que a família Azeredo estava ligada à terra, herdeira de engenhos estabelecidos na cidade desde pelo menos o século XVII. Não se trata de uma exceção à regra, pois, como assinala Lina Gorenstein, “cerca de 50% desses cristãos-novos fluminenses estavam envolvidos em atividade agrícola”2887. No entanto, Os Azeredo não adentrariam o século XVIII com funções e atividades apenas ligadas ao mundo agrário. A documentação aponta Luis Matoso como homem de negócios, seu cunhado Jorge Pereira Diniz como escrivão da Alfândega e alguns de seus tios maternos ocupando cargos militares2888. Se ao caracterizar suas profissões alguns autores preferem enquadrar os cristãos-novos ou como senhores de engenho ou como homens ligados ao mundo mercantil, as fontes podem revelar que eles sabiam transitar entre diferentes atividades, ampliando seu escopo de atuação e possibilidades de enriquecimento. Em relação ao contato com outros grupos, a família selecionada parecia bem relacionada. E assim era porque mantinha contato tanto com outros cristãos-novos, como com os cristãos-velhos. Neste segundo caso, destaco o caráter pouco endogâmico dos Azeredo. Isto porque o patriarca da família, Baltasar de Azeredo Coutinho, casara-se com uma cristã-velha e três de seus filhos seguiram seu exemplo2889. A família parece ser uma exceção nesse aspecto, pois, como assinalam Carlos Eduardo Calaça e Lina Gorenstein,

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A rede de parentesco foi reforçada sobremaneira por importante aspecto a ser ressaltado: o comportamento endogâmico das famílias cristãs-novas fluminenses. Isso significa que a maioria dos casamentos foi realizada entre membros do próprio grupo e também entre membros da mesma 2890 família .

Se o casamento “entre iguais” era um traço predominante do período, a família nos faz questionar: até que ponto a tradicional divisão entre cristãos-novos e velhos foi rígida? Mais ainda: casar-se fora do círculo cristão-novo pode ser encarado como um tipo de estratégia? Uma contribuição para pensar nesse aspecto advém do trabalho de Juan Ignacio Pulido Serrano em seu livro Injurias a Cristo. O autor analisa três famílias de cristãos-novos portugueses imigrados para Madri durante a primeira metade do século XVII, cuja acusação de judaizar e cometer sacrilégios à imagem de Cristo levou muitos de seus membros à morte na fogueira. Numa das famílias analisadas - a de Fernán Báez e Leonor Rodriguez- predominou-se uma espécie de estratégia matrimonial. O autor comenta que, apesar de ser recorrente o casamento endogâmico como uma tentativa de se proteger de uma possível delação do cônjuge, os membros dessa família preferiram se casar com aqueles que partilhavam a mesma atividade comercial. O critério para o matrimônio não fora religioso, mas comercial2891. É possível que, no caso dos Azeredo, romper com tendência tradicional à endogamia fosse igualmente uma espécie de estratégia matrimonial. Como este trabalho constitui parte de uma pesquisa de mestrado que ainda dá seus primeiros passos, ainda não é possível precisar as razões para esses casamentos mistos. O fato é que diante da possibilidade de casamento com outros cristãos-

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Numeração dos processos citados: Branca Vasques (960), Luis Matoso de Azeredo (690), Clara de Azeredo (957), Izabel Maria de Azeredo (684) e Maria Josefa da Glória (11.791). Fonte: ANTT/IL 2887 GORENSTEIN, Lina. Heréticos e Impuros. A Inquisição e os Cristãos-novos, século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento. 1995, p. 23. 2888 Cf. ANTT/IL. Processo de Luis Matoso Azeredo, n. 690, p. 1; ANTT/IL. Processo de Branca Vasques, n. 960, p. 13-15. Tanto o cunhado quanto os tios de Luis Matoso eram de origem cristã-velha. 2889 Referimo-nos a Branca Vasques do Pilar, casada com o cristão-velho Jorge Pereira Diniz; Luis Matoso, casado com Maria Josefa de Jesus; Clara de Azeredo, casada com João de Abreu Pereira. 2890 CALAÇA, Carlos Eduardo; GORENSTEIN, Lina. “Na cidade e nos Estaus: Cristãos-Novos do Rio de Janeiro (séculos XVII-XVIII)”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Ensaios sobre a intolerância: Inquisição, Marranismo e AntiSemitismo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. p. 108. 2891 SERRANO, Juan Ignacio Pulido. Injurias a Cristo – religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII. Alcalá de Henares: Universidade de Alcalá – Instituto Internacional de Estudios serfadies y andalusíeis, 2002, p 116.

928 ISSN 2358-4912 novos, o pai Baltasar Azeredo e os filhos Luis Matoso, Branca Vasques e Clara Azeredo deixaram de lado a proteção que um cônjuge cristão-novo ofereceria para se unirem a cristãos-velhos. Ainda pensando nesse aspecto, pode-refletir que o casamento de Baltasar de Azeredo Coutinho com a cristã-velha Catarina Vasques de Brito tenha rendido um ambiente familiar um tanto peculiar caso se considere as outras famílias de cristãos-novos. Em terras onde o judaísmo ortodoxo era proibido os homens não podiam exercer sua função de condutores de um judaísmo público e oficial, cabia então às mulheres um papel de destaque no ensinamento de práticas judaicas. Segundo Ângelo Adriano Assis, as mulheres terão um papel fundamental na “divulgação do judaísmo adaptado, dissimulado e diminuto que se tornara possível”, desempenhando o papel de verdadeiras rabis dentro do ambiente doméstico através da preparação de alimentos, jejuns e dias sagrados2892. No entanto, se a mãe fora cristã-velha, quem teria desempenhado essa função? Os inquisidores acusavam os irmãos Azeredo de judaizar, mas com quem teriam aprendido a fazê-lo? A resposta aparece no processo inquisitorial de Branca Vasques do Pilar, onde ela afirma que sua tia paterna, dona Barbara de Azevedo, foi a responsável por ensiná-la a Lei de Moisés. No processo lê-se:

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[...] estando ambas sos lhe perguntou esta [D. Barbara] em que Ley vivia, e respondendo lhe ella confitente, que na de Christo Sr Nosso lhe disse então a dita sua Tia, que não hia bem encaminhada, e que se queria salvar sua alma, tivesse crença na ley de Moyzes em que só havia salvação e que por observançia da mesma fizesse o jejum da Raynha Esther, estando nelle sem comer, nem beber senão 2893 a noite em que ceasse peixe, e couzas que não fossem de carne, e outros ritos judaicos [...] .

Desse modo, a tia paterna desempenhou o papel que, noutras circunstâncias, caberia à mãe. Embora isso possa ter ocorrido em outras situações, não se diminui a importância de pensar no quanto esses indivíduos souberam se adaptar à realidade da sociedade ibero-americana. Sociedade essa que reprimia práticas religiosas consideradas desviantes, que não se enquadravam na religião oficial dos Estados ibéricos. As práticas mosaicas pareciam ser reforçadas quando do contato desses irmãos com outros indivíduos de origem cristã-nova, muitos dos quais parentes por via paterna como fora o caso de D. Barbara. É o que aparece no processo de Luis Matoso. Ele foi denunciado por muitos cristãos-novos que, presos em Lisboa, relataram ter praticado a Lei de Moisés em companhia deste e de seus irmãos. Só para citar um exemplo, temos o caso da denúncia de Ângela do Valle de Mesquita, que afirmou: “criam e viviam na Ley de Moises para a salvação de suas almas; e por observância da dita lei disseram guardavam os sabados como se fossem dias santos, estando neles sem comer coisa alguma”2894. O que foi dito até aqui nos coloca diante de um problema: como definir esse indivíduo que parece dividido entre dois mundos antagônicos, duas realidades religiosas que no mundo ibérico eram postas em oposição? Talvez esse grupo familiar seja um dos mais representativos para pensar no indivíduo marrano, “homem dividido” entre dois sistemas religiosos e que encontra-se num mundo ao qual não pertence. “Não aceita o Catolicismo, não se integra ao Judaísmo do qual está afastado há quase dez gerações. É considerado judeu para os cristãos e cristão para os judeus” 2895. Os Azeredo viveram de fato essa dualidade, foram instruídos no judaísmo pela tia paterna, mas seu caráter pouco endogâmico e o consequente casamento com os cristãos-velhos os punha em contato direto e frequente com o mundo católico. Foram, enfim, homens e mulheres divididos. Referências ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. “As ‘mulheres-rabi’ e a Inquisição na colônia: narrativas de resistência judaica e criptojudaísmo feminino- os Antunes, macabeus da Bahia (séculos XVI-XVII)”. In: FLEITER, Bruno et al. (Org.). Inquisição em Xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. 2892

ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. “As ‘mulheres-rabi’ e a Inquisição na colônia: narrativas de resistência judaica e criptojudaísmo feminino- os Antunes, macabeus da Bahia (séculos XVI-XVII)”. In: FLEITER, Bruno et al. (Org.). Inquisição em Xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 180. 2893 Processo de Branca Vasques, n. 960, fl. 19-20. Fonte: ANTT/IL. 2894 Processo de Luis Matoso, n. 690, fl. 22. Fonte: ANTT/IL. 2895 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. Op. Cit. p. 162.

929 ISSN 2358-4912 __________________; VAINFAS, Ronaldo. “A esnoga da Bahia: cristãos-novos e criptojudaísmo no Brasil quinnhentista”. In: GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. BICALHO, Maria Fernanda. “A Cidade do Rio de Janeiro e a Articulação da Região em torno do Atlântico-Sul: Séculos XVII e XVIII”. Revista de História Regional, v. 3, n. 2, 1998. BOXER, Charles. “Pureza de sangue e raças infectas”. In: Império Marítimo Português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2012. CALAÇA, Carlos Eduardo; GORENSTEIN, Lina. “Na cidade e nos Estaus: Cristãos-Novos do Rio de Janeiro (séculos XVII-XVIII)”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Ensaios sobre a intolerância: Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.

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GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. GORENSTEIN, Lina. Heréticos e Impuros. A Inquisição e os Cristãos-novos, século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento. 1995. _________________. GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005. NOVINSKY, Anita. Inquisição: Prisioneiros do Brasil – séculos XVI-XIX. São Paulo: Expressão e Cultura, 2002. __________________. Cristãos-novos na Bahia. A Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992. _________________. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1990. PEREIRA, Ana Margarida Santos. “Por comprazer a seu pay. Afrodescendentes, Judaísmo e Inquisição no Bispado do Rio de Janeiro (sécs. XVII-XVIII)”. Cadernos de Estudos Sefarditas, v. 10-11, 2012 SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1985. SERRANO, Juan Ignacio Pulido. Injurias a Cristo – religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII. Alcalá de Henares: Universidade de Alcalá – Instituto Internacional de Estudios serfadies y andalusíeis, 2002 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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DAS NEGOCIAÇÕES E CONFLITOS ENTRE PODER CENTRAL E LOCAIS: TRAMAS POLÍTICAS DE UM VIGÁRIO NAS CAPITANIAS DA PARAHYBA E PERNAMBUCO NOS SETECENTOS (1764-1785) Muriel Oliveira Diniz 2896 Na tessitura de um enredo introdutório Logo no princípio que tomei posse deste governo que Sua Majestade se dignou em confiar-me, pretendeu o dito vigário desta cidade destronar-me, pois concedendo-me o uso da cadeira no arco da capela mor da Matriz praticado com meus antecessores, como comprova a sua própria atestação junta depois o negou, e persuardiu com paixão notória a todos os Prelados das Religiões, me não permitissem. Jerónimo José de Melo e Castro, governador da Parahyba de 1764 a 2897 1797 .

Passados apenas dois anos após assumir o cargo de governador da Parahyba, Jerónimo José de Melo e Castro enviou ao Conselho Ultramarino ofício em denúncia contra o vigário da cidade, António Soares Barbosa. Da proibição a Melo e Castro em se sentar na cadeira do arco da capela mor da Igreja matriz de Nossa Senhora das Neves, o referido padre secular confrontou a autoridade civil que devia respeito e obediência, conforme assim regia o sistema do Padroado e ordenava incisivamente o rei Dom José I e Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Ora, enquanto dois pilares do projeto luso, membros da Igreja e do Estado deviam primar pela efetivação das prerrogativas de El Rey: colonização dos corpos, catequização das almas, domínios dos espaços e ordem da sociedade colonial. Entretanto, nesse caso, a relação entre autoridade religiosa e civil na Capitania Real da Parahyba foi conflituosa, ocasionando desestabilidades na organização social. Responsável pelos assuntos espirituais, na linha tênue entre auxílio harmônico e intromissão nos negócios temporais, Soares Barbosa foi visto como agente transgressor, das ordens pombalinas de se abster nos rumos da política administrada pelos funcionários públicos do rei. No caso, “Deu o mesmo Governo de Pernambuco faculdade ao vigario desta cidade de nomear capellao para a Fortaleza de Cabedelo, como nomeou, usurpando a juridição Reyal, que sempre pertenceu aos governadores desta capitania [...]”2898. Nesse sentido, o referido vigário se meteu em áreas de atuação as quais não eram de sua alçada, não lhe competia, insuflando assim, conflitos com o governador Melo e Castro. As relações conflituosas entre Soares Barbosa e autoridades civis remontam a meados da década de 1750, quando era vigário da igreja matriz paraibana. Todavia, dantes isso, durante sua permanência em Igarassú, Pernambuco, desde 1741, período de sua atuação como visitador do bispado por indicação de frei Luís de Santa Teresa e, de sua transferência a Parahyba em 1748, Soares Barbosa teceu vínculos políticos marcados pela ausência de dissenso. Com António Borges da Fonseca, administrador parahybano de 1745 a 1753, enredou laços de amizade antes mesmo do ano de sua vinda à referida capitania. No entanto, essa interação harmoniosa foi singular e não se estendeu a outros governantes da capitania, como a Luiz Antonio de Lemos de Brito, que governou de 1753 a 1757 e entrou por inúmeras ocasiões em desavença com o referido padre. 2896

Universidade Federal de Campina Grande. Email: [email protected] AHU_ACL_CU_ 014, Cx. 23, D. 1798. 2898 AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1840. Sobre esse assunto, Melo e Castro já tinha se queixado em 1767. No caso, reclamava ao rei D. José I das ações do governador de Pernambuco, António de Sousa Manuel de Meneses (gestor de 1763-1768) que o impedia de exercer suas regalias, por exemplo, nomear capelão da infantaria paga da Companhia do Cabedelo sem a sua dependência. Alegava que tinha sido eleito governador por El Rey, diferindo dos administradores antecedentes que detiveram apenas o título de capitão mor, por isso, competia a ele a dita nomeação. Todavia, os governadores pernambucanos apoiando-se nas determinações reais da anexação, afirmavam que esse título era somente honorário não tendo caráter jurisdicional. Disto, a situação de subordinado provocou nomeação do referido padre Bartolomeu de Brito Baracho em 1764, por indicação de Soares Barbosa. In.: AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1818. 2897

931 ISSN 2358-4912 De acordo com Melo e Castro, as diferenciações de tratamento, as relações com autoridades civis e religiosas se processavam conforme a possibilidade ou a restrição de aumento de poder político. A busca por influência política, significava a luta pela manutenção de prerrogativas, privilégios ameaçados pelo governador a mando do monarca e de seu primeiro ministro. Nesse sentido, ao invés de pregar pelo desapego aos interesses no campo político dos homens “comuns”, as tramas e jogos de influência de Soares Barbosa fizeram com que ele fosse removido para Recife em 2 de junho de 1767, afastado assim de seu vicariato2899. Todavia, apesar do afastamento por ordens do rei, as transgressões religiosas e disputas de poder político do vigário continuaram a afrontar a autoridade governamental até o ano de 17852900. Pelo contrário, as negociações políticas de Soares Barbosa com a elite local, notadamente alguns membros da família Bandeira de Melo, e com o governo pernambucano enredadas após sua retirada fizeram com que os conflitos com Melo e Castro se agigantassem. Em busca de ascensão sociopolítica, de resguardar um lugar na América Portuguesa dos Setecentos, da era pombalina, o padre secular teceu uma rede de influências que desencadeou uma série de transgressões. Conflitos em oposição à intencionalidade do projeto colonizador pautado na harmonia e cooperação entre os membros da Igreja e do Estado, ao centralismo político do governo josefino, o qual combateu a interferência dos religiosos em assuntos estatais. Destarte, através do estudo de caso dos jogos de poder de Soares Barbosa, o presente trabalho tem o objetivo de refletir a respeito das negociações e tensões entre poder central e locais nas Capitanias da Parahyba e Pernambuco nos Setecentos (1764-1785). Costurado pelo aporte teórico-metodológico da História Política e da Micro-História, respectivamente, problematiza-se sobre a percepção das particularidades, da maleabilidade das ordens régias conforme as conjunturas, situações peculiares na América Portuguesa. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Entrelaçamentos políticos e (in) subordinação na Parahyba Cidade de Nossa Senhora das Neves, maio de 1764. O vigário António Soares Barbosa deu as boas vindas ao capitão mor, nomeado por El Rey para governar a capitania, Jerónimo José de Melo e Castro. Boas vindas e receptividade, sopros de harmonia entre autoridade civil e religiosa que, no entanto se dissiparam em alguns meses com o episódio da nomeação do padre Bartolomeu de Brito Baracho2901. Ora, as negociações do vigário provocariam desordem social e desentendimentos com Melo e Castro. Desentendimentos que se intensificaram por causa da conjuntura social de subordinação da capitania, das mudanças sociais que se iniciaram em 1750 com a ascensão ao trono de D. José I. Os esforços do então ministro do rei, então secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e de Guerra, o Marquês de Pombal para abrandar ou minimizar a crise do comércio açucareiro provocada pela concorrência antilhana e a guerra anti-holandesa e, da produção aurífera que entrava em declínio, agravada com o terremoto de 1755, teve impacto direto nas capitanias do Norte. No tocante a Parahyba, que se encontrava em debilidade econômica, principalmente por causa das lutas de expulsão dos holandeses, por medida de Pombal foi anexada a Pernambuco em 1755 através de ordem real, de 29 de dezembro. Perca de autonomia nos âmbitos econômico e político que se estendeu até 1799, interferência na configuração administrativa e do poder de mando dos grupos locais pelo marquês e seus representantes, neste caso Melo e Castro. Essa situação de dependência e controle metropolitano através da indicação de governantes de Recife e de Portugal causou queixas, insatisfações. Desagrados 2899

AHU_ACL_CU_014, Cx. 29, D. 2144. Vicariato se refere ao território sob a jurisdição, competência de um vigário. 2900 Essa data limite diz respeito ao ano do retorno de Soares Barbosa à Parahyba e, consoante à documentação analisada, do abrandar dos conflitos com Melo e Castro. 2901 Um ano após, o conflito envolvendo Soares Barbosa, Brito Baracho e o governador se agravou. No caso, era tanta a admiração e consideração do capelão Baracho pelo vigário que o indicou, que não cantava missa sem antes ter a sua autorização. Essa influência incomodava sobremaneira o governador, na medida em que estando ele em 1765 na capela da fortaleza, quis a realização do ritual religioso em homenagem a Santa Catarina. Todavia, imediatamente sua ordem foi negada pelo padre que alegou não ter licença de Soares Barbosa para realizá-lo. Melo e Castro também não autorizou que a licença fosse pedida, por saber que a capela pertencia ao patrimônio régio e por determinação de sua lei, isentava-se da aprovação de outrem que não fosse ele, representante de El Rey na capitania. In.: AHU_ACL_CU_014, Cx. 23, D. 1784.

932 ISSN 2358-4912 que se tornaram mais contundentes com a criação da Companhia Geral do Comércio em 1759. Com o intuito de ativar a economia, reafirmou o comércio exclusivo com Portugal, reprimiu o contrabando e a influência inglesa e integrou o desenvolvimento da agricultura com a industrialização no reino (DIAS, 2005). Tradução do despotismo político de Pombal gerou uma rede de conflitos tecida entre Paraíba, Pernambuco e Portugal. Com a intenção de diminuir o poder local que se firmava na Parahyba e promover a circularidade dos cargos administrativos, Pombal evitaria a possibilidade de manter no cargo de capitão mor alguém da própria capitania. Assim, nomeados da metrópole e em muitos casos vindos diretamente de lá, os governadores deveriam seguir as orientações da Coroa. Principalmente um dos pontos fundantes do despotismo regalista: o combate à interferência da Igreja nos assuntos administrativos e privilégios eclesiásticos que limitassem de qualquer forma a supremacia do poder estatal (SERRÃO, 1992). Ciente desses preceitos, Melo e Castro representante de El Rey, seria seus olhos e ouvidos, a voz que ressoaria as ordens vindas da metrópole. De acordo com Pombal, Melo e Castro era capacitado para o cargo de governador da Parahyba, nessa conjuntura em específico. Por isso, contrariando a média usual da época de 3 a 6 anos que um governador passava no cargo, o referido administrador dirigiu a capitania por 33 anos, de 1764 a 1797, ano de seu falecimento. Sobre a sua longa permanência, infere-se que representou a confiança do rei para com ele, sua habilidade em evitar maiores inimizades promovendo a mediação entre os interesses antagônicos, seu empenho em combater os desvios, as desordens e capacidade em aquecer a economia, minimizando a crise que assolou a capitania. Dada a situação vigente, Melo e Castro foi designado e visto como o responsável habilitado para enfrentar os grupos locais e seus poderes de influência, os arranjos políticos já estabelecidos antes de sua chegada. Todavia, a confiança de El Rey e a importância de Melo e Castro nesse contexto, para o desenvolvimento econômico e efetivação da política centralizadora na capitania, atuando assim como pilar e dissipador dos preceitos josefinos, não significou que o governador estivesse ansioso por permanecer no cargo. Pelo contrário, as discórdias com o governo de Pernambuco e com o vigário Soares Barbosa fizeram com que ele, a partir de 1770, solicitasse seu afastamento. Para agravar a situação, as redes tecidas por Soares Barbosa com a elite local incomodaram ainda mais Melo e Castro. O vigário desde que percebeu as intenções deste, de pôr em prática as ordens metropolitanas quanto à restrição ao poder religioso, rival em potencial ao da Coroa (SANTOS, 2008), enredou-se a membros da família Bandeira de Melo, que se opunham as ações do governador. Percebendo o poder de influência do referido grupo familiar e a sua divergência quanto aos propósitos pombalinos de centralização política empreendida por seu representante na capitania, Soares Barbosa aproveitou-se dessa situação de estranhamento e tentou se fortalecer.

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Nas tramas dos poderes coloniais: articulações e conflitos na Parahyba Setecentista Para enfrentar o administrador parahybano, Soares Barbosa uniu suas forças a um segmento da sociedade colonial que garantiu as bases da organização política nas capitanias: a família. Acrescendo ao poder econômico o político, ou o contrário, as famílias detinham expressiva influência local. Enquanto vassalos de El Rey em solos brasílicos, com a intenção de fazer parte da máquina administrativa, os Bandeira de Melo se debruçaram na obtenção de cargos políticos. Já em 1656, a escrivania da Fazenda Real da Parahyba foi assumida por Bento Bandeira de Melo. Fortalecida sua influência política, a família Bandeira de Melo se imiscuiu nas redes da governabilidade da Parahyba. Mas, a estabilidade e poderio alcançado com o passar dos anos, foram postos em cheque por Melo e Castro, o qual tinha a responsabilidade de combater as dissensões, defender a manutenção de prerrogativas que pudessem ameaçar à soberania de El Rey. Vivenciando essa conjuntura peculiar, o dito grupo familiar, buscou fazer frente aos ataques do governador, aliando-se aos que simpatizavam da divergência a Melo e Castro. Nesse sentido, o compartilhar dos interesses políticos condicionou as relações entre Soares Barbosa e alguns membros da família Bandeira de Melo. Com o padre António Bandeira de Melo, presbítero do hábito de São Pedro, arquitetou planos para tentar diminuir a autoridade e macular a probidade do administrador parahybano perante os de Pernambuco. Impulsionado por esse intuito, Soares Barbosa escreve ao referido padre em 22 de junho de 1766:

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ISSN 2358-4912 Sempre suppus que chegando logo a essa Praça tomasse vossa merce algum vomitorio para alimpar o estomago porem como me não falta nesta materia entendo que o remedio tem feito pouca obra. Estimarey que daqui por diante tenhão mais efficacia e que vossa merce medindo todas as circunstancias alcance perfeita melhora. Não se esqueça de buscar melhor ocazião de falar com o Senhor Bispo para que fique de todo inteirado das mizerias desta terra, e não menos deve vossa merse lembrar-se do despacho da petição do Padre Baracho, por que hé conveniente que vá a essa 2902 Praça a queixar se das injustiças que lhe estão fazendo...

Ora, Soares Barbosa esperava que o padre, estando em Pernambuco, exteriorizasse o que lhe incomodava, o que pensava a respeito das atitudes de Melo e Castro na administração da capitania da Paraíba. Pedindo que interviesse nos assuntos que envolviam o nome do governador paraibano, tomava providência quanto as suas discordâncias que lhe provocavam mal-estar, “amargores de boca” que deveria ser medicado com a mesma espécie de remédio. Assim, os conflitos foram endossados com essas palavras do vigário, com o vomitório que fazia uso o padre Bandeira de Melo em Pernambuco. Incômodo provocado também em Melo e Castro ao passo que se sentia desmoralizado por causa das ações e intrigas fomentadas pelos dois religiosos. Disto, ainda intensificou a trama política entre o secular “portador de um luciferino espírito e seguidor de máximas maquiavélicas”2903 e o governador parahybano, a acusação de Melo e Castro da maquinação do seu assassinato e o de seu secretário José Pinto Coelho, pelos ditos “cúmplices” de Soares Barbosa, a seu mando. Segundo Melo e Castro, o religioso cooperou para o atentado que sofrera, o qual “Prendendo se casualmente o cabra Constantino escravo do referido Padre Antonio Bandeira confessou geminadamente que sua senhora moça Dona Quitéria Bandeira de Mello irmã do dito Padre, lhe ordenara me matasse, e ao meu secretario [...]”2904. Aqui, suscita-se a participação no enredo de Dona Quitéria, amiga e tida por amásia do vigário. Segundo a documentação consultada, a dita senhora jurado que traria, a todo custo, Soares Barbosa de volta a sua paróquia, quando soube da prisão do cativo de sua família, fugiu para Pernambuco em busca de amparo do gabinete pernambucano e de seu “amado”2905. No entanto, sua procura por auxílio foi em improfícuo, o que agravou sua situação. Da devassa do caso, tirada em fins de 1769, Dona Quitéria foi considerada culpada e presa, ao padre Bandeira de Melo foi ordenado o encarceramento no Recife e, a Soares Barbosa o exílio na capitania de Alagoas. Tais penalidades, porém, não os paralisou, pelo contrário, por causa de suas condições desfavoráveis se dedicaram a barganhar da influência e autoridade de funcionários públicos, representantes da coroa para reverter a situação a seu favor. Disso, iriam buscar quem pudesse contribuir para suas defesas e, conseqüentemente se opusesse as acusações de Melo e Castro. De todo o processo, somente em fins da década de 1770, que os Bandeira de Melo iriam se livrar das acusações, o padre António Bandeira de Melo em 1776 e a senhora um ano depois2906. O vigário Soares Barbosa demoraria mais três anos encarcerado. Entretanto, eram anos promissores para ele, visto que subiria ao trono português Dona Maria I, a piedosa. A viradeira, como ficou conhecido o governo da monarca, foi um período de transformações na conjuntura sociopolítica da metrópole e de suas possessões. A reação contra o ex-ministro, em certa medida, apoiada por Dona Maria, católica fervorosa, minava as medidas do marquês quanto à subjugação da Igreja ao Estado. Restabelecia-se, assim, ao clero a possibilidade de tecer relações com os representantes do governo em equivalência de autoridade, sem o peso da submissão das medidas pombalinas (COELHO, 1874). Na América Portuguesa, aos representantes da coroa se cobraria o discernimento ao tratar da fé católica e respeitabilidade aos membros da instituição católica. Martinho de Melo e Castro, ministro de estado da Marinha e Ultramar, a partir de 1777 deveria 2902

AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1842. Anexo 1. Sobre as correspondências de Soares Barbosa ao padre António Bandeira de melo é interessante destacar que foram escritas antes da remoção do vigário. Desse detalhe, o governador se utilizou com astúcia, respaldando suas acusações no sentido de que, não foi a dita remoção a causa das ofensas e sim, o intuito de desrespeitá-lo, perturbar seu governo se possível até, tirá-lo da administração. 2903 Idem. D. 1842. 2904 AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1873. 2905 Idem. D. 1873. 2906 AHU_ACL_CU_014, Cx. 26, D. 2008.

934 ISSN 2358-4912 conduzir os processos a ele enviados de acordo com as determinações de Dona Maria I, do resguardar dos direitos, deveres e competências dos ministros de Deus. Em se tratando das mudanças na relação entre autoridades civis e eclesiásticas, influenciariam o desenrolar do caso de Soares Barbosa, particularmente as decisões de Martinho de Melo e Castro quanto às súplicas do vigário. Em julho de 1777, os pedidos feitos pelo religioso no decorrer de três anos, de ter sua defesa analisada, seriam finalmente atendidos. No caso, ao bispo Dom Tomás da Encarnação Costa e Lima (antístite de 1774 a 1784) ficou a incumbência de avaliar a sua defesa. Concernente aos negócios temporais, que não deveria se envolver, afirmou o referido bispo, tinha ambição por conquistá-los, por honras e prestígio. Criticou também que seu “gênio presunçoso” provocava incômodo e o conduzia a agir de forma desrespeitosa, como o fez em relação ao governador Melo e Castro2907. No entanto, o bispo deferiu pela soltura de Soares Barbosa, haja vista encontrava-se velho e doente. Liberdade e envio a qualquer outra localidade que não a Paraíba, pois seu governador temia pela deflagração de outros conflitos. Essa tinha sido sua primeira opinião que veio a mudar um ano depois (1778). Nesse sentido, em 28 de abril de 1779, a compaixão da rainha D. Maria I o proporcionou a liberdade. Porém, alegando que estava tratando de sua saúde, o vigário não voltou a sua paróquia antes de 1785, permanecendo em Pernambuco. Somente após a denúncia do o deão2908 da Sé de Pernambuco Manoel de Araújo de Carvalho Gondim, em maio de 1784, de que “[...] o tal vigario passea por esta cidade [Olinda], vai ao Recife, sem que oprima molestia alguá, ainda que se elle quiser certidões de infermidade, o medico Joam Luis da Serra lhe passará quantas pedir”2909, retornaria à Parahyba. Assim, em 6 de maio de 1785, chegou à cidade de Nossa Senhora das Neves, o vigário Soares Barbosa “[...] não mais portador de um espírito inquieto, mas de gênio moderado e caráter pacificador [...]”2910. A partir de então, seu nome não mais foi mencionado em escritos dirigidos a monarca ou a seus conselheiros. Disso, inferimos que a relação entre o padre secular e Melo e Castro se deu de forma harmoniosa, sem a continuidade e deflagração de outros conflitos entre eles.

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Considerações Finais As tensões entre Soares Barbosa e Melo e Castro, e demais envolvidos, surgiram em um contexto histórico específico: a segunda metade do século XVIII, período do governo de Dom José I e de seu ministro, o Marquês de Pombal, o qual foi marcado pelo despotismo esclarecido, combatente de qualquer tipo de interferência da instituição religiosa e de seus membros no governo temporal de El Rey. Melo e Castro, enquanto representante do Estado luso, norteado por esses preceitos, os quais deveria pô-los em prática, denunciou as atuações de Soares Barbosa no campo do político. No entanto, mesmo retirado de sua paróquia, aproveitou-se da subordinação da Parahyba a Pernambuco e se empenhou a barganhar da influência dos governadores pernambucanos para amenizar sua situação. Com astúcia, Soares Barbosa se envolveu em jogos de poder com governadores de Pernambuco e elite local. Suas tramas políticas exponenciaram os desentendimentos entre os administradores das duas capitanias e entre, Melo e Castro e membros da família Bandeira de Melo. Pois bem, a busca pela manutenção de privilégios postos em cheque pelo representante do centralismo pombalino na Parahyba, ocasionou os conflitos que geraram desordens em espaços do Norte da colônia. As tensões entre poder religioso e secular, entre poder central e locais, rastreadas pelos fios dos arranjos políticos impressos nos escritos enviados à corte, são expressivas das especificidades condicionantes da governabilidade na América Portuguesa (SOUZA, 2006). Dos trinta e três anos da administração de Melo e Castro, quase duas décadas sofreram intervenção dos conflitos e jogos de influência do dito padre secular e de alguns membros do referido grupo familiar. Na corte lusa e no ultramar português, as relações políticas eram complexas, por vezes harmoniosas, outras tantas conflituosas, todavia, notadamente negociadas. Os atores sociais envolvidos em relações dessa natureza, eram interdependentes entre si e para com o monarca e seus conselheiros (CORRÊA, 2010). Destarte, a partir da análise dos indícios dos arranjos políticos diluídos 2907

AHU_ACL_CU_ 015, Cx. 131, D. 9906. Dignidade eclesiástica logo abaixo do bispo ou arcebispo e que preside ao cabido. 2909 AHU_ACL_CU_015, Cx. 151, D. 10975. 2910 AHU_ACL_CU_014, Cx. 27, D. 2064. 2908

935 ISSN 2358-4912 nos documentos, promoveu-se uma reflexão acerca das superposições dos poderes existentes nas relações políticas no circuito Parahyba, Pernambuco e Portugal. Do entrelaçar de olhares ao contexto local e à conjuntura histórica geral, refletimos a respeito da convergência, divergência, coexistência e das negociações dos interesses envolvidos, forças e redes tecidas por Soares Barbosa, Melo e Castro e os Bandeira de Melo nas capitanias do Norte da América Portuguesa. Dessas tessituras, fios das tramas e disputas de poder, a administração de Melo e Castro foi tonalizada de forma específica, destoante e conflitante.

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O ESTADO DO MARANHÃO E O UNIVERSALISMO VIEIRIANO NA CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO DOS BRAGANÇA Nathalia Moreira Lima Pereira* Vivey, vivey, Portuguezes, vós os que mereceis viver neste venturoso século, esperay no Author de tão estranhas promessas, que quem vos deu esperanças, vos mostrará o 2911 cumprimento delas .

Inserido numa certa tradição retórica ligada à Segunda Escolástica, os escritos políticos e religiosos do Padre Antônio Vieira (1608-1697) seguem preceptivas transmitidas pela Companhia de Jesus a partir de outras fórmulas tradicionais, algumas vezes relacionadas diretamente com a ars dictamis, entre outras artes disponíveis entre os séculos XVI e XVII.2912 Apesar de certa deferência a modelos retóricos bem conhecidos, na correspondência jesuítica a propagação da fé e a conversão do mundo ainda são elementos fundamentais. A vasta obra de Vieira adquire, então, a capacidade de ser moldada e reinventada nos diversos contextos e situações em que a ocasião se torna favorável à conversão do gentio.2913 Como sujeito de uma sociedade pautada na ordem da escolástica barroca, mas também como elemento voltado para a ação, tal como estabelecia os próprios documentos fundadores da Ordem, percebemos em Vieira uma experiência de mundo que contribuiu para que ele atuasse, sem ser contraditório, em diferentes matérias, política, missionária ou diplomática. Como se sabe, Vieira se insere no debate seiscentista acerca de qual seria o papel dos judeus e cristãos-novos na reativação da economia do império português, como também o papel da própria América no comércio do açúcar e no tráfico intercontinental de escravos africanos, como um desafio de garantir a soberania portuguesa no contexto pós-restauração. A partir do que foi exposto acima, a historiografia tem insistido, por vezes, na representação de um Vieira multifacetado, dissociando e confrontando seus aspectos político, religioso e até mesmo diplomático. Exemplo disso, é a clássica História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, que apresenta um jesuíta fragmentado em seis personagens, o religioso, o político, o missionário, o “vidente”, o “revoltado e o “vencido”.2914 Alcir Pécora, por outro lado, formulou outra hipótese, demonstrando a existência de uma unidade teológico-retórico-política que apresenta um Vieira integrado ao que o autor chama de matriz sacramental, onde a presença divina atua nos ouvintes direcionando-os às finalidades cristãs propostas pelo corpus católico das monarquias modernas.2915 Tal unidade teológico-retórico-política reabilita o debate historiográfico sobre o universalismo vieiriano, bastante difundido em sua doutrina messiânico-profética, que se insere no contexto da Restauração portuguesa e guerra contra Castela. Tanto em seu período diplomático, quanto no período em que atuou como missionário no Estado do Maranhão, tais doutrinas levantavam uma das questões mais debatidas na historiografia, e na fortuna crítica de Vieira, o projeto do Quinto Império. A missão universalista iniciada pela Igreja católica e pelos Estados Modernos de levar a cabo o

*Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Maranhão. Trabalho orientado pelo professor Dr. Alírio Cardoso, Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Email: [email protected] 2911 VIEYRA, Antônio. História do Futuro: livro anteprimeyro prologomeno a toda história do futuro, em que se declara o fim, & se provão os fundamentos dela; matéria, verdade et utilidade da história do futuro. – Belém: SECULT/IOE/PRODEPA, 1998. 2912 PÉCORA, Alcir. Cartas à Segunda Escolástica, In: A Outra margem do ocidente, (org.) Adauto Novaes – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 2913 MENDES, Margarida Vieira. A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, Caminho, 1989. 2914 AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. 2ª edição. Lisboa: Livraria Clássica, 1931. 2915 Sobre o tema ver: PÉCORA, Alcir. Para ler Vieira: As 3 Pontas das analogias nos sermões, In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007; e PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Edusp, 1994.

938 ISSN 2358-4912 processo de conversão e de colonização, por religiosos de várias Ordens, sobretudo jesuítas, foi retomada por Vieira e se tornou oportuna no contexto histórico da Guerra da Restauração. Para Cardim e Sabatini, tal proposta universalista se materializou nas monarquias Ibéricas associando perspectivas providencialistas, messiânicas e milenaristas, edificando um imaginário religioso que sustentou a Respublica Christiana nessa parte da Europa desde a unificação dos reinos de Aragão e Castela. Tanto o contexto português, quanto o espanhol, sob a égide dos Habsburgo, ofereceram elementos para a recepção de ideias universalistas – a guerra de Reconquista, o combate à Reforma protestante e as expansões marítimas ibéricas para a África, Ásia e América legaram a essas monarquias o desejo pela unidade, que se consolidou em uma edificação política, mas também espiritual.2916 Por uma via teleológica, a pretensão de universalidade cunhada a partir da compreensão da Igreja como herdeira do Império Romano foi legitimada por Agostinho em sua obra De civitae Dei, a partir da transferência da universalidade romana, como condição de expansão territorial, para a do universalismo vaticano. Segundo John H. Elliott houve alternativas de organizações políticas classificadas em duas categorias: Estados compostos, separados por outros Estados ou pelo mar, a exemplo da Monarquia Hispânica, e os Estados compostos contínuos, como Inglaterra e Gales. Como também aponta o mesmo autor, a busca pela unidade era considerada mais fácil onde se davam semelhanças de língua, costume e ordem.2917 Tal apego a um “Império Universal” e a uma “Igreja Universal”, detentores de territórios que pudessem legitimar seus projetos de conquistas, marcou também o contexto português bem antes da união das coroas ibéricas, representando um vasto imaginário propagado deste a Reconquista no “milagre de Ourique”, passando pelo projeto de expansão marítima de D. Manuel, continuado por seu filho D. Sebastião e retomado, mais tarde, em Vieira nas suas mais variadas adaptações, da Monarquia Católica até as projeções messiânicas lançadas sobre a Casa dos Bragança.

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*** O contexto histórico em que se insere esta etapa da escrita vieiriana, a Guerra de Restauração (1640-1668), que acabou com sessenta anos de domínio castelhano e contou com a participação de vários segmentos da sociedade portuguesa: uma fração da nobreza lusa que já acumulava prejuízos com a soberania espanhola, oficiais ligados à antiga Casa de Bragança, e padres da Companhia de Jesus que perdiam espaços de poder e atuação missionária, demonstrou o quanto Viera foi buscar, em um Portugal fragilizado economicamente, a sustentação de certas ideias providencialistas. A oposição aos espanhóis, por outro lado, era variada e se manifestava também em levantes populares e manifestações antifiscais, assim como na construção de uma imagem associada a sentimentos messiânicos de perfil sebastianista.2918 Por fim, como se sabe, este foi também o período em que ocorreu o grande assalto holandês ao Estado do Brasil (1630-1654), tentativa batava de controlar de perto todo o sistema produtivo do açúcar luso-brasileiro, e que tornaria o cenário internacional mais propício a um debate

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CARDIM, Pedro. ''La aspiración imperial de la monarquía portuguesa (siglos XVI y XVII)'', In: Gaetano Sabatini (org.), Comprendere le Monarchie Iberiche: Risorse Materiali e Rappresentazione del Potere, Roma, Viella, 2010, pp. 37-72 e CARDIM, Pedro e SABATINI, Gaetano. “António Vieira e o universalismo dos séculos XVI e XVII”. In: CARDIM, Pedro & SABATINI, Gaetano (Eds.). António Vieira, Roma e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de História de Além-Mar/Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores/Università Degli Studi Roma Tre/Red Columnaria, 2011, pp. 13-27. 2917 Elliott, John H. España, Europa y el Mundo de Ultramar (1500 – 1800). Santillona ediciones Generales, S. L., Madrid, 2010, p. 32. 2918 Jacqueline Hermann fala da existência de um messianismo régio por causa do rei desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir, D. Sebastião, que seria nomeado mais tarde, sebastianismo. Ver: HERMANN, Jacqueline. “As metamorfoses da espera: messianismo judaico, cristãos-novos e sebastianismo no Brasil colonial”. In: GRINBERG, Keila (org.). Os judeus no Brasil. Inquisição, imigração e identidade; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, p. 341. Ver também: HERMANN, Jacqueline. “Antônio Vieira e o Sebastianismo: messianismo régio e transfiguração barroca”. In: CONSTIGAN, Lúcia Helena (org.). Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco; Campinas, Editora da Unicamp, 2005, pp. 9394.

939 ISSN 2358-4912 sobre o papel desempenhado por lugares como o próprio Estado do Maranhão no contexto dos territórios ultramarinos portugueses ocupados.2919 Levantando a questão do Quinto Império do Mundo, Vieira enxerga a soberania portuguesa e a expansão da fé católica através da missão providencial da conversão de judeus e indígenas. Sua visão universalista do império luso se baseava em uma retórica que atrelava argumentos bíblicos com as condições políticas que se instalavam na sociedade portuguesa, levando a cabo o desenvolvimento político e econômico do reino. Assim, logo nas primeiras missões diplomáticas do Padre Antônio Vieira, ocorridas entre 1646-1648, na França e nos Países Baixos, ele passa a tocar num tema bastante controverso no contexto sócio-econômico ibérico: o papel dos cristãos-novos no novo regime, questão que se projetou na escrita da obra História do Futuro, iniciada provavelmente em 1649 e terminada durante a sua defesa no processo contra a Inquisição de Coimbra.2920 Como é sabida, a situação dos cristãos-novos em Portugal se agravou desde o reinado de D. Manuel, quando este, através de decreto em 1546, ordenou a expulsão de todos os judeus do território luso que recusassem o batismo, sob pena de confisco de seus bens e mesmo da morte.2921 Ainda nos reinados filipinos, a questão ganhou intensidade com a adoção geral dos estatutos de “limpeza de sangue”, proposto pelo Duque de Olivares e a Inquisição espanhola. A partir de então, ganha destaque o mito do “marranismo”, o falso cristão, acusação sistematicamente aplicada aos descendentes cristianizados dos judeus luso-espanhóis.2922 Importante salientar que mesmo após a Aclamação de D. João IV como rei de Portugal, não se praticou nos primeiros anos de seu reinado uma renovação de cargos e mudanças das leis filipinas, apontando para uma manutenção, tanto de uma ideologia política e também religiosa, quanto das práticas do Tribunal da Inquisição à época dos Filipes.2923 Para piorar, a Restauração Bragantina, em dezembro de 1640, não só trouxe para Portugal uma “velada liberdade”, mas também uma grave crise econômica fruto das despesas com a Guerra da Restauração que abalaram tanto os cofres portugueses, quanto os espanhóis.2924 Nesse contexto, começava a ganhar força a teoria sobre o melhor aproveitamento do financiamento cristão-novo como forma de recuperar as finanças portuguesas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Sobre o tema, ver entre outros: SANTOS PÉREZ, José Manuel & CABRAL DE SOUZA, George F. (Orgs.). El Desafío Holandés al Dominio Ibérico en Brasil en el siglo XVII. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2006. BOXER, Charles. The Dutch Seaborne Empire, 1600-1800. London: Hutchinson & co, 1965. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro/São Paulo: forense universitária/Edusp, 1975. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/editora Massangana/Instituto Nacional do Livro, 1987. Sobre o Maranhão, ver: MEIRELLES, Mário. Holandeses no Maranhão (1641-1644). São Luís: Edufma, 1991, p. 87. CARDOZO, Alirio. “Notícias do norte: primeiros relatos da presença holandesa na Amazônia brasileira (século XVII)”. Paris: Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, vol. 8, 2008, p. 43703. Disponível em: URL: http://nuevomundo.revues.org/index43703.html. 2920 Importante salientar que a obra História do Futuro de Vieira possa ter sido iniciada em 1649 e não em 1663 como aponta Adma Muhana, pois alguns autores como Antonio José Saraiva a projetam a partir dessa data por se terem arquivados pela Inquisição escritos de assuntos proféticos e messiânicos desse período e que posteriormente foram compilados e publicados com outros escritos proféticos redigidos por Vieira durante sua defesa no Tribunal da Inquisição. Tais escritos, após a sua publicação por João Lúcio de Azevedo em 1918, receberam o título de História do Futuro. In: SARAIVA, Antônio José. História e Utopia: estudos sobre Vieira. Trad. Maria de Santa Cruz. – Lisboa: Ministério da Educação, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, p. 99 e MUHANA, Adma. Do Processo de Vieira na Inquisição. In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007, p. 27-37. 2921 ALVES, Paulo Renato de Castro. D. Luís da Cunha e os cristãos-novos, s.d., p. 2. Acessado em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf. 2922 Sobre as relações entre judaísmo e o padre Vieira, ver o artigo escrito por Antônio José Saraiva intitulado “Antônio Vieira, Manasseh Bem Israel e o Quinto Império”. In: SARAIVA, Antônio José. O Discurso engenhoso. São Paulo. Perspectiva. 1980; NOVINSKY, Anita. “Uma luta pioneira pela justiça dos judeus: padre Antônio Vieira”. In: AZEVEDO, Silvia Maria de. & RIBEIRO, Vanessa Costa (orgs). Vieira: vida e palavra. São Paulo: Edições Loyola, 2008; 2923 TORGAL, Luis Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, vol. I, pp. 87 e 88, n. 1. 2924 VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal – guerra e restauração 1640-1680. A esfera dos livros, Lisboa, 2006, p. 89.

940 ISSN 2358-4912 Sabendo que a elite financeira portuguesa, muitos de origem cristã-nova, se encontrava em Madrid, Sevilha ou mesmo Cádiz, e poucas eram as chances de fazerem algo por essa “nobreza conjurada”, Portugal teve que aumentar a carga fiscal do reino, mas também, por outro lado, suspender o pagamento dos impostos criados pela Monarquia Hispânica, fator que contribuiria para que o novo regime ganhasse novos adeptos.2925 Portugal também voltou a comercializar com a Holanda e com a França, comércio proibido por Madrid durante a união. Dois fatores importantes aparecem então: a questão de se manter o crédito financeiro com os cristãos-novos e judeus, e a tentativa de negociação entre Portugal e Holanda para a retomada de Pernambuco. Por outro lado, outro ponto importante também seria como inserir o Estado do Maranhão e suas riquezas no contexto da Restauração e no eixo universalista pensado por Vieira.2926 Na obra História do Futuro, a palavra “Maranhão” é mencionada algumas vezes pelo padre Vieira. Ao interpretar as profecias de Isaías, Vieira entende que as terras além da Etiópia eram aquelas descobertas por Portugal, na qual também estavam territórios novos, como o próprio Maranhão.2927 Segundo Margarida Vieira Mendes, partindo sempre de uma exposição bíblica dos profetas do Antigo Testamento para uma teologia histórica dos descobrimentos portugueses, Vieira pôde, enfim, esclarecer e fornecer o material profético no qual fundou seu projeto do “Quinto Império do Mundo”. A autora também destaca a importância dada a uma certa geografia das conquistas, em que Vieira insere o Brasil e o Maranhão, como justificativa das missões jesuíticas e da conversão do gentio.2928 Como argumenta a historiadora Adma Muhana, História do Futuro e Apologia das coisas profetizadas, obras proféticas de Vieira, são indistinguíveis e escritas durante o mesmo período, entre 1663 e 1664. Tal como apontamos acima, a História do Futuro talvez tenha sido iniciada em 1649, após o contato que Vieira teve com o rabino Manasseh Bem-Israel. O que sabemos, com algum grau de certeza, é que durante o período em que atuou como missionário no Estado do Maranhão (1653-1661), e após a morte de D. João IV em 1656, Vieira escreveu a rainha viúva D. Luísa de Gusmão, uma carta intitulada Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vida del-Rei D. João o Quarto. Tal carta e seu conteúdo colaboraram para a denúncia de Vieira junto ao Tribunal do Santo Ofício.2929 Apesar disso tudo, o famoso jesuíta acabou sendo processado pelo suposto crime de judaísmo, iniciando um dos momentos cruciais de sua vida, intensamente comentada pela historiografia. Nesse contexto, a percepção de Vieira acerca da concretização da proposta descrita em Esperanças de Portugal, e posteriormente em História do Futuro, seria operar a Providência Divina para o papel que Portugal desempenharia na consumação do Reino de Deus na terra, em uma convergência temporal e espiritual, manifestada nas profecias, mas ainda não plasmada totalmente. Nesse sentido, as profecias advindas do “Milagre de Ourique” e das “Trovas do sapateiro Bandarra” sofrem uma “emulação retórica”,2930 elaborada por Vieira, transferindo a D. João IV a profecia do “Rei Encoberto” que ressuscitaria para combater a inimiga Castela.2931

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VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal, pp. 89 a 111. Ver: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. “Regiões e Império: Vieira na América portuguesa na segunda metade dos seiscentos”. In: CARDIM, Pedro e SABATINI, Gaetano (Eds). Antônio Vieira, Roma e o universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de História de Além-mar/Universidade Nova de Lisboa/Universidade dos Açores/Università Degli Studi Roma Tre/Red Columnaria, 2011, pp. 183-184. 2927 VIEYRA, Antônio. História do Futuro: livro anteprimeyro prologomeno a toda a história do futuro, em que se declara o fim, & se provão os fundamentos della; matéria, verdade, et utilidade da história do futuro. Belém: SECULT/IOE/PRODEPA, 1998, p. 298-301. 2928 MENDES, Margarida Vieira. “Vieira no cabo de não: Os descobrimentos no livro Anteprimeiro da História do Futuro”. Semear 2, em: http://www.letras.pucrio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/2Sem_01.html. 2929 DE MARTINI, Marcus. O Historiador do Futuro e o Profeta disfarçado: profecia, história e retórica na História do Futuro do padre Antônio Vieira. Matraga, Rio de Janeiro, v.20, n.33, jul/dez. 2013, p. 93. 2930 HANSEN, João Adolfo. Instituição retórica, técnica retórica, discurso. Matraga, Rio de Janeiro, v. 20, n.33, jul/dez. 2013, p. 14-16. Acessado em: www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga33/arqs/matraga33a01. 2931 Ver: VIEIRA, Antônio. “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, primeira e segunda vida de ElRei D. João o quarto. Escritas por Gonsalianes Bandarra e comentada pelo Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus e remetidas pelo dito ao Bispo do Japão, o Padre André Fernandes”. In: De Profecia e Inquisição. Brasília – Senado Federal, 2001, p. 87-109. 2926

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ISSN 2358-4912 Conclusão A partir da análise da conjuntura político-econômica de Portugal restaurado, e dos impactos causados na América lusa pela sua frágil economia no contexto da guerra com Castela, concluímos que o universalismo vieiriano associou esses elementos considerados muitas vezes isolados pela historiografia para preencher uma lacuna no que tange ao problema da legitimação da Casa de Bragança. A análise da diplomacia do Padre Antônio Vieira, conjuntamente com suas obras proféticas e missionárias, traz a possibilidade de compreensão do papel reservado aos cristãos-novos e ao Estado do Maranhão nessa nova configuração. Vieira entendia-se capaz de contribuir, ao seu modo, para a reorganização do reino, que passava por grave crise financeira, defendendo, como outros portugueses ilustres do período, estratégias variadas para promover seu crescimento econômico. Nos escritos de Vieira, isto não contradiz a ação de conversão geral do gentio nas terras americanas. Ao mesmo tempo, o tema da fronteira também passa a ser cada vez mais relevante, mesmo antes de sua residência no Maranhão. O Estado do Maranhão, nesse sentido, se destaca no contexto da Guerra de Restauração pela qualidade de zona de fronteira entre o Vice-Reinado do Peru e o Estado do Brasil. Tal condição, como aponta Alírio Cardoso, teria grande importância no contexto da guerra contra Castela e nos rumos da economia global lusa em anos subsequentes.2932 Dessa forma, para Vieira, o papel da fronteira lusoespanhola, incluindo a Guiana, o Cabo do Norte, o Maranhão e o Grão-Pará, parece ser cada vez mais fundamental. É bom lembrar, por exemplo, que no famoso Papel Forte (1648) o Maranhão não seria cedido aos holandeses, ao contrário do que foi proposto para Pernambuco.2933 Por fim, este debate nos ajuda a construir também outra imagem do jesuíta, menos fragmentada e mais atenta ao universalismo barroco, portanto, capaz de conectar o religioso, o político e o diplomata sem as contradições que a historiografia tem muitas vezes apresentado.2934 Referências AZEVEDO, João Lúcio de. História de António Vieira. 2ª edição. Lisboa: Livraria Clássica, 1931. BOSI, Alfredo. “Vieira ou a cruz da desigualdade”. In: Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CARDIM, Pedro. “Entre Paris e Amsterdão. Antônio Vieira, legado de D. João IV no Norte da Europa (1646-1648)”. Oceanos, nº 30/31 (setembro, 1997). CARDIM, Pedro. “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os primeiros Bragança”. Hispania, vol. IX, nº 216 (janeiro-abril, 2004). CARDIM, Pedro. “Os ‘Rebeldes de Portugal’ no Congresso de Münster (1644-1648)”. Penélope. Fazer e desfazer a História, nº 19/20 (1998). CARDOSO, Alirio e CHAMBOULEYRON, Rafael. “Fronteiras da Cristandade: Relatos jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará (século XVII)”. In: DEL PRIORE, Mary & GOMES, Flavio. Senhores dos Rios. Amazônia, Margens e História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. CARDOSO, Alirio. “AS FACES DO PADRE VIEIRA. O jesuíta no Maranhão, segundo seus biógrafos”. In: COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche (Orgs). Maranhão: ensaios de biografia e História. São Luís: Café & lápis/Eduema, 2011, v. 1. CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012.

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Sobre o tema, ver: CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca: tese de doutorado (História) apresentada à Universidad de Salamanca, 2012. 2933 VAINFAS, Ronaldo. “Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa”. Tempo, vol. 14, nº 27 (2009), pp. 82-100. 2934 CARDOSO, Alirio. Maranhão na Monarquia Hispânica, pp. 313-347.

942 ISSN 2358-4912 CARDOSO, José Luís, “O Pensamento Econômico na Época da Restauração”. In Penélope, Lisboa, nº 9/10, 1993, pp. 135-149. CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (1640-1706). Belém: Editora Açaí, 2010. COSTIGAN, Lúcia Helena (org). Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005. D’ AZEVEDO, João Lúcio. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização. Belém: SECULT, 1999. ELLIOTT, John H. España, Europa y el Mundo de Ultramar (1500 – 1800). Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2010. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo/Campinas: ateliê Editorial/Editora da Unicamp, 2004. HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: A construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: Análise de uma Estrutura Histórica. Prefácio Guilherme Simões Gomes Jr.; tradução Silvana Garcia. – 1. Ed. 2. Reimpressão. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. MENDES, Margarida Vieira. A Oratória Barroca de Vieira. Lisboa: Caminho, 1989. MENDES, Margarida Vieira. Comportamento Profético e Comportamento Retórico em Vieira. Revista Semear, 2. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/2Sem_07.html. MENDES, Margarida Vieira. “Vieira no cabo de não: Os descobrimentos no livro Anteprimeiro da História do Futuro”. Revista Semear, 2. Disponível em: http://www.letras.pucrio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/2Sem_01.html. MUHANA, Adma. “Do Processo de Vieira na Inquisição”. In: Asas da Palavra – Revista de Letras – Belém: UNAMA, v. 10, n. 23, 2007. PÉCORA, Alcir. “Cartas à Segunda Escolástica”. In: NOVAIS, Adauto (org). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. PÉCORA, Alcir. “Sermões: a pragmática do mistério”. In: VIEIRA, Antônio. Sermões. São Paulo: Hedra, 2001. VAINFAS, Ronaldo. “Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa”. Tempo, vol. 14, nº 27 (2009), pp. 82-100. VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal – guerra e restauração 1640-1680. Lisboa: A Esfera dos livros, 2006. VIEIRA, Antônio. Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, primeira e segunda vida de El-Rei D. João o quarto. Escritas por Gonsalianes Bandarra e comentada pelo Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus e remetidas pelo dito ao Bispo do Japão, o Padre André Fernandes. Brasília: Senado Federal, 2001. VIEYRA, Antônio. História do Futuro: livro anteprimeyro prologomeno a toda a história do futuro, em que se declara o fim, & se provão os fundamentos della; matéria, verdade, et utilidade da história do futuro. Belém: SECULT/IOE/PRODEPA, 1998. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ORGANIZAÇÃO MILITAR: INSTITUIÇÃO EDUCATIVA E CULTURAL NA CAPITANIA DE MATO GROSSO Nileide Souza Dourado2935

Ao abordar a educação na América portuguesa, em especial a manifesta na capitania de Mato Grosso, entre o século XVIII e início do XIX, há de se romper as fronteiras da educação escolar, considerando que a educação, nessa espacialidade e no período histórico em destaque, acontece também fora da escola, especialmente em ambientes de trabalho, religioso, social e cultural, por meio de ações mediadas por agentes culturais, capazes de produzir saberes e fazeres de circulação cultural, seja por meio dos grupos sociais radicados na região, como pelas instituições estendidas de Portugal, pelo poder metropolitano. Portanto, saberes e práticas são constituídos nessa interação e mediação cultural através de instituições e população, lusitana, indígena, africana e miscigenada, ali radicada. Tais práticas envolvem tanto aprendizados educacionais escolares, mas também trocas culturais de hábitos, costumes, comportamentos, técnicas, ofícios e as de caráter religioso, provenientes das várias origens culturais da população que se expressaram nessa área extrema do oeste colonial. Nessa perspectiva, a base explicativa dessas modalidades de práticas educativas e culturais na capitania de Mato Grosso, no período colonial, encontra-se assentada, também, nos ensinamentos de Comenius (2011, p. 13), em sua Didática Magna, pensada e escrita no século XVII, com predominância até início do século XIX. Essa obra foi identificada como a “arte universal de ensinar tudo a todos; de ensinar de modo certo, para obter resultado”. A inspiração em Comenius guiou nosso olhar para as diversificadas formas de educação e socialização existentes no cenário social e que pouca ou nenhuma importância se tem dado a elas. Pretendia Comenius uma forma para se conseguir ensino e aprendizagem eficazes, atraentes e organizados. As concepções ‘educar’ e ‘instruir’, embora pensadas separadamente, estavam conectadas. Comenius (2011, p. 30), sugestivamente, num dos capítulos de sua obra, procurou explicitar o seu entendimento sobre educar e instruir os homens a partir da seguinte afirmação: [...] educar os jovens com sabedoria significa, ademais, promover a que sua alma seja preservada da corrupção do mundo; favorecer – para que germinem com grande eficácia – as sementes de honestidade que neles se encontram, por meio de ensinamentos e exemplos castos e assíduos.

Nesse contexto, destacam-se três instituições2936 que mantiveram estreita relação com a transmissão de conhecimentos, tanto no âmbito das práticas educativas culturais e de escolarização, na capitania de Mato Grosso: a Câmara Municipal, a Organização Militar e a Igreja. Assim, procurando dar visibilidade a alguns aspectos da composição de uma das mais importantes instituições, a Organização Militar, é apresentada a seguir uma breve digressão do termo “instituição”. Andrê Burgière, no Dicionário das Ciências Históricas (1993) 2937, oferece algumas definições para o vocábulo “instituição”. Para ele, os historiadores fazem do termo um uso empírico espontâneo,

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Esse artigo é parte de um capítulo da tese de doutorado intitulada Práticas educativas culturais e escolarização na capitania de Mato Grosso (1748-1822), defendida em 2014, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT, sob a orientação do Prof. Dr. Nicanor Palhares Sá. Email: [email protected] 2936 Para Ferreira (1999, p. 1.119), a palavra instituição deriva do latim institutione -, vocábulo com variados significados como: “1. Ato de instituir; criação, estabelecimento; 2. A coisa instituída ou estabelecida; instituto: instituições legais; 3. Associação ou organismo de caráter social, educacional, religioso, filantrópico etc. [...]; 4. Nomeação (de herdeiros); 5. Estrutura decorrentes de necessidades sociais básicas, com caráter de relativa permanência e identificável pelo valor de seus códigos de conduta, alguns dele expressos em leis; instituto [...]; 6. Pessoas ou coisas que, por sua eficiência, antiguidade etc. 2937 Andrê Burgière (1993, p.442-446) entende instituições. “No vocabulário contemporâneo, as “instituições” designam a constituição da República, ou mais tecnicamente, o conjunto de regras e de órgãos que fixam a

944 ISSN 2358-4912 enumerando “o Rei, o Domínio, as Finanças, a Justiça, a Igreja, a Senhoria”. (1993, p. 443). Ainda no panorama do Dicionário das Ciências Históricas, é Roland Mousnier que oferece uma definição mais sintética da “instituição”, apontando o termo, primeiramente, como uma “ideia diretriz” e, depois, como “o grupo de homens” que a põe em prática. Fusão do abstrato e do concreto. Tal abordagem amplia o domínio do que é institucional para a maior parte da atividade coletiva. Argumenta ainda Mousnier (1993, p. 443) que:

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[...] as instituições e sua história possuem uma história que rege imperativamente seu campo de exercício. O pensamento clássico instalava, às escondidas, a instituição na historicidade. Isto pode ser aplicado a “tudo o que é inventado pelos homens”, como definia Furetière no século XVII. “Ela se opõe à natureza. Tudo o que provém da natureza é, da mesma forma em todos os lugares e em todos os momentos, de instituição divina”. As cerimônias profanas são de instituição humana. Obras do homem e obra consciente, as instituições exprimiam essa capacidade organizadora, esse poder que tem o homem sobre si mesmo. Mas elas se subordinavam implicitamente à natureza, à lei divina que conferia seu sentido à história do homem [...].

Já Saviani (2007, p. 5), em seu artigo com enfoque educacional - Instituições Escolares no Brasil: conceito e reconstrução histórica, apresentado na conferência de abertura da V Jornada do HISTEDBR/2005, - Grupo de Estudos e Pesquisas. História, Sociedade e Educação no Brasil - fez uma digressão ao léxico “instituição”, aparentemente com uma diversidade de significados, pois implicava “um plano”, “a instrução”, “o ensino” e “a formação”, assim como “um método” , “um sistema” e “uma doutrina em torno da retórica”. Ainda, em seus escritos, Saviani (2007, p. 5) afirma que: [...] As instituições são, portanto, necessariamente sociais, tanto na origem, já que determinadas pelas necessidades postas pelas relações entre os homens, como no seu próprio funcionamento, uma vez que se constituem como um conjunto de agentes que travam relações entre si e com a sociedade à qual servem [...].

A Organização Militar da América portuguesa, avaliada nesse estudo – uma instituição do mundo luso americano que, através do sistema de administração portuguesa no Brasil colonial, por iniciativas da Coroa portuguesa e da Igreja Católica, se estabeleceu também na fronteira oestina da América portuguesa, em face de um conjunto de questões, como de possessões, vigilância e defesa do território – ambas ligadas a um mosaico de legislação – ordenações, leis extravagantes e constituições –, expressas nas relações sociais e de poder, cuja execução ficava a cargo, ao mesmo tempo, dos representantes da Coroa e dos empreendedores locais. Instituição estendida de Portugal para a América portuguesa, em especial, enquanto corpos de Ordenanças, criados pela Lei de 1549, expedida por D. João III, e organizada conforme o Regimento das Ordenanças de 1570 e a provisão de 1574. Contudo, vale ressalvar que o império português na América não se estruturou sob uma única forma de administração, porque aqui expressavam situações sociopolíticas e institucionais que se definiam mediante diferentes práticas, em resposta às especificidades regionais, a exemplo da constituição familiar, dos vieses dos tratados, das redes de relações comerciais, das atividades de ofícios, das atividades das irmandades, dos missionários, militares, professores, cientistas e dos aventureiros. Tanto que essas especificidades regionais permitiram à Metrópole se apropriar das experiências adquiridas pelas práticas dessas instituições em diferentes domínios com espacialidades e temporalidades distintas. Nessa perspectiva, a instituição - Organização Militar no presente estudo é compreendida também como - Instituição Educativa – por ser uma das instituições precursora da escola, vez que exerceu tarefa de educar e instruir, para a vida urbana e para o mundo do trabalho, os moradores da região, suprindo, de certa forma, a existência de um inicial ou experimental sistema escolar naquela capitania. Todavia, tal instituição é considerada como um dos ambientes necessário para a sociabilidade dos indivíduos e grupos sociais, especialmente por exercer nas espacialidades e temporalidades mato-grossenses, papéis significativos, pois, além de cumprir suas funções específicas, se incumbiu de gerir outras, organização de um setor da vida pública, ou mais amplamente, o conjunto das formas sociais fundadas pela lei ou pelo costume [...]”.

945 ISSN 2358-4912 inclusive no âmbito educativo, enquanto um dos agentes mediadores das práticas educativas e culturais junto à sociedade mato-grossense, principalmente ao longo da extensa fronteira2938 oestina, que abrangia desde o Guaporé até o Baixo Paraguai, na segunda metade do século XVIII e início do XIX. Os estudos de Fonseca (2008, p. 535) revelam que no “mundo luso-brasileiro do século XVIII e primeiras décadas do XIX, a instrução e a assistência estiveram muito próximas, envolvendo o Estado e a Igreja”. A seu ver, trata-se de instituições “movidas tanto pela necessidade do controle social, por meio da educação para o trabalho, como de civilizar os povos por meio da difusão dos valores morais e religiosos, principalmente para as camadas mais baixas da população”. Argumenta também que “essa educação ocorreria predominantemente em instituições assistencialistas de ordens religiosas ou patrocinadas por recursos privados”. Conclui que “o objetivo do ensino das primeiras letras seria, fundamentalmente, facilitar o aprendizado da doutrina, sem implicar a criação de possibilidades de ascensão social pela educação.” Finalmente, revela que “a educação profissional era, então, prioritária para o aprendizado de ofícios mecânicos que pudessem servir de ocupação e de sustento”. (FONSECA, 2008, p. 535). Portanto, é na propositura de Justino Pereira de Magalhães (2004, p. 145) que se reforça o entendimento sobre as funções das instituições que abrigaram a educação em Mato Grosso, no período colonial: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] As funções básicas de uma instituição educativa centram-se na dimensão sociocultural e concretizam-se pela transmissão e pela produção de uma cultura científica e tecnológica, bem como pela socialização e pela formação de hábitos e mudança de atitudes e pela interiorização de valores [...].

Dentro dessa perspectiva, na capitania de Mato Grosso essas ações pedagógicas, técnicas, formadoras de novos hábitos e interiorização de valores foram veiculadas por professores engenheiros, militares e clérigos; e manifestas nos campos de trabalho através de atividades culturais e domésticas, improvisadas pelas instituições que tinham, dentre outras funções, a de educar e instruir, como as Câmaras, as Organizações Militares e a Igreja, se juntando a estas o grupo dos Cientistas. Porém, no que diz respeito à instalação da Força Militar na região guaporeana e o estabelecimento de reforço militar na Vila de Cuiabá, coube à Rainha de Portugal, D. Maria Ana de Áustria, preocupada com a defesa da fronteira oeste da América Portuguesa - capitania geral de Mato Grosso e Cuiabá, valendo-se das conquistas territoriais obtidas durante a negociação do Tratado de Madri, travadas com base no princípio do uti possidetis - a posse de fato determinaria a posse legal -, admitia como certo que os pequenos núcleos de povoamento fundados no Vale do Guaporé necessitavam de providências com relação à sua vigilância e defesa, especialmente no tocante à porção confinante da Capitania, região fronteiriça com as províncias do Peru (América Espanhola). Por todas essas e por muitas outras circunstâncias houve por bem determinar que a cabeça do governo se pusesse no mesmo distrito de Mato Grosso (Vila Bela). E, por esse princípio, as observações de Siqueira (2002, p. 50) reforçam que os limites se circunscreviam da linha imaginária à presença efetiva dos homens –, acrescentando que “[...] as fronteiras do período colonial não se restringiam a mero marco geográfico, mas correspondiam aos limites fixados pela movimentação dos homens no território. Assim, foi o processo de colonização do Centro-Oeste [...]”. Por isso, em 19 de janeiro de 1749, a Rainha de Portugal expediu Carta Régia instrutiva contendo várias disposições, dentre elas a designação de D. Antônio Rolim de Moura, capitão-general e governador da capitania de Mato Grosso, para estabelecer e desempenhar completamente a sua expectação, principalmente, por se ter entendido que Mato Grosso se constituía na “chave e o 2938

O conceito de fronteira utilizado no presente estudo está sintonizado com o sentido conferido por Sérgio Buarque de Holanda em Caminhos e Fronteiras, seja como uma abrangência que transcende o significado mais usual do termo, enquanto signo de fixação das populações no espaço, mas convergido para a ideia de “entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelados mais ativos, mais robustos, ou melhor, equipados”. (HOLANDA, 1994, p. 12-13).

946 ISSN 2358-4912 propugnáculo do sertão do Brasil pela parte do Peru” (INSTRUÇÕES AOS CAPITÃES-GENERAIS, 2001, p. 11-20). Determinou ainda a mesma Rainha que, ao chegar à capitania, deveria o nobre militar, naquele distrito e empenhar em fazer:

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[...] uma população numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes [...] ordenei se fundasse naquela paragem uma vila e concedi diversos privilégios e isenções [...] e, para a decência do governo e pronta execução das ordens se levantasse uma Companhia de Dragões e se erigisse Juiz de Fora no mesmo distrito [...] tereis também o cuidado de mandar traçar as ruas direitas e largas [...] e, se estabeleça com boa direção [...] Fareis alistar em ordenanças todos os moradores do vosso Governo, procurando que andem quanto for possível, exercitados e disciplinados [...] Nomeareis pela primeira vez os Capitães e mais oficiais das Companhias e os Capitães-Mores dos distritos, do que dareis conta pelo Conselho Ultramarino para serem confirmados por mim, fazendo nas patentes menções desta ordem, e do número de gentes de que se compuseram os corpos, que deve ser ao menos de 60 soldados em cada Companhia [...]. (MOURA, 1982, p. 127-137).

Infere-se que, com os encaminhamentos propostos pela Rainha, através da Instrução de 1749, o levantamento da Companhia de Dragões e a formação de Companhias de Ordenanças seria a forma mais adequada para garantir a defesa da vila-capital e de toda a capitania de Mato Grosso. Esse procedimento, segundo a percepção dos reinos lusitanos, deveria ser executado pelos governantes e alterado naquilo que se fizesse necessário, para se adequar à estruturação e dinâmica da capitania de Mato Grosso. O primeiro governador geral da Capitania, o nobre lusitano, Antônio Rolim de Moura, procurou seguiu à risca as instruções e outros ordenamentos, e organizou a formação de uma Companhia de Ordenança em Vila Bela, seguida de outras companhias militares, como as de Dragões, Tropas regulares, Milícias, Ordenanças, Pedestres, Pardos e Aventureiros, estimuladoras do povoamento daquela região c Guaporé, até então pouco povoada. A instituição – Organização Militar, no cenário mato-grossense, teve papel estratégico, uma vez que seus componentes se responsabilizaram pela edificação de fortes e fortalezas espalhados ao longo da fronteira oeste, em trechos estratégicos dos distritos de Mato Grosso e no Baixo Paraguai, visando à defesa territorial, trabalho que contou com a participação da população branca, índia e negra, recrutada para ingressar nas organizações militares, agrupando-se em linhas de tropas e segundo origem social e étnica de seus integrantes, ao arremedo das forças remanejadas dos regimentos portugueses, oriundas dos sistemas de recrutamento da população masculina, excetuando os privilegiados. No âmbito da Organização Militar mato-grossense, as práticas educativas desse contigente populacional, que ingressava como soldados, além da aprendizagem de tática regimental e de guerra, recebiam os ensinamentos de ofícios na esfera da construção civil (estradas e edificações), das demarcações de limites e no que se refere à doutrina cristã. Segundo Chaves (2012, p. 13), “[...] As atenções do reinado de D. José I, a partir da segunda metade do século XVIII, encontravam-se direcionadas para as regiões fronteiriças aos domínios espanhóis, e visavam a garantir a posse de áreas em que a soberania portuguesa ainda era bastante precária. [...]”. Tanto que Rolim de Moura, em carta de 1755, revelou as providências tomadas com relação à guarnição da fronteira, com destaque para a criação e atuação dos corpos militares, como as forças pedestres, integradas, em sua maioria, por mulatos, caribocas/caboclos e índios Bororo. Como se vê, além de conviver com as ameaças de invasões e guerras, a população local era convocada pelos agentes portugueses, inclusive a indígena, para participar dos corpos militares, ocasião que contribuíam significativamente para a manutenção e ampliação dos domínios durante as disputas territoriais com a porção colonial espanhola e, ainda, nos conflitos internos, pela tenaz resistência que os indígenas impunham aos invasores. Já nas disputas travadas entre as tribos rivais, acabavam as autoridades administrativas tirando proveito, em especial do saber técnico e do fazer da população autóctone, que era arregimentada para lutar nos conflitos e guerras. Também o segmento negro – escravo ou forro – de propriedade da Coroa ou requisitado de particulares, colaborou reforçando em quantidade os contingentes e contribuindo com os seus saberes. Nessa condição, depreende-se que, para garantir os domínios e novas conquistas do império português, através dos governantes do território colonial mato-grossense, os naturais da terra e os

947 ISSN 2358-4912 escravos eram aliciados para integrar as forças militares e, de certa maneira, além da força física, os colonizadores se apropriavam também dos saberes e fazeres desses dois segmentos sociais. Até porque os indígenas, além de ser fonte de trabalho e de guerra, tinham destreza na condução dos caminhos pelo sertão - de pé e perna - desde a escolta das monções e nas diligências do rio, servindo de guias, pilotos, remeiros, atiradores, mas também como partícipes dos ensinamentos práticos e informais, apontando aos governantes, sertanistas, comerciantes, militares, religiosos e outros, como se movimentar na região. Volpato (1987, p. 84) aponta quão grande foi à apropriação dos saberes índio em tal processo. Além, da atividade ‘militar’:

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[...] O índio forneceu seus recursos de sobrevivências e, na luta contra a agresticidade do meio, atuou como guia, como caçador, como pescador. A agricultura, a pecuária, a indústria manufatureira foram desenvolvidas a partir de técnicas desenvolvidas pelos índios, bem como frequentes hábitos adquiridos pela população. A construção de casas, a utilização de redes, os recursos das ervas medicinais foram sendo introduzidos a partir de padrões comportamentais obtidos dos indígenas [...].

Rolim de Moura, além de criar e estabelecer as ordenanças militares para a defesa da fronteira mato-grossense, principalmente em ocasiões de confronto com os padres espanhóis, instituiu em Vila Bela, na região de sítio de Pedras, às margens do rio Guaporé, outro tipo de apoio militar, formado por soldados denominados Aventureiros, em sua maioria sertanistas itinerantes, munindo-os de armas de fogo, algumas peças de amiudar e foices roçadeiras que, montadas em compridas hastes, serviam de armamentos para uso também dos índios e dos pretos que os acompanhavam (LEVERGER, 2001, p. 51). De acordo com Leverger (2001, p. 51), no ofício de 30 de setembro de 1762, Rolim de Moura explicava o seu significado e a composição do grupo de Aventureiros: [...] O soldados que eu chamo de Aventureiros são vários sertanistas que haviam por este rio e que antes de minha chegada a Mato Grosso viviam de fazer entradas pelos sertões e buscar gentio; e outros serviam aos padres castelhanos nas mesmas diligencias ou de outras muitas nas aldeias. A estes mandei assentar praça a título de Aventureiros, dando-lhes o soldo de soldado, sem farda [...].

Com base nessa explicação, depreende-se que a apropriação dos saberes e fazeres da população nativa, miscigenada e pobre, moradora da região, acontecia dentro de um modelo pautado na subordinação, sobrevivência, interesse, dominação e astúcia, estabelecido dentro da colonialidade e de certa circulação cultural entre índios, colonos, militares, religiosos, escravos e negros forros. E que essa era uma prática cotidiana do governo durante o processo de instalação e execução do projeto de colonização portuguesa na América. É claro que, para os índios e negros, a luta pela liberdade perdida se fazia sempre permanente. Como aqui observado, a documentação oficial dá pistas e sinais de modalidades de aprendizagens da população luso-brasileira radicadas na região mato-grossense, centradas nos exemplos e imitações contidos nas determinações expressas e emanados da Coroa lusitana, mas também nas organizações militares, Igreja Católica, comissões técnico-científicas, irmandades e corporações de ofícios estendidas de Portugal e estabelecidas na capitania de Mato Grosso, com variações e especificidades impostas pela realidade. Já a Companhia dos Homens Pardos, organizada para defesa da Vila- Capital - Vila Bela da Santíssima Trindade – foi constituída de acordo com a cor da pele e também pela condição civil e com propriedade de armas. A companhia era composta por indivíduos oriundos de várias localidades do Brasil, o que atendia de mediato a necessidade e o empenho da Corte em tornar a fronteira povoada e melhor vigiada, para assegurar a Portugal o pleno acesso ao território fronteiriço. A composição da companhia era estratégica: o baixo nível de profissionalização do seu contigente era aceito, desde que tivessem ambição, coragem, armas, além de serem bons atiradores, experientes no ramo da guerra e detentores de saberes relativo a algumas atividades técnicas de ofício e militar. Portanto, o perfil pessoal dos integrantes da Companhia de Homens Pardo contribuiu para o povoamento na região, já que a maioria de seu contingente era composta por homens casados e viúvos, grupos com vivência aos moldes familiares, propícios à institucionalização da família na região mato-grossense.

948 ISSN 2358-4912 Nesse sentido, na capitania de Mato Grosso, essas ações pedagógicas e técnicas foram veiculadas por professores engenheiros, militares e clérigos, mas também manifestas nos campos de trabalho através de atividades culturais e domésticas, improvisadas pelas instituições que tinham, dentre outras funções, a de educar e instruir, como as Câmaras, as Organizações Militares e a Igreja, se juntando a elas, o grupo dos Cientistas. Tais práticas educativas e culturais realizadas no interior e no entorno dessas instituições podem ser percebidas ou identificadas não só através dos exercícios de ensinamentos práticos de ofícios técnicos, mas também na esfera da civilidade e da fé. Assim, percebe-se que houve um imbricamento nas atividades e nos procedimentos educativos e culturais, seja por meio da socialização dos costumes e na formação de novos hábitos, seja pela interiorização de atitudes e valores. Vale ressaltar que essas instituições, ao cuidarem da educação, da instrução, da produção material e do desenvolvimento cultural da coletividade mato-grossense, se esforçavam por reproduzir o projeto colonizador português. Todavia, na leitura da documentação perscrutada e sob a análise historiográfica foi possível flagrar a importância que tais instituições tiveram por relacionarem-se com a população mato-grossense através das práticas educativas e culturais. Isso porque se tratava de necessidades diversas, como: ensinamentos técnicos e de ofícios - nos espaços de construções dos quartéis, fortes, fortalezas; transmissão dos mecanismos para a segurança da população e nas prisões edificadas na fronteira; ensinamento dos ofícios domésticos, das artes, das guerras; contratação e nomeação de professores; organização pela igreja das ladainhas, orações, novenas e outras atividades religiosas de catequese, festas públicas e procissões. Os conhecimentos práticos e científicos eram transmitidos pelo grupo de cientistas, militares, a exemplo dos engenheiros, arquitetos, desenhistas, naturalistas e matemáticos, mandados vir de Portugal ou dos centros hegemônicos do Brasil e da Europa para desenvolver trabalhos na região, tomando para si a responsabilidade de formação da mão de obra. Esses conhecimentos eram apropriados pela força de trabalho, composta por indivíduos quase sempre analfabetos ou semialfabetizados, que, auxiliados por outros trabalhadores igualmente sem instrução formal, ergueram, com precisão milimétrica, estabelecimentos de defesa na fronteira, antemurais das possessões e domínios lusitanos na América portuguesa, em demonstração evidente de aprendizado recebido e incorporado. Portanto, essas instituições sociais educacionais exerceram papeis significativos na região oestina da América lusitana, especialmente nas municipalidades de Cuiabá, Vila Bela da Santíssima Trindade e vizinhanças onde, até então, não existia a escolarização institucionalizada.

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EM BUSCA DA FÉ: VIVÊNCIA, PARTICIPAÇÃO E DEVOÇÃO DOS TERCEIROS CARMELITAS EM MINAS GERAIS Nívea Maria Leite Mendonça2939 Introdução O período Colonial foi marcante no território mineiro, principalmente, no que diz respeito à questão econômica, pois com o descobrimento de metais preciosos –ouro e diamantes- esta região atraiu a atenção da Coroa Portuguesa e também de vários colonos que aqui se fixaram. A região foi controlada, rigidamente, pela Coroa que fiscalizava todas as pessoas que circulavam no território das Minas. Este controle, também foi imposto ao clero, do qual precisava de autorização para celebrar os ofícios; pois “a Coroa tomou a deliberação sem precedentes de banir não só frades sem autorização, mas também o estabelecimento de ordens religiosas em Minas Gerais” (BOXER, 2000:76). Por outro lado, a Coroa “ordenava aos bispos do Rio de Janeiro e da Bahia para enviar eclesiásticos para criar paróquias e ministrar os sacramentos” (BOSCHI, 1986:80). Isso porque “uma das primeiras indicações de colonização permanente foi à ereção de uma ou mais capelas (...)” (BOXER, 2000:74). Esta política restritiva, embora endereçada principalmente às ordens primeiras, não deixava de lado o clero secular que, para se estabelecer na Capitania, precisava de uma licença de permanência para celebrar os cultos do calendário litúrgico (BORGES, 2005: 58). Mas, tal controle, ao clero, foi beneficiado pela fusão do Estado e a Igreja através do Padroado2940 A Coroa, ao evitar a circulação de eclesiásticos e proibindo o estabelecimento de ordens primeiras na região mineradora, ajudou a imprimir certa peculiaridade à vida das associações religiosas em Minas, seja nos assuntos religiosos, seja na promoção dos cultos. Logo, a divulgação e a proliferação da fé Católica, em Minas Gerais, só foi possível de ser transmitida através da devoção de fiéis leigos que se tornaram propagadores da Igreja, onde ela não podia exercer plenamente sua função, foi através das associações religiosas que estes leigos conseguiram difundir a fé, construir templos e dar assistência social à população que ali habitava. Ao longo do século XVIII, chegaram as Minas muitas pessoas “calculava-se com razoável grau a possibilidade, em 1709, que havia umas trinta mil pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrícolas e comerciais em Minas Gerais” (BOXER, 2000:72). O alto número de pessoas, vindas de todas as partes da Colônia e também de Portugal, que chegavam ou passavam pela região aguçou, também, a atenção da Coroa, pois “a drenagem de pessoas que emigravam da província do Minho foi suficientemente alarmante para que a Coroa lançasse um decreto, em março de 1720, limitando drasticamente a emigração para o Brasil, que por dali por diante só seria permitida com passaporte fornecido pelo governo” (IDEM). Dentro deste âmbito, percebemos um grande trânsito de pessoas por toda colônia, já em Minas, a sociedade que aqui habitava estava também num constante trânsito. Várias mudanças ocorreriam em todos os seus aspectos, seja na esfera política, cultural ou social (em especial nas Vilas do Ribeirão do Carmo e Vila Rica). Como podemos observar era uma sociedade em processo de formação, e ela estava aberta a mudança advinda seja da Europa ou da própria Metrópole, como aborda Clifford Geertz ao analisar, as sociedades estudadas por Levi-Strauss que chama esse modelo de sociedades quentes. (GEERTZ, 2001:106). Porém, com o declínio da produção aurífera na região, esta foi sendo substituída por outras áreas em expansão econômica; observaremos que a partir da segunda metade do século XIX, essa sociedade em questão, se estagnaria, ou seja, não haveria grandes mudanças, isso pode ser considerado, 2939

Mestranda em História da Universidade Federal de Juiz de Fora; sob orientação da Professora Dr.ª Célia Maia Borges. Endereço eletrônico ([email protected]), Financiado pela Capes 2940 O Padroado foi uma instituição tipicamente ibérica, e pode ser definido como um conjunto de direitos, deveres e privilégios, concedidos pelo papa aos reis portugueses que se tornaram administradores com plenos poderes dos territórios recém-descobertos, para neles implantarem a fé cristã, acumulando, assim, as funções de chefe de Estado e da Igreja nas terras d’além-mar. (BOXER, 2002: 227).

951 ISSN 2358-4912 segundo Levi-Strauss, de uma sociedade fria, pois de acordo com Adam Kuper “Sociedades frias interpretavam os eventos fortuitos como recorrentes, incidentes previsíveis num padrão cíclico fixo (...)” (KUPER, 2002:224 e 225) Esse autor trabalhou também com estes termos usados por Levi-Strauss, ao analisar as sociedades estudadas por Marshall Sahlins. Vemos que neste tipo de sociedade “fria” não havia mudanças significativas; ao analisarmos também as sociedades de Minas, observamos que após o declínio da produção do metal precioso essa sociedade se cristalizou no interior de suas montanhas, já que “tal civilização prosperou e definhou nos arraiais auríferos espalhados sobre a vasta capitania de Minas Gerais” (BOXER, 2000:189). O objetivo deste artigo é refletir sobre a participação desses leigos que levaram e difundiram as práticas das associações religiosas, em especial da Ordem Terceira Carmelita, num lugar onde a igreja se fazia presente somente através destes fiéis leigos, cuja participação era indispensável para a promoção da fé e da cultura mística do sagrado. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Ordem Terceira do Carmo: conceituação e tipologia Os termos: Irmandade, confraria e Ordem Terceira apresentam importantes diferenças organizacionais e legislativas. Um exemplo disso são as pias uniões, que eram associações de fiéis eretas com o objetivo de exercer obras de piedade ou caridade. Quando constituídas em organismos, reguladas por um estatuto, chamavam-se irmandades. As que se erigiam para promover tão somente o culto público (rezas, procissões, etc.) denominavam-se confrarias (BOSCHI, 1986:14-15). Já as Ordens Terceiras caracterizam-se como associações de leigos cuja existência dependia de autorização conferida por uma ordem primeira, pois: Ao contrário das Irmandades de leigos, que podiam ser eretas por qualquer cristão que assim o desejasse, a permissão para instituir ordens terceiras era privilégio apenas dos Visitadores das Ordens ou de Terceiros dissidentes devendo receber aprovação pelo Provincial da Ordem na Colônia cuja autoridade era delegada pela Santa Sé em Roma. (EVANGELISTA,2010:14)

De acordo com a definição de Caio Boschi “as Ordens Terceiras eram associações pias que se preocupavam com a perfeição da vida cristã de seus membros. Embora vivendo no século, os terceiros se vinculavam a uma ordem religiosa, da qual extraem e adaptam regras para uma vida cristã no mundo. Tais regras, no entanto, devem ser aprovadas pela Santa Sé” (BOSCHI, 1986:19). Porém, para ingressar na Ordem Terceira os irmãos passavam por critérios rigidamente seletivos (BORGES, 2005:58) e, por força dos estatutos, deviriam ser limpos de sangue, ou seja, não serem negros, cristãos novos ou de origem racial duvidosa - ou a eles ligados por situações de casamento. (EVANGELISTA, 2010: 96). Nas ordens terceiras reuniam entre seus membros os homens ricos da Colônia (SALLES, 2007: 79-83) Nosso objeto de estudo é a Ordem Terceira do Carmo, que foi (e continua sendo) uma associação religiosa de grande destaque em Minas Gerais, agregando, sobretudo, os homens bons da Colônia. E cujas peculiaridades são suas rigorosas práticas religiosas incluindo a participação dos candidatos a irmãos terceiros pelo noviciado (EVANGELISTA, 2010: 105). O noviciado era caracterizado por um tempo de preparação dos futuros irmãos antes de professarem na Ordem Terceira Carmelita que visava, sobretudo, a familiarizar-se com os exercícios espirituais e com as demais normas de conduta características das Ordens Terceiras (MARTINS, 2009:57). Estes irmãos deveriam esforçar-se por assimilarem as características da espiritualidade que eram próprias da Ordem Carmelita. Ao ingressarem, os irmãos eram mantidos sob um rigoroso controle e vigilância, pois, todos eles eram controlados em suas práticas cotidianas, principalmente, pela Mesa Administrativa da Ordem, por quem eram subordinados. Aos irmãos que ingressavam na Ordem Terceira deveriam estar conscientes dos compromissos que eram assumidos, já que, seriam cobrados posteriormente, como os pagamentos dos anuais, o comparecimento nos ofícios da Ordem, assim como a assistência dos irmãos necessitados e aos irmãos defuntos.

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ISSN 2358-4912 Em busca da fé: a participação dos irmãos terceiros do Carmo em Minas Gerais Na metade do século XVIII, surgiria em terras mineiras as Ordens Terceiras (São Francisco e Carmo). A Ordem Terceira do Carmo se estabeleceu em Minas por volta de 1745 (1746) como foi observado pelo Cônego Raimundo Trindade (1951:104), e por William Martins, pois “a instalação das Ordens Terceiras na Capitania de Minas Gerais pôde concretizar-se apenas a partir de 1745, quando os provinciais do Carmo e de São Francisco do Rio de Janeiro delegaram a padres seculares locais os comissariados de cada fraternidade fundada”. (MARTINS, 2009:93) Em “Os leigos e o poder”, Caio Boschi (1986) relaciona a quantidade de cinco (5) Ordens Terceiras invocadas sobre a proteção de Nossa Senhora do Monte do Carmo, que existiram na Capitania de Minas Gerais, durante este período. A Ordem Terceira do Carmo era composta, inicialmente, por portugueses que ao se estabelecerem nestas terras, trouxeram esta devoção. Estes colonizadores, homens brancos que desempenhavam diversas funções (profissões), entre os quais portadores de inúmeras patentes militares e grande parte ocupando cargos na Câmara da vila, como é possível, observar nos livros de entrada da Ordem.2941 Fritz Teixeira de Salles revela que, também outras irmandades, era composta por homens brancos: Santíssimo Sacramento, N. S. da Conceição, São Miguel e Almas, Bom Jesus dos Passos, Almas Santas e poucas outras, eram de brancos das camadas dirigentes ou reinóis; Rosário, São Benedito e Santa Efigênia, de negros escravos; N. S. das Mercês, N. S. do Amparo, Arquiconfraria do Cordão, de mulatos e crioulos, ou mesmo pretos forros; São Francisco de Assis e Ordem Terceira de N. S. do Carmo pertenciam aos comerciantes ricos e altos dignitários [...] (SALLES, 2007: 87).

Como é possível verificar acima, as Ordens Terceiras eram composta por, homens brancos e abastados, muitos confrades se vinculavam em Ordens Terceiras e também outras irmandades – aquelas compostas por pessoas brancas. Essa identificação era uma das características das associações mineiras que se uniam a um orago de mesma devoção, e também pessoas social e economicamente parecidas, pois A identificação é também um fator poderoso na estratificação uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num pólo da hierarquia global emergente estão aquelas que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos a própria vontade escolhendo-as no leque de ofertas extraordinárias amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso a escolha da identidade, que não tem direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros.

( BAUMAN, 44) Bauman ao trabalhar com o conceito de identidade estabelece que a identificação de um grupo é um poderoso fator na estratificação da sociedade, por isso vemos com o desenvolvimento das Ordens Terceiras significava obter certo “status” perante a sociedade setecentista; pois ao se identificarem muitos irmãos criavam, entre si, vínculos de sociabilidade dentro desse grupo, já que como define Antônio Manuel Hespanha sendo estas práticas uma estratégia de ganhos simbólicos, já que “era exigido um nível mínimo de riqueza para uma manutenção digna de determinados status ou a prossecução de uma estratégia de ascensão (...) e (...) permitiam o acesso a posições de prestígio, de outros modos inatingíveis” (HESPANHA, 2001:126). Além de uma posição de destaque perante a sociedade, pertencer a uma Ordem Terceira significava também pertencimento a uma elite celeste. Logo, ao tornar conscientes de pertencimento e identificação, esses irmãos tinham a solidez de garantias por toda a vida, pois “as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’” (BAUMAN, 17). Para pertencer ao corpo místico da Igreja (MARTINS, 2009) não bastava aos irmãos professarem neste sodalício, precisava se envolver para com as causas sociais e espirituais próprias dessa associação. 2941

ACCOP Livro de Entrada da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica. Microfilme: rolo195. Vol. 2357(18061810)

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ISSN 2358-4912 A religiosidade dos terceiros Carmelitas Na historiografia sobre as associações religiosas se tornou comum dizer que a grande participação dos irmãos da Ordem Terceira Carmelita, bem como os do Santíssimo, e demais irmandades, nas festividades religiosas revelava antes de tudo um propósito de promoção e de prestígio na medida em que adquiriam destaque social ao ostentarem suas opas e insígnias, principalmente, nas procissões. A documentação a respeito da Ordem terceira Carmelita é rica; os estatutos permitem conhecer os dispositivos que iriam regular a vida dos confrades, como fornecem informações sobre a dinâmica interna da organização - como as festividades da Ordem Terceira, os preparativos de acolhida ao Padre Provincial da Ordem Carmelita (Ordem Primeira). Estes irmãos terceiros tinham uma relação profunda com o sagrado. Para se buscar o sagrado, os confrades praticavam os rituais cotidianos e era reforçado, principalmente nas celebrações litúrgicas, com destaque para as Semanas Santas, cujas celebrações eram revestidas de uma mística da Paixão de Cristo. Em Vila Rica, por exemplo, os irmãos terceiros do Carmo eram responsáveis pelas celebrações do Enterro do Senhor e do Triunfo. Também vemos nas Constituições do Arcebispado da Bahia2942, a responsabilidade integral da procissão do Enterro de Cristo ao encargo dos irmãos Carmelitas. Por isso, a procissão do enterro representava um momento de grande comoção entre os confrades, vários irmãos se identificavam com esse momento litúrgico. Pertencer a Ordem terceira Carmelita se tornava um diferencial nestas procissões que era revestida de sacralidade e de certo “status”, pois esses irmãos vestidos com seus hábitos se tornavam mais próximos do sagrado; essa procissão era acompanhada por toda a população que ia do descendimento da cruz até a colocação do corpo do Senhor no esquife; logo se dava início o cortejo fúnebre da morte de Cristo. (EVANGELISTA, 2010, 244). Havia entre os irmãos terceiros toda uma contemplação da morte de Cristo. Já a Procissão do Triunfo era realizada pelos irmãos terceiros Carmelitas, acontecia sempre nos Domingos de Ramos à tarde como é possível ver no Estatuto da Ordem de Vila Rica2943 Uma das motivações do cristianismo era imbuir à jornada humana sobre a Terra, da importância extraordinária de ser a única oportunidade de determinar a quantidade da existência espiritual eterna. (BAUMAN, 81) isso foi iniciado no século XIII, como nos aponta André Vauchez que ao observar a adesão dos leigos em instituições de valores advindos do monarquismo não seria um “simples fenômeno de mimetismo ou de osmose, antes traduz o despertar da consciência religiosa” (VAUCHEZ, 1995:58) Essa consciência religiosa cederia lugar a um cristianismo mais evangélico, pautado pelos atos e sofrimentos do Cristo histórico (MARTINS, 2009:35). Para essas pessoas, as congregações forneceriam um abrigo tentador e agradável que não poderia ser encontrado em outros lugares. (BAUMAN, 93). Logo, ingressar numa Ordem Terceira não só conferia dignidade social perante a sociedade, mas indicava uma posição espiritual mais elevada entre os indivíduos, proporcionada pela prática dos exercícios espirituais e dedicação a oração mental (EVANGELISTA, 2010:104) Muito mais do que uma questão de prestigio social, buscamos entender o contexto da religiosidade, pois na capitania de Minas Gerais foi fortemente marcada pelos preceitos Tridentinos, esses preceitos só foram possíveis de serem vivenciados graças à atuação de leigos. Para Bauman o conceito de ‘sagrado’ é “notoriamente vago e altamente contestado e é muito difícil ter certeza e ainda mais concordar quanto aquilo de que estamos falando (...). Outros autores sugerem que o ato de lavar o carro ou a ida da família ao shopping no domingo é a atual encarnação do sagrado”. (BAUMAN,77). Já para Mircea Eliarde considera como sagrado “o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade. O desejo do homem religioso de viver no sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de se situar na realidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das experiências puramente subjetiva, de viver num mundo real e eficiente- e não numa ilusão”. (ELIARDE, 2010:31-32) Já para Roger Callois diz que: “O sagrado pertence como uma propriedade estável ou efêmera a certas coisas (os instrumentos do culto) a certos seres (o rei, o padre) a certos espaços (o templo, a igreja, os lugares régios) a certos tempos (o domingo, o dia de Páscoa, o Natal)” (CALLOIS, 1988:20) Havia, portanto, uma preocupação entre esses primeiros colonizadores de estabelecerem os locais destinados para o sagrado. Como nos lembra Boxer que “uma das primeiras indicações de colonização permanente foi à ereção de uma ou mais capelas (...)” 2942 2943

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro III. Tít.XIV. ACCOP Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica. Microfilme: rolo199. Vol. 2418 (1755)

954 ISSN 2358-4912 (BOXER, 2000:74) diante disso, vemos a preocupação: seja por parte da Coroa, seja por parte dos colonos, em estabelecer um ambiente dedicado ao sagrado. Uma das preocupações, advinda dos preceitos Tridentinos, foi o bem morrer, que encontrou reforço através da Devotio Moderna (DAVIDSON, 1991: 6), cujo sustentáculo era a imitação de Cristo. Essa imitação à Cristo se baseava na solidariedade e na caridade empreendida por aqueles irmãos que mais precisavam, quando doentes e ou quando estavam no leito de morte. Adriana Evangelista destaca que entre os terceiros carmelitas de Vila Rica, aqueles que eram impossibilitados de irem à igreja, devido a alguma enfermidade, recebiam a visita dos irmãos em sua casa, estes levavam sempre nas visitas um oratório portátil com a imagem de Nossa Senhora do Carmo. Segundo a mesma autora, “o oratório portátil tinha um papel fundamental na situação de doença.” (EVANGELISTA, 2010:145) Bauman questiona em seu livro “Identidade” (BAUMAN,) sobre uma visão escatológica como o “medo cósmico” que nas palavras de Bakhtin

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(...)a trepidação sentida diante do imensuravelmente grande e imensuravelmente intenso. E assim o medo cósmico é também o horror do desconhecido: o terror da incerteza. O desamparo se torna evidente quando a vida mortal risivelmente breve é medida em relação à eternidade e ao minúsculo espaço ocupado pela humanidade em relação à infinitude do universo (BAUMAN, 77).

Uma das características fundamentais de associações de leigos é o amparo aos irmãos nos momentos mais difíceis da vida, isto é, na pobreza, na doença ou na morte, ou seja, nos momentos de temor, de incerteza. O desamparo, do qual aborda Bauman, seria substituído pelas obras de misericórdias como as visitas empreendidas pelos irmãos àqueles irmãos que estavam impossibilitados de ir a igreja, levavam sempre consigo um oratório portátil que era a marca do sagrado, da devoção. Mas, essa solidariedade estava restrita apenas aos irmãos associados, este princípio de solidariedade era muito difundido pelos irmãos terceiros Carmelita se também por outras associações religiosas. A garantida de uma sepultura era uma das principais formas de vinculação de indivíduos a uma associação religiosa; também se tinha um cuidado especial com o destino da alma, por isso, muitos irmãos, antes de morrerem, deixavam, em testamento, pagas as missas de sufrágios pelas suas almas. Este número de missas variava de acordo com a posse de cada irmão. Logo, os sepultamentos ocorriam no interior das Igrejas ou nos Cemitérios administrados pelas Ordens Terceiras, já que, como “O Estado Português deu clara demonstração de que seu interesse exclusivo era a gestão dos negócios econômicos e políticos, relegando à segundo plano a assistência social (...). As associações leigas se confeririam a responsabilidade e o ônus da assistência (...)”, (BOSCHI, 1986:50 e 51) de acordo com o historiador Caio Boschi foram as associações religiosas que além de levar a devoção, a religião, foram elas também responsáveis pela assistência social, tanto no que diz respeito no auxílio dos moribundos, quanto na assistência aos desfavorecidos e fiéis defuntos, pois como adverte ainda Bauman “A autoridade do sagrado e, de modo mais geral, nossa preocupação com a eternidade e os valores eternos(...)”. (BAUMAN,79) essa preocupação com a eternidade e com os valores eternos eram vistos com grande preocupação por aqueles habitantes das Minas, logo encontrariam apoio para seus anseios nos “braços” das associações religiosas. Enfim, para aqueles que se associavam havia uma garantia de salvação de sua alma. Considerações Finais Enfatizamos que, durante muito tempo, foi à população laica, que ao ingressar em associações religiosas, dedicaram-se, não somente com a caridade grupal, mas também, se empenharam na divulgação e proliferação da fé principalmente dentro das celebrações cotidianas e especiais; além da preocupação na construção dos templos. Os colonizadores, que aqui se estabeleceram, trouxeram uma forte herança cultural, porém como nos disse Bauman “O que a mente moderna fez, contudo, foi tornar Deus irrelevante para os assuntos humanos” (BAUMAN, 79). Mas este pensamento de Bauman, não condiz com a realidade colonial mineira, pois os homens e mulheres que aqui residiam colocavam Deus e a religião num patamar superior. Logo, o fenômeno religioso se propagou e continua a se propagar graças à devoção de irmãos leigos que mantiveram as principais práticas dos seus estatutos, foram eles também que mantiveram seus

955 ISSN 2358-4912 templos e seus cemitérios próprios, garantindo a relação de solidariedade aos irmãos associados, seja nos casos de sepultamentos, seja nas celebrações das missas de sufrágio pela alma do irmão defunto; assim veremos que essa população colocava Deus e a religião (Catolicismo) num patamar de essencial relevância para eles.

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Referências VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º arcebispo e do Conselho de sua Magestade: proposta e aceita em Sínodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho de 1707. 1ª ed.Lisboa 1719 e Coimbra 1720. São Paulo: Typografia 2 de Dezembro de Antônio Louzada Antunes, 1853. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007. ACCOP - Arquivo Casa dos Contos de Ouro Preto. Livro de Entrada da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica. Microfilme: rolo195. Vol. 2357(1806-1810) ACCOP Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica. Microfilme: rolo199. Vol. 2418 (1755) BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, 1986. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. RJ. Ed. Jorge Zahar BOXER, Charles R. Idade do Ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3ºedição. Ed. Nova Fronteira, 2000 __________ O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Coleção: Perspectivas do Homem, 1988 DAVIDSON, N. S.. A Contra-Reforma. Universidade hoje. São Paulo: Martins Fontes 1991 EVANGELISTA, Adriana Sampaio. Pela Salvação de minha alma: vivência da fé e vida cotidiana entre os irmãos terceiros em Minas Gerais – séculos XVII e XIX. Tese de doutorado em Ciências da Religião – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora – MG, 2010 ELIARDE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3ºed. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2010 GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a Antropologia. RJ. Zahar, 2001 HESPANHA, Antônio Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna. In: TERGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. São Paulo: UNESP; Bauru EDUSC; Portugal: Instituto Camões, 2001. KUPER, Adam. Marshall Sahlins: história como cultura. In: Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002 MARTINS, William de Souza. Membros do Corpo Místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 17001822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. SALLES, Fritz Teixeira de. Associações Religiosas no Ciclo do Ouro: introdução ao estudo do comportamento social das Irmandades de Minas no século XVIII. São Paulo. 2 ed.rev. e ampl.: Perspectiva, 2007. VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental séc. VIII –XIII. Ed. Estampa, Lisboa, 1995.

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AS CATEGORIAS EMPÍRICAS DE DISTINÇÃO SOCIAL NO SERTÃO DA BAHIA DO SÉCULO XIX Ocerlan Ferreira Santos2944 O presente texto, como parte de pesquisa em desenvolvimento, tem por objetivo fazer uma discussão historiográfica acerca das categorias empíricas qualidade, condição, nação e cor, mediante análise de inventários post-mortem, carta de alforrias e ações de liberdade da Imperial Vila da Vitória no século XIX (atual Vitória da conquista, Centro-Sul da Bahia). Busca-se evidenciar a maneira como essas categorias foram utilizadas para diferenciar, hierarquizar e classificar as pessoas da referida Vila no século XIX. A multiplicidade tons de pele e culturas nas Américas Ibéricas é fruto do processo de mundialização iniciado no século XV pelas Coroas Ibéricas, que conectou saberes, práticas, gostos, gestos e seres humanos vindos de quatro partes do mundo (América, Europa, África e Ásia), promovendo dinâmicas de mestiçagens biológica e cultural, e que propiciou a configuração de uma nova modernidade no Atlântico (na América, África e Ásia), diferentemente do modelo de base cartesiana que caracterizou a modernidade europeia. [...] esta outra modernidade debe a sus mediadores e a los espacios intermediarios donde se desarolla, esos middleground em los que convegen fuerzas globales y locales, sistemas de símbolos y de concepciones del mundo, estrategias de dominación, adaptación y resistencia, donde nacen sociedades y grupos sin precedentes em la historia, donde se perfilan las mesclas e donde se erigen barretas destinadas a encausarlas (GRUZINSKI, 2010, p. 93).

Essa nova modernidade, como demonstrou Eduardo França Paiva em estudo sobre as Américas Ibéricas entre os séculos VI e XVIII, ao mesmo tempo em que conservou também resignificou antigas e modernas categorias/conceitos de distinção social, a saber: cor, casta, raça, nação, qualidade e condição, que no Novo Mundo, juntas, se “transformaram em ferramentas para organizá-lo, classificálo e compreendê-lo” (PAIVA, 2012, p. 129). Na documentação por nós analisada até o momento, aparecem apenas referencias qualidade, condição, cor e nação, por essa razão neste artigo abordaremos essas categorias/conceitos. Qualidade, segundo Paiva, é um conceito complexo, que variou bastante de época para época e de região para região, ou ainda numa mesma época e região, e que esteve relacionado com a origem, a cor, a condição e com o lugar que o indivíduo ocupava na sociedade. As “qualidades [...] diferenciavam, hierarquizavam e classificavam os indivíduos e os grupos sociais a partir da origem, do fenótipo e/ou da ascendência deles” (PAIVA, 2012, p. 20). O autor demonstra que a categoria não é originária do Antigo Regime2945 como se pensava, mas vem do Mundo Clássico e que, no Mundo Ibérico, não havia critérios rigorosos para seu emprego, dependendo unicamente de percepções por parte de autoridades e populares. Assim, os indivíduos ou grupos sociais eram enquadrados ou se enquadravam em qualidades que, diferentemente das castas, não eram predeterminadas e fixas. Isnara Pereira Ivo, aplicando esta mesma categoria/conceito em estudo sobre as conexões, trânsitos de culturas, pessoas e comércio entre os Sertões da Bahia e do Norte das Minas Gerais do século XVIII, chega à mesma conclusão de Paiva, sobre a fluidez de critérios definidores destas categorias/conceito e, assim como

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. E-mail: [email protected]. Isnara Pereira Ivo doutora em História pela UFMG, docente do Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB (Orientadora). 2945 O conceito de Antigo Regime traz a ideia de sociedades hierarquizadas da ‘Europa Moderna’ onde havia um monopólio político-administrativo do monarca. Tal regime centralizado englobou as Américas, África e Ásia após as conquistas do século XV e XVI. No entanto, um grupo de historiadores vem revisando essa ideia, substituindo-a pelo entendimento de uma rede de relações políticas, econômicas, sociais e jurídicas estabelecida entre a Coroa e as elites locais das diversas regiões do Império, onde havia espaços de negociações, que permitia certa autonomia dos poderes locais, que por sua vez acabava reforçando o poder monárquico. Dentre outros pode citar Fragoso (2010) e Hespanha, (2010).

957 ISSN 2358-4912 ele, assinala diversos casos de indivíduos que tiveram modificada ou silenciada sua qualidade e/ou condição. A categoria condição indica o status jurídico do indivíduo, se livre, alforriado ou escravo. Havia também duas subcondições: o coartado e o administrado. A coartação constituía um acordo, em princípio, costumeiro entre o proprietário e o escravo, no qual o senhor permitia ao cativo pagar em parcelas a sua alforria, prestando serviço próximo ou distante dele. Tal costume que, segundo Paiva, já existia na América Espanhola desde o século XVI e mais tarde na América Portuguesa, só foi regulamentado no século XIX. Já o administrado, era o índio submetido à gerência de um homem livre, mas também envolveu clérigos (principalmente Jesuítas) e, diferentemente da escravidão, o indivíduo submetido a ela permanecia livre2946. Assim, “nas sociedades de distinção, hierarquizadas e estratificadas do mundo ibero-americano, elas [‘qualidades’ e ‘condições’,] podiam também indicar o futuro dos indivíduos ou, pelo menos, podiam apontar probabilidades e alternativas” (PAIVA, 2012, p. 174). A documentação acerca da Imperial Vila da Vitória do século XIX tem apontado que, embora tivessem ocorridos nos períodos anteriores, como sinalizam alguns estudos sobre a América Portuguesa2947, foi nos anos mais próximos da abolição, nos momentos de tensão ou em que a honra era posta a prova, que se acirraram as questões relacionadas à cor, à qualidade e à procedência das pessoas. Tal fato pode ser observado na solicitação de licença para casamento, integrada ao inventário de Estaneslao José de Almeida, feita pelo tio e tutor de Marcelina ao Juiz de órfão da Imperial Vila da Vitória, datada de 19 de agosto de 1889:

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Diz Themoteo José de Almeida, tutor dos orphãos/ filhos do falecido Estanelau José de Almeida, que/ tendo contratado casamento para a orphã/ Marcelina com Vicente José de Almeida,/ cidadão este que não é inferior em qualida/des e teses, a mesma orphã, e não podendo effectu/alo sem consentimento de Vossa senhoria, vem o supplicante/ requerera Vossa Senhoria que este junta/ aos autos respectivos subão a concluzão do/ digno Sr. Dr. Juiz de direito afim de conceder-/lhe a devida 2948 licença, a qual impetra .

A julgar pela idade descrita quando da feitura do inventário (1883), no ano da solicitação, Marcelina tinha 12 anos de idade e sua família era pouco abastada. Sobre seu noivo, Vicente, não encontramos informações, mas, possivelmente, era parente de Marcelina, o que se pode deduzir pelo sobrenome. Mas, independentemente das relações de parentesco, o que importa aqui é que a qualidade e a cor do pretenso esposo é que estão sendo avaliadas, e o que deveras pesa para a concessão é o fato de o noivo não possuir, ao menos social ou fenotipicamente, qualquer indicativo que o remeta a um passado escravo. Assim, após avaliação apresentada pelo tutor, o Juiz de Órfão jugou não haver impedimento para a realização do matrimônio. Encontramos processos crimes e civis, na primeira metade do século XIX, em que há várias testemunhas descritas como pardas, as quais julgamos serem libertas ou livres, em razão de não haver menção à condição. No entanto, chamou-nos a atenção o caso de preto Manoel, preso por embriaguez na Imperial Vila da Vitória, no ano de 1848, com o cognome ‘preto Cassimiro pedreiro’2949. Segundo consta no processo, D. Emmereciana, moradora do Arraial Sucuryú do termo de Minas Nova, afirmou ser o dito Cassimiro, na verdade, o crioulo Manoel, seu escravo, que havia fugido há mais ou menos seis anos, e que se encontrava na Vila de Poções na Província da Bahia. Dentre as informações, que ajudaram a confirmar a alegação de D. Emmereciana, encontra-se a descrição física do escravo, feita pelas autoridades mineiras, a qual diz: “(...) Manoel crioulo hoje/ terâ de idade vinte e seteannos, feio/

2946

Segundo Paiva, a subcondição de administrado foi proposta por Marcia Amantino em um texto ainda inédito apresentado no Workshop: Grupo de Pesquisa Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização em 2011. 2947 Além de Ivo (2012) e Paiva (2012), podemos citar Fragoso (2007) e Soares (2009). 2948 Arquivo do Fórum João Mangabeira, doravante AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Inventários: 1883. Autos do inventário de Estaneslao José de Almeida, 1883, fls 39. (não catalogado). 2949 AFJM: 1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1847 a 1848. Autuação de petição precatória para soltura do preto Manoel, (?) por Cassimiro, escravo de Dona Emmereciana Soares Pereira. 1848. (não catalogado).

958 ISSN 2358-4912 de cara, nariz chato grande, pes/ espanado, quebrado de uma viri/lha, dado ao trabalho de pedreiro/”2950. Ao longo do processo, as referências a Manoel aparecem da maneira seguinte: “o preto Manoel escravo”, “o escravo Manoel crioullo”, “o crioullo Manoel escravo” e “o preto Casimiro pedreiro”. Notese aqui, quão fluidas eram essas classificações, pois no decorrer do processo, o mesmo indivíduo aparece descrito com duas qualidades diferentes. No entanto, neste excerto do interrogatório: “como se chama,/respondeo que Cassimiro. Per/guntou que qualidade, e na/cionalidade, respondeo que hera crioulo, natural do Arraial Sucuryú do termo de Minas Nova”2951; observa-se que Manoel, autoidentifica-se como crioulo, ou seja, evoca a qualidade que naquele momento lhe era conveniente, pois, diferentemente de preto, ser crioulo poderia remeter a condição de livre ou liberto. Mas sua estratégia não foi tão boa quanto à do juiz, que ciente da descrição citar acima, contesta a resposta de Maneol que dizia ser livre, afirmando ser público que ele já havia dito para alguém que era cativo, restando a Manoel confessar que era escravo de D. Emmereciana. Segundo Paiva desde o período das conquistas, os exploradores, viajantes e religiosos recorreram à cor como meio de distinguir-se dos africanos, dos índios americanos e dos orientais, bem como de fazer a distinção entre esses povos. A cor, por vezes, foi confundida com a qualidade, e, como esta, “era histórica, produzida no tempo e no espaço. Além da percepção social e cultural da cor, as particularidades climáticas e as condições materiais de vida definiam-na e isso não valia, apenas, para o ‘branco’” (PAIVA, 2012, p. 170). Logo, ser ‘branco natural’ do Brasil não significava ter a mesma cor branca que um espanhol, português ou outro europeu. Nesse sentido, não se pode definir o status social do indivíduo somente em razão da tonalidade da cor da pele, visto que, nas conquistas ibéricas, mesmo com as restrições legais, principalmente nas conquistas portuguesas, as contingencias velaram à admissão, através de alianças de casamentos, de indivíduos de variadas cores e qualidades nos postos ou cargos de destaque e privilégio, levando, como demonstrou João Fragoso, à formação, pela primeira vez na história, de uma elite ou nobreza mestiça e sem estatuto aristocrático concedido pela monarquia, ou seja, uma nobreza que não tinha sangue puro2952. Também Libby, estudando as Minas Gerais na segunda metade do século XVIII e o século XIX, aponta para a imprecisão nos critérios e afirma que as designações pardas, negras, mulatas, cafuzas, pretas e crioulas, era a forma de afastá-las dos brancos. Semelhante conclusão tem Russell-Wood em estudo sobre escravos e libertos no Brasil do século XVIII e acrescenta que a “cor da pele de alguém estava nos olhos do observador, mas o status social e econômico do observador e sua cor também desempenhavam seu papel em qualquer dessas atribuições, assim como a época e a região” (RUSSELLWOOD, 2005, p. 297).

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Tabela 1. Registro dos escravos na Imperial Vila da Vitória 1812-1888 1ª Metade do Século 2ª Metade do Século Nº % Nº % Crioulo 97 30,89 Crioulo 288 28,3 Cabra 32 10,2 Cabra 185 18,2 Mulato 21 6,7 Mulato 11 1,1 Pardo 2 0,6 Pardo 283 27,8 *Preto 11 3,5 Preto/africano 190 18,7 Não declarado 27 8,6 Não declarado 54 5,3 Total 314 100 Total 1017 100 * Para esse período, tomamos os descritos como africanos como ‘nação/origem’, em razão do que indica a documentação (nação africana). Já para segundo período, somamos os africanos aos pretos. Fonte: Arquivo da 1ª Vara Cível do Fórum João Mangabeira, Vitória da Conquista-Bahia.

2950

Idem, fl. 3v. Idem fl. 8v. 2952 O estatuto da pureza de sangue impedia o acesso de indivíduos resultantes da mistura biológica com negro, seus ascendentes e indígenas, sendo esse oficialmente invalidado somente com a constituição do Império do Brasil de 1824. 2951

959 ISSN 2358-4912 Na Imperial Vila da Vitória, não diferindo de outros lugares da América Latina, os inventários apontam para um verdadeiro caleidoscópio de tez dos indivíduos escravizados (tabela 1).2953 Em todo o século XIX, a designação predominante foi o crioulo, com 54,8% no primeiro período e 28,3% no período posterior. Essa queda deve estar relacionada ao aumento percentual no número de pardos no referido período. No dicionário Silva, de 1832, o escravo era o “Crioulo, adj. o preto escravo, que nasce em caza de seu senhor”. Segundo Libby, nas Minas Gerais do século XVIII, “a designação de crioulo não se aplicava apenas a uma única geração nascida de pais africanos, nem que se confundia, junto com o termo preto, com a condição de cativo, como quer Hebe Mattos” (LIBBY, 2010, p. 49). Também estudando o século XVIII, Marcia Amantino demonstra que, nas fazendas inacianas no Rio de Janeiro, crioulos tiveram filhos designados como pardos e que as designações mulato e cabra foram usadas para filhos de africanos com crioulos. Na Imperial Vila da Vitória do século XIX, também encontramos esta dinâmica, a exemplo de Anna crioula, que teve os filhos Paulo e Bernarda, ambos pretos2954. Essas ocorrências só corroboram com a afirmativa de Ivo de que “assim como pardo, o termo crioulo apresentou-se eivado de peculiaridades intrínsecas a anotações locais e a critérios não padronizados” (IVO, 2012, p. 268). O maior percentual de crioulos escravizados na Vila só nos permite inferir que sua população era majoritariamente composta por indivíduos nascidos no Brasil, alguns nascidos no local e outros provenientes do comércio interprovincial. A designação cabra2955 aparece em segundo lugar, com 18,1 percentuais na primeira metade do século XIX, mantendo-se praticamente inalterada (18,2%) no período posterior, no qual os pardos assume a segunda posição, com 27,8%, diferentemente dos 3,9% do período anterior. Tomando essa categoria como cor, Machado afirma que os pardos apresentaram um alto percentual entre a população paranaense cativa e livre do século XIX. Já em Porto Feliz (São Paulo século XIX), segundo Guedes, a ‘cor’ parda foi deixando de ser atribuída a escravos. Mattos, por sua vez, afirma que o termo pardo foi usado para designar a ‘cor’ mais clara de alguns escravos. No entanto, Ivo chama a atenção para o fato de que o fula também tinha a pele clara. Além disso, Amantino aponta que, no século XVIII, os termos pardo, mulato e cabra foram usados para designar indivíduos frutos da mistura de indígenas e africanos. Finalmente, para Libby, ao menos nas Minas Gerais, em toda segunda metade do século XVIII e maior parte do XIX, a “designação pardo poderia abrigar múltiplas tonalidades de pele, mas sempre se referia a algum grau de mestiçagem”(LIBBY, 2010, p. 48). A percentagem dos pretos foi relativamente baixa para a primeira metade do século, mas isso se explica pelo fato de não termos somado a estes os indivíduos descritos como africanos, embora, em muitos lugares, preto e africano ter sido usados como sinônimos, em razão do que indica a documentação, entendemos que, para o período, o termo africano remete nação, como sinalizamos na tabela 1; mas, no segundo período, a soma dos pretos com os descritos apenas como africanos chega a 18,7%, ou seja, a terceira descrição que mais aparece. Observa-se que, nessa localidade do sertão baiano, não se verifica a tendência paranaense apontada por Machado, de designar pardos, os escravos nascidos no local, e negros, os ‘estrangeiros’, pois, apesar do aumento percentual do número de pardos, como se observa, os crioulos se mantêm em maior número. Outra observação importante, pois é reveladora das dinâmicas de mestiçagem, foi o fato de que, diferentemente do que encontrou Guedes para Porto Feliz, onde a designação da “cor” do indivíduo, escravo ou livre, tendia a acompanhar a da família, na Vila Vitória, nem sempre os filhos seguia a designação dada mãe escrava, como ocorreu com Francisca cabra e seus filhos Aureliano crioulo e Theodora crioula2956. Anna Crioula, por exemplo, teve os filhos Paulo e Bernarda e ambos foram denominados pretos2957; Marta Crioula teve três filhos, Adão e Antonio crioulos, e o filho mais novo, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2953

Na parte dos inventários referente ao arrolamento dos escravos, não aparecem os termos cor nem qualidade. No entanto, com base em Paiva, Ivo e Amantino, tomamos as designações como qualidade, apesar desta categoria ora se confundir com categoria cor. 2954 AFJM: 1ª Vara Cível: Caixa Inventários: 1871 a 1874. Inventário de Theotonio José Freyre, 1875. 2955 Segundo Libby, nas Minas Gerais do século XVIII e Início do XIX, o termo cabra constituía uma terceira designação de ascendência africana. Comumente, designava filhos de pais de origens mistas, como um pardo ou mulato e o outro crioulo ou africano. 2956 AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Inventários: 1871 a 1874. Inventário de Theotonio José Freyre. 1875. (não catalogado). 2957 Idem.

960 ISSN 2358-4912 Izidoro cabra2958; o casal Júlio cabra e Bernardina fula tiveram a filha legítima Joana Capistrana cabra2959; Izidora crioula teve cinco filhos, Raphael mulato, Manoel crioulo, Feliciana mulata, Ignes mulata e Roberto mulato2960; Bernarda Victória, crioula fusca, teve uma filha, Sebastiana cabra2961; e Madalena crioula teve dois filhos de 5 anos, Leonardo cabra e Eloy crioulo2962. Em todos os casos, a explicação pode estar ligada à classificação dada ao genitor: Joanna Capistrana pode ter declarada como o pai Júlio, o que podemos supor que tenha ocorrido também com Aureliano, Theodora, Paulo e Bernarda de pai incógnito; no caso de Adão, Antonio e Izidoro o genitor também não foi declarado, mas existe a hipótese de terem sido filhos de pais diferentes, sendo os dois primeiros de um mesmo pai, e o último de outro; o mesmo deve ter ocorrido no tocante aos filhos de Izidora, Bernarda Victória e Madalena. No entanto, não podemos esquecer de que essas designações davam-se no fazer cotidiano, dependendo do olhar, tanto de quem avaliava, como do autoreconhecimento do indivíduo. Isso se verifica em Amantino, que encontrou, para o século XVIII, pais de mesma classificação que geraram filhos classificados de forma diferente (pais ambos crioulos e seus dois filhos identificados como pardos). Esses casos só confirmam o que disse Libby, ou seja, que a cronologia de ‘cores’ do silêncio de Hebe Mattos não se aplica. Nação, afirma Paiva, era uma categoria usada pelos conquistadores, administradores, navegadores e comerciantes na Europa, África e no Oriente entre os séculos XVI e XVIII, para designar a região, província, país ou reino de origem de um indivíduo e que, não raro, o termo era confundido ou complementava a qualidade, como também denotava gentilidade, barbarismo e o status da prática religiosa. Já no século XVIII, disposto sobre aspectos como conhecimentos técnicos, tipos de mão de obra, práticas religiosas, dentre outros, o termo nação passou a ser usado ostensivamente para identificar e classificar os indivíduos provenientes da África (livres, escravos ou libertos)2963. Pierre Verger, ao apresentar os ciclos do tráfico dos escravos entre África e Bahia, também aponta para a não correspondência entre a denominação da ‘nação’ com o lugar de origem dos escravos, uma vez que, em cada ciclo (que correspondia a um período do tráfico Atlântico), eram agrupados nos portos indivíduos de diversas regiões, línguas e procedências. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 2. Designação de “nações” dos escravos na Imperial Vila da Vitória 1812-1888 1ª Metade do Século Nº Fula 0 Calabar 3 Congo 8 Nagô 18 Angola 24 Jêje 5 Mina 12 Cabinda 2 Moçambique 3 Hauçá 15 Borbá 1 Crioula 1 Cabra 1 *Africana 63 Total 156 2958

% 0 1,9 5,1 11,5 15,4 3,2 7,7 1,3 1,9 9,6 0,7 0,7 0,7 40,4 100

2ª Metade do Século Nº Fula 5 Calabar 0 Congo 0 Nagô 1 Angola 0 Jêje 0 Mina 0 Cabinda 0 Moçambique 0 Hauçá 0 Borbá 0 Crioula 0 Cabra 1 ---------Total 7

% 71,4 0 0 14,3 0 0 0 0 0 0 0 0 14,3 -100

AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Diversos: 1872 a 1873. Inventário de Joaquim Carneiro de Lima. 1873. (não catalogado). 2959 AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Inventários: 1875 a 1876. Translado em razão da morte do Cap. Manoel Fernandes de Oliveira. 1876. (não catalogado). 2960 AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Avulsos I. Inventario de Maria Antonia da Silva, 1879. (não catalogado). 2961 AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Inventário: 1871 a 1874. Inventário de Theofilo de Oliveira Freitas, 1874. (não catalogado). 2962 AFMJ: 1ª Vara Cível. Caixa Inventários: 1875 a 1876. Inventários de Francisco Manoel Pereira 1875. (não catalogado). 2963 O autor observa que, no período compreendido entre os séculos XVI e XVIII, a categoria nação não se assemelhava à forma como foi concebida no século XIX (Estado Nação).

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ISSN 2358-4912 Na documentação, o termo ‘nação africana’ só aparece no primeiro período. Fonte: Arquivo da 1ª Vara Cível do Fórum João Mangabeira -Vitória da Conquista-Bahia.

Os inventários da Imperial Vila da Vitória também apontam para a permanência de designações de nação (tabela 2) como meio de identificar e classificar indivíduos escravizados provenientes de África (negros) entre si e entre seus ascendentes nascidos no Brasil (mestiços), principalmente na primeira metade do século XIX. Nesse período, das 14 nações que aparecem, 40,3% dos 156 indivíduos arrolados, são descritos apenas como de ‘nação africana’. Já entre os que foram denominados especificamente, aparece em maior número a ‘nação’ Angola, com 15,4%, seguida da Nagô, com 11,5%, da Haussás com 9,5%, da nação Congo, com 5,1%, e a Jêje, com 3,2%. No que tange à nação Calabar2964, basta dizer que está entre as menos expressivas, com apenas 1,9%, diferentemente do que encontrou Mary C. Karasch em estudo sobre escravos no Rio de Janeiro do século XIX, onde era bastante expressiva. O Nagô, segundo Oliveira, foi a designação escolhida no circuito do tráfico que se organizou em direção à Bahia no século XVIII até início do XIX, para denominar os povos de língua ioruba. Já a nação Jêje, segundo a mesma autora, também é uma feitura do tráfico que englobava “os ajas-fons, da região do Dahomé, Porto Novo e áreas circunvizinhas” (Oliveira, 1997, p. 67) e que sua comercialização teve início na laguna, no reinado de Dê Houyi, na segunda metade do século XVIII. A respeito dos haussás, Oliveira afirma que foram de grande expressão na Bahia, especialmente no século XIX, e, diferentemente das outras ‘nações’, a sua “origem” nunca foi posta em dúvida: “os haussás sempre foram reconhecidos como tais, quer pela rede do tráfico, quer pelos diversos grupos de africanos e de brasileiros com os quais mantiveram contato”(OLIVEIRA, 1997:72). As razões de tal conhecimento se devem à fácil identificação dos sinais indicativos da religião islâmica, bem como pela importância do seu comércio e da língua que se espalhava por uma vasta região dos reinos negreiros da baía do Benin. Na segunda metade do século XIX, na Imperial Vila da Vitória, aparecem apenas três nações: a Fula foi mais expressiva, no entanto, como vimos por meio das cores, isso não significa que os escravos da Vila eram, em sua maioria, africanos. Segundo aponta François de Medeiros, apesar de não haver consenso entre os estudiosos sobre sua origem, os Fulas ou Fulanis eram um povo composto, na sua maioria, por pastores nômades espalhados por distintas regiões do que seria hoje a Nigéria, Gana, Malí, Camarões, Mauritania, Senegal, Guiné, Guiné-Bissau, Serra Leoa e Sudão. Como aponta Raymundo Nina Rodrigues, distanciava-se dos outros africanos pela pele clara. As duas outras nações que apareceram na documentação foram a Nagô e Cabra2965, tendo o mesmo percentual de 14,3%. Nota-se, também, que a maioria das nações africanas presentes na Vila em questão correspondem a regiões da África Ocidental e Centro-Ocidental2966. Em suma, podemos dizer que os usos das fluidas categorias qualidade, condição, cor e nação não nasceram nas Américas, mas em cada lugar do Novo Mundo ganharam corpo, marcando profundamente as sociedades mestiças que nele se formaram. No caso do Brasil, passados três séculos de colonização e às portas do século XX, as designações ligadas, especialmente, a qualidade e cor, foram intensamente usadas para classificar, e hierarquizar as pessoas - principalmente aquelas de ascendência africana -, demarcando o seu lugar social. Referências AMANTINO, Marcia. Jesuítas negros e índios: as mestiçagens nas fazendas inacianas do Rio de Janeiro no século XIX. In: PAIVA, Eduardo F; IVO, Isnara P e MARTINS, Ilton C (Orgs.). Escravidão e

2964

Segundo Nina Rodrigues, os Calabar eram provenientes da Costa da Guiné, ou seja, da Costa Ocidental Africana. 2965 A nação cabra é típica dos léxicos da América portuguesa, pois, segundo o dicionário D. Rafael Bluteau, reformado por Antônio de Morais Silva no ano de 1789, cabra é o “filho, ou filha de pai mulato, e mãi preta, ou ás avessas.”. 2966 África Ocidental (do extremo oeste do atual Senegal ao leste da moderna Nigéria), África Centro-Ocidental (da região ao Sul do Camarões contemporâneo até o Norte da atual Namíbia) e África Oriental (toda a área oriental da África).

962 ISSN 2358-4912 mestiçagem, populações e identidade culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. (coleção olhares). BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus, Anno de 1712. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1. Acesso em 20 de fevereiro de 2013. _____. Diccionario Língua Pôrtugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antônio de Moraes Silva, Natural do Rio de Janeiro. Tomo Primeiro, A=Z. Lisboa, Na Officina De Simão Thaddeo Ferreira. ANNO M. DC C. LXXXIX. Com Licença da Real Meza da Commissão Geral, sobre o Exame, e Cenfura dos Livros. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00299210#page/3/mode/1up. Acesso em 02 de Fevereiro de 2013. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João L. R; ALMEIDA, Carla M. C. de e SAMPAIO, Antonio C. J. de (Orgs.). Conquistadores e negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GUEDES, Roberto. F. Escravidão e Cor nos Censos de Porto Feliz (São Paulo, Século XIX). In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300678860_ARQUIVO_CensoseClassificacaodeC oremPortoFelizGuedes1.pdf. Acesso em 20 de março de 2014. GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo: história de uma mundializacion. México: FCE, 2010. HESPENHA, Antonio Manuel. Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do Império português. In: FRAGOSO, João e GOUVEIA, Maria de Fátima (Orgs.). Na trama das redes: politica e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América Portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012. KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Cia das letras, 2000. LIBBY, Douglas C. A empiria e as cores: representações indenitárias nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. In: PAIVA, Eduardo F; IVO, Isnara P e MARTINS, Ilton C (Orgs.). Escravidão e mestiçagem, populações e identidade culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. (coleção olhares). MATTOS, Hebe M. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ______. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João L. R; BICALHO, Maria F. e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. MEDEIROS, Francois de. Os povos do Sudão: movimentos populacionais. In: EL FASI, Mohammed. História geral da África, III: África do século VII ao XI. Brasília: UNESCO, 2010. MACHADO, Cacilda. A escravidão e a cor dos escravos e dos livres (Freguesia de São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). 2011. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/files/2011/12/A-escravid%C3%A3o-e-a-cor-dos-escravose-dos-livres-Cacilda-Machado.pdf. Acesso em 20 de março de 2014. OLIVEIRA, Maria Inês Cortez de. Quem eram os "negros da Guine”? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia. Nº 19/20, 1997. p. 37-77. PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Portuguesa. Ouro Preto, Na Typograpoia de Silva, 1832. RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Virtual do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Disponível em: http://www.bvce.org/LivrosBrasileiros.asp. Acesso em 20 de novembro de 2013. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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RIBEIRA DO MOSSORÓ, UM ESPAÇO A SER CONQUISTADO: CONQUISTA E POVOAMENTO DO SERTÃO DA CAPITANIA DO RIO GRANDE NO INICIO DO SÉCULO XVIII Patrícia de Oliveira Dias2967 Teodósio da Rocha e o povoamento do Mossoró A conquista do sertão da capitania do Rio Grande, como forma de consolidação da colonização portuguesa, foi iniciada apenas após a retirada dos holandeses e a retomada do território para o domínio do Império Português. O responsável por doações de terras para além das fronteiras litorâneas da capitania foi o capitão-mor Antônio Vaz Gondim2968, que a partir do seu segundo governo, entre 1773 e 1776, passou a doar sesmarias2969 além das terras litorâneas2970. Neste artigo pretende-se estudar como a família de Teodósio da Rocha teve um importante papel para o povoamento de uma região específica da capitania do Rio Grande: a ribeira do Mossoró. Foi neste período de expansão para além das terras litorâneas que o capitão Teodósio da Rocha (2.1)2971, personagem aqui analisado e considerado como um dos primeiros a povoar a região do Mossoró, recebeu sua primeira sesmaria na capitania do Rio Grande, no rio Guaxini, afluente do rio Piranhas, doada por Antônio Vaz Gondim, em 16762972. Neste processo de avanço dos conquistadores no sertão da capitania, que visavam principalmente desenvolver atividade da pecuária, foram surgindo alguns conflitos entre estes conquistadores, que logo se fixaram nas terras recebidas, e indígenas. As investidas indígenas passaram a crescer consideravelmente chegando a tornar-se uma guerra nos sertões das capitanias do norte, atual região nordeste do Brasil. Este conflito recebeu a denominação de Guerra dos Bárbaros. Na capitania do Rio Grande, tal confronto ficou conhecido como Guerra do Assú, e durou 17 anos, entre 1687 e 17042973. Durante a Guerra dos Bárbaros muitos moradores deixaram suas terras, devido à insegurança trazida pelo conflito. No entanto, alguns permaneceram nas terras, ao mesmo passo em que novos conquistadores chegavam não apenas para lutar contra os indígenas, mas também movidos pela promessa do recebimento de mercês pelos seus serviços militares, dentre estas estava o recebimento de terras conquistadas. Um desses conquistadores era Teodósio da Rocha (2.1). O capitão Teodósio da Rocha (2.1), sobrinho de Antônio Vaz Gondim2974, recebeu deste capitãomor, além da já mencionada sesmaria na ribeira do rio Piranhas, uma data de terra em 1695, na ribeira do rio Mossoró2975. Quando o Arraial de Nossa Senhora dos Prazeres do Assu foi criado, em 1695, Bernardo Vieira de Melo, então capitão-mor da capitania do Rio Grande, nomeou Teodósio da Rocha 2967

Aluna do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (UFRN), bolsista CAPES, orientanda da professora doutora Carmen Alveal. Contato: [email protected] 2968 LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3 ed. Natal: EDUFRN, 2008. 128-129. 2969 Todas as cartas de sesmarias analisadas neste artigo estão presentes no banco de dados Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro). Este projeto foi criado pela professora Carmen Alveal, da UFRN, o qual tem como objetivo disponibilizar todas as cartas de sesmarias doadas durante os séculos XVI, XVII, XVIII e início do XIX no Brasil. Até o momento, o banco possui os documentos das capitanias do Ceará, Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. Acesso pelo endereço: http://www.silb.cchla.ufrn.br . 2970 LEMOS, Vicente. Capitães-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Vol. 1. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1912. p. 24. 2971 Para melhor identificação dos sesmeiros trabalhados neste artigo no mapa genealógico, disposto na página 3, foram feitas indicações com números entre parênteses. 2972 IHGRN - Fundo Sesmarias, Livro I, n. 43, fls. 181-183. 2973 Para mais informações sobre este conflito consultar: PIRES, Maria Idalina Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no nordeste colonial. Recife: FUNDARPE, 1990; e PUNTONI, Pedro, A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Huicitec, 2002. 2974 IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro V, n° 455, fls 181-181v. 2975 TRINDADE, João Felipe. Notícias genealógicas do Rio Grande do Norte. EDUFRN: Natal, 2011. p. 375.

965 ISSN 2358-4912 (2.1) como o capitão do forte deste arraial2976. Em 2 de janeiro de 1708, este capitão sentou praça na Companhia do Terço dos Paulistas. Segundo o assentamento de praça deste capitão, Teodósio era filho de Damião da Rocha (1.1), natural da Vila de Penedo, nas margens do Rio São Francisco e possuía 51 anos2977. Além de possuir uma atuação militar, também foi eleito várias vezes, para diversos cargos, ao Senado da Câmara de Natal. Este capitão foi juiz ordinário do Senado da Câmara em 1677, vereador em 1680, almotacé em 1681 e juiz ordinário em 1682, 1685, 1691, 1698 e 17222978. Teodósio da Rocha foi casado com dona Antônia de Oliveira (2.1.a) e teve doze filhos: Damião (3.1), Bonifácio (3.2), Antônio (3.3), João (3.4), Teodósia (3.5), Luís (3.6), Mariana (3.7), Margarida (3.8), Brígida (3.9), Tereza (3.10), Ana (3.11) e Teodósio (3.12). Destes seus filhos, vale destacar a participação de Damião da Rocha (3.1), Antônio Vaz Gondim (3.3), João da Rocha Vieira (3.4) e Bonifácio da Rocha Vieira (3.2) como oficiais do Terço dos Paulistas de Manuel Álvares de Morais Navarro, assim como seu pai. O Terço dos Paulistas foi uma das alternativas encontradas pela Coroa para o conflito contra os gentios. Conhecidos por sua atuação nos sertões paulistas e no apresamento de índios, os paulistas foram convocados para auxiliar no combate nos sertões das capitanias do Norte. A última companhia do Terço dos Paulistas a chegar na capitania do Rio Grande, em 1698, foi comandada pelo mestre de campo paulista Manuel Álvares de Morais Navarro. Nem todos os soldados desta companhia eram paulistas2979. Quando estes chegaram aqui, muitos naturais da capitania do Rio Grande sentaram praça no Terço e dentre eles estão Teodósio da Rocha (2.1) e seus filhos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Figura 01: Família de Teodósio da Rocha (1.1) Damião da Rocha

(2.1) Teodósio da Rocha (Cap.)

(2.1.a) Antônia de Oliveira (D)

(3.1) Damião da Rocha (Sdo.)

(3.2.a) Inácia Gomes Freire (D)

(3.4) João da Rocha Vieira (Sdo.)

(3.6) Luis Moraes

(3.7) Mariana da Rocha

(3.9) Brigida da Rocha

(3.10) Tereza

(3.12) Teodósio

(3.11) Ana da Rocha

(3.2) Bonifácio da Rocha Vieira (3.3) Amtônio Vaz Gondim (Sdo.)

(3.3.a) Antônia do Livrameto

(4.11) João

(4.1) Marcelina

(3.5.a) Manoel da Costa Rego

(3.5) Teodósia da Rocha (D)

(3.8.a1) Manuel de Almeida Cabral

(4.4) Maria (4.2) José

(4.3) Felizarda Filgueira

(3.11.a) Gonçalo de Frielas

(4.12) Inácio

(3.8) Margarida da Rocha (3.8.a2) José Porrate de Morais Castro (Cap. de Inf .)

(4.5) Thomás (4.6) Michaela

(4.7) (4.8) Archângela Francisca

(4.9) (4.10) Bernadino Sebastiana

Legenda União ilegítima Casamento Viuvez

(Cap.) Capitão

(D) Dona

(Sdo.) Soldado

(Cap. de Inf.) Capitão de Inf antaria

Fonte: Gráfico elaborado pela autora baseando-se nas obras de João Felipe Trindade, Notícias genealógicas do Rio Grande do Norte e Mais notícias genealógicas do Rio Grande do Norte; em cartas de sesmarias; em cartas patentes; e no Livro de Registro de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.

2976

CASCUDO, Luiz da Câmara. História da Cidade do Natal. P. 56. Olavo de Medeiros Filho, em um dos volumes da Coleção Mossoroense, apresenta um documento apontando Teodósio da Rocha como possuidor de uma fazenda na ribeira do Mossoró e indica que esta não estava sendo povoada. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notícia sobre a fazenda do Monxotó, em 1712. Coleção Mossoroense, Série B, n. 477. 1987. 2977 TRINDADE, João Felipe. Mais notícias genealógicas do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2013. P.74. 2978 Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 2979 Sobre maiores informações sobre a Guerra do Açu e a atuação do Terço de Manuel Álvares de Morais Navarro na capitania do Rio Grande consultar: PUNTONI, Pedro, A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Editora Huicitec, 2002.

966 ISSN 2358-4912 Teodósio da Rocha (2.1) e demais companheiros, receberam do capitão-mor Antônio Vaz Gondim, seu tio2980, uma sesmaria na ribeira do Mossoró, juntamente com Teodósia da Rocha (3.5), sua filha, João Leite de Oliveira, seu primo, Domingos Rodrigues Correa, Clara da Costa e Maria da Conceição2981. Não se sabe quando esta sesmaria foi doada, nem a data de sua demarcação, mas se sabe que parte desta sesmaria não foi povoada totalmente e assim foi considerada devoluta e doada para outros sesmeiros quando foi efetivada a demarcação das terras. Um alvará com força de lei expedido pelo rei, em 23 de novembro de 1700, ordenou que todos os ouvidores do Estado do Brasil fossem responsáveis pela demarcação de terras de aldeias de índios e seus missionários nos sertões do Estado do Brasil2982. Além de repartir as terras das aldeias de índios, Cristóvão Sores Reimão, ouvidor geral da Paraíba2983, em 03 de março de 1701, também recebeu ordens para fazer o tombamento das terras da ribeira do Jaguaribe e da ribeira do Assú2984. O desembargador estendeu sua participação até a ribeira do Mossoró, região existente entre essas duas ribeiras. Assim, foi iniciado o processo de demarcação. As terras dos companheiros e familiares de Teodósio da Rocha, na ribeira do Mossoró, foram demarcadas por este desembargador e algumas delas foram consideradas devolutas, ação que tirava da posse destes sesmeiros as terras daquela ribeira. Nenhum processo de demarcação, até o momento, foi encontrado para este período e para esta região aqui analisados, mas alguns vestígios da atuação deste desembargador podem ser percebidos em algumas cartas de sesmarias. Em 1709 uma sesmaria foi concedida a Ignácio Pereira de Albuquerque, Teodósia de Oliveira (3.5)2985 e Manoel Rodrigues. Estes suplicantes, sob a justificativa de que possuíam gados, porém não possuíam um local para criá-los, solicitaram ao rei para que este lhes concedesse, em forma de mercê, uma sesmaria que alguns anos antes fora doada à Clara da Costa e a Maria da Conceição. Esta sesmaria havia sido considerada devoluta, também em 1709, por Soares Reimão, no momento da demarcação, pois não havia sido povoada, consequentemente poderia ser doada a outro suplicante disposto em levar a cabo tal tarefa2986. Esta sesmaria foi doada na região da ribeira do Mossoró, um local úmido no verão e alagadiça no inverno2987, portanto muito propício para a criação do gado. Se alguma terra, neste local de tão boas condições geoclimáticas, fosse considerada devoluta por abandono, logo outro criador de gado viria em busca de sua posse. Mas Inácio Pereira de Albuquerque, Teodósia de Oliveira (3.5) e Manoel Rodrigues saberiam tão rapidamente que as terras estavam novamente livres se não tivessem nenhum vínculo naquela região? A sesmaria de Clara da Costa e Maria da Conceição, originalmente, não foi concedida apenas a essas duas sesmeiras. Esta sesmaria foi doada à Maria da Conceição, Clara da Costa, Domingos Rodrigues Correa, Teodósio da Rocha (2.1), João Leite de Oliveira e a própria Teodósia de Oliveira (3.5), atual suplicante e filha de Teodósio da Rocha (2.1). Era comum, até 1700, grandes faixas de terra serem doadas para um grupo grande de sesmeiros2988. Mas esta prática não obrigava a todos os

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2980

IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro V, n° 455, fls 181-181v. TRINDADE, João Felipe. Notícias genealógicas do Rio Grande do Norte. EDUFRN: Natal, 2011. p. 375. 2982 ALVARÁ Alvará com força de Carta de Lei, autorizando os Ouvidores a dividirem as terras dos sertões para a instalação das Aldeias e Paróquias. Coleção Professor Limério Moreira da Rocha. Fortaleza: Arquivo Público estadual do Ceará, 2004. P. 149-151. 2983 As capitanias do Rio Grande e do Ceará estavam sob a jurisdição da comarca da Paraíba, por este motivo a ouvidoria geral da Paraíba atendia a essas duas capitanias. DIAS, Patrícia de Oliveira. As tentativas de construção da ordem de um espaço colonial em formação: o caso de Cristóvão Soares Reimão. Monografia – UFRN: Natal, 2011. P. 61. 2984 PARA o ouvidor geral da Paraíba – sobre a medição das terras que se hão de dar às Aldeias de indíos. Coleção Professor Limério Moreira da Rocha. Fortaleza: Arquivo Público estadual do Ceará, 2004. P. 158 2985 Por vezes a filha de Teodósio da Rocha, Teodósia da rocha, é encontrada na documentação com o sobrenome Oliveira. 2986 IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro II, n° 78 e n° 79, fls 32-35. 2987 Segundo o sesmeiro João do Valle Bezerra, esta região era muito boa para a criação de gado devido as boas condições do logo e boa quantidade de água tato no inverno quanto no verão, estação mais preocupante para um local de clima seco. IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro IV, n° 275, fls 32-35. 2988 No banco de dados da Plataforma SILB, foi possível perceber que grande parte dos pedidos de concessão de sesmarias até o início do século XVIII, muitos grupos de sesmeiros solicitavam terras conjuntamente, como no caso aqui citado. PLATAFORMA SLB visitado em 07 de junhoo de 2014. 2981

967 ISSN 2358-4912 sesmeiros povoarem as terras completamente. As sesmarias eram doadas conjuntamente, mas eram povoadas de forma separada, como se pode perceber neste caso, uma vez que a parte que cabia a Teodósio da Rocha (2.1) estava sendo ocupada2989. Na mesma data de 6 de novembro de 1709, dona Rosa Maria solicitou as terras que um dia foram de Domingos Correa, alegando que tal terra havia sido considerada devoluta durante a demarcação e que a solicitava, pois criava seus gados nas terras alheias. Percebe-se que Domingos Correa também não povoou as terras, ratificando a hipótese de que apenas Teodósio da Rocha (2.1) e Teodósia de Oliveira (3.5) tenham cumprido seu papel de povoador das terras2990. Em 12 de maio de 1713, Damião da Rocha (3.1) e Antônio Vaz Gondim (3.3) solicitaram seis léguas na ribeira do Mossoró. A justificativa apresentada no momento do pedido foi a de que o sesmeiro Antônio Vaz Gondim (3.3) já havia recebido o título destas terras juntamente com Manoel Gonçalvez Pimentel, doadas por Bernardo Viera de Melo. No entanto, esta sesmaria havia sido considerada devoluta por Soares Reimão. O motivo para o veredicto do desembargador? A terra não havia sido povoada no tempo determinado. Segundo os suplicantes, Antônio Vaz Gondim (3.3) e Damião da Rocha (3.1), tal veredicto foi feito somente porque eles não estavam presentes no momento da demarcação, mas que a povoação das terras estava sendo efetivada. Com estes argumentos, os suplicantes conseguiram as terras na ribeira do Mossoró, que confrontava com as terras de seu pai, Teodósio da Rocha (2.1)2991. Percebe-se nestes casos acima apresentados que as terras devolutas logo eram solicitadas por parentes dos antigos sesmeiros ou pelos próprios sesmeiros que perdiam a terra. A capitania do Rio Grande era uma das fornecedoras de gado para a feitura de carne seca que abastecia as capitanias do Norte. No momento em que a Guerra dos Bárbaros estava sendo travada, o Assú e toda a região em torno eram um palco de disputas de poder. Manter-se, fixar-se, e conseguir efetuar a conquista deste espaço, destruindo e ocupando antigos territórios indígenas, era de interesse de todo o conquistador em busca de terras, benesses da Coroa e prestígio dentro de uma sociedade na qual ser donos de terras era um sinal de status. Seguindo esta prática, Teodósio da Rocha (2.1) investiria em uma estratégia para se manter na região, não perder suas terras e conseguir alguns benefícios com isso. Esta estratégia poderia ser alianças entre os sesmeiros da região. Como se percebe nesses pedidos de terras aqui apresentados, grande parte da família de Teodósio está envolvida, mas além de filhos e filhas, o capitão constrói uma teia de matrimônios que são importantes para manter um possível poder em suas mãos.

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Alianças matrimoniais: estratégia para a manutenção de um espaço. Uma característica comum existente nas solicitações de sesmarias utilizadas neste artigo é o pedido de terras para a criação de gado e a garantia de povoamento das terras. Quando as terras de familiares de Teodósio da Rocha (2.1) foram sendo consideradas devolutas, logo em seguida outros sesmeiros as foram solicitando. Neste movimento de perda e recebimento de terras foi possível perceber que ligações entre a família de Teodósio da Rocha (2.1) e diversas famílias que estavam se estabelecendo na ribeira do Mossoró. Dois enlaces matrimonias de filhos de Teodósio da Rocha merecem destaque: Margarida da Rocha, casada, desde o dia primeiro de março de 1707, com José Porrate de Morais Castro2992; e Bonifácio da Rocha Vieira, que se casou com dona Inácia Gomes Freire, filha de Antônio Dias Pereira. Margarida da Rocha (3.8) foi casada com Manuel de Almeida Cabral (3.7.a1) e tiveram dois filhos: Maria (4.4) e Tomás (4.5). Maria, batizada em 11 de janeiro de 1690, teve como padrinho João da Costa de Araújo. Em 12 de janeiro de 1695 foi batizado Tomás, com padrinhos: Gaspar Freire e Inês Pinheiro. Margarida da Rocha ficou viúva de Manuel de Almeida Cabral e casou-se com o capitão de infantaria do Terço dos Paulistas, e primo de Manuel Álvares de Morais Navarro, José Porrate de Moraes e 2989

IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro II, n° 78 e n° 79, fls 32-35. IHGRN, Fundo Sesmarias, Livro II, n° 80, fls 36. 2991 IHGRN – Fundo Sesmarias. Livro II, nº 127. Fls. 139-140. A sesmaria concedida anteriormente a Antônio Vaz Gondim e Manoel Gonçalvez Pimentel, citada nesta petição aqui trabalhada, não foi encontrada. Porém, foi encontrada uma petição de Manoel Gonçalvez Pimentel, juntamente com Valéria Ferreira no rio das Emburanas, na ribeira do rio Jaguaribe. Datas de sesmarias. Fortaleza: Eugenio Gadelha e Filho, 1920. v. 1 p.130-131. 2992 TRINDADE, João Felipe. Notas Genealógicas do Rio Grande do norte, p. 372. 2990

968 ISSN 2358-4912 Castro (3.8.a2), em 17072993. Deste casamento teve cinco filhos: Michaela (4.6), Arcângela (4.7), Francisca (4.8), Bernadino (4.9) e Sebastiana (4.10). O capitão Bonifácio da Rocha Vieira (3.2), aos 16 anos, em 5 de janeiro de 1699, sentou praça na Companhia do Terço dos Paulistas de Navarro. No Senado da Câmara de Natal, foi almotacé durante os anos de 1727, 1728 e 1729. Em 1730 foi eleito para o cargo de juiz ordinário. Em 1731 voltou a ocupar o cargo de almotacé e durante os anos de 1735, 1739 e 1743 foi eleito para o cargo de juiz ordinário novamente2994. Casou-se com Dona Inácia Gomes Freire (3.2.a)2995, filha de Antônio Dias Pereira. Antônio Dias Pereira também ocupou diversos cargos no Senado da Câmara. Ainda com a patente de alferes, foi almotacé em 1695 e procurador de barrete/ tesoureiro em 1696. Já com a patente de sargento-mor foi eleito para o cargo de juiz ordinário em 1709 e foi almotacé em 1710. Como coronel, foi eleito para juiz ordinário novamente em 1714, almotacé em 1715, juiz ordinário em 1719 e almotacé em 1720, quando foi substituído por José Ribeiro de Faria, pois estava se transferindo para o sertão2996. Possuía sesmarias confrontantes com Teodósio da Rocha e foi padrinho de Teresa, uma das filhas de João Leite de Oliveira, primo do capitão Teodósio, que pediram e povoaram as terras do Mossoró em conjunto2997. Após a apresentação destes dados, percebe-se que os filhos de Teodósio da Rocha, assim como o pai, tornaram-se oficiais do Terço dos Paulistas. Um dos paulistas, ligado ao comandante do Terço, José Porrate de Morais e Castro, casa-se com uma das filhas do capitão Teodósio. Confrontando as terras deste capitão encontra-se Antônio Dias Pereira, oficial do Senado Câmara e casa uma de suas filhas com Bonifácio da Rocha Vieira, filho de Teodósio da Rocha. Esta ligação entre essas famílias pode ser considerada como uma estratégia desenvolvida com o objetivo de manter as terras na ribeira do Mossoró. Mas estas alianças não estariam ligadas apenas ao interesse econômico: possuir terras para a criação de gado, mas também a um interesse político. Fortalecer essas alianças dentro da capitania do Rio Grande em um momento em que um conflito armado está sendo travado seria importante para conseguir se manter na capitania, manter a segurança de sua família e ainda perpetuar seu poder político, envolvendo o máximo de familiares possíveis. Participar da câmara não traria apenas um status para um oficial, mas também muitas vantagens econômicas, como ganhos com emolumentos. As câmaras, além de serem responsáveis pela ordem na capitania, possuindo uma certa autonomia, também tinham o controle dos produtos que saiam e entravam na capitania2998. Lisboa era uma referência de centro para os colonos do Brasil, tanto para os nascidos em Portugal, quanto para aqueles nascidos na colônia. A referência de centro de Portugal surgia quando o reino é percebido como um modelo social, cultural e econômico a ser seguido. No entanto, quando a Coroa passou a fragmentar sua administração, criando os senados da câmara e dando a estes a responsabilidade de gerir as vilas nas quais estavam instalados, essa relação de centro e periferia tornou-se ambígua. Lisboa ainda era considerada como uma centralidade e a colônia como uma periferia, no entanto o poder político que agora os oficiais das câmaras, membros das melhores famílias da região possuíam, possibilitavam que seus interesses próprios fossem cumpridos de maneira mais ágil, não precisando depender tão diretamente da Coroa2999. Esta estratégia encontrada por estes sesmeiros, sobretudo Teodósio da Rocha, foi a prática de casamentos. Este não deve ser percebido como uma regra, o laço matrimonial ritualístico que une um homem e uma mulher, mas sim como uma estratégia de contrair um casamento. Estratégia seria o senso prático, algo que é colocado em prática de acordo com a lógica ou necessidade de um dado instante. Necessidade e lógica no agir que surgem por meio da experiência que se adquire em dadas V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

2993

TRINDADE, João Felipe. Mais notícias genealógicas do Rio Grande do Norte. 2013. p. 263. Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 2995 TRINDADE, João Felipe. Notícias genealógicas do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2011. 306-308. 2996 Catálogo dos Livros dos Termos de Vereação do Senado da Câmara do Natal (no prelo). 2997 TRINDADE, João Felipe. Notas Genealógicas do Rio Grande do Norte, p. 376. 2998 FRAGOSO, João. A formação da elite colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial. In. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima; BICALHO, Maria Fernanda (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos. 2010. p. 48. 2999 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e periferias no mundo Luso-Brasileiro. Revista Brasileira de História. v. 18. n. 36. São Paulo, 1998. 2994

969 ISSN 2358-4912 circunstâncias3000. Assim, deve-se considerar os matrimônios contraídos pelos participantes desta rede, formando assim a sua base, não apenas como o cumprimento de regras sociais, mas sim como estratégias matrimonias.

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Em busca da posse da terra Para tratar da posse de terra no sistema de doações de sesmarias um fato, previsto em lei, deve ser considerado: a propriedade efetiva da terra não era do sesmeiro que recebia essa doação, mas sim da Coroa. A partir do momento que a Coroa portuguesa encontrou e edificou marcos nas terras do mundo recém-descoberto, esta considerou todas as terras como suas por direito de conquista. Assim, a Coroa possuía o domínio efetivo desta terra. Desta forma, a terra, doada em forma de sesmaria deveria ser considerada pelo sesmeiro como uma propriedade condicionada, ou seja, uma terra que era sua, mas mediante certas condições impostas pela Coroa. Se tais exigências não fossem cumpridas, a terra poderia ser tomada do sesmeiro. O sesmeiro possuía apenas o domínio útil da terra que recebia da Coroa, desta forma deveria estar claro que as terras não eram suas efetivamente, mas sim de um real proprietário, no caso o rei. A obrigatoriedade do cultivo, ou a obrigatoriedade de utilizar a terra recebida, não apenas cultivando, mas também criando gado e povoando, imposta pela Lei de Sesmarias, possibilitava que o sesmeiro desenvolvesse uma “mentalidade possessória” pela terra que recebia. O sesmeiro possuía o domínio útil da terra, porém, por cultivar e criar animais nesta terra passava a acreditar que já a possuía como propriedade sua, efetiva, enquanto que seguindo as leis do reino, as terras eram doadas condicionalmente pela Coroa3001. No caso analisado neste artigo, pode-se perceber que as terras recebidas pelos oficiais do Terço dos Paulistas não haviam sido povoadas no tempo determinado, fato que contrariava uma das condições impostas aos sesmeiros, o povoamento, e resultou na devolução destas terras para a Coroa, comprovando-se assim a característica das sesmarias como propriedade condicionada. No entanto, tais sesmeiros pretendiam manter em suas famílias a posse de tais terras, o que não era possível pela lei de sesmarias, a qual não permitia a hereditariedade da posse das terras doadas diretamente. Percebe-se então que tais sesmeiros, apesar de não terem utilizado a terra por um longo período de tempo, já possuíam uma mentalidade possessória com relação a estas terras que consideravam serem possuidores, uma vez que receberam um documento forjado pelas próprias autoridades administrativas do reino, a carta de sesmaria, alegando a sua posse. Assim, para conseguir alcançar seus objetivos, não entrando em conflito com a Coroa e com os funcionários que fiscalizavam estas doações de terras, os sesmeiros da ribeira do rio Mossoró passaram a montar uma estratégia para conseguir alcançar suas metas. Nesta pesquisa considera-se como estratégia a formação de alianças, formadas por laços matrimoniais e de apadrinhamentos envolvendo os oficiais do Terço dos Paulistas e oficiais do Senado da Câmara de Natal. Referências BOUDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em: . Acessado em 10 ags. 2013. CASCUDO, Luiz da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Ministério da Educação e cultura. Rio de Janeiro, 1995. Coleção Professor Limério Moreira da Rocha. Fortaleza: Arquivo Público estadual do Ceará, 2004. DIAS, Patrícia de Oliveira. As tentativas de construção da ordem em um espaço colonial em formação: o caso de Cristóvão Soares Reimão. Monografia. UFRN, 2011.

3000 3001

BOUDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. P. 78-79. VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna, 2005. p. 33.

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INQUISIÇÃO E RELIGIOSIDADE NA BAHIA COLONIAL (SÉCULO XVIII): A PRÁTICA RELIGIOSA DO ESCRAVO MATHEUS PEREIRA MACHADO Priscila Natividade de Jesus3002 Em meados do século XVIII, residiu na Vila de jacobina – BA um escravo por nome de Matheus Pereira Machado, que sob acusação de feitiçaria e sacrilégio por porte de bolsa de mandinga fora processado e condenado a degredo pela Inquisição portuguesa. Matheus Machado era um adolescente de apenas 16 anos, natural do Sítio de São José da Pororoca atual distrito de Feira de Santana- BA, mas quando acusado morava na vila de Jacobina. A partir do caso deste mandingueiro as discussões acerca da Inquisição portuguesa, prática cultural, religiosidade, e “poder” das bolsas de mandinga ganham ênfase em nosso trabalho, que tem como objetivo maior discutir a importância do referido amuleto para seus usuários (em sua maioria negros) no contexto do Brasil colonial. O caso de Matheus Pereira Machado O processo de Matheus Pereira Machado encontra-se interligado a outros dois casos de feitiçaria envolvendo bolsas de mandinga. Para entender como ele caiu nas malhas da Inquisição portuguesa é necessário conhecermos um pouco da trama, na qual Matheus e outros dois negros estavam envolvidos. Em meados do século XVIII, Matheus, José Martins e Luis, negros e moradores do Sítio do Riachão - localizado na Vila de Jacobina - foram acusados de feitiçaria por portar bolsas de mandinga. Este episódio causou uma grande reviravolta em suas vidas, pois, os três mandingueiros acabaram sendo presos, processados e condenados pelo Tribunal da Santa Inquisição em Lisboa. Tudo começou no ano de 1745, quando dona Antonia, proprietária do escravo Luis, descobriu que Matheus, também escravo, tinha uma bolsinha de mandinga. A referida bolsinha era uma espécie de amuleto com caráter protetor para seus usuários, mas para a Inquisição era sinônimo de feitiçaria. De acordo com o depoimento de dona Antonia (ANTT. Inq. de Lisboa, proc. nº 508, fl. 44) ela se encontrava na casa de seu compadre e irmão do dono de Matheus, Manoel Arão, no Sítio de Itapicuru, quando presenciou um menino de três anos de idade abrindo uma bolsa de couro, que disse ter achado na algibeira do cavalo de Matheus. Ao averiguar a história com o próprio Matheus, dona Antonia foi informada por ele que existia outra bolsa, a qual estava guardada com o seu escravo Luis. Dona Antonia deve ter ficado atordoada, afinal é muito provável que soubesse que tal amuleto era contra a santa fé católica, podendo ela ser acusada como cúmplice, com o risco de ser presa caso não denunciasse o que sabia sobre as bolsinhas. Ao descobrir parte da trama, solicitou ajuda ao seu compadre Manoel Arão para que fosse até sua residência averiguar a procedência dos fatos com Luis. Feito isso, Manoel Arão soube pelo mesmo que a outra bolsa não estava mais ao poder deste escravo, pois, ao José Martins ir até a casa de Luis, avistou a bolsa que vendera a Matheus, pendurada em um tronco e, reconhecendo-a, solicitou ao negro que lhe entregasse. Em verdade, Matheus pedira Luis que guardasse essa bolsa. Manoel Arão procedeu denunciando os três mandingueiros ao reverendo vigário João Mendes, que posteriormente delatou os suspeitos de portarem bolsas de mandinga e praticarem feitiçaria aos familiares do Santo Ofício, o vigário foi ainda incumbido de montar um extenso sumário composto por 36 testemunhas (todas moradoras da região) que seriam arroladas para depor no caso dos mandingueiros. Para entendermos melhor essa história, precisamos também conhecer um pouco sobre a vila de Jacobina e o Sítio do Riachão, local onde perpassou tais acontecimentos. Uma Breve abordagem sobre a Vila de Jacobina A Vila de Santo Antônio da Jacobina foi criada em 24 de junho de 1722. Tratava-se apenas de uma região com grandes concentrações de terras e sesmarias, seu povoamento se deu inicialmente através da ocupação das terras com gados que, segundo Vieira Filho (2006, p. 41) “[...] com o passar do tempo 3002

Mestranda pelo programa de pós – graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – Campus V. Bolsista da Fundação de Amparo à pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

972 ISSN 2358-4912 foram fundadas fazendas e pequenos centros urbanos que depois foram se transformando em cidades [...]”. A vida religiosa também favoreceu o crescimento e desenvolvimento de Jacobina, visto que a criação de freguesias e comarcas contribuiu para a fundação da Vila de Santo Antônio da Jacobina. As autoridades portuguesas estavam ameaçadas com o crescimento da população negra no Brasil Colonial que, no século XVIII, com o aumento do tráfico interno de escravos movidos pela mineração o número de negros ultrapassava a população branca. A necessidade de converter os negros ao cristianismo foi um dos fatores que contribuiu para a criação do Arcebispado da Bahia em 1676. Com sua instauração, surgiu a necessidade da construção de comarcas e freguesias locais a fim de atender as “necessidades espirituais” da população local aumentando o número de fieis principalmente dentre a população negra. As implantações de comarcas e freguesias eram de suma relevância para a conversão dos negros ao catolicismo, com uma sede, ficaria mais fácil a participação dos negros na vida religiosa da freguesia, pois, estariam eles em maior contato com a igreja,seus princípios e mandamentos. Sobre a criação de novas freguesias no sertão da Bahia, Santos (2008) destaca que:

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[...] ocorreu simultaneamente ao processo de ocupação e exploração do interior da província em meados do século XVII. A descoberta de ouro em Jacobina e Rio de Contas, e a expansão dos currais de gado, afastaram os indígenas das aldeias. Os africanos foram enviados para as fazendas e vilas onde receberam rudimentos de instrução religiosa. (SANTOS, 2008, p.165)

Ainda de acordo com Santos (2008) foram criadas algumas freguesias, contudo, em determinados casos a distância das freguesias para as localidades que não as possuíam chegavam ser de 300 léguas, este era o caso de Jacobina. O crescimento da população de Jacobina incluindo os negros mineradores, sua importância no que se refere à agropecuária extensiva e a distância existente entre a freguesia foram fatores contribuintes para a criação da comarca de Santo Antônio da Jacobina em 1720. Assim, também se deu a criação da primeira vila do Sertão da Bahia. No século XVIII, a pecuária extensiva e a mineração foram as principais atividades da Vila da Jacobina. Acredita-se que muitos dos escravos trazidos para o interior da Bahia estavam ligados às atividades de mineração. Partindo desse pressuposto é possível inferir que os ancestrais dos três negros envolvidos na trama das bolsas de mandinga chegaram a Vila de Santo Antônio da Jacobina para trabalharem como garimpeiros. O escravo Matheus em seu depoimento informou que era garimpeiro. Não há certeza se é mito, mas a explicação aceita para o nome da Vila, segundo Vieira Filho (2006, p.40), reside no início da colonização de Jacobina, por volta do século XVI e XVII. Antes disso, existiam naquele lugar muitos índios Payayas, sendo que “o mais influente destes, era um velho cacique chamado Jacó, casado com dona Bina. Quando os colonizadores chegaram, foram bem recebidos pelo casal”. Assim, a pronúncia do nome do casal por parte dos europeus transformou Jacó e Bina em Jacobina. O arraial de Jacobina passou à Vila em 1722 e em 1880 transformou-se finalmente em cidade. 3003 O Sítio do Riachão, pertencente a Vila de Jacobina, não se tratava de um lugar grandioso, tão pouco desenvolvido, visto que nem Igreja possuía. O roubo das hóstias consagradas pelos mandingueiros ocorreu no tempo de desobriga, momento no qual fora realizada missa. No Sítio do Riachão não havia Igreja e para receber comunhão e ou realizar confissões, os fieis deveriam esperar o período da quaresma. Assim, desabriga é a celebração que ocorre anualmente no período da quaresma que visa garantir aos fieis das localidades que não possuem igreja em sua sede a eucaristia e a prática da confissão. A denúncia das bolsas de mandinga, conforme já mencionada, foi feita ao vigário da paróquia da Vila de Santo Antônio da Jacobina, onde estava localizada a Igreja. Segundo a maioria das testemunhas, Matheus teria furtado uma partícula consagrada na hora da comunhão tirando-a da própria boca e “embrulhando em um pedaço de papel que consigo para isso trazia prevenido” (ANTT. Inq. de Lisboa. Proc. nº 508 fl.15). De acordo com informações contidas nos processos, Matheus teria furtado a partícula consagrada a pedido de José Martins para confecção de bolsas de mandinga. Este

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De acordo com o censo do IBGE realizado no ano de 2010, atualmente Jacobina possui uma estimativa de 79.285 habitantes.

973 ISSN 2358-4912 também era acusado de comercializar tais amuletos, pois, teria vendido uma bolsa para o próprio Matheus, a qual teria sido paga em parte com um cachorro. A notícia sobre as bolsas de mandinga e roubo de partículas consagradas espalhou-se rapidamente pela região por tratar-se de área pouco extensa. Os ouvintes reproduziram a história a partir do que se ouviu dizer pelo Sítio. Durante o depoimento, quando os depoentes eram perguntados como souberam do caso, davam como resposta: “por ouvir dizer ou por ser notório e público na Vila”. (ANTT. Inq. de Lisboa. Proc. nº 508 fl.16). A partir da propagação do referido episódio envolvendo os mandingueiros, a população de Jacobina passou a ter certo temor com relação ao amuleto. Acreditava-se que o amuleto tinha poderes sobrenaturais e assim como, os inquisidores que os mandingueiros tinham pacto com o diabo. As bolsas de mandinga que os réus utilizaram, continham orações (para pedra d’ara e credo às avessas) e elementos católicos, a exemplo da hóstia consagrada, pedra d’ara3004 e sanguinho3005. A bolsa de mandinga consistiu na reinvenção de culturas a partir de contatos estabelecidos com diferentes povos no contexto da escravidão. Assim, a diversidade cultural dos escravizados trazidos de diferentes regiões da África teve uma grande contribuição para que a cultura africana fosse reinventada na colônia, pois tal diversidade permitiu aos africanos incorporar diferentes elementos das mais diversificadas culturas. Foram os escravizados, que vieram do outro lado do Atlântico quem trouxeram para a América portuguesa, suas crenças, sonhos de liberdade, culturas e religiosidades. Puderam ainda estabelecer contato com os diferentes povos africanos encontrados durante essa longa viagem marítima. Assim, “a religião africana vivida pelos escravos negros no Brasil tornou-se diferente da de seus antepassados, mesmo porque não vinham todos os escravos do mesmo local, não pertencendo a uma única cultura”. (Mello e Souza (2009, p, 29). As bolsas de mandinga, estas sinônimo de heterogeneidade cultural, pois, reunia em seu interior elementos de diversas culturas, européia, indígena e africana. Para a Inquisição este amuleto representava muito mais que uma crença religiosa, representava a personificação do demônio. Para Mello e Souza: “Crenças africanas e indígenas viam-se constantemente demonizadas pelo saber erudito, incapaz de dar conta da afeição cada vez mais multifacetada da religiosidade colonial” Mello e Souza (2009, p, 278). O Brasil colonial foi constituído a partir do imaginário europeu, sendo classificado como uma terra demoníaca repleta de pecados e ausência de religião. A figura dos indígenas sem roupas, o politeísmo presente na cultura indígena expressavam fortemente a demonização da colônia. Com a vinda dos africanos, a demonização do Brasil não poderia mais ser explicada através dos indígenas visto que, a partir dos africanos, o demônio se manifestava com maior nitidez. Pois, não mais se tratava se índios sem religião, indecentes e ingênuos, mas de negros feiticeiros, invocadores de demônios, que exerciam práticas típicas de seus países que iriam contra a santa fé católica. Portanto, representavam um perigo para a sociedade clerical. Por tais motivos, os amuletos mágicos utilizados principalmente pelos escravos foram capazes de ocasionar processos inquisitoriais, sendo assim, combatidas pela Inquisição. Nesse sentido, para conter o avanço de práticas pecaminosas e heréticas, a exemplo das bolsas de mandinga a Inquisição portuguesa, mesmo sem ter estabelecido um tribunal na América portuguesa, atuou incisivamente, através da atuação dos agentes inquisitoriais. Que no Brasil contava com uma equipe formada principalmente por quatro segmentos, cada qual incumbido de uma função diferente.Estes agentes eram peças-chave para manter a ordem social e a prática dos costumes tidos como bons perante a sociedade colonial e a metrópole. A equipe era formada pelos Comissários, Familiares, Qualificadores e Notários devidamente qualificados pelo Santo Ofício português. De acordo com Grayce Souza (2009), no século XVIII o Brasil contou com o apoio de 54 comissários, 19 qualificadores, 14 notários e 685 familiares, totalizando 772 oficiais inquisitoriais presentes na America Portuguesa. Os Comissários exerciam a função de assistentes da alta hierarquia inquisitorial, trabalhando em consonância com o escrivão. De acordo com o regimento do Santo Ofício de 1774, para ocupar esse cargo deveriam pertencer ao clero. “Os comissários do S. Ofício serão pessoas eclesiásticas, de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Consiste em um altar móvel, uma espécie de pedra de mármore. Sob ela é celebrada missas e consagrados elementos da eucaristia, tais como as hóstias. 3005 Este é o pano como qual é enxugado o cálice de vinho que representa o sangue de cristo.

974 ISSN 2358-4912 prudência e de virtude conhecidas; e sendo letrados serão preferidos aos mais”. Essa exigência permite inferir que, pelo fato de atuar próximo à hierarquia inquisitorial, seria este um cargo por meio do qual se ouvia e sabia muito acerca dos trâmites dos processos inquisitoriais, o que exigia cautela e discrição sobre as informações que circulavam neste âmbito3006. A figura de uma pessoa eclesiástica transmitiria maior confiança e certeza de que o segredo estaria protegido. Eram subordinados apenas aos inquisidores, ou seja, no Brasil foram à maior autoridade de representação inquisitorial. Eram a eles que se deveriam dirigir os outros oficiais inquisitoriais. Os comissários eram a ponte entre o Brasil e o Santo Ofício português, tinham o papel de manter os inquisidores informados sobre os crimes contra a fé acontecidos na colônia. Podiam autorizar prisões, realizar inquirições, ouvir testemunhas e réus, fazer habilitações e diligências tudo isso com autorização dos inquisidores. Por realizar atribuições de grande relevância, devendo atuar guardando sigilo é que este cargo consistiu em um dos mais criterioso do Santo Ofício. “Esta instituição só poderia ter homens insuspeitos, cuja integridade doutrinária viesse abonada por todas as gerações precedentes”. Siqueira (1978), Deste modo, aqueles que pleiteavam o cargo de comissário deveria passar por uma investigação mais rigorosa e demorada com relação aos outros cargos. Os familiares do Santo Ofício exerceram um papel significativo no controle e fiscalização das práticas contra a santa fé católica. Tinham a função de averiguar a ordem social mantendo os comissários informados sobre os suspeitos e crimes cometidos contra o Santo Ofício. Em localidade onde não existiam comissários, os familiares deveriam informar diretamente aos inquisidores acerca de alguma suspeita de prática herética, bem assim, efetuar prisões por ordem da Santa Inquisição. Embora fosse instauradas investigações nas vidas daqueles que desejassem ingressar em qualquer um dos cargos inquisitoriais, o de Familiar do Santo Ofício foi o que menos rigor exigiu. Para se tornar um Familiar não era necessário ser eclesiástico como exigia o cargo de Comissário, para aquele bastava ser alfabetizado e ter boa conduta, podendo também desempenhar qualquer ocupação na sociedade. Assim, poderiam exercer as profissões de comerciantes, fazendeiros, senhores de engenhos, militares, dentre outros. No entanto, todos deveriam ser católicos. De todos os cargos de oficiais da Santa Inquisição, o de Familiar era o que atuava em contato direto com a sociedade, estava sempre próximo a população local, outrossim, poderiam correr risco de morte no momento de efetuar prisões, por exemplo. Foi este o caso dos Familiares Domingos Gomes e Jerônimo Francisco Pinto responsáveis pela prisão de “nossos” mandingueiros. Sendo que um deles, José Martins, reagiu à prisão. Ao ser informado que estava sendo preso pelo Santo Ofício, José juntamente com seu tio Bernardo ameaçaram de morte os familiares. No ato da prisão bradou o réu que: “Mais fácil era matar os juízes do que consentir levá-lo preso”. (ANTT, Inq. De Lisboa, proc.n.º508 fl.7). Mesmo sendo este o cargo mais perigoso, fora ele que recebera o maior número de solicitação comparada a outros cargos inquisitoriais. Talvez por ser o menos criterioso. Quanto aos Qualificadores, assim como os Comissários, deveriam ser clérigos, egressos de universidades e com reconhecidas qualidades intelectuais, pois suas funções eram vistoriar os livros e analisar seu conteúdo. Assim, entende-se que a função do Qualificador era aprovar e censurar livros, visando, sobretudo, proteger a população de influências pecaminosas capazes de perturbar a ordem e os bons costumes da sociedade católica. Por isso, não era permitida a leitura de livros sagrados de outras religiões, nem livros que falassem sobre astronomia e ciência, dente outros. Os qualificadores atuavam diretamente ligados a Mesa do Tribunal. Eram também incumbências dessa categoria vistoriar as bibliotecas e livrarias averiguando se lá havia exemplares de livros proibidos. Para desempenhar as referenciadas funções exigia-se um elevado grau de intelectualidade. Tornava-se assim um cargo importante e de grande prestigio social. Em relação às incumbências dos Notários, que desempenhavam papel de escrivães, registravam depoimentos e para desempenhar tais funções também deviam ser clérigos. Este cargo, segundo Souza (2009, p.08) “era um dos mais criteriosos do Santo Ofício, assim como a dos comissários e devido à V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Muitos dos depoentes, arrolados pela Inquisição para prestarem depoimentos, mas não eram notificados anteriormente sobre o motivo as aquisição, assim muitos deles não sabiam o motivo pelo qual teriam seus nomes inclusos nas listas de testemunhas inquisitoriais. Nesse sentido, uma das perguntas frequentemente feitas nos interrogatórios consistia em saber se o depoente conhecia o motivo pelo qual havia sido convocado. Por assim ser, era de suma importância a discrição e sigilo por parte daqueles que exerciam cargos no Santo Ofício da Inquisição, a fim de que as informações internas não comprometessem a averiguações, bem como o andamento dos processos.

975 ISSN 2358-4912 importância do cargo, as investigações procedentes para a habilitação costumavam ser mais severas que em outros casos, fazendo diligências em seu lugar de origem e de seus progenitores”. Para Siqueira (1978, p.166). “A presença constante do Notário fazia dele um depositário de uma serie de informações extremamente reservadas, como, por exemplo, o nome das testemunhas que depunham ou o que elas lá contavam, inclusive sobre suas famílias”. O vazamento de alguma informação presente nos depoimentos de testemunhas e confissões de réus poderia comprometera investigação do processo Inquisitorial e até mesmo comprometer a sentença final. Os Notários sabiam de cada passo e palavras proferidas pela mesa, processados e testemunhas, com eles estavam guardados os segredos do Santo Oficio português. Os oficiais do Santo Ofício Português, conforme já mencionado, contribuíram significativamente para como funcionamento da Inquisição na America portuguesa, garantiam a manutenção da fé através de denuncia enviadas ao tribunal da Inquisição em Lisboa. Para auxiliar e guiar seus trabalhos, os agentes da fé contavam com o auxilio de regimentos inquisitoriais, neles continha,informações acerca de suas atribuições, bem como deveriam proceder mediante denuncias, procedimentos com relação a processos e aplicabilidade de sentenças. Com relação às penalidades que deveriam ser aplicadas aos feiticeiros os regimentos do Santo Oficiam de 1640 tinha um livro especial para tratar das penas aplicadas àqueles que usassem de feitiçaria, tais crimes eram tratados no título XIV do livro III, “Dos feiticeiros, sortilégios, adivinhadores, e dos que invocam o demônio, e tem com ele ou usam de arte da astrologia judiciária”. (Regimento do Santo Ofício dos Reinos de Portugal [1640]. Quanto à punição aplicada aos acusados de feitiçaria, o confisco de bens era uma delas e, se o réu negasse o delito e este fosse comprovado, seria excomungado pela Igreja e levado ao auto de fé com corocha de na cabeça com rótulo de feiticeiro. Em caso do réu confessar-se culpado, reconhecendo suas culpas e pedindo perdão, era degredado e poderia ser açoitado, contudo, seria novamente aceito no seio da Igreja.Foi justamente o que acontecera com Matheus, que assim como seus colegas mandingueiros reconheceu suas culpas. Sua sentença foi dada no dia 20 de julho de 1756 na cidade de Évora. O réu foi condenado a açoites em público, degredo3007 para Castro Marim, e abjuração de leve, ou seja, o condenado deveria jurar que permaneceria fiel ao cumprimento dos dogmas e mandamentos da Igreja. Ou outros acusados também foram degredados para outros lugares do império.

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Consistia na deportação ou exílio do réu.

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UM BRACARENSE NA VILA DE SÃO JOÃO DEL REI: A ATUAÇÃO DE FRANCISCO DE LIMA CERQUEIRA NA IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS Patricia Urias Introdução O presente artigo consiste numa abordagem acerca do mestre de obras Francisco de Lima Cerqueira, assim como sobre a sua trajetória profissional na Capitania de Minas Gerais, tendo como enfoque a sua atuação na Vila de São João del-Rei3008, sobretudo na igreja de São Francisco de Assis (FIG. 1). FIG 1 – Igreja de São Francisco de Assis – São João del-Rei

Fonte: Foto da autora, 2012.

Escassas são as informações relativas a este mestre de obras. Diante disso torna-se necessário fazermos algumas indagações que funcionarão como ponto de partida para com isso delinearmos a atuação de Francisco de Lima Cerqueira, na Vila de São João del-Rei. (FIG. 2). FIG. 2 Vila de São João del-Rei

Fonte: Johan Moritz Rugendas, 1824. 3008

Atual cidade de São João Del Rei

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ISSN 2358-4912 Quem foi este homem? Quais os motivos o trouxeram à Capitania de Minas Gerais? Por que este profissional saiu do Arcebispado de Braga considerado um dos centros mais florescentes em artes e ofícios ligado a construções religiosas do período? De fato ele contribuiu de forma positiva para arquitetura mineira? De qual forma se deram as contribuições? Estas são algumas perguntas que consideramos importantes a serem feitas para com a obtenção das possíveis respostas preencher as peças que faltam no quebra cabeça relativo à vida e aos trabalhos realizados por Lima Cerqueira no território de Minas Gerais, principalmente na Serra de São João del-Rei. (FIG. 3) FIG 3 Vista da serra e cidade de São João del-Rei, Minas Gerais

Fonte: Robert Walsh – 1828

Diante das perguntas feitas obtivemos algumas respostas alicerçadas em alguns documentos já publicados sobre Lima Cerqueira. As informações que levantamos sobre ele são que este profissional nasceu em 2 de outubro de 1728 na freguesia de São Mamede da Parada do Monte, termo de Valadares, Comarca de Valença, no Arcebispado de Braga3009. Lima Cerqueira era filho de Antônio Bytes e de Izabel Cerqueira3010. Até o momento são inexistentes os dados que dizem respeito a sua transferência para a Capitania de Minas Gerais, assim como sua atuação nos primeiros anos após a sua chegada. Devido à escassez de informações alicerçadas em pesquisa documental este estudo justifica-se pela necessidade de realizar uma pesquisa fundamentada em fontes primárias para com isso ampliar as pesquisas acerca deste tema. As informações levantadas sobre a sua vida iniciam-se no ano de 1754, quando Lima Cerqueira deu entrada como Irmão na Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto,3011 figurando sete anos depois no Censo dos Ofícios Mecânicos como pedreiro. (MARTINS, 1974, p.175). Importante ressaltar que Lima Cerqueira iniciou-se profissionalmente em Congonhas do Campo, no ano de 1765, permanecendo ali até 1769.3012 Será a partir da década de 1770 que Lima Cerqueira será localizado em Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto, atuando em obras pequenas na igreja de Nossa Senhora do Carmo como nos arcos do coro, pórtico e lavado da sacristia (LOPES, 1942, p. 131– 132), sendo louvado tanto na igreja de Nossa Senhora do Carmo, quanto na igreja de São Francisco de Assis, no ano de 1777, ao lado de seu sócio Tomás de Maia Brito. 3009

O Arcebispado de Braga era uma divisão territorial eclesiástica, tendo a sua origem da Diocese de Braga no século III, com o primeiro Bispo São Pedro de Rates. Após a Reconquista cristã, em 1070, a Arquiodiocese de Braga foi restaurada e o arcebispo teve com o título Metropólita de Braga. Em 1199 o Arcebispado abrangia as dioceses de Porto, Coimbra, e Viseu (em Portugal), e mais cinco territórios da Espanha. 3010 Fonte: Arquivo Distrital de Viana do Castelo – Livro 2º de batismos. Paróquia de Parada do Monte, Concelho de Melgaço, f. 41v, 2º assento – Publicação: RAMALHO, 2002, p. 116. 3011 APAD – Documentos da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. Entrada de Irmãos e profissões, códice 176. Centro de Estudos do Ciclo do Ouro – Casa dos Contos – Ouro Preto. Publicação: MIRANDA, Barroco, 18, 2001, p. 313. 3012 ASSBJM – Livro 1 º de despesas da Irmandade do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, 4 de outubro de 1765 a 1769, f. 6. Publicação: FALCÃO, 1962, p. 86.

979 ISSN 2358-4912 Os seus trabalhos são iniciados nas obras de São Francisco de Assis, em São João del-Rei no ano de 1779, atuando na igreja de São Francisco de Assis3013. Após analisar a literatura existente sobre o seu trabalho nesta igreja percebemos uma tendência em desqualificá-lo por ter empreendido modificações no projeto original de Antônio Francisco Lisboa. Estudiosos como Lúcio Costa (1951) e Germain Bazin (1971) enalteceram o Aleijadinho e desmereceram os trabalhos feitos por Lima Cerqueira na igreja de São Francisco de Assis. Bazin fala o seguinte com relação às alterações feitas por Lima Cerqueira no frontispício da igreja.

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No que se refere ao frontispício, cujo desenho primitivo nos chegou às mãos, podemos julgar-lhe a beleza antes de haver sido desfigurado pelo inútil pathos de Francisco de Lima Cerqueira.

(CERQUEIRA, 1971, p. 138). Mesmo diante da mudança de opinião por parte de Bazin (1983) onde ele passa a considerar a importância que Lima Cerqueira teve no cenário arquitetônico da Capitania de Minas Gerais a postura descrita acima continua sendo perpetuada até a atualidade por alguns historiadores e historiadores da arte. O autor, na tentativa de evidenciar de forma positiva os trabalhos de Lima Cerqueira diz o seguinte: Francisco de Lima Cerqueira é um dos mais importantes arquitetos de Minas Gerais da época do rococó. Trabalhou em diversos monumentos (...) sua maior obra foi a capela dos terceiros franciscanos da mencionada cidade, cujo desenho foi feito pelo Aleijadinho. Ele o modificou muitíssimo, sobretudo no frontispício, após 1779, e o vereador de Mariana cita expressamente a sua colaboração nessa obra. (BAZIN, 1983, p. 211).

Apesar desta nova postura por parte de Bazin (1983) a ideia que permanece até a atualidade é que as contribuições dadas por Lima Cerqueira à arquitetura não foram positivas. Apontamos como uma importante exceção neste universo de estudiosos da arte e da arquitetura colonial a historiadora da Arte Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira (1994), que além de dar a devida importância ao Lima Cerqueira enfatiza a relevância de se estudar a atuação de outros profissionais, que fixaram residência na Capitania de Minas Gerais e que nela trabalharam. E aponta dois importantes profissionais, o próprio Lima Cerqueira e Antônio Pereira de Souza Calheiros (OLIVEIRA, 1994, 13-19) que trabalharam em Minas Gerais introduzindo novas e relevantes soluções arquitetônicas em Minas Gerais. Com esta opinião a autora evidencia quão qualificada e diversa era a mão de obra na capitania de Minas Gerais, onde existiram inúmeros profissionais, além de Aleijadinho que contribuíram sobremaneira para o levantamento de inúmeras edificações no período colonial. Outra contribuição relevante que nos norteará neste estudo é a de André Dangelo (2006), que inicia um novo viés investigativo, para além de Antônio Francisco Lisboa, procurando ressaltar de forma bastante densa, alicerçada em documentos, muitos deles inéditos, a importante passagem de profissionais portugueses pela Capitania de Minas Gerais, ressaltando com o seu estudo as contribuições dadas por cada um deles. E será neste estudo que localizamos também Francisco de Lima Cerqueira. Outro estudo que levaremos em consideração é o de Oyama de Alencar Ramalho (2002), onde o autor traz um importante contributo para a história da arquitetura mineira publicando vários documentos alusivos à vida e a atuação de Lima Cerqueira, como por exemplo, o seu inventário e testamento. Diante deste quadro propomos um artigo acerca deste personagem, pois, conforme ressaltado, a escassez de produções acadêmicas fundamentadas e embasadas em fontes primárias relacionadas a ele é evidente, o que impossibilita ter um conhecimento mais aprofundado sobre o seu trabalho. Para tanto partimos da hipótese de que a atuação de Francisco de Lima Cerqueira na igreja de São Francisco de Assis, diferentemente do que é propalado até então pela literatura especializada, trouxe contribuições à arquitetura da Capitania de Minas Gerais. 3013

Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de São João Del Rei, livro 2º de Termos de Deliberações, f. 113 v. Publicação: ALVARENGA, 1974/1975, p. 60 – 62.

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ISSN 2358-4912 Para atingir o intento descrito a metodologia aplicada a este estudo foi a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. Para a pesquisa bibliográfica foram utilizadas publicações acerca da história da arquitetura e da arte setecentista de Portugal e da Capitania de Minas Gerais, além de bibliografias que versam sobre a vida e atuação de Francisco de Lima Cerqueira, tanto em Portugal, quanto na Capitania de Minas Gerais. Desenvolvimento Conforme ressaltamos anteriormente poucas são as informações acerca do profissional em questão e de acordo com Oliveira (1994) já se faz necessário um estudo acerca do mestre de obras e arquiteto português Francisco Lima Cerqueira e sua atuação no território das Minas Gerais, pois a sua real contribuição ao desenvolvimento da arquitetura colonial rococó ainda não foi avaliada. Francisco de Lima Cerqueira foi tratado por Joaquim José da Silva, o Segundo Vereador de Mariana, como o “hábil artista da igreja franciscana do Rio das Mortes” (SILVA apud BAZIN,1983, p.323). Sendo este um dos raros autores que faz referencia positiva ao trabalho realizado por Lima Cerqueira na igreja de São Francisco de Assis de São João del-Rei. No que tange ao posicionamento de Germain Bazin (1971) acerca da atuação deste mestre de obras e arquiteto na referida igreja podemos ver que é repleto de juízos de valores. Bazin diz que o risco3014 primitivo foi desfigurado (p. 138, p. 1971) ou estragado (p.140, 1971) por Francisco de Lima Cerqueira. Além de afirmar que “as pretensões de Francisco de Lima Cerqueira privaram a humanidade de uma obra-prima”. (BAZIN, p.139, 1971). Bazin (1971) chega a afirmar que havia uma rivalidade entre Francisco de Lima Cerqueira e Aleijadinho residindo nesta contenda o motivo de Lima Cerqueira modificar o projeto inicial, sendo que a justificativa para as modificações empreendidas foram localizada por Alvarenga (1974-1975). Com relação às mudanças no projeto primitivo feito por Antônio Francisco Lisboa, Francisco de Lima Cerqueira se justifica dizendo: “Não que o risco tenha defeitos, porém algumas coisas só quando se fazem se vê a impossibilidade de as por conforme o sentido do emanuense.” 3015 Conforme vimos anteriormente será em seu livro A arquitetura religiosa barroca no Brasil, que Bazin (1983) se referirá a Lima Cerqueira como “um dos mais importantes arquitetos de Minas na época rococó.” (BAZIN, p.211, 1983). Talvez tentando corrigir o seu posicionamento de desqualificar a sua atuação preocupando-se em enaltecer a figura de Antônio Francisco Lisboa, que conforme mencionamos havia feito o risco original. Outros pontos de vistas de fundamental importância que balizarão a pesquisa serão os de Oliveira (1994) e Dangelo (2006). No primeiro estudo a autora afirma que as modificações empreendidas por Lima Cerqueira foram de tal amplitude que o produto final, a igreja já terminada deve ser analisada como uma obra de Lima Cerqueira e não de Antônio Francisco Lisboa, não sendo também comparada ao projeto inicial, como feito até os dias de hoje. Já Dangelo (2006) faz uma análise aprofundada acerca de Francisco de Lima Cerqueira como um homem que assimilou a arquitetura praticada no seu tempo e que conseguiu projetar as assimilações na igreja de São Francisco. A análise de Dangelo é importante por enfocar tanto o ponto de vista histórico, quanto arquitetônico lançando novas luzes para o estudo deste personagem que como foi enfatizado foi relevante para arquitetura do período rococó mineiro. Diante da discussão bibliográfica realizada pretendemos com este artigo: fazermos uma revisão acerca dos estudos que versam sobre a arte e arquitetura do Setecentos tanto em Portugal, quanto em Minas Gerais evidenciando com isso as contribuições sobre o tema. Além de estudar a vida de Francisco de Lima Cerqueira em Portugal, assim como as suas obras, caso tenham sido executadas, 3014

Termo usado no século XVIII para designar o projeto arquitetônico. Cf. 2º Livro de Termos e Deliberações, f. 114 v. Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de São João Del Rei. Termo que se faz a respeito de algumas declarações tendentes ao curso da obra da nova igreja de São Francisco de Assis – São João Del Rei – 1779. Publicação: ALVARENGA, Luís de Melo. Francisco de Lima Cerqueira: o artista e suas obras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del Rei. São João del Rei, v. II, p. 43-71, 1974-1975.

3015

981 ISSN 2358-4912 para poder compará-las com as obras feitas na Capitania de Minas Gerais para o melhor entendimento de seu estilo. Torna-se necessário também estudar a vida de Francisco de Lima Cerqueira e sua atuação em território mineiro, para além de contextualizarmos ampliarmos os estudos acerca deste profissional considerado de relevante importância para a arquitetura do Setecentos mineiro. Além de analisar a obra de São Francisco de Assis, em São João del-Rei realizada por Francisco de Lima Cerqueira à luz da documentação encontrada para evidenciar quais foram às contribuições trazidas por Lima Cerqueira à arquitetura mineira e por último, mas não menos importante romper com as opiniões cristalizadas por parte de certos autores com relação aos profissionais que trabalharam na Capitania de Minas Gerais em ofícios ligados à arte e arquitetura colonial para com isso trazer à tona novos nomes e personagens considerados também de fundamental importância para o cenário construtivo do Setecentos. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais Abordamos neste artigo a atuação do mestre de obras Francisco de Lima Cerqueira, um profissional português que imigrou para a Capitania de Minas Gerais na segunda metade do século XVIII. Para tanto foi necessário partir de algumas perguntas e hipóteses acerca desse profissional que pelo que constatamos muito contribuiu para a arquitetura mineira. A partir de pesquisa documental e bibliográfica pretendemos trazer à tona o maior número possível de informações a respeito desse profissional evidenciando os trabalhos realizados por ele, além de romper com as opiniões cristalizadas e arraigadas no universo historiográfico, evidenciando assim a importância que os mesmos tiveram. Contribuindo também para o desenvolvimento da história da arquitetura do Setecentos mineiro, assim como para a sua renovação e atualização. Referências ALVARENGA, Luís de Melo. Francisco de Lima Cerqueira: o artista e suas obras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. São João del-rei, VII, p. 60 – 62,1974 – 1975. BANDEIRAS, Miguel Sopas de Melo. O espaço urbano de Braga em meados do século XVIII: A cidade reconstruída a partir do Mappa das ruas de Braga e dos índices dos prazos das Casas do Cabido. Revista da Faculdade de Letras – Geografia 1. Série, Vol. IX, Porto, 1993, pp.101-223. BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 2v. BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1971, 391p. DANGELO, André Guilherme Dornelles; ROMEIRO, Adriana; Universidade Federal de Minas Gerais. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres-deobras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas: Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006, 4v. FALCÃO, Edgard de Cerqueira. A basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo. [S.l.]: Brasiliensia Documenta, 1962, v.III, 134 p. MIRANDA, Selma Melo. Arquitetura barroca: análise e linhas prospectivas. Revista Barroco. Belo Horizonte, nº 18, p. 293-322, 1997-2000. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó na arquitetura colonial mineira. Revista IAC. Ouro Preto,v.2, nº 1, p. 13-19, dez. 1994. RAMALHO, Oyama de Alencar. A Rasura. Francisco de Lima Cerqueira e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ainda... São João del-Rei, 2002, 190 p.

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OS COMPORTAMENTOS À MARGEM DA LEI: A ESFERA FAZENDÁRIA NO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO NO SÉCULO XVIII Paula Andrea Dombkowitsch Arpini 3016 Introdução O funcionário que assumia o compromisso de exercer determinado ofício, obtinha preeminência na sociedade de ordens existente, constituindo-se um elemento de distinção e até mesmo de enobrecimento. Nesse sentido, a concepção patrimonialista do Estado acarretou, no âmbito jurídico, a possibilidade de doação ou venda dos cargos públicos. Tratando-se de uma sociedade estamental, de ordens, o monarca distribuía não apenas ofícios, mas mercês, honras e privilégios. O patrimonialismo estabelecia-se também no uso privado da função pública, no entendimento de que o cargo, sendo doado ou vendido pelo monarca, tornava-se objeto de propriedade, com direto jurídico sobre suas funções. Sendo um benefício, oneroso ou gratuito, fruto de uma concessão régia3017, os cargos públicos eram diversos e com diferentes atribuições. Antes das reformas pombalinas, encontramos, no caso do Rio Grande de São Pedro, uma ausência de estratégia administrativa clara, resultando em uma improvisação da administração diante das circunstâncias da capitania. Para além disso, a própria estrutura administrativa colonial, com a distância interna das diversas capitanias e a distância no ultramar da metrópole conferiam ao funcionário régio uma certa autonomia. Os ofícios compreendiam cargos remunerados (com emolumentos e/ou ordenados), e cargos em propriedades. Ambos os casos eram obtidos através de doação/ mercê ou por meio da venalidade, Da mesma forma, existiam as chamadas funções arrendadas ou serventias, na qual se fazia a arrematação de contratos ou cobranças de algum título ou bem. Nas serventias havia a arrematação por meio de algum valor estipulado, geralmente pelo prazo de três anos. Os ofícios fazendários eram remunerados, através de emolumentos e ordenados, obtidos geralmente através de uma provisão régia. Havia, da mesma forma, um regimento no qual eram explicitados as competências e os poderes específicos, orientando a atuação no exercício do cargo. Evidentemente, não era qualquer indivíduo que ocupava a esfera da fazenda. De uma maneira geral, assim como em outros cargos públicos, eram homens, católicos, não possuidores de sangue infecto (descendentes de muçulmanos, judeus ou negros), alfabetizados e, na maioria das vezes, portugueses. Não era necessário uma formação específica ou a obtenção formal de um diploma para os cargos mais altos, como provedor, escrivão e tesoureiro. Entretanto, era preciso uma determinada habilidade administrativa e conhecimentos em finanças, além de “zelo” ao erário e “limpeza de mãos”. Fazendo uma breve comparação com a América hispânica3018, na qual temos como herança as ordenações filipinas, encontramos alguns elementos comuns no que concerne a leis e regimentos na conduta desses oficiais da fazenda. Para evitar um considerável poder nas mãos desses homens com suas consequentes influências locais, o monarca proibiu vínculos pessoais, laços de amizade ou de matrimônio entre os membros da burocracia. Além disso, não permitiu o acúmulo do cargo público, tendo em vista que isso poderia prejudicar o desempenho de sua função na instituição fazendária, seja no campo das influências políticas, seja na eficácia de sua administração. Os membros da Real Fazenda, da mesma forma, não poderiam possuir negócios, já que lidavam com o erário e isso poderia lhe trazer algum benefício pessoal. Evidentemente, na prática, as coisas não aconteciam assim, e conforme mostraremos neste trabalho, diversos foram os vínculos e laços entre os diferentes agentes fazendários. 3016

Mestranda do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista do Programa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orientador professor Dr. Fábio Kühn E-mail: [email protected]. 3017 Não era apenas o monarca que concedia os ofícios, poderiam ser também seus agentes delegados, como vicereis e governadores. 3018 ANDRIEN, Kenneth J.. La autoridad del rey y la venta de cargos fiscales. Crisis y decadencia: el virreinato del Perú en el siglo XVII. Lima, BCRP; IEP, 2011, p.142.

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ISSN 2358-4912 A Venalidade dos cargos Durante muitos anos, os ofícios administrativos da Coroa portuguesa foram vendidos e comprados, em uma lógica de que os cargos funcionavam como parte integrante de bens patrimoniais, podendo ser passíveis de herança ou doação. As práticas que envolviam a venalidade se traduziam de diversas formas. Uma das maneiras era através do recolhimento da terça parte da renda anual de um ofício servido por um serventuário (a pessoa que não possuía o ofício em propriedade). Através de decretos posteriores, a venalidade também surgia no chamado donativo, geralmente em cargos trienais e nem sempre subalternos. A venda de ofícios, da mesma fora, poderia ser resultante de uma renúncia, de um indivíduo possuidor de um hábito ou serviço, que desejava vender ou deixar para alguém3019. Assim como na alienação dos ofícios, a venalidade de um hábito, por exemplo, ocorria através da renúncia, devidamente autorizada pelo monarca, para então obter a sua validação. A renúncia, desta forma, se equiparava à venda e abrangia um conjunto imenso de estratégias e negociações, legitimadas pelo rei, que, muitas vezes estava imerso nelas. Nesta perspectiva, podemos pensar que a mercê não era apenas um elemento de distinção daquela sociedade, mas também um cabedal, ao sabor da venda ou da troca. Para Mousnier3020 existia a chamada venalidade pública e a privada. A venalidade pública se traduzia quando o monarca vendia ofícios, ou em função de alguma crise no Tesouro Real ao invés de remuneração, doa a alguém um cargo público na perspectiva desse indivíduo sentir-se gratificado com o benefício, podendo doar ou vender para outrem. Já a venalidade privada consistia quando um proprietário de ofício recebia alguma remuneração ou objeto de mesmo valor para renunciar ao seu cargo em favor de quem lhe pagou pelo referido cargo venal. Nesse sentido, a venalidade dos cargos foi uma prática muito comum, existente nos trópicos. Na América hispânica, teremos a venalidade como solução para os apuros financeiros da instituição fazendária, que desde o início do século XVIII passava por uma crise fiscal3021. Algumas críticas foram assinaladas pelo Conselho das Índias, tendo em vista que a venalidade admitia que pessoas não qualificadas ou corruptas conseguissem importantes postos3022. Os conselheiros colocavam que embora o monarca estivesse em seu direito na venda dos cargos, a venalidade permitia que pessoas desonestas e ineptas ocupassem funções régias e, consequentemente, prejudicavam a eficiência do tesouro real3023. Nesse sentido, a venalidade contribuiria para um processo de enfraquecimento ou deformidade do Estado. Segundo Andrien3024, a venalidade na América hispânica produziu a decadência do poder real frente às fortes conexões locais que os oficiais venais estabeleceram. Portanto, a burocracia régia foi duramente modificada em sua estrutura em função do tráfico de influências e da corrupção estabelecida pela venalidade dos cargos fazendários. Na América Portuguesa, apenas o monarca tinha a autorização de vender ofícios. Isso se evidencia pela própria política de mercês, pois um servidor não estava apto a vender um ofício do qual não tinha 3019

A renúncia se fazia, geralmente entre pessoas com grau de parentesco. Poderia servir como um dote ou até mesmo como um meio de transferir aos herdeiros o patrimônio dos ofícios. 3020 Apud SILVA, Francisco Ribeiro da. Venalidade e Hereditariedade dos Ofícios Públicos em Portugal nos séculos XVI e XVII : Alguns Aspectos. Artigo apresentado no III Encontro de Historiadores portugueses e soviéticos, realizado em Leningrado, 1998. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6450.pdf . Acesso em: 21 de março de 2014, p. 204. 3021 Segundo Castillo, a crise fiscal da Coroa Espanhola teve início em função do custoso aparato militar, com o recrutamento de soldados na Guerra da Itália. CASTILLO, Francisco Andújar. El sonido del dinero. Monarquia, ejército y venalidade em la España del siglo XVIII. Marcial Pons História, 2004, p. 176. 3022 ANDRIEN, 2011, p. 146. 3023 Segundo Gallo com intuito de minimizar a imoralidade que estava ocorrendo nos trópicos em função das vendas dos ofícios, em 1758, através de carta régia, D. José envia ao Brasil, Antônio de Azevedo Coutinho, membro do Conselho Ultramarino, para averiguar as arrematações e os indivíduos ocupantes dos cargos venais, que por sua vez, deveriam ser pessoas dignas. GALLO, Alberto. La venalidade de ofícios públicos em Brasil durante ell siglo XVIII. In: BELLINGERI, Marco (coord). Dinámicas de Antiguo Régimen y orden constitucional: representación, justicia y administración em iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Torino: otto Editore, 2000, p. 98. 3024 ANDRIEN, op. Cit., p. 165.

984 ISSN 2358-4912 posse, apenas usufruía e administrava a partir de um benefício régio. Existente desde o século XVII, a prática da venalidade no império português foi diversas vezes criticada em uma sociedade onde a economia da mercê seduzia servidores. Ao mesmo tempo, havia a ideia de que comprar a honra destruía o esforço dos vassalos de servirem com zelo e valor à res pública3025. Contudo, a venalidade, desta forma, entrava em conflito com a ideia de aptidão e competência profissional na lógica formal de um funcionário da administração portuguesa, que deveria ser letrado, honesto e estar em conformidade com as tradições e costumes de status, sangue, honra e riqueza. Para além disso, os arrendamentos abriam um campo de conflito na medida em que despojava os indivíduos com ofícios maiores de nomear oficiais subalternos, resultando em perda de prestígio e de poder3026. Fenômeno que abarcava todos os níveis sociais, a venalidade permeava os que tinham pretensão de ascensão, já que dentro da política de mercês, a via mais comum de conseguir-se um hábito ou honra era através dos serviços prestados. Desta forma, quem não conseguia seus intentos através da carreira, recorria à estratégia da compra. A prática da venalidade consistia basicamente na venda de cargos, serventias, tenças3027 e hábitos. Verifica-se, muitas vezes, que ao ganhar determinado posto, o dinheiro e a influência política tornaram-se mais importantes que a capacidade e experiência do indivíduo. Depois de efetuada a compra, o funcionário venal deveria requerer diante da Mesa de Consciência, para ser aprovado. Se requerido, podia decorar-se com o hábito (por exemplo), se indeferido, permanecia titular daquela mercê sem a efetivar3028. Uma característica resultante desse mercado de empregos3029 foi o surgimento de mediadores, que aqui chamaremos de burocratas de ofícios. Em alguns casos, a venda de hábitos servia para saldar dívidas, cujos credores podiam ser indivíduos que mediavam a transação comercial3030. Para além disso, os mediadores eram, em sua maioria, membros da burocracia estatal que frequentavam esses espaços da administração, tendo acesso a venda e compra de empregos. Assim, esses homens apropriaram-se da venda desses cargos em nome d’El Rei, e em função disso, estabeleceram estratégias de negociação que transpassaram o âmbito público, ressignificando-se em relações interpessoais, a partir de influências e laços políticos, alimentando interesses privados e rendimentos, constantes no exercício da administração colonial. Isso se traduz no que Manuel Hespanha chama de funcionamento social das instituições, no qual teremos a combinação de interesses sociais e administrativos, diante das necessidades de governabilidade nos trópicos. Nessa perspectiva, embora saibamos que era proibida a venda de cargos fazendários, visto que eram cargos que representavam, recolhiam e organizavam o fluxo das receitas e as despesas da Coroa Portuguesa, a venalidade se configurou na esfera da Fazenda. Apesar de ser uma prática ilegal, foi tolerada e incorporada pela própria Coroa, a partir de um vazio jurídico que se abatia diante dessas práticas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Já as Ordenações Filipinas, na sequência de doutrina contida nas Manuelitas, proíbem que os Oficiais da Justiça e da Fazenda arrendassem seus cargos ou neles se fizessem substituir, cominando com penas severas os infratores. Tais penas, em última análise, compreendiam a perda pura e simples do cargo, bem como a responsabilização civil pelos danos causados a terceiros por 3031 substitutos incompetentes .

Como na América Hispânica, os cargos fazendários, assim como os da magistratura, eram cargos cobiçados, com grandes oportunidades de negociação. O cargo de provedor, por exemplo, era disputado na medida em que abarcava a designação de ofícios subalternos da fazenda. Já os cargos subalternos aos de provedor, como escrivães, tesoureiros, almoxarifes e meirinhos, poderiam ser ótimas oportunidades de arremate. Ainda que os cargos de tesoureiro e almoxarife fossem cargos 3025

OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Tese de doutorado. 2000, p. 746. 3026 GALLO, 2000, p. 121. 3027 Segundo o dicionário BLUTEAU (2000), tença é uma renda, certa de forma de dinheiro, que se faz a si mesmo, quando faz renúncia dos mais bens que possui, ou que o Príncipe, ou outra pessoa assinala a alguém em uma ou mais vidas, em prêmio de algum serviço, ou por qualquer outro motivo. 3028 OLIVAL, 2003, p. 747. 3029 CASTILLO, 2004, p. 181. 3030 OLIVAL, op. Cit., p. 762. 3031 SILVA, 1998, p. 206.

985 ISSN 2358-4912 indicados pela Câmara, diante da generalização dos arrendamentos, as designações de muitos ofícios da Fazenda Real foram desarticuladas3032. Desta forma, diante de uma crise em relação às finanças públicas, Dom João V vendeu importantes ofícios da Real Fazenda, como o cargo de Provedor da Casa da Moeda e Provedor da Fazenda da Capitania do Rio de Janeiro3033. Contudo, é interessante colocarmos que a venalidade, de acordo com o lugar e os círculos políticos existentes, pode ser considerada uma prática em movimento. Nesse sentido, podemos verificar que os arremates de serventuários na colônia brasileira aconteciam, muitas vezes, através de anúncios, em sistema de pregões, fiscalizados pelo Conselho Ultramarino. O pagamento do donativo se fazia nas provedorias das fazendas reais de cada capitania, onde deveria ser registrado o provimento concedido em Lisboa. A venalidade tornou-se um mercado tão complexo que, em alguns casos, cerceava-se de especuladores que ofereciam donativos altíssimos, apenas para ganharem o leilão, sem efetivamente pagá-los. Esses sujeitos então recebiam a provisão em Lisboa, por terem oferecido a melhor oferta na “licitação”, e, ao chegarem ao Brasil não iam à provedoria da fazenda registrá-la e efetivar o referido pagamento. Entretanto, Gallo coloca que essas irregularidades somente poderiam ocorrer com a complacência dos membros da fazenda, bem como a conivência de governadores e de alguns ministros do Conselho Ultramarino. Isso implicou em muitas provisões interinas, ou seja, os governadores da capitania, dentro de seu círculo de relações, proviam funcionários para os cargos, que tornavam-se serventuários interinos sem nenhuma provisão onerosa e registrada na Provedoria da Fazenda. Esses serventuários, que se inseriam a partir da brecha da venalidade, mesmo não pagando os donativos dos respectivos cargos, permaneciam, anos após anos em suas funções. Era uma maneira de alguns grupos políticos se protegerem diante da possibilidade de inserção de outros indivíduos que não faziam parte de seus círculos de relações. Nos capítulos seguintes da dissertação, trabalharemos alguns casos de provedores da capitania do Rio Grande de São Pedro em que podemos apontar a possibilidade da prática da venalidade ter ocorrido. Desta forma, verificamos que o benefício de empregos, ou seja, a venalidade teve entre seus resultados o aumento expressivo da prática da corrupção, precisamente pelas condições as quais se efetuou. Os ofícios públicos se converteram em uma espécie de mercadoria, que implicava em uma maior mobilidade social, mediante a ascensão, muitas vezes, de indivíduos de origens mais modestas. Permitiu, da mesma forma, a solidificação de grupos que dispunham de meios de comprar e controlar determinados cargos, consolidando assim seus poderes mediante a venda de ofícios vendidos e renunciáveis. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A Ilegalidade Tolerada Para além da venalidade, o trabalho também se propõe a fazer uma análise dos comportamentos à margem da lei, no entendimento da prática da corrupção nesse contexto histórico. Desta forma, o ideal de funcionário público era o indivíduo imparcial, leal, incorruptível, que dedicava-se por completo ao bem comum, à serviço de sua Coroa e com zelo pela coisa pública. Entretanto, sabemos que muitas práticas foram toleradas pela Coroa Portuguesa, embora fossem proibidas. Ao analisarmos a bibliografia sobre as práticas ilegais na América Ibérica, encontramos o trabalho de Horst Pietschmann3034 que tem como pressuposto que a corrupção resulta de um processo de constante tensão entre o Estado, a burocracia e a sociedade colonial. O autor também aponta que, por ser um quadro sistêmico, a transgressão das normas não era praticada apenas pelos funcionários régios, integrantes da burocracia estatal, mas também pela própria sociedade. O autor afirma que em muitos casos da América Hispânica, a corrupção não advinha dos funcionários públicos, mas das próprias práticas sociais, assinalando a falta de espírito cívico dos transgressores que, ao praticarem atos ilícitos, atentavam à moral pública e cristã.

3032

GALLO, 2000, p. 123. Ibdem, p. 105. 3034 PIETSCHMANN, Horst. Burocracia y corrupción em Hispanoamérica colonial: uma aproximación tentativa. Nova Americana. n. 5. 1982. 3033

986 ISSN 2358-4912 A corrupção tornava-se assim algo alocado na esfera colonial, como parte integrante de uma mentalidade tradicional dos beneficiários com ofícios públicos3035. Segundo a definição de Pietschmann, corrupção significa a transgressão dos preceitos legais e normativos com fins próprios ou de grupo. Diante da impossibilidade de lutar contra esses atos ilícitos, a Coroa acabava por permitir práticas como a venalidade dos ofícios, que era aceitável, desde que seguisse determinados preceitos legais. O autor ainda coloca que o preço do cargo vendido, em alguns casos, estava diretamente ligado com a prática da corrupção, já que o emolumento que o funcionário poderia receber pelo cargo, durante todo o período de trabalho prestado, muitas vezes não chegava ao valor estipulado da venda do ofício. Ou seja, o ofício, em si, não gerava tanto emolumento, mas a possibilidade de ganhos materiais e/ou simbólicos a partir dessas práticas corruptas fazia com que o cargo fosse disputado. Já na década de 1990, temos o trabalho de Eduardo Saguier3036 com a ideia de que a corrupção na América Hispânica seria um mecanismo de “equilíbrio de forças”, entre o Estado espanhol e a elite crioula. O autor coloca que as reformas bourbônicas condicionaram uma pressão na sociedade colonial, gerando a corrupção administrativa, que seria uma espécie de “válvula de escape”, já que essa corrupção fazia parte consubstancial do poder da Coroa Espanhola na América. Preocupado com o conceito de corrupção ser utilizado no contexto histórico do Antigo Regime, a fim de evitar anacronismos, Eduardo Torres Arancivia3037 coloca que é necessário primeiramente explicar o que se entende pelo fenômeno da corrupção antes de utilizá-lo nesse período, definindo teoricamente dentro de um marco conceitual apropriado. Para tanto, Torres Arancivia faz uma breve discussão historiográfica do conceito de corrupção na atualidade para depois então analisar esse fenômeno nos termos da cultura política de Antigo Regime. Desta forma, o autor expõe que a corrupção não pode se basear apenas na transgressão da lei, em uma perspectiva contemporânea, tendo em vista que muitas práticas permeavam naturalmente as relações sociais de Antigo Regime. Assim, a lei não seria a única fonte de direito, já que este se traduzia nos costumes, na tradição, na cultura e nos privilégios locais. A corrupção no setecentos, desta maneira, não pode ser pensada apenas como atos ilícitos, mas como algo transversal, constituinte do sistema da monarquia corporativa. A partir disso, uma das questões que se torna interessante quando discutimos o fenômeno da corrupção no Antigo Regime é a ideia de ordem social, já exposta nesse trabalho nas proposições de Manuel Hespanha. O monarca, cabeça do corpo político, exerce seu poder em nome do bem comum, no exercício da justiça e da ordem. Centro do patrimonialismo, na extensão da casa e da família, o monarca repartia com seus súditos seu poder, no desdobramento de ofícios e cargos políticos, seja através de mercês régias, honras, privilégios ou venalidade. Os patronados, clientelismos e favoritismos foram tolerados e estavam em harmonia social com a política de mercês.

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(...) la conclusión de que la corrupción política virreinal tenía que ver con las desviaciones de lo que se entendía debía ser el buen gobierno y la justicia del Monarca hacia sus súbditos. De esta manera, la noción de corrupción política estaba relacionada directamente a la de desequilibrio del 3038 poder .

A corrupção seria então a resposta à má conduta imediata do Estado em detrimento da justiça real e divina. Para o autor a corrupção estaria no Corpo-Político-Místico centrado na figura do monarca, sempre que ocorresse o desequilíbrio de poder. Assim, desequilíbrio, justiça desvirtuada e mal governo em detrimento ao bem comum seria um campo fértil para a corrupção. O autor então conclui que para a existência da corrupção, seria necessário a confluência de três ações: a desobediência da lei, o desequilíbrio de forças do Estado e um grupo ou indivíduo da sociedade, apelando aos requisitos anteriores, praticar uma conduta corrupta porque foi afetado em seus interesses como súditos reais. 3035

PIETSCHMANN , 1982, p. 13. SAGUIER, Eduardo R. La corrupción administrativa como mecanismo de acumulación y engendrador de una burguesía comercial local. Anuario de Estudios Americanos. Sevilla. 1989. 3037 ARANCIVIA, Eduardo Torres. El Problema Historiográfico De La Corrupción En El Antiguo Régimen. Una Tentativa De Solución. Pontificia Universidad Católica del Perú 2005. 3038 ARANCIVIA, 2005, p. 19. 3036

987 ISSN 2358-4912 Alinhando essas proposições, temos o trabalho de Macarena Perusset3039, que coloca que as práticas políticas desses homens estavam unidas por estratégias de grupos, que atuavam em função de preservar e legitimar seus privilégios, benefícios e influências, além de sua capacidade de ação e por isso, de poder. Portanto, compreender o fenômeno da corrupção não significa apenas entendê-lo como uma simples transgressão de comportamento pré-estabelecido pela lei, mas compreendê-lo em uma sociedade de Antigo Regime3040. Segundo Perusset3041:

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Evidentemente, uma prática é ilegal quando a mesma transgride a lei que a regula, quando não se respeita o que a mesma proíbe. Mas uma prática ilegal não necessariamente implica a noção de corrupção. Como se desprende das categorias anteriores, uma prática corrupta principalmente se refere ao mau uso ou o mau desempenho de certas práticas. Aqui começam a operar valores morais e, geralmente um comportamento corrupto resulta em um prejuízo ao bem comum. Então, se deixamos de lado nossos valores pessoais, podemos considerar que aquilo que comumente se considera como uma prática corrupta é simplesmente uma prática ilegal.

Considerações Finais O que nos propomos a discutir até aqui foi uma maneira de ilustrarmos os comportamentos à margem da lei da burocracia colonial, fazendo, para isso, uma breve comparação com a América Hispânica. Perceber as atitudes desses administradores, suas negociações e seus limites no exercício de seu poder nos fazem pensar quão comum eram essas práticas, mesmo estando em uma restrita legalidade3042. Buscaremos mais adiante, a partir das biografias coletivas, analisar esses comportamentos duvidosos em sua ética e moral, embora comuns, já que podemos propor os limites da patronagem e da corrupção. Podemos também, a partir disso, verificar os interesses da Coroa Portuguesa em preocupar-se com o desempenho desses agentes em suas funções, nos rendimentos da fazenda, mesmo que para isso, seus fins tenham sido a transgressão do tolerado. Desta forma, nesse contexto, o desempenho de um cargo público foi utilizado como um patrimônio pessoal, que obtinha através disso, benefícios ilícitos. A função pública se traduziu na inversão privada, com a busca por parte do funcionário régio de privilégios, rede de influências e de poder3043. Por não termos nesse período uma distinção clara e eficiente entre o interesse público e interesse privado, a política atravessava as relações sociais desses personagens e, portanto, a ação política não surgia como uma atividade distinta da ação social3044. Nesse sentido, encontramos na provedoria da Fazenda Real uma instituição permeada por práticas ditas ilegais, como a venalidade dos cargos, favoritismos, a abertura de devassas para fins próprios e pessoais, séquitos e formação de bandos, além de usufruto de bens públicos; práticas estas que têm sua própria lógica de existência em redes de poder e que são legitimadas pela monarquia corporativa em uma concepção de ilegalidade tolerada. Referências ANDRIEN, Kenneth J.. La autoridad del rey y la venta de cargos fiscales. Crisis y decadencia: el virreinato del Perú en el siglo XVII. Lima, BCRP; IEP, 2011. ARANCIVIA, Eduardo Torres. El Problema Historiográfico De La Corrupción En El Antiguo Régimen. Una Tentativa De Solución. Pontificia Universidad Católica del Perú 2005. 3039

PERUSSET, Macarena. Contrabando y sociedade en el Río de la Plata colonial. 1 ed. Buenos Aires: Dunken, 2006. “O ordenamento jurídico-político do Antigo Regime deixava amplas margens e interstícios fora do texto escrito da legislação e nesses espaços foram inseridos costumes e práticas que preenchiam os vazios legais”. Ibdem, p. 120. 3041 Ibdem, p. 128. 3042 MARTÍNEZ, Miguel Molina. Eficacia política, ética y corrupción em el Gobierno de Guayaquil (1779-1790). Revista de Índias. Vol. LXXI, nº 252. 2011, p. 387. 3043 Ibdem, p. 388. 3044 PERUSSET, op. cit. p. 115. 3040

988 ISSN 2358-4912 BLUTEAU. Rafael. Vocabulário portugues e latino (1712-1721). Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Cultura, 2000).(CD ROOM). CASTILLO, Francisco Andújar. El sonido del dinero. Monarquia, ejército y venalidade em la España del siglo XVIII. Marcial Pons História, 2004. GALLO, Alberto. La venalidade de ofícios públicos em Brasil durante ell siglo XVIII. In: BELLINGERI, Marco (coord). Dinámicas de Antiguo Régimen y orden constitucional: representación, justicia y administración em iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Torino: otto Editore, 2000. MARTÍNEZ, Miguel Molina. Eficacia política, ética y corrupción em el Gobierno de Guayaquil (17791790). Revista de Índias. Vol. LXXI, nº 252. 2011. OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (16411789). Lisboa: Tese de doutorado. 2000. PIETSCHMANN, Horst. Burocracia y corrupción em Hispanoamérica colonial: uma aproximación tentativa. Nova Americana. n. 5. 1982. SAGUIER, Eduardo R. La corrupción administrativa como mecanismo de acumulación y engendrador de una burguesía comercial local. Anuario de Estudios Americanos. Sevilla. 1989. SILVA, Francisco Ribeiro da. Venalidade e Hereditariedade dos Ofícios Públicos em Portugal nos séculos XVI e XVII : Alguns Aspectos. Artigo apresentado no III Encontro de Historiadores portugueses e soviéticos, realizado em Leningrado, 1998. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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O COTIDIANO NA FROTA ESPANHOLA COMANDADA POR D. NICOLÁS GERALDÍN (1737) Paulo César Possamai3045 Fundada em 1680, atacada e destruída no mesmo ano; reconstruída em 1682 e abandonada ao inimigo em 1705, a Colônia do Sacramento foi novamente reconstruída em 1716. Em 1735, o alferes Silvestre Ferreira da Silva escrevia que Sacramento tinha 327 casas, térreas na sua maioria, distribuídas ao longo de dezoito ruas, dezesseis travessas e quatro praças. O mesmo calculou a população em duas mil e seiscentas pessoas, entre as quais estavam incluídos os efetivos da guarnição. No interior da fortaleza, situavam-se a igreja paroquial, a casa do governador, o hospital, a residência dos franciscanos, a casa da artilharia, os quartéis e o corpo da guarda principal.3046 A prosperidade dos habitantes da Colônia do Sacramento preocupava a Coroa espanhola, lesada pelo intenso contrabando ali realizado, enquanto os colonos espanhóis e os índios das missões conviviam a contragosto com a concorrência portuguesa na exploração do gado selvagem existente na Banda Oriental. A tensão permanente, alimentada pelos frequentes conflitos com os espanhóis e indígenas na campanha, chegaria ao auge em outubro de 1735, quando as tropas castelhanas apareceram em frente aos muros de Sacramento, iniciando um sítio que duraria dois longos anos até que a paz voltasse às margens do Rio da Prata, em setembro de 1737. O início das hostilidades no Prata foi a consequência de uma série de tensões que na Europa e na América opunham os interesses dos espanhóis ao dos portugueses, cujo pretexto para iniciá-lo foi um pequeno incidente diplomático ocorrido em Madri.3047 Em 18 de abril de 1735, o ministro D. José Patiño3048 comunicou ao governador de Buenos Aires, D. Miguel de Salcedo, que o rei resolveu “que sin esperar a que formalmente se declare la guerra con los Portugueses, y solo en virtud de esta orden, se sorprenda, tome y ataque la ciudad y Colonia del Sacramento”.3049 Na campanha, o bloqueio hispano-indígena foi estreitando aos poucos os movimentos dos portugueses e a tensão cotidiana degenerou em pânico em outubro, quando um destacamento espanhol avançou sobre os arredores de Colônia, destruindo as quintas dos povoadores e pondo em retirada a cavalaria portuguesa.3050 Em 6 de novembro iniciou-se também o bloqueio naval, quando ancorou em frente ao porto de Colônia a nau de registro São Bruno, equipada com quarenta canhões. Como reforço, vinha acompanhada de sete lanchas. O governador de Sacramento, Antônio Pedro de Vasconcelos, então ordenou que se equipasse com a infantaria uma galera de dezoito peças para defender a entrada do porto. No dia 10 os espanhóis desembarcaram na ilha de São Gabriel, onde deram início a obras de

3045

Doutor em História Social pela USP e professor de História Moderna na UFPEL. Bolsista do programa de Pós Doutrado Sênior da CAPES na Universidad Nacional de La Plata, República Argentina. Agradeço o apoio da Fundación Carolina, que possibilitou minha estadia em Sevilha, onde pesquisei no Archivo General de Indias boa parte da documentação que serviu de base à elaboração deste texto. 3046 SYLVA, Silvestre Ferreira da. Relação do Sítio da Nova Colônia do Sacramento. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 6171. 3047 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950, parte I, tomo II, pp. 59-63. 3048 “José Patiño se considera el primero ministro de Felipe V entre 1726 y 1736. En primer lugar centralizaba la mayor parte de la política económica. Como secretario de Marina e Indias y de Hacienda, por sus manos pasaba la dirección de la política naval, del comercio ultramarino y del sistema de impuestos”. MOLAS, Pere. Los gobernantes de la España Moderna. Madrid: Actas, 2008, p. 239. 3049 Carta de D. José Patiño a Salcedo, 18/04/1735. In: CORREA LUNA (Org.). Campaña del Brasil. Buenos Aires: Archivo General de la Nación, vol. I, 1931, p. 505. 3050 “Sistema entre un Portuguez y un jenobes dentro de la colonia del Sacramiento…” Archivo Regional de Colonia. Reg. 217, 38, T5, doc. 4, f. 35-36.

990 ISSN 2358-4912 fortificação. Seis dias depois chegaram novos reforços na forma de outra nau de registro e mais três lanchas.3051 De 28 de novembro até 9 de dezembro de 1735 espanhóis bombardearam a Colônia do Sacramento causando “horroroso estrago nas propriedades da povoação” segundo o alferes Silvestre Ferreira da Silva, um dos cronistas do cerco.3052 O bombardeio abriu uma brecha de duzentos palmos na muralha, e mesmo que ela fosse constantemente reparada pelos defensores durante a noite, o governador de Buenos Aires exigiu a rendição da praça.3053 Em 19 de dezembro, sob a ordem de Vasconcelos, o inglês naturalizado português e radicado em Colônia, Guilherme Kelly, conseguiu escapar do bloqueio espanhol a bordo do bergantim Paloma Real. Aproveitando-se da escuridão da noite navegou em direção ao Rio de Janeiro com uma carta do governador, reportando a difícil situação em que se encontrava a Colônia do Sacramento.3054 A primeira expedição de socorro, sob o comando do sargento-mor Tomás Gomes da Silva, deixou o Rio em 15 de dezembro de 1735. Compunha-se de seis embarcações e levava trezentos e sessenta marinheiros, duzentos e cinquenta infantes, quarenta e dois Dragões das tropas de Minas Gerais e trinta e cinco artilheiros. Ao lado dos militares seguiam ainda oitenta e seis prisioneiros e vinte e cinco índios.3055 A chegada da primeira expedição de socorro garantiu a supremacia naval aos portugueses, ocasionando a retirada do governador de Buenos Aires, que levou consigo a infantaria e a cavalaria, deixando quinhentos cavaleiros no campo de bloqueio a fim de impedir a saída dos portugueses do recinto fortificado.3056 D. Miguel de Salcedo também mandou evacuar a ilha de São Gabriel, a qual foi imediatamente ocupada pelos portugueses, que ali construíram uma bateria de seis canhões e defesas de faxina e terra para a defesa da guarnição.3057 Entretanto, novos reforços navais estavam por chegar. Na Bahia, o vice-rei tratou de organizar uma expedição de socorro que saiu de Salvador, a bordo de dois navios, em 31 de dezembro de 1735. Compunha-se de um destacamento de duzentos soldados, retirados dos dois Terços que guarneciam a cidade, aos quais se acrescentaram três capitães de infantaria e um de artilharia, três alferes, seis sargentos e cinquenta artilheiros. Os reforços foram divididos em quatro companhias: duas de sessenta soldados cada e uma de oitenta, enquanto outra reunia os cinquenta artilheiros.3058 A metrópole também participou do esforço de guerra, pois ao saber da notícia de que a Coroa espanhola preparava duas naus para aumentar as suas forças no Prata fez D. João V ordenar a ida de uma frota em socorro a Colônia.3059 A 25 de março de 1736, zarpavam de Lisboa três navios sob o comando do coronel Luiz de Abreu Prego que, com o pretexto de acompanhar a frota mercante do Rio de Janeiro, destinavam-se a reforçar a presença naval de Portugal no Rio da Prata. Seguia com o coronel Prego o mestre de campo André Ribeiro Coutinho, considerado um dos mais brilhantes oficiais portugueses, com larga experiência no Estado da Índia. Posteriormente, acrescentar-se-iam mais duas fragatas, que deveriam acompanhar a frota da Bahia, a qual zarpou em 21 de agosto. Os navios de guerra seguiam com uma tripulação maior do que a necessária, à qual se acrescentaria um destacamento a ser retirado da guarnição do Rio de Janeiro.3060 V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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PADILHA, Henrique Manuel de. “Relação do princípio da guerra da Colônia até a chegada da nau Esperança [...]”. Revista do IHGRS, Porto Alegre, n. 9, 1945, p. 41. 3052 SYLVA, Silvestre Ferreira da. Op. cit. p 84. 3053 “Já era uma convenção da guerra de assédio que a recusa de se render depois de aberta uma brecha eximia os atacantes da obrigação de oferecer mercê ou se abster de saquear. Na era da artilharia essa convenção tornou-se absoluta”. KEEGAN, John. Uma História da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 333. 3054 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento, 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937, vol. 1, p. 236. 3055 SÁ, Simão Pereira de. História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 87. 3056 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. Op. Cit., p. 242. 3057 SYLVA, Silvestre Ferreira da. Op. cit., p. 93. 3058 MIRALES, José de. “História Militar do Brasil” [1762]. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1900, vol. XXII, p. 172. 3059 SÁ, Simão Pereira de. Op. Cit. p. 107. 3060 BARRETO, Abeillard. “A Expedição de Silva Pais e o Rio Grande de São Pedro”. In: História Naval Brasileira, Rio de Janeiro: Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, vol. 2, tomo 2, p. 9-17.

991 ISSN 2358-4912 A Coroa espanhola não ficou inerte e também mandou reforços ao Rio da Prata. As fragatas Hermiona e San Esteban saíram de Cádiz em 9 de maio de 1736. A bordo seguiam duzentos Dragões, divididos em quatro companhias. Deveriam ajudar as tropas do governador de Buenos Aires a conquistar Sacramento e caso esta já tivesse sido tomada, deveriam retornar à Espanha.3061 Em 12 de outubro Salcedo comunicou a Patiño a chagada das fragatas, que traziam ordem de tomar Colônia pela força. Porém o governador respondeu ao ministro que, em vista da superioridade naval dos lusos, necessitava de mais duas fragatas. Porém já em julho, Patiño havia ordenado a partida da fragata El Javier do porto galego de El Ferrol, a qual zarpou em 27 de agosto, levando notícia que em breve seguiriam outras que se estavam armando em Cádiz, sob o comando de D. Nicolás Geraldín.3062 Em 1o de novembro de 1736, saíram de Cádiz as fragatas La Galga (armada com 46 canhões e tripulada por 323 marinheiros) e La Paloma (52 canhões e 320 homens). Seguia também o paquete El Rosario (6 canhões e 40 homens). As deserções foram poucas entre a tripulação, já em alto mar se constatou que faltavam somente quatro marinheiros. Divididos nos três navios embarcaram 220 infantes do regimento de Cantábria para reforçar a guarnição de Buenos Aires.3063 Em 1o do mês seguinte, D. Nicolás Geraldín pediu o parecer de um comissário sobre uma das instruções que devia seguir, a qual, segundo ele, se poderia dar diferente sentido. A questão era sobre o apresamento de navios de guerra e mercantes portugueses que encontrasse em sua viagem rumo ao Rio da Prata. O comissário não deu sua opinião, temendo as consequências. Porém, ao saber, por um navio que vinha de Buenos Aires que o governador havia dado ordem de apresar a todos os navios inimigos, Geraldín decidiu-se a capturar as embarcações de bandeira portuguesa que encontrasse.3064 Em 11 de janeiro, a frota espanhola avistou um navio que não sabia ao certo se era francês ou português. Após um breve bombardeio o navio se rendeu. Era um navio português que vinha de Angola com 634 escravos a bordo. O comandante espanhol não se resolver a apresar a embarcação, mas a fim de evitar que levasse ao Rio de Janeiro a notícia de que uma frota espanhola seguia para o Prata, decidiu leva-lo até a ilha de Santa Catarina, onde se pensaria o que fazer com o navio e sua carga.3065 No dia 21 foi apresada a galera Santo Antônio e Almas. Levava mantimentos do Rio de Janeiro para Colônia: biscoitos, farinha de mandioca, feijão, arroz, galinhas, peixes salgados e lenha. Além da carga os espanhóis receberam tomaram importantes informações sobre os efetivos e o potencial de fogo da frota portuguesa no Rio da Prata e que as embarcações La Hermiona e San Esteban haviam conseguido escapar da frota lusa na entrada do Prata e buscado refúgio na enseada de Barragán.3066 No dia 29, foram apresadas mais duas embarcações que vinham do rio de São Francisco do Sul.3067 Eram o paquete Santo Antônio e o bergantim São João Batista e levaram mantimentos para Sacramento: aguardente, bacalhau, sardinhas, arroz, farinha de mandioca, feijão, vinagre e azeite. 3068 Em 2 de fevereiro a frota chegou ao norte da ilha de Santa Catarina, onde buscou água. Ali se repartiram os víveres encontrados nas embarcações apresadas que foram desmontadas para que, com o seu material, se pudesse reforçar o navio negreiro.3069 No dia 8, D. Nicolás Geraldín verificou que só contava com biscoitos para sessenta dias, e como receava ter que voltar à Espanha caso não conseguisse chegar a Buenos Aires, mandou reduzir a ração da tripulação e dos soldados à metade, que seria completada com de farinha de mandioca saqueada dos navios portugueses. Houve tumulto a bordo, mas só o rancheiro e um cabo de esquadra foram castigados com o cepo. Porém os soldados e os marinheiros jogaram a farinha no convés “dizendo mil insolências”. Como Geraldín estava enfermo, dois oficiais se encarregaram de castigar os revoltosos, mas, quando se quis voltar a prender o soldado que havia sido liberado durante o motim, os soldados V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

3061 3062

Carta de Patiño a Salcedo, 22/04/36. AGN: Charcas, 348. SIERRA, Vicente D. História de la Argentina (1700-1800). Buenos Aires: Editorial Científica Argentina, 1981, p.

115. 3063

GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata. Real Academia de la Historia, p. 3. Idem, p. 6 3065 GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata, p. 11-12 3066 Idem, p. 14-15. 3067 Idem, p. 15. 3068 AGI: Charcas, 348. 3069 GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata, p. 19-19 3064

992 ISSN 2358-4912 se rebelaram outra vez e receberam Gerladín com as baionetas apontadas contra seu peito. Prenderam o comandante em seu camarote, mantendo-o em vigilância e se prepararam para combater os oficiais que resistissem, gritando uns que não queriam “farinha de pau”, outros que o rei não lhes pagava; que se devia o vinho da campanha e que o capitão não lhes pagara o ano de soldo que recebeu na partida. Chamado pelo comandante para dar explicação do ocorrido, o capitão prometeu pagar a tropa, mas não o fez e por isso que foi chamado novamente e declarou que o dinheiro havia sido empregado em outras disposições e não lhes podia pagar. Os revoltosos desembarcaram na ilha de Santa Catarina depois de apossarem-se de várias armas, apesar da resistência do armeiro, que foi agredido.3070 Segundo a declaração do capelão, que intermediou as conversações entre os amotinados e os oficiais, a sublevação começou na fragata La Galga, onde se amotinaram soldados e marinheiros. Quando se notou que levantavam âncoras e preparavam a artilharia, o capitão da fragata La Paloma, D. Francisco Maldonado, ameaçou botar a pique o navio dos amotinados, que responderam que também abririam fogo. Ante tal ameaça o capitão tentou uma solução diplomática, dizendo que mandaria o capelão para ouvir as queixas. Os amotinados alegaram ao capelão não ter nada contra o comandante Geraldín, mas sim contra o capitão de La Galga, que ficava com o dinheiro dos soldados e com outros oficias que os maltratavam de “obra e palavra”. Completavam a queixa dizendo que não lhes davam parte da carga dos navios apresados, nem dinheiro e vinho e que ainda queriam que comessem “farinha de pau”.3071 As queixas dos soldados e da tripulação provavelmente eram verdadeiras, já que era comum que isso acontecesse nas frotas da época. Porém, sem dúvida, o estopim da revolta foi a obrigação comer farinha de mandioca. Tal fato não ia só contra os costumes alimentares dos espanhóis como também representava uma violação de sua condição, pois tal alimento era considerado próprio de índios e negros e não de europeus. Um marinheiro espanhol capturado pelos portugueses em 1778, escreveu a seus pais que os “índios portugueses” davam como ração aos prisioneiros “una comida que vomitan los gatos: feijões negros com azeite e carne seca con farinha de pau”.3072 O informe do tenente coronel de infantaria, D. Domingo Santos de Uriarte ao governador de Buenos Aires nos dá mais informações sobre o levante. Um grupo de amotinados tomou armas e exigiu ser deixado em terra para buscar refúgio na igreja, levando com eles dois oficiais de marinha e o pilotomor. Depois de desembarcar, soltaram um oficial para que ele levasse a notícia de que voltariam a embarcar se lhes pagassem os cem dobrões que lhes deviam de uma viagem feita a Havana. Uriarte tentou intermediar a situação, mas Geraldín tinha pressa em partir, pois dizia que a população da ilha informaria a frota portuguesa da sua posição. Com isso se perderam cinquenta e dois soldados que ficaram na ilha. O tenente coronel não nos informa sobre o número de marinheiros que ficou em terra com os soldados.3073 No dia dez os espanhóis apresaram mais uma embarcação portuguesa que seguia de Paranaguá com mantimentos para Colônia. A maior parte da carga compunha-se de farinha de mandioca, mas também encontraram peixes e carne salgados, aguardentes, galinhas, tabaco, feijão, vinagre, escravos e tecidos.3074 Embora os espanhóis continuassem a capturar os navios portugueses que encontravam em seu caminho, se abstiveram de tentar qualquer ataque contra a população residente na ilha de Santa Catarina. Geraldín registrou em seu diário que tentou impedir que os oficiais realizassem um conselho de guerra, pois, segundo ele, ao saber da supremacia da frota portuguesa na área em conflito os oficiais queriam voltar à Espanha. Alegava que tal atitude ia contra sua honra, mas mostrou seu real interesse ao escrever que se não fosse possível entrar no Rio da Prata, voltaria às costas do Brasil para corsear não só as embarcações que levavam mantimentos para Sacramento como também apresar o navio que vinha da Índia com rico carregamento.3075 O navio negreiro seguiria com a frota, mas os escravos seriam divididos entre as duas fragatas e o paquete. A sumaca serviria para ir sondando o rio e, até lá, seguiria rebocada pela Paloma. A Santa Ana V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

3070

GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata, pp. 21-26. AGI: Charcas, 348. 3072 Apud: MARTÍNEZ CRESPO, José. A guerra na Galicia do Antigo Réxime. Noia: Toxosoutos S. L. 2007, p. 106. 3073 AGI: Charcas, 348. 3074 GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata, p. 19. 3075 Idem, p. 20. 3071

993 ISSN 2358-4912 seguiu para a Espanha como correio. Das duas embarcações portuguesas chamadas Santo Antônio se retirou o que pudesse ser útil antes de queimá-las. No dia 13 se deu liberdade aos setenta prisioneiros de guerra e se soube por dois homens que, dois dias depois da chegada em terra dos amotinados, os portugueses enviaram uma embarcação à Colônia para avisar da chegada da frota espanhola e do motim. Esta notícia fez Geraldín mudar seus planos: seguiria com a Paloma e a sumaca entrando no Rio da Prata pelo canal do sul, enquanto a Galga e o navio negreiro iriam para Castilhos onde deveriam desembarcar os escravos e de lá despachá-los para Montevidéu. Entretanto, seguiam os problemas a bordo. O comandante da Paloma avisou que três soldados faltaram ao respeito ao seu comandante e que eram “grandes amotinadores”. Eles foram divididos em diferentes navios. Porém, à noite a lancha do Santa Ana foi a terra com dez negros. O oficial responsável foi preso.3076 No dia seguinte a frota largou as velas em direção à Europa, como o comandante havia mandado publicar. No entanto era um estratagema para fazer com que os portugueses pensassem de desistia de seguir para o Prata.3077 Em 17 o Santa Ana voltou a incorporasse com a frota, pois a tripulação se amotinou porque não queria voltar à Espanha. O comandante permitiu a sua incorporação com satisfação, provavelmente porque temia encontrar forças superiores às suas, pois em seu diário mostrava ter bastante receio de um encontro com a frota portuguesa. Em cinco de março a frota chegou à margem sul do Rio da Prata, na baía de Samborombón, onde se pescaram muitos peixes que serviram para reanimar a tripulação. A falta de alimentos frescos já causava enfermidades a bordo. Trinta homens estavam doentes, a maioria de escorbuto.3078 No dia 7, o comandante deu ordem para que o navio negreiro seguisse até a enseada de Barragán, de onde devia vir um prático para orientar a navegação das demais embarcações. Mal entraram no Rio da Prata os navios espanhóis começaram a sofrer com os fortes ventos que desviaram sua rota. No dia 9 se avistou a costa de Montevidéu e no dia seguinte, a passar dos ventos, se conseguir retomar a navegação rumo ao sul. Em 12 avistaram o navio de registro que vinha com um prático, demandado pelo navio negreiro. Dois dias depois estavam à vista da enseada de Barragán, onde estavam ancoradas as fragatas Herminona e San Estevan. Às seis da manhã embarcou o comandante das fragatas, D. José Arratía para dar as boas vindas a D. Nicolás Geraldín. Informou-lhe então sobre a situação das forças espanholas e portuguesas no Rio da Prata e queixou-se do governador de Buenos Aires, dizendo-lhe que se cumprisse as ordens que lhe havia dado já teria perdido as duas fragatas para o inimigo. Às quatro da tarde chegou o governador. Geraldin lhe recebeu acamado, pois alegava estar enfermo.3079 Parecia começar ali a desavença entre o comandante e o governador, da qual não nos ocuparemos nesse momento, dado que nosso objetivo é analisar o cotidiano da frota comandada por D. Nicolás Geraldín até a sua chegada ao Rio da Prata. Vicente D. Sierra escreveu que o fracasso em tomar Colônia se deveu à disparidade de forças e à falta de colaboração entre as forças navais. Comandadas por Geraldín e as forças de terra, comandadas por Salcedo.3080 Os dois se confrontaram em acusações que preencheram vários documentos que podem ser consultados no Arquivo General de Indias. Geraldín destacava a falta de atuação de Salcedo, enquanto o governador colocava a culpa na falta de obediência do comandante da frota, que frequentemente desacatava suas ordens. O Conselho de Indias decidiu que Salcedo fosse detido e enviado à Espanha, onde foi indultado em 1744. Por sua vez Geraldín ficou preso em Cádiz por alguns anos, saindo da prisão em 1741 à petição do Infante Almirante General, que precisava de marinheiros experientes na guerra que então se dava contra a Inglaterra. D. Nicolás Geraldín apareceu como culpado no processo em que se enfrentava com Salcedo, mas como morreu em combate contra os ingleses na costa da Provença, o processo foi arquivado.3081 O mesmo problema aconteceu entre os portugueses. Segundo a análise de Abeillard Barreto, a atuação da frota lusa foi prejudicada pela falta de um comando centralizado, pois a carta régia em que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

3076

GERALDÍN, Nicolás. Diario del Viaje al Río de la Plata, p. 21. Idem, p. 29. 3078 Idem, 33 3079 Idem, pp. 34-39 3080 SIERRA, Vicente D. História de la Argentina (1700-1800). Buenos Aires: Editorial Científica Argentina, 1981, pp. 115-116. 3081 Idem, pp. 126-127. 3077

994 ISSN 2358-4912 constavam as ordens ao comandante da frota, Luiz de Abreu Prego, não estabelecia precedências entre ele, o comandante da expedição de socorro, José da Silva Pais, e o governador da Colônia do Sacramento, Antônio Pedro de Vasconcelos. O comando superior ficara a cargo do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrada, que se conservava longe do teatro de operações.3082 Apesar da frustração em Lisboa, causada pela falha em conquistar Montevidéu e povoar Maldonado, assim como o plano não concretizado de destruir os navios espanhóis refugiados na enseada de Barragán, o esforço de guerra não foi em vão. A Colônia do Sacramento foi mantida sob o domínio português, embora continuasse bloqueada pelos espanhóis, já que o armistício não traçou novos limites e se limitou a deixar a situação no jeito que estava no momento em que foi assinado. Por sua vez, o Brigadeiro José da Silva Pais deu início fortificou o Rio Grande de São Pedro e a ilha de Santa Catarina, criando as bases que garantiram a presença portuguesa no sul do Brasil.

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Referências BARRETO, Abeillard. “A Expedição de Silva Pais e o Rio Grande de São Pedro”. In: História Naval Brasileira, Rio de Janeiro: Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, vol. 2, tomo 2. CORREA LUNA (org.). Campaña del Brasil – Antecedentes Coloniales. Buenos Aires: Archivo General de la Nación, 1931, v. 1. CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950, parte I, tomo II. GERALDÍN, Nicolás. Diario de viaje al Río de la Plata. Real Academia de la Historia. http://bibliotecadigital.rah.es/dgbrah/i18n/catalogo_imagenes/grupo.cmd?path=1005987 acessado em 30 de abril de 2014. KEEGAN, John. Uma História da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MARTÍNEZ CRESPO, José. A guerra na Galicia do Antigo Réxime. Noia: Toxosoutos S. L. 2007. MIRALES, José de. “História Militar do Brasil” [1762]. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1900, vol. XXII. MOLAS, Pere. Los gobernantes de la España Moderna. Madrid: Editorial Actas, 2008. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento, 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. PADILHA, Henrique Manuel de. “Relação do princípio da guerra da Colônia até a chegada da nau Esperança [...]”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 9, 1945, p. 41. SÁ, Simão Pereira de. História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993. SIERRA, Vicente D. História de la Argentina (1700-1800). Buenos Aires: Editorial Científica Argentina, 1981. SYLVA, Silvestre Ferreira da. Relação do Sítio da Nova Colônia do Sacramento. Porto Alegre: Arcano 17, 1993.

3082

BARRETO, Abeillard. “A Expedição de Silva Pais e o Rio Grande de São Pedro”. In: História Naval Brasileira, Rio de Janeiro: Ministério da Marinha, Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, vol. 2, tomo 2, p. 15.

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UM PESO E DUAS MEDIDAS: VISÕES SOBRE A MESA DA INSPEÇÃO DO TABACO E AÇÚCAR DE PERNAMBUCO Paulo Fillipy de Souza Conti3083 As Mesas da Inspeção do Tabaco e Açúcar foram criadas em 1751. Esta foi a segunda interferência do futuro Marquês de Pombal nos negócios do Brasil, pasta fora das suas atribuições naquele momento. Segundo o Visconde de Carnaxide, Pombal foi “um terremoto através das instituições”3084 e, alguns desses órgãos criados sob a sua atenção chegou a Pernambuco. Foi através do Novo Regimento da Alfândega do Tabaco, capítulo 6, parágrafo 4, que o rei D. José mandou estabelecer Mesas de Inspeção para os principais portos do Brasil: Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro. O Novo Regimento, datado de 16 de janeiro de 1751, dava as recomendações para melhorar a qualidade e regular os preços do tabaco3085. Onze dias após, um despacho ampliava as habilitações da Mesa sobre outro produto importante, o açúcar. Reforçava também a necessidade de atender às ordens do Novo Regimento da Alfândega3086. Poucos meses depois, a 1º de abril, D. José lança o Regimento das Casas de Inspeção, que especificava a sua organização de funcionamento. No primeiro capítulo do Regimento, que versa sobre o estabelecimento das Casas, fica expresso o reforço ao Novo Regimento e ao despacho, e a responsabilidade que as Casas cuidem também de qualquer outro produto que seja importante no porto ao qual regula. O estabelecimento do novo órgão atingiu diretamente as Superintendências do Tabaco – estabelecidas para Bahia e Pernambuco em 17023087 – extintas automaticamente pela criação das Mesas. Dispositivos fiscais como os citados acima nos permite perceber que a preocupação com a lavoura do tabaco não era recente. Por ser o fumo produto importante no resgate de escravos na costa africana, é mais que compreensível o desejo do governo metropolitano em melhorar – em quantidade e qualidade – a lavoura e comércio do tabaco. O que significaria melhores condições para o tráfico negreiro. Nos capítulos II, III e IV do Regimento das Casas de Inspeção, aborda-se a composição e a função dos ministros e oficiais. Cada uma das Mesas era composta por três inspetores, dois escrivães, e outros auxiliares. Destacam-se também os símbolos para identificação das caixas de açúcar e tabaco, ao usar, por exemplo, a sigla BF para designar o açúcar branco fino. Estas marcações feitas nas caixas também precisavam informar o porto de origem da carga e o seu produtor, o que facilitava o trabalho nas alfândegas3088. Desta forma, esperava-se não apenas fiscalizar os produtos já prontos para serem comercializados, como, na mesma medida, incentivar a produção dos dois gêneros. No caso pernambucano, especificamente, a Mesa da Inspeção não entrou em atividade no mesmo ano da sua criação no reino. Era 22 de dezembro de 1751 quando o recém-nomeado ouvidor da capitania, João Bernardo Gonzaga, escreveu ao rei pedindo que a “Casa da Inspeção do Tabaco na dita capitania” fosse criada com o máximo de brevidade. Não deixa de pedir ainda que o seu ordenado como inspetor, da mesma forma que acontecera no Rio de Janeiro e Bahia, fosse pago. A resposta que

3083

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, bolsista do CNPq. Orientação: Profa. Dra. Virgínia Maria Almoêdo de Assis. 3084 CARNAXIDE, Antônio de Sousa Pedroso, Visconde de, 1903-1961. O Brasil na administração pombalina: economia e política externa. 2ª ed. São Paulo: Ed. Nacional; [Brasília]: INL, 1979. p. 2. 3085 Novo Regimento da Alfândega do Tabaco, 16 de janeiro de 1751. In SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. 3086 Decreto de 27 de Janeiro de 1751, regulando a forma do Despacho do Açúcar e Tabaco. In Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. 3087 Regimento das Casas de Inspecção no Brasil, 01 de Abril de 1751. In Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. 3088 Regimento das Casas de Inspecção no Brasil, 01 de Abril de 1751. In Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações.

996 ISSN 2358-4912 recebeu do reino foi positiva, tanto no que se refere ao estabelecimento do órgão, como ao seu ordenado no cargo de primeiro inspetor (ou Presidente da Mesa da Inspeção)3089. Foi apenas em 5 de abril de 1752, que a Mesa da Inspeção começou a funcionar no Recife. No informe enviado ao reino, os membros da Mesa expressam as dificuldades pelas quais passava a lavoura do açúcar, com baixas produções, queda do valor de mercado do produto, escasseamento e o preço elevado dos escravos, e a dificuldade de manter os cativos na região – eram muitas vezes desviados para as Minas3090. Nas palavras de George Félix Cabral de Souza, “actuar en ese escenario francamente desfavorable, regularizando la cultura de caña y la producción de azúcar. Esa era la complicada función de la Mesa de Inspeção”3091. Esta, ao contrário da congênere baiana, por exemplo, ocupou-se mais dos assuntos relativos ao açúcar, não conferindo ao fumo “nenhuma importância suplementar além da que já lhe havia sido conferida pela Superintendência”3092. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

O peso da inspeção... Pouco menos de três meses depois de ter entrado em funcionamento, a Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco sofreu duras críticas. Era 3 de julho de 1752 quando os oficiais da Câmara de Olinda enviaram ao reino um manifesto encabeçado pelos fabricantes de açúcar, indignados com a nova Mesa da Inspeção. Os senhores de engenho e lavradores de açúcar afirmavam que os preços impostos pela Mesa não atendiam às suas necessidades, e que o modelo traria prejuízo não apenas para Pernambuco – onde as contas, nas suas palavras, já se afundavam pelo aumento dos açúcares e engenhos. Afirmavam ainda que, fora da dita Praça, a maioria da população dependia dos engenhos para sobreviver, pois exerciam os ofícios de oléiros, pedreiros, caldereiros, banqueiros, etc., todas, ocupações ligadas espontaneamente ao funcionamento dos engenhos3093. Ou seja, havia um grupo de indivíduos que gravitava em torno das fábricas de açúcar e dependia diretamente do “fogo vivo” para sobreviver. Nos informam os manifestante que um engenho pronto, moente, custava entre 30 e 40 mil cruzados, valores vultosos para a época3094, isso sem serem somados os gastos com escravos e outras necessidades. Daí, não se estranhar que muitos senhores de engenho já iniciassem as suas atividades produtivas endividados. Para apenas moer, dizem eles, gastava-se 4: 500$000 réis por safra, excessivo para a situação corrente. Dão o seguinte exemplo. Um engenho com grande safra faz 1.000 pães de açúcar, quando descontados os dízimos, restavam ao protutor 700 arrobas, estando também nesta soma o açúcar mascavado, com equivalência de duas arrobas por uma do branco. Pagava-se ainda entre 400$000 e 500$000 réis para o transporte e mais dois mil réis para encaixotar o produto. Os custos eram tão elevados, afirmam, que alguns senhores estavam vendendo as suas propriedades ou mudando de gênero de negócio. Pede-se que, no mínimo, os negociantes arquem com a metade dos custos de encaixotamento e transporte do açúcar3095. A ideia era que ao balancear os gastos entre produtores e comerciantes, fosse balanceado o lucro sobre produção e venda. Enquanto a sonhada equiparação dos lucros não acontecia, observavam os fabricantes que a necessidade que tinham de conseguir crédito 3089

AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6085. REQUERIMENTO do ouvidor nomeado para a capitania de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, ao rei D. José pedindo a criação da Mesa da Inspeção do Tabaco na dita capitania e a provisão concedendo-lhe o ordenado de inspetor. Sem localição. Ant. 22/12/1751. 3090 SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: La cámara Municipal de Recife (1710- 1822). Salamanca: Universid d Salamanca, 2007. p. 566-567. 3091 “Atuar neste cenario francamente desfavorável, regulando a cultura de cana e produção de açúcar. Esta era a complicada função da Mesa de Inspeção”. SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial. p. 568. 3092 NARDI, Jean Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 134. 3093 AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6140. CARTA dos oficiais da Câmara de Olinda ao rei D. José, sobre o envio de um manifesto dos fabricantes de açúcar indignados com a nova Mesa da Inspeção. Olinda, 03/07/1752. 3094 Dados em consonância com os apresentados por Vera Lúcia Amaral Ferlini nos seus estudos. A autora afimar que apesar do elevado valor para montar o engenho, o retorno dado pelo produto era generoso. Os comerciantes chegavam a lucrar cem por cento do preço pago na colônia vendendo o açúcar na Metrópole. E quanto aos senhores de engenho, a recompensa era o poder e status que desfrutavam na vivência colonial. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. A civilização do açúcar. 11ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 42. 3095 AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6140.

997 ISSN 2358-4912 para possibilitar a plantação, colheita e demais processos, na maioria das vezes era conseguida junto aos comerciantes da Praça do Recife, o que os colocava à mercê desses credores. Não perdem também a oportunidade de criticar a comparação feita no decreto de 27 de janeiro de 1751, entre os açúcares da Bahia e os de Pernambuco. No decreto se faz a recomendação de “aperfeiçoarem-se os açúcares do Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, de sorte, que venham a ter proporção na bondade com os açúcares da Bahia”3096. Os oficiais dizem que o açúcar baiano não era superior ao pernambucano, até mesmo por ser o primeiro mais “trigueiro” que o pernambucano, que era mais alvo3097. Sem perder o foco, reafirmam a incapacidade dos senhores de engenho em manter as suas propriedades moentes dado o aumento dos preços, e que a “morte” dessas fábricas era real, tornar-seiam a maioria dos engenhos de fogo morto. Antes do estabelecimento da Mesa, os preços eram fixados de acordo com propostas de um representante dos lavradores, outro dos senhores e Câmara, e, não havendo resolução, o assunto cairia nas mãos do governador. Comumente, os valores variavam de acordo com a safra. Diante deste quadro, pede-se a conservação da forma outrora corrente de se medir a qualidade do açúcar que vigorava na capitania de Pernambuco, e chamam atenção para um detalhe do decreto. Através do decreto de 27 de janeiro de 1751, foram fixados os preços dos açúcares nas suas variantes, o açúcar branco fino, por exemplo, não poderia exceder o valor de 1$300 réis por arroba – montante válido para Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro, os diferentes tipos de açúcar produzidos na Bahia eram cem réis mais caros por arroba. Ficava a Mesa autorizada também, havendo necessidade, de acrescer de cem a trezentos réis por arroba sobre o valor fixado3098. A observação feita é que fala-se em aumento de preços, mas não em redução, além do fato de não estar, dentro das incumbências da Mesa, levar escravos para abastecer a capitania. Principalmente pelos motivos supramencionados, dizem os fabricantes de açúcar que “não pode a Mesa remediar a falta dos engenhos, e menos pode lhes fazer lançar a moer a tempo, porque lhe não pode assistir, por falta de meios, por quererem plantar antes de moer pela falta de escravos, e como a Mesa da Inspeção não pode remedir com coisa alguma os engenhos, é desnecessária porque todos desejam moer a tempo, e fazer açúcar sem que outrem os suplique”3099. Sem a Mesa da Inspeção, segundo contam, havia melhores condições para a manutenção do fabrico do açúcar. E já existia, entendem, na capitania, outro ponto de preocupação, a presença dos comissários volantes3100, que frequentavam Pernambuco desde 1723. Estes também dificultavam os negócios. Tais comissários, acusa o texto, eram responsáveis por trazer produtos estrangeiros para a capitania, onde vendiam tais gêneros. Desta forma, acabavam aglutinando praticamente toda a soma de dinheiro disponível na Praça, logo, eram os “únicos” capazes de comprar os açúcares (e tabaco), gerando prejuízo para o fabricantes, mais uma vez dependentes das ofertas (baixas) do pequeno grupo com condições de comprar o produto. Antes dos comissários, os homens de negócio de Lisboa enviavam “fazendas e carregações”, que eram negociadas a preços sazonais, ou seja, seguiam a capacidade da safra, chegando assim a preços convenientes. Nesta nova forma, os comissários eram obrigados a pagar aos credores dos senhores de engenho, amedrontados pela possibilidade de execução das dívidas, logo, vendiam, muitas vezes, suas mercadorias abaixo do preço. Queixam-se ainda sobre a falta de moeda na capitania e o desvio desse dinheiro para a Bahia, que gozava de privilégios, como dão a entender, que Pernambuco deixara de receber. Da mesma forma que os navios que deveriam trazer escravos para Pernambuco eram desviados para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições e preços3101. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Decreto de 27 de Janeiro de 1751, regulando a forma do Despacho do Açúcar e Tabaco. In Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. 3097 AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6140. 3098 Decreto de 27 de Janeiro de 1751, regulando a forma do Despacho do Açúcar e Tabaco. In Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. 3099 AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6140. 3100 “Pessoas que compram fazendas [em Portugal] para as irem vender pessoalmente sem terem fundos próprios”. SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de hum Diccionario Juridico,Theoretico, e Practico, remissivo ás Leis compiladas, e extravagantes. Tomo I. Lisboa: Rollandiana, 1825, [s/p.]. 3101 AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6140.

998 ISSN 2358-4912 Neste sentido, não se furtando a apresentar ao rei os diversos problemas pelos quais passavam, os senhores de engenho de Pernambuco mostravam-se contrários ao prosseguimento das atividades da Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco. Porém, a leitura que faziam da Mesa foi modificada com o tempo, veja-se a representação enviada ao reino menos de sete anos depois das duras críticas que apresentamos acima.

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... e a importância da inspeção Em meados de 17593102, o tom quanto o papel exercido pela Mesa da Inspeção na capitania é completamente divergente do citado acima. Dizem os senhores de engenho que assinam a representação que entre as leis postas em prática na capitania, é a Mesa da Inspeção a mais “profícua”, sendo o trabalho do órgão garantia de bons lucros e conveniente para os comerciantes, já que os preços eram afixados com justiça3103. Diante de tal realidade, se dizem surpresos com as notícias que receberam no mês de março do corrente ano. Não encontramos junto aos arquivos de leis portuguesas o que expressava exatamente a chamada “nova providência”. Mas durante a representação os senhores de engenhos nos dão pistas suficientes sobre o conteúdo, ao menos àquilo que os incomodava. Um dos assuntos abordados na “nova providência” era quanto a retidão das eleições para inspetores, o que segundo informam, é improcedente. Porém, não reside neste quesito o maior motivo de preocupação dos fabricantes de açúcar. O que havia de novo e preocupante era a transferência da responsabilidade quanto a pesagem e qualificação dos açúcares – em primeiro momento – para o próprio produtor. Nas suas palavras, ficariam responsáveis, segundo a “nova providência”, por “rubricar as qualidades, enumerar as arrobas das nossas caixas de açúcar na própria oficina”, o que “não podemos rigorosamente executar sem inumeráveis erros”3104. Estavam eles receosos em serem inspetores do próprio açúcar, podendo arbitrar em causa própria. O temor expresso pelos representantes não é – ao menos tenta aparentar não ser – um mea-culpa quanto a possível má fé de alguns produtores que atribuiriam qualificação e pesagem incondizentes com o contido nas caixas. Daí, vê-se a necessidade de apresentar na construção argumentativa os problemas quanto a manutenção da qualidade do açúcar, que por ser extraído de máteria fluida, dizem eles, basta contato com a menor humidade que seja para que volte ao antigo estado, da mesma forma que basta um dia de sol para secá-lo. Afirmam que tais mudanças interferem na textura e cor do produto. A humidade, neste caso, era inevitável, até mesmo as caixas de madeira transferiam humidade para o açúcar, logo, a qualidade das caixas também deve ser considerada como variante possível para a modificação da qualidade original do produto. Outro agravante, afirmam, era o fato de que o açúcar encaixotado passava “largas jornadas à disposição de escravos e domésticos, que as conduzem, podem com facilidade asurpar-lhes algumas arrobas”3105. Montado este quadro, reafirmam o risco de serem julgados como desonestos, quando, na realidade, as variações entre o produto marcado ainda na fábrica e o produto final, era reflexo das intempéries e da baixa confiabilidade dos responsáveis pelo transporte das caixas do engenho até a balança da inspeção. 3102

O conteúdo nos leva a crer que a representação foi escrita antes de 1759, pois não há referências às possíveis interferências que a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, traria ao comércio local. 3103 AHU_ACL_CU_015, Cx. 92, D. 7373. REPRESENTAÇÃO dos senhores de engenho da capitania de Pernambuco ao rei D. José, pedindo a conservação da Mesa da Inspeção no seu primitivo estabelecimento, conservando a eleição dos seus inspetores. Sem localização. [ca. 1759]. Assinam os seguintes produtores de açúcar: Antonio de Souza Leão; José Pereira de Lima; Manoel de Brito da Silveira; Antonio Martins de Souza; Francisco Coelho Nigromonte; José Filippe de Albuquerque Moreira; Antonio de Barros Branco; Manoel Reis Campello; Manoel Neto Carneiro Leão; José Bento Leitão; João Luíz Salgado; Antonio Neto da Cunha; Francisco de Albuquerque Mello; José Alvares de Castro; Gregório Pereira de Caldas; José dos Santos Sena; Domingos de Araújo Lima; João Luíz Salgado Acioli; José Vaz Salgado; Patrício José de Oliveira; Manoel Lopes Viena; Agostinho da Silva Guimarães; Manoel Carvalho da Costa; Antonio Ferreira da Souza; José Pinto de (?); Alexandre Gomes Diaz; Francisco Xavier dos Reis; Antonio da Costa Nogueira; Thome Correia da Araújo; Balthazar Correia de Gouveia; Francisco de Barros Rego de Araújo; Manoel Francisco da Costa; João Batista de Vasconcelos. 3104 AHU_ACL_CU_015, Cx. 92, D. 7373. 3105 AHU_ACL_CU_015, Cx. 92, D. 7373.

999 ISSN 2358-4912 E mesmo se a nova forma de executar a qualificação e pesagem dos açúcares fosse posta em prática, ele ainda passaria pela inspeção final da Mesa, onde, aí sim, já poderiam ser apontadas as incongruências entre as marcações postas nas caixas e aquilo que estava contido no seu interior. Após o transporte do açúcar, chegava o produto às balanças da inspeção. Lá, os inspetores colhiam amostras e refaziam a pesagem, pois, conforme apontado anteriormente, seria fácil usurpar ao longo do caminho o produto encaixotado. Nessa última inspeção é que se definiam a qualidade e peso finais. Desta forma, um açúcar classificado como fino ao ser encaixotado, à guisa de exemplo, poderia ser classificado por redondo segundo os inspetores, que observavam qualidade e cor, e assim por diante. O risco de tais alterações, era que os fabricantes caíssem no descrédito social. Risco alto em uma sociedade na qual parecer é mais importante do que ser. Como afimou Evaldo Cabral de Mello, a honra não depende de quem a detém, e sim de outrem3106. Porém, até mesmo para as variações de cor e qualidade, das mais ordinárias que fossem, o grupo expressa a sua versão. Segundo contam, à época, havia em Pernambuco mais de 300 engenhos3107 na capitania, com cores e “fortalezas” do açúcar variadas, até mesmo pela diversidade de terras onde foram estabelecidos. Cada forma tem entre 3 e 4 arrobas – que já garante a variação de cada pão de açúcar produzido –, e, no processo de apuração vai-se introduzindo água (lama) para dar mais candura ao produto. Então, quanto mais próximo à boca da forma tem-se o açúcar fino, o segundo é o redondo, o terceiro o baixo, e por fim o mascavado. Havia também um número crescente de engenhos novos, com qualidade de produção inferior aos engenhos mais antigos. Assim, o senhor de um engenho recente classificava por fino o seu melhor açúcar, que, na realidade, era equivalente, no máximo, ao redondo produzido por engenho mais velho3108. Desta forma, para evitar serem julgados injustamente como velhacos, pedem a conservação da Mesa na sua fundação primitiva, aproveitando da “nova providência” o que diz respeito a “pureza e retidão” na inspeção, o que continuaria sob responsabilidade dos inspetores e o Presidente. Ou seja, não sendo obrigação dos senhores de engenho qualificar e pesar o seu próprio produto ainda nas fábricas. Mercê esta que esperam receber por descenderem de vassalos que sacrificaram suas fazendas e vidas para que a capitania de Pernambuco não fosse desanexada do reino de Portugal, clara referência – recorrente na documentação referente a Pernambuco – à luta contra os neerlandeses no século XVII3109. Tentando observar além do contido no texto, nos perguntamos os possíveis motivos que levaram a Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco de órgão desnecessário, prejudicial ao comércio e produção, a condição, menos de sete anos depois do seus estabelecimento, de lei mais “profícua” vinda do reino para o bem comum de produtores e comerciantes de açúcar, de forma tal, que os senhores pedem a suas conservação no modelo primitivo. É o mesmo grupo que escreve ao reino pedindo a extinção da instituição em primeiro momento, e a manutenção inalterada em segundo. Entre as hipóteses aventadas, puxamos uma à baila. Não consideramos que os motivos apresentados em meados de 1759 pelos senhores de engenho como suficientes para explicar a necessidade que tinham de manter a Mesa da Inspeção dentro das diretrizes iniciais. O grupo já era, mesmo que indiretamente, fiscal do próprio produto, assim como os comerciantes da Praça do Recife. A escolha dos inspetores era feita por eleição direta dentro dos grupos. No caso dos primeiros, a votação acontecia na Câmara do Recife, enquanto os mascates3110 escolhiam livremente entre si um representante. Nos é impossível desconsiderar as intenções que levavam um fabricante de açúcar ou comerciante a votar em alguém que, caso eleito, seria responsável por qualificar e fixar o valor de

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MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. p. 27. 3107 O número de engenhos em Pernambuco cresceu entre as décadas de 1750 e 1760, por isso, consideramos equivocada a quantidade de engenhos apresentada na representação. Para se ter ideia, dados levantados pelo então governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, em 1760, e analisados por Dariul Alden, apontam para as capitanias de Pernambuco, Paraíba e suas respectivas freguesias, 268 engenhos moentes e 40 de fogo morto. ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia: 1750 – 1808. In: BETHEL, Leslie (org.), História da América Latina: A América Colonial, Brasília, Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF, Fundação Alexandre de Gusmão, 2004. p. 527-592. p. 557. 3108 AHU_ACL_CU_015, Cx. 92, D. 7373. 3109 AHU_ACL_CU_015, Cx. 92, D. 7373. 3110 Uso a palavra como sinônimo livre de comérciante recifense do período colonial. Conforme em MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. p. 17.

1000 ISSN 2358-4912 mercado da produção. Lembrando que a marcação das caixas revelava o produtor de origem, o que tornava fácil para os inspetores identificá-las. Logo, havia a possibilidade de favorecer ou prejudicar determinados produtores. E, como instância fiscalizadora e reguladora, a palavra final nesse quesito era cabida à Mesa da Inspeção. Terminamos o parágrafo acima com um exemplo ilustrativo, mas que não deixa de ser uma interpretação possível para tal quadro. O que queremos deixar claro é que a Mesa da Inspeção do Tabaco e Açúcar de Pernambuco, mais do que uma instância de alfândega, tornou-se plataforma para o exercício de poder na capitania. Especificamente, plataforma dos interesses locais. É exatamente neste sentido que entendemos a problemática central do presente artigo, os produtores e comerciantes não apenas mudaram de opinião em relação à Mesa, como também estavam sendo beneficiados por ela. Esta não é, absolutamente, uma interpretação nova quanto ao papel desempanhado pela Mesa junto ao grupo mercatil. Nossa contribuição interpretativa, desta forma, é observar que senhores de engenho e comerciantes de Pernambuco tomaram o controle quanto aos fins da inspeção um pouco antes do que aborda a historiografia corrente. Já faz algum tempo que as principais refências feitas à Mesa da Inspeção de Pernambuco são em virtude dos seus choques com a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, sendo a primeira, em tese, centro de irradiação dos interesses locais, e a segunda dos interesses metropolitanos. Contudo, a representação enviada ao reino em meados de 1759, ou seja, antes do estabelecimento da Companhia3111, mostra que a Mesa da Inspeção já exercia à época papel importante dentro da dinâmica de produção e comércio do açúcar na capitania de Pernambuco. Quais eram as formas usadas para apropriação das atividades da Mesa? A sua ação reforçou a necessidade de se criar com mais brevidade a companhia de comércio? Estas perguntas continuam em aberto. Mas, para uma pesquisa embrionária, consideramos as perguntas mais importantes do que as respostas. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A criação da Companhia foi sancionada em 1759, mas foi apenas em abril de 1760 que iniciou as suas atividades. RIBEIRO JÚNIOR, José, 1939-. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 90.

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LIBERDADES PARA RECONSTRUIR: ISENÇÃO FISCAL E MORATÓRIA PARA A ECONOMIA AÇUCAREIRA PERNAMBUCANA PÓS-RESTAURAÇÃO (SÉCULOS XVII E XVIII) Pedro Botelho Rocha Desde seus primórdios, o sistemático fabrico do açúcar requeria um conjunto de competências – específicas ou não – e uma harmônica teia de condições que pudesse melhor aproveitar a safra da cana. Passando por vicissitudes climáticas, do trato do lavradio e da mão de obra cativa, a produção também mexia com serviços livres e investimentos excessivos para sua manutenção, com cerca de apenas 10% de retorno final. Portanto, os relatos desesperados dos senhores de engenho quanto aos insucessos e poucos lucros obtidos perfaziam um caminho ambíguo: o latifúndio da cana, com todo seu prestígio social de uma elite dominante e agregadora, somado ao custoso esforço de manter a produção açucareira ativa. No cenário pernambucano após a expulsão neerlandesa em 1654, a crise da açucarocracia tomou proporções alarmantes em termos financeiros, logísticos e materiais, cabendo a essa elite se ajustar em meios possíveis para sua sustentação. Entre canaviais queimados, engenhos destruídos e abandonados, além das rompantes dívidas contraídas, os senhores de engenho da capitania de Pernambuco recorreram a um mecanismo oferecido pela Coroa: o congelamento da execução dos débitos e a liberdade fiscal. As circunstâncias destas concessões econômicas variaram com as décadas finais do século XVII e início do XVIII. Além disso, seus requerentes eram provenientes de localizações diversas, e de ocupações muitas vezes ligadas a administração local. Este trabalho propõe analisar a trajetória dessa elite pernambucana na forma de reconduzir a produção açucareira, movimentando esforços e dialogando com as instituições coloniais, tendo nas liberdades de isenção e moratória uma peça importante para entender esse processo. Aspectos econômicos da indústria açucareira Para tomar entendimento da crise que se instala na capitania de Pernambuco durante as guerras de restauração e tempos depois delas, é necessário recontar alguns pontos do início da lavoura da cana e sua trajetória, passando pela administração batava em solo brasílico e a retomada lusitana. Nesse contexto, os caminhos que as elites açucareiras percorreram também auxiliam a compreensão das estruturas dos pedidos de liberdade, com grandes personagens da resistência luso-brasileira envolvidos, assim como seus herdeiros e representantes, na reedificação de suas propriedades canavieiras. O patrimônio fundiário açucareiro pernambucano se constituiu basicamente por três fases distintas, cada qual aproveitamento os ensejos possíveis e esbarrando em obstáculos diversos. Em primeiro plano, a ocupação territorial de meados do século XVI foi impulsionada pela necessidade de dar início a plantação dos canaviais ao mesmo tempo em que tal objetivo só poderia ser atingido com o devido controle lusitano aos nativos inimigos, notadamente os caetés. Com as porções territoriais asseguradas, e os primeiros engenhos assentados, o povoamento – este sempre litorâneo – dos núcleos produtivos foi iminente. A segunda fase passa ao aumento do número de fábricas de açúcar, tendo entre 1583 e 1612 um aumento de 66 para 90 engenhos em Pernambuco, destacando-se a concentração da Várzea do Capibaribe e na freguesia do Cabo. Stuart Schwartz identifica nesse período uma desaceleração após o boom açucareiro entre 1570 a 1585, tendo retomado um discreto crescimento no número de indústrias entre 1612 e 1630. A última fase se inicia ao passo que a produção não consegue acompanhar os fatores locais e externos que tiram de ritmo as engrenagens do fabrico do açúcar, por volta de 1630 e se estende nas décadas seguintes. Há vários fatores que contribuíram para o acúmulo de indústrias no nordeste colonial durante a primeira e segunda fase. A ocupação definitiva dos espaços litorâneos, a estabilização do mercado atlântico de escravos – fato que acompanha justamente a transição da mão de obra indígena pelos cativos africanos a partir da década de 1580 –, o intervalo de hostilidades entre Países Baixos e a coroa espanhola e também a proliferação dos engenhos de três cilindros, uma inovação tecnológica que

1002 ISSN 2358-4912 barateou os custos da maquinaria necessária para a moagem. Além disso, a subida do preço do açúcar acompanhou uma demanda maior no mercado europeu. De todo modo, a produção do açúcar a partir da década de 1620 acompanhou, de acordo com Evaldo Cabral de Mello, a marca dos 659 mil arrobas, dos quais 78% dessa quantia pertenciam a Pernambuco3112. Assim como Schwartz enfatiza o papel dos engenhos de três cilindros3113, a quantidade de fábricas de médio porte era bastante considerável em quase todos os núcleos produtivos, representando muitas vezes mais de 50% do açúcar fabricado. No decênio que antecede a presença holandesa no nordeste brasileiro, os engenhos já não apresentavam um ritmo produtivo tão satisfatório. Queda na demanda externa, fim do crédito judaico vindos dos Países Baixos com a retomada da guerra contra Espanha e problemas logísticos desencadeados pelas atividades de corso no atlântico foram alguns dos obstáculos que inibiram os rendimentos das safras canavieiras. Desta maneira, alguns engenhos menores já se encontravam de fogo morto – com seus senhores abarrotados de dívidas –, e o porto do Recife com grandes cargas de açúcar estocadas nos armazéns (2007, p. 81). Os insucessos na produção açucareira nesse período parecem confirmar os discursos sobre a volatilidade das elites agrárias em Pernambuco (SCHWARTZ, 2008. P. 360,361). É justamente no foco desses anos em que se escapam propriedades, transferem-se e arrendam-se cada vez mais molinetes e engenhos de médio e grande porte, excluindo necessariamente a construção de novas maquinarias. Com o início das hostilidades da Companhia das Índias Ocidentais em solo pernambucano, até 1634 os prejuízos vão desde o saque e destruição dos estoques nos portos nordestinos, incêndio de canaviais por parte tanto dos luso-brasileiros como pelos holandeses, e a eliminação das fábricas de açúcar propriamente ditas. Cerca de metade dos engenhos em várias freguesias já se encontravam destruídos quando da capitulação do Arraial Velho. Pesou a paralização da moagem da cana com a imigração de vários senhores de engenho para a Bahia, como foi o caso do ilustre Francisco do Rego Barros e sua mulher Arcângela da Silveira, proprietários do engenho Massiape e que conforme consumiram empréstimos para seu estabelecimento em Salvador e posteriormente a Restauração utilizaram novos créditos para a reedificação de sua propriedade, suplicou sua mulher ao Conselho Ultramarino e a Coroa para a não execução de suas dívidas3114. Com a administração de Nassau, houve um massivo e ousado plano para recuperar a fabricação do açúcar. Confiscaram e venderam os engenhos abandonados, ora a neerlandeses ora a luso-brasileiros, numa tentativa de reaproximação do governo do Recife com os moradores das capitanias invadidas e ainda assim transpor alguns lavradores de cana ao posto de senhores de engenho fiéis a Companhia3115. Como de praxe, a liberação de crédito foi explorada generosamente, além do parcelamento da compra das fábricas. Com isso, os proprietários envolveram-se na reedificação das unidades, compra de caldeiras, moendas e outros aparatos, repuseram peças da escravaria. No entanto, o acúmulo exorbitante de dívidas encadeadas por parte dos próprios senhores de engenho, atravessadores e outros comerciantes juntamente com a WIC, transformou o panorama econômico do Brasil holandês num verdadeiro caos. O movimento da Insurreição Pernambucana, impulsionado não só pela desorganização interna da economia do Brasil Holandês, mas também de interesses dos emigrados da Bahia e de agentes lusitanos, tratou também de inserir uma grande virada de mesa em relação às dívidas contraídas por certos componentes das elites açucareiras, principalmente nas folclóricas figuras de Fernandes Vieira e Jorge de Homem Pinto. A produção que já não encontrava bons ventos, com engenhos parados e partidos em cinzas, dificilmente seria posta em obras com escassos créditos, dívidas sobre dívidas, queda vertiginosa do preço do açúcar em anos anteriores e o retorno das beligerâncias em solo pernambucano. Inseridos nessa continuada crise, os moradores das capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande encurralaram-se com o processo de restauração luso-brasileira, migrando para os focos de resistência em Pernambuco. Muitos senhores abdicaram de suas posses “queimando e abrasando todos os V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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MELLO, E. C. Olinda Restaurada. P. 76. São Paulo, Editora 34. 2007 SCHWARTZ, S. B. O Brasil colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e as periferias. In: Bethell, L. (org.). História da América Latina, vol. 2: América Latina Colonial. P. 361. São Paulo, EdUSP, 2008. 3114 AHU_ACL_CU_015, Cx. 7, D. 571. 3115 MELLO, E. C. Olinda Restaurada. P. 326. 3113

1003 ISSN 2358-4912 engenhos e casas e açúcares pelos não poderem retirar e mais fazenda que tudo importava” 3116. No decorrer das guerras contra o domínio holandês, o policiamento da costa impedia a chegada de navios que não estivessem seguramente comboiados para aportar em Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho; com a ausência de embarcações que pudessem oferecer suprimentos ou escoar a produção, algumas safras de açúcar foram completamente perdidas3117. Completada a Restauração do Brasil holandês para a posse da Coroa lusitana e a restituição das fazendas e engenhos para os antigos donos emigrados – restituição essa que demandou longas correspondências e comentários de funcionários e órgãos jurídicos da colônia. -, a economia açucareira não respiraria aliviada, principalmente com a concorrência antilhana que tomou parte do mercado europeu, limitando o estado de prosperidade dos engenhos setentrionais da colônia portuguesa. O contexto das décadas finais do século XVII é bastante padronizado: a necessidade iminente de replantar os canaviais, repor as cabeças de gado perdidas, de granjear as roças de mantimentos e da farinha de mandioca, peça importante para a alimentação regular dos escravos e que o governador Francisco de Brito Freire legislará em favor da continuação da lei batava que obrigava o plantio de covas de mandioca por cativo. O mesmo governador, para incentivar o fabrico do açúcar e não prejudicar o comércio de vinhos na capitania passará ordem em 1664 de não se fabricar e vender aguardente nas imediações do Recife. A crise perdurou sob os mesmos elementos já citados em outras épocas anteriores. Muitos engenhos que voltaram a moer não o fizeram com partidos de suas fazendas, e alguns proprietários aproveitaram da restituição de seus bens para consumir novos créditos e reedificar suas moendas com mais opulência, transformando trapiches em engenhos reais3118. A Coroa valendo-se da apropriação de alguns engenhos abandonados os pôs em leilão em praça pública, podendo reestabelecer moente uma unidade antes perdida e alocando um novo proprietário a classe dos senhores de engenho. Na esteira dessa dicotômica relação de reestruturação e crise há muito estabelecida, a elite açucareira tratou de valer-se de seus espaços e poderes para garantir individualmente ou coletivamente vantagens que assegurassem o status quo de seus bens e rendimentos. Os pedidos e provisões requeridos e conferidos aos senhores de engenho para suas dívidas estão intrínsecos no leque de possibilidades desta classe, que ao passo da Guerra dos Mascates mostrará as fragilidades e jogo de forças dentro da capitania de Pernambuco e da administração colonial.

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Os requerentes das liberdades: componentes de uma elite abalada Para a açucarocracia, provisões conferindo espera na execução de dívidas ou obrigações tributárias eram corriqueiras. Já em 1560 como forma de incentivo ao crescimento do patrimônio açucareiro, a Coroa isentava a cobrança de aproximadamente 20% em impostos aqueles que construíssem engenhos3119. Para todo um contexto de crise econômica, a frequência de requerimentos e provisões passadas em consideração ao “miserável estado” que a capitania se encontrava em fins dos seiscentos e a primeira metade do século XVIII tenderá a aumentar de forma rompante. Os requerimentos para a moratória ou isenção fiscal dividiam-se em: pedidos coletivos, executados pelas câmaras; ou de cunho individual, tendo o particular acionando os órgãos superiores da administração colonial. Utilizando o Arquivo Histórico Ultramarino, encontramos cerca de dezessete documentos referentes às capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba que tratam do tema, e todos anteriores ao início do século dezoito. Destes documentos, apenas cinco eram da primeira categoria dos pedidos feitos pelas câmaras, e os doze restantes pertenciam à categoria dos pedidos individuais. Tal disposição permite indicar que a elite açucareira poderia ou não utilizar os espaços de poder público ou ultrapassar os trâmites locais e burocráticos, defendendo seus próprios interesses que, entrelinhas, poderiam evocar relações clientelares, feitos ou serviços diversos prestados à Coroa. Além dos requerimentos acionados pelas câmaras e por particulares, as provisões régias garantiam um alcance maior, como a feita por Afonso VI em favor da prorrogação da cobrança de dívidas no

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 5, D. 348. AHU_ACL_CU_015, Cx. 5, D. 430. 3118 AHU_ACL_CU_015, Cx. 8, D. 723. 3119 MELLO, E. C. O bagaço da cana. P. 20. São Paulo: Penguin Classics. 2012 3117

1004 ISSN 2358-4912 tempo de seis anos para as capitanias da Paraíba e Rio de Janeiro, que mais tarde as câmaras de Pernambuco e Itamaracá também pediram extensão do recurso3120. Em cômputo geral, requerimentos e provisões gerais vindas da Coroa demandavam satisfações quanto à reedificação das propriedades. Para aqueles que se dedicassem ao replantio dos partidos de cana, reposição das peças de escravaria, compra das moendas e caldeiras, enfim, tirasse o engenho do status de fogo morto, a provisão era concedida. Para a fiscalização dos pontos a serem completados satisfatoriamente pelos senhores de engenho, cabia ao Provedor da Fazenda de Pernambuco dar o aval necessário, para que o requerimento fosse consultado pelo Conselho Ultramarino. Para propagandear o êxito da reconstrução e receber o sinal positivo para a moratória, era comum descrever a aquisição de novos partidos de cana3121, ou evocar a destruição causada pelos holandeses, muitas vezes narrando que apenas as terras foram aproveitadas, num claro apelo e oferecimento de uma imagem heroica para o proprietário arruinado que satisfez a Coroa para obtenção de sua mercê. Como bem analisou Breno Lisboa todo o contexto da crise pós-Restauração e o papel da câmara de Olinda nesse processo durante as primeiras décadas do século XVIII; as provisões para atrasar a execução das dívidas visavam não apenas a estabilidade financeira dos próprios senhores de engenho, mas também a manutenção da moagem da cana ainda que em seu estado mais pobre. Pausando a produção de algumas unidades, diminuía-se o montante de açúcar feito, e com isso perdia-se parte da arrecadação fiscal para a Fazenda Real e isso era utilizado como mote nas correspondências ao rei3122. Dessa maneira, o velho antagonismo entre comerciantes credores e senhores de engenho3123 voltava a se evidenciar em disputas de papel e tinta, anos após a Guerra dos Mascates que pôs em cheque a credibilidade política da classe agrária. Antes disso, porém, o prestígio da nobreza da terra poderia acionar certos interesses e favores nas esferas do poder ultramarino. A vistoria do provedor da fazenda, primeira etapa da provisão a ser concedida, demandava uma boa relação do requerente com seu fiscal. De grande ajuda seria possuir também incumbências na esfera local e outras sociabilidades. Muitos dos senhores de engenho que pediram as provisões de moratória estavam incorporados na burocracia ou possuíam títulos, patentes e comendas. O caso de Arcângela da Silveira, citado anteriormente, ilustra bem a trajetória da elite açucareira no quesito do prestígio social. Foi casada com Francisco do Rego Barros, possuidor de vários cargos e títulos, como cavaleiro da Ordem de Santiago – embora tenha falecido antes de receber o hábito, herdando então seu filho. -, fidalgo da casa real, exerceu os ofícios de juiz dos órfãos, vereador da câmara de Olinda, além de tê-la presidido3124. Além disso, seus filhos também foram ilustres componentes das altas funções locais como Luís do Rego Barros, capitão-mor e que instituiu um morgado em Santo Amaro das Salinas; e João do Rego Barros, capitão e provedor da fazenda de Pernambuco, que também sofreu com a crise do açúcar, pedindo dez anos de liberdade para seu engenho na Paraíba3125. Arcângela, juntamente com sua família, consumiu largos créditos em sua estadia na Bahia, comprometendo pagá-las após a restauração da capitania pernambucana. Voltando à sua propriedade, adquiriu novos empréstimos para a reforma do engenho, resultando no total esgotamento para produzir açúcar, pedindo uma espera de três anos para não ser executada. O peso do nome parece ter facilitado a conquista da concessão, pois o próprio Conselho Ultramarino ressalta o respeito “de um fidalgo da Casa de Vossa Majestade”3126, no entanto o peso das dívidas deixou em acordo a obrigação da senhora em pagar a quinta parte de seus débitos a cada ano dos três conferidos. Separando em três grupos, alocamos os doze casos dos requerentes particulares coletados no Arquivo Histórico Ultramarino quanto seus papéis desempenhados na sociedade pernambucana pósRestauração. Delegamos os grupos: da Burocracia, daqueles que exerciam funções de vereança, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 1002 AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1135. 3122 LISBOA, B. A. V. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. 2011. P. 92. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Programa de Pós Graduação em História, Recife, 2011. 3123 SCHWARTZ, S. B. Op. Cit. P. 367. 3124 COSTA, F. A. P. Anais Pernambucanos. Vol. 2 p. 562; vol. 3 p. 318 1951. Arquivo Público Estadual. Recife. 1987. 3125 AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, D. 117. 3126 AHU_ACL_CU_015, Cx. 7, D. 571. 3121

1005 ISSN 2358-4912 provedoria e outras funções administrativas locais; Nobreza, desvencilhando um pouco do sentido literal, incluímos neste grupo aqueles que possuíam os títulos de fidalgo da casa real, hábitos em ordens ou irmandades à Santa Casa de Misericórdia de Olinda; Militar, aos requerentes vinculados a patentes militares. Traçando suas características biográficas, encontramos componentes que partilhavam características em comum com os três grupos, certamente senhores de engenho de maior poderio econômico ou de sociabilidade mais dinâmica, enquanto outros poucos dedicaram-se a apenas uma outra funcionalidade. É importante destacar a dificuldade em levantar informações necessárias para alguns dos requerentes, não podendo, deste modo, identifica-los quanto seus ofícios e patentes na capitania como um todo. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 1 – Dados e grupos dos requerentes André de Barros Rego Burocracia; Nobreza; Militar Antônio Barbosa Lima Burocracia; Militar Antônio Freitas da Silva Militar Antônio Rodrigues Pacheco Nobreza Arcângela da Silveira Burocracia; Nobreza; Militar* Diogo de Mendonça Bezerra N/E Francisco do Rego Barros** N/E João Cavalcanti e Albuquerque Burocracia; Nobreza; Militar João de Almeida Militar*** João do Rego Barros Burocracia; Nobreza; Militar João Freitas Correa N/E Manoel Barbosa Lima Militar Manoel da Fonseca Rego N/E Marcos de Barros Correia Militar *: considera-se no caso a preponderância de seu marido, Francisco do Rego Barros. **: morador na Paraíba, não havendo conexão com Arcângela da Silveira. ***: João de Almeida realizou tarefas logística-militares durante a ocupação holandesa, mas não se define sua patente.

De acordo com o Quadro 1, nove dos senhores de engenho acumulavam funções militares, três entre eles capitães-mores e um mestre de campo. Em destaque, podemos citar João Cavalcanti e Albuquerque e João do Rego Barros. O primeiro, morador da freguesia de Tracunhaém, possuidor do engenho Santo Antônio, na qual conseguiu a moratória dos dez anos em 25 de maio de 16793127, foi sargento-mor e posteriormente capitão-mor tanto em Tracunhaém como em São Lourenço3128. O segundo era filho dos citados Francisco do Rego Barros e Arcângela da Silveira, capitão-mor da Paraíba, exercendo também o cargo de provedor da fazenda de Pernambuco, a partir de 1675 até sua morte em 1698. Recebeu a comenda da Ordem de Cristo e era fidalgo da casa real3129. Já exercia seu ofício na provedoria quando solicitou a moratória para seu engenho Reis Magos, o que certamente

3127

AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1134. COSTA, F. A. P. Anais Pernambucanos. Vol. 2 p. 254; vol. 5 p. 216. 1951. Arquivo Público Estadual. Recife. 1987. 3129 Idem. Vol. 1 p.365 3128

1006 ISSN 2358-4912 deve ter facilitado a vistoria favorável do provedor paraibano Sebastião Arouche Castello Branco, em 16833130. De comum aparecimento, esta soma de patentes militares entre senhores de engenho era uma tradição donatarial, fruto do sustento de companhias particulares nas Ordenanças por meio dos avultados proprietários. Além disso, a vocação militar conferia parte do status nobiliárquico carregado pelo estrato e um poder patriarcal bem estabelecido, tendo exemplo a nomeação para o cargo de capitão-mor sempre os mais bem sucedidos de cada povoado. Do grupo da Nobreza, cinco possuíam títulos ou cargos em ordens religiosas, como dois provedores da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, como o já citado João Cavalcanti e Albuquerque e André de Barros Rego, dono do engenho São João, fidalgo da casa real. A família deste primeiro, inclusive, ajuda a perceber as possibilidades para angariar a serventia do título, quando dois de seus irmãos e seu pai possuíam-no, porém ele não. A classe dos senhores de engenho não urgia pela obtenção das comendas, embora sua aquisição fosse quase sempre procurada. O status que dispunha a açucarocracia admitia elementos socioculturais agregadores que Borges da Fonseca caracterizava como uma nobreza de herança, patrimonialista. Todavia, como já referido anteriormente, Stuart Schwartz e Evaldo Cabral de Mello mostraram que a prática das relações econômicas incita a um dinamismo quanto à posse das propriedades. O próprio André de Barros Rego era dono de um engenho que pertencera décadas antes a Arnal de Holanda, ilustre personagem da época de Jorge de Albuquerque Coelho, fundador de três fábricas. As funções administrativas locais, assim como as patentes, foram incorporadas desde muito cedo pelos fabricantes de açúcar3131. A vereança olindense, por exemplo, sempre esteve amplamente atribuída à nobreza da terra, ao passo que as disputas da Guerra dos Mascates expuseram a fragilidade desse longo domínio político na capitania. Deste modo, percebemos cinco dos requerentes que exerciam cargos na administração, tendo alguns inusitados expoentes como Antônio Barbosa de Lima, secretário de nada menos que três governadores da capitania: Caetano de Melo e Castro; Francisco de Castro Morais e Antônio Félix José Machado. Foi partícipe das negociações em prol da câmara do Recife, tendo até mesmo chefiado a simbólica inauguração do pelourinho da nova vila. Era um fervoroso homem do lado mascate, mas que também se dedicou ao negócio do açúcar. Outro personagem envolvido em consideráveis cargos locais foi André de Barros Rego, presidente da câmara de Olinda, partícipe na deposição do governador João de Mendonça Furtado, o Xumbergas, em 1666. Atuou também como juiz dos Órfãos, sendo nomeado em 1714. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Quadro 2 – Disposição geográfica dos engenhos de moratória Requerente Propriedade Freguesia

3130 3131

André de Barros Rego Antônio Barbosa Lima Antônio Freitas da Silva Antônio Rodrigues Pacheco

São João Nossa Senhora dos Prazeres Nossa Senhora das Necessidades São Filipe, São Tiago

Arcângela da Silveira Diogo de Mendonça Bezerra Francisco do Rego Barros** João Cavalcanti e Albuquerque João de Almeida João do Rego Barros João Freitas Correa Manoel Barbosa Lima Manoel da Fonseca Rego

Massiape N/E São Gonçalo Santo Antônio Nossa Senhora do Bom Sucesso Reis Magos Tiberi de Cima Nossa Senhora dos Prazeres São Filipe, São Tiago e São Jorge

Marcos de Barros Correia

Nossa Senhora da Anunciação

São Lourenço N/E Várzea Goiana (Itamaracá) São Lourenço N/E (Paraíba) São Lourenço São Lourenço (Paraíba) (Paraíba) N/E Tejucopapo (Itamaracá) Jaboatão

AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, D. 117 RICUPERO, R. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 c.1630. P. 303. São Paulo. Alameda. 2009.

1007 ISSN 2358-4912 As zonas açucareiras embora fabricassem um produto em comum, diferiam em características, da forma que ecoavam também em cada engenho, isto é, algumas propriedades localizadas em porções privilegiadas, como a Várzea do Capibaribe, eram largamente mais desenvolvidas que as propriedades ao norte da capitania ou Itamaracá e Paraíba. Quando nos deparamos com as informações do Quadro 2, vemos uma dualidade entre os pedidos de liberdade. Cinco pedidos eram de senhores de engenho de propriedades nortenhas, enquanto seis possuíam unidades nas zonas mais privilegiadas. Curiosamente, a freguesia de São Lourenço, com quatro pedidos de liberdade, passava por um período de crescimento nas décadas seguintes após a Restauração Pernambucana, além de não ter sofrido grandes prejuízos durante os conflitos, ao contrário as porções vizinhas (Várzea e Jaboatão). A parte setentrional do que fora o Brasil holandês sofrera com o abandono e as migrações, além de possuir uma produtividade mais baixa. Temos então dois grupos dentre os reedificadores dos engenhos: aqueles que aproveitaram um momento propício de crescimento e aqueles que retiraram das cinzas e escombros novas e velhas unidades nas regiões mais afetadas pela guerra. Além disso, a freguesia de São Lourenço abrigou os requerentes de maior poderio, com indivíduos integrantes das três categorias apresentadas no Quadro 1.

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Considerações finais Os pedidos de liberdade para aqueles que reedificaram os engenhos após a expulsão dos holandeses foram pequenos mecanismos utilizados pelas elites locais em uma época de agitações preocupantes para as capitanias dedicadas ao açúcar. O patrimônio fundiário renovou-se nas décadas finais do século XVII, ao passo que as condições econômicas também mudaram. A crise instaurada esgotava possibilidades reais para por as engrenagens da economia açucareira na ordem correta, tendo então na mercê dos anos de moratória como um artifício oportuno para a abalada açucarocracia. As relações de poder encontradas nas entrelinhas dos requerimentos sugerem os esforços que as autoridades locais acionaram numa conjunta orientação com os poderes centrais para a urgente manutenção dos engenhos e das elites açucareiras. Referências BETHELL, L. (org.). História da América Latina, vol. 2: América Latina Colonial. São Paulo, EdUSP, 2008. RICUPERO, R. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 c.1630. São Paulo. Alameda. 2009. COSTA, F. A. P. Anais Pernambucanos. Arquivo Público Estadual. Recife. 1987. FRAGOSO, J; GOUVÊA, F. (Org.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 2010. LISBOA, B. A. V. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII. 2011. P. 92. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Programa de Pós Graduação em História, Recife, 2011. MELLO, E. C. A fronda dos mazombos: Nobres contra mascates, Pernambuco, 1666 – 1715. São Paulo: Editora 34. 2003. . Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630 – 1654. São Paulo: Editora 34. 2007. . O bagaço da cana. São Paulo: Penguin Classics. 2012 RICUPERO, R. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 c.1630. São Paulo. Alameda. 2009. SCHWARTZ, S. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das letras. 2011.

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REPENSANDO A FRONTEIRA NA CONSTITUIÇÃO DO PENSAMENTO AGRÁRIO ARTIGUISTA Pedro Vicente Stefanello Medeiros3132 Este artigo faz parte de um estudo mais amplo que busca compreender a construção do pensamento agrário de José Artigas, sintetizado no “Reglamento Provisorio de La Provincia Oriental para el Fomento de su Campaña y Seguridad de sus Hacendados” de 1815. Grande parte da historiografia que se dedicou ao estudo das origens da proposta fundiária de Artigas está indelevelmente marcada por um recorte nacional. De acordo com um conjunto de investigações que vem sendo publicadas nos últimos anos, sentimos a necessidade de pensar nosso objeto para além dos limites instituídos pelo viés da nacionalidade, sendo necessário redimensionar a configuração sócio-espacial do contexto de análise. Este trabalho tem por objetivo repensar o conceito de fronteira observando suas implicações no desenvolvimento do pensamento de José Artigas. Assim sendo, vamos elaborar nesse texto, uma discussão hitoriografica no intento de construir uma ferramenta teórica que auxilie em nossos trabalhos futuros. Na primeira parte do texto faremos uma discussão com a historiografia de recorte nacional, tentando romper com alguns postulados engendrados pela mesma. Em seguida, vamos refletir o conceito de fronteira a partir de uma “dimensão atlântica”. Por fim, apresentaremos o trecho de uma fonte inserindo as ações de Artigas na concepção de fronteira que vamos construir ao longo do texto. O recorte nacional hitoriográfico A historiografia uruguaia já trabalhou com as raízes da Revolução artiguista em larga escala, na qual a questão agrária sempre é devidamente contemplada, contudo, os objetivos dos trabalhos desenvolvidos estiveram diretamente ligados ao prisma de uma história nacional. Procuraram cada um em sua época, responder aos problemas de seu país. Em fins do século XIX, a historiografia liberal buscou consolidar a origem nacionalidade. Na primeira metade do século XX, as produções historiográficas, apoiadas em um extenso material primário, superaram algumas interpretações demasiadamente liberais, no entanto, continuaram bastante conectadas ao ponto de vista nacional. A partir dos anos 1960, um grupo de historiadores objetivou compreender os problemas do Uruguai contemporâneo através da construção de uma história nacional de orientação marxista. De acordo com María Inés Moraes, a interpretação central sobre o processo de povoamento e desenvolvimento agrário colonial apresenta um recorte espacial cujo referencial concerne ao atual território da República Oriental do Uruguai (MORAES, 2004, p.14). Scheidt nos evidencia como grande parte da historiografia na região platina explicou seus processos históricos plasmados pelo fator nacional: Com seu território atualmente fazendo parte de três países distintos, a Região Platina foi abordada pelos estudos históricos, via de regra, dentro dos limites nacionais atuais, ou seja, de forma fragmentada pela historiografia tradicional tanto da Argentina, do Uruguai como do Rio Grande do Sul e do Brasil. Neste sentido, projetava-se para tempos passados bastante remotos a existência das nacionalidades argentina, uruguaia e brasileira no interior da Região Platina. (SCHEIDT,

2011, p. 1,2). Uma das principais referências dessa historiografia de viés nacionalista foi Juan Pivel Devoto. Historiador uruguaio, Devoto desenvolveu um intenso labor no que tange à história agrária do Uruguai, bem como sobre a revolução artiguista. Além de escrever diversas obras sobre o assunto, entre elas “Raíces Coloniales de la Revolución Oriental de 1811”, mais interessante para nosso estudo, foi nos anos 3132

Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected]

1009 ISSN 2358-4912 1950 um dos principais idealizadores do “Archivo Artigas”3133. O estudo que Pivel Devoto realizou acerca das origens da revolução artiguista, com base em uma extensa documentação, é bastante rico e extremamente válido, no entanto, é possível evidenciar que um dos principais problemas de sua análise reside no recorte nacional:

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Durante los años vividos de manera tan intensa en el médio rural, Artigas había adquirido un dominio del escenario geográfico y un conocimiento de sus moradores: el rico propietario, el estanciero, el peón, el gaucho y el índio, que lo convertían en la fuerza catalizadora de la conciencia nacional. (DEVOTO, 1952, p.95,96).

A interpretação que Pivel faz, de um Artigas inserido naquele espaço, de sua forte relação com o território e com os atores sociais que o compunham, bem como do reconhecimento destes últimos como força catalisadora da revolução, é de singular importância. Contudo, a grande questão é atribuir a esta conjunção de elementos um sentido de construção de uma consciência nacional. Assim, o autor tece uma linha que concebe a nacionalidade como causa da organização nacional uruguaia posterior, e neste caso, apropria-se do artiguismo, dando ênfase em uma proto-consciência nacional desenvolvida na época da Colônia como origem da Revolução encabeçada por José de Artigas a partir de 1811. Se aprofundarmos um pouco nossa análise notaremos que até mesmo o título da obra máxima de Devoto se enquadra na lógica referida. Ao denominar “Raíces Coloniales de la Revolución Oriental de 1811”, o autor usa o termo “oriental” reafirmando os limites do atual Uruguai, construindo deste modo, um sentido de gestação nacional. É importante esclarecer que a República Oriental do Uruguai foi um estado nação constituído após a revolução artiguista no território da então “Banda Oriental”, denominação corrente para a porção de terras que se localizava a oriente do rio da Prata e Uruguai durante a época colonial. Neste sentido, é interessante repensar os usos e os significados que o termo “oriental” possuía no momento da revolução: conforme Ana Frega, as etapas do processo revolucionário foram pautando algumas mudanças em seu sentido, tanto no que tange aos pontos de referência, bem como sua carga simbólica (FREGA, 2011, p.368). Segundo a autora, durante o período da revolução, quando se discutia a reestruturação dos territórios coloniais, o ponto de referência variou em função dos diferentes projetos e centros de poder. Em um primeiro momento, o termo “oriental” manteve o mesmo significado, designando as localidades da costa leste do rio Uruguai. Do ponto de vista geográfico, remetia ao referencial de Buenos Aires, que até 1810 era a sede do Vice-reinado do Prata e a partir de então se tornava a sede da Junta de governo independentista. Após 1811, com o rompimento entre Artigas e o governo de Buenos Aires, a expressão “oriental”, cada vez mais se vinculava aqueles que seguiam o movimento artiguista. Entre 1814 e 1815, com o fortalecimento da aliança entre diversas províncias que defendiam uma proposta federal ante o projeto unitário de Buenos Aires, “Orientales”, passou a ser associado a “federalismo”. Todavia, essas províncias que estavam estabelecendo uma aliança com os artiguistas, como por exemplo, Santa-Fé e Córdoba, se localizavam a ocidente do rio Uruguai. Portanto, aprecia-se que o termo “oriental” transcendeu o sentido geográfico, ganhando uma conotação política. A reflexão que fizemos evidencia a complexidade de uma análise que discute para além do prisma do nacional, ressaltando a importância de se redimensionar a concepção de fronteira. Assim sendo, queremos inserir nosso estudo na perspectiva que Ana Frega propõe para seu trabalho “Pueblos y soberania en la revolución artiguista: La región de Santo Domingo Soriano desde fines de la colônia a la ocupación portuguesa”: Esta obra se inscribe en la preocupación de superar las limitaciones de la tradicional interpretación marcadamente lineal, nacionalista y elitista que “há recortado” el estúdio del artiguismo del processo revolucionário rioplatense, há sostenido el carácter “prefigurado” de la Provincia (luego 3133

O “Archivo Artigas” consistiu na criação de um imenso acervo documental que contemplasse qualquer documento referente a José Artigas, contendo desde fontes ligadas a seu avô e seu pai, perpassando os períodos colonial, revolucionário e posterior à revolução. De 1950 até os dias atuais foram publicados 36 tomos desse arquivo.

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ISSN 2358-4912 Estado) Oriental y há ubicado José Artigas como “héroe fundador” de la “nacionalidad oriental”.

(FREGA, 2011, p. 11). A visão nos apresentada por Ana Frega está diretamente conectada com a interpretação elaborada por José Carlos Chiaramonte, em sua crítica ao “mito das origens”. Esse historiador vem desenvolvendo uma densa renovação historiográfica referente à formação dos Estados nacionais na América latina. Em seu livro “Ciudades, províncias, Estados: Orígenes de la Nación Argentina (1800-1846)” desconstrói vários pressupostos da historiografia romântica argentina. Com base em um extenso material primário, Chiaramonte enfrenta os paradigmas do anacronismo e do teleologismo, atestando que os mesmos foram os responsáveis por deformar a compreensão de tudo que aconteceu antes da emergência da nação. O principal marco interpretativo edificado pelo autor afirma que a formação de uma nacionalidade argentina foi efeito e não causa da história da organização da Nação argentina atual. Repensando a fronteira a partir de uma dimensão atlântica Nosso interesse de repensar a concepção de fronteira se explica pela tentativa de compreender o contexto de formação do pensamento agrário de Artigas, em fins do século XVIII e começo do XIX, em um sentido mais amplo. Assim sendo, discutir essa questão com mais profundidade se torna possível na medida em que consideramos o mundo colonial em níveis de uma história atlântica, rompendo com os limites impostos por historigrafias nacionais, como demonstram Jack Greene e Philip Morgan: “The great virtue of thinking in Atlantic terms is that it encourages broad perspectives, transnational orientations, and expanded horizons at the same time that it offers a chance for overcoming national and other pariochialisms” (GREENE & MORGAN, 2009, p.8). Essa perspectiva discute o período colonial a partir de uma dinâmica atlântica, que embora contemple as singularidades de cada região, não analisa cada processo histórico regional de maneira isolada. Segundo os autores, eventos que aconteceram em uma determinada parte do Atlântico, reverberaram por mais de mil quilômetros de distância. Apresentando uma visão muito similar à de Greene e Morgan, o já citado José Chiaramonte também admite o conceito de “dimensão atlântica” como um marco para se superar interpretações de recorte nacionalista: “El concepto de lo atlántico es asi considerado un esfuerzo por trascender los límites de las hitoriografias nacionales y ubicar en esa amplia perspectiva no sólo las particularidades de cada caso nacional o regional, sino también las a veces sorprendentes similitudes de los mismos”(CHIARAMONTE , 2011, s/p). Situando o mundo atlântico como um cenário integrador, Chiaramonte desconstrói a dicotomia existente na historiografia sobre o período colonial, entre uma dimensão anglo-saxâ protestante e moderna, e uma outra ibérica, católica e tradicional, e portanto atrasada. Deste modo, é preciso não conceber duas dimensões distintas, e sim uma “dimensão atlântica” como o desenvolvimento histórico da zona de interação entre os povos que a compunham. Nesta ótica, Chiaramonte aplica a discussão para a região platina. Na primeira parte de sua obra, já citada anteriormente,“Cultura política en el fin del periodo colonial”, o autor fala que o momento de inflexão do sistema colonial ibérico apresentava uma dinâmica que comportava, concomitantemente, decisivas rupturas e inevitáveis continuidades com o Antigo Regime, sendo necessário conceber o período não como mera gestação das independências, e sim, inserido-se no bojo de um processo iniciado pelo Reformismo Bourbônico e reconfigurado a partir da situação singular do “Virreynato del Plata”. Desse modo, essa fundamentação do contexto nos permite analisar o artiguismo desvinculado de uma protonacionalidade uruguaia, inserido na dinâmica platina de fins do século XVIII e começo do XIX. Portanto, integrado nas relações do mundo atlântico. Buscaremos compreender as origens da proposta agrária de Artigas a partir de uma delimitação sócio-espacial mais ampla. O território de análise é a região do Rio da Prata, mais especificamente seu universo rural. Para entender a configuração desse espaço temos como referência a definição que as autoras Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind constroem para a região platina colonial. Para as autoras o conceito de região está fundamentado a partir da “geografia crítica” (REICHEL & GUTFREIND, 1996 p. 12), caracterizando a região como uma totalidade, onde o espaço é definido pela relação do homem com o mesmo:

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ISSN 2358-4912 Ao analisarmos o processo histórico colonial da Região Platina como uma totalidade, sentimos a necessidade de ampliar o conceito de região, integrando-lhe também, posicionamentos teóricos trazidos da história sociocultural. Nesse sentido, entendemos que as relações sociais estão fundamentadas em experiências concretas, vividas pelos homens, as quais fazem deles produtores de cultura. (REICHEL & GUTFREIND, 1996, p. 13).

Considerando a discussão das autoras, enxergamos o espaço platino como um território entre o império espanhol e português, cuja fronteira, ao invés de separar, integrava aquela região, se constituindo um espaço aberto para trocas comerciais e culturais daqueles que o habitavam. Em seu artigo “A construção de fronteiras na Região Platina pela historiografia do século XIX e princípios do século XX”, Eduardo Scheidt apresenta o conceito de “fronteira” defendido por Jean Chesneaux (1984). Para Chesneaux, existem duas maneiras distintas de se conceber a fronteira, a “fronteira-linha” e a ”fronteira-zona”. Na primeira situação, a fronteira passa a uma delimitação estrita, em função das exigências estatais mais extremadas, cada metro quadrado, cada indivíduo, é atribuído à soberania de um Estado ou de outro. Já na segunda situação, a fronteira é uma zona de intercâmbios comerciais e humanos de estatuto político impreciso. Em nosso trabalho, para analisar a região platina colonial e o alvorecer independentista, cremos que o conceito mais adequado é o de “fronteira-zona”, como sustenta Scheidt: Conforme já explicitado no início deste projeto, nosso entendimento é que os atuais territórios da campanha sul-rio-grandense, do Uruguai e do pampa argentino, constituíam uma unidade no período de sua formação histórica denominada Região Platina. As fronteiras que se constituíam, pois, eram “fronteiras-zona”, pois se caracterizam por um constante fluxo populacional, trocas comerciais e de idéias, bem como mútuas influências diversas. Entretanto, os projetos políticos nacionais visavam fragmentar o território da região, constituindo as “fronteiras-linhas”. As representações historiográficas do século XIX, segundo nossa perspectiva, contribuíram para a construção (no campo das representações) das fronteiras-linha, ignorando ou minimizando as práticas de intercâmbios e influências recíprocas diversas, ou seja, as realidades das fronteiraszonas. (SCHEIDT, 2011, p. 4).

Concebemos a fronteira como um universo complexo de diferenças e semelhanças, de divergências e aproximações, de permanências e mudanças, do individual e do coletivo, nos quais o político, o econômico, o jurídico, o militar e o cultural pertencem ao mesmo corpo e objeto. Nestes termos, a fronteira platina pode ser compreendida na dimensão de uma história atlântica, como corroboram Greene e Morgan: “Finally, borderland areas, transfrontiers regions, places where natives and newcomers collided and ofted non ruled, formed another vector of Atlantic history” (GREENE & MORGAN, 2009, p.13). O sentido de “fronteira” apresentado, nos permite compreender o processo histórico da região pampeana evidenciando suas complexidades e entendendo de que maneira elas vão incidir na construção da proposta agrária artiguista. Tanto no que tange ao desenvolvimento colonial, bem como a gênese da mesma em um processo revolucionário, cujo movimento específico se constituía singular, até mesmo pelos tipos de integração e definição de fronteiras que almejava. Artigas e a “fronteira” Para concluir nosso artigo realizermos uma breve discussão com a fonte, interpretando a mesma a partir do conceito de fronteira que elaboramos ao longo do texto. O excerto da fonte que apresentaremos trata de uma carta enviada por José Artigas às autoridades do Vice-Reino, informando suas ações na campanha da “Banda Oriental” enquanto capitão de “Blandengues”, corpos de polícia rural criados pelas autoridades espanholas durante o Reformismo Bourbônico na segunta metade do século XVIII. Para problematizar a questão é interessante ilustrar a análise que Russel-Wood faz sobre a fronteira em seu estudo sobre o período colonial português: In this Portuguese overseas Atlantic, frontiers were blurred; perception and “quality” of the person” replaced tradiotional metropolitan social criteria for assessing a person’s standing: negotiation was more effective than mandates; charisma replaced delegated authority; lines between what was legal

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ISSN 2358-4912 and illegal were blurred; and application of the letter of the law was negotiable. Transition, porosity, permeability, and elasticity characterized this other Portuguese Atlantic. (RUSSEL-

WOOD, 2009, p.82). O espaço de ação do “blandengue” Artigas, foi justamente um território fronteiriço entre os impérios espanhol e português, e neste sentido, os termos elencados pelo autor, como porosidade, permeabilidade e elasticidade podem ser evidenciados na fonte como se segue: (…) sali el dia seguiente en procura de ellos al paraje endonde estaban y tambien por enterarme si esta hacienda era robada prendi á dos de ellos, y me declaran que no era comprada aquella hacienda, preguntoles que quien era el dueño, y me dicen que era un tal Galiano Paraguay, y que también iba allí, y los pregunté que para donde iban y me respondieron que iban para Portugal, y que ellos eran Peones hallándolos sin culpa los admiti para Blandengues (…). (ARCHIVO

ARTIGAS, 1950 p.47) Aprecia-se que Artigas incorpora um bando de “vagos” à sua partida oficial, aqueles que até então estavam “fora da lei”, passariam a ocupar um lugar de “autoridade”. As ações de contrabando mostram como aquele tipo de atividade era inerente aquele tipo de vivência, cujas autoridades apresentavam uma natureza onde as fronteiras da legalidade eram bastante tênues. Além de nos evidenciar a débil condição entre o legal e o ilegal, este informe de Artigas também explica sua relação para com as gentes da campanha, sendo um homem forjado neste modus vivendi, em meio à gauchos, vagos, malhechores, contrabandistas, entre outras denominações as quais se conheciam os que habitavam aquele espaço. Essa sua dinâmica em relação ao pampa denota o modo pelo qual estava inserido naquele esspaço. No excerto citado, Artigas informa ao Virrey o quão ativo era o fluxo do contrabando de couros e animais para os domínios de Portugal, corroborando como é importante para o estudo conceber aquele contexto como uma “fronteira zona”. Considerações finais Os esforços realizados neste artigo edificam um aporte teórico que nos ajuda a evidenciar alguns elementos necessários para discutir o problema central de nossa pesquisa, o que tornou possível Artigas, no contexto em que estava inserido, construir um pensamento tão singular em relação a terra. Conforme nos dedicamos a repensar as concepções de fronteira na região platina colonial foi cabível romper com alguns pressupostos historiográficos tangenciados pela ótica da nacionalidade. Observamos que determinados termos que foram usados pela historiografia expressando um sentido nacional, possuíram, durante o período de análise, outros significados. Neste sentido, evidenciou-se que o contexto estudado deve ser compreendido não como mera gestação das independências, e sim, inserindo-se no bojo de um processo iniciado pelo Reformismo Bourbônico e reconfigurado a partir da situação singular do “Virreynato del Plata”. Seguindo essa linha de pensamento foi viável entender o contexto estudado com mais complexidade, e, portanto, admitindo algumas interpretações pensadas em níveis de uma história atlântica. Assim, o Atlântico é entendido como um cenário integrador no mundo colonial, havendo uma intensa circulação de mercadorias, pessoas e idéias. Outro ponto de vista considerado, foi tangente à natureza da autoridade, caracterizada muitas vezes pela porosidade e permeabilidade do status da legalidade. Deste modo, os territórios fronteiriços ao invés de separar, acabaram por integrar os agentes sociais que os habitavam. Os elementos observados serão de suma importância em nossa tentativa de compreender a construção do pensamento agrário de Artigas. Em primeiro lugar, a circulação de idéias pelo atlântico pode nos dar a dimensão do debate acerca do pensamento econômico e agrário que estava sendo realizado no mundo ocidental naquele momento. Isso nos revelaria com mais profundidade o arcabouço ideológico que sustentou o pensamento artiguista. A segunda variável seria relativa à fronteira. Conceber a mesma nos termos que discutimos, denota a inserção de Artigas no espaço pampeano rural, conhecendo com profundidade o território e aqueles que o compunham. Sinalizamos

1013 ISSN 2358-4912 que este fator pode ter sido de vital importância no momento de Jose Artigas projetar suas idéias em relação a terra.

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A OCUPAÇÃO DO SUL MARANHENSE Philipe Luiz Trindade de Azevedo A colonização do sul do Maranhão está intimamente ligada ao processo de expansão das terras direcionadas para a atividade pecuarista, no início do século XVIII. As entradas de fazendeiros afugentavam, prendiam, ou exterminavam os indígenas para garantir a posse da terra. Desde 1747 apresentam-se incursões que deveriam fazer frente aos indígenas, que segundo as cartas oficiais, cometiam assaltos, mortes e outras barbaridades contra os fazendeiros que se estabeleciam no sul do Maranhão (na região dos Pastos Bons) e do Piauí (nas áreas próximas à ribeira do Parnaguá e do Gurgueia, por exemplo). Este trabalho tem por objetivo apresentar a frente de colonização pecuária apontada no Maranhão e discorrer sobre a dinâmica das guerras justas que atendiam aos anseios da Fazenda Real. A ocupação do sul maranhense está ligada ao processo de estabelecimento de fazendas de gado nos sertões do Brasil. A pecuária foi sendo inserida na economia do Brasil graças à expansão do açúcar, pois o gado era amplamente utilizado nos engenhos em diversas funções, servia de alimento, meio de transporte, força motriz, e ainda era possível aproveitar o couro do animal para confeccionar objetos diversos. Andreoni (1711), em Cultura e Opulencia do Brasil, discorre sobre as práticas diárias e as necessidades de um engenho de açúcar, real ou inferior3134, e destaca em diversos momentos a presença dos bois na lida diária do trabalho nos engenhos de açúcar. Transcrevemos a seguir um trecho da obra que demonstra a coexistência entre o açúcar e o gado. A terra que se escolhe para o pasto ao redor do engenho, há-de ter água e há-se ser cercada, ou com plantas vivas, como são as de pinhões, ou com estacas e varas do mato. O melhor pasto é o que tem muita grama, parte em outeiro e outra parte em várzea, porque desta sorte em todo o tempo, ou em uma ou em outra parte, assim os bois como as bestas acharão que comer (ANDREONI, 1711,

p. 27). O açúcar era a principal fonte de economia da colônia do Brasil. Na medida em que a atividade pecuária ganhava espaço, ela entrava em conflito direto com os engenhos, pois ambos disputavam a posse das mesmas porções de terra. Devido ao fato da economia do açúcar ocupar um espaço privilegiado, os pecuaristas foram obrigados a procurar outros territórios, o que os levou a explorar os sertões do Nordeste (CABRAL, 2008). Pernambuco e Bahia eram os dois principais centros produtores de açúcar, e consequentemente os pecuaristas dessas duas regiões foram impulsionados para os sertões e para as áreas de mata virgem. Partiram-se dessas duas localidades, alcançando-se o vale do rio São Francisco, em meados do século XVII. Deste ponto os criadores de gado seguiram duas direções diferentes, a primeira desceu o curso do rio São Francisco em direção as minas. O aumento populacional observado nas minas foi suficiente para consumir rapidamente a carne produzida nas fazendas do São Francisco. Contudo, essas fazendas sofreram com a concorrência da carne proveniente do sul das minas, e a Administração pública a fim de controlar a dispersão do ouro fechou as comunicações da região com o norte e limitou o acesso as minas à estrada com o Rio de Janeiro. Este acontecimento impulsionou os pecuaristas a abrir-se para a região ao norte do São Francisco (PRADO JR., [21--]).

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Dos engenhos, uns se chamam reais, outros, inferiores, vulgarmente engenhocas. Os reais ganharam este apelido por terem todas as partes de que se compõem e de todas as oficinas, perfeitas, cheias de grande número de escravos, com muitos canaviais próprios e outros obrigados à moenda; e principalmente por terem a realeza de moerem com água, à diferença de outros [inferiores], que moem com cavalos e bois e são menos providos e aparelhados; ou, pelo menos, com menor perfeição e largueza, das oficinas necessárias e com pouco número de escravos, para fazerem, como dizem, o engenho moente e corrente (ANDREONI, 1711, [s/p].

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ISSN 2358-4912 O rio [São Francisco] é transposto, e em fins do séc. XVII começa a ser ocupado o interior do atual Estado do Piauí. As condições naturais já são aí melhores que o setor ocupado anteriormente: pluviosidade mais elevada e melhor distribuída, cursos de água permanentes. Daí também uma forragem natural de melhor qualidade. As fazendas do Piauí tornar-se-ão logo as mais importantes de todo o Nordeste, e a maior parte do gado consumido na Bahia provém delas, embora tivesse de percorrer para alcançar seu mercado cerca de mil e mais quilômetros de caminho (PRADO JR,

[21--], p. 45). A dinâmica de ocupação do Piauí se procedeu da seguinte forma. A saber, do Pernambuco a expansão pecuária é encabeçada por Domingos Afonso Mafrense e Domingos Jorge Velho, ambos trouxeram seus rebanhos das margens do rio São Francisco e se estabeleceram nas chapadas do Piauí, onde Mafrense se fixou e fundou muitas fazendas, depois de fazer frente aos indígenas (CARDOSO, 1946, p. 1). Da Bahia veio Francisco Dias d’Avila, patrocinado pela Casa da Torre, ele alcançou essas mesmas regiões do Piauí e acompanhado de vaqueiros e sertanistas, organizou uma incursão contra os índios Gurguéia, que partiam do Piauí provocando ataques contra as fazendas instaladas ao longo do rio São Francisco. Este empreendimento belicoso atingiu o Piauí e atravessou o rio Parnaíba estancando no Maranhão (CABRAL, 2008). A frente expansionista, proveniente da Bahia, que passou pelo Piauí, nas proximidades da ribeira do Parnaguá, se estabeleceu no Maranhão na região dos denominados Pastos Bons; os exploradores deram o nome de Pastos Bons à região que vinha da zona ribeirinha do Parnaíba e avançava para oeste. Salientamos que a colonização do sul do Maranhão deveu-se a essas frentes de exploração organizadas pelos criadores de gado. À medida que se buscavam melhores pastagens para o gado, iam se lançado as bases para a fundação de povoações que dariam, no futuro, nome aos municípios do sul maranhense (CARDOSO, 1946).

Fonte: CABRAL, 2008.

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ISSN 2358-4912 Os pecuaristas que foram se estabelecendo no sul do Maranhão foram depositando seus gados nos campos naturais dos Pastos Bons. Acrescenta-se que a ocupação do sul das referidas capitanias do Maranhão e Piauí esteve diretamente ligada ao embate contra os indígenas que habitavam estas regiões. As terras próximas à ribeira do Parnaíba foram as primeiras a serem ocupadas, nessas proximidades fundou-se a povoação dos Pastos Bons e as primeiras fazendas do sul do Maranhão. Os fazendeiros exterminavam, ou escravizavam os gentios para assegurar o domínio da terra. Desde meados do século XVIII faziam-se frentes aos indígenas, que cometiam assaltos, mortes e outras barbaridades contra os fazendeiros que se estabeleciam no sul do Maranhão (na região dos Pastos Bons) e do Piauí (nas áreas próximas à ribeira do Parnaguá e do Gurgueia, por exemplo).

Fonte: CABRAL, 2008.

Diferente da frente litorânea3135, a frente de colonização pecuária esteve distante da economia do norte da capitania do Maranhão. A região dos Pastos Bons esteve mais ligada ao abastecimento dos

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Primeira frente de colonização do Maranhão, que se iniciou após a expulsão dos franceses, em 1615, conhecida como frente litorânea (CABRAL, 2008), baseada em uma forma de colonização que partiu em direção ao interior e à costa litorânea, acompanhando o curso dos rios, e que se fundamentava na produção agrícola.

1017 ISSN 2358-4912 centros econômicos do Nordeste, como Bahia e Pernambuco. A região sul do Maranhão, até final do século XVIII, possuía maior interação administrativa com a capitania do Piauí. Por exemplo, em 1170, quando a povoação dos Pastos Bons foi elevada a vila, sua jurisdição ficou a cargo da vila de Oeira, por conta de suas proximidades com o Piauí e não com o Maranhão (Arrêté. Roval de D. José I por lequel La Paroisse de Pastos dans sertão Du Maranhão fut élevée à La categorie de ville avec Le nom de Villa de São Bento dos Pastos Bons” apud CARVALHO, 1979) A partir da metade do século XVIII, os vaqueiros que se estabeleceram na ribeira do Parnaíba avançaram pelo solo maranhense, explorando os vales dos rios Balsas, Neves e Macapá. Esse processo resultou na criação de outras fazendas e “na criação da aldeia de São Félix de Balsas, situada próximo à confluência do rio Balsas com o rio Parnaíba. Esse aldeamento deu origem ao povoado do mesmo nome, mais tarde vila e hoje cidade de São Félix de Balsas” (CABRAL, 2008, p. 83). À exploração do território se apresentou um empecilho, a resistência dos índios ou gentios, como são amplamente denominados na documentação manuscrita do período. Para sanar este problema se fizeram as chamadas guerras justas, justificadas pelo Estado português e que “valeram tanto por sua frequência, (...), como por sua eficácia na sujeição, destruição e escravização de grande número de membros de inúmeras nações indígenas que habitam o litoral e os vales dos rios, objetos da empresa colonizadora”(CABRAL, 2008, p. 50). Aliado a isso acrescenta-se o trabalho de catequização, liderado pelas Ordens religiosas. A título de exemplificação, em termo da Junta das Missões do Maranhão em 10 de julho de 1747, o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor e Capitão General Francisco Pedro Gorjão fez a proposta de se viabilizarem formas de fazer guerra defensiva aos índios Gueguê3136 que andavam atacando os comboios de gado provenientes das ribeiras do Gurgueia, Parnaguá e Piauí que iam para Minas e para à Bahia. Ressaltasse que os índios estavam a despovoar vinte e sete fazendas e a matar brancos e negros (APEM, Registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 14-15.). Em resposta ao pedido de Francisco Pedro Mendonça Gorjão, governador e capitão-general do Maranhão, a Junta das Missões do Maranhão se reuniu no Palácio do Maranhão e decidiu pela adoção da proposta de Sua Majestade em empreender guerra contra os Gueguê, este documento ainda insere a informação de que, além de atacarem os fazendeiros da região de Parnaguá, os gentios mataram o Padre missionário que estava na aldeia que habitavam (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 19-19v.). Em outro documento encontramos solicitação dos moradores da ribeira do Parnaíba e do Itapecuru em empreender uma bandeira contra alguns gentios que insistiam em praticar roubos e mortes na região. Transcrevemos abaixo parte da redação do documento onde é possível observar os conflitos entre povoadores e indígenas, nas regiões do sul maranhense. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Aos vinte e dous de junho de mil settecentos e seicentos nesta cidade de São Luis do maranhão no Palacio da Rezidencia di Illustrissimo e Excelentissimo Senhor Governador do Estado Francisco Pedro de Mendonça Gorjão forão convocados os Reverendos Deputados da Junta abaixo assignados, e na falta do Excelentissimo e Reverendissimo Bispo assestio o seu Doutor Provizor e Vigario geral João Roiz Covette, e logo pello ditto Illustrissimo e Excelentissimo Governador e Capitam General foy mandado ler hum Requerimento dos moradores da Ribeira do Itapecurú e Parnaíba, em que largamente pondera as mortes e roubos com que os gentios bárbaros das Nasçoens Guegue, Timbira, e Coroá tem destruido a ditta Ribeira de que se tem seguido despovoarem se muitas fazendas com notaveis prejuizos de seus donos, e dos Dizimos de Sua Magestade, por cujos motivos pedião faculdade para formarem hua Bandeira para expulsarem os dittos gentios (...) e para este effeito precizarão hua ajuda de custo de Polvora, Chumbo e Armas (...)(ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO, Registro dos

assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 21-21v.). 3136

Povo indígena estabelecido na região central do Piauí. Na segunda metade do século XVIII, sofreu “guerra justa” autorizada pela Junta de Missões juntamente com Acroá e Timbira. Tb. designados Goguês (FRANKLIN, 2005, p. 262).

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ISSN 2358-4912 A partir da consulta de documentos da capitania do Maranhão encontramos referências ao ofício, datado de sete de setembro de 1806, de D. Francisco de Mello Manoel da Câmara, governador e capitão-general da capitania do Maranhão, acusando o recebimento das informações de que a capitania do Piauí sofria com o ataque do gentio Pimenteira. Francisco de Mello aprovava as incursões contra os índios, organizadas por Carlos Cezar Burlamaqui, governador da capitania do Piauí (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Livro de Registro da correspondência do Governador e capitão-general do Estado do Maranhão com autoridades da Capitania do Piauí, n. 53, fls. 10v-11.). Observou-se ofício de D. Francisco de Mello Manoel da Câmara, Governador e capitão-general do Estado do Maranhão, endereçado ao Visconde de Anadia em que se atesta o discurso do colonizador ao classificar a ação dos índios como extremamente prejudicial aos interesses da Fazenda Real. (...) este julgado [Pastos Bons] tem sido muito perseguido por varias Naçoens de Gentios que tem feito despovoar muitas fazendas em prejuízo dos interesses de Sua Alteza Real dos seus povos e, desta Cidade, eu reforcei o Destacamento pondo-lhe á testa hum official dos mais inteligentes e conhecedor do paiz o qual espero desempenhe o de que o tenha encarregado o que tudo a tempo proprio darei parte a Vossa Excelencia, he precizo que o Juiz entre nas mesmas vistas do Commandante, como o actual os quais ambos se tem combinado para o fim desejado, muitas comissoens álias uteis e de necessidade e a falta d’isto se tem malogrado, e com grande despeza da Fazenda Real e dos povos; eu espero que tudo se conclua de maneira que nem a Fazenda de Sua Alteza Real nem os seus vassalos sofrão (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO

MARANHÃO. Registro da correspondência do Governador e capitãogeneral como ministro e secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, nº 289,1806-1808, fls. 21v -23.). Ao aportarmos tais informações nos objetivamos em apresentar a dinâmica de ocupação de terras no Estado do Maranhão, principalmente na região do município do Alto Parnaíba. Constatamos altos graus de insatisfação, tanto por parte dos indígenas, que foram exterminados ou retirados para outras regiões das províncias vizinhas o que justificou os seus ataques às fazendas e roubos de gado, como por parte dos fazendeiros que acabaram por empreender guerra de defesa contra os gentios. Tal processo constitui-se em ciclo violento que fundamentava-se na proteção da terra através da guerra justa entre exploradores e indígenas. Referências ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 1415.). ______. Registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 19-19v. ______. Registro dos assentos, despachos e sentenças que se determinam em cada Junta das Missões na cidade de São Luís do Maranhão, 1738-1777, fls. 21-21v. ______. Registro da correspondência do Governador e capitão-general como ministro e secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, nº 289,1806-1808, fls. 21v -23. ______. Livro de Registro da correspondência do Governador e capitão-general do Estado do Maranhão com autoridades da Capitania do Piauí, n. 53, fls. 10v-11. ANDREONI, João Antônio. Cultura e Opulencia do Brasil. [S.l: s.n], 1711. CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do Gado: conquista e ocupação do sul do Maranhão. Coleção Humanidades. V. 05. São Luís: Edufma, 2008. 178 p. CARDOSO, Clodoaldo. Municípios maranhenses: Pastos Bons. Rio de Janeiro: IBGE, 1946. 87 p. FRANKLIN, Adalberto. Introdução ao Roteiro da viagem que fez o major Francisco de Paula Ribeiro às fronteiras da Capitania do Maranhão e Goiás. In: ______; CARVALHO, João Renôr F. de. Francisco de

1019 ISSN 2358-4912 Paula Ribeiro desbravador dos sertões de Pastos Bons: a base geográfica e humana do sul do Maranhão. Imperatriz, MA: Ética, 2005, p. 57-66. ______. Índice Onosmático Remissivo. In: ______; CARVALHO, João Renôr F. de. Francisco de Paula Ribeiro desbravador dos sertões de Pastos Bons: a base geográfica e humana do sul do Maranhão. Imperatriz, MA: Ética, 2005, p. 251-280. LIMA DOS SANTOS, Raimundo. O sertão inventado: a percepção dos sertões maranhenses pelo olhar de Francisco de Paula Ribeiro. Diálogos Latinoamericanos, Aarhus, n. 19, 2012, pp. 119-145. Disponível em: < http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=16229034005>. Acesso em: 25 abr. 2014. PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. [S.l: s.n], [21--]. Disponível em: < http://www.memoriasdaresistencia.org.br/cpjr_historiaeconomicadobrasil.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2014. CARVALHO, João Renôr F. de. Peuplement ET conflits dans Le Amazonnie Brésiliane. These de 3ème, Université de Paris III Institut dês Hautes Etudes de l’Amérique Latine, Paris, 1979. Annexe nº 2. P. 211-212. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A ESTRADA PROIBIDA DA BAHIA: ENTRE O CAMINHO E OS DESCAMINHOS (1694 – 1716) Pollyanna Precioso Neves3137 A descoberta do ouro na região do sertão de Cataguases, ou melhor dizendo, o manifesto destas, já que é de se supor que anterior ao ano de 1694 vários veios auríferos já estavam sendo explorados sem o conhecimento da Coroa3138, redirecionou as atenções do Império Português para esta nova realidade. Se por um lado, a busca por metais preciosos foi uma das maiores pretensões da Metrópole, por outro, quando o fato foi consumado e o primeiro manifesto feito, foi necessário pensar num ordenamento que abarcasse esta realidade. A estruturação fiscal e de mando do Nordeste açucareiro não dava conta das novas demandas que a prematura sociedade aurífera apresentava3139. Era de suma importância pensar no controle geográfico da região, na melhor forma de exploração das datas e instituir um corpo fiscal que desse conta de garantir o lucro real e amortizar a presença dos potentados locais. Ou seja, era necessária a expansão das fronteiras da colonização agora, adentro do território da Colônia do Brasil. Grande parte da historiografia que se debruça sobre Minas colonial menciona a proibição do trânsito pela Estrada Geral da Bahia, mas nenhuma de fato aprofundou nos meandros desta problemática. O propósito deste trabalho é tentar diminuir tal defasagem procurando compreendê-la de maneira mais complexa. Portanto, mais especificamente, é sobre a realidade instável e controversa da sociedade aurífera que o presente artigo se debruça. Dentre as tentativas da Metrópole de “pôr ordem na casa”, nossa atenção se direciona à proibição do comércio de mercadorias e escravos pela Estrada Geral da Bahia para a região das Minas. Contudo, é necessário que recorramos à produção historiográfica que se preocupa com a questão dos descaminhos coloniais e que vem merecendo muita atenção por parte de um conjunto importante de trabalhos. Se não o mais importante, sem dúvida o mais abrangente estudo sobre o tema é o trabalho de Paulo Cavalcante. 3140 O autor parte da ideia de que só há o ilícito, ou o descaminh’, porque há o lícito, ou seja, um caminho a seguir, “o descaminho é uma prática enraizada no sistema existente, só se pode descaminhar porque há um caminho: o da Fazenda Real. ”3141 Desta forma, para entender de maneira mais completa os descaminhos é de suma importância debruçar sobre o caminho, logo, as ordenações metropolitanas. Nesse sentido, veremos adiante de que forma ocorriam os confiscos de um lado, e os descaminhos de outro. O Regimento das Minas do Ouro de 19 de abril de 1702 foi um importante marco nos primeiros passos da institucionalização da ordem na região das Minas3142. Nele foram instituídas as superintendências, oficializada a proibição em transitar com mercadorias pela estrada da Bahia, atentava-se às questões das repartições das datas minerais. Assim como, a criação do cargo do superintendente que dava-lhe amplos poderes para resolução de conflitos e problemas referentes ao

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Universidade Federal de Ouro Preto. Email: [email protected]. Sob orientação do Professor Pósdoutor Marco Antônio Silveira; Instituição de fomento: Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 3138 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.31. 3139 FIGUEIREDO, Luciano. “O Império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII – XVIII. ” In: Júnia Furtado. Diálogos Oceânicos, Belos Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.197 – 254. 3140 CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). São Paulo. Hucitec; FAPESP, 2006. 3141 CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). Op. cit., p. 16. 3142 “ (...) o Regimento de 1702, com a nova organização administrativa, tinha como significado mais profundo a introdução da justiça numa região dominada até então por poderosos e potentados. ” ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 68.

1021 ISSN 2358-4912 ouro. Constituindo um dos principais mecanismos que poderiam, pelo menos em tese, salvaguardar o ouro de eventuais descaminhos. Entretanto, antes mesmo de 1702, a questão do trânsito pelo Caminho do São Francisco havia sido posta em discussão. Um bando de 1699 já decretava sua proibição, mas foi a partir do momento em que Manuel de Borba Gato, superintendente das Minas do Rio das Velhas, recebeu, em 14 de outubro de 1701, a carta régia reafirmando a proibição, é que os confiscos se iniciaram e perduraram até o ano de 17163143. Num processo de idas e vindas que ora proibiam totalmente, ora parcialmente o caminho. Há de se atentar também na contenda entre Arthur de Sá e Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro e João de Lencastre, governador-geral. A proposta do primeiro era uma política de portas abertas na região aurífera temendo crises de fome e abastecimento. Em contrapartida, João de Lencastre propunha a abertura de um caminho até o litoral do Espírito Santo, ficando a região norte das Minas sob jurisdição da Bahia, devido à proximidade geográfica, além do argumento do abastecimento de gado que deveriam vir da região dos currais3144. A este último fator, talvez se deva o movimento oscilante que ora proibiu a entrada de boiadas, ora liberou. Diante disso, notamos que o “projeto” proibir a estrada da Bahia foi pensado e discutido sob diversos aspectos, pondo em embate interesses locais e as pretensões do Conselho Ultramarino, permeado sob a preocupação da questão do abastecimento e, principalmente a melhor forma de explorar o ouro. O desenrolar foi a proibição do Caminho do Sertão e o projeto de João de Lencastre no primeiro ano de execução da futura estrada que ligaria a região ao litoral do Espírito Santo foi embargado. Junto a isso, a solução encontrada pela Coroa foi abertura do Caminho Novo, que ligaria o porto do Rio de Janeiro à região das Minas. Partindo da análise dos Autos de Denunciação e Tomadia da Superintendência do Rio das Velhas3145, é possível flagrar a lógica institucional de funcionamento, os agentes sociais envolvidos no processo de denúncia e arremate, juntamente com o tipo de carga confiscada. Essa fonte que, nos revela muito além da penalização ao descaminho, traz à luz o início de uma nova conjuntura econômica. Assim como, a articulação entre a tessitura institucional, social e mercantil. E, principalmente, nos possibilita entender melhor quais foram as tentativas de institucionalização do poder régio nos primeiros anos da extração aurífera. Os processos contidos nos “autos de denunciação e tomadia”, referem-se ao volume e o conteúdo das cargas, os caminhos usuais e as estalagens neles estabelecidas para guarida dos comboios e os personagens ligados a esses negócios. Bem como, a estrutura de funcionamento da Superintendência do Rio das Velhas, no que diz respeito aos confiscos feitos na estrada. Trata-se de cinquenta processos, em bom estado de conservação e leitura, entre os anos de 1701 e 1716, somente com uma interrupção no ano de 1705. Suspeita-se que a ausência de confiscos neste ano se deva a permissão que houve de transitar com boiadas pelo caminho dos sertões.3146 O processo de tomadia partia de uma denúncia de acordo com o próprio nome dos documentos “denunciação e tomadia”. Assim, é registrado pelo escrivão de que forma a denúncia ocorria e quem a fazia. Em regra, o denunciante dizia o local e dia que o carregamento passaria pela estrada3147. Em posse dessas informações os funcionários régios e muitas vezes o próprio superintendente ir dar cabo da tomadia. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Op. cit., p. 43 – 50. 3145 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos. 3146 “(...) o fim da proibição do Caminho da Bahia, em 1705. Ficou permitido o trânsito e a remessa de gado, embora a condução de mercadorias e escravos permanecesse proibida”. CAMPOS, Maria Verônica. (2002), Governo de Mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 – 1737. São Paulo: USP, FFLCH (Tese de doutoramento). p. 77. 3147 Sobre a supremacia dos bandeirantes em dominar caminhos tão inóspitos adentro da colônia, talvez, fosse mais oportuno que Borba Gato fosse pessoalmente fazer as tomadias. Como deveras fez em vários outros processos de confiscos. Assim, “(...) que ninguém embosca ninguém a não ser que conheça de antemão o caminho a ser trilhado pelo emboscado”. BARREIROS, Eduardo Canabrava. Episódios da Guerra dos Emboabas e sua geografia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1984. p. 86.

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ISSN 2358-4912 [...] em o Curraleiro do Capitão João Freire Farto, onde eu escrivão fui com o Tenente-general Manuel de Borba Gato a certas diligências do serviço de Sua Majestade, e sendo ali lhe veio a notícia que pela estrada proibida que vem do sertão da Bahia a estas Minas, vinha um comboio de cavalos carregados com cargas de negócios, o qual se achava dentro da estrada, coisa de uma légua para a parte do Parahibipeba. Com a notícia, foi o dito Tenente-general comigo, escrivão, ao dito 3148 lugar e ali se achou a Bento Pires e Manoel Lobo.

Ao denunciante, caberia a terça parte do valor total do arremate dos bens. Entendemos tal prática como uma “política de incentivo” da Coroa para fazer mais efetiva a apreensão dos transgressores. E, mais uma vez, se valia da relação com particulares para poder concretizar a expansão da fronteira colonizadora. A carga confiscada era posta em leilão em praça pública. Do valor total do arremate, dois terços deveriam ir para os cofres reais e a terça parte, como dito, ao denunciante. Aos arrematantes era possível lucrar duplamente com tal “esquema”, quando compravam as mercadorias mais baratas nos leilões e quando as revendiam por valores de mercados. O movimento entre os homens que denunciam os descaminhos e arrematam a carga confiscada, pelo menos, sugere a constituição de uma rede de negócios3149. As redes de negócios, palco para se efetivar tais atos, eram compostas pelos mais diversos seguimentos sociais. Entretanto, se estas - que poderiam constituir transações à margem da legalidade -, fossem desmascaradas, a punição da justiça real, nem sempre se aplicava de maneira igual aos envolvidos, isto quando chegava a ser aplicada, já que se tratavam de figuras importantes aos lucros reais. Portanto, o que se nota é que, tanto na sociedade colonial açucareira, quanto na mineradora, houve sempre uma intensa negociação entre Metrópole e os potentados locais. Já que, em conjunturas como a dos anos iniciais de exploração aurífera, a Coroa contava primordialmente com estes para pôr em prática seu projeto colonizador3150. Reconfigurando assim, a relação centro e periferia.3151 A corrupção existente dentre aqueles que deveriam justamente coibir tais atos, os agentes reais3152 era outro agravante à problemática da arrecadação. Sendo assim, “o descaminho era grandemente facilitado pelas ordens controversas das autoridades ligadas à fiscalização e transporte do ouro. ”3153 Desta maneira, ainda que os autos correspondam a uma documentação oficial e que à primeira vista não pretendam revelar a existência de redes de ilicitudes por parte dos agentes da Coroa, a análise documental nos permite levantar tal hipótese. 3148

Auto contra Bento Pires e Manoel Lobo, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I – 25, 26, 017, de 06 de julho de 1707. 3149 Redes aqui entendidas como “un complejo sistema de vínculos que permitem la circulación de bienes y servicios, materiales e inmateriales, en el marco de las relaciones estabelecidas entre sus miembros” (BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. Revista Mexicana de Sociologia, n.2, v.61, abril-junio de 1999, p.122.). Cf. também PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Niterói: UFF, 2009, p. 16 (tese de doutorado em Ciências Econômicas). 3150 “o processo [de centralização] consiste numa progressiva apropriação pelo poder central das tarefas até aí desempenhadas pelos órgãos periféricos” HESPANHA, António Manuel. “Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime”. In: HESPANHA, António Manuel (Org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 9-89, p. 61-62. 3151 “O processo de colonização envolvido em tais particularidades, fez-se em uma lógica na qual a entrega a particulares dos riscos dos empreendimentos iniciais que viabilizassem a lucratividade da empresa colonial - em troca da concessão de poderes e privilégios – constituiu um recurso amplamente empregado pela Coroa, sempre que se mostrasse operante (...) - No primeiro momento, correspondente aos riscos e investimentos iniciais da empresa colonial, a Coroa estabeleceu amplas concessões a quaisquer particulares: no segundo, quando já vislumbrava a possibilidade de lucros, limitou não só as concessões como também o número de seus participantes.” SALGADO, Graça (coord). Fiscais e Meirinhos: a administração do Brasil colônia. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/Nova Fronteira, 1985. p. 47. 3152 “ (...) contradição, apesar de esses personagens coibirem o descaminho em alguns momentos utilizavam essa prática como caminho para enriquecimento pessoal na cidade. ” FERNANDES, Lenine Valter. Os Contratadores e o contrato da dízima da Alfândega da cidade do Rio de Janeiro (1726 – 1443). Rio de Janeiro: Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2010. p. 24. 3153 CAVALCANTE, Paulo. Negócios de Trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). Op. cit., p.74-45.

1023 ISSN 2358-4912 O que se nota ao avaliar o movimento entre os homens que denunciavam os descaminhos e os que arrematavam a carga confiscada, ainda que na lógica colonial, não ferisse as ordenanças portuguesas, há de se considerar uma suposta rede de negócios que envolvia alguns desses homens. Temos alguns indivíduos que ora aparecem denunciando, ora arrematando a carga confiscada. Como, por exemplo, Inácio Carvalho de Siqueira, que aparece em 14 de julho 17083154, como arrematante e, posteriormente em 20 de outubro de 17093155, como denunciante. Tal prática pareceu ser corriqueira. Outro caso é o que envolve o meirinho Apolinário Coelho Bulhões em 15 de abril de 17103156 que arremata uma carga contendo um cavalo, um surrão de sal do São Francisco, azougue e açúcar e dias antes, em 09 de abril3157, também arrematante, onde os denunciantes eram, Manuel Gomes Soares (escrivão), José Ribeiro da Cunha (ajudante) e Manuel Menezes Mascarenhas (meirinho). Os mesmos aparecem como denunciantes em mais dois processos, em 29 de janeiro de 17103158 e 25 de março de 17103159. Ressaltando que o escrivão Manuel Gomes Soares, denunciou mais uma carga (ouro sem quintar), agora sozinho, também no dia 9 de abril de 17103160. E, posteriormente, arrematou um comboio com sal da terra, aguardente, açúcar, fazendas secas e roupas, junto com o meirinho Manuel Meneses Mascarenhas e com o tenente de cavalos Francisco Leite de Faria em 13 de dezembro de 17103161. Ou ainda o caso do tesoureiro da superintendência, Francisco de Arruda Sá que fora um dos homens que totalizou o maior valor de arremates, 1042, 5 oitavas de ouro. Da natureza das cargas confiscadas, nota-se uma grande variedade. Há incidência de confisco que vai de mercadorias mais “refinadas” como, folha de flandres com açafrão ou facas flamengas e colheres de prata, e até os das chamadas cargas usuais. Fazendas secas, como tecidos, roupas, acessórios, calçados, chapéus ou os chamados armarinhos. As fazendas molhadas, ou seja, os perecíveis e os objetos de ferro e aço, como machados, ferraduras ou foices. As fazendas sertanejas (ou dos currais), eram as cargas oriundas de fabricação ou extração local como, sebo, sabão, cera, couros e peles; o confisco também de armas e munições. Temos ainda os escravos, já que a ocorrência do confisco de cativos foi significativa e de animais, como bois e cavalos. Além disso, uma miscelânea de objetos para fins variados que aparecem de forma pontual, como baú de pele de onça, baralho de cartas, facas de ponta ou cachimbos. E, por fim, temos mais três tipos de confisco: o denominado “crédito”, que só há uma ocorrência em 1703, onde o réu leva consigo uma letra de 310 oitavas. Outro tipo é o de “ouro em pó sem quintar”, em oitavas. E, por fim, os objetos confiscados que não deveriam a rigor fazer parte dos carregamentos, como as armas brancas e de fogo, já que eram companheiras costumeiras de viagem dos tropeiros. Estas, denominadas nos processos como “carga usual”, ocorrido em três processos3162. Nesse sentido, com exceção da roupa do corpo, tudo o mais era confiscado. O período de maior ocorrência dos confiscos, logo, dos descaminhos, foi entre os anos de 1706 e 1710, anos que contextualizam o início das tensões e o desfecho da Guerra dos Emboabas. Tendo em vista que o líder paulista, Borba Gato, era a figura responsável por colocar em prática as ordens metropolitanas, no comando da Superintendência. Coincidências ou não, essa informação há de ser considerada ao juntarmos com os dados que nos possibilitam visualizar o período de maior incidência V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Auto contra João e Antônio Pais, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 013, de 15 de julho de 1708. 3155 Auto contra Francisco Monteiro, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 009, de 20 de outubro de 1709. 3156 Auto contra Baltasar Fernandes, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I-25, 26,005, de 15 de abril de 1710. 3157 Auto contra Inácio de Figueiró e Manuel Martins, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 002, de 09 de abril de 1710. 3158 Auto contra Antônio de Queiroz e João Ferreira Brandão, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 004, de 29 de janeiro de 1710. 3159 Auto contra Lourenço Oliveira Barcelos e Rafael Ferreira Brandão, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 007, de 25 de março de 1710. 3160 Auto contra Inácio de Figueiró e Manuel Martins, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I- 25, 26, 002, de 09 de abril de 1710. 3161 Auto contra Domingos Álvares, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I-25, 25, 024, de 13 de dezembro de 1710. 3162 As referências dessa série na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro são as seguintes: I-25, 26,025 de 10 de julho de 1704; I-25, 26, 026 de 23 de setembro de 1704 e I- 25, 25, 022 de 21 de abril de 1711

1024 ISSN 2358-4912 dos confiscos. Assim, num processo datado de 29 de janeiro de 17103163, encontra-se em poder do réu a seguinte carta:

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De novidades nas minas são as costumadas muitas guerras e confiscos nas mãos dos nossos, e onde [h]á todos os capitães, e basta depois de estar dentro [das minas] alguns 15 dias o confiscarem-me também, que não escapa cousa nenhuma; que se não é os capitães, são os acredores que vão entregar a dívida, o confisco, os que vão a comprar, se lhe não vende pelo que quer, os acusa também; nesta forma não escapa nada”

Tal carta nos mostra as quantas andavam as tensões e a prática do confisco no referido caminho proibido. Ou nos induz a pensar em motivações políticas e/ou pessoais por traz da execução de confiscar as mercadorias vindas pela estrada da Bahia, em específico, neste período. A partir do ano de 1711 nota-se a constate queda dos confiscos, de acordo com que a fonte nos disponibiliza, e para os dois últimos anos, só há o transporte ilegal de cativos. Diante da impossibilidade de proibir o trânsito pelo caminho da Bahia, fosse por desmandos, descaminhos ou pelo fato de haver pela estrada muitas famílias que necessitavam de abastecimento3164, a proibição finda-se em 1716. A Coroa enxergou que, frente a tantos obstáculos a melhor saída era criar postos de entrada e passagem para taxar toda mercadoria que viria da Bahia. E, assim sendo, já em 1718 há o primeiro contrato de passagem da região, tanto por via fluvial, como terrestre.3165 Com o Oceano Atlântico ao meio e dentre os meios de comunicação, é possível de imaginar quão distorcidas as ordenações reais ficavam na realidade das colônias. Nem sempre por desmandos ou ao sabor de vontades particulares, mas também devido à realidade controversa que se estabeleceu nas Minas frente ao mundo europeu. Era necessário reapropriar, adaptar ou encontrar alguma solução não prevista previamente pelas estruturas de mandos de Portugal. Dentre essas adaptações, apropriações ou reapropriações dos mandos reais – fator este, inclusive, constituinte do perfil jurídico do Antigo Regime, ou seja, o grande teor de flexibilidade e negociação que a justiça permitia/previa3166 -, inúmeros são os casos que deixam explícito tal alcunha ainda no período de auge açucareiro, ao litoral da colônia. Entretanto, nossa preocupação se deu nessas adaptações e apropriações no interior da Colônia. Agora, a Coroa precisava se fazer valer adentro do território do Brasil. Era necessário desbravar os sertões, amortizar a distorção das sombras frente ao astro rei metropolitano3167. O controle necessário dessa região remota e pouco conhecida pelos agentes da Coroa, era o controle possível. Este se estruturaria conforme, também, os costumes morais dos potentados locais há muito estabelecidos na região, que impossibilitariam o domínio efetivo do trânsito pela estrada Geral da Bahia. Sendo assim, tais apontamentos comungam com assertiva de Angelo Carrara, “A fragilidade da fiscalização, contudo, permite supor que esses processos

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Auto contra Antônio Pinto de Queiroz e João Ferreira Brandão, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, I-25, 26,004, de 29 de janeiro de 1710. 3164 Informações sobre as minas do Brasil, em Anais da BN, Vol.57, 1935, da p.158 a 168, códice 51-VI-24, fs 460 a 467, da Biblioteca da Ajuda. Contém explicações de Rodolfo Garcia (Ao que tudo parece, a presente notícia seria de autoria de Agostinho Barbalho Bezerra, donatário da Capitania da Ilha de Santa Catarina, em 1664) Ibid: BARREIROS, Eduardo Canabrava. Episódios da Guerra dos Emboabas e sua geografia. Op. cit., p.45. 3165 IVO, Isnara Pereira. “Governo e administração do comércio e dos caminhos do sertão da Bahia e de Minas Gerais no século XVIII. ” In: PIRES, Maria do Carmo; ANDRADE, Francisco Eduardo; BOHRER, Alex Fernandes (Orgs). Poderes e lugares de Minas Gerais: um quadro urbano no interior do Brasil (séculos XVIII - XX). Rio de Janeiro: Scortecci, 2013. p. 126. 3166 “ Para se falar de um direito colonial brasileiro – com a importância política e institucional que isto tem -, é preciso entender que, no sistema jurídico de Antigo Regime, a autonomia de um direito não decorria principalmente da existência de leis próprias, mas muito mais, da capacidade local de preencher os espaços jurídicos de abertura ou indeterminação existentes na própria estrutura do direito comum. ” In: HESPANHA, António Manuel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, v. 1, n. 3, nov. 2006, p. 95-116. Disponível em: . Acesso em: maio/2014. 3167 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

1025 ISSN 2358-4912 representaram uma ínfima parcela do que deveria ter sido esse comércio”3168 Contudo, ainda que pequena, já nos desvendam minúcias desta nova lógica colonial e dessa precoce estruturação da justiça que, agora gira em torno da órbita do ouro.

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Referências Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Divisão de Manuscritos, Autos de Confisco e Tomadias de Mercadorias, 1701 – 1716. BARREIROS, Eduardo Canabrava. Episódios da Guerra dos Emboabas e sua geografia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1984. CAMPOS, Maria Verônica. (2002), Governo de Mineiros: “ de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” 1693 – 1737. São Paulo: USP, FFLCH (Tese de doutoramento). CARRARA, Angelo Alves. Minas Currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 16741807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007. CAVALCANTE, Paulo. Negócios de Trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (17001750). São Paulo. Hucitec; FAPESP, 2006. FERNANDES, Lenine Valter. Os Contratadores e o contrato da dízima da Alfândega da cidade do Rio de Janeiro (1726 – 1443). Rio de Janeiro: Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2010. FURTADO, Júnia. Diálogos Oceânicos, Belos Horizonte: Ed. UFMG, 2001. HESPANHA, António Manuel (Org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. PIRES, Maria do Carmo; ANDRADE, Francisco Eduardo; BOHRER, Alex Fernandes (Orgs). Poderes e lugares de Minas Gerais: um quadro urbano no interior do Brasil (séculos XVIII - XX). Rio de Janeiro: Scortecci, 2013. ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. SALGADO, Graça (coord). Fiscais e Meirinhos: a administração do Brasil colônia. 2 ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/Nova Fronteira, 1985. SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Site acessado em 05 de maio de 2014 às 18 horas e 42 minutos: http://www.metajus.com.br/textosestrangeiro/Direito ComumeDireitoColonial.pdf.

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CARRARA, Angelo Alves. Minas Currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007, p.125.

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BLASFÊMIAS E PROPOSIÇÕES: A “LIBERTINAGEM” DE CONSCIÊNCIA NO SETECENTOS MINEIRO Rafael José de Sousa3169 A blasfêmia Diversas temáticas têm ganhado espaço nas recentes discussões historiográficas, sobretudo devido a influências teórico metodológicas das diferentes abordagens da chamada história cultural. Desta forma, os estudos inquisitoriais têm experimentado um crescimento vertiginosos nos últimos anos em que se tem explorado as mais variadas vertentes de problemáticas levadas a cabo graças ao manancial de vestígios e reminiscências deste passado, sob guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Portugal. No entanto, questões como o teor e a origem das manifestações blasfematórias e das proposições de cunho heréticos ainda requerem maiores discussões, notadamente nos territórios das Minas no setecentos, período de intensas circulações culturais e gestação de críticas, relativismos e tolerância quanto à ortodoxia e a convivência entre os diferentes credos. Acerca da blasfêmia, ou seja, o ato de denegrir ou ofender as coisas relativas ao sagrado, sempre esteve entre as manifestações mais temíveis e passíveis de punição por parte tanto da Igreja quanto da monarquia, que enxergava na heresia uma questão, sobretudo, de estado. A palavra dita, segundo Geraldo Pieroni (2012) para a ortodoxia cristã, significava o “sopro que vem do interior”, que se concretiza no logos sagrado, que representa nada mais que Cristo encarnado. A fala consiste então na gratidão humana, por expressar aquilo que vem do coração e a blasfêmia configura-se em ruptura com o plano divino, denegrindo e ofendendo nossa missão sagrada. Contudo, a inquisição moderna nem sempre agia de forma severa em relação aos blasfemos, sempre amordaçados nos autos de fé e por vezes condenados à morte, mas uma morte que significasse o apagamento civil do indivíduo de suas localidades de origem: o degredo, temporário ou permanente. Eram comumente açoitados e recebiam penas pecuniárias, além do confisco de seus bens. Os regimentos da Santa Inquisição seguiam as determinações expressas nas Ordenações Filipinas que tratava das penas a serem aplicadas aos hereges blasfemadores sob o título “Dos que arrenegam e blasfemam de Deus ou dos Santos”. Segundo o autor, eram considerados blasfemos os que em suas palavras mal soantes não implicassem em oposição às coisas sagradas, manifestando sua ira em momentos de irritação. Já os que contradiziam a religião implicando em cisma, negando a ortodoxia ou defendendo religiões impuras, eram responsabilizados por proposições heréticas. O blasfemo mais que manifestar sua ira, deixa transparecer as estruturas e relações entre as representações de seu tempo acerca da ortodoxia e de sua própria negação. Os diversos extratos influenciavam-se reciprocamente e a cultura assumia a condição de circularidade, não havendo sobreposição entre o erudito e o popular. Na perspectiva de influência dos últimos vinte anos, Stuart Schwartz em seu recente livro “Cada um na sua Lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico” (2009), apesar de confessadamente se dizer um historiador materialista e sempre buscar os interesses econômicos das gentes, diz sempre encontrar em suas pesquisas muitos indícios de pessoas que não estavam em busca de satisfações econômicas, pois, segundo o autor, os seres humanos são marcados por uma mescla de necessidades diversas, expressas em nossas práticas e ideias. Nos arquivos das Inquisições do mundo Atlântico Ibérico, Schwartz (2009) se depara com um amplo espectro de pessoas, que a despeito das imposições e da força coercitiva do estado, da Igreja e dos próprios vizinhos, buscaram seguir uma direção oposta, pensando por si próprios, relativizando as máximas religiosas em conformidade com seus próprios anseios e conflitos. O autor buscou realizar neste trabalho, não uma coleta de indícios que dessem conta da mentalidade das sociedades a respeito da tolerância religiosa e da liberdade de consciência, mas sim uma série de estudos de casos, sobre a perspectiva de análise da micro história, buscando através da riqueza de detalhes oferecidos pelas fontes, interpretadas através das entrelinhas 3169

Mestrando em história pela Universidade Federal de São João del Rei. E-mail: [email protected]

1027 ISSN 2358-4912 dos testemunhos e dos estereótipos preestabelecidos, os indícios reveladores das dinâmicas e múltiplos contextos das relações entre as diferentes camadas das sociedades. Segundo o autor, a Igreja na época moderna impunha a homogeneização dos costumes religiosos, contra quaisquer dissidências ou dúvidas a respeito de suas verdades, colaborando assim, também para a legitimação e efetivação do projeto dos Estados modernos absolutistas. Paralelamente a estas imposições, a formação multicultural da Península Ibérica, permitida pelo contato, por vezes harmonioso e em parte bastante conflituoso entre judeus, mouros e cristãos, suscitou a formação de uma cultura sincrética, em que ao mesmo tempo havia depreciação e respeito às diversas leis. Contexto propício para eclosão de ideias de universalismo religioso, tolerância à diferença e ceticismo quanto à validade exclusiva da fé católica. Nas palavras de Schwartz (2009, p.75), esses povos foram pioneiros em formulações de ideias e difusão de um tolerantismo religioso, mesmo que implícito em que a tendência principal baseava-se na consideração de que todas as leis eram originárias de um mesmo tronco divino. Dúvidas geradas principalmente pelas incertezas e dificuldades da vida, permeadas de elementos simbólicos de diversas origens, buscando a humanização do sagrado e resistência à imposição da pureza doutrinária. Além das motivações multiculturais da península ibérica, imigrantes estrangeiros, principalmente das regiões protestantes, representavam um elo a essas ideias, também críticas à ortodoxia católica e a primazia do clero perante a sociedade. Essa influência não deixava de pesar nas formulações de proposições cotidianas. Buscando aplicar as resoluções de Trento, caçando e extirpando as dissidências, todas essas expressões blasfematórias, fruto de descontentamento cotidiano, mera “rusticidade popular”, ou da influência protestante e pelo contato com as demais leis, foram consideradas como abusos contra a fé católica ou mesmo, atentados contra Deus. Torna-se interessante observar, segundo Schwartz (2009, p,42) como as proposições estavam sempre relacionadas a ideias de ordem mais geral. Exemplo disso são as opiniões a respeito da moralidade sexual estarem sempre associadas a questionamentos sobre os dogmas católicos e a posição da Igreja e do clero quanto a essas ideias e mesmo sobre outras temáticas. As pessoas comuns, em seu entendimento e racionalidade cotidiana, consideravam saber mais sobre esses assuntos que o clero. No tocante às dissidências relacionadas à salvação, foi corrente o ideário das possibilidades de se salvar em qualquer uma das leis, considerando como válida a difundida hipótese de que todas elas pertencessem a um mesmo tronco divino. A descoberta do Novo Mundo, e suas hordas de gentios “pagãos”, ofereceu nova dimensão à questão, acirrando as ideias de que Deus não poderia ser menos misericordioso permitindo a danação de tantas almas que viviam sem a revelação da verdadeira fé. O contexto do Novo mundo, as novas populações de gentios recém-descobertas e portadoras de cosmogonias diversas, em contato com a bagagem cultural marcada já pelo hibridismo, dos colonos filhos da Península Ibérica e dos cativos africanos também incorporados à sociedade colonial, corroborou para o surgimento de um processo multidirecional de fusão, absorção e adaptação de crenças religiosas diversas, em um grande e novo hibridismo específico das colônias atlânticas. Ambiente favorável para o surgimento de novas dúvidas e o acirramento dos antigos questionamentos ibéricos. Dissidências como a validade da eucaristia e dos demais sacramentos, bem como a verdadeira presença do corpo de deus na consagração, a dúvida acerca da Virgindade de Maria Santíssima após o parto, dentre outras seriam reeditadas em contexto colonial e associadas a seus conflitos específicos, por debaixo do arco de poder da consciência social, como diz E. P. Thompson (1994), múltiplos contextos contribuem no cotidiano para essas reedições. Muitas pesquisas, segundo Schwartz (2009, p. 221), têm indicado que foi grande a importação de livros pelas colônias, mesmo com as proibições dos índex’s inquisitoriais. Também era grande o tráfego de viajantes estrangeiros, principalmente das regiões protestantes, levando para as colônias as velhas críticas luteranas aos abusos da Igreja e do clero licencioso e materialista. Parece possível que um número cada vez maior de pessoas, como na Europa, buscasse na leitura as respostas de seus questionamentos cotidianos. Os livros, muito além do que buscavam dizer, eram interpretados de forma criativa por seus leitores, que narravam o que compreendiam aos iletrados, agindo como apaziguadores de seus sofrimentos e elo entre as culturas erudita e popular, como também aponta Ginzburg (2006). As colônias permitiram o surgimento de uma cultura da coletividade sincrética em que a dissidência religiosa não poderia encontrar solo mais profícuo para florescimento. A

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1028 ISSN 2358-4912 racionalidade popular também era bastante para permitir o questionamento da justificativa evangelizadora para escravização dos índios e negros africanos. Os principais questionamentos há muito já haviam perdido parte de suas origens, mas continuavam a se disseminar pela população, verbalizando seus conflitos e anseios cotidianos, eram racionais e tendiam a buscar uma explicação plausível para a realidade muito diversa da que lhes era imposta nos púlpitos. Claro que estes questionamentos não se originavam unicamente por influência de questões trazidas pelos “infectados” ibéricos, na dinâmica da própria sociedade colonial, novos questionamentos surgiram como indícios da relativa liberdade de espírito possível aos homens dentro da jaula flexível de que fala Ginzburg. Laura de Mello e Souza (2009) aponta que as manifestações blasfematórias, serviam como válvulas de escape para as agruras da dura lida colonial. A autora atribui grande importância também ao caráter afetivo da religiosidade específica colonial. Os colonos buscavam a humanização das figuras de Deus, Maria Santíssima e dos Santos em geral. A vida dura na colônia acabava ensejando certo descrédito na total benevolência divina, responsabilizada pelas agruras do cotidiano. Tratava-se com os Santos de forma afetiva, tornando-os seus confidentes pessoais, tanto quanto os puniam por não os atender em demandas cotidianas. Com a descoberta dos veios auríferos no território que ficou conhecido como as Minas Gerais, muitos aventureiros de diversas origens foram atraídos pelas possibilidades de rápido enriquecimento, corroborando para intensificação na região da diversidade cultural, já específica em território colonial. Essa cultura popular de que muito se tem ouvido falar na historiografia brasileira dos últimos anos, sintetizou o amálgama de elementos diversificados e práticas que variavam desde a utilização de feitiços e poções na resolução dos mais diversos conflitos, em busca principalmente de proteção e conforto perante as agruras da sofrida lida colonial, até a reconfiguração dos ritos da ortodoxia católica, adaptados, sempre que possível às condições das especificidades das culturas subjugadas. Esses elementos que tenderam a permanecer, mesmo que na maioria das vezes ocultamente, eram na verdade elos dos diferentes elementos da teia social que aqui se formou, com seus substratos culturais de origem, fornecendo-lhes em certa medida esperança e certo grau de resistência às imposições da igreja e seu tribunal inquisitorial. É de se esperar, que essas pessoas tendessem a relativizar as noções de Sagrado e os limites do que poderiam ou não acreditar. A própria postura do clero despreparado, mais preocupado com riquezas materiais, servia como substrato para atitudes de tolerância a outras interpretações da ordem natural. É sintomático a livre circulação dessas ideias relativistas ou libertinas, entre pessoas de tão variados matizes culturais na maioria das vezes injustiçados pelo binômio Igreja/Estado, assim como a possibilidade de interpretações variadas, seleções particulares de elementos presentes na cultura e na sociedade, de acordo com as necessidade e conflitos particulares de seus agentes. Geraldo Pieroni (2012) em suas pesquisas acerca da constituição geral da blasfêmia no Brasil colonial, atenta para o fato de que a missão catequética da Companhia de Jesus esbarrou na audácia dos colonos portugueses que insistiam na manutenção de comportamentos heterodoxos aprendidos ainda na península ibérica, como diz Schwartz (2009). São, segundo o autor, pessoas comuns, que protagonizavam em seus cotidianos, atitudes contrárias à ortodoxia católica. A dissidência ibérica ganhou aqui um toque caboclo (PIERONI, 2012, p. 61), devido ao contato com as diversas cosmogonias ameríndias e africanas como já foi salientado. A blasfêmia, filha da cólera e do orgulho não poderia ser tratada com menor vigor, fosse qual fosse sua intensidade. A Igreja jamais poderia permitir que essa gente comum invadisse o campo da exegese cristã e afiasse a língua nas praças e igrejas públicas. Guardadas as devidas proporções e diferenças contextuais e temporais, outro intrigante caso que muito nos auxilia na compreensão das circularidades e influências culturais, assim como os ajustes e seleções que os indivíduos fazem dos elementos que lhes estão disponíveis em seu meio, é o de Domenico Scandella, o moleiro friulano conhecido como Menochio resgatado por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes (2006). Menochio é um bom exemplo de blasfemo que rompeu com a ordem estabelecida, invertendo os valores da ortodoxia de sua época, não limitando suas conclusões a uma ou outra leitura que tenha realizado ou a qualquer influência definida. Domenico selecionava entre as diferentes referências culturais de seu meio aquilo que lhe conferia sentido, que lhe permitia compreender e formular sua visão de mundo, assim como também o fez, Romão Fagundes. Dizia ele que tudo era o caos e de tudo aquilo se formou uma massa, como o “queijo é feito do leite” e do qual V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1029 ISSN 2358-4912 surgem os vermes que são os anjos e também Deus, por intermédio da Santíssima Majestade (GINZBURG, 2006, p.117). A população de seu meio de convivência também, segundo Ginzburg, conhecia suas ideias, mas não se pode inferir se concordavam ou não. Na esteira da convivência multicultural que se estabeleceu na colônia, responsável pela ampliação dos velhos questionamentos relativistas do velho mundo, também os judaizantes marcaram presença no Brasil. Expatriados em sua própria terra, subjugados ao catolicismo, os cristãos novos passaram a aceitar valores que nem de perto eram os de seus ancestrais e a buscar, segundo Anita Novinsky (2013), uma nova vida, carregando da antiga, a memória e a saudade. A vida no Brasil, como em Portugal continuou a ser clandestina em que sociedades secretas foram construídas forjando códigos indecifráveis. Construíram um discurso crítico que circulava oralmente ou através de manuscritos e que da mesma forma estiveram presentes nas formulações populares. Enfim em suas diferentes contribuições historiográficas, os autores acima citados e seus importantes trabalhos nos ajudam a compreender as circularidades e influências culturais que permitiam a pessoas como Romão Fagundes do Amaral, forjarem na colônia seus questionamentos e posturas tolerantes quanto as diferenças consideradas “impuras” pela ortodoxia imposta.

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O poeta de trás das serras Chama à atenção o caso peculiar do Sargento Mor Romão Fagundes do Amaral3170, morador em sua mata do Bom Jesus dos Perdões, no termo da Vila de São José del Rei, Província de Minas Gerais, apresenta significativos indícios diretos da permeabilidade de ideias contrárias aos dogmas pregados como absolutos pela Igreja no século XVIII. O Sargento Mor foi denunciado pelo Padre Manoel Ferreira Godinho por viver libertina e escandalosamente, sempre persuadindo seus interlocutores de suas ideias dissidentes retiradas das recreações filosóficas e dos muitos outros livros que o Padre diz que ele sempre andava lendo. O delato, dizia ser o maior filósofo e poeta do mundo e tinha sempre argumentos, que nem mesmo os "pobres prelados com ele podiam". Na diligência realizada para levantamento do sumário de suas culpas, foi acusado de proferir que Nossa Senhora não poderia ser virgem, que após o parto teria ficado "boa" como qualquer outra mulher, dizia também que não existia inferno, nem purgatório, que isso era invenções dos padres. Que o pecado do sexto mandamento, não era pecado mortal, que Deus havia feito os homens e mulheres para que se unissem sem embaraços, mesmo que fossem com mães, irmãs ou filhas. Que se Cristo considerasse a fornicação pecado mortal, poderia esperar o céu vazio e que isso de missa era nada mais que uma bobagem. Mas os pecados a ele imputados que mais chamam a atenção são os de suspeita de protestantismo, pois sempre dizia, segundo afirmam as testemunhas que o corpo de cristo não estava presente na comunhão e que os padres nem precisavam prestar atenção no momento da consagração, que o sentido seria o mesmo, que na verdade eles deveriam estar era pensando em mulheres. Outro indício da influência protestante é o fato de constar que ele abusava dos dias de preceito sagrado comendo carne e não se confessar na desobriga a mais de três anos e era comum também ouvi-lo dizendo que o Sumo Pontífice era nada mais que um homem como outro qualquer e que as indulgências eram falsas e que nunca haviam de vê-lo rezar e que em sua casa não havia oratório nem Imagem alguma de Santo, que bastavam os da Igreja. Se considerarmos, segundo SCHWARTZ (2009, p. 221), a não pouca circulação de estrangeiros e livros proibidos nas colônias, mesmo em seus mais interiores confins, podemos facilmente compreender a proximidade das ideias de Romão a algumas ideias da doutrina Protestante. Suas teorias sobre o sexo e o sexto preceito, reforçam as ideias de que as pessoas comuns daquele tempo na colônia julgavam saber mais sobre esses assuntos do que os sacerdotes, supostamente castos. Ligavam sempre essas opiniões a questões de ordem mais comum, justificando com as próprias palavras de cristo "Crescei-vos e multiplicai-vos", à maneira como em suas posses viviam amancebados com suas índias e escravas. Romão Fagundes foi também acusado de andar amancebado com uma mulata que chamava de o seu “Bará”, dentro da sua própria casa, mandando sua mulher segurar um candeeiro para iluminar enquanto se deitava com suas escravas. Também foi infamado de haver deflorado suas duas filhas ilegítimas e também uma legítima. Certa vez, foi espancado e teve sua mão direita decepada como retaliação por haver estuprado e "rasgado com os dedos" uma menina de 8 anos 3170

ANTT. Inquisição de Lisboa, Processo de Romão Fagundes do Amaral, n 12958.

1030 ISSN 2358-4912 que quase chegou a óbito. Também ordenou que uma sua escrava se deitasse com um mulatinho seu de 14 anos em sua frente, a modo de lhe ensinar como se fazia. Romão Fagundes também era afamado de escrever e declamar sonetos desrespeitosos contra os dogmas da Santa Madre igreja, recebendo mesmo a alcunha de "O poeta de trás da Serra" (RESENDE, 2011, p. 354). Em querela com o Padre Godinho, seu principal delator, é acusado de escrever ao padre um soneto, lhe ensinando a correta postura de um padre no ato da Confissão. Em sua defesa, Romão Fagundes, estando na prisão, procura dissuadir o Vigário da vara de São João Del Rei, escrevendo-lhe uma carta com vários sonetos de apologia à religião e uma defesa muito bem formulada do quando ele delatado era bom seguidor da religião católica e que tudo que diziam a seu respeito, era nada mais que intriga de seus muitos inimigos, invejados do grande cabedal que conseguiu acumular ao longo da vida, dissimulando sua inocência pelo medo de cair nas malhas do tribunal. Suas proposições, perseguidas pela Inquisição, narradas pelas testemunhas na diligência, demonstram que suas ideias, assim como as de Menochio, moleiro friulano analisado por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes (2006), não são redutíveis a um ou outro livro – mas uma interpretação própria, condicionada em certa medida pela jaula flexível a que todos os indivíduos estão submetidos, uma seleção particular do que para ele respondia a seus questionamentos e a seus anseios particulares. Não são, de modo algum, resultados de incursões cultas recebidas de forma acrítica e repetidas mecanicamente. Não hesitava em expor suas ideias, era libertino de consciência e práticas sexuais, mas a análise de seu caso serve para descortinar os anseios, principais questionamentos e a postura da sociedade inquieta a qual fazia parte. Romão Fagundes, não era o único a “verbalizar” pelos sertões mineiros suas opiniões permeadas pela dissidência. Nas palavras do Vigário da Vara da Vila de São João del Rei, o Comissário José de Sousa Sobral, era mesmo apenas “um dedo do gigante” a espalhar a “daninha entre o trigo da verdade”, “que a província e o bispado dessas Minas já se encontravam por demais infeccionados por influências de filósofos como Rousseau e Voltaire, que nada mais ensinavam a não ser sua depravação”, além das reminiscências “de seu Hanequim” Chamam a atenção também os muitos testemunhos referentes a pessoas comuns que não detinham acesso a leituras proibidas que podiam influenciar suas ideias, e que apesar da possibilidade do intermédio de leitores, como fazia o Sargento Mor acima citado, relativizavam e refletiam tolerantemente muito mais por suas experiências no cotidiano. Manoel da Costa Ferreira de Tamanduá, em 1769 movido por notável impaciência proferiu palavras injuriosas, dizendo que o demônio o podia levar, que não se havia mais com Deus ou Santa Maria3171, assim também Fabrício, escravo do Seminário de Mariana, em 1777 se vê injustiçado ao levar 50 chibatadas dos Padres e pragueja “maldita seja quem me pariu, maldita seja a Maria Santíssima”, “maldito seja o Padre Eterno, maldito seja o filho, maldito seja o Espírito Santo, que viessem os diabos e o levassem de corpo e alma ao inferno, que ele não queria já ser filho de Maria Santíssima, pois que ela o tinha desamparado"3172. Já João Carrascosa de Vila Rica e Antônio Fernandes Ribeiro, oficial de sapateiro, duvidavam da virgindade de Maria, não acreditando ser possível a uma mulher dar à luz e continuar virgem3173. Movidos pela raiva em momentos de injustiça ou considerando as experiências de seus cotidianos, essas pessoas souberam adaptar-se a seus contextos, tolerando suas diferenças. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ANTT. Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor, n 318, fol. 0932, doc. 398. ANTT. Inquisição de Lisboa, Caderno do promotor, n 318, fol. 1046-1052, doc. 447-450. 3173 ANTT. Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor, n 289, fol. 0713-0718, doc. 366-393; 319, fol. 0839, doc. 384. 3172

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REDES DE PODER E DISPUTAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS NA ATUAÇÃO DO DESEMBARGADOR CHRISTOVÃO SOARES REIMÃO: JUSTIÇA E ORDEM SOCIAL NA CAPITANIA DO SIARÁ GRANDE (1703-1717)3174 Rafael Ricarte da Silva3175 A efetiva conquista da capitania do Siará grande ocorreu a partir das duas últimas décadas do século XVII até a primeira metade do século XVIII com a distribuição de mercês (sesmarias, patentes militares, cargos administrativos) para os agentes coloniais envolvidos no embate contra os gentios. Estas concessões de terras seguiram os caminhos dos principais rios e ribeiras da capitania: Jaguaribe e Acaraú. O sesmeiro deveria cumprir algumas exigências que eram impostas pela legislação sesmarial após o recebimento da mercê. Dentre as determinações estavam à obrigatoriedade de cultivar a terra (aproveitar), confirmar (solicitar a confirmação Real) e medir/demarcar as terras recebidas. Entretanto estes deveres foram constantemente descumpridos, exemplo das poucas solicitações de confirmação das terras na capitania do Siará grande. No Siará grande, o processo de demarcação das terras ficou a cargo do desembargador Christovão Soares Reimão3176, então ouvidor geral da Parahyba e suas capitanias anexas (Siará grande, Rio Grande e Itamaracá), cuja nomeação ocorrera em 1695 para um período de 06 anos.3177 Segundo Stuart B. Schwartz, o ingresso na carreira dos serviços reais estava na formação em Direito. Independente da procedência familiar, a ocupação dos cargos na magistratura da Coroa portuguesa dependia “de cursar as faculdades de direito canônico ou civil na Universidade de Coimbra”.3178 O cargo de ouvidor geral, ocupado por Soares Reimão era o de maior autoridade da justiça nos domínios coloniais. Conforme expõe Graça Salgado, o ouvidor geral tinha como funções “[julgar] os recursos vindos dos ouvidores das capitanias e dispunha de poderes para investigar a aplicação da legislação em todas as localidades”.3179 Em maio de 1711 Soares Reimão encontrava-se na Bahia após ter requerido licença dos serviços a Coroa portuguesa. O desembargador alegou que ainda estava por receber parte dos proventos que lhe eram de direito pelos serviços de medição das terras nas aldeias dos tapuias. Em carta régia ao capitãomor governador de Pernambuco, El Rey, D. João V, ordenou que o requerente continuasse ocupando o cargo de desembargador da Relação da Bahia e que lhe fossem pagos os salários em atraso com os rendimentos da Fazenda Real dos serviços que havia prestado nos sertões das capitanias do norte do Estado do Brasil, especialmente no Siará grande.3180 Em 23 de novembro de 1700, chegou às conquistas ultramarinas alvará, com força de carta de lei, determinado a medição e a demarcação nos sertões de uma légua de terra para as aldeias indígenas 3174

A presente discussão neste artigo é parte do projeto de doutorado em andamento no Programa de PósGraduação em História Social da Universidade Federal do Ceará que procura analisar a formação de uma elite conquistadora na capitania do Siará grande entre os anos de 1679 e 1754. 3175 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista CAPES/REUNI. E-mail: [email protected] 3176 Nascido na cidade do Porto em 1659 formou-se em direito pela Universidade de Coimbra, onde também conseguiu o título de doutor. Filho legítimo de Gaspar Soares e Maria Paes, natural da Freguesia de Sampaio Portela, Comarca da Cidade do Porto, colou grau no dia 15 de maio de 1685 na Universidade de Coimbra, tendo sua lição aprovada sem questionamentos. 3177 PARECER do Conselho Ultramarino sobre o requerimento do ouvidor geral da Paraíba, desembargador Christovão Soares Reimão, solicitando comenda do hábito de Cristo com tença, em satisfação de seus serviços nos lugares de letras. Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis Avulsos, Cx. 3, documento 281. 3178 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 78. 3179 SALGADO, Graça. (Coord.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1985, p. 76. 3180 Carta Régia ao Governador de Pernambuco. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC, p. 219.

1033 ISSN 2358-4912 com 100 casais. Para realizar esta demarcação, o rei D. Pedro II escolheu os ouvidores gerais do Estado do Brasil. Esta determinação vinha de encontro ao que donatários e sesmeiros estavam praticando nos dilatados sertões. Segundo Sua Majestade, donatários e sesmeiros não estavam respeitando os espaços que os haviam sido doados, ocupando uma extensão maior e não deixando uma légua de terra livre entre as concessões. Assim, determinou que se fizesse a demarcação das áreas doadas para os gentios e que quem tentasse impedir a execução da ordem e o uso da terra pelos indígenas tivesse:

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(...) tiradas todas [as terras] as que tiverem para que o temor desta pena e castigo os abstenha de encontrar a execução desta minha Lei e se admitam as denunciações contra aqueles Donatários ou sesmeiros que, depois da repartição feita, impedir aos índios o uso delas, ficando aos denunciadores 3181 por prêmios a terça parte, não passando esta de 3 léguas de comprido e uma de largo. (Grifo

meu). A medição das terras e a evidencialização de conflitos pela posse dos espaços a serem conquistados e consolidados no Siará grande denotam que a disputa territorial foi travada para além do embate entre gentios e colonos, estabeleceu-se também entre os próprios conquistadores, sejam eles particulares ou ordens religiosas. Em carta de 3 de fevereiro de 1708, o desembargador Cristovão Soares Reimão escreveu ao rei depois de haver realizado a medição das terras dos padres da Companhia de Jesus na serra da Ibiapaba foi a Ribeira do Camocim onde os padres apresentaram uma data de duas léguas para a dita missão e ‘por se haverem dado outras antecedentes determinara judicialmente só uma para os 3182 ditos missionários’.

A medição das terras dos religiosos e a comunicação por meio da capitania do Maranhão revelam o trânsito do desembargador por variados espaços e o quanto este espaço de fronteira era interligado administrativamente. As redes formadas a partir dos interesses individuais e coletivos, muitas vezes, criaram conflitos entre os agentes da administração/burocracia colonial e os conquistadores. Pode-se citar o caso das disputas envolvendo o desembargador Christovão Soares Reimão, os camaristas de Aquiraz e o próprio capitão-mor do Siará grande, Gabriel da Silva Lago. Em 15 de junho de 1703, D. Pedro II emitiu provisão ao governador da capitania geral de Pernambuco e demais autoridades das capitanias do Siará grande e Rio Grande informando ter encarregado o desembargador Christovão Soares Reimão de diligências no Siará grande, mandando que se: (...) dêem-lhe toda ajuda e favor que de minha parte lhe pedir, e o deixem obrar livremente e só bastará que lhes mostre esta minha Provisão, que fará registrar nos Livros da Câmara e da Fazenda (...) Ordeno aos ditos Capitães-Mores (...) [passar] ordens necessárias aos Oficiais de Guerra para que lhes ponha guarda de soldados com cabos de satisfação aos Oficiais das Câmaras onde passar e assistir. Ordeno também lhe dêem por conta das rendas do Conselho e a seus Oficiais, criando aposentadorias e casas e cosas e pelo seu dinheiro os mantimentos que lhes forem necessários.3183 (Grifo meu).

A provisão acima referida deu ao desembargador plenos poderes e liberdade em suas ações, além da possibilidade de requerer quaisquer meios necessários à realização dos trabalhos de demarcação e medição das terras. 3181

Alvará com força de Carta de Lei, autorizando os Ouvidores a dividirem as terras dos sertões para a instalação das Aldeias e Paróquias. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 150. 3182 MELO, Vanice Siqueira de. Paisagens, Territórios e Guerras na Amazônia Colonial. In: Revista Territórios e Fronteiras, v. 3, nº 2 – Jul/Dez 2010, p. 23. 3183 Provisão ao Governador de Pernambuco e mais autoridades sobre a medição das terras do Ceará pelo Desembargador Christóvão Soares Reimão. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 170.

1034 ISSN 2358-4912 Ao chegar ao Siará grande, o desembargador Soares Reimão solicitou aos oficiais da Câmara de Aquiraz aposentadoria para ele e seus oficiais. Entre os oficiais encarregados pelo magistrado, estava o escrivão das causas de doações de sesmarias, Alberto Pimentel. Entretanto, os camaristas alegaram não terem casas capazes e nem dinheiro para sua construção. Em resposta a solicitação e provisão de Sua Majestade, o Coronel João de Barros Braga, a sua custa, “mandou fazer e as ornou de moveis necessários e as mesmas aplicadas para uso de qualquer ministro que aparecer”. Ressalta-se que João de Barros Braga havia sido camarista e era um dos principais sesmeiros e agentes da Coroa portuguesa no combate aos indígenas na capitania.3184 O trabalho a ser desempenhado por Christovão Soares Reimão e seus oficiais era o de medir e demarcar as terras doadas na capitania do Siará grande, especialmente as doadas nas ribeiras do Jaguaribe e Acaraú. Entretanto, constam nas documentações que foram muitas as tentativas por parte de sesmeiros e da administração central da capitania de dificultar e até mesmo impedir a realização das atividades do desembargador e sua equipe. Segundo Antonio Bezerra, defensor ardoroso do desembargador e de sua postura no desenvolvimento das atividades regias, “dêsses documentos [autos de medição e demarcação], vê-se em as lutas que teve de sustentar com os sesmeiros, quase todos potentados das capitanias vizinhas, em cujo desagrado incorreu logo por não querer ceder ao seu predomínio.”3185 Durante os anos que esteve a cargo do poder metropolitano no Siará grande Christovão Soares Reimão esteve envolvido em confrontos e alianças. De um lado nos embates estavam, Soares Reimão e os oficiais da Câmara de São José de Ribamar. Do outro, capitães-mores e diversos sesmeiros que se sentiam prejudicados com os processos de medição e demarcação das sesmarias que exigiam a apresentação da data de concessão e a posterior confirmação da medição judicial. Ressalta-se que na organização jurídico-administrativa do Império português as câmaras estavam subordinadas a ouvidoria. Talvez esta dependência, aliada com os constantes atritos entre os camaristas e o poder “opressivo” dos capitães-mores, fez com que os oficiais se aproximassem do desembargador almejando proteção contra o que chamavam de intromissão jurisdicional do Forte no que cabia a estes.3186 Gregório de Gracisman de Abreu, filho do comissário geral Theodosio de Grascisman, sesmeiro na ribeira do Jaguaribe e integrante da entrada do terço de Manoel de Abreu Soares, sentia-se prejudicado com a sentença proferida pelo desembargador nos autos de medição. A reclamação se dava pela retirada de uma légua das terras que o requerente possuía. Segundo Soares Reimão, no despacho dos autos de medição, a doação feita excedia o limite de três léguas de comprimento por uma légua de largura. Desta forma, a légua excedente deveria ser suprimida da concessão.3187 Posteriormente, Gabriel da Silva Lago, capitão-mor e desafeto de Soares Reimão, voltou a conceder a Gregório de Gracisman de Abreu a légua de terra que havia sido suprimida a mando do desembargador. Após o início dos trabalhos de medição e demarcação das sesmarias e o consequente surgimento dos embates entre sesmeiros e Soares Reimão, o processo de concessão de terras intensificou-se. Segundo Antonio Bezerra, “quem tinha uma data, correu a povoa-la, e os que não tinham, pediram terras para criar gados, acontecendo que nêsse ano se deram mais sesmarias do que em todos os outros até 1753”,3188 ano de suspensão das doações pelos capitães-mores. Observa-se, na tabela 01 abaixo, que se comprova a afirmação de Antonio Bezerra referente à intensificação das doações no período de atuação do desembargador Christovão Soares Reimão. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Patente por que foi provido João de Barros Braga no Posto de Capitão-Mor da Capitania do Rio Grande do Norte. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 250. 3185 BEZERRA, Antonio. Algumas origens do Ceará: defesa ao Desembargador Suares Reimão á vista dos documentos do seu tempo. Ed. fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2009, p. 239. 3186 Carta a Sua Magestade em 30 de maio de 1716. Apud: BEZERRA, Antonio. Op. Cit., p. 259-261. 3187 Petição e certidão de tombo da medição da sétima dacta das terras do rio Jaguaribe. Apud: Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, 1899, p. 03-17. 3188 BEZERRA, Antonio. Op. Cit., p. 106.

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ISSN 2358-4912 TABELA 01 – RELAÇÃO DAS CARTAS DE SESMARIAS DISTRIBUÍDAS NA CAPITANIA POR DÉCADA3189 PERÍODO COLETIVA INDIVIDUAL TOTAL 1679-1680 002 002 004 1681-1690 023 005 028 1691-1700 008 004 012 1701-1710 190 132 322 1711-1720 082 096 178 1721-1730 069 129 198 1731-1740 063 219 282 1741-1750 030 130 160 1751-1760 008 033 041 1761-1770 000 004 004 1771-1780 001 003 004 1781-1790 003 030 033 1791-1800 000 027 027 1801-1810 001 023 024 1811-1824 009 082 091 Sem Data 001 005 006 TOTAL 490 924 1414 Evidencia-se na tabela uma forte concentração de doações na primeira década do século XVIII, momento de atuação do desembargador e de acirradas lutas entre indígenas e conquistadores na Guerra dos Bárbaros. Foram 322 sesmarias concedidas, ou seja, aproximadamente 22,77% de todas as datas do Siará grande. Ademais, comparando-se com as décadas anterior e posterior, chega-se a diferença, respectivamente, de 2.683,33% e 180,89% a mais de pedidos. Percebe-se também que existe uma concentração de solicitações coletivas para este período de 1701 a 1710, que foi, no mínimo, duas vezes maior que nas décadas seguintes. A intensificação das requisições pode ser compreendida como uma estratégia dos sesmeiros para garantir a posse de áreas conquistadas (pedindo a concessão, requisitando sua confirmação e impedindo a medição) associando-se ao capitão-mor Gabriel da Silva Lago contra o desembargador Christovão Soares Reimão. Apesar da existência de uma vasta legislação sesmarial que buscou regular o sistema de concessões na América portuguesa e da atuação de Christovão Soares Reimão, os sesmeiros, fortalecidos pela pouca expressividade do poder central na capitania, descumpriram as determinações impostas pelos representantes da metrópole. Em 18 de novembro de 1718, dez anos após as provisões para se medir e demarcar as sesmarias, o capitão-mor do Siará grande, Salvador Alvares da Silva, queixou-se dos excessos cometidos nas doações feitas por seus antecessores e do desrespeito dos sesmeiros para com as obrigações que lhes eram impostas. [para] evitar as muitas duvidas e contendas que há nesta capitania sobre as datas de sesmarias, que deram os meus antecessores aos moradores desta capitania que as mais dellas se não acham registradas nos livros das datas deligencias que tenho feito a respeito de algumas pessoas que me pedirem lhe mandasse passar a certidão e registro dellas, e como nos ditos livros (...) se acha um masso de petições que teem mais de 200, todas com despacho dos meus antecessores (...) [determino] ser conveniente ao socego e quietação dos moradores desta Capitania que possuem terras: lhes

3189

Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. (org.). Arquivo Público do Estado do Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica/Wave Media, 2006. CDROM.

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ISSN 2358-4912 consigno seis mezes para que dentro delles venham dar cumprimento as clausulas acima referidas 3190 [registro das terras].

Ademais, esta exigência também não foi obedecida pelos sesmeiros. Quarenta anos depois da fracassada tentativa metropolitana de se tomar as rédeas do sistema sesmarial na capitania, mais uma vez representou-se contra os abusos cometidos pelos sesmeiros que não cumpriam as determinações impostas pela legislação sesmarial, principalmente a necessidade de se confirmar as terras e deixar uma légua de distância entre as concessões. João Teive Barreto de Menezes, capitão-mor, afirmava que nenhuma das ordens expedidas por Christovão Soares Reimão havia sido confirmada. Ou seja, as sesmarias não teriam sido confirmadas como havia requisitado o desembargador nos processos de demarcação. A solução encontrada pela Coroa portuguesa para acabar com os desmandos dos capitães-mores e dos sesmeiros nas concessões foi a proibição da doação de terras no Siará grande pelos administradores da capitania a partir de 13 de setembro de 1753, sendo registrada no Siará grande em 05 de janeiro de 1754.3191 Além da medição e demarcação das terras na capitania do Siará grande, Christovão Soares Reimão fora incumbido de relatar os abusos e inconveniências que estavam ocorrendo na capitania, exemplo do impedimento do trabalho dos missionários feito pelos conquistadores e pelo próprio capitão-mor Gabriel da Silva Lago. Assim, ao relatar os fatos verificados, o desembargador entrou em atrito com os conquistadores da capitania por conta da perseguição que estes também fizeram aos indígenas, como no caso do furto das indígenas. Em 04 de fevereiro de 1709 a Coroa portuguesa determinou, por meio de seu Conselho Ultramarino, que vistas às informações de furtos, roubos e abusos dos conquistadores perante aos gentios com o consentimento do capitão-mor Gabriel da Silva Lago: (...) lhes tome sua queixa [dos indígenas] e proceda contra os réus a prisão e as mais penas na forma da ordenação, dando apelação e agravo. E ao Governador ou Capitão-Mor do Ceará, se devia também ordenar que se não intrometa em impedir aos índios o irem servir a quem os chama livremente e que, fazendo o contrário, será 3192 castigado severamente ao arbítrio de Vossa Majestade.

Gabriel da Silva Lago, capitão-mor do Siará grande, em 25 de janeiro de 1708 também representou queixa contra o desembargador Soares Reimão. O capitão-mor alegou ter enviado para as obras da Igreja da ribeira do Jaguaribe trinta índios que o desembargador havia solicitado. Entretanto, segundo Gabriel da Silva Lago, os indígenas estavam fugindo da obra devido “se lhe dera tão mau trato assim com a falta do sustento como com a continuação do trabalho e até nos dias santos, e com o rigor do castigo”. Desta forma, D. João V, em seu parecer ordenou que se enviassem informações a respeito da queixa e comprovando-se a veracidade, não se punissem os gentios.3193 O desentendimento entre o capitão-mor e o desembargador referente a construção da Igreja das Russas continuou após esta queixa apresentada por Gabriel da Silva Lago. O capitão-mor do Siará grande em carta de 15 de junho de 1708 informou ao rei que Soares Reimão havia lançado “uma taxa sem ordem minha [do rei], nem convocar os moradores dela, taxando 200 currais em 2 bois cada um, e à terra de cada curral destes em dez tostões”. Ademais, Gabriel da Silva Lago advertiu que esta atitude poderia resultar em queixa dos moradores. Vistas as informações elencadas, D. João V ordenou ao desembargador que “deis

3190

Edital convidando os moradores a registrarem as suas datas. 18 de novembro de 1718. Apud: BEZERRA, Antonio. Op. Cit., p. 220-221. 3191 Ordem Régia suspendendo aos capitães-mores desta Capitania o direito de passar cartas de sesmarias. Apud: BEZERRA, Antonio. Op. Cit., p. 221-222. 3192 O Desembargador Christóvão Soares Reimão dá conta de vários moradores da Capitania do Ceará terem índias furtadas aos seus maridos sem lhas quererem largar ao que se deve dar por pronto remédio. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 205. 3193 Para o Desembargador Christóvão Soares Reimão. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 206.

1037 ISSN 2358-4912 a razão deste vosso procedimento ouvindo os Oficiais da Câmara para que a vista da vossa resposta e da Câmara se tome a resolução conveniente”.3194 Soares Reimão em carta de 28 de janeiro de 1710 também apresentou queixa contra os procedimentos do capitão-mor do Siará grande para com ele e seus oficiais. Segundo o desembargador, Gabriel da Silva Lago dificultava os trabalhos de medição e demarcação das terras ou não tomava nenhuma providência contra os desmandos causados pelos sesmeiros e demais moradores que tentavam impedir o avanço dos trabalhos. Segundo documentos do Conselho Ultramarino, Soares Reimão havia enviado três cartas queixando-se da resistência e impedimento praticado pelo capitãomor para com as ordens de Sua Majestade e os trabalhos a serem desenvolvidos na demarcação das terras. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

(...) na 1ª dava conta da resistência ou impedimento que fizeram com armas aos seus oficiais, para que não continuassem com a medição das terras como também da injúria que fizeram dele ministro, indo a sua casa com armas de fogo por modo de assuada muitas pessoas, que referia bradando a voz Del-Rei contra ele e dizendo que lhes furtava as suas terras e finalmente dizia, que da resistência tirara devassa, pronunciara os culpados, mas não os prendera, por senão atreverem os seus oficiais a fazê-lo e da injúria fizera auto; e de uma e outra coisa remetia os traslados. Que na 2ª carta se queixava do capitão-mor, ou governador do Ceará, porque sendo ordem de Vossa Majestade para que lhe desse toda ajuda e favor, como todos os mais capitães-mores, ele o fizera tanto pelo contrário, que passara uma petição ao juiz ordinário daquele distrito para devassar do procedimento do dito ministro, o que com efeito se tirara com[o consta] da certidão que remetia, e que para esse efeito indo várias destas; e que ultimamente mandando-lhe seis soldados para sua guarda na forma das or[dens de] Vossa Majestade, lhe não mandara senão quatro, e que o dava com pouco respeito e veneração. Que na carta se queixara do mesmo capitão-mor, dizendo que lhe mandara passar um precatório no qual lhe pedia que lhe remetesse o livro de registro das sesmarias para com ele examinar a verdade de alguns títulos que se achavam em juízo perante ele, ao qual precatório não dera comprimento o dito capitão-mor nem mandara o livro; e finalmente que 3195 entendia que no mesmo livro havia falsidades, e antidatas feitas pelo mesmo capitão-mor.

(Grifo meu). Depreende-se das cartas enviadas pelo desembargador que foram constantes os desentendimentos entre este e os capitães-mores do Siará grande, especialmente com Gabriel da Silva Lago. Os “crimes”/desmandos supostamente praticados pelo capitão-mor, segundo Soares Reimão, iam de encontro as determinações da Coroa portuguesa. Além de negar ajuda e proteção ao representante do rei, o denunciado tentava impedir a realização dos serviços de medição e demarcação. Mais qual(is) a(s) motivação(ões) para o capitão-mor investir contra o magistrado? Seria devido às relações de poder estabelecidas entre sesmeiros e Gabriel da Silva Lago no processo de requisição e concessão das sesmarias? Segundo o desembargador, o receio existiu pela ocupação de espaços não permitidos e, possivelmente, o registro de falsas doações devido ao início dos trabalhos de medição e demarcação. Respondendo as queixas e dúvidas de Christovão Soares Reimão os pareceristas do Conselho Ultramarino advertiram que: (...) [referente a 1ª carta] como os casos eram escandalosos, e é convenientíssimo ao serviço de Vossa Majestade; que se castigue pois de outra sorte não seria Vossa Majestade obedecido. (...) Que a 2ª carta diria que um capitão-mor, que manda por uma portaria sua a um juiz ordinário tirar devassa de um ministro a quem Vossa Majestade manda àquela diligência; já feito desembargador, não era capaz de ser capitão-mor; e que ou tenha acabado o seu tempo, ou não o mesmo ouvidor da Paraíba o suspendesse, e sindicasse fazendo exame nos livros dos registros das sesmarias para averiguar se 3194

Carta Régia ao Desembargador Christóvão Soares Reimão sobre uma taxa lançada para a construção da Igreja das Russas. In: Coleção de documentos doados ao Arquivo Público do Estado do Ceará pelo Professor Limério Moreira da Rocha. APEC, p. 208. 3195 [1710, janeiro, 28, Lisboa] CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre as cartas do desembargador Cristovão Soares Reimão em que se queixa da revista que se faz aos seus oficiais na diligência da medição das terras de Jaguaribe, bem como do procedimento do capitão-mor do Ceará, Gabriel da Silva Lago, para com ele. Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Ceará. AHU-Ceará, cx. 01, doc. 73 e 74.

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ISSN 2358-4912 neles tem feito algumas falsidades. Quanto à 3ª dizia que o ministro não tinha razão, porque os livros do registro público não deveriam sair do cartório, principalmente para um sertão em distância mais de cinquenta léguas, como constava destes papéis, com o perigo evidente de se 3196 perderem.

Percebe-se o acolhimento de parte das denúncias feitas pelo ex-ouvidor geral da Parahyba. Ademais, em 1708 o capitão-mor do Siará grande foi afastado do cargo, assumindo um governo interino composto por representantes do Senado da Câmara da vila de São José de Ribamar, aliados do magistrado neste processo de medição e demarcação das terras da capitania. *** Evidencia-se ao longo dos anos de atuação do desembargador e ouvidor geral da Parahyba o envolvimento deste em diversas contendas com sujeitos integrantes de redes de poder nos sertões das capitanias do norte. Ademais, estas redes de poder eram constituídas e desfeitas mediante as conjunturas político-econômicas em curso no interior das ribeiras. Na capitania do Siará grande a aliança entre os oficiais da câmara e o desembargador Soares Reimão, e entre os sesmeiros das ribeiras do Jaguaribe e Acaraú com o capitão-mor Gabriel da Silva Lago atendiam as demandas que cada um necessitava. Para os camaristas, a aliança com o ouvidor geral representava o fortalecimento das pretensões da vila de São José de Ribamar frente aos excessos do capitão-mor, possibilitando desta maneira a afirmação do poder político e econômico destes conquistadores frente ao poder coercitivo da administração da capitania. Para o desembargador, os camaristas, que também eram sesmeiros, significavam aliados neste processo de demarcação e cumprimento da ordem espacial e social almejada pela Coroa portuguesa, ajudando com suas divisas. Exemplo dos serviços dispensados pelo coronel João de Barros Braga a Soares Reimão e seus oficiais. Para os demais sesmeiros e o capitão-mor, a aliança representava a possibilidade de impedir o desenvolvimento dos serviços de medição que resultariam na diminuição das concessões feitas por Gabriel da Silva Lago. Referências BEZERRA, Antônio. Algumas Origens do Ceará. Ed. fac-similar. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2009. BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do antigo regime. Almanak Braziliense (Online), v. 2, 2005, p. 21-34. DIAS, Patrícia de Oliveira. O tirano e digno Cristóvão Soares Reimão: Conflito de interesses locais e centrais nas capitanias de Itamaracá, Ceará, Paraíba e Rio Grande no final do século XVII e início do XVIII. In: Revista Ultramares , nº 1, vol. 1, Jan./Jul. 2012, p. 148-172. MACHADO, Marina Monteiro; MOTA, Maria Sarita. Legislações e Terras. In: MOTTA, Márcia; GUIMARÃES, Elione. (Orgs.). Propriedades e Disputas: fontes para a história do oitocentos. Guarapuava: Unicentro; Niterói: EDUFF, 2011, p. 255-258. MELO, Vanice Siqueira de. Paisagens, Territórios e Guerras na Amazônia Colonial. In: Revista Territórios e Fronteiras, v. 3, nº 2 – Jul/Dez 2010, p. 07-33. SALGADO, Graça. (Coord.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1985. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SILVA, Rafael Ricarte da. Formação da Elite Colonial dos Sertões de Mombaça: terra, família e poder (século XVIII). Dissertação (Mestrado em História Social), Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.

3196

Idem.

1039 ISSN 2358-4912 HOMENS LIVRES DE COR NA EXPANSÃO DA FRONTEIRA LUSITANA NA RIBEIRA DO ACARAÚ (1682-1720)

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Raimundo Nonato Rodrigues de Souza3197 Introdução O presente artigo analisa a presença sesmeiros de ascendência africana na capitania do Ceará, no período de 1682 a 1720, especialmente a família Coelho de Moraes e Dias de Carvalho. Neste período ocorreu o processo de colonização da capitania, efetuada por pessoas brancas, negras, mulatas e mamelucas, vindas das capitanias de Pernambuco, Rio Grande, Paraíba, Bahia, São Paulo, das ilhas da Madeira, Açores e de Portugal, no esteio das guerras basílicas, palmarinas e dos “bárbaros”. Na expansão da fronteira lusitana, na capitania do Siará Grande, diversos homens de cor (pretos, mulatos, pardos, crioulos), obtiveram “mercê” pelos serviços prestados ao governo português. É neste contexto que se insere o capitão Felipe Coelho de Morais e seus parentes, Paulo Martins Chaves, Domingos Lopes, João Coelho, Bento e Brás Ferreira da Fonseca, Antonio de Castro Passos, de ascendência africana e outros presentes no Ceará desde 1654. Com seus serviços vão dilatando a fronteira agropastoril do litoral para o sertão da ribeira do Acaraú. Todas estas histórias ocorreram num sertão semiárido configurando-se ai uma sociedade agropastoril, escravocrata e de hierarquias sociais, onde prestígio e distinção faziam parte do seu cotidiano. Ao tratar de negros possuidores de bens, distintos e reconhecidos, cabe indagar como foi possível a eles ascenderem socialmente naquele espaço colonial. Do litoral para Sertão Após a reocupação luso-brasileira da capitania de Pernambuco e suas anexas, em 1654, a capitania do Ceará receberá tropas militares que irão se estabelecer na antiga fortaleza holandesa para garantir o controle da costa cearense e ao mesmo tempo reprimir e tecer alianças com populações nativas. Em 30 de Maio de 1654, o governador geral do Brasil, Francisco Barreto, comunicou ao rei de Portugal “[...] ter nomeado para capitão-mor do Ceará Álvaro de Azevedo Barreto, o qual seguirá para lá com quatro companhias de soldados e duas de índios e pretos.”3198 Conforme o governador holandês Matias Beck a tropa era composta de: “um capitão-mor, seis capitães de tropa, e mais cento e cinquenta soldados, tanto brancos como brasilienses, mulatos, mamelucos e negros”3199. Com o alargamento da fronteira lusa na capitania cearense, as entradas, além da costa da capitania cearense vão vislumbrando outro mundo, constituído de serras, como as de Meruoca, Uruburetama e Ibiapaba; riachos como: Rolas, Boiacanga e Pacujá; os olhos d’água do Mocambo e Jurema; as lagoas das Pedras e, Cariré e os poços: Guassururu e Carnaúba furada. Como no sertão cearense boa parte do ano, os rios ficavam secos e somente na estação chuvosa estes acumulavam águas, saber da localização de poços e olho d’água, garantia que a futura terra propiciasse riqueza ao grande investimento, devido o caminho para sertão ter sido feito “com riscos de suas vidas”3200. O sertão semiárido não era apenas lugar de “terras inúteis para todo o gênero de lavouras, e muito desertas e grandes certoens”3201, mas um ecossistema que possibilitava aos moradores conviver nos períodos chuvosos ou quando as águas das chuvas eram poucas ou não escorriam pelos campos. Dessa 3197

Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará e Professor Assistente da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. E-mail: [email protected]. Orientado pelo professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará Dr. Eurípedes Antonio Funes. A pesquisa é apoiada pela FUNCAP-CE. 3198 STUDART, Barão de. Datas e fatos para a História do Ceará.Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, tomo I, p. 69. 3199 GONZALEZ, Henrique. Versão livre da carta de Matias Beck sobre o Ceará In: Revista do Instituo do Ceará, t. XCI (1977), p. 140. 3200 Carta de sesmaria do coronel Leonardo de Sá e seus companheiros, n°. 171, vol. 3, 1706, p. 83. In: Arquivo Público do Estado do Ceará - APEC (Org.). Datas de sesmarias do Ceará. Forrtaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006, CD-Rom 1. (Coleção Manuscritos). 3201 Carta de sesmaria que se passou ao Capitão Francisco Gil Ribeiro. In: Documentação histórica pernambucana. Sesmaria. Recife: Secretaria de educação e Cultura, 1954, volume I, p. 86.

1040 ISSN 2358-4912 forma “o espaço cortado pelos caminhos se torna, assim, não somente um meio a ser vencido, mas um espaço geopolítico no qual se concentram expectativas e temores de uma metrópole mergulhada no jogo do poder europeu.”3202 O espaço sertanejo precisava ser conhecido, mapeado, nomeado e registrado em data de sesmaria. Para Vera Ferlini:

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A adoção do sistema sesmarial para a organização do aproveitamento da terra no Brasil implicou transformação. Em primeiro lugar as terras desaproveitadas, na América, eram terras virgens. Em segundo lugar, o termo sesmeiro, antes designador do funcionário que dava as terras, passou a nomear o titular da doação. A distribuição de terras não tinha mais o objetivo de prover a produção de cereais, mas de viabilizar a colonização mercantil. De semelhante ficava o colono 3203 como agente da empreitada “semipública” (pública em seu plano, particular na realização) .

A doação de sesmaria na capitania do Ceará inicia-se em meados do século XVII, nas proximidades da fortaleza do Ceará e nas áreas da ribeira do Jaguaribe, a partir de 1680, deslocam-se em direção da fronteira com Maranhão. Antonio Bezerra ao tratar da ocupação e povoamento da capitania do Ceará enfatiza que as terras foram ocupadas primeiramente no litoral e adjacências e, posteriormente, das barras para o sertão.3204 Sesmarias de negros A colonização requeria capitais para transformar o espaço da capitania em lugar de produção para suprir um mercado regional, com gados, couros e sebos. Neste serviço os homens de cor como Felipe Coelho de Moraes, Jerônimo Coelho de Moraes, Bernardo Coelho de Andrade e Francisco Dias de Carvalho e outros negros foram fundamentais na conquista e colonização do território cearense. Eles receberam 84 sesmarias num período de 110 anos, conforme quadro abaixo: PERÍODO 1680-1700 1701-1720 1721-1740 1741-1760 1761-1780 1781-1790 TOTAL

Sesmarias de negros COLETIVAS INDIVIDUAL 08 01 26 07 13 24 00 04 00 00 00 01 47 37

FONTE: Sesmarias Cearenses (1680-1790)

Das 83 sesmarias concedidas pelo coroa aos negros, 76 foram doadas a Felipe Coelho de Moraes e parentes. As outras contemplaram os pardos: Domingos Ferreira Pessoa possuidor de 03 sesmarias; Paulo Martins Chaves, Antonio de Crasto Passos, Inacio Dias Leite, Leão e José de Amorim Távora obtiveram apenas 01 sesmaria; para além dessas foram doadas em outras ribeiras da capitania do Ceará terra aos pretos forros Domingos Lopes e João Coelho e os crioulos forros Bento e Brás Ferreira da Fonseca.. Ressalta-se que a concessão de terra não foram doadas a qualquer participes da conquista, no caso estudado, os sesmeiros são oficiais militares servindo nas tropas pagas ou nas ordenanças, associam a seus parentes consanguíneo ou ritual, criando uma elite local baseada no poder familiar. Mesmo concentrando a terra nas mãos de poucos, a aquisição de grandes latifúndios preocupava a coroa devido a subterfúgios utilizados, como aqueles que solicitavam terras em conjunto, não as povoarem e as venderem aos outros peticionários da mesma data. 3202

SANTOS, Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano: 1640-1670. São Paulo: Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2010, p.186. 3203 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder. O mundo dos engenhos no Nordeste colonial. Bauru, SP:EDUSC, 2003, p.230. 3204 BEZERRA, Antonio. Algumas origens do Ceará.: defesa do desembargados Soares Reimão à vista dos documentos do seu tempo. Ed. Fac.-similar. Fortaleza:FWA, 2009, p.33

1041 ISSN 2358-4912 O mulato capitão Felipe Coelho de Moraes conseguiu uma data de sesmaria em 1680, medindo dês léguas de terras: “pegando do comembe até o rio Siupé”. O referido capitão argumentou na sua solicitação os serviços prestados na capitania do Ceará ao governo português e informou que “há muitos annos a esta parte eaqui ceesta fazendo donde vay criando gado vacum e cavalar e outras mais tudo em bem da dita capitania”3205. No seu discurso enfatiza os benefícios do cultivo da terra, criatório de gados e serviços prestados nas guerras contra os batavos e os povos nativos. Na concessão do pedido, o capitão-mor do Ceará, Sebastião de Sá, concede a terra solicitada argumentando serem “ellas devalutas edesocupadas” e ser o capitão “oprimeiro que comesou a povoar esta capitania”. O reconhecimento através de doação de terras não só ampliava o reino de Portugal como aumentavam suas rendas, possibilitando ao rei leal súdito no controle dos sertões conquistados. Os sesmeiros iam aumentando seu patrimônio e se constituindo enquanto elite local, hierarquizando e diferenciando-se dos outros sujeitos da conquista. Segundo João fragoso:

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A expansão e a conquista de novos territórios permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios, cargos civis e militares, conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com base nas quais se distribuíam as pensões. Tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando a 3206 expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo vínculos estratégicos com os colonos.”

Estes militares negros através de seus serviços adquirem mercê em terras, títulos e escravos na conquista do sertão. Conforme Eudes Gomes, não era necessário “critério de ascendência da fidalguia para a doação de sesmarias”, o que possibilitava índios, mamelucos e negros a “obtenção de datas de terra por qualquer vassalo, deste que este se comprometesse em ocupar e tornar produtivas as terras doadas, o que impulsionava as entradas de conquista ao interior do continente” 3207. Em 1682, o capitão Felipe Coelho e seu irmão Hieronimo (Jerônimo) Coelho, conseguem três léguas de terra localizada no riacho Caracu até a serra do Maranguape. Na solicitação, eles informam sobre seus serviços prestados na capitania de Pernambuco e Ceará, como soldado e prático da língua desde 1647; está morando a 29 anos no Ceará, desde a restauração do domínio holandês; estabelecido na capitania com criações de gados “a beira desta fortaleza donde atualmente faz a dita criação dano as lavouras dos índios e morantes e porque é necessário terra para acomodar (...)”.3208 Geraldo Nobre ao comentar a repressão aos Paiacu na Precabura argumenta que esta guerra gerou ao comandante da tropa Felipe Coelho de Morais duas concessão de terras: Além disso, Felipe Coelho de Morais obteve grandes recompensas, notadamente uma data de dez léguas quadradas na terra do Comembe (Cambeba) (…) nela estando compreendida a aldeia Anacés, pois se estendia pela costa até o rio Siupé; e uma outra, de duas légoas, igualmente em quadra, com as lagoa Carúzinho, Payasara, Maracanaú, Jaupaba, Jaçanaú e Jauhiri, indo até a serra do Maranguape, em distancia de quatro léguas pouco Mais ou menos, que ele disse ter descoberto, certamente na ocasião daquela campanha, embora a respeito nada conste em seu 3209 requerimento aliás feito em parceria com Jerônimo Coelho.

Francisco Dias de Carvalho, membro da família do capitão Felipe Coelho de Moraes recebera, também, diversas sesmarias pelos serviços prestados nas guerras aos nativos e na defesa da costa do Ceará. Num pedido de terras, datado de 1682, junto com seu irmão Bernardo Coelho de Andrade 3205

“Registro de data e sesmaria do Capitão Philipe Coelho de Morais, vol. 1, p. 35, 1680, CD 1. In: APEC.(Org.) Datas de sesmarias do Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006. 3206 FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVEA, Maria de Fátima Silva. O antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (século XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.23. 3207 GOMES, José Eudes. As milícias d´El Rey. Tropas militares e poder no Ceara setecentista. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2010, p. 137. 3208 “Registro de data e sesmaria do Capitão Felipe Coelho de Morais e Hieronimo Coelho, vol. 1, n°. 25, p. 57, CD. 1. In: APEC.(Org.) Datas de sesmarias do Ceará. . Fortaleza: Expressão Gráfica / Wave Média, 2006. 3209 NOBRE, Geraldo Silva. História eclesiástica do Ceará – primeira parte. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980. p. 132..

1042 ISSN 2358-4912 informam morar na capitania do Ceará, desde 1656 e servir como soldados na fortaleza desde ano de 1671. Francisco Dias adquiriu 03 sesmarias na ribeira do Ceará e em 1694, após 23 anos de serviços na fortaleza do Ceará, fora nomeado capitão de infantaria, no governo de Fernão Carrilho. No documento da patente este é qualificado como pessoa de valor, bom soldado, ter experiência militar e de sertão3210. Carlos Studart anota no rodapé de um artigo uma mini biografia de Francisco Dias de Carvalho, no qual descreve os feitos nas guerras contras os indígenas na capitania do Ceará, conforme explicita:

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Dias Carvalho, o vencedor dos Paiacús, foi uma figura notável na história das luctas contra os selvicolas do Ceará. Pertencia à Comnpanhia do Capitão Antônio da Silva, do terço do mestre de campo Zenóbio Achioli de Vasconcelos quando veio para guarnição de Fortaleza aqui serviu durante 23 annos. Tomou parte na expedição mandada contra os Irarius por Bento Correia de Figueiredo, Nessa guerra, que tão caro custou aos gentios, recebeu Dias Carvalho alguns ferimentos. A seguir, comandou, em 1688, 700 homens na lucta contra os Jandoins e os Paiacus, da ribeira do Jaguaribe. Fez nelles graves dannos e captivou numerosas mulheres e crianças. No governo do capitão mor Thomas Cabral de Olival, escoltado apenas por 12 homens e 30 índios mansos, conduziu a serra da Ibiapaba o Padre Pedro Barbosa de Pedrosos, missionário Jesuíta. Mais tarde, em companhia do cabo Manoel de Carvalho Fialho, partiu, a frente de 40 índios, socorrer os moradores da ribeira do Iguape contra as ameaças dos nativos revoltados. Nessa expedição, como aliás em todas as outras se houve sempre com notável valor e prudência digna de 3211 elogios.

As ações praticadas por Francisco Dias de Carvalho nas guerras aos indígenas proporcionaram muitas terras, escravos, condecoração militar e grande riqueza tornando num grande potentado na capitania. Os Dias e Coelho na ribeira do acaraú no século XVIII No livro de sesmarias, foram registrados 86 pedidos por estas famílias. Além dos citados sesmarias concedidas a Felipe Coelho de Morais e Francisco Das de Carvalho, conseguiram terras, seus irmãos e filhos e parentes, como: Bernardo, Teodósio, Manoel, Zacarias, Francisco e João Coelho de Andrade. Ao comparar o total de sesmarias solicitadas, entre os anos de 1679 até 1824, na capitania do Ceará, pelos familiares de Felipe Coelho, notamos que estes obtiveram 2,8 % do total de sesmarias. tornando a parentela poderosa no sertão. Seu poder não vinha da qualidade do nascimento, pois eram mulatos, viam de trabalho mecânico, qualidades negativas nos critérios de ascensão a cargos ou outros benefício no antigo regime português. Na prática estes defeitos não inviabilizaram sua ascensão na sociedade colonial. Segundo Eudes Gomes No entanto, se a “qualidade de nascimento” pesaria na escolha daqueles que estariam aptos a prestar os serviços mais relevantes no ultramar, a sua conquista foi em grande parte levada a cabo por indivíduos destituídos de tais qualidades, alguns dos quais por intermédio de seus serviços prestados na conquista e defesa do território se transformaram nos principais moradores das terras 3212 na América sob domínio português .

O poder dos Dias e Coelho estendia sobre diversas ribeiras na capitania do Ceará, como na ribeira do rio Ceará, Curu e Acaraú. Suas sesmarias margeavam rios e riachos, como o Aracatiaçu, Aracatimirim, Acaraú e Coreau, sendo elas propícias para criatório ou plantar lavouras.. Os primeiros sesmeiros desta família foram o capitão Felipe Coelho de Morais, Jerônimo Coelho, Bernardo Coelho de Andrade e Francisco Dias de Carvalho, cujas terras estendiam-se da fortaleza do Ceará até o rio Siupé e serra do Maranguape. As sesmarias conseguidas por seus filhos e netos na ribeira do Acaraú iniciam-se a partir do ano 3210

STUDART, Barão de. Op. Cit, p. 30. STUART FILHO, Carlos. Notas Históricas sobre os indígenas cearense. In: Revista do Instituto do Ceará (RIC), 1931, tomo XLV, p. 65. 3212 GOMES, José Eudes. Op. Cit., p. 47. 3211

1043 ISSN 2358-4912 1684 e vão a meados do século XVIII. As sesmarias que foram doadas a eles no seiscentos abrangiam diversas ribeiras e rios, como a concedida em 1682, a 26 pessoas entre eles o pardo Manoel Dias de Carvalho filho de Francisco Dias de Carvalho e Domingo Ferreira Pessoa, “natural da freguesia de Santo Antonio do Cabo, de idade de vinte e quatro anos, homem pardo, de meia estatura, com um sinal como verruga junto ao nariz da parte esquerda, e um sinal pardo na testa, aberto da sobrançelha, o cabelo preto e crespo, por soldado arcabuzeiro (...)”. 3213 Este pardo exerceu o cargo de soldado, almoxarife do Ceará e adquiriu duas datas de sesmarias. No século XVIII os familiares de Felipe e outros negros adquirem novas datas de sesmaria ocupando toda a ribeira do Acarau conforme quadro com numero de sesmaria por decênios, solicitadas pelos Dias e Coelho. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Ribeiras Períodos 1700-1709 1710-1719 1720-1729 1730-1739 TOTAL

Ceará 01 00 05 04 10

SESMARIAS DOS DIAS E COELHO Aracatiaçu Aracatimiri Acaraú m O1 00 08 11 01 04 08 00 07 05 00 02 18 01 21

Coreaú 02 02 04 01 07

FONTE: Sesmarias Cearenses (1700-1739)

No primeiro decênio do século XVIII, a frente de ocupação das terras cearense pelos Coelho e Dias expandem-se, principalmente, na ribeira do Acaraú, com a ocupação de 11 glebas de terras, espalhadas na ribeira do rio Acaraú (08), Aracatiaçú (01) e Coreaú (02). A primeira sesmaria solicitada foi pedida por Manoel Dias de Carvalho e seu primo Félix Coelho de Moraes, no ano de 1705, como está não fora registrada, após três anos, eles requerem nova concessão e registro nos livros de terras da capitania. A sesmaria localizava-se entre o rio Coreaú e o serrote das rolas, nas proximidades das aldeias dos tabajara, na serra da Ibiapaba e na dos Reriu, na serra da Meruoca. Na parte da sesmaria de Manuel Dias de Carvalho fora erguida um templo em devoção a Santo Antonio da Mouraria, hoje conhecido como Santo Antonio do Arakem. Outras sesmarias foram doadas a Bento Coelho de Morais, Pedro de Mendonça de Morais, Francisco Dias de Carvalho, Zacarias Coelho de Andrade, Manoel Coelho de Andrade, Francisco Pereira de Andrade e João Coelho, Félix Coelho de Morais e João da Silva Lago. No período de 1710-1719, os Dias e Coelhos adquiriram outras 18 sesmarias: sendo 11 no rio Aracatiaçú, 01 no Aracatimirim, 04 no Acarau e 02 no Coreaú. Foram contemplados neste decênio os seguintes sesmeiros: Bento Coelho de Morais com 03 sesmarias, sendo uma em parceira com sua esposa Vitória de Morais e duas com sua filha Floriana Coelho de Morais, todas elas adquiridas na ribeira do Aracatiaçu, na serra da Uruburetama, onde estava localizada sua morada. Félix Coelho de Morais adquiriu 04 sesmarias, Manuel Dias de Carvalho conseguiu uma (01) com seu neto Manoel Dias Neto (02), seus sobrinhos Manuel Fernandes Neto (01), Manuel Fernandes de Carvalho (02), João Fernandes Neto (03). As outras doadas fora com seus primos e sobrinhos. No período de 1720-1729, foram o período que eles mais conseguiram terras, foram doadas 24 sesmarias, distribuídas 05 no rio Ceará, 04 no rio Canindé, 04 no aracatiaçu, 07 no Acarau e 04 no Coreau. Nos dez anos seguintes eles adquiriam 12 sesmarias. Após estes período ate o final das concessões de terras através de sesmaria em 1824, não fora possível identificar seus familiares. Conflito entre missionários e a família Coelho e Dias A quantidade de terras e de escravos em poder da parentela dos Coelhos de Morais e Dias de Carvalho proporcionou ascensão aos altos cargos militares, alianças com outras famílias da elite local, 3213

[ant. 1683, novembro, 13]. REQUERIMENTO de Domingos Ferreira Pessoa ao rei [D. Pedro II], a pedir a propriedade do ofício de almoxarife do Ceará. Anexo: documentos comprovativos, consultas e bilhete. In: SOARES, José Paulo Monteiro e FERRÃO. Memória Colonial do Ceará. Rio de Janeiro: Kappa editorial, 2013, Volume I (1618-1720), Tomo I, (1618-1698), p. 231.

1044 ISSN 2358-4912 como a realizada do casamento de Manoel Dias de Carvalho com D. Bárbara Cabral de Olival “certamente filha do capitão mor Tomás Cabral de Olival, comandante da fortaleza do Ceará de 1688 a 1692.”3214 ou alianças com religiosos através de doação de terras para construção de capelas, como a Capela de Santo Antonio da Mucaria, em 1726, na localidade de Olho dʼÁgua do Coreaú3215. As “redes de alianças”3216 formadas por eles com outros sesmeiros, padres e funcionários reais, possibilitou a ascensão como elite local e um dos seus membros, Bento Coelho de Moraes, ao cargo de vereador da Câmara de Aquiraz3217. A grande quantidade de sesmarias tornava esta família negra poderosa, o que talvez explique a preocupação dos padres em solicitarem ao rei medidas para coibir abusos aos índios, como a mortandade deste pelas tropas enviadas ao sertão, que tinham como cabos os mulatos. Na carta do Padre Antonio de Sousa Leal e João Guedes, remetida ao Conselho Ultramarino, relatando o trabalho dos missionários junto às populações nativas, eles informavam, também, que os grandes inimigos deste projeto eram os:

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[...] indesentes e perniciosso homes [homens] que há no ceará são Pedro de Mendonça, Bento Coelho, Manoel Dias, Félix Coelho e outros seus parentes que todos procedem de hum mulato Phelipe Coelho q [que] depois q [que] os Pᵉ. [padres] largarão as aldeias do Ceará se fez administrador dellas e amancebando-se com as índias q[que] tinha em serralho, procreorse grande número de filhos q[que] todos seguem maos exemplos e tiranizão, não só os índios, mas também os brancos, não havendo quem ouze queixar-se das violências e roubos q [que] lhe fazem e deve encarregar ao Ouvidor q[que] especialmente inquira dos excessos destes homes [homens], e proceda contra eles 3218 com toda a severidade, e q[que] obrar nelles dê conta a V. Magᵈᵉ por este conselho.

Estas violências, segundo o padre, foram praticadas pelos “capitães-mores, soldados e moradores, e principalmente uma famílias de mamelucos e mulatos de apelido Dias e Coelho.”3219. Cita o padre dois casos de violência praticada por Bento Coelho de Moraes e seu filho Félix Colho a pessoas brancas: 1: “com uns tapuias seus escravos, prendera um branco que morava no Curuguay, querendo lhe cortar as mãos, por ele ter desfeito um curral, que às escondidas fizera em num seu terreno”3220; 2. “moeu a paos um moço branco Luis Pereira Coutinho, tendo que se ausentar da região num prazo de quinze dias”3221. O padre Leal diz que “Assim os mulatos e mamelucos tinham tomado posse do Ceará, sem que ninguém se atrevesse a acusá-los ou repreende-los.”3222 3214

NOBRE, Geraldo Silva. História eclesiástica do Ceará – primeira parte. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980, p. 36 3215 NOBRE, Geraldo Silva. Op. Cit., p. 34. 3216 FRAGOSO, João Luis.”fidalgos e parentes de preto: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro”. In: FRAGOSO, João Luis; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Orgs). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 71. 3217 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820); Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 90. 3218 1720, outubro, 29, Lisboa. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre a carta do padre Domingos Ferreira Chaves, missionário-geral e visitador-geral do norte no Ceará, e exposição do padre Antonio de Sousa Leal, missionário e clérigo do hábito de São Pedro, sobre as violências e injustas guerras com que são perseguidos e tiranizados os índios do Piauí, ceará e Rio Grande. CTA: AHU-CEARÁ, cx. 1, doc. 93. In: In: SOARES, José Paulo Monteiro e FERRÃO. Memória Colonial do Ceará. Rio de Janeiro: Kappa editorial, 2013, Volume II (1720-1731), Tomo I, (1720-1726), p.17. 3219 Exposição do padre Antonio de Sousa Leal, missionário do Brasil, em que dava conta, segundo ordem DelRei, de todos os agravos feitos ao gentio as capitanias de Pernambuco e Piaui, onde estivera 17 para 18 anos juntos de várias nacoens. In: RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os manuscritos do arquivo da Casa de Cardaval respeitante ao Brasil. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1958, vol. II p. 388. 3220 Exposição do padre Antonio de Sousa Leal, missionário do Brasil, em que dava conta, segundo ordem DelRei, de todos os agravos feitos ao gentio as capitanias de Pernambuco e Piaui, onde estivera 17 para 18 anos juntos de várias nacoens. In: RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Op. Cit., p. 392 3221 Idem, p. 393 3222 Ibidem,, p 394.

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ISSN 2358-4912 Conclusão Conquistado e ocupado o Sertão, ribeira do Acaraú, com currais e aldeamentos, fazendas e povoações configura-se uma nova ordem social, política e econômica, que precisa ser controlada, especialmente os moradores do sertão, seja os “vadios”, por não estarem com ocupação definida ou a serviço dos proprietários em suas lutas contra os indígenas ou contra outros proprietários; os homens de cor: escravos, libertos e livres. E principalmente os mulatos, descendentes de negros livres e libertos que participaram da conquista e adquiriram inclusive diversas sesmarias, tornando-se grandes potentados. Isso dificultava o aparelho jurídico se fazer presente nessas imensidões de terras, além dos diversos poderes presente naquele espaço. Sem negociação com o poder local a administração régia não se fazia efetiva, não tinha como controlar seus súditos, fossem eles livres ou escravos. No caso da ocupação das terras do sertão do Acaraú, vemos como as doações de sesmarias mobilizaram uma massa de homens, que prestavam serviços ao poder régio, mas utilizava esta prestação de serviço para adquirir terras, através das concessões de datas de sesmarias. Foram estes mecanismos que possibilitaram a expansão da fronteira agropastoril, transformando muitos negros livres e libertos, vindos de outras capitanias ou do reino em potentados locais. Referências BEZERRA, Antonio. Algumas origens do Ceará. Fac.-similar. Fortaleza: FWA, 2009 FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder. O mundo dos engenhos no Nordeste colonial. Bauru, SP: EDUSC, 2003. GOMES, José Eudes. As milícias d´El Rey. Tropas militares e poder no Ceara setecentista. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2010. GONZALEZ, Henrique. Versão livre da carta de Matias Beck sobre o Ceará In: Revista do Instituo do Ceará, t. XCI (1977). FRAGOSO, João Luis, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVEA, Maria de Fátima Silva. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (século XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. ________.”fidalgos e parentes de preto: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro”. In: FRAGOSO, João Luis; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de (Orgs.). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2007. NOBRE, Geraldo Silva. História eclesiástica do Ceará – primeira parte. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1980. NOBRE, Geraldo. O Ceará em preto e branco. Fortaleza: Gráfica editorial cearense, 1988. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará (1680-1820); Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008. _______ Documentos para a História colonial, especialmente a indígena no Ceará (1690-1825). Fortaleza: fundação Ana Lima, 2011. POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Sesmarias Cearenses. Fortaleza: SUDEC, 1979. SANTOS, Roberto Alves dos. Fronteiras do sertão baiano: 1640-1670. São Paulo: Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas, USP, 2010. SOARES, José Paulo Monteiro e FERRÃO. Memória Colonial do Ceará. Rio de Janeiro: Kappa editorial, 2013, 6 volume. STUDART, Barão de. Datas e fatos para a História do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, (coleção Biblioteca Básica Cearense). STUART FILHO, Carlos. Notas Históricas sobre os indígenas cearenses. In: Revista do Instituto do Ceará (RIC), 1931, Tomo XLV, p. 53-103. RAU, Virginia e SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os manuscritos do arquivo da Casa de Cardaval respeitante ao Brasil. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1958, 2 volumes.

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ENTRE O CATOLICISMO E O CALVINISMO: A APOSTASIA DE ECLESIÁSTICOS NO BRASIL HOLANDÊS Regina de Carvalho Ribeiro Pensar na Igreja durante a Época Moderna remeteria a um clero militante, responsável pela evangelização das almas e pela vigilância e punição dos pecados, que representou o esteio seguro das pessoas frente ao clima de mal-estar e medo instaurado no Ocidente desde o final da Época Medieval – ao qual a própria Igreja ajudou a difundir os agentes do demônio3223. Portanto, tratar-se-ia de um clero, seja secular, seja regular3224, que apresentavam uma conduta religiosa, supostamente, reta e correta, condizente com a moral cristã eclesiástica do período. Entretanto, a historiografia que debruça seus estudos sobre o Tribunal do Santo Ofício tem percebido que alguns religiosos nem sempre agiam da forma mais integra possível3225. Dentre os pecados praticados pelos agentes da Igreja, a solicitação ad turpia3226, engrossou páginas de processos inquisitoriais, conforme as pesquisas de Lana Lage da Gama Lima. O interesse que versa o presente trabalho segue exatamente esta pista de um clero transgressor na colônia, mas não pela solicitação, e sim por uma possível apostasia3227, especialmente para o calvinismo no momento de dominação holandês no nordeste colonial (1630-1654). Ao se trabalhar com este contexto, imagina-se a “babel religiosa”3228 que se instalou, não surpreendendo o contato dos religiosos com os predicantes do Sínodo calvinista. Portanto, a investigação que visamos desenvolver trata dos padres católicos que permaneceram atuando no terreno dominado pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC), desde o momento da entrada holandesa, alguns lutando na guerra de resistência pelo lado português, até o momento derradeiro da insurreição, quando se findou o governo flamengo. Permanência esta proibida pelo próprio bispo do Brasil, Dom Pedro da Silva e Sampaio, cujas ordens expressas dirigiam-se aos padres para que deixassem o território mediante a conquista holandesa e a vinda do governador Conde Maurício de Nassau. Ainda assim, não foram poucos os religiosos que resolveram continuar nos territórios governados por Nassau, sob alegação de serem responsáveis pelas almas dos católicos que passaram a ser dominados pelos hereges. Entretanto, muitos foram movidos mesmo por interesses particulares, como salientou Marco Antônio Nunes da Silva3229. Alguns padres travaram grandes amizades Nassau, como foi o caso do Frei Manoel Calado; outros flertaram com a causa flamenga e calvinista, como o Frei

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A Cristandade ocidental na Época Moderna nasceu sob o signo do medo que assolava o ocidente, sendo os principais agentes do demônio, os judeus, os mouros e as mulheres. Cf. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 23-51. 3224 Clero regular refere-se aos sacerdotes que seguem a uma regra de uma ordem religiosa e clero secular compreende os sacerdotes formados nos seminários diocesanos constituídos a partir do Concílio de Trento e coordenados pelos bispos. NEVES, Guilherme Pereira das. O Seminário de Olinda: educação, cultura e política nos tempos modernos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1984. (Dissertação de Mestrado) p. 35. 3225 Vide VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 3226 A solicitação refere-se ao pecado cometido pelos padres que, no momento da confissão, solicitavam às confitentes a prática de relações sexuais. Cf. LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1990. (Tese de doutorado) 3227 Segundo Elias Lipiner, em seu dicionário sobre a Santa Inquisição, o “apostasiarca” refere-se aqueles considerados desviantes ou apartados do caminho da verdade. Por isso, a apostasia trata-se do pecado cometido pelos cristãos batizados que abandonam o catolicismo e se convertem a outras confissões. Cf. LIPINER, Elias. Terror e Linguagem. Um Dicionário da Santa Inquisição. (Original de 1977) Lisboa: Círculo de Leitores, 1999. p. 31. 3228 Em Jerusalém Colonial, Ronaldo Vainfas utiliza a expressão “babel religiosa” para qualificar a sociedade na qual se relacionavam judeus, cristãos-novos, católicos e protestantes. Cf. VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 15. 3229 SILVA, Marco Antônio Nunes da. O Brasil holandês nos Cadernos do Promotor: inquisição de Lisboa, século XVII. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003. (Tese de Doutorado) p. 175.

1047 ISSN 2358-4912 Antônio Caldeira; outros ainda foram adiante e se converteram de fato ao calvinismo, como a famosa história do padre Manoel de Morais. A História do Brasil Holandês, inserida na História Moderna Europeia enquanto uma espécie de desdobramento da Guerra dos Oitenta Anos3230, iniciou-se com o ataque imediato a Olinda, capital da Capitania de Pernambuco, ordenado pelo comandante-em-chefe almirante Hendrik Cornelioszoon Loncq em 15 de fevereiro de 16303231. Olinda foi conquistada no dia seguinte, queimada e arrasada, quanto à rendição de Recife, duraria ainda até o final do mês3232. A primeira fase da dominação holandesa, chamada de “guerra de resistência”3233 por Evaldo Cabral de Mello e caracterizada como uma guerra de guerrilhas, foi marcada pelo avanço da conquista flamenga e pela fragilidade da defesa portuguesa entre 1630 e 1637, entre a queda de Olinda e o abandono de Pernambuco pelo exército luso-hispano-brasileiro. O saldo da guerra brasílica foi a imposição do poderio holandês ao longo do nordeste açucareiro. A segunda fase da dominação neerlandesa envolve o período do governo de João Maurício de Nassau e o início da insurreição luso-holandesa, portanto de 1637 a 1645, um período o qual a historiografia costumou chamar de Idade do Ouro do Brasil Holandês3234. Sob o ponto de vista flamengo, a permanência de católicos nos territórios dominados pela WIC era vista sem grandes problemas, graças a grande tradição de tolerância religiosa já praticada na Holanda, mas devido, sobretudo, aos interesses da empresa na produção dos engenhos de cana-de-açúcar, o que só se conseguiria mediante a permanência de braços trabalhadores. Por isso, desde o Acordo da Paraíba de janeiro de 1635, os holandeses foram tolerantes com outras denominações religiosas. O documento visava a garantia da paz e da justiça, a segurança da propriedade e a proteção aos negócios, além da liberdade de culto3235. No caso dos padres católicos, foi-lhes garantido o alimento espiritual, podendo-lhes permanecer no território desde que não perseguissem nem praticassem a conversão forçada. A respeito desse imbróglio que foi a autorização da permanência dos religiosos – futuramente reiterada pela forte política de tolerância praticada no governo de Nassau (1637-1644), de fundamental importância para a garantia de estabilidade na área – em contrapartida a proibição do bispo D. Pedro da Silva, que acabou por condenar o acordo da Paraíba, a Mesa da Consciência e Ordens, em Lisboa, se pronunciou. Em despacho datado de setembro de 1635, o órgão desautorizou o bispo, decisão que a Coroa confirmou no mês seguinte. Assim, o clero católico obteve autorização formal para permanecer nos territórios flamengos, a exceção dos jesuítas, vedados pela própria Companhia das Índias. Conforme os inacianos eram feitos prisioneiros, eram sistematicamente deportados para Bahia, Portugal, Espanha ou Índias de Castela, com passagem pela Holanda, dependendo do caso. Segundo Vainfas, “a Companhia das Índias e a Companhia de Jesus não poderiam ocupar o mesmo espaço, no entender dos diretores comerciais e espirituais da empresa flamenga”3236. De qualquer forma, seja resistindo à entrada holandesa enquanto lutavam ao lado dos portugueses, seja colaborando com a conquista dos flamengos, no período de Nassau, identificado por Evaldo Cabral de Mello3237 como “paz nassoviana”, protagonizamos alguns padres católicos que tiveram V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A Guerra dos Oitenta Anos foi o conflito entre a Espanha Católica e os Países Baixos Calvinistas durou de 1568 a 1648, ano em que foi reconhecida a independência das províncias protestantes na Paz de Münster. Segundo Henry Méchoulan, tratou-se da “primeira revolução moderna”3230. Vide: MÉCHOULAN, Henry. “Referências e conjunturas: o nascimento de uma nação.” In: Dinheiro e Liberdade. Amsterdã no Tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. pp. 15-35. 3231 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 38. 3232 WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. (Original de 1938). 3ª ed. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 102. 3233 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste. 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2007. p. 13. 3234 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Op. cit. p. 13. 3235 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 69. 3236 Ibidem. p. 70. 3237 Segundo Evaldo Cabral de Mello, a permissividade do governador em assuntos religiosos foi a grande responsável pela pacificação religiosa da região durante seu governo. MELLO, Evaldo Cabral de. “Paz Nassoviana”. In: Nassau: Governador do Brasil Holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 130-58.

1048 ISSN 2358-4912 atuação relevante neste contexto, são eles: o Frei Manoel Calado, o Frei Antônio Caldeira, o padre Belchior Manoel Garrido e o padre Manoel de Morais. O Brasil Holandês conheceu ainda uma terceira fase, a insurreição pernambucana, autoproclamada “guerra da liberdade divina”, voltada à expulsão dos holandeses com o estandarte católico, mas antes, “uma rebelião de devedores insolventes”3238, nas palavras de Vainfas, cujo saldo foi a vitória portuguesa e reabilitação do Nordeste à América Portuguesa. Quando às transgressões, é preciso salientar que, no caso de padres, podem ser consideradas sob diferentes perspectivas: a traição política, isto é, a mudança de posição, aderindo a causa holandesa velada ou abertamente; e a apostasia, o que significa a mudança de confissão religiosa, aderindo ao calvinismo. Devido aos desvios praticados, tais padres foram denunciados a Inquisição e, conforme a gravidade do caso, a investigação era levada a frente e virava processo. Entretanto, a maioria dos casos não passa de denúncias. Portanto, para analisar os desvios em matéria religiosa, nos deteremos no período nassoviano, um período de aparente trégua nas incursões militares, de estabilidade do domínio batavo e de relativa liberdade religiosa. De acordo com Evaldo Cabral de Mello, governar o Brasil holandês significou administrar a relação tensa entre luso-brasileiros, holandeses e judeus, consideradas suas diferenças confessionais, nacionais e interesses econômicos, numa política de conciliação habilmente adotada por Nassau3239. Assim sendo, comecemos pelo caso do Frei Manoel Calado, também conhecido nas fontes como Frei Manoel dos Óculos. O Frei, natural de Vila Viçosa, região do Alentejo de Portugal, religioso da Ordem de São Paulo dos eremitas da Serra d’Ossa 1607 – quando se tornou Frei Manoel Calado do Salvador –, participou da guerra de resistência desempenhando muitos papéis, que incluem o de pregador, guerrilheiro, poeta e cronista, além do exercício do seu ofício espiritual, que inclui rezar missas, consolar os enfermos e pregar o catolicismo3240. Durante a fase da guerra de resistência, Frei Calado manteve ao lado dos luso-brasileiros e próximo ao comandante Matias de Albuquerque. Durante o período nassoviano, o Frei entrou em contato com os holandeses, período em que acumulou fortuna, tornando-se abastado senhor de terras, escravos e gado3241. Neste contexto, destaca-se em particular a amizade que o governador Nassau cultivou com Frei Calado3242, apesar da tensão, em alguns momentos, para com os jesuítas, a quem chegou a ser recomendado que saísse da colônia após a consolidação do domínio holandês. De qualquer forma, Calado parece ter sido mesmo um “autêntico colaborador”3243 dos holandeses, como escreveu Vainfas, a julgar pela sua relação com Nassau, a qual lhe rendeu denúncias de apostasia ao catolicismo, sendo investigado pelo bispo D. Pedro de Silva em 1640. Devido a sua conduta duvidosa, o bispo do Brasil D. Pedro da Silva mandou prender Calado sob alegação de defender os inimigos, após a tentativa de fuga para a Holanda com Manoel de Morais3244. Da prisão, Calado fugiu para Recife e aconselhou a população local à obediência aos holandeses, quando o frei foi proibido de atuar como religioso e excomungado. A devassa, que põe em xeque inclusive a ordenação do frei, data de 1641. Conforme constam nos cadernos do Promotor, duas testemunhas alegaram ser pública a fama do frei que andava pregando ser a lei dos holandeses melhor que a “nossa santa fé”3245. A acusação é grave por supor que Calado se transformara em um apóstata, renegando o catolicismo. Entretanto, outras testemunhas afirmavam que as suas relações com os holandeses ficaram no plano comercial.3246 Apesar da proibição do bispo, as testemunhas ouvidas na denúncia contaram que o frei continuou pregando o

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Ibidem. p. 336. Ibidem. pp. 217-9. 3240 RAMINELLI, Ronald. “Frei Manoel Calado.” In: VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. pp. 248-9 3241 RAMINELLI, Ronald. Op. cit. pp. 248. 3242 MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. Op. cit. p. 229. 3243 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 99. 3244 RAMINELLI, Ronald. Op. cit. 3245 Ibidem. fols. 286-386v. Apud. SILVA. P. 176. 3246 Sebastião do Souto, que atuou como espião duplo na guerra de resistência, conta que Calado “comprava e vendia com eles, vendendo-lhes vacas, fumo e algodão. IANTT. Inquisição de Lisboa. Caderno do Promotor 19, Livro 220, fols. 409v., 398. Apud. SILVA, Marco Antônio Nunes da. Op. cit. pp. 182. 3239

1049 ISSN 2358-4912 catolicismo em Recife e na cidade Maurícia, através da missa, da confissão e da pregação. Assim a devassa contra Calado parou na denúncia e o frei não chegou a ser processado pelo Tribunal do Santo Ofício. Na terceira fase do Brasil Holandês, Calado participou de forma efêmera, ainda que tenha desempenhado um papel relevante na Insurreição Pernambucana. Neste período, o frei se pôs a redação final de seu diário, publicado com o título O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade, que relatava a bravura dos soldados portugueses em contrapartida dos infortúnios causados pelos hereges3247. Portanto, apesar das denúncias, Calado nunca apostasiou do catolicismo, e apesar de colaborador dos flamengos, em matéria de religião, Calado foi um “guardião do catolicismo em Pernambuco”3248, nas palavras de Vainfas. Outro Frei aguarda a nossa análise. Trata-se do Frei Antônio Caldeira, um agostiniano que residia em Serinhaém, denunciado ao Santo Ofício por manter cumplicidades com os holandeses. Caldeira é acusado de defender publicamente o calvinismo holandês através da leitura da Bíblia herética e da exortação a seus paroquianos a aceitarem ao invasor, mediante o argumento da incapacidade espanhola em resistir à ocupação flamenga, o que garantiu a WIC a restruturação dos ânimos da guerra, seguida de produção açucareira.3249 Como relatou na devassa, durante o tempo em que esteve preso no Recife, juntamente com Manoel de Moraes, este tentou convencer a Frei Caldeira a abandonar o catolicismo e aderir ao calvinismo.3250 As denúncias de Frei Caldeira sugerem que até o contato com Manoel de Moraes, o frade vinha desenvolvendo seu trabalho dentro do catolicismo, possivelmente até lutando na guerra de resistência pelos portugueses, pois a prisão teria ocorrido na rendição da Paraíba em 1634. Assim, é provável que Caldeira tenha seguido os conselhos de Manoel de Moraes. Contudo, apesar da força do exemplo dado por Moraes, não se pode deixar de cogitar que Frei Caldeira podia já estar flertando com os holandeses ou com seu calvinismo. Segundo as denúncias, Caldeira justifica a Seita de Calvino ao não qualifica-la como hereges, nem como idolatria e por vender salvo-condutos. Além disso, há acusações de que o padre só realizava a confissão mediante seu pagamento, deixando sem sacramento os sem recursos. De acordo com Marco Antônio da Silva, da prisão, Frei Caldeira mandou matar o homem que o havia prendido, mas não se conseguiu saber o que teria acontecido ao padre. O autor da tese sugere que o padre tenha conseguido escapar da prisão até devido a ausência de processos em seu nome na Inquisição de Lisboa3251, além de ter seguido para Portugal, já que seu nome consta na lista dos denunciantes do padre Manoel de Moraes em 1640. De fato, Caldeira tinha passaporte livre também entre os holandeses, o que lhe permitia a circulação entre os dois mundos. Chegando a ser preso por ordens do bispo da Bahia, o frei não respondeu a nenhum processo inquisitorial. Deste modo, Caldeira flertou com a causa flamenga, e embora não tenha sido processado por conversão ao calvinismo, as denúncias apontam que se tratava de um apóstata, era, no mínimo, um grande aproveitador. A trajetória percorrida por Manoel de Moraes é bem singular, como percebeu Vainfas em Traição. Manoel de Moraes, um mameluco natural de São Paulo, estudou no Colégio da Bahia, onde aprimorou sua formação religiosa baseada nos preceitos de Inácio de Loyola, fazendo três votos na Companhia de Jesus: o de pobreza, o de castidade e o de obediência. Segundo Vainfas, Manoel havia se tornado jesuíta por formação e por profissão de fé3252. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Testemunha ocular das guerras pernambucanas do século XVII, Calado escreveu um diário entre 1645 e 1646. O relato foi publicado em 1648 por Paulo Craesbeeck, mas teve a venda proibida pela Sagrada Congregação ad Indicem librorum, por decreto de Roma de 1655. A suspensão da proibição ocorreu vinte anos depois. A obra é dedicada a D. Teodósio, embora seja um panegírico em louvor a João Fernandes Vieira, o “Valeroso Lucideno”. Cf. SILVA, Leonardo Dantas. “As Memórias do Frei Manoel Calado”. In: CALADO, Manoel. O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (manuscrito de 1648). 5ª ed. 1º v. Recife: CEPE, 2004. pp. XII-XIII. 3248 Ibidem. p. 242. 3249 IANTT. Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor 19, Livro 220, fols. 371v. Apud. SILVA, Marcos A. Nunes. Op. cit. pp. 183-4. 3250 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 77. 3251 Ibidem. p. 186. 3252 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 28.

1050 ISSN 2358-4912 No início da guerra de resistência, mediante a convocação feita pelo comandante Matias de Albuquerque a todos os jesuítas, o padre foi recrutado, primeiro com a ‘assistência espiritual’ e, segundo, ‘com a ajuda corporal’, liderando os índios em combate.”3253. Apesar da atuação como capitão de emboscadas, o jesuíta traiu aos portugueses quando caiu prisioneiro na rendição da Paraíba, em dezembro de 1634. Em 1635, o religioso foi expulso da Companhia de Jesus e embarcou para a Holanda a convite dos flamengos. Segundo Vainfas, os próprios diretores da WIC preferiram transferi-lo por desconfiarem de sua lealdade caso continuasse atuando como capitão do gentio. No ano seguinte, mudou-se, por motivos de saúde, de Amsterdã para Haerderwijk, na Gueldria, local onde o ex-jesuíta passou a viver como apóstata. Manoel se casou com uma holandesa chamada Margarida van Dehait, construiu uma família e se tornou como um verdadeiro calvinista. De acordo com Vainfas, Moraes foi atraído pelo calvinismo, não em relação à fé interior, e sim a doutrina que lhe permitiria mudar sua vida pessoal.3254 Ainda na Gueldria, Manoel escreveu um Glossário da língua tupi e a História Brasiliensis a serviço da WIC. Ao enviuvar de Margarida, com quem teve seu primeiro filho, Manoel volta para Amsterdã e, no ano seguinte, seguiu para Leiden, onde se casou novamente com outra holandesa chamada Adriana Smetz, com quem tem duas filhas, e ingressou na Universidade, obtendo o título de Licenciado em Teologia. Mesmo estando na Holanda, de 1635 a 1636, foram apresentadas a D. Pedro da Silva denúncias contra Manoel de Moraes, acusando-o de ter se passado aos holandeses no Brasil, se casado na Holanda e se convertido ao calvinismo3255, momento em o bispo levantou devassa para investigar os frades e clérigos que apoiavam os holandeses em Pernambuco. Em 1641, Manoel de Moraes foi processado à revelia por não atender ao apelo inquisitorial e condenado por “herege e apóstata da Santa é Católica, negativo, revel e contumaz, condenando-o às penas indicadas pelo promotor, inclusive a que ‘relaxava à justiça secular’(...)”3256. A sentença foi lida em um auto-de-fé e se baseava em sua excomunhão, no confisco de seus bens e sendo queimado em estátua3257. No ano de 1643, Manoel de Moraes, tendo abandonado sua família, regressou ao Brasil e se estabeleceu em Pernambuco como explorador de pau-brasil, ainda a serviço da WIC, levando consigo um baú com certificados assinados a fim de comprovar que permaneceu católico na Holanda, visando um possível entendimento com a Inquisição. De acordo com Vainfas, o ex-jesuíta passava por uma crise de consciência na Holanda, iniciada ao saber de seu processo à revelia, quando começou a frequentar capelas católicas e regressou para acertar as contas com o Santo Ofício. Portanto, o ex-jesuíta parecia retornar ao catolicismo, pois em Pernambuco, ascendeu vela para santos, ministrou a doutrina, promoveu matrimônios, fez batizar seus escravos na Igreja Católica e frequentou missas.3258 Em 1645, estourou a Insurreição Pernambucana liderada por João Fernandes Vieira, quem negocia com Manoel sua atuação como Capelão na resistência aos holandeses. No ano seguinte, Manoel foi preso e levado para Lisboa para responder à Inquisição, permanecendo em cárcere de custódia para responder aos interrogatórios. Neste segundo processo, Manoel usou seus certificados e a Inquisição chegou a investigar as testemunhas apontadas pelo réu. Em 1647, após entrar na sala do tormento e antes de iniciarem sua tortura, Manoel confessou a adesão ao calvinismo, mas omitiu a traição aos portugueses de 1634. Desta vez, Manoel foi condenado no auto-de-fé a usar o hábito penitencial perpétuo, ao confinamento em Lisboa por cinco anos e a abjuração pública de seus erros, ficando livre da pior pena para os clérigos que se casavam, que seria, segundo Trento, o degredo para as galés, além da privação das ordens sacras e seus benefícios.3259 Isto significou que a Inquisição acabou invalidando os matrimônios contraídos por Manoel na Holanda. Com o tempo, sua pena foi aliviada.

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Ibidem. p. 43. Ibidem. p. 162. 3255 IANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor, Livro 220, microfilme 5186, fóls 399-399v. Apud. VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 180 3256 Ibidem. p. 185. 3257 Ibidem. p. 188. 3258 Ibidem. p. 239. 3259 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 305. 3254

1051 ISSN 2358-4912 Desta forma, Manoel de Moraes foi um autêntico traidor e legítimo apóstata, processado por isso. Trata-se de mais um caso do padre desviante que respondia de forma muito particular a demanda social muito mais a partir de seus interesses particulares do que a partir de seu ofício espiritual ou do comportamento esperado do clero. Por fim, resta destacar a colaboração do padre Belchior Manoel Garrido com os holandeses. Apesar de escassas as informações coletadas do padre, sabemos que Garrido também foi alvo de uma devassa no século XVII, devido às graves acusações contra ele, que suspeitavam de sua lealdade aos portugueses quanto a sua fidelidade ao catolicismo. Segundo suas denúncias, o padre Garrido era constantemente visto se embebedando com os holandeses, conduta esta que denegria a imagem do clero, como alerta Silva3260. Na verdade, foi seu comportamento escandaloso com os flamengos que levantou suspeitas contra o padre Garrido, levando a João Fernandes Vieira a pedir sua prisão no ínicio de 1641. Nos Cadernos do Promotor, constam as denúncias que o acusavam de administrar os sacramentos sem licença, de casar pessoas nem sempre desimpedidas, de articular a prisão do padre Manoel Rabelo pelos holandeses e de impedir a provisão do padre Mateus de Souza como vigário na freguesia de Santo Agostinho do Cabo3261. Além disso, o padre valia-se dos holandeses, para organizar o clero na região, destituindo padres de seus cargos e se mantendo em seus postos3262. A respeito dessa disputa burocrática, as autoridades holandesas decidiram transferir o padre Garrido de Serinhaem para Bahia, deixando o caso sob responsabilidade do bispo. Tal procedimento não chegou a ser concluído devido a certidão de João Fernandes Vieira atestando a idoneidade do padre. A partir de então, abriu-se uma segunda fase nas denúncias, na qual novos delitos foram relatados, o que complicou ainda mais a situação do religioso, pois era acusado de negligência perante as suas obrigações de ofício, por deixar de confessar doentes e se recusar a encomendar a alma de cristãos, a não ser mediante pagamento dos familiares3263. Ainda assim, a Inquisição decidiu não processar o clérigo por insuficiência de culpas3264. Nas denúncias analisadas, não há menção de que o religioso aderiu à causa flamenga ou ao calvinismo, apenas que os utilizou para tentar conseguir proveitos, por isso não se pode afirmar que tenha traído ou apostasiado apesar das evidências. Neste contexto, pode-se pensar na fragilidade do compromisso desses religiosos em relação à Coroa, considerando a situação periférica e bélica, e, consequentemente, em relação à Igreja. Longe do olhar da metrópole, porém não longe dos olhares da Igreja Católica, cujo clima de medo instaurado criava um ambiente de perpétua vigilância, e através das inúmeras denúncias, os desvios chegavam aos ouvidos dos inquisidores. Contudo, percebemos que o Tribunal do Santo Ofício procurava manter certo grau de tolerância para com tais desvios do clero, hesitando bastante a processar algum deles, a menos que o caso tenha sido declaradamente de apostasia e/ou traição. Dentre os casos analisados, o Tribunal só processou um, a emblemática apostasia do padre Manoel de Moraes, tratando as outras denúncias como o máximo de cautela, como se verificou. Entretanto, apesar de exercido seus papéis como pregadores e missionários, Calado, Moraes, Caldeira e Garrido transgrediram às normas ao passarem-se para o lado dos holandeses e ao flertarem com o calvinismo. Foram padres que se moviam no contexto bélico guiados muito mais por seus interesses particulares do que pelas questões de fé ou por mesmo pelo carisma da ordem. Não obstante terem sido denunciados ao Tribunal do Santo Ofício. Havendo, portanto, diferentes graus de adesão à causa holandesa, como esclareceu Vainfas, pode-se considerar também que foram cometidos diversos tipos de desvios em matéria de fé que podem ser interpretados conforme a gravidade dos casos, sendo a transgressão mais grave a apostasia, mas havia outras como cobrar pelos sacramentos ou deixar de cumprir com as suas obrigações enquanto religioso. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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SILVA, Marcos A. Nunes. Op. cit. p. 187. IANTT. Inquisição de Lisboa. Cadernos do Promotor 29, Livro 228, fol. 219. Apud. . SILVA, Marcos A. Nunes. Op. cit. p. 186. 3262 Ibidem. fol. 226v. Apud. SILVA, Marco Antônio Nunes da. Op. cit. p. 188. 3263 Ibidem. 3264 VAINFAS, Ronaldo. Traição. Op. cit. p. 101. 3261

1052 ISSN 2358-4912 Seguindo a pista de Vainfas, os padres formaram-se enquanto sujeitos históricos com “identidades fragmentadas” e a fonte para percebê-las encontra-se sem dúvida nas denúncias escritas nos Cadernos do Promotor. Destarte, fugindo do essencialismo e pensando no relacional abre-se espaço para trabalhar com as tensões e contradições sociais através das quais aparecem os indivíduos e suas ambivalências, pelas quais a resistência e a colaboração deixam de se constituir binômios e passam a integrar um mesmo ser.

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Referências CALADO, Manoel. O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade (manuscrito de 1648). 5ª ed. 1º v. Recife: CEPE, 2004. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1990. (Tese de doutorado) LIPINER, Elias. Terror e Linguagem. Um Dicionário da Santa Inquisição. (Original de 1977) Lisboa: Círculo de Leitores, 1999. MÉCHOULAN, Henry. Dinheiro e Liberdade. Amsterdã no Tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. MELLO, Evaldo Cabral de. Nassau: Governador do Brasil Holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _________________________ Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste. 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2007. NEVES, Guilherme P. das.O Seminário de Olinda: educação, cultura e política nos tempos modernos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1984.(Dissertação de Mestrado) RAMINELLI, Ronald. “Frei Manoel Calado.” In: VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (15001808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. pp. 248-9 SILVA, Marco Antônio N. da. O Brasil holandês nos Cadernos do Promotor: inquisição de Lisboa, século XVII. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003. (Tese de Doutorado) VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. _________________ Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial holandês no Brasil. (Original de 1938). 3ª ed. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2004.

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A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO: UM ESTUDO POPULACIONAL (1681-1714) Renata Assunção da Costa3265 A historiografia consolidada do Rio Grande do Norte - composta por autores como Câmara Cascudo, Tavares de Lyra, dentre outros – tiveram a preocupação em narrar os fatos de maior amplitude, desde o período inicial da colonização da Capitania do Rio Grande, até períodos contemporâneos ao momento de suas escritas. Nesse sentido, preocuparam-se em contar os feitos de pessoas de destaque, seja na câmara da cidade do Natal, seja, futuramente, de representantes estatais, negligenciando, por vezes outros aspectos fundamentais à história potiguar. Segundo Fátima Lopes, que analisou esses autores, a historiografia em questão teria enfatizado os séculos XVII, devido ao esforço dispensado para o domínio do povo e da terra, e XIX, pelo destaque da economia algodoeira e crescimento urbano de Natal, sede da província, suavizando as ações ocorridas no século XVIII.3266 Somado a isso, os apontamentos de Câmara Cascudo e Tavares de Lyra e mesmo de autora mais contemporânea como Denise Monteiro,3267 no que toca diretamente ao período desse estudo (16811714), mencionam minimamente o litoral, que seria basicamente o espaço compreendido por esse estudos, haja vista o fato de que, nessa época, ainda estava sendo iniciado o povoamento no sertão da capitania. Esses autores estavam mais preocupados com a “Guerra dos Bárbaros”, do que com o processo de consolidação espacial litorâneo. Em relação à população da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, as informações também seguem na mesma linha de raciocínio. Os autores, em geral, não tinham uma preocupação exacerbada em realizar pesquisas minuciosas sobre a população, o que não impediu, contudo, que alguns dados fossem sistematizados, para períodos esparsos. Câmara Cascudo, por exemplo, em “História da Cidade do Natal, sistematizou dados populacionais para quatro momentos específicos: 1630, 1654, 1759 e 1805. De acordo com as considerações de Cascudo, em 1630, a população da Capitania do Rio Grande era de 120 a 130 pessoas. Em 1654, após a saída dos batavos, a população de Natal era de “25 homens brancos”. Já em 1759, mais de um século após essa primeira possível contagem, feita pelo autor, a população foi contabilizada por meio da categoria “casas”, assim, a Capitania possuía 118 casas, embora não se saiba quantas pessoas existiriam em cada uma delas. 3268 É válido ressaltar que, além de não se ter precisão no número de indivíduos que se tinha em cada casa, o autor, Câmara Cascudo, que traz esses dados em seu livro, não informa ao leitor como esses dados foram obtidos, ou seja, não apresenta comparação empírica. Não se intenta aqui desvalorizar as informações contidas no livro, afinal, no período de produção do autor não se tinha esse rigor com notas que comprovassem as informações trazidas. Cascudo era uma autoridade à época, as pessoas não questionavam a sua produção. No último recorte, diferentemente, tem-se o local onde as informações populacionais foram retiradas. Segundo Cascudo, em 1805, a Capitania possuía um total de 6.393. No século XIX era comum, ainda na colônia, que se confeccionassem mapas populacionais, sobretudo para um maior controle, por parte do rei, de seus súditos e, teria sido assim, por meio de um mapa populacional, que Cascudo teve essas informações. Contudo, mesmo afirmando que as informações estariam nesse mapa, de 1805, os apontamentos de Cascudo não condizem com os dados que foram levantados em documentação do Arquivo Histórico

3265

Mestranda pelo PPGH-UFRN. Email: [email protected] LOPES, Fátima Martins. Em Nome da Liberdade: As vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado, UFPE, 2005. 3267 CASCUDO, 1980; LYRA, 1982; MONTEIRO, 2007. 3268 CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 2º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL; Natal: UFRN, 1980. p. 87-99. 3266

1054 ISSN 2358-4912 Ultramarino (AHU), pela historiadora Fátima Lopes, uma vez que, para a autora, a população indígena, no mesmo ano era de 5.040, correspondendo a um total de 10,2%.3269 Especificamente no caso da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, voltando para o período de preocupação desse estudo, a leitura paleográfica revelou um total de 930 indivíduos batizados, sendo 587 pertencentes ao livro dos “brancos”, em porcentagem 63,11%, e os demais, 343, registrados no livro dos “negros”, totalizando os 41,3% restantes da população. É necessário lembrar que, embora o livro dos indivíduos livres/brancos contasse com 587 pessoas, nem todas eram livres ou necessariamente brancas, sendo 26 dessas pessoas descritas como índios, dentre esses índios alguns eram escravos, e mais 26 outras como escravos apenas, provavelmente negros e/ou mestiços, contabilizando um total de 41 cativos, ou seja, os índios correspondiam a 4,42% da população existente no “livro dos brancos” e os cativos somavam 6,98%. Consoante a isso, cabe ao pesquisador desse tipo de fontes deixar transparecer as dificuldades existentes, não necessariamente na leitura, que impossibilitou apenas algumas pouquíssimas informações, mas sobretudo no que concerne a cor em si dessas pessoas descritas. Embora o livro seja nomeado como dos “brancos”, não se tem, no registro em si, a cor do indivíduo detalhada, somente quando é índio, pardo ou africano, se tem alguma referência mais concreta. Esse indício pode ser decorrente da falta de uma preocupação maior com a distinção social, nesse contexto, pelo fato dessa sociedade ainda passar por um processo de consolidação, já que, para o século XIX, o termo “branco” já aparece nos registros de batismos. 3270 De maneira semelhante, quando registram os indivíduos no livro dos “negros”, geralmente apenas se diz que são escravos, poucas vezes explicitando que seriam crioulos ou africanos. Dos 332 indivíduos que se tem alguma informação sobre a possível cor, de um total de 343, correspondente a 96,79%, para o livro dos negros, apenas 4,21% foram descritos como crioulos. O número de indivíduos que se pode comprovar, de fato, que são negros africanos também é bem pequeno, apenas 26, de um total de 245 escravos (10,61%).3271 O pequeno número de escravos que seriam comprovadamente negros africanos pode ser compreendido se pensado no contexto vigente. O desencadeamento da chamada “Guerra dos Bárbaros” fazia com que os colonos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação pudessem adquirir mão-de-obra para tarefas diversas sem que fosse necessário importar escravos africanos. Essa medida era possível uma vez que os índios, de diversas etnias, que viviam no sertão - como chamavam os espaços pouco conhecidos pelos colonizadores – eram tidos como “tapuias”, inimigos dos índios do litoral e, por conseguinte, dos próprios colonos. Assim, as guerras de conquista, de novas localidades, foram, como a “Guerra dos Bárbaros”, um modo que os portugueses conseguiram de realizar a escravização dos índios pelo motivo de, segundo os mesmos, serem inimigos, tanto dos colonos, quanto da própria Coroa portuguesa. De acordo com Maria Regina Celestino de Almeida3272, era uma prática da Coroa portuguesa a utilização de indígenas enquanto mão-de-obra por guerra justa. A guerra justa foi pensada em 1565 e consistia na permissão conferida aos colonos de utilizarem-se da mão-de-obra gentílica, desde que esses grupos étnicos, ou determinados sujeitos desse grupo, não aceitassem a conversão. Além disso, deve-se lembrar ainda, que por ser uma série documental de final do século XVII, início do XVIII, algumas partes da documentação estavam corroídas, o que impossibilitou saber a cor de 46 indivíduos, do primeiro livro (brancos), e mais 11, no segundo livro (negros), de modo que, não foi possível compreender a cor de 6,12% dos indivíduos mencionados nos dois livros. Segue tabela detalhada com esses indivíduos registrados na Freguesia, de uma maneira geral, por cor e condição social. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

3269

LOPES, Fátima Martins. Em Nome da Liberdade: As vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado, UFPE, 2005. p. 26. 3270 Livro de registros de batismos do IHGRN – Séc. XIX 3271 Livro de registros de batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714) 3272 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 187.

1055 ISSN 2358-4912 Tabela 3: Número de batizados da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação por cor e por condição social (livre/escravo)

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Números por Cor

Livro 1

Livro 2

Livro 1

Livro 2

Números por condição

Brancos

Mestiços

Negros

Índios

Pardos

483

3

-

26

1

Brancos

Mestiços

Negros

Índios

Pardos

3

6

40

74

3

Brancos

Porcentagem por cor Mestiços Negros Índios

Não consta/ilegível 74

Livres

Escravos

500

41

Não consta/ilegível 217

Livres

Escravos

40

292

Pardos

Não consta/ilegível

Porcentagem por condição Livres Escravos

82,28

0,51

-

4,42

0,17

12,69

85,17

6,98

Brancos

Mestiços

Negros

Índios

Pardos

Não consta/ilegível

Livres

Escravos

0,87

1,74

11,66

21,57

0,87

63,26

11,66

85,13

Fonte: Livro de registro dos batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714)

Com base na tabela acima se pode ter uma maior ideia da divisão étnica da Freguesia. Faz-se necessário informar ainda que, no campo “não consta/ilegível”, se enquadram aqueles registros cuja leitura foi impossibilitada, seja pelas limitações do pesquisador, seja pela corrosão dos documentos ou apenas pelo simples fato de não mencionarem a cor do indivíduo. Deve-se lembrar ainda, que no campo “branco”, referente ao livro 1, essa nomenclatura foi utilizada com base na informação presente na capa do livro – livro dos brancos, visto que essa denominação não estava presente nesse livro. No caso específico dos três indivíduos “brancos” do livro 2, essa nomeação aparecia, de fato, nos registros, provavelmente por estarem sendo mencionados em um livro cujos demais seriam chamados “negros”, tivessem o cuidado de enfatizar a cor. Os dados do livro 2 também se revelaram demasiado preocupantes, afinal, 63,26% dos indivíduos batizados não apresentam, ou não foi possível ler, sua cor, não sendo possível saber se essa falta de informação devia-se a uma miscigenação, já existente, ou se tinha relação com o fato do livro chamarse dos “negros”, o que englobaria essa origem africana, sem que se tivesse a preocupação em especificar, ou mesmo por não saberem a origem de alguns desses indivíduos. Se esse foi o motivo de não mencionarem as cores, fica a preocupação de entender melhor esses dados, pois os indígenas, de maneira geral, também eram chamados de negros, os “negros da terra”. 3273 Como se pode perceber no campo “número/porcentagem por condição social”, os dados não totalizam 100%, isso não se deve a um erro nos cálculos, mas consiste em, alguns registros, não evidenciarem se os indivíduos seriam livres ou escravos. No primeiro livro, foi possível perceber a condição de 7,85% dos batizados na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Já no segundo livro, apenas 3,21% dos batizandos não teve a condição descrita. Os dados encontrados pela análise dos registros de batismos são, até o momento, os primeiro levantados para o período. Infelizmente, para esse período, não há indícios populacionais de outra natureza, para que se possa comparar com os dados obtidos nos registros de batismos analisados, fazendo com que esse estudo careça, em certa medida, de parâmetros de comparação local. Caso existissem outros dados, comparativos, poderia se saber, por exemplo, se existia outro livro, para a época. A Freguesia contava com um número de homens e mulheres um tanto quanto semelhantes, embora houvesse mais homens, sendo 450 indivíduos do sexo masculino, enquanto que havia 435 do sexo feminino. Esses números que, por hora, parecem irrelevantes, podem indicar uma possível razão para as baixas taxas de ilegitimidade. Se uma sociedade tem um número equivalente de homens e mulheres sendo batizados, logo, podese supor que, caso não aconteça nenhuma catástrofe/evasão em massa, essa população terá índices de 3273

MONTEIRO, Denise M. Introdução à História do Rio Grande do Norte. Natal (RN), EDUFRN, 2007.

1056 ISSN 2358-4912 casamento satisfatórios, o que implica nas baixas taxas de ilegitimidade que foram encontradas nos registros para esse período e que, provavelmente deveriam repetir-se por mais algum tempo. Essas informações contidas nos registros levam a percepção de que, se o número de homens e mulheres era equivalente, logo não haveria a necessidade de trazer pessoas de outras localidades para realizar os casamentos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Junto a isso, se tinha, provavelmente, uma permanência do estabelecimento de relações locais, visto que não havia a necessidade imediata de sair de suas moradias para se dirigirem a outras capitanias, como a Paraíba, Siará e Pernambuco, para conseguirem um casamento. Não obstante às questões suscitadas sobre o sexo dos indivíduos batizados, a análise intentou detalhar, em períodos de cinco anos, o número de batizados da Freguesia, no sentido de compreender se teria existido alguma forma de crescimento e/ou declínio populacional, bem como suas possíveis causas.

V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 4: Batizados realizados na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação em períodos de cinco em cinco anos Tabela dos batizados Período 1681-1685

Livro dos brancos -

Livro dos negros 25

Total 25

1686-1690 1691-1695

41 136

69 42

110 178

1696-1700

88

67

155

1701-1705

109

74

183

1706-1710

106

49

155

1711-1714*

80

31

111

Total

560**

332**

892

Fonte: Livro de Registro de batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714)**

A primeira informação que se deve ter em mente, ao olhar para essa tabela é que alguns números discrepantes são produto da própria série documental e/ou pela falta de informações dessas fontes, devendo ser feitas algumas ressalvas. Os dois asteriscos (**) da última linha da tabela, revelam a dificuldade de saber o ano em alguns registros, de um total de 930 indivíduos registrados, não foi possível saber o ano de 38, um total de 10,53%. Pelo fato de o livro da Freguesia ser subdivido, o primeiro livro, o dos brancos/livres, iniciou seus registros no ano de 1688, indo até o ano de 1714. Já o segundo livro, dos negros/escravos, tem o seu primeiro registro feito em dezembro de 1681 e o último em 1712. Assim, no primeiro recorte delimitado, compreendido entre os anos de 1681 e 1685, no qual consta apenas o registro de 25 indivíduos, não há nenhum indivíduo registrado, nessa época, no livro dos brancos, o que justificaria o baixo número de indivíduos registrados. Evidencia-se ainda o fato de que essa Freguesia estava em processo de consolidação, o que implicaria em um baixo número inicial de habitantes, tendo em vista que era um centro urbano periférico. Quando finalmente conseguiu-se expulsar os holandeses, em 1654, a cidade do Natal estava esvaziada de pessoas. O período holandês teria feito com que as pessoas abandonassem as suas casas devido ao perigo que estes representavam.3274 As moradias estavam arruinadas, além da própria Igreja Matriz. Por isso, a necessidade de reconstruir a Igreja, visando atrair esses moradores, que foram embora, bem como trazer novos interessados em residir na cidade, de forma geral, tendo em vista que a Coroa portuguesa intentava povoar suas terras o mais rápido possível temendo possíveis futuras invasões. 3274

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 2º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL; Natal: UFRN, 1980. p. 73.

1057 ISSN 2358-4912 Com o decorrer dos anos, e como mostra a tabela acima, percebe-se um aumento do número de indivíduos batizados o que significa o próprio aumento populacional da Freguesia, mesmo que esse número praticamente se mantenha após o aumento. Mais uma vez deve-se desconsiderar, em parte, o último recorte estabelecido, pela mesma razão que o primeiro, não contem as informações existentes no livro dos negros, além de ser, por si, um recorte menor, produto da falta de informações para o ano seguinte. O fato de ter dois livros para a população pode ser problemático para o historiador desavisado dessa divisão, uma vez que a complementariedade das informações faz-se necessária. Se analisado apenas o livro referente aos indivíduos livres, o número de escravos e mesmo de índios seria extremamente singelo em relação ao número total. Ao analisar os habitantes da Freguesia da Gloriosa Sant’Ana do Seridó, o historiador Helder Macedo contabilizou 685 registros, para o período de 1803 a 1806. O número que parece bastante significativo comparado a uma época tão remota, quanto o recorte deste trabalho, poderia ter sido ainda maior, uma vez que o detalhamento desses dados deixa uma indagação ao pesquisador que embora ache o número de negros razoável, 16%, encontra-se impressionado com o baixíssimo número de índios na localidade.3275 De um total de 685 indivíduos, apenas 8 eram índios, um percentual de 1,16%, quase inexpressível se comparado ao número de brancos de 502 indivíduos. Questiona-se então se para o caso do atual Seridó, antiga freguesia da Gloriosa Sant’Ana do Seridó, não haveria, assim como o caso da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, um outros livros no qual fossem registrados, especificamente essa população indígena, negra, mestiça e, sobretudo, de condição escrava, ou se esses número pouco expressáveis seriam produto das guerras de extermínio dessas populações indígenas. Se feita uma comparação com a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, analisando apenas o livro dos brancos, como se imagina que foi feito para o caso da Freguesia da Gloriosa Sant’Ana, os dados revelam-se semelhantes. No livro dos brancos, da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, havia um total de 4,42% de indivíduos que eram índios, enquanto que, no livro dos “negros” descendentes de africanos, ou índios – esse percentual subia para 21,57%, um número quase quatro vezes maior que o encontrado no livro dos ditos brancos. De volta ao período desse estudo, quando a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ainda era a única da Capitania do Rio Grande inteira, analisar-se-á neste momento do trabalho o número de batizados realizados em cada uma das capelas/igrejas da Freguesia, para somente assim compreender a relevância que cada uma delas tinha. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Tabela 5: Número de batizados por igreja/capela Capela/Igreja Livro 1 Santo Antônio do Potengi 9,9% São Gonçalo do Potengi 3,7% Matriz 17,6% Capela de Ceará-Mirim 0,4% Capela de Utinga 0,7% Capela de Cunhaú 1,7% Capela de Camaratuba 0,1% Igreja de São Miguel do Guajirú 4,2% Igreja de São João das Guaraíras 2,9% Capela de Mipibú 9,0% Capela de Jundiaí 0,4% Capela de Igramácio (Vila Flor) 0,2% Total 50,5% Ilegíveis 1,6% Não consta o local do batizado 6,6%

Livro 2 5,9% 3,0% 12,4% 0,5% 0,8% 3,0% 2,2% 3,9% 31,7% -

Fonte: Livros de registo de batismos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1681-1714)

3275

MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: História e mestiçagens. Natal, EDUFRN, 2011. p. 161.

1058 ISSN 2358-4912 Conforme se pode analisar, com base na tabela acima, as capelas/igrejas de maior destaque, em termos de realização de batizados, com exceção da própria igreja Matriz que concentra o batizado de 300 indivíduos (30,0%), foram as de Santo Antônio do Potengi, tendo realizado o registro de 158 indivíduos (15,8%), seguida pela capela de Nossa Senhora do Ó, da aldeia de Mipibú, somando um total de 129 batismos (12,9%), além da própria igreja de São Miguel do Guajirú, onde foram feitos 72 batizados (7,2%). Deve-se informar que, na coluna do livro dos negros, ou livro 2, os hifens (-), representam dizer que não se encontrou dados, no mencionado livro. Isso implica dizer que, nas capelas de Nossa Senhora do Socorro (Ceará-Mirim), Jundiaí, Camaratuba e Igramació, nesse período, não apresenta indivíduos descritos como “negros” sendo batizados. Deve-se lembrar, pois, que apenas um indivíduo foi registrado na Capela de Camaratuba, o que inviabilizou uma análise mais detalhada dessa localidade. A capela de Igramació, por sua vez - situada em uma missão, administrada pelo clero da ordem carmelita - provavelmente, nessa época, enviava as certidões de batismos para que o registro fosse feito em outra freguesia, afinal, segundo Fátima Lopes, essa missão estaria fixada desde 1680.3276 Pelo pequeníssimo número de batizados que teriam sido feitos nessa capela, apenas 0,2% do total de registros à época, acredita-se que, como já foi dito, ou as certidões eram enviadas para outra freguesia, ou a missão contava com um número muito pequeno de habitantes. Esse conjunto de informações, ainda que sucintas em alguns pontos, possibilita ao historiador traçar um retrato da sociedade de finais do século XVII, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, sendo inclusive uma das poucas fontes populacionais existentes para o período e sendo ainda uma raridade, uma vez que, em muitas localidades, do atual Brasil, não se tem mais esse tipo de documentação preservada ainda para o século XVII, sendo o século XIX o principal alvo de estudos. Cabe salientar, por fim, que os dados aqui trazidos são apenas os primeiros resultados de uma pequena parte da pesquisa de mestrado, ainda em desenvolvimento. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 187. CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 2º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL; Natal: UFRN, 1980. DAMASCENO, Cláudia. Arraiais e vilas d'el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. LIRA, A. Tavares. História do Rio Grande do Norte. Natal, José Augusto, 1982. LOPES, Fátima Martins. Em Nome da Liberdade: As vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado, UFPE, 2005. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Populações indígenas no sertão do Rio Grande do Norte: História e mestiçagens. Natal, EDUFRN, 2011. MARINHO, Francisco Fernandes. O Rio Grande do Norte sob o olhar dos bispos de Olinda. Natal, 2006. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Matriz de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande: Do seu início até o ano de 1822. Terra Natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991. MONTEIRO, Denise M. Introdução à História do Rio Grande do Norte. Natal (RN), EDUFRN, 2007. MONTEIRO, John M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. MORAES, Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no longo século XVI. São Paulo: HUCITEC, 2000. SILVA FILHO, José Rodrigues. Os homens de Deus na terra dos homens: os vigários seculares na Capitania do Rio Grande no século XVIII. Monografia de conclusão do curso de História, UFRN. 2012. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

3276

LOPES, Fátima Martins. Em Nome da Liberdade: As vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado, UFPE, 2005. p. 46.

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MÃOS À OBRA: CONSTRUTORES E ARTISTAS DURANTE A EXPANSÃO URBANA DA VILA DO RECIFE NO SETECENTOS Renata Bezerra de Freitas Barbosa3277 Acompanhando um movimento que vinha desde a segunda metade do seiscentos, o Recife vivenciou, durante o século XVIII, uma intensa expansão urbana, que podia ser percebida, entre outras formas, pelo aumento no afluxo de pessoas, pelo aumento das construções de edifícios e pela ocupação das áreas imediatamente vizinhas a ele, como o Fora de Portas ao norte, os Afogados ao sul e a região da Boa Vista que dava-lhe o acesso ao continente. Este crescimento populacional e físico, que fora acompanhado pelo empenho do próprio Recife em se firmar como vila, não mais dependente politicoadministrativamente da vila de Olinda3278, criou uma série de demandas urbanas que consequentemente fomentou uma maior oferta de serviços com vistas a supri-la. Neste artigo, focaremos, entre estas demandas e ofertas de serviços, as que estavam mais diretamente relacionadas ao “aquecimento” dos setores construtivo e artístico neste período, que acabou por estimular estratégias de solidariedade e organização laboral entre os vários ofícios envolvidos nestes setores. Assim sendo, nosso objetivo principal neste artigo é tratar um pouco da atuação laboral de artistas e trabalhadores ligados à construção neste contexto de expansão urbana vivenciado pelo Recife no decorrer do setecentos. Segundo o arquiteto Fernando Guerra, o século XVIII foi para a América Portuguesa um período de grandes produções artísiticas e arquitetônicas3279, e na vila do Recife não poderia ter ocorrido de maneira diferente. Em seu caso específico, desde a segunda metade do século XVII, principalmente com os vazios deixados na classe comercial com a expulsão dos holandeses do território, o então povoado do Recife passou a ser o destino de variados tipos sociais: muitos mercadores, comissários volantes, trabalhadores de vários ofícios manuais, entre outros tipos, desembarcaram, majoritariamente vindos do Reino, ávidos em fazer fortuna por estas terras.3280 Muitos deles conseguiram alcançar tal objetivo e se tornaram grandes investidores, aplicando o seu capital na expansão urbana do Recife. De acordo com Raimundo Arrais, Seu espaço físico plasmou-se mediante a ação de um regime de apropriação do solo, que promovia o investimento de fortunas não apenas em terras destinadas à faina agrícola, mas também em propriedades destinadas a residências e negócios nas áreas centrais, de modo que o capital 3281 mercantil era aplicado no usufruto de rendas e nas edificações urbanas.

Dessa forma, sua expansão urbana teve, nesse período, a marca dos mercadores. Segundo Sílvio Zancheti, como espaço urbano essencialmente mercantil, o Recife do século XVIII se apresentava como a materialidade da maneira como esse grupo específico via o mundo, na qual o espaço urbano é indiferenciado como campo de localização residencial e na qual, dentro da uniformidade tipológica dos edifícios residenciais, a riqueza do indivíduo é percebida pela quantidade – de pavimentos, janelas e portas, etc. – e não tanto pela aplicação de significativos elementos artísticos, observada pela escassez de ornamentos nas fachadas e nos interiores. O mesmo teria acontecido com os edíficios da administração pública: todos modestos e funcionais, indicando a posição secundária que a Coroa teria 3277

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo – USP e Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. 3278 O Recife foi elevado à vila em 1709, a partir da Carta Régia de 19 de novembro deste mesmo ano. No entanto, ele só teria conseguido usufruir, de fato, esta nova posição, ao fim da Guerra dos Mascates, quando o partido dos mascates saiu vitorioso frente ao partido dos senhores olindenses. 3279 Fernando Guerra, “A euforia das reconstruções após 1654”. In: Clio Arqueológica, nº 19, v.2, 2005, p.106. 3280 Rita de Cássia Barbosa de Araújo, “A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745”. In: JANCSÓ, István & KANTOR, Iris (Org.). Festa, cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001, p. 249. 3281 Raimundo Arrais, O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2004 , p. 103-104.

1060 ISSN 2358-4912 tido no desenvolvimento urbano da vila. Segundo o mesmo autor, a forma que tomou o Recife nessa época foi produto, principalmente, da ação de três atores sociais: os mercadores, que dominavam a vida na localidade; os religiosos; e o administrador português, que teria tido um peso bem menor nesse processo.3282 Por isso, o Recife setecentista teria se organizado em uma dinâmica descontínua, que fora submetida aos anseios, impulsos e capacidade de mobilização de recursos de cada grupo acima citado. Em seu espaço não cabia um ou poucos pontos de concentração de símbolos do poder, pois eram muitos os grupos que procuravam firmar a sua presença na urbe3283, fato que claramente observamos, principalmente, na ação das irmandades sobre a materialidade da vila por todo o século. Assim, de acordo com Zancheti, V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

A cidade não poderia ter uma forma fechada, onde a geometria central organizasse e limitasse os espaços de representação do poder e outros significados possíveis. Nem poderia ter um plano de expansão rígido. Pelo contrário, deveria ser uma cidade aberta, com possibilidade de várias conformações espaciais, capaz de abrigar diferentes significados, de acordo com as circunstâncias 3284 históricas e de representação cultural.

Essa tendência para uma maior flexibilidade na forma urbana, é perceptível quando nos debruçamos sobre como se deu a expansão do Recife durante o setecentos e o “boom” no setor construtivo que se deu neste momento. Diante do prestígio político que o Recife começou a desfrutar ao ser elevado à vila, inúmeros edifícios foram levantados e vários melhoramentos urbanos foram feitos com vistas a atender seu crescimento populacional que alcançava, já na primeira metade do século, entre nove e dez mil moradores.3285 Seu espaço, antes limitado aos bairros de São Frei Pedro Gonçalves e Santo Antônio, devido à sua própria configuração geográfica, foi expandido, incrementando a ocupação de áreas imediatamente vizinhas, como o Fora de Portas, os Afogados e a Boa Vista, que se conformaram espacialmente cada uma à sua maneira e a partir de diferentes demandas de fixação. O próprio lugar de São José, inserido dentro do bairro de Santo Antônio, também se desenvolveu significativamente neste período, vivenciando o aumento no número de edificações e atraindo variados tipos de moradores, acabando por se definir como o local mais pobre das duas ilhas e o mais enegrecido também. Isso sugere que não houve – se houve – grandes preocupações com a implementação de um plano mais rígido de conformação para a expansão urbana do Recife neste período, que estava “a todo vapor”. Certamente, teria isso facilitado o “boom” construtivo que a vila teria vivenciado, estimulando, consequentemente, o desenvolvimento de serviços que pudessem atender as demandas geradas por ele. Neste contexto é que também constatamos a importante participação das ordens religiosas e das irmandades leigas nesse mesmo processo. O grande número de construções religiosas, assim como a suntuosidade das mesmas – em constraste à simplicidade estética encontrada nas moradas e prédios públicos – foram imprescindíveis não só para a expansão urbana, desenhando e marcando a paisagem do Recife, como também imprescindíveis para o desenvolvimento dos setores construtivo e artístico e sua organização laboral dentro daquela sociedade. Segundo Rita de Cássia Araújo, no decorrer da segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII, a construção de um elevado número de igrejas, levantadas com recursos e iniciativas de irmandades leigas e ordens religiosas, além de externar a importância da religiosidade para a vida colonial, constituiu marca indiscutível da riqueza circulante na vila do Recife por este período. Estes templos, além do trabalhos de alvenaria e cantaria, realizados, em geral, por oficiais e mestres pedreiros, possuíam os interiores primorosamente ornamentados com talhas, pinturas e a arte da azulejaria, adornando as igrejas com vistas à impressionar os devotos e servir à fé católica, mas que também acabavam por revelar a riqueza mercantil da vila e o desenvolvimento alcançado nas artes e ofícios mecânicos, cujos mestres e discípulos eram, na maioria das vezes, homens livres e de cor, como salienta Araújo: “Foram autores de obras duradouras, preciosidades do barroco, mas também 3282

Sílvio Mendes Zancheti, “O Recife do século XVIII como cidade barroca”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, nº 3, v. 6, 2000, p.6. 3283 Idem. 3284 Ibidem, p.7. 3285 Raimundo Arrais, op.cit., p.111.

1061 ISSN 2358-4912 fabricaram artes efêmeras como as pinturas, telas, cenários, jardins e fogos de artifício, que deram esplendor às comemorações públicas nos tempos coloniais”.3286 Dessa forma, a construção de igrejas e conventos foi, indubitavelmente, um dos mais importantes fatores de estímulo para a expansão do espaço físico do Recife, participando ativamente desta fase de euforia do setor construtivo. Pode-se dizer que a Igreja foi, de fato, a grande contratadora dos serviços dos artífices coloniais na América Portuguesa, fosse por meio das irmandades leigas, fosse por meio das ordens religiosas, como já destacamos anteriormente. Segundo Zancheti, este movimento já podia ser visto praticamente concluído na primeira metade no século XVIII. Todavia, outras igrejas, tão importantes quanto, foram construídas até o início do século XIX como produtos da ação das irmandades leigas e resultante do progresso econômico de atores sociais, como os mercadores e artesãos,3287 indicando que nem a riqueza circulante na vila nem o desenvolvimento dos setores construtivo e artístico cessaram por todo o século. Segundo Carla Mary Oliveira, a arte divulgada pela Igreja no litoral do atual Nordeste teve seu discurso visual voltado, principalmente, para a catequese. Para Oliveira, em meio a um universo em que os assuntos espirituais e os assuntos da vida cotidiana se imbricavam profundamente, também era muito comum tanto o poder civil quanto o poder religioso utilizarem mutuamente as cerimônias públicas, bem como as manifestações artísticas, como símbolos de reafirmação do status quo.3288 Por isso, em meio às pompas das entradas, procissões e demais rituais cristãos, destaca, havia um entendimento da própia Igreja Romana e das autoridades reais de que um determinado modo de ver o mundo, assim como um determinado modo de se posicionar diante dele, deveria ser passado aos seus fiéis. Portanto, o próprio templo, enquanto materialidade, também tinha como função enviar a mensagem e evidenciar tal visão de mundo: “Não é preciso tergiversar tanto para perceber que o uso de imagens decorativas no interior das igrejas católicas passou, desde fins do século XVI, a ter um papel preponderante nesse processo que se desenrolava nas Américas, tanto na portuguesa como na espanhola”.3289 Dessa forma, tanto o projeto catequético encontrado nas construções religiosas, como a visão de mundo dos mascates – não só pela característica mercantil do Recife, mas também porque muitos deles foram grandes investidores do mercado da construção civil –, encontrada em tantos outros edifícios e elementos urbanísticos, deram forma à materialidade da vila do Recife e estimularam sua expansão urbana. Os maiores responsáveis em materializar tais ideias e visões de mundo foram os artífices ligados à construção e à arte. Com estes setores “aquecidos”, trabalho não teria faltado a esses trabalhadores, que “arregaçaram as mangas” e colocaram em prática estes projetos, se especializando cada vez mais, com vistas a atender aos anseios de seus principais financiadores. Muitas vezes trabalhando conjuntamente, fosse independentemente em suas oficinas ou lojas ou fosse no dia-a-dia dos canteiros de obras espalhados pela vila, estes artífices criaram laços de solidariedade, tanto entres seus pares de ofícios como entre outros de diferentes ofícios. Teriam eles aproveitado este momento de “aquecimento” dos dois setores não apenas para acumular certo cabedal, mas também –tendo em vista que muitos, quando não estavam sob o estigma da cor, estavam sob o estigma do defeito mecânico – para manter o status social que teriam assumido nesse momento, quando adquiriram certo prestígio e figuraram como importantes personagens na reconfiguração da vila. Por isso, muitos procuraram se organizar profissionalmente. Foi o caso dos carpinteiros, pedreiros, marceneiros e tanoeiros da vila do Recife que fundaram, na primeira metade do setecentos, a Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais do Quatro Ofícios Anexos. A Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais dos Quatro Ofícios Anexos foi criada por ofíciais dos quatro ofícios apresentados acima, em 1735, em um dos altares laterais da Igreja do Hospital de Nossa Senhora do Paraíso, localizada no bairro de Santo Antônio. Em 1752, os seus confrades já tinham acumulado rescursos suficientes para dar início à construção de sua própria igreja nas bandas de São José, tendo se mudado definitivamente para lá em 1754. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Rita de Cássia Barbosa de Araújo, op.cit., p. 431. Sílvio Mendes Zancheti, op. cit., p. 6. 3288 Carla Mary S. Oliveira, “Arte Colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: Irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, Eduardo F., AMANTINO, Márcia & IVO, Isnara Pereira (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011, p. 96. 3289 Idem. 3287

1062 ISSN 2358-4912 Quando decidiram fundar a sua confraria, os oficiais dos quatro ofícios anexos estavam completamente inseridos neste contexto particular que a vila vivenciava. Eles já experimentavam o “aquecimento” do setor, o aumento do volume de trabalho, assim como o aumento dos serviços gerados pelas demandas do setor em crescimento. Deparando-se com o aumento de seu prestígio dentro do universo do trabalho e dentro da sua comunidade, e deparando-se com o aumento do número de oficiais mecânicos no mercado e, consequentemente, com a dificuldade de se organizarem diante à impossibilidade de aplicação do modelo de corporações de ofícios igual ao do Reino, se reuniram sob a devoção a São José, santo carpinteiro, buscando não apenas solidariedade e assistência nas agruras da vida e na hora do morte, como também uma melhor organização profissional para, nesta conjuntura, proteger as recentes conquistas, organizar o campo de ação de seus ofícios e tentar garantir aos seus confrades um certo monopólio nas atividades do setor construtivo. Dividida em dois grupos de confrades, os irmãos dos quatro ofícios anexos e os “irmãos de fora” (grupo heterogêneo, composto por irmãos que não eram dos quatro ofícios anexos), a dita irmandade manteve, ao mesmo tempo, suas atividades essencialmente religiosas e o controle e a tentativa de regulamentação dos quatro ofícios por todo o século XVIII. Na documentação relativa à sua administração é possível observar as diversas estratégias utilizadas por sua Mesa Diretória nesse sentido: proteção da tradicional estrutura da divisão do trabalho, reforçando as hierarquias existentes entre mestre, oficial e aprendiz; controle da entrada dos oficiais no mercado, assim como o controle do tempo de aprendizado; controle das cartas de exames que qualificavam e autorizavam os oficiais a exercerem seus ofícios; fiscalização das condições dos trabalhadores e das obras nos canteiros; submissão dos Juízes e Escrivães dos quatro ofícios anexos vinculados ao Senado da Câmara à Mesa Diretória da Irmandade, entre outras.3290 Dessa forma, o caso da Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais dos Quatro Ofícios Anexos figura como um exemplo caríssimo que nos ajuda a entender um pouco como se deu a organização laboral dos artífices nessa conjuntura. Primeiramente, porque não foram muitas as irmandades leigas compostas essencialmente por artífices identificadas na América Portuguesa, fato que reverbera na quantidade de trabalhos acadêmicos produzidos até então sobre o tema.3291 Além disso, também sugere que, diante da falta de aplicação de um modelo europeu de corporações de ofícios e estando os assuntos do trabalho, por vezes, imbricados com os assuntos espirituais durante o período colonial, muitos artífices buscavam assistência e solidariedade em várias associações religiosas de diferentes devoções, como foi o caso do pardo João de Deus e Sepúlveda, autor de pinturas em forros de algumas das mais importantes igrejas do Recife, que estava associado a várias irmandades leigas locais; e seu díscipulo, Manoel de Jesus Pinto, pintor e dourador, que foi irmão terceiro do Carmo,3292 o que dificulta sobremaneira o rastreamento e recolhimento de dados para um melhor entendimento acerca de como o trabalho entre os artífices estava organizado. Outro fator da relevância do estudo de caso da Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais dos Quatro Ofícios Anexos, é que ela não só tinha seus confrades trabalhando em vários canteiros de obras espalhados pela cidade, em conjunto com vários outros artífices de diferentes ofícios; como também, assim como as outras irmandades leigas do período, foi ela própria contrantante dos serviços destes artífices, seja durante a construção de sua igreja seja durante o seu próprio funcionamento cotidiano. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Durante o desenvolvimento da minha pesquisa de Mestrado procurei identificar a complexa rede de relações tecida pelos confrades de São José no interior de sua irmandade, como também fora dela. A pesquisa ainda não está concluída, mas, com os dados recolhidos até então, já é possível vislumbrá-la. No final da pesquisa a análise estará mais consistente e se encontrará desenvolvida na minha dissertação. 3291 No decorrer da pesquisa, que tem como foco a valoração do trabalho manual no século XVIII, foi encontrado, não só na historiografia como também nos diversos arquivos visitados no Brasil e em Portugal, o registro de um número diminuto de irmandades leigas formadas por artífices na América Portuguesa. A maior parte das que constatamos existir, infelizmente, não deixou testemunhos escritos acerca do seu funcionamento. 3292 Para mais informações acerca dos artífices João de Deus e Sepúlveda e Manoel de Jesus Pinto, ver em: Carla Mary S. Oliveira. “Arte Colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: Irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, Eduardo F., AMANTINO, Márcia & IVO, Isnara Pereira (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011; e em Carla Mary S. Oliveira. “Circulação de artífices no Nordeste Colonial: indícios da autoria do forro da igreja do convento de santo antônio da Paraíba”. In: Revista de História e Estudos Culturais. Ano IV, nº 4, v.6, 2009.

1063 ISSN 2358-4912 Desde a sua fundação, é possível verificar em seus livros administrativos a encomenda de serviços a ofícios diversos: ao mestre José Cardoso, por exemplo, foi encomendado o feitio da primeira imagem do seu patriarca, cabendo a Manoel Dias – ourives, ao que tudo indica – os esplendores de prata que repousariam na cabeça do dito. Já nas primeiras festas do dia do santo eram os fogueteiros e os mestres músicos os mais solicitados. Com o crescimento da importância da irmandade no decorrer do século XVIII, a contratação dos serviços foi ampliada e recorrente. Diante de anos a fio dedicados à construção de sua igreja, os confrades recorreram inúmeras vezes aos serviços de canoeiros para o transporte de pedras, areia, madeiras e outros itens; de caiadores, caboqueiros, ferreiros, sineiros, imaginários, ourives, pintores, douradores, entalhadores, além dos próprios oficiais carpinteiros, pedreiros, marceneiros e tanoeiros. Nas festas, além dos músicos e fogueteiros, cirieiros, cantores e armadores também eram solicitados.3293 Assim, a partir do caso da Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais dos Quatro Ofícios Anexos, é possível perceber a existência de uma rede de serviços, ofertada na vila do Recife durante a intensa expansão urbana que esta vivenciava no setecentos, que buscava atender as demandas criadas pelo “aquecimento” do setor da construção civil e, sobretudo, religiosa, tendo em vista que esta exigia um número maior de especialidades envolvidas em seu processo. Diante desse contexto particular, é que vemos artífices como os carpinteiros, pedreiros, marceneiros e tanoeiros de São José se unirem e fundarem sua irmandade, com vistas não só à suprir suas aspirações e alento espirituais dentro da vida confrarial, mas também com vistas à se organizarem enquanto trabalhadores, para protegerem seus interesses profissionais, pleitearem conquistas e manter o status social adquirido neste momento. Entretanto, eles não foram o único exemplo, os ourives de prata, por exemplo, se organizaram em sua confraria sob a devoção de Santo Elói o Bispo3294, enquanto outros trabalhadores buscaram um outro caminho para sua organização laboral, que não necessariamente por via de irmandades leigas, como o caso dos canoeiros do Recife, ofício indispensável ao setor construtivo, que estavam organizados em espécies de corporações, encabeçadas por um governador, ao qual estavam subordinados cargos como os de capitão, coronel e mestre de campo.3295 Ademais, o estudo de caso desta confraria também fornece dados de intenso contato entre trabalhadores de diferentes ofícios que atendiam aos setores da construção e da arte. Ora como contratantes, ora como contratados, estes artífices conviviam constantemente uns com os outros no cotidiano do exercício de seus próprios ofícios, tendo muitos criado laços que acabaram por transcender o convívio nos canteiros de obras e as relações de negócios estabelecidas durante as encomendas. Na documentação relativa à administração da irmandade encontramos associados a ela caboqueiros, ourives, ferreiro, calafate e imaginários, como o mestre Luis Nunes, que se associou à dita logo após a entrega da imagem de São José, obra que lhe foi encomendada.3296 Sendo assim, para além do cotidiano laboral, estes artífices tornaram-se confrades de São José e “irmãos” dos oficiais dos quatro ofícios anexos, sob a proteção do mesmo patriarca. Por fim, faz-se importante ressaltar que ainda são poucas as informações conhecidas acerca de como os trabalhadores estavam organizados dentro da estrutura existente na América Portuguesa. Todavia, sabe-se que as estratégias utilizadas pelos artífices para se organizarem profissionalmente poderiam ser as das mais variadas, tendo em vista a não implementação nestas terras do modelo de coporações de ofícios igual ao do Reino. Cabe à realização de novas pesquisas, com vistas a avançar sobre o tema e procurar preencher essas lacunas. No tocante ao Recife, a partir do estudo de caso da Irmandade de São José, é possível vislumbrar algumas destas estratégias e a consolidação de vários grupos de trabalhadores que atuaram por muito tempo na vila, interferindo, assim, substancialmente, na sua paisagem cultural e social.

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Todos os dados referentes à Irmandade do Patriarca São José dos Oficiais dos Quatro Ofícios Anexos que estão presentes neste artigo foram recolhidos nos diferentes documentos pertencentes à administração da mesma. Essa documentação está atualmente no Arquivo da 5ª Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/PE, arquivo deslizante nº 6, prateleira nº 2. 3294 Francisco A. Pereira da Costa, Anais Pernambucanos, v.6, Recife: Arquivo Público,1953, p.143. 3295 Luiz Geraldo Silva, A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs. XVII a XIX), Campinas: Papirus, 2001, p 145-151. 3296 Cf. Recife, Arquivo da 5ª Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Livro de Receitas e Despesas da Irmandade de São José do Ribamar. 1735-1784, arquivo deslizante nº 6, prateleira nº 2, Caixa nº 2, fl 13v.

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ISSN 2358-4912 Referências ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. “A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745”. In: JANCSÓ, István & KANTOR, Iris (Org.). Festa, cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2004. COSTA, Francisco A. Pereira da. Anais Pernambucanos, v.6, Recife: Arquivo Público,1953. GUERRA, Fernando. “A euforia das reconstruções após 1654”. In: Clio Arqueológica, nº 19, v.2, 2005. OLIVEIRA, Carla Mary S. “Circulação de artífices no Nordeste Colonial: indícios da autoria do forro da igreja do convento de santo antônio da Paraíba”. In: Revista de História e Estudos Culturais. Ano IV, nº 4, v.6, 2009. _____________________. “Arte Colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: Irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, Eduardo F.; AMANTINO, Márcia & IVO, Isnara Pereira (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011. PONTUAL, Virgínia; MILFONT, Magna & PICCOLO, Rosane. “O antigo e o moderno no Recife: as práticas e a construção de identidades urbanísticas”. In: Anais do XII Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Belém, 2007. SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs. XVII a XIX), Campinas: Papirus, 2001. ZANCHETI, Sílvio Mendes. “O Recife do século XVIII como cidade barroca”. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, nº 3, v. 6, 2000.

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O DIREITO DE ALMOTAÇARIA NA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (VILA DE NOSSA SENHORA DO RIO PARDO – 1811/ C. 1830) Ricardo Schmachtenberg3297 Nas palavras de Magnus Pereira, a almotaçaria, uma das mais antigas e duradouras instituições das cidades de origem portuguesa, foi praticamente ignorada pela historiografia brasileira. Para a historiografia do Rio Grande do Sul, então, não há nenhum trabalho com esse tema realizado até o presente momento. Resgatar essa instituição é procurar demonstrar que as atribuições básicas do direito de almotaçaria (controle do mercado, do sanitário e do edificatório) revelam um espaço daquilo que era entendido como o urbano (PEREIRA, 2001). Além disso, a análise do direito de almotaçaria é capaz de revelar certos contornos ainda pouco explorados pelos estudos do campo político e, por que também não dizer, do campo social, no ultramar português. Abordar temáticas envolvendo o contexto das câmaras municipais era algo sem muita importância para a historiografia, mesmo a mais recente. Verifica-se, por conseguinte, que, dentro do universo camarário, a análise dos almotacés e sua atuação pouco atraiu a atenção dos pesquisadores, o que resultou na escassez de trabalhos que foram realizados. Um das hipóteses que pode explicar tal constatação pode ser o fato de que muitos historiadores desconheciam esse ofício e sua ação no seio da administração das câmaras municipais durante o período colonial e mesmo no período do Brasil independente. O exercício do direito de almotaçaria por parte das câmaras municipais pode nos revelar algo de muito valioso e importante sobre a sociedade colonial e imperial brasileira e, principalmente, sobre o espaço urbano, visto que, a partir dessa instituição, as relações de mercado são garantidas para o seu bom funcionamento. A saúde pública tem na almotaçaria a garantia de que o espaço urbano será fiscalizado para que não haja nenhum foco de doença e, ainda, as construções das casas deveriam obedecer a um padrão determinado pelas posturas, sendo que a preocupação da almotaçaria nesse quesito reside na arbitragem de limites desrespeitados pelos moradores. Os juízes almotacés eram os responsáveis em colocar o direito de almotaçaria em prática e isso se refletia nas atividades econômicas, fiscalizando as atividades comerciais, mas também no controle da população para que ela não se tornasse um potencial causador de problemas à saúde pública. Ou seja, no que tange à atividade correcional dos almotacés, direcionava-se na manutenção da ordem, à vigilância da saúde pública e às atividades comerciais. No entanto, a partir da análise das fontes primárias coletadas, observamos que a atuação dos juízes almotacés não ficava somente restrita a esse nível de correição, na vigilância, fiscalização e condenação dos comerciantes e moradores da vila, mas que eles também se tornaram de fato juízes, juízes mediadores de conflitos envolvendo os habitantes da vila e seu termo. Sendo assim, além de fiscalizar e policiar as atividades comerciais, vigiar e disciplinar a população, zelar pelo bem-estar da saúde pública da vila, observar e fazer cumprir as determinações e dispositivos sobre construções e edificações, a ação da almotaçaria também constituía uma espécie de juizado de “pequenas causas”, a que recorriam os moradores da vila quando surgisse alguma desavença motivada por questões de uso do espaço, construção de moradias e limpeza, causando prejuízo, principalmente, aos vizinhos. Percebe-se, nesse caso, que os almotacés adquiriam outra função no universo do construtivo, não só a de vigiar construções e edificações, mas também a de mediar conflitos vicinais.3298 Nesses casos envolvendo querelas entre os moradores da vila, os almotacés atuavam como mediadores e eram os primeiros representantes da autoridade municipal a fazerem vistorias no local, acionando a justiça caso não houvesse acordo. Inicialmente, os moradores tentavam resolver essas disputas particulares de forma autônoma, sem a mediação e interferência de nenhuma autoridade municipal ou judicial. Não havendo um consenso, uma reconciliação entre as partes e não conseguindo resolver o problema, recorriam aos juízes almotacés e, caso esses não conseguissem amenizar a 3297

Doutor em História/ UNISINOS. Professor da Rede Pública de Ensino do Rio Grande do Sul. Email: [email protected] 3298 Pequenos conflitos envolvendo familiares ou vizinhos, motivados, principalmente, por disputas de áreas de terras. (PEREIRA, 2001, p. 12; NICOLAZZI Jr., 2003, p. 74).

1066 ISSN 2358-4912 disputa, pondo a ela um ponto final, o processo era julgado pelo juiz de vintena,3299 menor instância do poder judiciário em atuação. É importante destacar que o próprio juiz de vintena, em certos casos, ordenava a intervenção dos juízes almotacés nessas disputas. Acredita-se que a maior parte dos conflitos fosse provocada por problemas causados pela divisão de muros, colocação de cercas e disputas por terrenos e que, inicialmente, deveria ser resolvida entre os próprios moradores. Caso não resolvessem e não havendo consenso, entraria a autoridade dos almotacés como mediadora, numa tentativa de se evitar a abertura de processo na justiça (ENES, 2010, p. 89). Em Rio Pardo, essa ação era levada a conhecimento da câmara por meio do juízo da almotaçaria. Os códices gerais da Câmara Municipal de Rio Pardo nos revelam um total de treze processos de juízo da almotaçaria envolvendo moradores da vila e seu termo. Estas ações eram motivadas por questões de agravo, de embargo de obras, de higiene, de ações de coima e de disputa e medição de terrenos. Tema muito pouco investigado pela historiografia brasileira, o juízo da almotaçaria revela um elemento novo dentro dos seus olhares. Nesse sentido, a atribuição do almotacé, apesar de se restringir às três vertentes da almotaçaria – mercado, construtivo e sanitário –, como muito bem aborda Magnus Pereira (PEREIRA, 2001), é possível ser ampliada aos olhares da historiografia, assumindo também a função de mediar e julgar pequenas causas, uma espécie de juizado envolvendo moradores da vila, dispondo de poder e autoridade para condenar e administrar aos culpados sanções ou multas: o juízo da almotaçaria. Assim, muito pouco se fala sobre a ação mediadora que os almotacés tiveram em algumas vilas brasileiras. A sua ação estava direcionada apenas a fiscalizar e vigiar o espaço e ordenamento urbano, a atividade comercial e a higiene das vilas. Em Rio Pardo, nas primeiras décadas do século XIX, os almotacés, além das atribuições acima elencadas, tiveram sua ação voltada para resolver pequenos conflitos entre os moradores. Essa ação, definida pela legislação, concedia ao almotacé o poder de justiça, de julgar e resolver conflitos entre moradores da vila, constituindo-se uma primeira instância do poder judiciário dentro da câmara municipal, antes mesmo do juiz de vintena. Segundo Enes, “... a justiça, normalmente por seus oficiais da vintena, ordenava intervenções de qualquer natureza, com obras de muros ou paredes pelos moradores, os almotacés eram acionados ao findar tais obras para verificar se as mesmas tinham ocorrido a contento” (ENES, 2010, p. 90). Porém, em muitos casos, o almotacé era chamado para solucionar o conflito, penalizando e condenando o réu ou, em alguns casos, condenando ambas as partes envolvidas no juízo da almotaçaria. Desse modo, podemos determinar tal ação como uma instância do poder judicial dentro da câmara municipal e que dava ao almotacé poder de deliberar e tomar decisões que, de certa forma, ampliavam sua área de atuação e responsabilidade, de decidir quem era culpado ou inocente dentro de uma ação cível ou criminal de juízo e de multar o condenado. Em 05 de dezembro de 1816, José Vaz Teixeira Gonçalves do Amaral moveu uma ação civil contra José Rodrigues Ferreira porque o réu não limpou sua testada e ainda não retirou os entulhos que estavam na frente de sua casa. Em ação do juízo da almotaçaria, o réu foi condenado a pagar uma multa de 6$000.3300 Essa ação evidenciava, ainda mais, a preocupação da almotaçaria com os problemas causados pela concentração humana e os males que isso podia provocar a vila. No entanto, sua ação e preocupação não ficavam restritas somente a isso: a atuação da almotaçaria ia além dos limites da ação urbanística, sanitária e comercial. Podemos dizer que ela também atuava no convívio social, intercedendo nos conflitos entre os moradores da vila, tentando resolvê-los. Nesse sentido, as ações cíveis, de agravo, ofensas ou coimas eram resolvidas pelos próprios juízes almotacés, que tinham o poder de condenar aqueles indivíduos que não se adequavam as normas de convivência impostas pela câmara. No dia 01 de fevereiro de 1819, Antônio José Alvarez de Souza moveu uma ação de embargo, através do juízo da almotaçaria, contra Francisco Gomes da Silva Guimarães.3301 O autor alegava que a obra efetuada pelo réu era ilegal e requeria que o juiz almotacé Manoel José Ferreira de Faria executasse a ação e parasse com a construção. O juiz almotacé procedeu aos autos de vistoria, indo até o local do

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Eleitos anualmente pelos juízes, procurador e vereadores da Câmara. Suas atribuições: conhecer e decidir, verbalmente, sobre as contendas entre os moradores de sua jurisdição, até a quantia de no máximo quatrocentos réis, sem apelação e agravo nem abrir processo (SALGADO, 1985, p. 131). 3300 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 05, 1816. Rio Pardo: AHMRP. Devemos lembrar que o autor do juízo da almotaçaria era juiz almotacé no período em que ação civil foi movida. 3301 É uma ação movida pelo autor exigindo a proibição de continuar a obra, a construção.

1067 ISSN 2358-4912 terreno para fazer a medição e vistoria. Após isso, o juiz almotacé deliberou e concluiu que o autor da obra, Francisco Gomes da Silva Guimarães, realizara a construção em local inadequado, invadindo o terreno de Antônio José Alvarez de Souza. Sendo assim, procedeu à sentença, embargando a obra, exigindo que o réu parasse de construir e a fizesse dentro dos limites do seu terreno. Caso os indivíduos que fizeram parte da ação descumprissem a sentença proferida pelo almotacé, receberiam uma multa no valor de 50$000 destinada às obras públicas da Vila de Rio Pardo.3302 Outras ações foram movidas pelos moradores da vila e seu termo através do juízo da almotaçaria. Tudo indica que esse mecanismo era o meio mais rápido para se resolverem pendências ou litígios, disputas ou conflitos entre os habitantes de Rio Pardo. A ação do juízo da almotaçaria citado anteriormente foi encerrada com autos conclusos do juiz almotacé Manoel José Ferreira de Faria, no dia 08 de fevereiro de 1819. Essa questão se resolveu com a intermediação do almotacé que analisou o processo, procedeu à vistoria, julgou e sentenciou o culpado através da aplicação de uma multa. No dia 16 de março de 1820, o capitão José Raimundo da Cunha, morador da Freguesia de Cachoeira, moveu uma ação de coima contra José Gomes de Oliveira pelo fato de os animais do dito réu terem causado danos às lavouras do autor. O autor da ação requereu ao juiz almotacé Manoel Alves de Oliveira que condenasse o réu a pagar uma multa no valor correspondente aos produtos que perdera na lavoura, alegou que os animais do réu haviam “devorado” dez alqueires de trigo e exigia reparação. No dia 18 de março do mesmo ano, o juiz almotacé, após vistoria, deliberou e condenou o réu a reparar o prejuízo que seu vizinho tivera com a perda da lavoura de trigo.3303 Nesse caso, a figura do almotacé apareceu com o mesmo papel que exercia desde a Idade Média, qual seja, ser o mediador dos conflitos que ocorriam entre vendeiros e consumidores, entre oficiais mecânicos e seus clientes e entre os próprios moradores da vila e seu termo (PEREIRA, 2001, p. 47). É preciso e importante se destacar que a atuação dos juízes almotacés não se restringia somente à Vila de Rio Pardo. Em alguns casos, como acima descrito, eles atuavam também fora dos limites geográficos da vila, intercedendo e resolvendo querelas entre os moradores de outras localidades. Dessa vez, a ação de juízo da almotaçaria ocorreu na freguesia de Taquari, envolvendo os moradores Anna Maria Thereza e José Silveira dos Santos. Em 14 de agosto de 1820, a autora, Anna Maria Thereza, acusava a presente ação de coima contra o réu, José Silveira dos Santos. O processo foi conduzido pelo juiz almotacé Francisco da Silva Bacellar e consta, nos autos do processo, que a autora exigia a condenação do réu porque “os animais dos seus agregados teriam invadido seu terreno e destruído sua ‘roça’”. Como forma de condenação, a suplicante exigia que o réu pagasse o valor da plantação de milho destruída pelos animais, que, segundo exame e vistoria, chegava ao valor de 96$000. O processo foi concluído no dia 28 de agosto do mesmo ano, e o réu foi julgado e condenado a pagar a multa.3304 Como podemos observar, os moradores recorriam ao juízo da almotaçaria não só pelo fato de que certos indivíduos descumpriam as leis determinadas nas posturas, mas também exigiam uma reparação em virtude dos prejuízos econômicos decorrentes da ação desses indivíduos. Denúncias e processos do juízo da almotaçaria também foram ocasionados por intrigas entre moradores, motivados por agravo ou ofensas à moral, que evoluíam para disputas pessoais ou vinganças de toda a sorte (ENES, 2010, p. 130). A colocação de uma cerca, por exemplo, foi motivo de disputa e de uma ação de juízo da almotaçaria movido por um morador da vila contra seu vizinho. O autor da ação, Luis Manoel da Rocha, alegou que o réu Joaquim Machado Soares colocara uma cerca entre dois terrenos, um deles de propriedade do autor do processo, alegando que era dono de um deles. Isto aconteceu no dia 22 de novembro de 1827. O autor requereu que fosse feita uma vistoria no local para comprovar que o réu tinha construído a cerca arbitrariamente, exigindo também que a mesma fosse posteriormente destruída. O juiz almotacé Manoel Baptista de Mello foi ao local fazer a vistoria, comprovando a irregularidade. Como sentença, culpou e condenou o réu a pagar uma multa no valor de 8$000.3305

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Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 08, 1819. Rio Pardo: AHMRP. O referido réu da ação do juízo da almotaçaria também foi nomeado juiz almotacé na Vila de Rio Pardo. 3303 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 09, 1820. Rio Pardo: AHMRP. No preferido processo de juízo da almotaçaria não conseguimos encontrar o valor da multa. 3304 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 09, 1820. Rio Pardo: AHMRP. No processo não consta se o réu pagou a multa ou não. 3305 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 17, 1827. Rio Pardo: AHMRP.

1068 ISSN 2358-4912 Segundo Pereira, “o papel das cercas e muros em uma cidade é muito importante, pois, ao mesmo tempo em que delimitam os lotes ocupacionais urbanos, estabelecem também uma nítida separação entre os universos do público (a rua por excelência) e do privado (a casa, a intimidade do lar)” (NICOLAZZI Jr. 2003, p. 55). Dessa forma, a regularidade das fachadas, das edificações urbanas, a estética das casas, da medição dos terrenos e a própria morfologia urbana da vila eram outras importantes atribuições dos almotacés. Assim, o almotacé percorria toda a Vila de Rio Pardo, ordenando, normatizando e regulamentandoa até onde sua autoridade fosse reconhecida. Controlar o tráfego de animais, a circulação de moradores e forasteiros, observar a higiene das habitações e dos alimentos, dos estabelecimentos comerciais, mediar as rivalidades e disputas entre moradores da vila e seu termo também faziam parte de suas atribuições. Além disso, a câmara, com a intermediação e vigilância dos almotacés, proibia qualquer pessoa de atravessar ou vender mantimentos na vila e seu termo sem a devida autorização. “Os atravessadores impediam o fluxo regular de mantimentos para a população e estas práticas eram consideradas ilegais pelas autoridades coloniais” (BORREGO, 2010, p. 92). Caso isso acontecesse, o acusado seria denunciado, condenado e multado pelos almotacés. Uma dessas situações refere-se ao fato de o juiz almotacé Antônio José Coelho Leal ter movido uma ação de juízo de almotaçaria contra Domingos Antônio da Costa no dia 05 de setembro de 1823. Consta nos autos do processo que o autor da ação, em virtude de sua portaria, mandara embargar cem barricas de farinha de trigo que se achavam em poder do réu. A ação foi movida porque o réu havia vendido a um atravessador da cidade de Porto Alegre, de nome Nicolau José de Castro, cem barricas de farinha de trigo pelo preço de 15$500 cada barrica. Antônio José Coelho Leal mandou embargar a venda e as barricas de farinha, alegando que a vila iria ficar na “penúria” e nas mãos do dito Domingos e que muitos moradores tentaram comprar sua farinha, porém Domingos se negou a vender, tornandose cúmplice do crime de atravessador. Isto é o tipo mais tradicional de ação de “economia moral”, porém, a nova lei das câmaras de 1829 vai justamente coibir essa prática em nome do livre mercado. Outra questão importante e que consta nos autos é que Domingos vendera cada barrica de farinha ao dito atravessador pela quantia de 15$500, sendo que aos moradores ele estava vendendo pelo valor de 16$000. O juiz almotacé mandou que o alcaide3306 e o escrivão da almotaçaria fossem até o armazém do vendedor e embargassem, judicialmente, as cem barricas de farinha e as colocassem no depósito, ordenando ao depositário que fizessem a venda da farinha ao povo pelo preço estipulado de 16$000. O dito vendedor, Domingos Antônio da Costa, foi condenado a pagar uma multa no valor de 704$000. No dia 17 de setembro do mesmo ano, Domingos Antônio da Costa quitou a dívida que contraiu.3307 Percebe-se, portanto, a preocupação e fiscalização que os almotacés tinham com respeito à atividade comercial, tentando fazer com que os comerciantes cumprissem as posturas e não trouxessem prejuízo à população. Além disso, essa prática da almotaçaria reforça o poder da câmara no sentido de manutenção da ordem nas relações de mercado, determinando um preço justo e razoável pago pela população a mercadoria a ser comercializada. No entanto, em algumas situações, os próprios moradores da vila se preocupavam em resolver certos problemas ocupacionais, ou seja, não era somente o almotacé que se preocupava em resolver as demandas e as disputas envolvendo os moradores da vila. Quando não conseguiam resolvê-las de maneira autônoma, os habitantes buscavam no almotacé a autoridade responsável para solucionar essas discórdias. Segundo Nicolazzi Jr., “disso depreende-se que o requerimento ao almotacé talvez tenha sido uma última instância na tentativa de se resolver tais desentendimentos; os moradores supostamente só recorriam ao almotacé após verem frustradas todas às tentativas de reconciliação e entendimento negociadas de maneira autônoma” (NICOLAZZI Jr., 2003, p. 59). A construção de uma parede de pedra na propriedade de Dona Maria dos Santos Ferreira foi embargada pelo seu vizinho, o capitão Manoel de Jesus Ferreira. A proprietária do imóvel entrou com uma ação de juízo da almotaçaria, entregando um requerimento ao juiz almotacé Francisco Gomes da Silva Guimarães, exigindo que se fizesse uma vistoria no local, para que se comprovasse a não existência de nenhuma irregularidade na construção da tal parede e que, portanto, ela pudesse dar V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Atribuições do alcaide: policiar dia e noite as cidades e vilas que lhe couber vigiar, acompanhado por um tabelião indicado pelo Conselho; prender por mandado dos juízes ou em flagrante delito; fiscalizar a atuação dos almotacés com relação a carnes e pescado. Requisitos: ser “homem bom” e casado na cidade, vila ou lugar (SALGADO, 1985, p. 137). 3307 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 12, 1823. Rio Pardo: AHMRP.

1069 ISSN 2358-4912 prosseguimento na obra e o embargo feito pelo capitão se tornasse sem efeito. O juiz almotacé aceitou o requerimento da autora, procedeu à vistoria e, comparecendo amigavelmente no dia da audiência, o réu, Manoel de Jesus Ferreira, foi condenando a pagar a metade do valor da construção da parede na propriedade da autora da ação, podendo ele réu fazer uso da mesma parede para sua construção.3308 Como citado anteriormente, fazendo uso das suas atribuições como mediador de conflitos e fiscal das edificações urbanas, era de sua responsabilidade também averiguar a situação das divisas entre as casas. Em certos casos, os vizinhos colocam suas cercas sem a devida medição, invadindo terrenos alheios, provocando disputas, ações e processos envolvendo as partes. Era função de o almotacé vistoriar, fazer a medição do terreno, como podemos verificar para o caso da Vila de Rio Pardo, julgar e condenar a parte que estivesse errada dentro da ação. No dia 16 de novembro de 1827, numa ação de juízo da almotaçaria impetrada contra o réu José Antônio da Silva, o autor, reverendo Antônio Alves Ferreira, alegava que o mesmo réu “fincara estacas” e construíra uma cerca em seu terreno. O mesmo autor exigia, através dessa ação, que o juiz almotacé Manoel Baptista de Mello fizesse a vistoria ou demarcação no local e mandasse retirar a referida cerca. O juiz almotacé procedeu à vistoria e medição do terreno, julgando, por meio de decreto judicial, procedente a ação movida pelo autor, obrigando o réu a retirar a cerca do local e a colocá-la em lugar demarcado. Ainda, o réu também foi sentenciado a pagar, como pena pela ação, uma multa de 8$000.3309 A atuação pontual dos juízes almotacés em resolver certos conflitos e problemas envolvendo os moradores sinalizava para uma atitude que visava a dar à sociedade e às relações sociais um caráter civilizador, buscando o bem comum e o direito à igualdade de todos os habitantes, bem como condicionando a vila ao desenvolvimento urbano, ao seu crescimento. Ao exigir da população local o cumprimento das normas e posturas municipais quanto à limpeza e higiene, ao ordenamento urbano, os almotacés estavam incutindo uma urbanidade, mesmo que a posteriori, uma forma de civilidade aos moradores da Vila de Rio Pardo (NICOLAZZI Jr., 2003, p. 81). Em um desses casos, Faustino José de Souza, no dia 19 de janeiro de 1828, entrou com uma ação de juízo de almotaçaria contra José da Silva Coimbra, alegando que o réu havia invadido seu terreno e edificado uma casa. Acontece que o autor da ação alegava que comprara um terreno na vila e construíra uma moradia, no entanto, alegava também que não fizera uso da mesma por se encontrar fora dos limites geográficos da vila. O réu, por sua vez, construíra uma casa utilizando, para isso, parte do terreno do dito Faustino. O autor pedia ao juiz almotacé Manoel Baptista de Mello que se fizesse vistoria do local, exigindo também que o réu apresentasse o título de posse e propriedade do imóvel. O juiz almotacé realizou a vistoria do local e, assim, apresentou sua deliberação sobre o juízo da almotaçaria:

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Julgo por sentença a presente vistoria e o que nela foi determinado para o que lhe interponho a minha autoridade e decreto judicial se cumpra e guarde o que nela se contém visto que sendo citadas as partes para eles apresentassem cada um os seus títulos pelos quais tirando-se as dúvidas em minha presença, autor, réu e ?, e na forma da lei, achasse que o réu tinha dois palmos do terreno do certo lugar para cima que pertencia ao autor, logo se passarão estacas fincadas e mandando que pusesse o cercado aonde se fez as divisas assinaladas também o autor ... tinha meio palmo de terreno pela ? do seu lado em um moirão abaixo do portão como ficarão controlados ?. Autor e réu os condeno em igual parte nas custas sem suspensão da sentença. Vila do Rio Pardo, 7 de fevereiro de 3310 1928. Manoel Baptista de Mello.

Ainda, no que diz respeito a ações motivadas por disputas por terrenos, Manoel Antônio Rodrigues moveu uma ação de juízo da almotaçaria contra Bento José, alegando que o réu havia retirado o cercado de sua chácara e avançado para dentro do seu terreno. O autor pedia providências e requeria uma vistoria no local para apurar os fatos. O juiz almotacé Manoel Batista de Mello foi ao local, procedeu aos autos de vistoria e sentenciou o réu a colocar o cercado no local determinado no prazo de quinze dias e, se não o fizesse no tempo previsto, seria condenado a pagar uma multa de 8$000 para as 3308

Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 11, 1822. Rio Pardo: AHMRP. Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 17, 1827. Rio Pardo: AHMRP. O réu recorreu da sentença, porém não consta no processo do juízo da almotaçaria se ele pagou ou não a multa. 3310 Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 18, 1828. Rio Pardo: AHMRP. 3309

1070 ISSN 2358-4912 despesas do conselho. O réu providenciou a colocação do cercado no devido lugar, pagando somente o valor do processo.3311 Nesse sentido, não apenas as preocupações com a forma urbana, com o aspecto da vila, com as questões de ordem higiênica e comercial faziam parte da matéria de atuação dos juízes almotacés, mas também a manutenção de toda uma ordem moral e social envolvendo os moradores da vila e que deveria funcionar adequadamente. Portanto, a sociedade, a estrutura urbana da vila de um modo geral e o bem-estar social da população também deveriam ser zelados na busca por uma ordem civilizatória, numa importante região da Província do Rio Grande de São Pedro como era Rio Pardo. Sendo assim, a atitude normativa em resolver os problemas e os conflitos entre os moradores da vila, envolvendo a fiscalização do correto cumprimento das posturas municipais, levou os juízes almotacés a atuarem até a extinção de seu cargo, em 1828.3312 Nesse sentido, apesar da extinção do cargo de juiz almotacé, ele se tornou figura-chave na organização da sociedade, no ordenamento do espaço urbano, no controle das atividades econômicas, das questões de saúde pública, nas disputas e tensões entre a população, ou seja, sua atuação e tarefa estavam centralizadas na organização e na regulação da vida cotidiana. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Referências BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). São Paulo: Alameda, 2010. ENES, Thiago. De como administrar cidades e governar impérios: almotaçaria portuguesa, os mineiros e o poder (1745-1808). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2010. NICOLAZZI Jr, Norton Frehese. O Almotacé na Curitiba colonial (1718-1828). PEREIRA, Magnus Roberto de Mello; NICOLAZZI Jr., Norton Frehese (orgs.). Audiências e correições dos Almotacés (Curitiba, 1737 a 1828). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003. PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Almuthasib – Considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias. Revista Brasileira de História. São Paulo, SP, vol. 21, nº 42, 2001. SALGADO, Graça (Coord.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1985.

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Juízo da Almotaçaria. CGCMRP, CG nº 18, 1828. Rio Pardo: AHMRP. Em 1828, frente a uma nova legislação para as câmaras municipais, o cargo de juiz almotacé deixa de existir e, em seu lugar, assumem os fiscais da câmara com as mesmas tarefas que o almotacé fazia anteriormente. Em algumas vilas e cidade brasileiras, o cargo de juiz almotacé foi extinto já durante o Primeiro Reinado. No caso de Rio Pardo, o cargo teve seu início no período colonial e se estendeu por todo o Primeiro Reinado. 3312

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O MESTIÇO MORAL NOS ESCRITOS DE CAPISTRANO DE ABREU Ricardo Souza Capistrano ocupa no conjunto da história da historiografia brasileira um lugar realmente único, uma espécie de quase (?) unanimidade. Marco fundamental, verdadeiro farol, entre a historiografia romântica e modernista, isto é, Varnhagen e a tríade Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr (FALCON, 1999:2).

Capistrano de Abreu nasceu em 1853 em Maranguape no Ceará. Era filho de uma família de proprietários rurais. Desde criança no sítio Columinjuba (nome da fazenda de sua família), Capistrano mostrava grande afeição aos livros. Na década de setenta, Capistrano já exibia uma bagagem de leitura invejável e participava ativamente a vida intelectual da cidade de Fortaleza. Foi nessa época que conheceu o escritor José de Alencar com quem desenvolveu fraterna amizade, o que provavelmente facilitou seu deslocamento para a capital do Império, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Na corte, o jovem cearense desenvolveu seus estudos históricos com a documentação que entrou em contato na Biblioteca Nacional, além de documentos que seus amigos na Europa (como João Lúcio de Azevedo, Lino de Assunção e o Barão do Rio Branco) lhe enviavam de arquivos como os da Torre do Tombo, da Biblioteca de Évora, etc. Capistrano não chegou a levar avante o projeto de sua mocidade de escrever uma obra abrangente de história do Brasil. Porém, quando morreu aos 75 anos, em 1927 era reconhecido como expoente no estudo da história pátria. Desde muito Jovem, ainda na cidade de Fortaleza, Capistrano mostrava-se interessado em desvendar o que viria a ser o caráter nacional. Essa, contudo, não é uma preocupação desprovida de contexto. Na medida em que o Brasil tornara-se independente, fazia-se necessário a construção de uma história nacional. A jovem nação buscava uma identidade própria que não a legasse o papel de mero apêndice da história portuguesa. Autores como o bávaro von Martius que veio pela primeira vez ao Brasil na comitiva da Imperatriz Leopoldina ou o brasileiro Varnhagen, membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) propunham uma história calcada no encontro das três raças formadoras da Nação, o europeu, o índio e o negro. Havia, contudo, uma visão hierárquica do papel de cada uma das raças, sendo que o branco europeu ocupava o papel de elemento civilizador. Capistrano, tal como Varnhagen, pensou a história pátria, a partir dos grupos étnicos formadores da nação. Diferente, contudo de seu predecessor, Capistrano procurava olhar com maior simpatia para os diversos grupos. Segundo José Honório Rodrigues faltava a Varnhagen simpatia pelos índios e pelos negros. Para Varnhagen o elemento civilizador seria o português. O índio era visto pelo autor como uma "alcateia"3313. Uma civilização decaída e em processo de decadência e desaparecimento (VARNHARGEN, 1979:41). Nos selvagens não existe o sublime desvelo, que chamamos patriotismo, que não é tanto apego a um pedaço de terra ou bairrismo, que sequer eles como nômades tinham bairro seu, como um sentimento elevado que nos impele a sacrificar o bem-estar e até a existência pelos compatriotas, ou pela glória da pátria. (Ibidem).

A visão decadentista acerca do índio não era exclusividade de Varnhagen, o próprio von Martius em suas especulações acerca da população nativa em terras pré-cabralinas levantara a hipótese de

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ODÁLIA, Nilo (Org.). Varnhagen: Historia. São Paulo: Ed. Ática, 1979. pp. 41.

1072 ISSN 2358-4912 haver algum vínculo entre os nativos brasileiros e alguma população antiga que atravessara o oceano e entrara em processo de devolução3314 (KODAMA, 2009). Pensar uma história pátria que forjasse sentimento de unidade no largo território era primordial para o sucesso do império, tanto internamente para inibir arroubos separatistas, quanto externamente para galgar um lugar junto às nações civilizadas. Normalmente ao se referir à obra de Capistrano de Abreu e sua importância na historiografia brasileira toma-se como modelar a maneira criteriosa como o autor lidou com as fontes da história colonial, tornando-se um marco na história moderna, conforme o trecho destacado na epígrafe com a qual iniciamos esse texto. Porém, pretendo me ater aqui a outro ponto, o qual seria a resposta de Capistrano de Abreu à indagação de sua época acerca da nacionalidade brasileira e, sobretudo a leitura de Capistrano para a mestiçagem brasileira à luz da ciência oitocentista. Como um autor longevo, evidentemente Capistrano passa por diversas fases, diversas leituras e diversas filiações ao longo da vida. Porém, a questão do caráter nacional forjado desde o período colonial até os seus dias pode ser vista como uma questão que costura toda sua produção histórica. Vários autores postulavam frequentemente as diferenças raciais, em uma medida ou em outra, como base da história da humanidade. Era do caso do conde francês Joseph Arthur de Gobineau, autor do famoso Essai sur l’Inégalité des Races Humaines3315. Na obra autor defendia ser a desigualdade entre as raças a chave para o entendimento da ascensão e queda das nações e, além disso, postulava ser a mestiçagem a causa da degeneração do gênero humano. A intelectualidade brasileira que surgiu bastante tardiamente não poderia ficar alheia às teorias raciais que se encontravam em voga no Velho Mundo. Bacharéis brasileiros chegados de Coimbra, de Paris, da Alemanha e, mais tarde, de Olinda, da Bahia, de São Paulo e do Rio de Janeiro, como observou Gilberto Freyre (FREYRE, 1996), faziam parte de um novo cenário da elite nacional que se estabelecia mais fortemente no Segundo Império e na Primeira República. A partir da década de 1870 e 1880 o darwinismo começou a ser bastante divulgado entre os intelectuais latino-americanos, contudo, as versões mais difundidas distanciavam-se dos postulados de Darwin. Dentre os intelectuais e cientistas latino-americanos, o darwinismo social era o mais difundido (STEPAN: 2005:50). O citado darwinismo social era fortemente baseado em conceitos evolucionistas postulados por Herbert Spencer. O inglês partia de uma percepção evolucionista bastante generalista e que não poderia ser reconhecida como teoria científica nos moldes propostos por Popper3316. Apesar disso o Spencerianismo ou darwinismo social teve grande difusão nas últimas décadas do século XIX, para depois cair no mais profundo esquecimento. Segundo Spencer, não somente o universo, a natureza e toda a sociedade seriam regidos por uma lei geral e única, a qual seria a passagem do homogêneo para o heterogêneo. Em um pequeno livro intitulado "O Progresso, sua lei e suas causas" publicado em 1857, o autor procurava defender tal abordagem alegando que o universo, desde o nascimento do Sistema solar, a formação biológica dos seres e mesmo as relações sociais humanas estariam sujeitos a essa grande máxima. A teoria spenceriana constituía-se numa grade infalível de interpretação com base naquilo que o autor considerava uma "verdade geral", ou seja, um número restrito de pressupostos que não se mostravam passíveis de teste ou verificação. Segundo a máxima de Spencer, as populações mais desenvolvidas seriam mais complexas, portanto mais heterogêneas que as populações selvagens. Assim, uma população menos evoluída ao entrar em contato com outra num estágio de desenvolvimento maior estaria fadada a desaparecer. Essa tese foi amplamente abraçada por autores brasileiros, como o sergipano Silvio Romero, advogado, literato e professor de filosofia do Imperial Colégio Pedro II. Para Romero, o índio brasileiro teria desaparecido sem deixar marcas no caráter nacional, posto estar no grau de atraso do "homem V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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KODAMA, Kaori. Os Índios no Império do Brasil a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; São Paulo: EDUSP, 2009. 3315 “ Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas”. 3316 Karl Raimund Popper (1902 -1994), nascido na Áustria e naturalizado inglês, foi um filósofo das ciências. Tornou-se muito conhecido por sua defesa do "falsificacionismo" como critério para diferenciar a ciência de outras saberes. Opondo-se ao empirismo clássico, Popper propunha que só seria científica a teoria que pudesse ser falseável, ou seja, submetida ao confronto com os fatos e sustentar-se diante disso. Dessa forma, leis gerais com base em a prioris filosóficos e não passíveis de falseamento não poderiam ser consideradas científica.

1073 ISSN 2358-4912 geológico". Tal raça inferior, ao entrar em contato com o europeu civilizado foi "naturalmente" subtraída à existência. (Apud. ROMERO, 1976:8). Justamente pela abrangência de suas teorias, Spencer alcançou grande difusão junto aos meio acadêmicos e, certamente isso ocorreu também entre os brasileiros letrados da segunda metade do século XIX. Na releitura nacional de Spencer outros autores eram vinculados ao spencerianismo, mesmo que houvesse discordâncias fundamentais entre eles. Dessa forma Spencer, Darwin e Haeckel acabavam por ter seus conceitos misturados no debate acerca do caráter do povo brasileiro discutido pela elite letrada (GLICK, 2003:119). Tais intelectuais viam-se em uma situação difícil. Por um lado, para que seus trabalhos fossem legitimados, deveriam estar em consonância com a produção científica internacional, no entanto, as teorias raciais, de forma geral, acabavam por desqualificar toda a população do Império dos Trópicos devido à larga mestiçagem. Da qual a elite nacional não estava alheia. Essa posição delicada da intelligentsia brasileira oitocentista fica muito bem delineada na produção antropológica do diretor do Museu Nacional, o Dr. João Batista Lacerda. Nas décadas de 70 e 80 a produção do Museu Nacional. A exposição antropológica de 1882 tornava público os estudos desenvolvido na década anterior acerca de estudos craneológicos e dentários das populações indígenas. Basicamente a conclusão era que "a porção do órgão pensante atingia proporções diminutas" e quanto à morfologia dentária dos nativos fazia-se a observação, "cunho de animalidade impresso na dentadura" (Apud. LACERDA, 2002:116). Em 1911, o mesmo João Batista Lacerda participou como representante do Brasil do Primeiro Congresso Universal das Raças em Londres. Seu trabalho denominava-se Sur les Métis au Brésil (Sobre os Mestiços do Brasil). Sem confrontar as teorias raciais que se encontravam em voga, Lacerda procurava mostrar a viabilidade do Brasil como nação, apesar das qualidades negativas de sua raça. Tal viabilidade se dava devido à população brasileira encontrar-se no caminho do branqueamento. Para Lacerda, os índios e negros que haviam "inoculado a raça branca e mestiça com seus vícios", encontravam-se em processo de desaparecimento. Dessa forma, a mestiçagem, ainda que negativamente valorada, fazia-se um caminho necessário para o branqueamento e, portanto, a possibilidade de engendrar-se uma nação civilizada nos trópicos. Porém, ainda que as teorias raciais estivessem em voga na Europa, e a partir daí difundida para várias partes do mundo, esse não era um saber hegemônico no mundo letrado. Havia autores, tanto europeus quanto em outros continentes que percebiam a humanidade como única e não faziam uma leitura racialista do homem e de sua história. Em alguns casos o determinismo racial era substituído por outras formas de determinismos como o climático e o geográfico. De uma forma ou de outra autores como Henry Thomas Buckle, Friedrich Ratzel ou ainda, anteriormente, os irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt refutavam as teorias que atribuíam qualidades intrínsecas às raças. No Brasil também havia vozes dissonantes quanto ao entendimento das raças humanas como chave para o entendimento da história. Uma delas foi a de Capistrano de Abreu. Embora tenha sido um leitor de Taine, Spencer, Comte e muitos outros, Capistrano não parecia seduzido pela crença de valores inerentes à raça tal qual postulavam diversos autores. Pensar o caráter do brasileiro a partir de interação com o meio e estudá-lo a partir de manifestações culturais e artísticas, parece tê-lo cativado desde os primeiros escritos. Para suprir a carência de uma literatura brasileira capaz de dar conta de grande parte de nossa história colonial, Capistrano propunha o exame dos contos populares e outras manifestações artísticas das gentes, como a música e a dança. Capistrano propõe que após os dois primeiros séculos começam a haver algumas manifestações literárias na Bahia e posteriormente em Minas. O indianismo romântico, característico do Romantismo brasileiro era tomado pelo jovem Capistrano como indício de um movimento de valorização do brasileiro frente ao colonizador. Um tipo de superação da inferioridade frente à metrópole. Sentimento que culminou com a independência. Desde 1879, Capistrano trabalhava na Biblioteca Nacional e teve contato com vasta documentação do período colonial. A formação do brasileiro permanecia uma questão para o historiador. Uma de suas preocupações era o fato de que acerca do indígena brasileiro, havia quase nenhuma reflexão. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

1074 ISSN 2358-4912 Tomavam-se como verdadeiras as posições de von Martius e Varnhagen segundo a qual os indígenas seriam uma civilização em decadência e que desapareceriam sem deixar qualquer marca mais perene na sociedade. A geração seguinte a esses autores tomavam por verdadeira a máxima de Spencer segundo a qual os índios, menos evoluídos, ao entrarem em contato com o europeu naturalmente desapareceriam. Em 1883 ao prestar concurso para professor no Colégio Pedro II, Capistrano apresentou a tese "Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no SéculoXVI". Na tese baseado na carta de um certo Fróes a D. Manuel , rei de Portugal, procurou descrever o tipo de interação que se dava entre os reinóis que aqui aportavam e a população indígenas. Segundo a citada carta, Fróes tratava-se de um desertor que fora acolhido por índios locais, tendo, assim, que adaptar-se à vida no novo meio.

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No meio dos brasis, ele não podia deixar de alimentar-se como eles, pois nem encontrava trigo que lhe desse pão, nem encontrava uva que lhe desse vinho, nem encontrava nem uma das comodidades com que se acostumara na velha Europa (ABREU, 1999:49).

Além disso, segue o autor, o alienígena aprendia o processo empregado pelos nativos para obter o alimento, como a pesca, a caça e à agricultura local. Certamente, introduzindo também entre os nativos algum conhecimento a eles exógeno, como o uso de metais. Outro ponto importante é que Fróes tinha que adaptar-se mais ou menos à mentalidade e à moralidade ambientes. As lendas, as crenças, as fórmulas propiciatórias iam pouco a pouco hes sendo incutidas e produzindo em sua mente revoluções mais ou menos profundas. Depois de algum tempo um homem como esse se tornava um mestiço. Percebe-se que para Capistrano a mestiçagem, denominada por ele de "mestiçagem moral", não está diretamente vinculada ao fruto do intercurso sexual entre nativos e alienígenas, mas nas trocas culturais que se davam no encontro de fronteiras entre diferentes grupos humanos. Encontro que resulta na modificação de um e de outro. A "mestiçagem moral" poderia apresentar-se em diferentes gradações: desde aqueles que se impunham sem muito receberem de influência dos nativos, escravizando-os e impondo-se a eles, julgando seus hábitos, crenças e costumes como inferiores, a outros que se entregavam de tal forma à cultura nativa que, a ponto de chegarem à antropofagia, tal como relatava Gabriel Soares, acerca de um castelhano encontrado em Pernambuco por Diogo Paes que se adornava como os nativos furando os lábios ou ainda interpretes normandos, que segundo Lery, participavam de ritos antropofágicos. Entre os dois, havia aquele que conseguia viver bem com os nativos da terra e com os europeus. Entre um extremo e outro existia aquele que aprendia a conviver bem com uma e outra cultura influenciando e sendo influenciado e circulando mais ou menos livremente entre os dois mundos. Para Capistrano, esse terceiro tipo seria o essencial para a adaptação dos portugueses ao novo meio e à convivência com os costumes nativos. Segundo o autor os franceses teriam se portado para com os indígenas de forma a captar-lhes a amizade, firmando com os mesmos alianças que atravessaram mais de um século. A razão pela qual os franceses não se estabeleceram por definitivo no Brasil foi antes devido à suas desavenças com os portugueses do que o seu relacionamento com os indígenas brasileiros. Ao compreender o índio como amálgama da sociedade brasileira nascente, Capistrano escapa da visão da mestiçagem biológica, tão em voga na ciência da época e procura pensar o índio como elemento nativo das Américas e, portanto, adaptado ao ambiente como detentor de um conhecimento necessário tanto ao europeu quanto ao africano para adaptar-se ao novo sítio. Muitos contemporâneos de Capistrano de Abreu ressentiam-se de que o historiador gastasse grande parte de seu tempo dedicando-se ao estudo das línguas indígenas como o bacaerí e o caxinauá. Isso era visto como um desvio dos estudos históricos de Capistrano e mesmo como um desperdício de talento, já que se esperava dele escrever uma obra abrangente sobre a história do Brasil desde o seu período colonial. Porém, se atentarmos para o fato de que Capistrano, ao pensar o caráter do brasileiro, não abre mão do encontro das diferentes culturas no lugar do encontro de "raças", o estudo das línguas indígenas deixa de parecer um desvio e fica totalmente integrado à perspectiva histórica do historiador. Ainda

1075 ISSN 2358-4912 mais se levarmos em conta que seus estudos linguísticos não se atinham simplesmente à gramática, mas incutia-se nos ritos, crenças e costumes (SOUSA, 2012:227; OLIVEIRA, 2006:145). De certa forma, o próprio Capistrano procurava tornar-se o "mestiço moral" de seu próprio tempo. Os estudos das línguas indígenas se davam por meio de nativos que Capistrano trazia ao seu convívio familiar e que ali permaneceram por anos a fio, como foi o caso de Tuxinin e Bôrô, os quais passaram a fazer parte da família. O conceito de mestiçagem para Capistrano de Abreu era, portanto, diverso da maioria dos intelectuais da época. Posto que o historiador não fazia uma leitura racial calcada na raça biológica, percebia como legítimas as manifestações culturais das diferentes etnias e buscava perceber de que forma o caráter dos brasileiros seria forjado pelas línguas, mitos, crenças, músicas, comidas e tudo o mais que atualmente denominaríamos cultura.

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DESEJOS E ESCOLHAS: SOLICITAÇÕES DE ÍNDIOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE SOB A POLÍTICA DO DIRETÓRIO POMBALINO Ristephany Kelly da Silva Leite∗ Considerações iniciais Até meados do século XVIII, os índios da América Portuguesa viviam sob o governo dos missionários, respaldados pelo Regimento das Missões (1686)3317. Foram eles que ficaram responsáveis por catequizar e “civilizar” os índios, no entanto, após diversos conflitos com os colonos, principalmente no que diz respeito ao uso da mão de obra indígena, os missionários perderam a administração temporal por meio do Alvará de 7 de junho de 1755 que passaria esta administração para os principais3318 de cada vila; mas devido à “rusticidade” e à “barbaridade” dos índios foi alegado que estes não poderiam administrar estas vilas. O Diretório Pombalino, legislação indigenista que substituíra o Regimento das Missões, foi homologado por Dom José I em 1758, e aplicado no Estado do Grão-Pará e Maranhão. Para a capitania de Pernambuco e suas anexas, foram feitas adaptações e dez dias depois foi criada a Direção com que inteiramente se devem regular os índios das novas villas e lugares erectos nas aldeias de Pernambuco suas anexas3319 que seria estabelecida para esta região. Objetiva-se aqui perceber como os índios reivindicavam direitos que consideravam seus, embasados na legislação vigente, o Diretório pombalino. Esta legislação possibilitava aos indígenas solicitarem posições diferenciadas na sociedade em que estavam inseridos, possibilidade que estes tentaram usufruir, sem deixarem de considerar-se índio. Os índios do Rio Grande do Norte e a sociedade colonial sob o Diretório Ao pesquisador que desejar debruçar-se sobre a temática da presença indígena no período colonial no Rio Grande do Norte, apresentam-se dois aspectos que devemos ressaltar. O primeiro é referente à documentação disponível sobre os indígenas na capitania. Por tratar-se de uma documentação produzida pelos europeus na maioria dos casos, não nos oferece, ao menos diretamente, a visão dos indígenas a respeito dos acontecimentos que os envolviam. Também devemos considerar que maioria dos documentos produzidos durante o período relatam aspectos de caráter administrativo, porém, carregam uma multiplicidade de elementos sobre a sociedade colonial e sobre como cada agente histórico se insere neste contexto, desta forma, o pesquisador pode se dedicar aos estudos sobre a presença e participação dos indígenas no período colonial por meio do cruzamento de documentos administrativos como requerimentos, ofícios, despachos, consultas, pareceres, entre outros, percebendo sua efetiva participação nesta sociedade. O segundo aspecto refere-se à historiografia tradicional do Rio Grande do Norte. Os autores que integram este grupo escreveram pouquíssimo sobre a questão indígena. Os índios foram esquecidos, e muitas vezes aparecem como personagens que não tiveram participação alguma na sociedade colonial da capitania. Luís da Câmara Cascudo, considerado o expoente máximo da historiografia potiguar, escreveu que os índios desapareceram misteriosamente dos territórios da capitania: ∗

Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Professor Doutor Lígio José de Oliveira Maia (DEHIS/UFRN). 3317 O Regimento das Missões concedeu a administração temporal e espiritual dos índios aos missionários. Para um estudo mais aprofundado sobre esta legislação ver BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões. Política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983. 2 A definição de principal aqui utilizada é: “título que se dá no Brasil ao Gentio, mais estimado da aldeia, e que governa como capitão dela”. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. (10 vols.). Coimbra: 17121728. Disponível em: . Acesso em: maio de 2014. 3319 NAUD, Lêda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa, Brasília, vol. 7, n.28, 1970.

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ISSN 2358-4912 Em três séculos toda essa gente desapareceu. Nenhum centro resistiu, na paz, às tentações daguardente, às moléstias contagiosas, às brutalidades rapinantes do conquistador. Reduzidos, foram sumindo, misteriosamente, como sentindo que a hora passara e eles eram estrangeiros na 3320 terra própria .

Para Cascudo, os índios desapareceram depois da Guerra dos Bárbaros, no início do século XVIII, não sobrando nenhum representante indígena na capitania do Rio Grande do Norte. Augusto Tavares de Lyra, outro escritor do século XX consagrado pela historiografia potiguar, atribui o desaparecimento dos índios à mudança da administração das vilas, pois, segundo ele, a transferência da administração dos índios, antes exercida pelos missionários, aos diretores das vilas de índios, teve como consequência a perseguição e aniquilação dos índios: “a consequência foi que, em grande parte os índios aldeados voltaram à vida errante dos primeiros tempos, sendo perseguidos e esmagados”3321. Outros escritores, como Tarcísio Medeiros3322, também seguem a mesma ideia do desaparecimento. No entanto, produções historiográficas mais recentes já vêm questionando esse desaparecimento “misterioso” dos indígenas: Não foi “misteriosamente” que ocorreu seu “desaparecimento”, como afirmou Cascudo, foram condições materiais e ideológicas formadas pela colonização que o levaram à condição de 3323 inferioridade social, econômica e política, que foi traduzida como “desaparecimento” .

Para Lopes, foram as condições impostas pela sociedade que levaram os índios à miserabilidade e à exclusão social, obrigando-os assim, a assumir uma estratégia de sobrevivência, que os levou a uma descaracterização étnica e os transformou em caboclos. Helder Macedo, historiador que pesquisa os índios no sertão da capitania também escreve sobre a sobrevivência indígena na capitania: Partindo do pressuposto de que em contextos de dominação e repressão os povos envolvidos reelaboram e redefinem suas referências culturais frente às situações que se constroem entre ambos, podemos afirmar que a cultura nativa não se esgotou por completo. [...] a sobrevivência biológica dos índios no Seridó, que só foi possível porque os mesmos elaboraram estratégias de resistência ao esquema dominatório do mundo ocidental, muitas vezes fingindo a sujeição ao Rei de Portugal [...] para que pudessem escapar ou mesmo omitindo sua condição de índios, quando passavam a ser 3324 chamados e a se autodenominar de caboclos .

Através da documentação disponível sobre o período, também podemos refutar esta teoria do desaparecimento dos índios no século XVIII. Mapas populacionais encontrados nos documentos manuscritos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referentes à capitania do Rio Grande do Norte (AHU-RN), com o número de índios e índias viventes nas vilas e freguesias da capitania datado de 1806, além de estatísticas de índios domésticos, casamentos e mortes datado de 18073325 comprovam a existência de comunidades indígenas na capitania. Estes documentos, trabalhados por Fatima

3320

CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2ª ed. Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984, p. 38. 3321 LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1998, p. 151. 3322 MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte. Natal: Ed. Universitária, 1973. 3323 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Recife: UFPE-Programa de Pós-Graduação em História (Tese de doutoramento), 2005, p. 488. 3324 MACEDO, Helder Alexandre de Medeiros. O viver indígena na freguesia da gloriosa senhora Santa Ana do Seridó: Histórias de índios no Rio Grande do Norte, Brasil (séculos XVIII e XIX). Revista de Antropologia Experimental, n. 3, 2003. 3325 AHU-RN, Papéis Avulsos, Caixa 10, Doc. 629 - 15/04/1807; AHU-RN, Papéis Avulsos Caixa 9, Doc. 623 31/12/1806.

1079 ISSN 2358-4912 Lopes3326, demonstram que não somente os índios não haviam desaparecido da capitania, como também representavam uma parcela considerável da população que vivia nela. Neste trabalho, tentando evidenciar não somente a presença dos indígenas no Rio Grande do Norte, mas também sua participação na sociedade colonial através de requerimentos que expressam suas vontades. A documentação analisada corresponde ao período no qual a legislação vigente era o Diretório pombalino3327, também conhecido como diretório dos Índios, elaborado pelo Governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Datado de 3 de maio de 1757 e homologado pelo rei Dom José I por meio de um alvará de confirmação, foi validado também para o Estado do Brasil. Este Diretório, hoje considerado uma das legislações indigenistas mais importantes da América portuguesa, regulamentava as Leis de 17553328, porém, no lugar de as vilas serem administradas por principais, foi estabelecido que esta administração seria realizada por Diretores alegando a “rusticidade” e “barbaridade” em que viviam os índios. O diretório contava com 95 parágrafos determinando como administrar e consolidar as vilas, cristianizar e civilizar os índios. Em 1755, depois de duras críticas do Governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Conde de Oeiras que seria em breve Marquês de Pombal, sobre a administração dos jesuítas e do uso desmedido da mão de obra indígena pelos jesuítas e pouco resultado de sua catequização sobre eles, foi estabelecida uma nova lei de liberdade dos índios3329. Essa lei, juntamente com outras duas datadas do mesmo ano, foram sendo elaboradas aos poucos, levando sempre em consideração os conflitos com a administração dos jesuítas e as opiniões de Mendonça Furtado. O Diretório dos Índios, produzido para o Estado do Grão-Pará e Maranhão, foi estendido ao Estado do Brasil, no entanto, ele fora criado para a realidade dos índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão, gerando dúvidas sobre a forma de como agir por parte dos governadores da capitania de Pernambuco e suas anexas. Então, foi criada a Direção de Pernambuco3330, que se baseou no Diretório, mas trouxe parágrafos com modificações e outros que correspondiam à realidade da capitania de Pernambuco, portanto, não existentes no Diretório. As principais alterações da Direção se deram em relação à repartição das terras e a distribuição do trabalho dos índios. Também procurou incentivar a agricultura de produtos que seriam melhor cultivados, considerando as condições climáticas da região3331. A direção, criada para atender as demandas da capitania de Pernambuco e suas anexas, tratava da administração e consolidação das vilas de índios e de como seus habitantes deveriam se portar V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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A historiadora oferece dados estatísticos sobre estes documentos, inclusive comparando-os com outros mapas populacionais do período colonial e constata que “Apesar do decréscimo numérico da população indígena e o concomitante acréscimo da população não índia nas vilas de Índios, assim como no total da população da Capitania do Rio Grande do Norte, constata-se que os indígenas até 1805 não haviam ‘desaparecido misteriosamente’” Cf. LOPES, Fátima Martins. Miscigenação nas Vilas Indígenas do Rio Grande do Norte. Revista Mosaico (Dossiê). Goiânia, v. 4, n. 2, p. 183-196, jul./dez. 2011, p. 188. 3327 DIRETÓRIO que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará, e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário [1757]. In: NAUD, Lêda Maria Cardoso. Op. cit. v. 8. 3328 O alvará em forma de lei de 14 de abril de 1755 que incentivando o casamento entre brancos e indígenas, o alvará de 7 de Junho de 1755 que abolia o poder temporal dos missionários sobre os índios aldeados e estabelecia que os índios poderiam ser Vereadores e Juízes Ordinários e a lei de 6 de junho de 1755, que garantia aos índios do Estado do Maranhão e Grão-Pará a liberdade de suas pessoas, bens e comércio, Cf: NAUD, Op. Cit. v. 8, p. 255. 3329 Em três momentos da história, a legislação indigenista aboliu totalmente o cativeiro dos índios. As três leis que determinam esta liberdade dos povos indígenas na colônia são chamadas de leis de liberdade, e foram promulgadas em 30 de julho de 1609, 01 de abril de 1680 e, por fim, em 06 de junho de 1755, que será apresentada adiante. Embora a liberdade fosse garantida para todos os indígenas através destas leis, o cativeiro foi reestabelecido em legislação posterior a cada uma delas. Isto se deve ao caráter contraditório e oscilante da legislação indigenista durante todo o período colonial. Cf. Perrone-Moisés, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992, p. 115131. 3330 Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas villas e lugares erectos nas aldeias de Pernambuco e suas anexas. In: NAUD, Op. Cit. v. 7. 3331 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade. Op. Cit. p. 83.

1080 ISSN 2358-4912 doravante3332. Estabelecia que os índios desta região não poderiam mais falar suas línguas nativas e teriam que adotar o português; tratava sobre a posição social dos índios; estabelecia que os índios deveriam ser batizados e tratados com nomes de origem portuguesa, sem que os colonos pudessem chamar-lhes de cativos, caboclos ou tapuias, pois estas denominações passaram a ser consideradas pejorativas. Dispunha sobre os ofícios, vestuários e moradias dos índios, sobre a estrutura e aparência das novas vilas, proibiu o consumo de aguardente, incentivou o comércio e a agricultura. Enfim, dispunha sobre todos os assuntos referentes às novas vilas de índios que seriam estabelecidas e sobre a administração destas, além de tratar sobre a vida dos índios vilados, seus costumes e suas línguas. Na capitania do Rio Grande do Norte, por ser uma capitania subordinada à capitania de Pernambuco, estenderam-se as ordens aplicadas a esta última, portanto, os aldeamentos indígenas da capitania também se tornaram vilas. Os dois primeiros aldeamentos a serem transformados em vilas foram a Missão de Guaraíras, transformada em Vila Nova de Arez e a Missão de Guajiru, tornando-se Vila Nova de Extremoz do Norte em 1760. Por questões administrativas, os outros três aldeamentos, Apodi, Mipibu e Igramació, tornaram-se vilas, Portalegre, São José e Vila Flor, respectivamente, somente em 1761. Como estabelecido pela Direção, as vilas seriam administradas por diretores, teriam casa de Câmara e Cadeia, com vereadores e juízes e, com a expulsão dos jesuítas, o poder espiritual ficaria com padres seculares.

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Índios missionários: solicitações dos indígenas Os casos analisados neste trabalho são solicitações de dois indígenas oriundos da capitania do Rio Grande do Norte, a primeira solicitação foi realizada por um morador da vila de Arez (antiga missão de Guaraíras) que intencionava ser sacerdote. Morador de uma das primeiras aldeias a ser elevada a vila da capitania, Antônio Dias da Fonseca tinha 20 anos e já sabia ler e escrever quando Manoel Garcia Velho do Amaral, cônego na catedral de Olinda, visitou as vilas da capitania, o que fez o cônego acreditar que este poderia se tornar um sacerdote e o fez levá-lo para Olinda3333. Apesar de não ter conseguido alcançar seu objetivo3334, torna-se interessante observar os motivos que levaram Antônio a querer ser sacerdote. Ele relatou que após o cônego ter oferecido a oportunidade, ele aceitou por não conhecer nenhum outro indígena da sua nação que tenha sido sacerdote, e que queria ser um “exemplo particular” da bondade de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar e redator do Diretório Pombalino3335. Percebe-se que Antônio conhecia as determinações do Diretório pombalino, pois estava informado dos feitos de Mendonça Furtado para o “benefício dos índios”. Apesar de haver certa divergência a respeito da aceitação do Diretório pombalino por parte dos índios, Antônio acreditava que este teria trazido benefícios para a população indígena ou pelo menos utilizava o discurso de aceitação para conseguir a vida sacerdotal. Ao que parece, ele sabia que enquanto índio vilado, teria direitos não destinados a outros índios, que não estivessem estabelecidos em vilas e vivendo de acordo com as determinações régias. Isto fica claro quando ele afirma que estava “[...] informado da caridade, com que Vossa Excelência tem patrocinado a causa dos índios, sendo o principal motor das piíssimas ordens, com que Sua Majestade Fidelíssima os tem honrado, e favorecido, para se acharem hoje em diferente estado do passado [...]”3336, portanto, se em diferentes condições, ele poderia reivindicar uma posição diferenciada. A maneira com que Antônio reivindica receber uma educação para fins eclesiásticos torna evidente a familiaridade com a maneira portuguesa de reivindicar posições e privilégios para com a Coroa. Como os indígenas que habitavam o litoral da capitania já haviam estabelecido um contato anterior

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Cabe ressaltar que o Rei não aprovou todas as modificações propostas por Luís Diogo Lobo da Silva, determinando que as autoridades locais deveriam continuar se pautando no Diretório. Cf: LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade. Op. Cit. p 84. 3333 AHU-PE, papéis avulsos, Caixa 105, Doc. 8159 - 11/05/1768. 3334 A solicitação era para receber uma educação voltada ao sacerdócio, apesar de não ser atendido neste primeiro intento, o indígena conseguiu uma coadjutoria, como veremos mais adiante. 3335 AHU-PE, papéis avulsos, Caixa 105, Doc. 8159 - 11/05/1768. Anexo. 3336 ibidem.

1081 ISSN 2358-4912 com os europeus, por ser uma região que recebeu povoadores já no início da conquista3337, percebe-se que a solicitação feita por Antônio carrega esta familiaridade e assemelha-se a carta do cônego, também anexa no mesmo documento emitido à Mendonça Furtado. Ele não somente tinha conhecimento de sua posição diferenciada, enquanto vassalo d’El Rei, portanto, alguém que poderia reivindicar uma educação diferenciada a fim de se tornar um eclesiástico, como também tinha o objetivo de se tornar um exemplo para que os demais povos do Brasil pudessem vislumbrar a mesma oportunidade. Antônio Dias da Fonseca foi para Olinda em 1767 para começar a aprender a língua latina, em companhia do cônego Manoel Garcia Velho do Amaral e de outro índio que tinha os mesmo objetivos, Antônio Alves da Cunha, rapaz de 16 anos e morador da vila de Estremoz (antiga missão de Guajiru). Embora fosse sobrinho do Capitão-mor dos índios de vila Viçosa (CE), portanto, a educação para ele seria facilitada para que ele viesse a servir de exemplo ou se tornasse uma chefia futuramente na comunidade em que vivia3338, também não conseguiu a educação diferenciada, pois o Bispo Aranha acreditava na incapacidade destes para a vida eclesiástica, não os aceitando no seminário. A intenção de impressionar o cônego é demonstrada quando Alves da Cunha relatou tê-lo recebido na entrada da vila com um romance laudatório3339 em mãos. Manoel Garcia o convida para juntar-se a Antônio Dias da Fonseca, começando assim a aprender latim com este em janeiro de 1767. Novamente na solicitação de Antônio Alves da Cunha podem ser percebidos os mesmos elementos que constam na de Dias da Fonseca. Os dois alegam que “os índios muito devem à proteção” de Mendonça Furtado e que este tem feito muitos benefícios aos índios3340. Estas alegações se devem à “posição diferenciada” que os indígenas passaram a ter após a implantação do Diretório pombalino e a possibilidade de reivindicar cargos e privilégios perante o Rei e autoridades régias. Com a Lei de 6 de junho de 1755, os índios ganhariam a “liberdade de suas pessoas, bens e comércio”, como visto mais acima, e passariam a ser considerados vassalos livres, embora que ainda em condição diferenciada dos demais vassalos da Coroa. Esta condição foi reafirmada no Diretório, propiciando aos índios fazer reivindicações como vassalos e procurar posições garantidas por esta legislação ou desejadas, mas não ocupadas pelos indígenas. No caso de Antônio Alves da Cunha haveria um maior incentivo para sua educação, considerandose outra diretriz do Diretório e que também integraria o texto da Direção, que seria a hierarquização social entre os indígenas3341. Sendo este sobrinho de um principal3342, seria mais aconselhado conseguir formar-se sacerdote, no entanto, não conseguiu ser atendido. Este ainda relatou que desejava “fazer-se distinto, e recuperar o credito, q thê o prez.te [presente] tem perdido os Seos nacionais”, portanto, este desejava uma distinção social e reivindicava uma posição que poderia ser cedida aos seus iguais, mais que não havia sido dada a nenhum que ele conhecesse3343. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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Para um estudo pais detalhado sobre as relações entre missionários, colonizadores e indígenas na capitania anteriormente ao período pombalino ver: LOPES, Fátima M. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003. 3338 Ângela Domingues afirmou que o objetivo principal das escolas era educar os filhos destas pessoas de destaque na comunidade, fato que aparenta ser do conhecimento de Antônio Alves, quando este relata ser sobrinho do capitão, talvez com a intenção de agregar mais elementos para alcançar seu objetivo. Cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: civilização e relações de poder no Norte de Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. 3339 Infelizmente, pela documentação disponível, não foi possível identificar tal romance. 3340 AHU-PE, papéis avulsos, Caixa 105, Doc. 8159 - 11/05/1768. Anexos. 3341 Em sua tese, Fátima Lopes, ao escrever sobre este conjunto documental, ressalta a “tentativa de educação dessa elite da terra” referindo-se a Antônio Alves da Cunha. Cf. LOPES, Fatima Martins. Em nome da liberdade. Op. Cit. p. 476. 3342 Antônio era sobrinho de Dom Felipe de Souza de Castro. Sobre a importância da família Souza e Castro na capitania do Ceará Cf. MAIA, Lígio de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Sousa e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais (UFC), nº44, vol.1, 2012. 3343 Em recente artigo, Gustavo Santos escreve que o fato de os índios não terem conseguido se tornar eclesiásticos também se deve ao Bispo Dom Francisco Xavier Aranha, que teria dificultado a ordenação dos dois. Cf. SANTOS, Gustavo Augusto Mendonça dos. Um bispo e seus agentes: A atuação de Dom Francisco Xavier

1082 ISSN 2358-4912 Em ambas solicitações, os suplicantes reivindicavam a educação para se tornarem eclesiásticos e utilizavam de uma retórica eloquente para atingir seu objetivo. Torna-se claro que os suplicantes possuíam conhecimento sobre as ações de Mendonça Furtado e sabiam que este, junto com seu irmão (Conde de Oeiras), havia reformulado a legislação indígena dando-lhes a posição de vassalo e a oportunidade de se posicionar frente à Mendonça Furtado. Solicitações como estas se tornam importantes para compreender como os índios estavam inseridos na sociedade colonial, interagindo com outros agentes históricos e realizando solicitações para ocuparem posições diferenciadas. Torna-se interessante perceber que nos documentos avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino referente a capitania de Pernambuco, para onde os dois índios foram com o cônego, há registros da concessão da Coadjutoria da Igreja de Santo Amaro do Bispado de Pernambuco para Antônio Alves da Cunha e da Coadjutoria da Igreja da Conceição da Várzea para Antônio Dias da Fonseca3344. Estas concessões exemplificam uma das posições que os indígenas poderiam alcançar a partir das determinações do Diretório pombalino. Esta legislação viabilizava a inserção deste grupo em cargos normalmente ocupados por europeus, bem como a inserção de moradores não índios em vilas de índios, estabelecendo a política de “civilização” dos indígenas empregada pela Coroa, além da possibilidade de galgar uma posição diferenciada dos demais índios. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais Objetivou-se neste artigo perceber não somente a presença dos indígenas no Rio Grande do Norte, mas também suas reivindicações através das solicitações de Antônio Dias da Fonseca e Antônio Alves da Costa. Perceber a atuação dos indígenas na sociedade colonial potiguar é de suma importância, uma vez que pesquisas sobre sua presença, deveras negligenciada pela historiografia tida como “tradicional”, surgem cada vez mais, inclusive comprovando que estes indígenas faziam parte de famílias tradicionais do estado3345. Percebe-se que seus anseios são expressos e, por vezes ouvidos pelas autoridades coloniais. A legislação indigenista, que possibilita ao indígena reivindicar posições ocupadas pelos demais integrantes da sociedade e oferece os mecanismos necessários para estas reivindicações, permitiu que estes, apesar de uma posição social diferenciada dos demais vassalos d’El Rei, vislumbrassem chegar a posições “que nenhum outro de sua nação” chegou. Referências BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões. Política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. (10 vols.). Coimbra: 1712-1728. Disponível em: . Acesso em maio de 2014. CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2ª ed. Natal; Rio de Janeiro: Fundação José Augusto; Achiamé, 1984. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: civilização e relações de poder no Norte de Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. LYRA, Augusto Tavares de. História do Rio Grande do Norte. Natal: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1998. Aranha e do Tribunal Eclesiástico de Pernambuco no século XVIII. Revista Ultramares (Dossiê). Alagoas, v. 1, n. 4, p. 29-44, ago./dez. 2013. 3344 Cf: SANTOS, Gustavo Augusto Mendonça dos. Um bispo e seus agentes: A atuação de Dom Francisco Xavier Aranha e do Tribunal Eclesiástico de Pernambuco no século XVIII. Revista Ultramares (Dossiê). Alagoas, v. 1, n. 4, p. 29-44, ago./dez. 2013. p. 33-34. 3345 Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. Notas sobre a formação de parentelas e mestiçagens na ribeira do Seridó, a partir dos Dantas Corrêa. Anais do VI Encontro Estadual de História, UERN, Assu, 22 a 25 de julho de 2014. No prelo.

1083 ISSN 2358-4912 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Recife: UFPE-Programa de Pós-Graduação em História (Tese de doutoramento), 2005. ______. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003. ______. Miscigenação nas Vilas Indígenas do Rio Grande do Norte. Revista Mosaico (Dossiê). Goiânia, v. 4, n. 2, p. 183-196, jul./dez. 2011. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. Notas sobre a formação de parentelas e mestiçagens na ribeira do Seridó, a partir dos Dantas Corrêa. Anais do VI Encontro Estadual de História, UERN, Assu, 22 a 25 de julho de 2014. No prelo. MACEDO, Helder Alexandre de Medeiros. O viver indígena na freguesia da gloriosa senhora Santa Ana do Seridó: Histórias de índios no Rio Grande do Norte, Brasil (séculos XVIII e XIX). Revista de Antropologia Experimental, n. 3, 2003. MAIA, Lígio de Oliveira. Honras, mercês e prestígio social: a inserção da família indígena Sousa e Castro nas redes de poder do Antigo Regime na capitania do Ceará. Revista de Ciências Sociais (UFC), nº44, vol.1, 2012. MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte. Natal: Ed. Universitária, 1973. NAUD, Lêda Maria Cardoso. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa. Brasília, vol. 7, n.28, 1970. ______. Documentos sobre o índio brasileiro (1500-1822). Revista de Informação Legislativa. Brasília, vol. 8, n.29, 1971. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP, 1992, pp. 115-131. SANTOS, Gabriel Augusto Mendonça dos. Um bispo e seus agentes: A atuação de Dom Francisco Xavier Aranha e do Tribunal Eclesiástico de Pernambuco no século XVIII. Revista Ultramares (Dossiê). Alagoas, v. 1, n. 4, p. 29-44, ago./dez. 2013.

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“MAS, E OS CARMELITAS?” LEVANTAMENTO ACERCA DOS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DA ORDEM DO CARMO E DA SUA ARQUITETURA COLONIAL NO BRASIL Roberta Bacellar Orazem3346

Introdução Desde 2006, data em que começamos a nos envolver com a temática da Ordem do Carmo, pesquisando a Ordem Terceira, observamos que há poucas pesquisas acadêmicas sobre a Ordem do Carmo no Brasil. Ao longo dos anos, frequentamos diversos congressos acadêmicos no Brasil e em Portugal, sobre história (seja colonial, da religião e religiosidades, da arte e da arquitetura), nos quais percebemos que há muita pesquisa exposta sobre jesuítas e franciscanos, um pouco menos sobre os beneditinos, e raros sobre os carmelitas. Na medida em que apresentávamos estudos a respeito da Ordem do Carmo no Brasil colonial, outros pesquisadores também questionavam a ausência de mais trabalhos sobre os carmelitas. Em um congresso sobre arte barroca, que fomos em 2011 em Braga - Portugal, uma conhecida pesquisadora da arte e arquitetura rococó no Brasil, no último dia do evento, disse o seguinte: “Mas, e os carmelitas, ninguém pesquisa sobre eles?”. Percebemos que esse questionamento é recorrente nos congressos acadêmicos e, sempre que algum pesquisador chama a atenção para a falta de trabalhos sobre os carmelitas, cria-se um debate construtivo em torno das pesquisas sobre ordens religiosas no Brasil e em Portugal. Pelo menos no meio acadêmico, os carmelitas, tanto calçados3347 quanto descalços3348, são pouco explorados em diversos aspectos: histórico, artístico, arquitetônico, urbanístico, entre outros. E isso nos incentivou a realizar um levantamento acerca dos estudos já publicados sobre ordens religiosas, principalmente sobre a Ordem do Carmo e, mais ainda, impulsionou a nossa pesquisa de tese, a qual estuda a influência dos carmelitas calçados na arquitetura e na cidade do Brasil colonial. Neste artigo, faremos um levantamento dos estudos que diretamente ou indiretamente pesquisam os carmelitas (calçados e descalços) no período colonial no Brasil, principalmente no campo da história da arte e da arquitetura. Tentaremos responder às seguintes perguntas em relação aos carmelitas: Sobre o que se pesquisa? Quem pesquisa? De que forma?. Primeiramente, apresentaremos alguns trabalhos produzidos sobre as ordens religiosas em geral. Depois, mostraremos, divididos por categoria, os trabalhos produzidos sobre a Ordem do Carmo no Brasil colonial. Estudos sobre Ordens Religiosas no Brasil Colonial Ao realizarmos um levantamento acerca dos estudos sobre as principais ordens religiosas que atuaram no Brasil colonial, percebemos que há muitos trabalhos produzidos e apresentados em congressos sobre os jesuítas, como, também, um número considerável de textos sobre os franciscanos e beneditinos. Já os carmelitas foram pouco contemplados pela academia no Brasil. Por sua vez, os trabalhos sobre a história das ordens religiosas no Brasil e na Europa, ora destacam a organização institucional, ora destacam o patrimônio das igrejas e conventos. Neste caso, privilegiando a análise da arte e da arquitetura religiosa. Até o momento, os jesuítas foram os que mais tiveram trabalhos publicados a seu respeito, nos quais, em grande parte, é pesquisada a educação dos jesuítas no período colonial. Há o trabalho, considerado por nós clássico, do jesuíta Serafim Leite (1993) -“História da Companhia de Jesus no 3346

Doutoranda do PPGAU-UFRN, [email protected] Os carmelitas calçados ou da Antiga Observância é o grupo mais antigo da ordem religiosa do Carmo. 3348 Os carmelitas descalços surgiram no final do século XVI na Espanha como um grupo contrário aos carmelitas da Antiga Observância, pois seguem constituições do Carmo mais rigorosas. 3347

1085 ISSN 2358-4912 Brasil”. Há ainda trabalhos sobre a arquitetura colonial dos jesuítas: o artigo de Costa (1941) - “A arquitetura dos jesuítas no Brasil”, o qual enfoca a análise da tipologia dos altares-mores jesuítas no período colonial; o artigo de Bury (2006) - “A arquitetura jesuítica no Brasil”, o qual analisa as fachadas das igrejas jesuítas barrocas. Em relação aos trabalhos sobre os beneditinos no Brasil colonial, sabemos que muitos estudos foram realizados no interior da própria ordem pelos religiosos. Entretanto, há trabalhos acadêmicos sobre a história dos beneditinos no Brasil colonial. Nesse sentido, destacamos três teses produzidas sobre a história da arquitetura e do urbanismo na Bahia: Costa (2003) – “Salvador, século XVIII: o papel da ordem religiosa dos Beneditinos no processo de crescimento urbano”; Lins (2003) – “Arquitectura dos Mosteiros Beneditinos no Brasil - Século XVI a XIX”; Hernández (2009) – “A Administração dos Bens Temporais da Arquiabadia de São Sebastião da Bahia”. Os franciscanos também foram contemplados com diversos trabalhos sobre sua história no período colonial. Dentre eles, destacamos estudos acadêmicos sobre arte, arquitetura e urbanização dos franciscanos no Brasil colonial: a tese de Cavalcanti Filho (2009) - “Os conventos franciscanos do nordeste do Brasil, 1585-1822: função e design no contexto colonial”, a qual analisa a arquitetura conventual e a urbanização colonial da ordem de São Francisco no atual nordeste do Brasil; o livro de Flexor & Fragoso (2011) - “A igreja e o convento de São Francisco da Bahia”, no qual se destaca a arquitetura monumental barroca da igreja; o livro de Carvalho, Ribeiro e Silva (2011) - “Memória da Arte Franciscana na Cidade do Rio de Janeiro”, o qual analisa a arte e arquitetura do conjunto franciscano no Rio de Janeiro. Em meio ao universo das ordens religiosas, a história da Ordem do Carmo no Brasil colonial pouco foi contemplada pelos acadêmicos. Sendo essa a temática primordial das nossas pesquisas, neste artigo, fizemos um levantamento bibliográfico, visando ter acesso ao maior número de trabalhos até então produzidos a respeito dos carmelitas calçados e descalços.

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Estudos sobre os Carmelitas Descalços no Brasil Colonial Há poucos trabalhos que pesquisam sobre a atuação dos carmelitas descalços no Brasil colonial. Neste período, os descalços atuaram de forma pontual no Brasil, edificando um convento em Olinda e outro em Salvador, vivendo reclusos nos conventos dessas duas cidades coloniais. Além disso, os documentos primários oficiais dos carmelitas descalços da Bahia e Pernambuco no Brasil foram enviados para os conventos na Europa, dificultando, assim, as pesquisas no Brasil sobre aqueles religiosos. Todas essas questões talvez tenham influenciado a falta de interesse dos pesquisadores no Brasil em aprofundar sobre os descalços. Mesmo assim, há pelo menos três trabalhos sobre os carmelitas descalços no Brasil colonial: o primeiro e o segundo fazem parte de um estudo exaustivo sobre a atuação dos descalços em Pernambuco colonial, com a dissertação (1996) e a tese (2002) do historiador Ponce de León, nomeadas, respectivamente, “Carmelitas Descalços – Terésios em Pernambuco: Padroado e Vida Conventual” e “Carmelitas Descalços no Pernambuco Colonial”; o terceiro trabalho é um estudo pontual de Lins (2008), em seu artigo sobre a “Arquitetura Carmelitana: Convento de Santa Teresa da Bahia”, contemplando os carmelitas descalços na Bahia colonial. Estudos de Frades Carmelitas Calçados A maior parte dos trabalhos sobre carmelitas calçados foi escrita por frades carmelitas no século XX e por essa razão não encontramos divulgação recente desses trabalhos em meio acadêmico. Suas obras tem uma linguagem, em muitos casos, lendária e parcial, e, muitas vezes, prioriza a temática da Ordem do Carmo na Idade Média e Moderna na Palestina e na Europa. Como os frades sempre tiveram acesso aos documentos da Ordem, muitos deles utilizam as fontes primárias, mas exploram muito pouco o potencial dos documentos, uma vez que a eles interessa mais a perspectiva religiosa. Dos trabalhos produzidos por pesquisadores-religiosos sobre o histórico da Ordem do Carmo, tanto calçados quanto descalços, principalmente na Idade Média e Idade Moderna, um dos mais antigos, dos que foram produzidos no século XX, é dos frades Esteve & Guarch (1950) - “La Orden del

1086 ISSN 2358-4912 Carmen”. Este é um dos mais completos no tocante ao uso dos documentos primários e secundários. Essa obra parece ter influenciado a coleção de cinco volumes organizada por Smet (1987) - “Los Carmelitas: historia de la Orden del Carmen”, que trabalha da Idade Média à contemporaneidade. O frei Saggi (1975) também escreveu, em um verbete de um dicionário, sobre a “História dos Carmelitas”. No estudo do frei Boaga (1989) - “‘Como pedras vivas’... Para ler a história e vida do Carmelo”, há a história da Ordem do Carmo na Palestina e na Europa, mas também se escreve sobre o Carmo calçado no Brasil colonial. Dentre os trabalhos produzidos por frades sobre o Carmo calçado em Portugal, que também mencionam os carmelitas calçados no Brasil, um dos mais antigos é o do frei Sant’Anna (1745) intitulado “Chrônica dos carmelitas da Antiga, e Regular Observância nestes Reyno de Portugal, Algarves e seus domínios”. A principal referência sobre a história dos carmelitas calçados no Brasil colonial é um manuscrito do frei Manuel de Sá (1724) - “Memórias Históricas dos Ilustríssimos Arcebispos, Bispos e Escriptores Portuguezes da Ordem de Nossa Senhora do Carmo [...]”, o qual influenciou outros pesquisadoresreligiosos no Brasil e em Portugal. Em uma parte daquele estudo, frei Sá (1724) baseia-se em documentos oficiais e em sua vivência seiscentista e setecentista na Ordem do Carmo para a escrever sobre a história da Ordem no Brasil colonial. A mais antiga fonte de inspiração em Sá (1724) é uma coletânea de quatro artigos publicados na “Revista O Mensageiro do Carmelo”, do frei Manoel Baranera Serra (1916a; 1916b; 1916c; 1917), com o título “A Ordem de Nossa Senhora do Carmo: a ordem carmelitana no Brasil”. Por sua vez, ou os quatro textos do frei Serra ou o manuscrito de frei Sá (1724) serviram de inspiração, no Brasil, para pelo menos duas obras: do frei André Prat (1941) - “Notas históricas sobre as missões carmelitanas no extremo norte do Brasil: (séculos XVII e XVIII)”; do frei Manoel Wermers (1963) - “A Ordem Carmelita e o Carmo em Portugal”, que dedica muitos capítulos sobre o Carmo no Brasil. Por fim, existe o trabalho de frei Velasco Bayón (2001) - “História da Ordem do Carmo em Portugal”, no qual o autor trabalha não somente o Carmo em Portugal, como também menciona algumas informações sobre o Carmo calçado no Brasil colonial. Para isso, o autor inspira-se no trabalho de Sá (1724) e, consequentemente, em Prat (1941) e em Wermers (1963). Entretanto, Velasco Bayón atualiza as fontes divulgadas pelos autores supracitados, revelando documentos inéditos provenientes do Arquivo Secreto do Vaticano e do Arquivo Geral do Carmo de Roma.

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Estudos Históricos sobre o Carmo no Atual Nordeste Colonial Em relação a estudos acadêmicos, que utilizam fontes primárias para a história dos carmelitas no atual nordeste do Brasil colonial, já existem alguns trabalhos, mas ainda há diversas lacunas. Primeiramente, apontamos o estudo de tese de Honor (2013) - “Universo Cultural Carmelita no além-mar: formação e atuação dos carmelitas reformados nas capitanias do norte do Estado do Brasil (sécs. XVI a XVIII)”. Nessa tese, o autor desenvolve a história de três conventos (Recife, Goiana e Paraíba), analisando a arte sacra daqueles locais. Em segundo lugar, a tese de Araújo (2007) - “Decadência e restauração da ordem Carmelita em Pernambuco (1759-1923)”, na qual a autora levanta os principais motivos para que a ordem do Carmo calçado em Pernambuco tenha entrado em crise ainda no século XVIII, mas principalmente no século XIX. Outro trabalho que expõe fonte primária, porém sem o intuito principal de trabalhar uma construção histórica, por ser do ramo das ciências da informação, é a dissertação de Pedras (2000) “Uma leitura do I Livro de Tombo do Convento do Carmo em Salvador: contribuição à construção histórica da Ordem dos carmelitas na Bahia colonial”. A autora pretende, nesse trabalho, contribuir para que os pesquisadores tenham acesso ao “Primeiro Livro de Tombo do Convento do Carmo da Bahia”, descrevendo-o e organizando-o em verbetes. Há também um livro produzido por Queiroz (1994) - “Os carmelitas na história das Alagoas”, no qual o historiador mostra a atuação setecentista dos carmelitas calçados na antiga vila das Alagoas do Sul, com base em documentos do Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (AIHGAL).

1087 ISSN 2358-4912 Finalmente, há o trabalho de Pereira da Costa (1976) - “A ordem carmelitana em Pernambuco”, produzido para sua obra monumental “Anais Pernambucanos”, e, posteriormente, publicada pelo Arquivo Público Estadual de Pernambuco (APE). É um trabalho sobre os conventos do Carmo em Pernambuco no período colonial, com transcrições parciais de documentos. Na obra, o autor não menciona a procedência das fontes documentais, mas, na primeira metade do século XX, sabemos que Pereira da Costa pesquisou no Arquivo do Carmo do convento de Recife, sob a supervisão do já mencionado frei André Prat.

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Estudos sobre a Ordem Terceira do Carmo no Brasil Colonial Alguns autores enfocam o estudo da história da arte ou arquitetura da Ordem Terceira do Carmo3349 no Brasil colonial, com base em fontes primárias, e, indiretamente, revelam a atuação dos carmelitas calçados. Primeiramente, destacamos quatro trabalhos sobre Ordem Terceira e conventos do Carmo na Bahia colonial. O primeiro, de Calderón (1979) – “O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira”, o qual contempla os aspectos socioculturais e formais da arquitetura daquele convento no período colonial, mas prioriza a igreja da Ordem Terceira. O segundo trabalho, de Flexor (2008) – “O Conjunto do Carmo de Cachoeira”, destaca a história da Ordem Terceira. No terceiro livro, de Ott (1989) – “O Carmo e a Ordem 3ª do Carmo da cidade do Salvador”, o autor divulga fontes primárias do Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Salvador (AOTCS), nas quais podemos encontrar a atuação dos frades carmelitas naquela cidade colonial. No quarto estudo, também de Ott (1998) - “Atividade artística da Ordem 3ª do Carmo da Cidade do Salvador e de Cachoeira”, o autor analisa as ordens terceiras, mas, com base nos documentos do AOTCS, também aponta a atuação dos carmelitas calçados do convento de Salvador. Há também pesquisa de nossa autoria (ORAZEM, 2006; 2008; 2009), que gerou três trabalhos acadêmicos sobre os aspectos históricos, artísticos e arquitetônicos da Ordem Terceira do Carmo em Sergipe e na Bahia, nos quais encontramos a atuação dos frades carmelitas. O primeiro é uma monografia (2006) - “Arte colonial sergipana: análise dos elementos artísticos das igrejas da Ordem Terceira e Conventual do Carmo em São Cristóvão/SE”. O segundo é uma monografia (2008) intitulada “A história da vida de Santa Teresa D’Ávila. Leitura iconográfica das pinturas de teto da sacristia da igreja da Ordem Terceira do Carmo. São Cristóvão, Sergipe”; e o terceiro é uma dissertação de mestrado (2009) - “A representação de Santa Teresa D’Ávila nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira/Bahia e São Cristóvão/Sergipe”. Essa série de trabalhos também incentivou o nosso presente estudo de tese de doutoramento sobre os carmelitas calçados no atual nordeste colonial. Estudos sobre os Conventos dos Carmelitas Calçados Ainda, há trabalhos que abordam a arquitetura dos carmelitas calçados no Brasil colonial. Primeiramente, existem estudos que pesquisam, de forma pontual, um convento carmelita calçado. Nesse caso, há a tese de Souza (2007), na área de arqueologia, “As duas faces de um mesmo monumento: a igreja e o convento de Santo Antônio do Carmo em Olinda, Pernambuco”. Nele, o autor reconstitui a história daquele convento, utilizando-se da pesquisa já mencionada de Pereira da Costa (1976), além disso, baseia-se em estudos arqueológicos feitos pelo IPHAN e na iconografia antiga do convento de Olinda. Em segundo lugar, existem pesquisas que consideramos estudos clássicos sobre arquitetura e arte colonial no Brasil, nas quais identificamos dois grupos: de autores que realizam uma compilação de dados sobre edifícios religiosos, com tendência a classificá-los no estilo barroco e rococó; e outros autores que realizam estudos sobre a arte/arquitetura religiosa colonial, traçando o perfil da tipologia arquitetônica das ordens religiosas. 3349

A Ordem Terceira do Carmo é uma irmandade laica que, no período colonial, era formada por uma elite local de devotos a Nossa Senhora do Carmo, que tinham suas igrejas ao lado das igrejas conventuais do Carmo.

1088 ISSN 2358-4912 No primeiro caso, identificamos o trabalho de Bazin (1983) – “A arquitetura religiosa barroca no Brasil”. Ainda, há o estudo de Mattoso (2011) - “Património de origem portuguesa no Mundo”, no qual um dos volumes contempla a América do Sul, enfatizando o Brasil. Ambos os trabalhos mencionam, de forma pontual, alguns edifícios dos carmelitas. No segundo caso, há o trabalho de Zanini (1983) - “História geral da arte no Brasil”. Nele, o autor faz uma análise, considerada por nós equivocada, quando, em um capítulo dedicado à arquitetura franciscana, afirma que essa influenciou diretamente a produção da arquitetura carmelita, tornando-a dependente daquela. Esse fato chama-nos a atenção, porque não há ligação direta da ordem carmelita com a ordem franciscana. O trabalho de Tirapelli e Pfeiffer (2001) – “As mais belas igrejas do Brasil” é um dos poucos onde a arquitetura carmelita é analisada de forma independente, sendo contemplada com um capítulo específico. Há ainda o estudo de Valladares (1983) intitulado “Nordeste histórico e monumental”, onde o autor trabalha os aspectos artísticos e arquitetônicos das igrejas do atual nordeste do Brasil, dividindo-as por estados, sendo que, em cada região, o autor separa os templos de acordo com a ordem religiosa. Sendo assim, Valladares aponta imagens de templos carmelitas da Bahia, Sergipe, Pernambuco e Paraíba. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Considerações Finais Em linhas gerais, há mais estudos produzidos fora da academia sobre os carmelitas, mas a maioria contempla mais a história da origem da Ordem na Palestina e do desenvolvimento do Carmo na Europa. Nesse sentido, ainda é insuficiente a quantidade de trabalhos de pesquisadores-religiosos sobre o Carmo no Brasil, porque a maioria apenas indica a presença dos carmelitas calçados no Brasil colonial em seus estudos. Finalmente, quando os pesquisadores-religiosos trabalham os carmelitas no Brasil colonial, atentam-se mais ao aspecto religioso, explorando pouco as fontes, as quais sabemos que atualmente são acessíveis aos pesquisadores em diversos arquivos do Carmo no Brasil. Na maioria dos trabalhos produzidos em meio acadêmico, há poucos estudos sobre os carmelitas descalços, mas eles atuaram somente em duas cidades no Brasil colonial. Já sobre os carmelitas calçados no Brasil colonial, a maioria dos trabalhos contempla a história da arte e da arquitetura de suas igrejas e conventos no atual nordeste do Brasil. Notamos que há poucas pesquisas acadêmicas sobre a história urbana ou até mesmo sobre a história social e econômica dos carmelitas no Brasil colonial. Por fim, percebemos que, em geral, os estudos sobre os carmelitas no Brasil colonial são embrionários, sendo assim, no meio acadêmico, carecemos ainda de estudos mais abrangentes. Referências ARAÚJO, M. das G. A. de. Decadência e restauração da ordem Carmelita em Pernambuco (1759-1923). Recife: UFPE, 2007. BAZIN, G. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. 3v. BOAGA, E. Como pedras vivas...: para ler a história e a vida do Carmelo. Roma: Litografia Príncipe, 1989. BURY, J. Arquitetura e arte no Brasil colonial. São Paulo: Nobel, 2006. CALDERÓN, V. O convento e a ordem 3ª do Carmo de Cachoeira. Salvador: UFBA, 1976. CARVALHO, A. M. F. M. de.; RIBEIRO, R. M. C.; SILVA, C. A. T. Memória da arte franciscana na cidade do Rio de Janeiro [...]. Rio de Janeiro: Artway, 2011. CAVALCANTI FILHO, I. The Franciscan Convents of North-East Brazil, 1585-1822: function and design in a Colonial context. Londres: Oxford Brookes University, 2009. COSTA, A. de L. R. da. Salvador, século XVIII: o papel da Ordem religiosa dos beneditinos no processo de crescimento urbano. Barcelona: Universidade de Catalunya, 2003. COSTA, L. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. In: Revista do SPHAN, nº 5, Rio de Janeiro, 1941. ESTEVE, H. M.; GUARCH, J. M. La Ordem del Carmen. Madri: Editorial Escelicer, 1950. FLEXOR. M. H. M. O.; FRAGOSO, H. A Igreja e o convento de São Francisco da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2009. FLEXOR, M. H. (org.). O conjunto do Carmo de Cachoeira. Brasília-DF: Iphan-Monumenta, 2007.

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A SEGUNDA ESCOLÁSTICA NO MODO DE GOVERNAR DA MONARQUIA ESPANHOLA NAS ÍNDIAS: FRANCISCO DE VITORIA E AS LEYES NUEVAS EM MEADOS DO SÉCULO XVI Rodrigo Henrique Ferreira da Silva∗ A chegada dos europeus à América em 1492, através da frota naval liderada por Cristóvão Colombo, causou grande impacto cultural na Europa ocidental cristã. Este feito fez com que diversos membros de cortes, missionários, soldados, e outros, tentassem compreender os novos territórios descobertos bem como as populações indígenas, seres nunca vistos antes, com costumes e crenças considerados “bárbaros” pelos europeus. Do ponto de vista político e jurídico, algumas medidas foram tomadas para solucionar os questionamentos das terras encontradas. Logo um ano depois, em 1493, o Papa Alexandre VI concedeu as “Bulas Papais” (Bula Inter Coetera) aos Reis Católicos da Espanha, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, com a intenção de doá-las e dar-lhes o direito de descobrir e tomar posse dos novos locais. Desde os primeiros momentos da colonização, a Espanha adotou o sistema de encomienda como instituição jurídica. No entender de Miguel Suárez Romero, a encomienda era uma relação tripartida entre a Coroa, os encomenderos e os índios, em que os reis de Castela concediam, por lei, aos conquistadores, um número determinado de índios para que realizem certos serviços gratuitos em troca das funções atribuídas pela Bula pontifícia à pessoa do Rei; ou seja, educar, cristianizar, civilizar e desenvolver socialmente os indígenas (SUÁREZ ROMERO, 2004, p. 256). O objetivo de tutelar os povos indígenas pelas encomiendas logo se transformou em abusos violentos pelos encomenderos, desejosos apenas pela extração dos metais preciosos do ouro e da prata. Para Suárez Romero, o sistema de encomiendas nada mais era do que uma “escravidão encoberta” (SUÁREZ ROMERO, 2004, p. 255). E no caso dos nativos não aceitarem este regime de trabalho, era permitido o uso da força como meio para alcançar a grande finalidade: a predicação da fé cristã aos povos pagãos. Este modelo jurídico tradicional3350 adotado pela Espanha recebeu duras críticas no final do ano de 1511, pelo padre dominicano Montesinos, que estava rodeado de senhores castelhanos e encomenderos em torno de sua igreja. O frade pregou um sermão que foi considerado, por Rafael Ruiz, divisor de águas e o ponto de partida para a reformulação do medievalismo jurídico: Con qué derecho, con qué justicia tenéis en tan cruel y horrible esclavitud a estos indios? Con qué autoridad habéis hecho tan detestables guerras a estas gentes que estaban de manera mansa y pacífica en sus tierras, donde habéis matado y destruido un número infinito de ellos? Cómo están tan oprimidos y cansados, sin comida y sin cura de sus enfermedades? Acaso no son hombres? Acaso no tienen alma racional? Por qué no entendéis esto? Cómo no os dais cuenta? … Tened en cuenta que en el estado en que os encontráis no os poderéis salvar más que si fuerais moros y turcos a los que les falta y no quieren la fe de Cristo (apud VENANCIO D. CARRO, 1962, p. 35).

Na passagem, percebe-se que Montesinos condena a prática da escravidão, da guerra, e interroga sobre uma questão importante da época para as consciências dos europeus: a dúvida se estes seres “estranhos” eram humanos. Após este fato inusitado, e de toda a discussão que ele gerou na Espanha, foi promulgada a “Lei de Burgos” em 1512, o primeiro conjunto de leis sobre a colonização na América. A partir desta “Carta de Princípios”, os indígenas foram reconhecidos como seres humanos, racionais e livres; o texto também trouxe novas jurisdições para o melhor tratamento dos índios. Mas as



Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História – UNESP. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 3350 O dito modelo jurídico tradicional foi utilizado na Europa no período medieval. Com a nova realidade americana, este sistema começa a ser questionado. Uma análise mais detalhada será feita logo adiante.

1091 ISSN 2358-4912 encomiendas foram mantidas, pois o Rei Fernando não estava disposto a perder os serviços e trabalhos gratuitos que os nativos prestavam aos encomenderos e à Coroa. Após Montesinos ter relatado seu sermão, os anos posteriores acabam sendo de fortes tensões entre os encomenderos e os dominicanos. A desobediência dos encomenderos às leis e a manutenção da violência aos indígenas, continuou recebendo acusações dos religiosos, o que fez o padre Las Casas expor toda a situação perante o Papa Paulo III. Em 1537, o Papa finalmente reconhece a humanidade e liberdade dos índios, pela Bula Sublimis Deus:

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Nós, que embora indignos, exercemos na terra o poder de Nosso Senhor, e lutamos por todos os meios para trazer o rebanho perdido ao redil que nos foi encomendado, consideramos, porém, que os índios são verdadeiros homens e que não só são capazes de entender a fé católica, mas também, de acordo com nossas informações, estão desejosos de recebê-la. Desejando prover remédios seguros para esses males, definimos e declaramos por estas nossas cartas, ou por qualquer tradução fiel, escrita perante tabelião público, selada com o selo de qualquer autoridade eclesiástica, às quais lhes será dado o mesmo crédito que às originais, que, não obstante o que se tenha dito ou se possa dizer em contrário, os tais índios e todos os que mais tarde sejam descobertos pelos cristãos, não podem ser privados da sua liberdade por nenhum meio, nem das suas propriedades, mesmo que não estejam na fé de Jesus Cristo; e poderão livre e legitimamente gozar da sua liberdade e das suas propriedades, e não serão escravos, e tudo quanto se fizer em contrário, será nulo e de nenhum efeito (apud HANKE, 1988, p. 111).

Além da Bula Papal, novas leis foram estabelecidas, como as “Leis de Saragoça” em 1518; as “Ordenanças” sobre o bom tratamento dos índios, de 1526; e as Leyes Nuevas, de 15423351. Como já dito anteriormente, desde os primeiros contatos, a Espanha manteve os modelos jurídicos medievais para tratar as questões dos territórios e das populações americanas. Ruiz mostra como os sistemas jurídico, filosófico, político e religioso, eram regidos pelo corpo da “Cristandade” na Europa ocidental a partir do século XI. Mesmo assim, era um período de confronto ideológico entre o poder civil (imperial) e o poder eclesiástico (papal). Uma tentativa de solução a essa polarização entre os poderes foi pensada pela Escolástica tomista. Esta corrente de pensamento separa os campos seculares e eclesiásticos, o que faz com que um seja independente do outro e superiores dentro dos limites das suas competências. Ruiz aponta que, graças à colocação de um dominicano do século XIV, João de Paris, o Papa teria um “poder indireto” nas relações temporais: Se o homem estivesse ordenado somente a um fim natural seria suficiente o poder civil; mas como se ordena também a um fim sobrenatural, inatingível pelas próprias forças e meios naturais, é necessário uma autoridade superior (apud VENANCIO D. CARRO, 1962, p. 226).

A interferência “indireta” do poder eclesiástico no temporal diria respeito apenas às questões espirituais dentro da ordem civil; mais uma ideia moral do que de domínio, para não prejudicar os fins espirituais do homem. Outro ponto importante da teoria escolástica é a formação de uma sociedade política e a relação da população com seu soberano. Antes de tudo, é preciso esclarecer que a Escolástica tem como um de seus principais pensadores Tomás de Aquino. O teólogo desenvolveu a doutrina com base nos argumentos do filósofo Aristóteles dentro do contexto de uma vida política cristã. Aquino tentou reconciliar a concepção aristotélica da autarquia da vida cívica e as preocupações mais voltadas para o outro mundo do cristianismo agostiniano (SKINNER, 1999, p. 71). Para Aristóteles, a pólis (cidade-estado grega) era uma criação puramente humana e destinada a atender fins estritamente mundanos. Logo, os cidadãos possuem o poder de eleger um soberano para que governe pelo bem comum. Caso ele se torne um tirano, o povo pode depor o príncipe do governo. Já Santo Agostinho define a sociedade política como uma ordem determinada por Deus e imposta aos homens para remediar seus pecados.

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Para obter mais informações sobre estas leis, cf. RUIZ, 2002. No caso da última, ainda será discutida nesse texto.

1092 ISSN 2358-4912 Com a intenção de explicar melhor a teoria da sociedade política em contexto de Escolástica, e depois é seguida pelos tomistas, Aquino apresenta o universo regido por uma hierarquia de leis:

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Em primeiro lugar colocaram a lei eterna pela qual age o próprio Deus. A seguir, vem a lei divina, que Deus revela diretamente aos homens nas Escrituras e sobre a qual a Igreja foi fundada. Segue-se a lei da natureza, que Deus “implanta” nos homens, a fim de que sejam capazes de compreender Seus desígnios e intenções para o mundo. E por último aparece a lei humana positiva, que os homens criam e promulgam para si próprios com o objetivo de governar as repúblicas que estabelecem. A essência da teoria da lei natural desenvolvida pelos tomistas pode, em consequência, ser expressa em termos das relações por eles identificadas entre a vontade divina, a lei da natureza e as leis humanas positivas promulgadas em cada república (SKINNER, 1999, p. 426).

Das leis apresentadas na passagem acima, o foco do trabalho está nas duas últimas; isto é, a lei natural e a lei positiva. A primeira, como o próprio nome diz, refere-se às características da natureza do ser humano, sendo a razão e a liberdade as principais. Todo homem no estado de natureza é livre e igual aos outros. Mas, de acordo com a tese aristotélica de que o homem é um animal social por natureza, e para os tomistas de que é inerente à natureza humana a vida social e comunitária, é impossível o homem subsistir sozinho. Por isso, por necessidade natural, o ser humano abre mão de sua liberdade plena para formar uma sociedade política, votando as leis positivas como mecanismo regulador de suas vidas para garantir os ditames das leis da natureza (SKINNER, 1999, p. 437). Logo, o homem utiliza sua razão para criar os alicerces morais da vida política. Em seguida, a sociedade entra em um consenso e elege um governante para zelar pelas leis e garantir os direitos naturais. Toda essa doutrina tomista ressurge no século XVI na Península Ibérica como uma teoria do Estado fundamentada no direito natural e em resposta aos modos de governar estabelecidos por Maquiavel3352 e pelos Protestantes. Ambos rejeitavam, ainda que por motivos diferentes, a ideia da lei natural enquanto base moral adequada para a vida política. O resgate do tomismo no século XVI fica denominado como “Escolástica Tardia” ou “Segunda Escolástica”. Para este trabalho, focaremos na “Segunda Escolástica Espanhola”. O movimento teria sido criado por dominicanos na Universidade de Salamanca, especialmente por Francisco de Vitoria, que se apegou ao pensamento de Tomás de Aquino. Vitoria nasceu em 1482, em Burgos, e foi estudar na Universidade de Paris3353 nos anos de 1510 após ingressar na ordem dominicana. Já na França, estudou a “Suma Teológica” de Aquino, tornando-se grande comentador do filósofo. Vitoria retorna à Espanha em 1523 e torna-se professor de Teologia da Universidade de Salamanca, em 1526, onde expôs as doutrinas tomistas a seus alunos. De acordo com Ruiz, Vitoria não deixou nada escrito; as suas “Relecciones Teologicas” apoia-se em análises literárias e crítica histórica das anotações escolares dos seus alunos (RUIZ, 2002, p. 61). Francisco de Vitoria teve participação fundamental na resolução dos problemas que envolviam as Índias Ocidentais. Ruiz o exalta da seguinte maneira: Perante a descoberta do “Novo Mundo”, o “Velho Mundo” europeu não encontrava rapidamente a resposta para certas questões. Na ordem jurídica, por exemplo, iniciou-se o encerramento da ordem medieval e a criação de uma nova concepção jurídica. A base jurídico-religiosa medieval que se apoiava numa concepção do homem como um ser com dois grandes deveres, os deveres do serviço divino e os deveres próprios da sua inserção na sociedade civil, de onde nasciam os dois poderes, o imperial e o papal, complementares e suficientes, desaparecia e ficava sem fundamentação alguma diante das perguntas que inquietavam todas as consciências da época: serão homens os índios? Terão alma? O poder do Imperador ou do Papa estender-se-á até essas novas terras? A resposta a essas questões práticas será dada por Vitoria com exatidão, criando uma nova ordem jurídica adequada para a nova ordem do mundo descoberto (RUIZ, 2002, p. 58). 3352

Senellart aponta como Maquiavel rejeitava a concepção tomista de governo, pois o príncipe deve defender seus interesses pessoais e garantir sua segurança no centro do dispositivo do Estado, e não adotar a retórica do “bem comum” e “interesse público”. De acordo com Senellart, Maquiavel teria considerado esta arte de governar – centrada na virtude do príncipe e orientada para o bem comum – como utópica (SENELLART, 2006, p. 20). 3353 Para Skinner, Paris era um dos maiores centros de excelência nos estudos sobre filosofia e teologia da Europa ocidental, e tornou-se palco do movimento escolástico.

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ISSN 2358-4912 Percebe-se que a “novidade” do Novo Mundo faz com que Vitoria criticasse os modelos jurídicos medievais, que foram criados para resolver questões europeias, e não faziam mais sentido para o novo território e as populações encontradas. Portanto, Vitoria “cria” novas soluções baseadas no direito natural tomista. Ao ficar diante do impasse criado pelas duas correntes extremas medievais e as tentativas de solução por parte dos tomistas, Vitoria desenvolve algumas bases e fundamentos filosóficos e jurídicos para, finalmente, propor suas conclusões. Um deles seria a definitiva distinção entre o poder civil e o eclesiástico, em que as duas ordens constituem duas sociedades perfeitas e soberanas, com fins próprios; mas, o dominicano segue a ideia da intervenção “indireta” do Papa, no caso dos indivíduos ou do príncipe atentarem contra os direitos derivados do fim espiritual, por exemplo, se obrigarem os fiéis a adorar ídolos ou se os forçarem a renunciar à sua fé. Diante da questão das Índias, o Papa não teria poder sobre os infiéis, pois, seu poder sendo espiritual, só pode ser exercido sobre os fiéis, com exceção de alguma injúria contra a fé católica. “[...] el Papa, sin embargo, carece de poder sobre los infieles, no los puede excomulgar ni prohibirles el matrimonio dentro de los grados permitidos por el derecho divino”. E “si los bárbaros no quisieren reconocer al Papa dominio alguno, no por esto se les puede hacer la guerra ni les pueden ser ocupados sus bienes, y claro está, porque no hay tal supuesto dominio” (VITORIA, 1917, T1, p. 42-43 e 45). Portanto, o Papa não tinha nenhum tipo de poder com relação aos índios do Novo Mundo, sempre com a exceção de qualquer injúria cometida contra o direito natural. Os instrumentos jurídicos medievais adotados pela Coroa espanhola para defender a Conquista das Índias, foram questionados por Francisco de Vitoria logo a partir da Bula Pontifícia Inter Coetera, de 1493. Segundo Luis Weckmann: Las Bulas Alejandrinas de Partición, de 1493, constituyen una de las últimas aplicaciones prácticas de una vieja y extraña teoría jurídica, elaborada explícitamente en la corte pontificia a fines del siglo XI, enunciada por primera vez en el año 1091 por el Papa Urbano II [pero que quizá traza su paternidad a Gregorio VII] y conforme a la cual todas las islas pertenecen a la especial jurisdicción de San Pedro y de sus sucesores, los pontífices romanos, quienes pueden libremente disponer de ellas. Esta teoría… bajo el nombre de doctrina omni-insular es, sin duda alguna, una de las elaboraciones más originales y curiosas del derecho público medieval (WECKMANN, 1992, p. 24)

(grifos meus). Percebe-se, portanto, que, entre as correntes medievais do poder eclesiástico e secular, a Espanha ficou do lado das ideias papistas, em que o Papa é a única autoridade de jurisdição universal e participaria diretamente do poder temporal. Através da Bula, o Papa doa as terras descobertas e por descobrir à Coroa espanhola, lhe outorgando jurisdição absoluta; encarrega-a da missão espiritual de evangelizar o Novo Mundo; e lhe dá a exclusividade desta tarefa para que não haja desavenças com outros Estados. Beatriz Simán alerta que, além das Bulas serem documentos de tradição medieval, não estava nem na mente do Papa e nem na mente de Colombo que as terras encontradas se tratassem de um continente; ainda entendia-se o local como ilhas (MALDONADO SIMÁN, 2006, p. 683). Logo, ao analisar a citação acima de Weckmann, todas as ilhas do mundo pertenciam, juridicamente, a São Pedro, e, desta maneira, o Papa teria autoridade sobre as terras americanas. Outro instrumento jurídico, derivado das designações da Bula Papal, era o Requerimiento de los Conquistadores, que deveria ser lido aos índios. Ruiz aponta alguns itens: [...] (a) Jesus Cristo tem o domínio universal do mundo e, consequentemente, seu vigário, o Papa, é o senhor do universo; (b) o Papa fez doação das terras dos índios aos Reis da Espanha, para facilitar a sua evangelização; (c) os povos que aceitaram esse domínio estão sendo bem tratados e prosperando; (d) convém que os índios que estão sendo “requeridos”, também aceitem a soberania dos Reis da Espanha, pois, caso contrário, haverá guerra; (e) a guerra será justa e os únicos culpados serão os próprios índios, que não aceitaram a submissão aos Reis espanhóis (RUIZ,

2002, p. 77).

1094 ISSN 2358-4912 E, por fim, o quadro institucional era completado pelo documento jurídico da encomienda, que criava a obrigação para os índios de prestar serviços e tributos, e em troca, o índio era instruído nos ensinamentos da fé cristã. “A Vós, N, ser-vos-ão confiados [encomendados] (...) índios junto com o cacique N, para vos servirem em vossas empresas e minas, a fim de que possais instruí-los nas verdades da nossa santa fé católica” (HOFFNER, 1977, p. 168). Para pôr em prática seu novo posicionamento jurídico, Vitoria formulou em sua crônica sete títulos considerados por ele “ilegítimos” sobre a ação da Espanha na América; e, em seguida, escreve outros sete títulos “legítimos” que justificariam a presença espanhola em terras americanas3354. Com a intenção de evitar equívocos, o autor José Luis Fernández alerta que Vitoria procura causas para a expansão da Cristandade e a participação dos espanhóis, pois sua crítica é quanto aos motivos e métodos admitidos pela Coroa, e não contra estes objetivos (FERNÁNDEZ, 2009, p. 48). A luta de Vitoria na defesa dos direitos indígenas, é que, após as Conquistas, os nativos têm a liberdade de eleger livremente sua forma de governo, se a maioria gostaria de ter como seu soberano o Rei da Espanha ou qualquer outro de sua escolha. Além da ação catequética, na qual deveria ser de forma pacífica. Os religiosos espanhóis apenas teriam o direito da liberdade de predicar, mas não poderiam força-los a aceitar a fé cristã, e nem fazer guerra no caso da resposta negativa, pois a sociedade política não tem como base a fé, mas o direito natural. Como líder da Escola de Salamanca, Vitoria, com todas as suas ideias desenvolvidas, finalmente propõe seu projeto político para as colonizações espanholas baseado em sua “Segunda Escolástica”. Suas teses são postas em prática nas Leyes Nuevas de 1542, o que justifica a problemática central deste trabalho: a apropriação do modo de governar escolástico espanhol nas Leyes Nuevas. Elaboradas em Valladolid e promulgadas a 20 de novembro de 1542, em Barcelona, este corpo de leis representa evoluções na legislação indígena castelhana no século XVI. Logo no início, é apontado o objetivo geral e principal:

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Sepades que Nos habiendo sido informados de la necesidad que había de proveer y ordenar algunas cosas que convenían a la buena gobernación de las nuestras Indias, y buen tratamiento de los naturales dellas, […] como vasallos nuestros y personas libres como lo son, […] y administración de nuestra justicia, […] ansí en lo tocante al servicio de Dios nuestro Señor y aumento de su santa fe católica (LEYES Y ORDENANZAS).

A passagem mostra como fica estruturada a sociedade política proposta por Vitoria: a partir de agora, os índios seriam vassalos diretos da Coroa espanhola; ou seja, teriam o Rei da Espanha como soberano que iria exercer o “bom governo” a seus súditos. As Leyes também pregavam o fim das encomiendas e escravidão dos índios por guerra. Para que todos os objetivos fossem cumpridos, novas Audiências e Conselhos foram criados na Nova Espanha para que os presidentes, ouvidores e vice-reis informassem à Coroa sobre as tarefas realizadas3355. Pode-se perguntar o porquê dos indígenas tornarem-se vassalos diretos da Coroa. A maioria teria entrado em um consenso para eleger o Rei espanhol? Ou eles foram forçados a isso? Em um momento de vinte anos pós-conquista da Nova Espanha, muitos indígenas já haviam sido catequizados. Uma hipótese poderia ser o que Vitoria alega em seu Quarto título “legítimo”: Si buena parte de los bárbaros se hubiesen convertido al Cristianismo, ya violentados, ya espontáneamente, mientras sean verdaderos cristianos, puede el Papa darles, con causa justa, lo mismo a petición de ellos que voluntariamente, un príncipe cristiano y quitarles los señores paganos

(VITORIA, 1917, T1, p. 81). Não devemos esquecer de que Vitoria é um padre dominicano, e que, por isso, é adepto à predicação de todas as populações à fé cristã; e por esse motivo, defende a necessidade da evangelização, mas sempre de forma pacífica. Por mais que Vitoria tenha proposto novas jurisdições, combatendo ideais medievais consolidados, em alguns pensamentos manteve a tradição. Neste caso, 3354

Para saber de forma detalhada cada título do dominicano, cf. VITORIA, 1917, T1. Para analisar todo o corpo das “Leyes Nuevas”, cf. “Leyes y Ordenanzas”. http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/06922752100647273089079/p0000026.htm#66.

3355

1095 ISSN 2358-4912 restringiu parte da liberdade indígena, devido à “necessidade” de expansão do cristianismo, fim último do ser humano. O modo de governar escolástico espanhol apresentado nas Leyes Nuevas está claramente apropriado do possível oitavo título legítimo de Vitoria:

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Otro título podría, no precisamente traerse, sino ponerse a estudio y parecer a algunos legitimo. Del cual no me atrevo a afirmar nada; pero tampoco me atrevo a condenarlo del todo. Y es éste: esos bárbaros, aun cuando, […] no sean del todo amentes, poco distan, no obstante, de los amentes; y así parece que no son idóneos para constituir y administrar una República legitima, aun dentro de los términos humanos y civiles; por lo cual no tienen leyes convenientes ni magistrados; ni siquiera son idóneos para gobernar la familia; hasta carecen de letras y de artes, no sólo liberales sino mecánicas, de diligente agricultura, de artesanos y de otras muchas comodidades y aun necesidades de la vida humana. Alguien, pues, pudiera decir que para utilidad de los bárbaros pueden los príncipes españoles encargarse de la administración de ellos y poner al frente de ellos por ciudades prefectos y gobernadores, y aun darles nuevos señores, mientras constase que les convenía así (VITORIA,

1917, T1, p. 85). Além da justificativa do “quarto título” apresentado, era necessário que os índios fossem súditos da coroa espanhola pela sua incapacidade e inferioridade jurídica, no qual eram rudes, miseráveis e neófitos, em que possuíam lento entendimento, necessitavam de proteção especial e eram aprendizes na fé católica. Percebe-se claramente como o dominicano teve participação fundamental na formulação das leis de 1542, e suas teses merecem ser estudadas com mais profundidade para entendermos não só o resgate das ideias escolásticas e as intenções da elaboração das Leyes, como também seus efeitos nas diferentes regiões do império ultramarino espanhol. Referências CARRO, Venancio D. La “Communitas Orbis” y las rutas del derecho internacional según Francisco de Vitoria. Palencia: Imprenta Moderna, 1962. FERNÁNDEZ, José Luis S. Sobre el origen de las declaraciones de derechos humanos. México: UNAM, 2009. HANKE, Lewis. La lucha por la justicia en la conquista de América. Tradução Ramón Iglesias. Reedição da edição princeps. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1944; Madri: Istmo, 1988. HOFFNER, Joseph. A ética colonial espanhola do século de ouro: Cristianismo e dignidade humana. Tradução José Wisniewski Filho. Rio de Janeiro: Presença, 1977. LEYES y ordenanzas: nuevamente hechas por S. M. para la gobernación de las indias, y buen tratamiento y conservación de los indios, 1999. Disponível em: < http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/06922752100647273089079/p0000026.htm#66>. Acesso em: 25 jul. 2014. MALDONADO SIMÁN, Beatriz. La guerra justa de Francisco de Vitoria. Anuario Mexicano de Derecho Internacional, México, v. VI, p. 679-701, 2006. RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos: A evolução da legislação indígena castelhana no século XVI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. SENELLART, Michel. As artes de governar: Do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. SUÁREZ ROMERO, Miguel Á. La situación jurídica del índio durante la conquista española en América: Una visión de la incipiente doctrina y legislación de la época tendente al reconocimiento de derechos humanos. Revista de la Facultad de Derecho de México, México, n. 242, p. 229-260, 2004. VITORIA, Francisco de. Relecciones teológicas. Madrid: Librería Religiosa Hernández, 1917, tomo I. PDF. WECKMANN, Luis. Constantino el Grande y Cristóbal Colón: Estudios de la supremacía papal sobre islas, 1091-1493. México: FCE, 1992.

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A POLITIZAÇÃO DA SUBSISTÊNCIA EM FINS DO SÉCULO XVIII – FRANÇA E BAHIA Rodrigo Oliveira Fonseca3356 Introdução A 12 de agosto de 1798, Salvador amanheceu com folhetos afixados em locais de grande circulação. Convocavam o povo para um levante revolucionário em prol de uma república bahinense onde todos seriam iguais. Semanas antes, um papel, substituindo um edital da Câmara, fora afixado à porta de um açougue: tabelava o preço da carne e carimbava: a Câmara é inútil. Os signatários, Bahinenses Republicanos, também enunciadores dos papéis de agosto, assim prenunciavam o caráter popular de seu programa, também manifesto na recente destruição do patíbulo, justificada por folhetos que não chegaram aos olhos dos nossos dias. O social irrompia com força no político, fazendo ver o que não cabia ser visto, fazendo ouvir um discurso onde antes o que havia era o barulho das barrigas, em apelos e arruaças. Ocorria em Salvador, ocorria na França revolucionária, onde o povo parisiense faminto de pão apropriava-se e distorcia a linguagem dos tribunos buscando fazer com que suas demandas concretas fossem formuladas e ouvidas com legitimidade. Abordaremos um estudo sobre esse fenômeno interior à Revolução Francesa e passaremos depois à discussão da sua ocorrência na capital baiana em fins do XVIII, quando a escassez e a carestia de produtos essenciais da subsistência dos baianos se tornam dramáticas, sobretudo a partir de 1787 (MATTOSO, 2004 [1990], p. 319; BARICKMAN, 2003). A politização da subsistência na França revolucionária: o estudo de Guilhaumou e Maldidier no âmbito do discurso A subsistência é a maior questão social na França do século XVIII, e, consequentemente, configura novo objeto de saber administrativo desde, pelo menos, a década de 1770. É tema das relações entre os grupos sociais, cumpre papel fundamental na formação da opinião pública, e se encontra sob uma variedade de registros arquivísticos: dos gritos do povo amotinado, aos documentos judiciais, dos tratados de economia política, às correspondências, obras literárias e debates na assembléia. O historiador Jacques Guilhaumou e a linguista Denise Maldidier (1994 [1986]) realizam uma investigação de natureza discursiva, pautada na materialidade histórica da língua sob dois dispositivos de arquivo: 1) a emergência do termo subsistência e seus correlatos, enquanto tema daquela formação social e conjuntura (num enfoque distinto, por exemplo, ao da história econômica, que o estudará prioritariamente enquanto questão, como no trabalho de alguns dos historiadores que mobilizaremos mais abaixo, Bert Barickman, Katia Mattoso e Avanete Sousa); e 2) a circulação da expressão pão durante os confrontos de rua, em petições, etc. A hipótese da referida investigação apontava para a associação entre pão e os direitos fundamentais do homem, produzindo assim a introdução do social no campo político – o que, complementamos, não se dá tranquilamente e nem de uma vez por todas, produzindo uma tensão e, em última instância, uma reconfiguração da prática política. A descoberta no arquivo da conjunção Pão e liberdade não revelou uma variante do ato de demanda por pão, mas uma ruptura. Na conjuntura revolucionária, estabelecer esta relação era posicionar-se frontalmente contra o sistema repressivo preconizado pela burguesia politicamente moderada, que associava a lei marcial à lei de livre circulação de grãos, ratificando a divisão entre as classes dirigentes e as massas populares. Tal demanda popular era vista pelos novos dirigentes como um complô aristocrático contra a revolução, de um modo geral análogo ao que identificamos hoje em torno das críticas feitas à esquerda, que muitos governistas tentam carimbar enquanto “jogo da direita”. 3356

UNEB/Fapesb. Email: [email protected]

1097 ISSN 2358-4912 De modo mais amplo, a coordenação pão e x revelou-se parte de uma estratégia discursiva a promover a conjunção entre o social e o político. Seu valor semântico é o de uma globalização/totalização. A estrutura da coordenação constrói a unidade de um novo referente responsável por efeitos de sentido próprios. A associação de termos abstratos como liberdade (ou político-jurídicos como constituição, decreto) ao termo concreto pão, confere a este último um novo estatuto: de grito do povo, de expressão de necessidades imediatas, ele torna-se, por metaforização parcial, um símbolo que se inscreve nos limites do campo político. Foram duas as principais configurações discursivas que apareceram dominadas pela coordenação pão e x: “pão e liberdade” (de 1789 em diante); e “pão e ferro”, pão e armas (em 1793). Falava-se em ambos os casos do mesmo pão? Pão e ferro atestou uma identidade apenas formal com pão e liberdade, dado que neste caso não se efetivava o valor semântico de globalização pão e x. Guilhaumou e Maldidier perceberam uma passagem da coordenação binária, em pão e liberdade, a uma estrutura de justaposição em pão e ferro. Das coordenações e relações assimétricas da primeira configuração (um termo concreto e um termo abstrato), temos na segunda configuração a justaposição concreto-concreto, com um efeito de simetria produzido pela coordenação. São vários os contextos linguísticos da sequência pão e ferro. O contexto de demanda pontual de um sujeito socialmente referenciado (e sempre coletivo); a demanda geral de um sujeito construído no próprio pedido (o povo pede apenas pão e ferro); o contexto da injunção, como em é necessário (a N/que N tenha) pão e ferro; o contexto da definição (as coisas que são necessárias); e sob a forma de máxima, de enunciação no modo do universal (uma nação é rica quando tem ferro e pão). O exame desses contextos linguísticos coloca em evidência uma inscrição em enunciações performativas-definitórias cujo sujeito apagado é literalmente anônimo. Tem-se assim o valor de reivindicação e palavra de ordem. Liberdade não está ausente no contexto da segunda configuração, ela continua sob várias modalidades gramaticais, como a referencialidade diante de uma palavra de ordem, e a demarcação dos homens dignos de liberdade na apresentação de suas necessidades. No intervalo de poucos anos, a liberdade mudou de estatuto: ela não era mais, em 1793, objeto de uma vontade política, ou um princípio a conquistar. Sua retomada como objeto pré-construído a colocava no horizonte da palavra de ordem como uma realidade política associada à demanda dos direitos, uma realidade a ser mantida e conservada. Concluindo a apresentação do trabalho de Guilhaumou e Maldidier, vemos que, no interior de uma estratégia discursiva, houve a passagem de uma expressão com valor de conceito (pão e liberdade) para uma palavra de ordem (pão e ferro). A amplificação da linguagem dos direitos fundamentais (incorporando o direito à existência e à insurreição) representou um duplo funcionamento e extravasamento do saber político jacobino, apropriado nas ruas pelos sans cullotes. A evolução da noção de liberdade é significativa do desdobramento político e linguageiro do saber revolucionário: objeto do desejo, noção-limite, a liberdade torna-se também um já-lá do discurso, autorizando novas batalhas. Tocamos assim no fundamental do discurso revolucionário, naquilo que faz a ligação do social no seio mesmo de um novo (ou do essencial do) espaço político, que Jacques Rancière (1996) entende como a contingência de uma ruptura na partilha do sensível, da demanda de parcela pelos semparcela. A expressão pão e ferro constitui, na consciência linguística dos revolucionários, um exemplo privilegiado do bom uso da língua política, um caso excepcional de adequação construída entre as palavras e as coisas. E quanto à politização da subsistência na Bahia? Discutiremos a seguir um caminho recentemente aberto (FONSECA, 2012), e não mais que isso, para apreender tais apropriações e distorções da linguagem política francesa em Salvador – aqui especificamente no que tange à politização da subsistência – a partir dos desafios de se tomar a palavra sendo afrodescendente, alforriado, republicano, e anticolonialista. Mas antes, circunstanciaremos o problema/questão da fome em Soterópolis, e as lutas populares de resistência que a pautaram.

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A fome em Salvador e suas reações no corpo social A populosa cidade colonial e comercial de Salvador é movimentada por uma “maioria de homens e mulheres que vive do transporte de mercadorias, do comércio ambulante, de suas artes mecânicas e de

1098 ISSN 2358-4912 serviços domésticos” em situação “extremamente vulnerável” (MATTOSO, 2004 [1990], p. 319). O “pão da terra” era a farinha de mandioca: bolinhos fritos, assados, farofa e pirão se faziam presentes na alimentação dos pobres, dos ricos e dos remediados. Escravizados, libertos ou livres, a maioria dos baianos vivia na beira da subsistência, mesmo em tempos de prosperidade (BARICKMAN, 2003, p. 101; FRAGA FILHO, 1996), sobrevivendo de um dia para o outro com aqueles alimentos que eram então os mais baratos: a carne-seca, o bacalhau e, sobretudo, a farinha de mandioca. Havia pouco arroz, milho e feijão no mercado da cidade, de forma que não eram substitutos. Assim, “quando o preço da farinha subia, a maior parte da população de Salvador não tinha escolha; tinha de pagar. Compravase menos carne; pedia-se dinheiro emprestado; mas só se comprava menos farinha em último caso, pois significaria fome” (BARICKMAN, 2003, p. 102). Como nos mostra Barickman, à medida que os estoques de farinha escasseavam – por razões que não discutiremos aqui, mas que são um dos pontos altos de seu estudo – os preços subiam, e eis que “os pobres passavam fome, e sua fome desnudava as tensões e os conflitos da sociedade baiana” (BARICKMAN, 2003, p. 133). E Katia Mattoso (2004 [1970]), contrastando o movimento dos preços da carne, da farinha e do salário do oficial de pedreiro (categoria próxima à dos artesãos conjurados de 1798), projeta a constante defasagem salarial de grandes parcelas diante do custo dos principais produtos da subsistência à época. O abastecimento das vilas e cidades brasileiras constituía uma preocupação permanente da Coroa portuguesa (SOUSA, 2001), mas como o Estado reagia ao problema? Em 1785 foi criado um celeiro público em Salvador, projetado para servir de espaço para o depósito e a venda a preços controlados de alimentos de “primeira necessidade”, e, de acordo com o governador D. Rodrigo José de Menezes, que o instituiu, visava coibir o monopólio e a exportação da farinha – conforme o regimento do celeiro público enviado para a Câmara (anexo em ACCIOLI; AMARAL, [1835] 1931, v. 3, pp. 72-77). Reproduzindo nos trópicos uma política europeia comum para abrandar o problema rotineiro da fome e dos subsequentes protestos populares, num momento de (como indicamos acima) consagração da subsistência como novo objeto de saber administrativo, é preciso dizer, no entanto, que no caso da Bahia, do Brasil, e talvez de todas as regiões de escravismo colonial, é provável que esse marco temporal europeu seja algo irrelevante. Pelo menos desde 1688, o Estado tenta forçar os plantadores de cana e mercadores de escravizados a plantarem mandioca (MATTOSO, 2004 [1970], p. 42). Além disso, a Câmara de Salvador desde o início do século XVIII intervém junto à Coroa, “denunciando a situação de miséria e fome pela qual passava o povo da cidade e seu termo, devido à falta de alimentos”, e busca adotar medidas de proteção e estímulo aos pequenos roceiros de mandioca (SOUSA, 2001, p. 500). Pois bem, a instituição do celeiro público de Salvador3357 – primeiro e único de todo o território brasileiro até meados do século seguinte – deve ser situada na “longa série de descontentamentos surgidos por volta de 1780, e que muitas vezes se traduziram em arruaças populares” (MATTOSO, 2004 [1970], p. 34), como atestam vários ofícios e atas da Câmara que abordam a escassez de alimentos e a carestia na cidade. Um ofício da Câmara de 16 de fevereiro de 1780 relata o recebimento de V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] repetidos requerimentos de queixas e clamores que em nome dos Povos mais necessitados se tem feito a respeito do grande Vexame a que os tem reduzido o excessivo preço a que de tempos a esta parte tem chegado as farinhas que vem a vender aos portos desta Cidade […] não obstante a 3358 abundancia dellaz no prezente.

Não conhecemos o teor destes repetidos requerimentos referidos em 1780, em específico, mas acreditamos que o seu impacto tenha sido forte, tanto em razão das solicitações feitas ao governador quanto da linguagem empregada, que parece influenciada pelos requerimentos: em síntese, pediu-se ao governador para que examinasse atentamente os requerimentos daqueles “Mizeraveis Povos 3357

Que, extinto em 1834, jamais funcionou verdadeiramente como depósito de alimentos, sendo apenas o mercado oficial, nos moldes do que havia em Lisboa, onde os funcionários atuavam como fiscais da venda de farinha para evitar práticas monopolistas e desvios de produtos para outros mercados e revendas. O transporte de farinha dentro do Recôncavo obrigatoriamente tinha que passar pelo Celeiro de Salvador, para pagar a “contribuição” – e deixar e vender lá um montante, em caso de ameaça de escassez na capital (BARICKMAN, 2003, p. 134-137). Praticamente metade da farinha baiana escapava deste destino. 3358 Ofícios do Governo, livro 553, fls. 54v-55, ms. Arquivo Histórico Municipal de Salvador.

1099 ISSN 2358-4912 Necessitados e Opremidos da [Carestia]”, que atendesse aos “seos justos [cla]mores”, extinguindo o terrível “Monopolio q praticão os taez Negociantes para enriquecerem com o Sangue dos mizeraveis Necessitados”3359. Dentre muitos outros registros dessa natureza nas atas e ofícios da Câmara de Salvador, destacamos também um de sete de novembro de 1792, ao referir-se à V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] falta de carnes que de mezes desta parte se começou a experimentar, [e] se fas cada dia mais sensível, acrescendo ao mesmo tempo a das galinhas, como he notorio, de sorte q' nem os ricos achão o principal e mais comodo alimento para sustentar grandes famílias, nem os pobres, e doentes tem 3360 de q' se valhão.

As duas pontas do poder aquisitivo soteropolitano serão novamente citadas em quatro de março de 1797, num longo requerimento recebido pela Câmara, feito em nome do Povo desta cidade, em defesa do fim da taxação sobre as carnes, e pela adoção de um “systema de liberdade”, “fundado na Razão e na justiça”, que os vereadores consideraram “inteiramente novo e extranho” ao apresentarem-no para o governador. Entre muitas considerações interessantes – e que mereceriam uma comunicação à parte – diz o documento: Será acazo este receyo [o de se liberar o comércio das carnes], este temor tão justo de subir a Carne a tal preço, que os pobres e indigentes a não possão comprar, e que somente os ricos o possão fazer? 3361 porem he o que sucede prezentemente: os pobres não a comprão porque a não há para elles .

Politização ou as velhas arruaças? (O que pode e o que não pode ser tolerado) Para além das queixas, o problema do desabastecimento, dos preços altos e da fome gerava insubordinações, com destaque para o segmento dos soldados. Mesmo com as medidas tomadas pelos poderes, a oscilação dos preços era intensa, e em apenas duas horas um alqueire de farinha podia variar em 30% (BARICKMAN, 2003), o que não produzia apenas fome, mas também boa parte das revoltas, arruaças, quebra-quebras. Analisando estas, István Jancsó (1996, p. 115-116) as considerou pré-políticas, tangenciadoras do ordenamento geral das estruturas de poder: “as revoltas de escravos, a indisciplina urbana, as manifestações cotidianas de desafeição à hierarquia ainda podiam ser absorvidas por estas”. Seriam “subculturas de liberdades” contrárias à liberdade civil, que acabariam se revertendo na “busca de soluções específicas para os diversos grupos”, e em relações clientelísticas que resultavam em vantagens pessoais. Do ponto de vista da manutenção da ordem, tratava-se de mostrar que, no regime de liberdades diferenciadas do absolutismo, com seu regime de visibilidade e adequação das partes sociais aos seus lugares prévios específicos, “os interesses sociais somente poderiam ser preservados e atendidos mantendo-se intocada a boa ordem social” (JANCSÓ, 1996, p. 155). Tal engenharia de dominação podia lidar razoavelmente com as muitas manifestações de desapreço pelo poder, sobretudo na época do governador D. Fernando José de Portugal e Castro (1788-1801), criticado por ser demasiadamente tolerante. Além de trabalharmos com a conceituação rancièriana de prática política como agenciamento contingente e disruptivo (RANCIÈRE, 1996), não concordamos com István Jancsó quanto ao poder de absorção das revoltas de escravizados, da indisciplina urbana e do conjunto de manifestações que, como ele mesmo relata, podiam atingir símbolos essenciais das instituições dominantes, como a Igreja, ou tocar em questões da vida cotidiana, como aquela que focamos aqui, o desabastecimento de víveres e a elevação de seus preços, motivo de saques, arruaças e colagem de cartazes “abusados”, como relatam os Autos de 1798-99:

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Idem. Correspondências recebidas de autoridades diversas, Maço 201-14 (1783 a 1799), fl. 11, ms. Seção Colonial e Provincial. Arquivo Público do Estado da Bahia. 3361 Correspondências recebidas de autoridades diversas, Maço 201-14 (1783 a 1799), fls. 30-45, ms. Seção Colonial e Provincial. Arquivo Público do Estado da Bahia. 3360

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ISSN 2358-4912 [...] ha couza de seis semanas pouco mais ou menos vio elle testemunha hum Pasquim pregado na porta do açougue da Praia, o qual em nome do Povo mandava a Camara que puzesse a Carne a seis tostoens...3362 [...] estando fixado na porta do açougue da praia, hum Edital da Camara desta Cidade sobre o preço, porque se havia de vender a vaca no mesmo açougue, no mês de Julho desapareceo o dito Edital, que foi arrancado e em lugar delle appareceo outro, não da Camara, que principiava = Nos Bahinenses, Republicanos para o futuro queremos, e mandamos, que a inutil Camara desta Cidade mande por a carne a seis tostoens, e assim tenham entendido... = e depois se seguirão outras palavras de que elle testemunha não se lembra...3363 [...] hum pesquim, que por esse tempo (...) tinha apparecido, a respeito do preço da carne, de cujo conteúdo não está certo...3364

A despeito da assinatura Bahinenses Republicanos no referido edital rebelde, de sua proximidade temporal com os boletins de 12 de agosto de 1798, e da enunciação em nome do Povo, István Jancsó (1996, p. 122; p. 158-159) considera que tal demanda estaria no “universo do tolerável, do assimilável pelo poder”, e que não haveria ali nenhum convite à ação, “esgotando-se na denúncia e na reivindicação”, voltada, afinal, a uma instância menor de poder, a Câmara. Já a misteriosa destruição da forca usada nas execuções oficiais (feita superfície para ludibriosos pasquins, como conta Vilhena), é considerada por Jancsó um extravasamento das práticas pré-políticas por atingirem um símbolo do poder. Entendemos que o “edital” sobre a carne, mesmo com a ressalva do historiador, deve sim ser considerado político, por duas razões. Uma é que o tema da subsistência apareceu na leitura dos boletins revolucionários por parte dos segmentos populares: [...] ouvira falar a respeito dos papeis sediciosos (...) em que elles aparecerão disendo algumas 3365 pessoas que eles falavão sobre por-se a farinha mais barata, e dar dous tustoens aos Soldados...

O fato de não constarem referências diretas ao tema da subsistência nos pasquins que foram anexados à devassa, mas apenas no relato de testemunhas diretamente envolvidas ou não no movimento e representantes dos segmentos empobrecidos da cidade, faz é na verdade revelador, dado aí o espaço de inscrição dos desejos e das reivindicações daqueles sujeitos no bojo da publicação e interpretação dos boletins. Como diz Mário Maestri (2008): Nos depoimentos, tomados a seguir, de testemunhas que ouviram falar dos manifestos, mas não os viram, emerge comumente uma clara reelaboração do conteúdo dos escritos que certamente apresentam reivindicações das classes subalternas não presentes nos textos, como a do tabelamento do preço da carne. Essa reconstrução dos conteúdos das mensagens era absolutamente normal em uma sociedade em crise em que o principal veículo de socialização das informações era a comunicação oral interpessoal.

O aparecimento do tema da subsistência de fato atesta uma identificação entre o gesto subversivo e as demandas populares. Mesmo concordando com Mário Maestri quanto à centralidade da comunicação oral interpessoal, assim como das relações sociais de tipo primário, familiar ou associativo (MATTOSO, 2004 [1990], p. 318), não podemos, entretanto, descartar a possibilidade de terem circulado pasquins com tais conteúdos juntamente aos que foram preservados – afinal, “os 3362

Depoimento dado em 29/08/1798 por João Lourenço Seixas, dito branco, boticário, 43 anos. Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates. Salvador: Secret. da Cultura e Turismo/Arquivo Público do Estado, 1998, p. 47. 3363 Depoimento dado em 22/09/1798 pelo mesmo João Lourenço Seixas. Autos..., p. 334. 3364 Depoimento dado em 09/01/1799 por Hermógenes Francisco de Aguillar Pantoja, dito branco, tenente do 2º regimento de linha, 28 anos. Autos..., p. 849. 3365 Depoimento dado em 01/03/1799 por Manoel da Silva, dito pardo, branco [correção], soldado do 1º regimento, 32 anos. Autos..., p. 67.

1101 ISSN 2358-4912 pasquins certamente foram bem mais numerosos do que os que chegaram até nós” (JANCSÓ, 1996, p. 119). Vimos que ao longo das centenas de páginas dos autos a referência é sempre a “vários” e não a um número determinado qualquer de papéis sediciosos difundidos na manhã de 12 de agosto de 1798. Sabe-se, inclusive, que um dos papéis foi deliberadamente queimado pelo coronel Francisco José de Matos Ferreira e Lucena após recebê-lo do seu filho, Antonio José, que declara às autoridades ter lido no tal pasquim que a revolução daria liberdade aos escravos (Autos..., 1998, p. 63). A segunda razão para considerar o “tabelamento republicano da carne” uma prática política pode ser percebida através de contraexemplos como as queixas recebidas pela Câmara que citamos e muitas outras, como o caso de uma petição intitulada “dos moradores do sertão da América à rainha Dona Maria I”, de 1776, produzida por moradores do interior da Bahia, Pernambuco e Goiás, na qual reclamam da falta de representatividade dos seus interesses junto ao trono, afirmando que “choram os miseráveis vassalos de Vossa Majestade nesta longínqua conquista, sem haver um ministro que o[s] represente [n]o Conselho, e lhe acudir com pronto remédio” (citado por FIGUEIREDO, 2003, p. 11). Endereçada ao centro do poder, nem por isso esta manifestação pode ser considerada política – em contraposição ao cartaz da carne –, visto que tem no seu horizonte a manutenção e o resgate de um vínculo essencial entre governados e governantes, do pacto entre rei e comunidade – seguindo o modelo próprio das teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica (VILLALTA, 2000). A máxima ameaça que se desenhava nessa petição de 1776 (pelo menos enquanto tópica de efeito retórico) era a da troca de soberanias, a busca de outra sujeição, e não o exercício de cidadania, característico das revoluções burguesas, e de certa forma implicado no longo requerimento enviado à Câmara em 1797 (pp. 5-6). Ao postularem o tabelamento do valor da carne de vaca pelo poder local instituído, os Bahinenses Republicanos põem-se claramente acima da Câmara. Lembremos o texto relatado nos Autos: “Nos Bahinenses, Republicanos para o futuro queremos, e mandamos, que a inutil Camara desta Cidade mande por a carne a seis tostoens, e assim tenham entendido”. Aumentando a visibilidade sobre o que acontece no nível da língua, temos:

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Sintagma Nominal 1: Nós, Bahinenses Republicanos, o sujeito de uma demanda. Sintagma Verbal 1: para o futuro queremos e mandamos que a inútil Camara desta Cidade mande por a carne a seis tostões, cujo núcleo é “mandamos e queremos”, os verbos da demanda, denotadores de poder, conjugados no presente do indicativo. Sintagma Nominal 2: a inútil Câmara desta Cidade, alvo da demanda, o poder instituído responsável pelos problemas do abastecimento e da carestia. Sintagma Verbal 2: que mande pôr a carne a seis tostões, denotando um mandar secundário, inferior, conjugado no presente no subjuntivo, subordinado ao SV1.

Vemos assim o forte desnível semântico e político que toca aos dois tópicos nominais e aos dois tópicos verbais. O núcleo, o objeto da demanda, pôr a carne a seis tostões, é antecedido por um dizer que põe as coisas nos seus devidos lugares – obviamente numa outra ordem social, e, por isso mesmo, descabida no interior do regime do tolerável pelos poderes. Os Bahinenses Republicanos desenvolvem, de modo ousado, inovador e contundente, a figura do portavoz, figura cujos efeitos enunciativos e discursivos mereceram a atenção do filósofo Michel Pêcheux (1990 [1982], p. 17): [...] ao mesmo tempo ator visível e testemunha ocular do acontecimento: o efeito que ele [o portavoz] exerce falando “em nome de...” é antes de tudo um efeito visual, que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa, e sob o seu olhar. [...] centro visível de um “nós” em formação e também em contato imediato com o adversário exterior.

Centro visível desse e desses nós em formação, os Bahinenses Republicanos insistiram em projetar nos seus papéis incendiários um horizonte de expectativas de rupturas políticas e igualdade social (FONSECA, 2012), se dirigindo tanto ao vasto povo que buscava representar quanto aos poderes constituídos que buscava converter para a causa libertária – e não eliminar, dado que é a inútil Câmara

1102 ISSN 2358-4912 que deveria “pôr a carne a seis tostoens”, dado que buscaram encampar e comprometer o próprio governador no levante projetado...

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Considerações Finais O movimento revolucionário de 1798 não pode ser pensado de modo alheio ao quadro do regime de liberdades diferenciadas e das tensões pré-políticas que acabavam renovando e reforçando a engenharia das liberdades toleradas no escravismo colonial. No entanto, ele conta com novidade e singularidades insofismáveis: 1) a busca de interlocução ampla; 2) o afrontamento à ordem instituída; e 3) a proposição na forma de esboço de uma outra ordem, que aniquilaria o regime de liberdades diferenciadas. A radicalidade do horizonte desenhado não pode ser explicada apenas pela agudeza da fome e da carestia. Não pudemos mobilizar um vasto conjunto de manifestações desses sujeitos em formação para fazer um trabalho análogo ao de Guilhaumou e Maldidier, mas como pista de investigações futuras, no âmbito das práticas discursivas, parece-nos promissor atentar para outras ocorrências linguísticas no arquivo em que haja a tematização da subsistência ao lado da tematização crítica do poder e de seus verbos, como demandar e mandar – que não por acaso abundam os papéis de 12 de agosto, sob a seguinte fórmula: (o Povo) ordena, manda e quer (que para o futuro) (que seja feita) (a sua revolução). Que se tenha desenvolvido um saber político-discursivo na articulação entre subsistência e irrupção de um novo poder não é, claro, só uma hipótese científica. Toma a força enunciativa da formulação de demanda daqueles sujeitos massacrados como exemplo e indício de extravasamento do que sem isso seria apenas mais um ciclo de fome e arruaças. Referências ACCIOLI, Ignacio [1835]; AMARAL, Braz do. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. V. 3. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1931. BARICKMAN, B.J., Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. “Narrativas das rebeliões. Linguagem política e idéias radicais na América Portuguesa moderna”. Revista USP, São Paulo, n. 57, p. 6-27, mar.maio/2003. FONSECA, Rodrigo Oliveira. A interdição discursiva: o caso da Conjuração Baiana e outros limites à participação popular na história brasileira. Porto Alegre, 2012. 264p. Tese (Doutorado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996. GUILHAUMOU, Jacques; MALDIDIER, Denise [1986]. Efeitos do arquivo. A análise do discurso no lado da história. Tradução de Suzy Lagazzi e José Horta Nunes. In: ORLANDI (org.), Gestos de leitura: da história no discurso. 1a edição. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1994, pp. 161-183. JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996. MAESTRI, Mário. “Bahia, 1798: a Revolução dos Jacobinos Negros”. In: Espaço Acadêmico, nº Acessado em 81, fevereiro de 2008. http://www.espacoacademico.com.br/081/81maestri.htm. 13/04/2011. MATTOSO, Katia M. de Queirós [1970]. Conjuntura e sociedade no Brasil no final do século XVIII: preços e salários às vésperas da Revolução dos Alfaiates, Bahia, 1798. In: ______. , Da Revolução dos Alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX: itinerário de uma historiadora. Salvador: Corrupio, 2004, pp. 33-53. ______ . [1990] Bahia, 1798: os panfletos revolucionários. Proposta de uma nova leitura. In: ______ ., Da Revolução dos Alfaiates..., pp. 317-330.

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OS ESTUDOS DE ARQUITETURA DE FRANCISCO DE HOLANDA Rogéria Olimpio dos Santos3366 Francisco de Holanda e sua viagem à Itália Francisco de Holanda nasceu em Lisboa no ano de 1517 e era filho do pintor e iluminador Antônio de Holanda, que trabalhou nas cortes de D. Manuel e de D. João III. Seu pai era provavelmente de origem flamenga, o que justificaria o nome Holanda – inicalmente uma indicação de origem e não um sobrenome – e atuou nas cortes de D. Manuel e D. João III, Antônio como Passavante, Rei de Armas e Escrivão da Nobreza, cargos relacionados a ofícios cerimoniais. Francisco teve sua iniciação artística junto ao próprio pai e desde cedo transitou entre os meios mais intelectualizados de Portugal. Foi criado na casa do Infante D. Fernando3367, a quem seu pai também servia e lá permaneceu até aproximadamente 1534, ano da morte do Infante. A casa de D. Fernando rivalizava com a própria casa real portuguesa, mais de 270 pessoas viviam sob o seu teto. D. Fernando era conhecido apreciador das letras, gostava particularmente dos estudos históricos e genealógicos, além de ser um conhecido apreciador das artes. Sua reputação em toda a Europa era de que não tinha outro prazer que não fossem as ciências e as artes. Quando D. Fernando faleceu, Antônio de Holanda encontrava-se em Évora já há quase um ano. Não se sabe ao certo se Francisco teria acompanhado o pai em sua viagem a Évora, ou se partiu ao seu encontro quando da morte de D. Fernando. O certo é que nesta cidade foi colocado a serviço do Cardeal Infante D. Afonso como Moço de Câmara. D. Afonso devotava profundo amor às antiguidades romanas. Foi aluno de André de Resende, com quem teve aulas de latim, grego e estudos históricos, aulas partilhadas por Francisco de Holanda tanto na casa do cardeal quanto na Escola Pública de Letras, fundada por Resende. Essas aulas propiciaram a criação de um laço de amizade que acompanharia Francisco de Holanda e André de Resende por toda a vida. No ano de 1537 foi acordada a viagem de Francisco de Holanda à Itália, participando da comitiva do embaixador D. Pedro de Mascarenhas3368, com uma missão bem específica: ver e desenhar as fortalezas e as obras mais insignes e ilustres da Itália. A viagem durou de 1538 a 1540. O Cardeal D. Afonso morreu enquanto Francisco se encontrava em Roma. Após o seu retorno D. João III e o Infante D. Luis3369, seu irmão, foram os seus patronos. Apesar da existência de uma política de concessão de bolsas de estudos para estudantes portugueses em Roma, acreditamos que a viagem de Francisco de Holanda tinha um caráter especial, não só pela missão descrita por ele, como pelos círculos a que ele teve acesso tanto em Roma como nos lugares por onde a comitiva passou assim como pelas comodidades de que ele teria desfrutado durante sua viagem. A viagem de ida iniciou-se em janeiro de 1538. De Lisboa seguiram a Santarém onde atravessaram o Tejo entrando em Castela. Em Valladolid Francisco se encontrou com a Imperatriz Dona Isabel, filha do Rei D. Manuel e sua segunda esposa, Dona Maria de Castela, casada com o Imperador Carlos V em 3366

Doutoranda em História (UFJF); mestre em História (UFJF); licenciada em História (CESJF) e Educação Artística (UFJF). 3367 O Infante D. Fernando era o sexto filho do Rei D. Manuel e sua segunda esposa Dona Maria. Sobre o Infante D. Fernando cf. GÓIS, Damião. Crónica do Sereníssimo Senhor Rei D. Manuel. Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1749, pp. 191-192; HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, pp. 60-61; SEGURADO, Jorge. Francisco D’Ollanda. Lisboa: Excelsior, 1970, p. 512. 3368 D. Pedro de Mascarenhas participou de diversas missões diplomáticas na corte do Imperador Carlos V que o estimava muito. Acompanhou-o numa expedição contra os turcos que ameaçavam Viena levando consigo seu mestre André de Resende. Foi por seu intermédio que os primeiros jesuítas foram para Portugal. Cf. ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco D’Holanda. Lisboa: Horizonte, 1986; SEGURADO, Jorge. Francisco D’Ollanda. Lisboa: Excelsior, 1970. 3369 D. Luís se interessava particularmente pelas fortificações portuguesas no Reino e na costa da África. Cf. SANTOS, Reinaldo dos. “Os desenhos” de Francisco de Holanda: Comentário crítico à edição espanhola. Separata do boletim nº 11 da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1942.

1105 ISSN 2358-4912 1526. Daí seguiram a Barcelona. Mais tarde em sua vida, Francisco narra que a Imperatriz havia solicitado a ele que fizesse um retrato do Imperador para ela e que seu pai, Antônio de Holanda – que havia em 1529 retratado em Toledo o imperador Carlos V, a imperatriz D. Isabel e o príncipe D. Filipe ao colo de sua mãe – havia-lhe recomendado que não perdesse a oportunidade de cumprimentar o Imperador em seu nome. Esses fatos serviram de incentivo para que Francisco tomasse a liberdade de, contrariando o que seria permitido à sua condição, buscar uma entrevista com o Imperador, que o teria recebido e o tratado com mais consideração do que o artista esperava3370. Saindo de Barcelona, Francisco passou por Salces onde retratou a fortaleza reconstruída pelo rei católico D. Fernando em 1497, na fronteira com a França. De lá seguiram por Narbonne na França, passando pela província de Nimes onde se encontra o Anfiteatro construído no século I.d.C., e por Avignon. Dalí retomaram a via romana, seguindo por Fréjus, Antibes, Mônaco e Nice entrando na Itália por Gênova. De Gênova foram a Pisa, Florença, Siena, chegando finalmente a Roma no verão de 1538. Protegido por D. João III e pelas relações deste com o Imperador Carlos V3371, Francisco teve abertas diante de si as portas da cúria e de importantes personalidades romanas. O seu programa de estudo abrangia a traça das fortalezas; as cidades; os edifícios antigos; as estátuas monumentais; os afrescos e mosaicos. Fugindo das rotas tradicionais buscou estudar minuciosamente a arte antiga e aquela moderna, produzida na Itália desde o século anterior e que participava daquele ideal de renascimento do que de melhor a antiguidade greco-romana havia produzido, mas que, segundo os humanistas que desde o século XIII vinham se debruçando sobre as novas traduções ou leituras dos textos da antiguidade, havia se perdido durante os anos que aqueles mesmos humanistas definiram como idade das trevas. Aquela, na qual a glória de Roma ficou ofuscada pelas invasões bárbaras mas que ao mesmo tempo assistiu à consolidação do cristianismo na figura da Igreja Católica Apostólica Romana. Em Roma conviveu com diversos estudiosos, muitos dos quais amigos do bispo D. Miguel da Silva3372, que havia permanecido em Roma entre os anos de 1515 e 1525. Latânzio Tolomei, primo do célebre humanista Cláudio Tolomei, foi um erudito comentador de Vitrúvio, embaixador em França e posteriormente bispo em Toulon. Conhecia o latim, o grego e o hebraico. Arqueólogo, possuía preciosas coleções de arte e no período que Francisco de Holanda encontrava-se em Roma, era embaixador da República de Siena. Acredita-se que tenha sido através de uma carta de recomendação de D. Miguel da Silva que Francisco teria sido apresentado a Latânzio Tolomei e ao secretário do papa Blósio Paládio ambos amigos de D. Miguel da Silva e foi por intermédio dos dois que Francisco de Holanda foi introduzido primeiro ao círculo da Marquesa de Pescara Vittoria Colonna e posteriormente ao do artista florentino Miguel Ângelo Buonarroti. Francisco teve acesso a diversas coleções artísticas. Do Cardeal Paulo Emílio Cesi, já morto quando da viagem de Francisco, ele conheceu a coleção de antiguidades conservada por seu irmão Frederico Cesi, a Villa Cesi. Do Cardeal Andrea della Vale, também colecionador de antiguidades, Francisco conheceu seu palácio e suas coleções. De Octávio Farnese, neto do Papa Paulo III, casado com Margarida, filha natural do imperador Carlos V, teve acesso a uma das Villas Médici. Além disso, Francisco tinha fácil trânsito nas casas do Papa Paulo III e na do seu neto Cardeal Fernes. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

3370

Este episódio encontra-se narrado em HOLANDA, Francisco de. Da ciência do desenho. Lisboa: Livros Horizonte, 1985, pp. 47-49. 3371 O imperador Carlos V era casado com a irmã de D. João III, Dona Isabel de Portugal, e este último com Dona Catarina de Áustria, irmã de Carlos V. Desde o saque de Roma em 1527, a influência e poder de Carlos V em território italiano haviam aumentado consideravelmente. Cf. CHABOD, Federico. Carlos V y su imperio. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1992. 3372 D. Miguel da Silva permaneceu em Roma dez anos – 1515 a 1525, como embaixador de D. Manuel na corte papal de Leão X e de Clemente VII. Estabeleceu neste período relações de amizade que o acompanharam durante toda a vida e foram de grande valia quando mais tarde retornou a Roma fugindo da perseguição política de D. João III. Baldassare Castiglione lhe dedicou seu livro Il Perfetto Cortegiano. Este livro, fundamental para a cultura renascentista, insere-se na tratadística de comportamento. Deswarte afirma que O cortesão de Castiglione é o retrato do homem social ideal, mas também é uma obra que contribuiu para a divulgação das teorias artísticas e neoplatônicas na Europa. Cf. DESWARTE-ROSA, Sylvie. Il “perfetto cortegiano” D. Miguel da Silva. Roma: Bulzoni, 1989.

1106 ISSN 2358-4912 No período que permaneceu em Roma, empreendeu pequenas viagens para o sul e para o norte da península Itálica. Foi até Tívoli. Percorreu a Via Appia em Terracina. Visitou o Passo de Garellano em Gaeta, Nápoles, os Campos Flégreos, Pozzuoli e Barletta. De outra vez foi a Cívita Castellana, Orvieto, Narni, Spoleto, Loreto, Ancona, Pesaro, Bologna, Ferrara, Pádua, Veneza e Milão. Sempre tendo em mente os objetivos que o haviam levado a iniciar aquela viagem. Sobre a viagem de regresso, talvez tenha ocorrido em seguimento à excursão ao norte da Itália3373. De Milão seguiram a Moncalieri, próximo de Turim, onde Francisco assistiu a um duelo público entre dois militares. Nos Alpes franco-italianos passou por Mont-Cenis. Visitou a Fonte de Valclusa, lugar onde Petrarca viveu como hóspede do Cardeal Cabassole e conheceu Laura. De Avignon foi a SaintMaximin, cidade de peregrinação religiosa em virtude das lendas envolvendo os três irmãos Lázaro, Marta e Maria Madalena. Dali seguiu a Nimes, Toulouse, Bayona, Fuenterrabia e San Sebastian. Nos primeiros meses do ano de 1540, Francisco de Holanda retornava da viagem dos seus sonhos e imediatamente começou a trabalhar junto de D. João III e do Infante D. Luís. São diversas as traças arquitetônicas em que se pode adivinhar a sua participação, apesar de poucas trazerem a confirmação documental. Jorge Segurado3374 recorda que tanto D. João III quanto o Infante D. Luís se exercitavam de vez em quando nos traçados arquitetônicos, sendo D. João III um “arquiteto diletante”. Isso explicaria o porquê de aparecerem tão poucas obras assinadas ou com indicação de autoria de Francisco de Holanda. Sendo uma espécie de assessor de D. João III seria natural que Francisco atuasse junto ao rei como uma espécie de assessor para assuntos arquitetônicos mas ficasse no anonimato, não aparecendo nos documentos da chancelaria. Os desenhos porém que trouxe de sua viagem à Itália demonstram o alto conhecimento adquirido por ele nas traças arquitetônicas, algumas das quais são o nosso objeto de estudo.

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Os desenhos de fortificações e Da fábrica que falece à cidade de Lisboa Durante a sua viagem a Itália, Francisco registrou entre outras obras de arquitetura, fortificações e muralhas das cidades de Pesaro, Ferrara, Nice, Gênova, Orvieto, Nápoles e Spoleto. Este material constituiu-se num corpus documental de extrema importância para os trabalhos desenvolvidos posteriormente por ele, ao mesmo tempo em que pôde servir à corte portuguesa não somente no que diz respeito aos modos de construção mas também no reconhecimento geográfico e estratégico de algumas dessas cidades. Da produção literária dos últimos anos de Francisco de Holanda fazem parte duas obras oferecidas a D. Sebastião: Da fábrica que falece à cidade de Lisboa e Da ciência do desenho. O primeiro propõe uma série de obras na cidade de Lisboa, podendo ser interpretado como uma oferta de serviços; no segundo Francisco de Holanda descreve as funções que desempenhou junto a D. João III, ao Infante D. Luís e ao Príncipe D. João e ilustra com obras de sua autoria as situações em que se pode aplicar a ciência do desenho3375. Essas obras são valiosas por trazerem notícias sobre as atividades desenvolvidas por Francisco de Holanda após o retorno de sua viagem e por permitir entrever nas entrelinhas a condição de ‘esquecimento’ a qual ele foi relegado após a morte de D. João III e regência de D. Catarina. A política do reinado de D. Sebastião não apresentava os mesmos interesses culturais e artísticos que a de seus antecessores. A crise financeira, o refluxo da aventura expansionista aliadas à carestia interna e às vicissitudes sócio-econômicas deram ao reinado de D. Sebastião uma feição muito distinta da de D. João III, herdeiro não só da coroa postuguesa de seu pai D. Manuel mas também de todas as promessas de ventura e de glória que as conquistas portuguesas traziam em seu bojo. 3373

Sobre a viagem de regresso seguimos o itinerário de José da Felicidade Alves. Este autor data a viagem de regresso no ano de 1541. Somos no entanto inclinados a pensar como Rafhael Fonseca que situa o retorno em 1540, ano em que D. Pedro de Mascarenhas retorna a Roma, uma vez que em 1541 Francisco de Holanda trabalhou na traça da Fortaleza de Mazagão. Cf. cf. ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco D’Holanda. Lisboa: Horizonte, 1986; HOLANDA, Francisco. Do tirar pelo natural. Organização, apresentação e comentário Raphael Fonseca. Campinas: Unicamp, 2013. 3374 SEGURADO, Jorge. Francisco D’Ollanda. Lisboa: Excelsior, 1970, p. 40. 3375 Sobre a aceitação das obras por D. Sebastião cf. VILELA, José Stichini. Francisco de Holanda: vida, pensamento e obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. Disponível em: http://cvc.institutocamoes.pt/bdc/arte/062/bb062.pdf. Acesso em: 19 de mar. 2009, pp. 49-50; DESWARTE, Sylvie. As imagens das idades do mundo de Francisco de Holanda. Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987.

1107 ISSN 2358-4912 Jorge Segurado3376 considera o Da fábrica que falece como um “plano geral, de reforma em Lisboa, uma espécie de traçado diretor” o que faria de Francisco de Holanda uma espécie de precursor em questões de urbanismo. A intenção do texto não é a de ser um tratado de arquitetura, muito pelo contrário. Francisco vem através dele ‘admoestar’ D. Sebastião no sentido de dar à cidade de Lisboa a condição que ela realmente merece enquanto cabeça do império português. Começa o texto recordando no primeiro capítulo as obras feitas em Lisboa e em Portugal pelos romanos e pelos reis de Portugal, para logo em seguida recordar como bom cristão no segundo capítulo, que antes de fortificar a cidade de Lisboa seria necessário fortificar primeiro a cidade da alma. Os capítulos quatro e cinco, tratam da necessidade de reformar as fortalezas de Belém e de São Julião, além dos Paços de Enxobregas. O capítulo seis comenta a necessidade de trazer ‘águas livres’ a Lisboa, enquanto que o sete fala das ruas e calçadas. Em ambos os casos o exemplo sugerido é o dos romanos, que estenderam aquedutos e estradas de qualidade a todo o império. Ao que Francisco comenta que, sem serem portugueses se preocuparam mais com a qualidade das águas e dos ‘caminhos’ que aqueles a quem mais interessava esses reparos. O capítulo oito trata das cruzes e miliários, os quais sendo de madeira já estavam – em sua maioria – sem os braços, descaracterizando-os e descumprindo a função que se esperava deles, a de informar os caminhantes de Lisboa as distâncias a serem percorridas. Mais uma vez é o exemplo romano da antiguidade que Francisco sugere seja seguido. Os capítulos seguintes referem-se respectivamente aos ‘cipos’ do sol e da lua – referência aos antigos templos pagãos –; à sugestão da criação de uma Igreja de São Sebastião; da capela em louvor do S. Sacramento – em um lugar onde alguns anos antes um inglês havia desrespeitado a hóstia sagrada – e finalmente uma sugestão de custódia do S. Sacramento. O capítulo que mais nos interessa é o terceiro, onde Francisco trata do castelo, bastiães3377 e muros que convinham à cidade de Lisboa. Francisco inicia o capítulo recordando as cidades italianas, onde, mesmo nas menores não faltava um forte castelo ou fortaleza para recolher e defender o povo dos inimigos nos tempos de guerra. Até a cidade eterna não escapou dessa preocupação, uma vez que por ordem do Papa Paulo III – projetada provavelmente por Antônio de Sangallo – foi mandada construir uma fortaleza no Monte Sabina. Segundo Francisco3378, esta teria sido construída de tijolo cozido e não de pedra, a qual se apresenta mais fraca para enfrentar as bombardas. Francisco de Holanda recorda que em Lisboa não existe nenhum castelo nem fortaleza que a defenda dos seus inimigos e sugere a D. Sebastião que esta deva ser feita no Castelo Velho onde o rei D. João III deveria tê-la feito. Esse é um ponto que aparecerá outras vezes em sua pequena obra. Algumas sugestões dadas por Francisco são acompanhadas de comentários que dão a entender que essas derivam de projetos de D. João III que não teriam se concretizado pelo fato da morte o ter levado. Também neste capítulo nota-se a presunção portuguesa, pois Francisco comenta criticando seus contemporâneos que V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

[...] Lisboa não tem nenhuma fortaleza, se lhe acontecer um trabalho de guerra, e se dizem os que pouco sabem e consideram que não há mister Lisboa fortaleza, porque a fortaleza dela são os portugueses: a isto respondo que Nosso Senhor é só sua fortaleza, e que mais fortes foram Jerusalém 3379 e Roma e Constantinopla e Cartago, as quais foram até o fundo quase assoladas.

Encontramos dois elementos nos desenhos de arquitetura elaborados por Francisco de Holanda para o Da fábrica que falece que possuem uma certa semelhança com desenhos trazidos por ele da Itália. O primeiro, de um detalhe da fortaleza de Pesaro e o segundo de uma porta rústica. Quando retrata a fortaleza de Pesaro, Francisco comenta que quase teria sido preso por suspeita de espionagem. A arquitetura do século XVI trouxe a novidade da construção dos bastiões ou baluartes, essenciais estruturas de defesa contra as novas técnicas de artilharia. A proposta de Francisco de Holanda para a construção do baluarte nos ‘cachopos’ próximo ao mar (ilustração 1), é muito próxima à vista por ele na cidade de Pesaro (ilustração 2) quase trinta anos antes. Prova de que 3376

SEGURADO, Jorge. Francisco D’Ollanda. Lisboa: Excelsior, 1970, p. 22. Também chamados baluartes, são construções defensivas, situadas nas esquinas e avançadas em relação à estrutura principal de uma fortaleza. 3378 HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1985, p. 17. 3379 HOLANDA, Francisco de. Op. cit. . 18. 3377

1108 ISSN 2358-4912 as técnicas de construção estudadas por ele durante sua viagem ainda não haviam sido convenientemente empregadas em Portugal. Vale recordar aqui que em questões de defesa, tanto D. João III quanto seu irmão o Infante D. Luís tinham como prioridade a defesa da costa africana e das outras possessões territoriais portuguesas, não o próprio território português. O desenho de Pesaro traz também a notícia textual da utilização dos tijolos cozidos nas construções, prática também ainda incomum em Portugal. Ao sugerir a construção da muralha para proteger o castelo é mais uma vez de um modelo de porta italiano que Francisco se utiliza. A figura 4 mostra uma porta rústica-coríntia desenhada por ele sem conter no entanto indicação de origem. É o mesmo modelo utilizado na porta interior da fortaleza projetada por ele (figura 3). Acreditamos, em virtude dos comentários encontrados em seu texto, que essas sugestões colocadas no Da fábrica que falece, faziam parte de projetos antigos desenvolvidos e discutidos tanto com D. João III quanto com o Infante D. Luís. As adversidades que o povo português enfrentava em fins do século XVI, assim como a necessidade demonstrada por D. Sebastião de aumentar e proteger os domínios portugueses na África, deixaram em segundo plano os projetos de modernização de Lisboa e da arte em Portugal, projetos esses longamente pensados e anelados por Francisco de Holanda e D. João III. Percebe-se porém, nos desenhos deixados e nas linhas redigidas o conhecimento seguro do arquiteto que se fez moldar na tradição clássica italiana e que contribuiu com D. João III para uma tentativa de modernizar Portugal, libertando-o das velharias que os antigos, desconhecedores das novas práticas derivadas da ‘arte antiga’ estavam praticando em Roma e nas terras italianas. Por isso a viagem a Itália tinha tido tal importância. Somente seria possível aprender a arte antiga peregrinando a Roma e por muitos dias e estudo “frequentar suas antigas e maravilhosas relíquias no primor das obras”3380.

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Referências ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco D’Holanda. Lisboa: Horizonte, 1986. GÓIS, Damião. Crónica do Sereníssimo Senhor Rei D. Manuel. Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1749. HIRSCH, Elisabeth Feist. Damião de Góis. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. HOLANDA, Francisco. Álbum dos Desenhos das Antigualhas. Introdução e notas: José da Felicidade Alves. Lisboa: Horizonte, 1989. ______. Da pintura antiga. Lisboa: Horizonte, 1984. ______. Da ciência do desenho. Lisboa: Livros Horizonte, 1985. ______. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1985. ______. Diálogos em Roma. Lisboa: Horizonte, 1984. _____. Do tirar pelo natural. Organização, apresentação e comentário Raphael Fonseca. Campinas: Unicamp, 2013. NASCIMENTO, Cristiane Maria Rebello. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa: Francisco de Holanda entre os Mirabilia e os guias topográficos de Roma. Anais do IV Encontro de História da Arte – IFCH/UNICAMP, 2008. Disponível em: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2008/NASCIMENTO,%20Cristiane%20Maria%20Rebello%2 0-%20IVEHA.pdf. Acesso em: jul. 2011. SANTOS, Reinaldo dos. “Os desenhos” de Francisco de Holanda: Comentário crítico à edição espanhola. Separata do boletim nº 11 da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1942. SEGURADO, Jorge. Francisco D’Ollanda. Lisboa: Excelsior, 1970. VILELA, José Stichini. Francisco de Holanda: vida, pensamento e obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/arte/062/bb062.pdf. Acesso em: 19 de mar. 2009.

3380

HOLANDA, Francisco de. Da Pintura Antiga. Lisboa: Horizonte, 1984, p. 37.

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ISSN 2358-4912 Imagens

Ilustração 1: Detalhe do fólio 36v. Desenho das fortificações da cidade de Pesaro. HOLANDA, Francisco. Álbum das Antigualhas. Biblioteca Máxima do Mosteiro do Escorial.

Ilustração 3: Desenho de duas portas para a muralha externa do castelo. Fólio 10r. In: HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1985.

Ilustração 2: Lembrança do bastião nos cachopos. Fólio 13v. In: HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1985.

Ilustração 4: Detalhe do fólio 47v. Porta rústica-coríntia de fortaleza. HOLANDA, Francisco. Álbum das Antigualhas. Biblioteca Máxima do Mosteiro do Escorial.

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CORREIOS EXTRAVIADOS ENTRE LISBOA E AS MINAS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DOS ASSISTENTES DO CORREIO-MOR NO IMPÉRIO PORTUGUÊS (SÉCULOS XVI-XVIII) Romulo Valle Salvino3381

O governo da família é semelhança do que há de ter o Príncipe nos negócios públicos, que a política é a administração do doméstico comunicada ao bem universal. D. Sebastião César de Meneses – Suma política (1649)

Há alguns anos, instaurou-se vigorosa revisão dos modelos explicativos das relações entre Portugal e suas conquistas no período moderno, delineando-se uma realidade com mais matizes do que se via até então. Nesse novo cenário historiográfico, ganham espaço temas antes pouco visitados - redes de poder, administração, comunicação política, estatuto dos ofícios, dentre outros. É no terreno dessas discussões que pretendo posicionar uma abordagem, ainda bastante preliminar, dos cargos e atividades relativas à comunicação escrita em Portugal e nas terras brasileiras. Este trabalho, em uma panorâmica da história do correio-mor, chega ao período de D. João V, mais especificamente aos embates em torno do ofício de assistente nas Minas Gerais, entre 1710 e 1730 3382. A escolha desse caso acontece tanto por um detalhamento maior da documentação até agora disponível, quanto pela hipótese de o episódio indiciar um ponto de inflexão. Por meio de seu estudo, é possível vislumbrar notável diferença do tratamento concedido pela coroa a comunidades instaladas nas conquistas americanas e àquelas do reino, em um assunto intimamente ligado ao que se poderia chamar de “bom governo”, da busca desse “bem universal” que D. César de Meneses aponta como objetivo da ação política do príncipe. Fernando Bouza (1999) demonstrou como sistemas de comunicação escritos, imagéticos e orais coexistiam e se imbricavam na península ibérica durante os séculos XVI e XVII. Nunca é demais, contudo, lembrar a importância da troca de cartas quando se tratava de vencer as imensas distâncias que então se abriam para o mundo, nos campos da governação e dos negócios, na construção de um império que se estendia entre quatro continentes, por centros políticos e entrepostos comerciais que ficavam distantes meses de viagem 3383. António Manuel Hespanha talvez possa ser acusado de certo exagero, mas certamente não de erro cabal de diagnóstico, quando diz que [...] foi a plena implantação da forma escrita que permitiu a manutenção de espaços políticos especialmente tão dispersos como as da coroa de Portugal [...] logo este império não era, muitas vezes, mais do que um império “de papel”, em que a correspondência do rei, dos vice-reis, dos governadores, dos capitães, substituíam laços políticos mais efetivos [...]

(Hespanha, 1994, p. 291) Quanto à importância das trocas epistolares para os negócios, além de cartas que remanesceram e dos processos relativos a disputas entre “homens bons” e oficiais do correio, os próprios atos régios de regulação do serviço postal não deixam dúvidas. No documento de nomeação do correio-mor das cartas do mar (1657), por exemplo, o soberano justifica a instituição do novo ofício “[...] por justas cõsiderações de meu seruiço, na segurãça das conquistas, & bem de comercio de meus Reynos, & a petição dos homens de negocio deles [...] (DOCUMENTOS, p. 238 – grifos meus) 3384. 3381

Pontifícia Universidade Católica – São Paulo. A respeito desse caso, ver MOURÃO, 2013. 3383 Sobre essa importância do trânsito de papeis para as práticas de governo, vejam-se, entre outros, Antonio Manuel Hespanha (1994) e Francisco Cosentino (2014). 3384 Utiliza-se neste trabalho a numeração das páginas da versão eletrônica (CD) dessa compilação de documentos. 3382

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ISSN 2358-4912 A tentativa de dar regularidade e maior segurança às comunicações levou a que a maioria das monarquias europeias procurasse normatizar os serviços a partir do século XVI, utilizando para tanto, às vezes, estruturas de correios que vinham desde os finais da Idade Média. Criar o sistema postal era como construir uma estrada de uso comum. A sua instituição não se tratava do mero lançamento de ônus e taxas sobre as coisas dos súditos ou do rei, como seria o aparecimento de um imposto novo, mas da criação de um serviço que se apresentava, nos próprios textos dos atos régios, como um benefício, como uma facilidade para os súditos. Buscava enquadrar-se, assim, naquela esfera de atuação real que se poderia chamar de “boa polícia” e de “econômica” e que “[...] ultrapassa já os limites de uma concepção jurisdicionalista do poder [...], as fronteiras da “[...] actividade real tendente a harmonização de esferas jurídicas alheias [...]”, como diz António Manuel Hespanha (1994, p. 182). No que tange à formulação dessa atividade “econômica” do poder real, o historiador português vê um movimento em que a coroa parte do [...] domínio dos actos destinados a gerir os bens e interesses pertencentes à sua própria esfera. Isto englobava, desde logo, os actos de gestão dos bens e rendas de que o rei era administrador [...] Mas deste governo “econômico” – a que cada vez mais chamando “político”, com base na ideia de uma progressiva identificação entre “casa” e “reino”, entre interesse “económico” do rei e interesse “político” da república – [...] – faziam ainda parte todos os actos necessários à realização do bem estar do reino, nomeadamente, a garantia do seu abastecimento, pelo controlo das importações e exportações, ou a sua “boa polícia” interior [...]” (idem, p. 282-283)

Em Portugal, o correio-mor começou em 1520 como um ofício da Casa Real, uma mercê a Luís Homem, cortesão que já atuava como mensageiro do rei Dom Manuel, filho de um antigo estribeiro-mor - oficial cuja função era justamente administrar os “moços do estribo”, que, entre outras tarefas, atuavam como correios privados do rei 3385. Embora o Regimento dos Ofícios da Casa Real de 1643 3386 já não relacionasse o correio-mor nesse círculo mais íntimo do monarca, e o colocasse dentre os ofícios ditos “da Corte”, alvará de D. José I, datado de 8 de agosto de 1755, determinava que, como oficial-mor da “Casa”, o detentor do cargo deveria gozar de todas as prerrogativas inerentes àquela categoria, em uma das várias demonstrações de que os limites entre uma e outra coisa não eram muito claros. Apesar do qualificativo “mor” e de a carta régia que o criou explicitar como modelos os correios-mores de outros reinos, a jurisdição inicial do ofício limitou-se a cinco léguas em torno de Lisboa, correspondentes à chamada dieta, à distância que um homem podia percorrer em um dia, apontada como ideal para as circunscrições administrativas e que, quase um século depois, as Ordenações Filipinas ainda usavam para fixar as competências jurisdicionais do tribunal da corte e dos ouvidores, evidente resquício de um mundo marcado pela oralidade, em que a ação político-administrativa dependia do contato pessoal (HESPANHA, 1994, 90-91). A sua permanência quando da concepção de um serviço intitulado “do reino”, voltado para a comunicação escrita, é traço evidente de uma mentalidade em que o alargamento da oikos ainda se prendia à sua origem e em que a polis ainda se cingia de muros simbólicos ou ideológicos mais estreitos. Já no Portugal Habsburgo, outros ofícios de correios foram instituídos em outras regiões do reino, chamados de “assistentes”, mas sem que se implantasse realmente uma hierarquia administrativa ou operacional entre uns e outros. Em pelo menos dois casos, os de Viseu e Braga, o correio foi organizado a partir de uma iniciativa local, da Câmara em um caso e do arcebispo no outro. A situação só mudaria quando o ofício do correio-mor foi vendido a Luís Gomes da Mata em 1606, momento em que se tornou hereditário de direito, inaugurando uma 3385

Sobre a designação de Luis Homem, ver MACHADO, 2009, p. 4. A respeito da classificação do ofício do correio-mor dentre os da Casa Real, ver Hespanha (1994, p. 258) e Cardim (2003, p. 21). Destaque-se que o segundo correio-mor, Luís Afonso, era ele mesmo Moço de Estribo. 3386 Regimento dos Ofícios da Casa Real. In: Colleção Chronologica da Legislação Portugueza Compilada e Annotada. 1640-1647. Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1854. Disponível em: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=99&id_obra=63. Acesso em 29/03/2014.

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ISSN 2358-4912 dinastia postal que durou até 1797 e imitou em Portugal o privilégio dos Táxis em terras do Sacro-Império. Somente a partir dessa reformulação é que os correios assistentes tornaram-se “periféricos”, legalmente partes de uma estrutura mais ampla, encabeçada pelo correio-mor de Lisboa, com a notável exceção inicial do ofício da arquidiocese de Braga, somente incorporado depois de 1728. Com esse claro alargamento de funções, o correio-mor deixou, cada vez mais, de ser um cargo típico da Casa Real, voltado prioritariamente para o serviço do soberano, para ocupar função central numa estrutura administrativa que se desdobrava em vários pontos do reino. Ou seja, estamos, no caso, diante de um movimento que vai da “casa” (oecos ou oikos) do rei para todo o reino (a polis), do bem estar pessoal e familiar do monarca em direção ao bem estar da república, materializado, pelo movimento que vai do estribeiro-mor, coordenador da entrega de cartas do rei, para o correio-mor, que devia gerir a entrega daquelas de todo o povo, principalmente dos mercadores. Os correios assistentes dariam suporte à capilaridade da rede postal, primeiro em terras do reino e, depois de 1657, com a criação do correio-mor das cartas do mar, nas conquistas, com exceção das Índias Orientais. Esse novo ofício foi vendido à mesma família dos Mata e foi com base em seu regimento de criação que se designaram os primeiros assistentes do correio para o Rio de Janeiro, Recife e Salvador, a partir de 1663. Importa ressaltar aqui que, num país falto de estradas como era Portugal, de caminhos difíceis e mal vigiados e diante de uma estrutura de funcionamento ainda bastante precária dos serviços oficiais de correios, é de se esperar que as mais variadas formas de contrabando de correspondências se praticassem, estabelecendo um hiato entre o modelo normativo e a realidade – principalmente quando o processo se projeta no ambiente ultramarino, com as suas imensas distâncias, meses de viagem e rarefação de estruturas. O que se deve observar num primeiro momento, todavia, não é a efetividade ou não dos serviços, mas a clara intenção de estabelecê-los, indicando uma interferência da coroa no sistema econômico e político de natureza diversa daquela eminentemente judicativa, que era a faceta mais visível de um sistema que tinha o rei como cabeça de um corpo social constituído de órgãos mais ou menos autônomos. Por se tratar de uma atividade de interesse comercial e administrativo e também por seu potencial político, a execução e o controle dos serviços de correios logo se tornaram pontos de embate entre câmaras, governadores, senhores locais e “homens bons” em vários pontos do “império” português, com variações decorrentes das peculiaridades das dinâmicas históricas locais. A dinâmica de instituição do correio-mor, assim, não obedece a uma lógica retilínea, a um movimento racional, faz-se em marchas e contramarchas, desdobra-se em contradições e encontra resistências – dos assistentes já nomeados diante do esbulho pelo correio-mor, em 1606, de seus direitos adquiridos; das Câmaras em relação aos assistentes; dos herdeiros de correios nomeados antes de 1606 diante de novos ocupantes do cargo, escolhidos fora da linha sucessória; de almocreves e mestres de posta em relação ao monopólio do correio-mor. Essa resistência manifesta-se no contrabando de cartas, em petições à coroa, em longos litígios judiciais. No caso das conquistas brasileiras, é possível mencionar, por exemplo, as desconfianças iniciais dos “homens bons” do Rio de Janeiro quando da nomeação de João Cavaleiro Cardoso em 1663; a disputa judicial entre o correio-mor das cartas do mar e o correiomor do Estado do Brasil Agostinho Barbalho pelo direito de distribuir as chamadas “cartas da terra”; bem como os embates das Câmaras de Salvador e Recife com os correios auxiliares no final do século XVII e início do XVIII 3387. Em um universo mental em que as noções de “público” e “privado” ou “estado” e “sociedade civil” ainda não tinham o delineamento que ganharam no pós-liberalismo, o discernimento entre determinados papéis obedece antes a uma didática de aproximações, visando a uma compreensão geral, que a um esforço descritivo mais realista. Mas é possível dizer que o correiomor, seus assistentes e os mestres de posta agiam como operadores de um sistema em que tinham a obrigação de prover recursos (entregadores, cavalos, postos de muda), remunerandose pela cobrança dos serviços prestados. No caso do correio-mor, cabia-lhe o dízimo dos portes 3387

Sobre essas questões, ver, dentre outros, Machado, 2008, [s.p.]

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ISSN 2358-4912 das cartas geradas em sua circunscrição, com a garantia de que sua ação seria protegida pelo monopólio. A coroa, por sua vez, agia como um regulador do sistema, ao autorizar, por exemplo, a criação de novos assistentes e a expansão do monopólio a novas regiões; ao determinar a quantidade de cavalos e correios em várias rotas ou para o serviço exclusivo das correspondências da coroa; bem como ao fixar determinados valores, como é o caso do Regimento de 1644, que estabeleceu portes, salários e custos de jornadas 3388. Se esse papel acentuou-se desde o período dos Áustrias, teve um ponto alto na primeira metade do século XVIII. Em 1702, era criado o correio ordinário para novas terras do Alentejo e Algarve, ato seguido, um ano depois, pela proibição de que os almocreves transportassem cartas para esses lugares. Naqueles anos, são confirmados os privilégios dos mestres de posta (1701) e aumentados os portes das cartas vindas de Castela e de outros países (1715); o correio-mor, com o aval da coroa, firma tratados com os seus congêneres de Inglaterra (1705) e Espanha (1716, 1738 e 1747); a coroa confirma a nomeação de um assistente para Braga (1728), encerrando uma disputa de poder centenária com o arcebispo daquela cidade, que constituía seus próprios correios; reforçam-se as providências visando ao livre trânsito dos cavalos de posta (1738); é autorizada a criação dos lugares de meirinho e de escrivão do correio-mor do reino (1750). Em 1753, no início do governo de D. José I, adotam-se medidas visando à remuneração do correiomor pelo transporte do dinheiro das sisas, providência dentre outras, que, ao longo daquele século, reforçariam o serviço postal como o transportador oficial dos valores devidos à Real Fazenda em terras portuguesas 3389. Em suma, é visível um esforço contínuo, sob a supervisão da coroa, para o provimento de uma infraestrutura postal nos domínios europeus, ainda que sem a qualidade e a abrangência de outros serviços semelhantes. Ao longo do século XVIII, foram várias as acusações de morosidade, da falta de atendimento a localidades importantes, de conluio de empregados da posta com o contrabando de bens dentro das malas dos correios, a princípio invioláveis. D. Luís da Cunha, em seu Testamento Político, carta dirigida ao futuro D. José I no final dos anos 1740 e que circulou em várias cópias, pregou a necessidade de diversas reformas, dentre elas a do serviço postal, buscando o aprimoramento do correio-mor ou mesmo a sua compra pela coroa (CUNHA, 2010, 628). Mas o fato é que a família Mata teve o seu exclusivo confirmado mais de uma vez, mesmo durante o reinado de D. José I. Margarida Sobral Neto (2005, p. 43) lembra que “[...] as estruturas do correio prestavam serviços importantíssimos à Coroa [...]” e que o correiomor era cabeça “[...] da única organização secular capaz de levar uma ordem régia ao mais recôndito espaço do território nacional [...]”, de “[...] uma estrutura implantada em todo o reino possuindo um conhecimento do território similar ao da Igreja [...] e incomparavelmente superior ao que detinha a Coroa [...]”. Documentos da segunda metade do século XVIII dão conta de uma rede de correios bastante sofisticada, a cobrir a maior parte das terras portuguesas, com frequências que dependiam da densidade populacional e econômica 3390. Por isso, quando em 1797 foi extinto o correio-mor, com o pagamento de indenização aos Mata, a estrutura composta pelos assistentes, mestres de posta e estafetas pode garantir a continuidade dos serviços. Como vimos, no início do século XVIII, a tutora do correio-mor, D. Isabel Calfaro, tomou providências para estender sua ação a áreas antes não contempladas pelo exclusivo, como foi o caso do Algarve (1702). Com o mesmo intuito, D. Isabel solicitou, em 1710, autorização para nomear um novo assistente para o Rio de Janeiro, com o provimento de um ofício hereditário, com o poder de levar os seus serviços até a região das minas de ouro “[...] por ser; em benefissio dos povos; asegurar-sse por este caminho; as suas correspondenssias [...]” (DOCUMENTOS, 2008, p. 303). O nomeado foi Antônio Alves da Costa. Trata-se da primeira vez que, de fato, o correio-mor interioriza os seus serviços em terras brasileiras, ainda que por um breve período, seguindo um fluxo populacional e comercial que arribava às recém-criadas vilas do interior 3388

Ver a esse respeito: DOCUMENTOS, 2008, p. 207-211 e SOBRAL NETO, 2005, p. 22. A respeito de todos esses fatos, ver DOCUMENTOS, 2008, vol. 2. 3390 O Roteiro terrestre de Portugal, incluído em Mappa de Portugal antigo e moderno, de João Baptista de Castro (1762-1763), bem como a Notícia individual dos correios de que se servem os reinos de Portugal e Algarve, de Pedro Nolasco dos Reis, parte do Portugal Sacro-Profano, de Paulo Dias Niza (1768). Sobre esse assunto, ver CARVALHO, 2005, p. XXX. 3389

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ISSN 2358-4912 mineiro. Começava a emergir a necessidade de que houvesse um meio de comunicação mais organizado e independente dos azares das idas e vindas das diversas categorias de viajantes. Desse modo, as Câmaras de Minas Gerais, em comportamento diverso daquele de suas congêneres de Salvador e Recife (em que o correio-mor não fazia qualquer tipo de interiorização, aparecendo simplesmente como um intermediário indesejável), não apenas aceitaram a novidade, mas chegaram a contribuir diretamente na estruturação do sistema de postas. Destaque-se a recusa da Câmara de São Paulo diante da nomeação de um auxiliar do assistente, em 1713, pois “[...] não querião asseitar correo, nem convinhão a que houvesse nesta cidade pellas oppressões que se lhes presagiava [...]” 3391. A despeito dessa resistência localizada, talvez um reflexo do revés dos paulistas na chamada Guerra dos Emboadas, tudo mais parecia correr bem para Alves da Costa, até que, em 1715, o governador do Rio de Janeiro Francisco Xavier de Távora passou a reter as correspondências em sua casa, proibindo a atuação do correio-mor. A medida não deve ter sido mero ato atrabiliário, pois o contrário é sugerido pelo contexto geral da época, marcada por revoltas, em que a necessidade de controle sobre a circulação de ideias aparecia como crucial, bem como o fato de ter sido mantida depois da saída daquele governador, apesar dos claros direitos do assistente e de pareceres em contrário de diversos e eminentes moradores. Tudo indica que não só a interiorização, mas as próprias atividades do correio na recepção das cartas no Rio de Janeiro foram interrompidas, pois o requerimento do infeliz Alves da Costa incorpora documento que trata da [...] grande perdicão de Cartas e papeis de muita emportancia que se achão rasgados e perdi dos asim na Igreia da Crus desta Cidade sem comta nem arecadação como em Palacio e em todos os quarteis de soldados que vem Comboando as fro taz e pellas loges dos mercadores desta Cidade, e toda esta perdição de cartas e papeis de muita emportancia se segue de não aver o dito officio [...] (DOCUMENTOS, 2008, p. 325)

De acordo com os autos do processo em que o assistente buscou retomar o ofício, ele não tomou providências de imediato, tolhido por “moléstias”, deixando para iniciar a recolha de documentos a seu favor apenas em 1725, até que pode entrar com o pedido de reintegração de posse junto ao soberano somente em 7 de julho de 1728. Diferentemente dos casos da Bahia e Pernambuco, em que as Câmaras e “homens bons” se colocavam contra o correio-mor, Alves da Costa pode aqui se apresentar como defensor dos interesses dos “homens de negócio e demais moradores” do Rio e Minas, apresentando ao seu favor, documento com mais de oitenta assinaturas (DOCUMENTOS, 2008, p. 304-305), além de manifestações de apoio de autoridades locais, como o bispo do Rio de Janeiro e do padre capelão da Igreja da Cruz (idem, 312). Interessa destacar que, em despacho datado de 20 de março de 1725, o então governador do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro também reconhecia a utilidade dos correios (idem, p. 324), sem, contudo, adotar qualquer providência prática para sanar a situação e reconduzir o assistente às suas atividades. O certo é que os dois últimos despachos do Conselho Ultramarino no processo de Alves da Costa asseguram-lhe o monopólio das “cartas do mar”, mas, de forma taxativa, negam-lhe qualquer direito às que “forem da terra” (DOCUMENTOS, 2008, p. 302), fechando-lhe as portas para as Minas Gerais. Em abril de 1730, o rei D. João V enviaria ainda ao Vice Rei do Brasil e aos governadores de capitanias cartas de igual teor, ordenando que “[...] naõ consintaes que se estabeleçaõ correyos por terra nessa Capitania porque este estabelecimento naõ pertence ao Correyo mór do Reyno, e das cartas do mar, porquanto eu hey de dispor delle como entender ser mais conveniente ao meu Serviço e bem dos meus Vassallos (DOCUMENTOS, 2008, p. 328; 332 – grife-se). Algo mudara entre 1710 e 1730, entre a designação de um assistente para as Minas Gerais e a definitiva proibição de que o correio-mor atuasse no Brasil. Duas hipóteses, não necessariamente excludentes, podem explicar o fato. Primeiro, há de se lembrar dos levantes antifiscais acontecidos entre 1714 e 1720, bem como das tentativas de um controle maior do 3391

Cf. ROSÁRIO, 1993, p. 30. O documento transcrito consta em Atas da Câmara de São Paulo, vol 8, p. 297(apud: GARCIA, 1975, p. 131).

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ISSN 2358-4912 acesso às minas, que levaram, inclusive, à proibição da abertura de estradas. Mas não pode ser desprezada a conjectura de que à coroa não interessava deixar que se consolidasse o monopólio do correio-mor em novas terras, onde não eram claros os direitos da família Mata sobre a exploração dos serviços postais. Chama a atenção que, em sua carta de 1730, D. João V, ao dispor sobre uma atividade econômica, estabelecendo em seus domínios uma proibição que não vigorava em outra parte deles, invoque o “[...] bem dos meus Vassalos [...]”. Nessa casa ampliada que é a monarquia transoceânica, o bem de uns é diferente do bem de outros. Numa casa há muitas moradas, na do soberano convivem familiares, fidalgos, oficiais, moços de serviço, escravos, uma família ampliada que reproduz a ordem cósmica, com as suas hierarquias e lugares marcados e que se projeta no reino e nas conquistas. Faz parte do “bem” obedecer a essas repartições. O “bem” é “universal”, mas o universo é marcado por diferenças. Não sabemos ainda se Antônio Alves voltou a exercer as suas funções no que tange às cartas vindas de Portugal, de acordo com a decisão do Conselho Ultramarino. Em 1733, D. João V ordenava que nenhuma pessoa, de qualquer condição, nem mesmo os capitães dos navios, poderiam trazer cartas fora da arrecadação (GARCIA, p. 1975, p. 131) e, em 1735, foi designado um assistente do correio-mor para Santos, com poder apenas sobre as correspondências trocadas com o reino (ROSÁRIO, 1993, p. 31-32). Na segunda metade do século XVIII, linhas postais foram criadas em alguns pontos da colônia, por iniciativas de governadores, fora do monopólio dos Mata, antecipando, de certa forma, a apropriação dos serviços pela coroa, acontecida em Portugal apenas em 1798. Mas essas já são outras histórias. Referências BOUZA, Fernando. Comunicación, conocimiento y memoria em la España de los siglos XVI e XVII. Salamanca: Sociedad de Estudios Medievales y Renacentistas, 1999. CARDIM, Pedro. A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade dos Seiscentos. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, p. 13-57, 2003. CARVALHO, Joaquim Ramos de. A rede dos correios na segunda metade do século XVIII. In: NETO, Margarida Sobral.(coord.) As comunicações na Idade Moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005. COSENTINO, Francisco. Comunicação entre governadores, Capitanias e Câmaras: governação no Estado do Brasil, 1654-1681. Postais, Brasília, ano 2, n. 2, p. 23-45, jan./jun., 2014. CUNHA, Luís da. Testamento político. In: ISÓCRATES e outros. Conselhos aos governantes. 5. reimp. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010. DOCUMENTOS dos séculos XIII ao XIX relativos a correios. Coligidos por Godofredo Ferreira. Seleção, organização, revisão e índices de Isabel Sanches. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2008. 3 volumes. Inclui CD com o texto completo. FERREIRA, Godofredo. Dos Correios-Mores do Reino aos Administradores Gerais dos Correios e Telégrafos. 3. ed. rev. ampl. Lisboa: CTT, 1963. GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil: 1500-1810. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1975. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político – Portugal – séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994. MACHADO, Luiz Guilherme G. História geral dos Correios portugueses nos séculos XVI ao XVIII. [s.l.]: 2008. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2013. MACHADO, Luiz Guilherme G. Luís Homem e a criação do ofício de correio-mor do Reino em 1520. Códice, Lisboa, ano XII, série II, n. 6, p. 4-27, 2009. MOURÃO, Maria da Graça Menezes. A criação do serviço régio do correio em Vila Rica. Postais, Brasília, ano 1, n. 1, p. 56-73, jan./jun., 2013. NETO, Margarida Sobral. Os correios na Idade Moderna. In: NETO, Margarida Sobral.(coord.) As comunicações na Idade Moderna. Lisboa: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2005. MENESES, Sebastião César de. Suma política. In: ISÓCRATES e outros. Conselhos aos governantes. 5. reimp. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010.

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O TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS: FREGUESIA DO GENTIO (CAETITÉ) E A VILLA DE MONTE ALTO NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (1870 – 1888)3392 Rosângela Figueiredo Miranda3393 Estima-se que circulou na Bahia cerca de 130 mil escravos no período de 1872. Os dados foram retirados do Censo Demográfico Brasileiro e registrados no livro Fios da Vida (2009), por Maria de Fátima Novais Pires, cujos estudos centraram-se nas regiões de Rio de Contas e Caetité, no alto sertão da Bahia. Desse montante, afirma a autora que 1.058 escravos (5,9%) da sua população pertenciam à vila de Caetité. O mesmo dado foi observado por Erivaldo Fagundes Neves (2000) que também estudou a referida região. Dada a relevância dos estudos para a historiografia sobre escravidão, é possível afirmar que os números podem ser bem maiores se compararmos a escravidão no sertão da Bahia a outras regiões circunvizinhas de Caetité ainda não estudadas. Os livros de notas de tabelionato, inventários, registro de nascimento e óbito que se encontram nos cartórios das cidades de Guanambi e de Palmas de Monte Alto revelam que a escravidão foi intensa, nas fazendas agrícolas do sertão baiano, no século XIX3394. Conforme o recenseamento na província da Bahia em 1872, havia 7.722 indivíduos residentes na paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio, pertencente a Caetité, naquele período. Desse montante, 1.089 eram de escravos, sendo 619 homens e 473 escravas mulheres. O mesmo número se verifica para a paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Monte Alto. Do total de 11.866, 1.105 correspondia a população escrava, sendo 645 homens e 460 escravas mulheres. De acordo com a documentação analisada e com o registro feito nos inventários do século XIX, na vila de Monta Alto, é possível perceber uma presença significativa de escravos na região, que sobremaneira, constituía a principal força de trabalho nas propriedades agrícolas, demonstrando, pois, as redes comerciais entre senhores nas pequenas, médias e grandes fazendas. As poucas vilas no século XIX, no sertão da Bahia, eram constituídas em seu entorno de inúmeras fazendas e sítios, cuja economia estava voltada para pecuária, algodão, fumo, couro e produtos de subsistência também conhecidos por policultura. Havia um comércio diversificado e uma relação direta com as propriedades rurais e as das vilas. A maioria dos moradores das freguesias e vilas mantinha residência nas sedes e eram também proprietários de fazendas, capitalistas, que volta e meia envolviam na vida pública, e praticavam o comércio de cativos. Nessa diversidade de atividades, formavam uma intensa rede de poder que estabelecia conexões não só com o comércio local, mas provincial e interprovincial. Neste aspecto, a escravidão despontava, entre outras atividades comerciais, como negócios lucrativos, entre fazendeiros, comerciantes e traficantes. Ao contrário de Caetité, região estudada por Pires e Neves (2000 e 2009), em que afirmam ter encontrado uma média de cinco a dez escravos por plantel, (PIRES, 2009:117) a documentação em estudo possibilita visualizar um número bem maior de escravos por fazenda. Na Vila de Monte Alto, os inventários mostram que havia um quantitativo de grandes propriedades com números bem acima dos encontrados pelos 3392

No século XIX, a sede da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio3392, pertencente ao município de Caetité, incorporava, do ponto de vista religioso, várias localidades, como: Pindaí, Urandi, Jacaraci, Guirapá e Mortugaba. De acordo com o mapa das Paróquias, criado entre os anos de 1844 e 1855, a formação da Paróquia do Gentio ocorreu a partir de 1848, conforme resolução 16.11.1848, disponível na APEB. Seção Colonial e Provincial. Série: Religião. Freguesias. 1829.1914. Maço 5248. 3393 Doutoranda em História Social, UFBA. Mestre em história Regional e Local. Professora de história do IFBAIANO, Campus Guanambi Bahia. Parte da pesquisa referente à Paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio conta com apoio do bolsista de iniciação científica júnior Glauber Gonçalves de Carvalho, financiada pelo PIBIC/CNPQ. 3394 O município de Palmas de Monte Alto localiza-se na região do Sudoeste da Bahia, a uma distância de 820 km da capital, Salvador. Atualmente, limita-se ao Norte com Riacho de Santana e Matina, ao Sul com Sebastião Laranjeiras, ao Leste com Guanambi e ao Oeste com Iuiú e Malhada. No século XIX, a Villa de Monte Alto limitava-se com Caetité.

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ISSN 2358-4912 referidos autores. Uma das possíveis explicações para a diferença dos números de escravos encontrados entre as duas localidades se dá nos aspectos topográficos entre as duas regiões. Em Caetité, a elevação do relevo geográfico dificultou a extensão de grandes propriedades agropastoris, enquanto que Monte Alto, que também se localiza na Serra Geral, o relevo é plano se estende para o vale do Médio Rio São Francisco, as terras, desde o início da colonização portuguesa, são propícias para o desenvolvimento da pecuária, algodão e diversos produtos voltados ao comércio e a subsistência. Dessa forma, a escravidão se fez presente em todo o sertão baiano e, a partir de meados do século XIX, tornou-se uma das atividades econômicas centrais. Esse comércio, às portas da abolição, forneceu indícios da dinâmica e da complexidade da vida sertaneja. Mesmo com a proibição do tráfico transatlântico e as gradativas e lentas leis abolicionistas (Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários), os números de escravos vendidos por procurações, escrituras de compra e venda são bastante expressivos entre os anos de 1860 e 1888 conforme apresenta os documentos dos autocíveis. O comércio de escravos, sob a vigência da abolição e, no auge da expansão da lavoura cafeeira no Sudeste, pareceu bastante comum na Freguesia do Gentio e Vila de Monte Alto, com destino às regiões de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Pires (2009), afirma ainda que a crise da lavoura açucareira do litoral baiano incentivou a venda de escravos para o Sudeste, enquanto que, no sertão, a seca que atingiu o interior da província provocou perdas na produção do algodão, considerado pelos fazendeiros como uma das principais economias, ao lado da obtenção de escravos. Diante do quadro conjuntural, a crise afetou muitos fazendeiros e comerciantes, obrigandoos a encontrarem outra saída como alternativa para sobrevivência. Recorreram à venda de cativos no intuito de tentar superar a decadência financeira e de patrimônio. A autora menciona ainda que, apesar do desequilíbrio econômico provocado pelas secas, o sertão da Bahia, em especial Rio de Contas e Caetité, em meados do século XIX, procurou alternativas de sustento, contrariando algumas teses que afirmam o definhamento das regiões sertanejas com a expansão da lavoura cafeeira no Sudeste do Brasil. Os sertanejos souberam nas agruras que lhes impuseram buscar outras saídas, tanto é que a escravidão foi mantida numa intrincada rede de trânsitos comerciais e as práticas de apadrinhamento foram fortalecidas como forma de manutenção da instituição. Quanto à prática da compra e venda de escravos, em 1874, Ezequiel Botelho de Andrade proprietário da Fazenda Lameirão - na vila de Monte Alto, passou uma procuração aos negociantes Manoel Cândido, José Justino Gomes & Azevedo, José Pereira de Figueiredo, com plenos poderes para vender seus escravos3395 de nomes; Florêncio crioulo, Simão crioulo, Lucião crioulo e Florêncio cabra. No livro de notas do tabelionato de 18753396, foram registradas 12 escrituras públicas de compra e venda de escravos e 13 escravos vendidos. Somam-se nesse mesmo ano 16 procurações com 24 escravos vendidos3397. A fazenda Lameirão não é uma exceção na região em estudo, nos inventários foram identificados outros fazendeiros proprietários de escravos em proporções semelhantes, como os Gonçalves, Castros, Farias, Pereira, Andrade, Magalhães, Costa, Guimarães, Cotrim, Gomes de Azevedo e tantos outros. As ricas fazendas como: Santa Rosa, Carnaíba de Dentro, Carnaíba de Fora, Brejo das Carnaíbas, Lameirão, Retiro, Pé da Serra, entre outras, estão localizadas numa extensa faixa de terras que compreendia a região de Caetité e Montes Altos em direção ao Médio São Francisco. De acordo com Neves, “a estrutura fundiária da América portuguesa definida pelo sistema de sesmarias revelou-se caótica em final do século XVIII,” ( 2005: 98-101) e que a partir de 1835, após a extinção do morgado e capela, houve a dilatação dessas terras. Os Guedes de Brito mantiveram os seus domínios e “arrendaram para posseiros e vendiam para rendeiros” possibilitando assim, a chegada de pessoas das regiões de Minas Gerais, com a decadência do ouro e de Portugal visando ao povoamento e consolidação do latifúndio. 3395

Fórum de Palmas de Monte Alto. Seção Judiciária, Livros de Notas do Tabelionato. Procuração de compra e venda de escravos. Cx. Século XIX. 3396 Fórum de Palmas de Monte Alto. Seção Judiciária, Livros de Notas do Tabelionato. Procuração de Compra e venda de escravos. Cx. Século XIX. 3397 Os dados acima dizem respeito à parte das procurações do livro de notas. São vários livros referentes às décadas de 1860, 1870 e 1880.

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ISSN 2358-4912 Na freguesia do Gentio (Caetité), os livros de notas registraram a venda de um número considerável de escravos entre os anos de 1870 a 1888, cujo destino, na maioria das vezes, era o Sudeste do Brasil. Nessa empreitada, os compradores e vendedores eram proprietários de fazendas, comerciantes e também se envolviam na vida política das freguesias. Dos traficantes encontrados nas procurações e escrituras públicas de compra e venda de cativos, destaca-se o Capitão Leolino Ribeiro e Silva, comerciante, proprietário de terra e residente na Freguesia do Gentio. Esse traficante atuou como um dos maiores compradores de escravos da região e fazia a mediação para São Paulo, juntamente com o José João de Farias, Leolino Xavier Cotrim3398 e o Manoel Cândido de Oliveira Guimarães3399. Entre as negociações realizadas por eles, estava a compra do escravo Manoel, de dezoito anos de idade, preto, de serviço da lavoura, no valor de seiscentos e cinquenta mil réis e matriculado na Vila de Santo Antonio do Paraguassu (atual Mucugê, Chapada Diamantina) e 15 procurações de cativos com destino para o Sudeste do Brasil, sendo 12 para São Paulo, 02 para o Rio de Janeiro e 01 para Minas Gerais. Não se sabe exatamente o lugar específico em São Paulo que os escravos foram levados, mas, das 12 procurações, uma foi para São Carlos do Pinhal. As transações de compra e vendas no sertão envolviam intermediários nas negociações. De acordo com Neves (2000), havia nos negócios quase sempre a figura de um intermediário que representava legalmente, por meio de procuração, o proprietário de escravo. Esse aspecto também foi evidenciado nos livros de tabelionato na Vila de Monte Alto e Freguesia do Gentio. Com o pretexto para não pagarem a meia siza, que era o imposto exigido nas transações de operação comercial, os negociantes de escravos recorriam à prática da procuração como meio mais fácil, repassando essa atividade a intermediários dados a dificuldade de deslocamento e burocracia, preferiam as procurações, a as escrituras. No rol das negociações foi possível identificar que o tráfico de cativos era rotina na vida desses homens. Em 1884, o Francisco Antônio de Brito vende seus escravos de nomes Zeferino e Speridião, ambos pretos, com habilidades para o serviço de lavoura. No ano de 1885, o vendedor Honorato Pereira Castro vende ao comprador Capitão Theophilo Monteiro de Magalhães a escrava Sancha, cabra, de serviço de lavoura e acompanhada de duas ingênuas de nomes Emília e Cristina. Na Vila de Monte Alto foram registrados as seguintes compras entre os anos de 1875 e 1879: Tabela 1: Registro do número de procurações e de escravos na vila de Monte Alto: Ano 1875 1877 1878 1879 Total

3398

Frequência 29 19 12 11 71

Quantidade de escravos vendidos 34 32 15 19 100

De acordo com Neves, (2000) Leolino Xavier Cotrim era coronel da guarda nacional, dono da fazenda Lagoa da Pedra, atualmente pertencente ao município de Pindaí e em 1878 emigrou-se para São Carlos do Pinhal, onde faleceu com 90 anos de idade. 3399 Joana D´arc de Oliveira e Maria Ângela P.C.S. Bortolluci, no texto intitulado de Liberdade “sob condição”: as cartas de alforrias em São Carlos do Pinhal às vésperas da abolição, 2013, mencionam o inventário de Manoel Cândido de Oliveira Guimarães em São Carlos do Pinhal. De acordo as pesquisadoras, Manoel era proprietário da fazenda Babylônia e negociante matriculado com uma casa comercial na Bahia. Afirmam ainda que o mesmo, após a liquidação de sua casa comercial, continuou negociando escravos em alta escala, recebendo-os em consignação para posteriormente revendê-los. No inventário foram encontrados 198 escravos, sendo a maioria apta para a lavoura. Manoel Cândido antes de mudar para São Carlos morava na vila de Caetité, Bahia. Disponível em WWW.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares

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ISSN 2358-4912 Tabela 2: Registro do número de procurações e de escravos na Freguesia do Gentio. Ano Frequência Quantidade de escravos vendidos 1875 02 03 1878 01 01 1879 10 11 1880 07 08 1881 03 03 1882 02 03 1883 03 03 1884 07 09 1885 05 06 1886 02 02 1887 01 02 Total 43 51 Livro de notas 1, 2, 3 de 1875 a 1903, disponível no cartório de registro cível, no distrito de Ceraíma, município de Guanambi, Bahia.

Digno de nota, na análise da documentação cartorial refere-se ao número de procuradores nas compras e vendas de cativos. Esses procuradores não só representavam os proprietários na intermediação das vendas e compras como eram também negociantes e donos de terras no sertão. Muitos deles estabeleciam vínculos com outras províncias como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, proporcionando aos senhores de escravos do sertão conexão com o mercado de escravos nacional, formando, pois, redes comerciais, de articulação e poder local. Essa relação com outras regiões do Brasil, nas últimas décadas do século XIX, tem sido estudada por vários pesquisadores, não só do sertão como de outros lugares do país, a exemplo de Campinas no Sudeste. A tese de Rafael Scheffer, defendida em 2012, na Universidade de Campinas, descreve uma procuração encontrada por ele nos arquivos da mesma cidade em 1870. O documento trata da venda de uma escrava de nome Joana, cozinheira, de vinte e cinco anos de idade, preta, solteira e negociada por um intermediário de nome Justino Gomes de Azevedo. Nas procurações encontradas no cartório de registro cíveis de Ceraíma (antiga Freguesia do Gentio), pertencente a Caetité, no século XIX, foi possível fazer uma ligação nominativa de alguns escravos vendidos para São Paulo, por intermédio de vários procuradores, dentre eles, o Justino Gomes de Azevedo. Ele aparece como testemunha em várias procurações, assim como outros procuradores , como: Leolino Ribeiro e Silva (capitão, comerciante e fazendeiro residente na Freguesia do Gentio), Leolino Xavier Cotrim, João José de Farias (residente na Freguesia do Gentio) e Manoel Cândido de Oliveira Guimarães, negociante matriculado pelo Tribunal do Comércio da Província da Bahia e Alferes Ernesto Ribeiro da Silva (morador de Oliveira, província de Minas Gerais). Os nomes descritos acima chamam atenção porque aparece com freqüência nas procurações, mas há de se considerar que havia, além de indivíduos particulares envolvidos no comércio de cativos, outros grupos formados por empresas especializadas e que, também, aparecem com constância nas transações de escravos. As principais empresas que atuavam nesse negócio eram a do Campo & Castro, com 07 escravos comprados dos proprietários da região, a empresa dos Irmãos Brandão e Alexandre Alves Bello & Companhia. Desse negócio, os compradores eram: João de Araújo Braga, Antônio Antunes de Souza, residente em Lençóis do Rio Verde, província de Minas Gerais, Claúdio Pereira de Castro, Francisco Pereira de Castro, Sebastião Cardozo de Souza, Alferes Leolino, Teotônio Pereira da Costa. A rede de comércio funcionava da seguinte forma: os senhores de escravos no sertão passavam a procuração para um ou mais indivíduos de sua confiança, com plenos poderes para lhes representarem, onde quer que os devidos procuradores apresentem o dito documento, ou substabelecer a terceiros a transação que lhes foi designada. Vejamos o exemplo abaixo dessa negociação: (...) No anno de nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos e setenta e nove, dos quatorze Diaz do mez de agosto do dito anno, neste arraial do Gentio, termo da cidade de Caetité, província da Bahia, em meo

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ISSN 2358-4912 cartório compareceo Francisco Pereira da Costa, reconhecido por mim escrivão pelo próprio de que trato, e dou fé, perante as testemunhas com elle abaixo assignadoz me disse que nomeara e constituía por seos bastantez procuradorez na província de São Paulo, ou onde com esta se apresentarem aoz senhorez Manoel Cândido de Oliveira Guimarães, Leolino Xavier Cotrim, Lauro Gansalvez Fraga e João Manoel, aos quais, concede todoz os poderez gerais que em direito lhe são permittidos. Especialmente para qualquer de seos ditos procuradores, ou outros por ellez substabelecidos vender e assinar a escriptura pública de venda de seu escravo Heggino, de cor preta, de trinta annoz de edade , solteiro, natural desta freguesia do Gentio, matriculado no município da Villa de Monte Alto, sob número doiz mil, e cinqüenta e oito da matrícula geral, e quatro da relação apresentada pelo mesmo outhorgante Francisco Pereira da Costa, lhez concede plenoz e illimitadoz poderez até para substabelecer esta, como lhes for mister (...) ( Livro de notas, Distrito

de Paz do Gentio, 1878 a 1884, f 19 e v,19). Nesse sentido, Neves (2000) afirma que fatores como a utilização de procurações, escrituras de compra e venda e a presença de intermediários nas negociações, representando legalmente o proprietário, facilitavam e geravam o mascateamento intrarregional de homens escravizados; processo ocorrido intensamente entre 1874-1877. Enquanto Pires mostrou que o tráfico interprovincial de escravos, com registros em livros de tabelionato de compras e vendas, indica os lugares de destinos como: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e que a maior parte das vendas resultava de negociações intermediárias por procurações, sendo essas uma maneira de burlar o fisco provincial (PIRES, 2009, p.2). Apesar de a autora afirmar que a maior concentração de escravos provenientes do nordeste tinha destino para o abastecimento da mão de obra em São Paulo, Neves (2007, p.145) chama-nos atenção para o caráter dinâmico da escravidão no sertão baiano, que, segundo ele, desenvolveu de forma articulada a trabalhadores livres agregados e que havia diferenças se comparado a outras regiões. Estudos mais recentes no Sudeste evidenciam que os negócios do tráfico de cativos interprovincial não vieram do Recôncavo da Bahia e, sim, de outros lugares como o sertão, mais específico Caetité, Monte Alto, Macaúbas e Norte de Minas, Ceará, Pernambuco e Maranhão e do Sul do Brasil. Sob esse aspecto Richard Graham afirma: (...) os escravos enviados do Nordeste para o Sul não vinham das plantações de cana de açúcar. Pelo fato de que a exportação nordestina de açúcar não estava mais em expansão, há a falsa convicção de que eram os senhores de engenho que vendiam seus escravos para o Sul, mas não foi usualmente este caso (Afro Ásia, 2002, p. 130).

Acrescenta ainda o autor que a prática de compra e venda no Nordeste tende a diminuir entre os anos de 1860, quando a Guerra Civil nos Estados Unidos provocou a escassez desse produto no mercado norte-americano principal fornecedor para a Inglaterra. Por conseguinte, houve um encorajamento da produção agrícola no nordeste brasileiro, levando ao aumento do preço dos escravos. Porém, em 1870, com a retomada do crescimento do produto nos Estados Unidos, as vendas de cativos do Nordeste para o Sudeste tendeu a aumentar. E no caso específico de Monte Alto e Caetité, no alto sertão da Bahia, o fornecimento de cativos nessa região era beneficiado, pela localização geográfica e sua posição privilegiada em direção aos caminhos terrestres para Minas Gerais, favorecendo as duas localidades a condição de entreposto comercial de cativos. É possível ainda perceber no cruzamento de inventários com os livros de notas, que o número de vendas era inferior à quantidade de escravos presentes na região. Acredita-se que havia uma resistência em desfazer o deslocamento humano, porque a base de trabalho nas atividades da pecuária e agrícola era o escravo. Tanto é que as vendas foram preferencialmente de escravos entre a faixa de 10 a 30 anos, solteiros e com preços elevadíssimos. Nesse sentido, Hebe Matos3400 (2009) nos lembra, em um texto intitulado de Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil, na vigência da primeira metade 3400

Grinberg Keila e Salles Ricardo, O Brasil Imperial, Volume III – 1870 -1889.

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ISSN 2358-4912 do século XIX, da existência de uma gramática racial para preservar a manutenção da propriedade escravista ou o impedimento dos direitos dos descendentes de escravos libertos. Com o fim do tráfico em 1850, há um crescimento generalizado, nas províncias, em relação ao fortalecimento das instituições escravistas, desabrochando a prática do tráfico interno, onde a vida dos pobres livres e escravos precarizavam sem precedentes. Essa prática do tráfico interno concentrou-se nas mãos dos “maiores senhores”, rompendo os laços de cumplicidade das populações comuns com a escravidão. Não obstante a esse controle, Matos evidencia ainda que, o tráfico interno aumentou de forma significativa as “expectativas de direitos costumeiros dos escravos, antes vigentes apenas em contextos ou regiões específicas” (2009, p.21). Nesse sentido, a autora alude que nas primeiras décadas do século XIX, ocorreram várias transformaçõe,s como as leis abolicionistas, tráfico interno, maior circulação do contexto abolicionista nas colônias da América, permitindo que as populações escravas e de libertos ganhassem novas formas de inteligibilidade. As ações de liberdade por via judicial, as formações de pecúlio para a manumissão de liberdade e o Fundo de Emancipação aumentaram significativamente e se tornaram práticas comuns no país. Assim, as cartas de alforrias, a partir de 1860, triplicaram antes da Lei do Ventre Livre, possibilitando um número crescente de escravos rurais recorrendo aos tribunais da justiça. Há de se considerar que a Lei de 1871 provocou impacto social, político e jurídico nas estruturas do sistema brasileiro. O fato de exigir a matrícula geral dos escravos modificou as relações das estruturas escravistas. A exigência da matrícula tornou-se obrigatória e caso os proprietários de escravos não apresentassem os registros, perderia o direito legal sobre o escravo, estando esse juridicamente livre, o que, pela primeira vez, “rompia com a associação legal entre cor e suspeita da condição de escravidão” (MATOS, 2009, p. 23). As assertivas de Matos e a onda generalizada de cativos em busca das alforrias, não parecem ser uma regra para o sertão. Na freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Gentio e a Vila de Monte Alto, evidenciou-se um número bem maior de vendas de escravos no sul do país do que cartas de alforrias, sugerindo que o tráfico interno foi bastante alimentado e sobreviveu até a última Lei da Abolição. As cartas de alforria foram concedidas mediante compra por parte dos escravos, pelo Fundo de Emancipação, de forma condicional e incondicional. Também é fato que o Fundo de Emancipação do escravo, nas regiões em estudo, não foi atuante como nas demais localidades do país, em especial na Corte do Rio de Janeiro. Diante do número de procurações e escrituras de compra e venda de cativos no Alto Sertão da Bahia, em especial as regiões de Caetité e Monte Alto no século XIX, é possível fazer algumas inferências acerca desse comércio: primeiro, ao contrário do que afirmam alguns teóricos, as secas não parecem um fator determinante para a venda de cativo rumo ao Sudeste. É bem verdade que esse fenômeno natural acompanhou historicamente a vida dos sertanejos, mas o contexto abolicionista e o medo de perderem seus escravos pelo investimento efetuado nas compras, bem como, a ameaça de perdê-los a partir das leis abolicionistas levaram os proprietários de cativos recorrerem às vendas. É possível observar ainda que até as alforrias encontradas na documentação foram concedidas pelo Fundo de Emancipação – uma espécie de indenização que o estado fornecia pela liberdade do escravo. Em Monte Alto, foram inúmeros os casos de alforrias concedidas pelo Fundo e os senhores de escravos recorrendo à justiça pedindo nulidade das cartas de alforria coletivas, alegando serem essas cartas clandestinas. Essas questões abolicionistas provocaram maior impulso para as vendas de cativos do que os fenômenos das secas e despovoamento do sertão. A resistência à manutenção da instituição escravista acompanhou até que as tintas das canetas não puderam registrar mais a posse de cativos. Referências GRAHAM, R. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. AfroÁsia, Salvador, nº27, pp. 121-160, 2002. MATTOS Hebe, Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil. O Brasil Imperial, volume III- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

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ISSN 2358-4912 NEVES, E.F. Sampauleiros traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista. Afro- Ásia, Salvador, nº24, p. 97-128, 2000. OLLIVEIRA, Joana D’arc de e BORTOLLUCI, Maria Ângela P.C.S. Liberdade “sob condição”: as cartas de alforrias em São Carlos do Pinhal às vésperas da abolição. Disponível em WWW.snh2013.anpuh.org/site/anaiscomplementares PIRES, M. de. F.N. Cartas de alforria: “para não ter o desgosto de ficar em cativeiro”. in Revista Bras. De Hist. Vol. 26 no. 52. SP: Dec. 2006 _____Escravos e tráfico interprovincial do alto sertão da Bahia para São Paulo (1860- 1880), IV Encontro Estadual de História – ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITO, SABERES e PRÁTICAS, Vitória da Conquista, 2008. _____Fios da vida: Tráfico Interprovincial e Alforrias nos Sertoins de Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Anablume, 2009. SANTANA, Pereira Napoliana, Vidas Partilhadas: estabilidade familiar escrava no alto sertão da Bahia – segunda metade do século XIX. Revista de História, UFBA, 4, 2 (2012), p.63-80. SCHEFFR, Rafael Comércio de escravos do sul para o sudeste, 1850 – 1888. Economias microrregiões, redes de negociantes e experiências cativas. Tese de doutorado em história. Unicamp, 2012.

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TEXTOS, IMAGENS E A CRIAÇÃO DE UM SIGNO CHAMADO VILA Roseline Vanessa Oliveira Machado3401 Um Legado Seiscentista e seus Códigos Urbanos Quando as povoações vão se formando no sítio, elas recebem uma série de elementos que conformam a sua feição edificada. Nesse processo de constituição do meio físico, destacam-se duas faces: a da arquitetura e da natureza, cujas relações vão condicionar a locação dos edifícios, os direcionamentos dos caminhos, os limites dos espaços urbanos, dentre vários outros aspectos.3402 Partindo do pressuposto de que o ambiente edificado é resultado de intervenções físicas no sítio geográfico, este artigo trata do estudo comparativo do desenho urbano de seis vilas pernambucanas originárias dos séculos XVI e XVII (primeiros núcleos urbanos das atuais cidades de Igarassu, Olinda, Serinhaém, em Pernambuco, e Porto Calvo, Marechal Deodoro e Penedo, em Alagoas), buscando identificar elementos chaves de suas implantações e como estes se articulam na definição de seus desenhos urbanos. Tal processo baseou-se na decomposição de seus elementos naturais e edificados reconhecidos através da interpretação de um conjunto de textos e imagens elaboradas durante os dois primeiros séculos do processo de ocupação urbanística das terras brasílicas, portanto, um conjunto de documentos produzidos no momento seiscentista desse signo.3403 Devido a um conjunto de fatores como a importância de mapear as áreas de extração do açúcar, por exemplo, e mesmo a própria necessidade de reconhecimento da terra recém conquistada, teve-se como decorrência a produção de uma série de registros textuais e iconográficos dessa expansão ultramarina. O contexto da exploração das terras americanas nos séculos XVI e XVII, caracterizou-se pois, por uma experiência de investigação mundial onde se intensifica a descoberta e o conhecimento do Outro. Estes constituem relatórios e relatos que descrevem, dentre outros aspectos, os lugares povoados, com linguagem à maneira de diário ou de forma mais sistematizada enquanto resultado de uma encomenda real. Relativamente à iconografia histórica, foram observadas as imagens produzidas pela chamada Família Albernaz por se destacar dentre a produção iconográfica portuguesa pela quantidade e expressividade de registro da costa brasileira. No século XVII, além do legado português, conta-se com o extraordinário acervo de imagens produzidas pelos holandeses, especialmente durante a presença de Maurício de Nassau no Brasil (1637-1644), o qual se fez acompanhar por uma comitiva constituída por cartógrafos, pintores, naturalistas e cientistas. A atuação de Nassau no Brasil foi minuciosamente narrada por Gaspar Barléus em sua obra História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Publicado em 1647, o livro é magnificamente ilustrado com mapas, plantas e vistas produzidos por George Marcgrave e Frans Post respectivamente, registrando as capitanias conquistadas

3401

Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA/Universidade do Algarve (Portugal); professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFAL; pesquisadora do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem. 3402 Este artigo é resultado da tese de doutorado intitulada Pernambuco no papel: o desenho de seis vilas pernambucanas na representação iconográfica de Albernaz, Marcgrave e Post (2009), desenvolvida junto à Universidade Federal da Bahia e à Universidade do Algarve, Portugal. 3403 A instalação de povoados e criação de vilas como uma atuação que pode ser consideradas o resultado do esforço português em consolidar a expansão territorial. São expressões signicas de um pensamento colonizador. Ou seja, quando o povoado vai se espacializando no sítio, por exemplo, ele carrega elementos que constituem sua materialidade física, mas também traz uma série de pressupostos que precedem sua construção. Nesse processo de concepção e de construção/ocupação do espaço, cria-se um signo, partindo de uma elaboração intelectual contextualizada que transfere o pensamento estrangeiro para o lugar colonizado. Entende-se aqui a vila como um signo enquanto ambiente que carrega em suas bases físicas o pensamento colonizador.

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ISSN 2358-4912 pelos holandeses, sendo a região do Recife, península onde estaria situado o porto de Olinda, e a chamada Ilha de Antônio Vaz, honradas com um maior número de registros imagéticos. Os holandeses registraram as terras nordestinas conquistadas também em forma de textos outros além daquele produzido por Barléus os quais participaram da comitiva nassoviana ao Brasil e registraram, em forma de listagens e descrições, as áreas povoadas, rios e outras estruturas edificadas que conformavam a ocupação portuguesa das capitanias, inclusive as construções holandesas essencialmente de caráter militar. Por consistir em dados diretamente relacionados aos núcleos povoados, o conteúdo desses registros foram selecionados dentre um conjunto de cerca de 20 obras, especialmente aquelas que incorporam as “Fontes para o Brasil Holandês – economia açucareira”, de Gonsalves de Mello (1981), para serem revisados com mais atenção. 3404 Este material refere-se a uma série de localidades urbanas, mas se concentra no registro da região Nordeste, destacando neste universo a Capitania de Pernambuco por obviamente sediar o governo colonial português e, no século XVII, o governo holandês, colocando-a em situação privilegiada para a realização de estudos baseados em fontes seiscentistas, especialmente as iconográficas. Além de registrarem o desenvolvimento dos processos de representação da época, as imagens, ao darem visibilidade às vilas seiscentistas de Pernambuco, permitem apreender tentativas urbanísticas que se valem das conquistas renascentistas trazidas pelo avanço da lógica matemática e do empiricismo pragmático vigentes em Portugal.3405 Portanto, a própria experiência urbanística portuguesa merece um estudo aprofundado, dentro da questão da produção do saber. Para avançar no entendimento de como seria a vila pernambucana no século XVII em termos de desenho urbano por parte dos colonizadores, a análise dos documentos de época resultou na identificação dos componentes. A implantação das massas edificadas, a relação entre os elementos naturais e edificados, os sistemas de circulação, o assentamento do conjunto edificado, dentre outros aspectos, foram elementos tomados como objeto de análise. Após essa identificação, suas situações urbanas foram postas em comparação com base em um legado que revela um saber cartográfico, geográfico e arquitetônico relevante, produzido por um olhar estrangeiro, mas mobilizado e sensibilizado pelo meio, permitindo a visualização das primeiras formas urbanas desses núcleos antigos. No processo de observação desse material não apenas procurou-se reconhecer os traços físicos das vilas, como também considerar a própria forma como essas informações foram registradas, admitindo as expressões textuais e pictóricas dos autores como a composição de uma história, uma narrativa. Nessa perspectiva, as vilas pernambucanas no contexto seiscentista constituem o objeto de estudo, assim como as próprias fontes de investigação: o conteúdo simbólico e subjetivo desse conjunto documental foi considerado no estudo sobre a organização espacial das vilas. Portanto, este artigo trata, sobretudo, da vila registrada em duas linguagens: textos e imagens de época. Duas narrativas produzidas por olhares estrangeiros, cuja revisão, a qual requereu a construção de uma lente de observação baseada nos códigos reconhecidos nesses próprios documentos, resultou na composição de uma outra narrativa aqui apresentada. 3406 3404

Segundo o historiador, essa documentação revela o interesse holandês pela produção açucareira, o qual explica em larga parte a iniciativa holandesa da conquista do Nordeste. Desde fins do século XVI iniciou-se e ampliou-se no começo do seguinte a participação holandesa no transporte do açúcar do Brasil para o Norte da Europa, depois de beneficiado nas refinarias que começaram a surgir em número avultado nos Países Baixos. Essa participação crescente do açúcar brasileiro na economia holandesa explica a ação militar da Companhia das índias Ocidentais contra a Bahia e Pernambuco. A trégua dos Doze Anos (160921) permitiu considerável aumento no comércio direto da Europa do Norte com o Brasil, ou indireto, via Portugal; e desse aumento dá testemunho o número de refinarias instaladas em cidades holandesas, em especial de Amsterdam. (MELLO, 1981, p.08) 3405 CARITA, 1999, p.150. 3406 Segundo Derrida, a criação de um signo é resultado de uma elaboração intelectual a que se somam as formas de ver o mundo. Se os signos podem ser entendidos como um texto, e estes, por extensão, consistem em uma produção cultural, a idéia de que significados são imanentes, inerentes às palavras, deve ser rejeitada, pois, “se as palavras e os conceitos só adquirem sentido nos encadeamentos de diferenças, não se pode justificar sua linguagem, e a escolha dos termos, senão no interior de uma tópica e de uma estratégia histórica. Portanto, a

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ISSN 2358-4912 As Vilas dos Textos e Imagens As imagens apresentam muitos outros elementos naturais e edificados além daqueles que são diretamente indicadas por legendas ou mais facilmente observadas como a área urbana, as massas de água, as fortificações, o que não acontece com a indicação de trilhas e caminhos, por exemplo, que geralmente não são nomeadas. Os mesmos recortes imagéticos que enquadram as vilas podem adquirir formatos diferenciados, apresentando variações de proporção das figurações, nas dimensões dos edifícios, locação e distâncias dos elementos naturais e edificados. A área correspondente ao interior do território onde se apresenta, constantemente, elementos da natureza, como vegetação; extensões de rio ou montanhas, constituindo uma área possivelmente de composição mais livre, também foram submetidas a interrogações. Especialmente no caso dos mapas portugueses, observou-se que a forma dessas figurações da natureza torna-se esquemática e simplificada. Representações da flora surgem em maior quantidade nas imediações das áreas que sinalizam a existência de núcleos povoados, e também se sujeitam a convenções. Nota-se que a parte dos mapas que representa o interior das terras contrasta negativamente, em termos de número de informações, com a que registra ao longo da costa as quais indicam nomes de rios, sinais de habitação à beira do mar, o entorno dos núcleos urbanos e informam sobre as características físico-geográficas do território. Já as informações obtidas através da análise da iconografia holandesa, estas reforçaram sua validade enquanto registro no que se referem, mais especificamente, à representação e localização de edifícios, e das características geográficas do sítio, revelando a intenção de Margrave e Post em registrar as localidades com um certo grau de detalhamento. Quanto aos textos de época, independente de seu formato literário, pode-se reconhecer uma variedade de situações urbanas a partir, principalmente, das descrições dos elementos componentes do sítio, que também revelam dados importantes sobre esse momento, muitas vezes impossíveis de serem “contados” em forma de desenho. A linguagem da palavra revela que a Capitania de Pernambuco se mostrava como um expressivo pólo econômico e produtivo da região, condição que não pôde ser representada ou reconhecida nas imagens de Frans Post, por exemplo. Nessa perspectiva, determinados conteúdos do Brasil seiscentista indicados no conjunto iconográfico só adquirem maiores proporções de significado através de situações registradas na forma de escrita. É o caso das descrições dos trajetos, muitas vezes percorridos perigosamente, que sinalizam os acessos e ligações entre os núcleos habitados e, por extensão, reforçam a importância dos caminhos para o entendimento da dinâmica urbana daquele momento. Ao apresentarem comparações de semelhança entre lugares de condições urbanas diferenciadas, como a antiga e singela Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul e a reconhecida Vila de Santa Cruz e dos Santos Cosme e Damião de Igarassu, os relatos dos viajantes contribuem para o esclarecimento de suspeitas denunciadas pelo conjunto iconográfico. Através do embate entre esses documentos pode-se reconhecer a correspondência entre elementos descritos nos textos e nas imagens relativa aos elementos edificados, tais como: áreas fortificadas, povoações e portos. Nessas descrições, que são essencialmente da paisagem edificada, há a indicação dos rios navegáveis e massas de águas revelando a importância desses caminhos móveis para o entendimento e estruturação da rede de ocupação urbana colonial. De uma maneira geral, nota-se que os relatórios apresentam informações mais sistematizadas acerca do conteúdo paisagístico do território da Capitania de Pernambuco do que os mapas que não indicam todas informações descritas nos relatórios. Por outro lado, há uma informação iconográfica que não é mencionada nas fontes escritas até agora revisadas. Trata-se do chamado “caminho do conde” que liga a cidade de Porto Calvo até São Francisco, o limite urbano sul da

significação não pode jamais ser absoluta e definitiva” (DERRIDA, 1973, p.86). De acordo com o filósofo, o significado nunca é transparente, mas sempre produzido socialmente, de maneira que não existe uma verdade absoluta sobre o mesmo, sempre interpretado de uma maneira individualizada: “a escritura é um sistema total... aberto a todas as cargas de sentidos possíveis” (Idem. Ibdem, p.55).

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ISSN 2358-4912 Capitania, cuja indicação, através de legenda, foi reconhecida no detalhe do mapa geográfico e hidrográfico de Georg Marcgrave, bem como o “Caminho do Camarão”. As plantas e vistas do conjunto iconográfico holandês também compartilham de certos aspectos registrados. Expressões da topografia aparecem em todas as imagens, bem como as massas de água, incluindo a situação de Igarassu se se considerar a sua presença entre a Vila e a Ilha de Itamaracá que estava, como desenhou e descreveu Post, “visível ao longe”. Contudo, essa correspondência já não é tão uniforme quando se trata da representação da arquitetura. Em alguns casos, as vilas aparecem com mais conteúdo edificado em planta do que em vista. Como, por exemplo, São Francisco, cujo registro elaborado por Post descarta a indicação, textual ou iconográfica, da igreja e da casa do governador indicados por Marcgrave. Obviamente, há mais dificuldades em dar conta do registro da paisagem quando se tem que escolher um ângulo de visada, o que inevitavelmente resulta em ressaltar uma e outra informação em detrimento de outras, do que quando se “olha” o lugar de cima, tendo em mãos apenas os limites do papel. Mesmo considerando os limites do olhar, atenta-se, entretanto, para a maioria dos registros de Post do núcleo edificado das vilas, as quais, a julgar pela disponibilidade de instrumentos de aproximação do objeto observado como a luneta,3407 por exemplo, poderiam ter tomado todo o espaço da tela ao invés de aparecem como uma mancha suave no fundo do quadro, em comparação com a proporção e carga pictórica que o pintor reservou ao registro do céu, da água e da vegetação, sugerindo que a fisionomia da natureza da nova terra era, para Post, mais surpreendente do que propriamente o espaço edificado. Nem mesmo às cenas de guerra, o pintor manteve-se fiel ao retratar o contexto do governo nassoviano. Das sete obras revisadas a atmosfera militar está explicita apenas em uma delas, na “batalha de Porto Calvo”, aparecendo mais discreta nas ruínas de Igarassu e Olinda. As outras aparecem num ponto distanciado do enquadramento, participando como coadjuvantes da abrangência paisagística de aparência tranqüila, sugerindo conterem menos uma carga de intenção documental e mais contemplativa.3408 De uma linguagem ou de outra, pode-se perceber que os documentos de época, conjuntamente, informam sobre importantes aspectos acerca da ocupação urbana colonial, quais sejam: a idéia de movimentação comercial, sugerida pelos vários engenhos construídos na região; a idéia de segurança, marcada pelas fortificações e pela aparência do sítio ocupado caracterizado por áreas de planalto, e a idéia de acesso, comunicação e troca, representada pelo porto e pelos caminhos, sejam esses por terra ou por água. Relativamente ao desenho urbano dessas localidades, dos registros seiscentistas revisados pode-se sistematizar os seguintes aspectos: ASPECTOS/VILA Caracterização do sítio de ocupação Edifícios integrantes aglomerado urbano Extremidades contigüidade urbana

do

da

Sentido da extensão urbana, englobando os caminhos

3407 3408

Igarassu Relevo acidentad o com rio. Igreja, convento e casario Convento e Casa do governado r Norte-sul

ALPERS, 1999, p.100. LEITE, 1967, p.36.

Olinda Relevo acidentado com rio e mar. Igrejas, conventos, casario, casa do governador e muralha Igrejas, conventos e muralha

Serinhaém Relevo acidentado com rio. Capela, Igreja, convento, casa do governador e casario

Porto Calvo Relevo acidentado, com rio. Igreja, casario e forte

Alagoas do Sul Relevo acidentado com lagoa.

Convento e Casa do governador

Igreja e forte

Igreja e reduto

Igreja e casa do governador

Tendendo para uma centralidade

Leste-oeste

Tendendo para uma centralidade

Norte-sul

Tendendo para uma centralidade

Igreja, casario e reduto

São Francisco Relevo acidentado com rio. Igreja, casa do governador, casario e porto

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ISSN 2358-4912 Configuração dos caminhos marcada pelas extremidades da contigüidade urbana Configuração do conjunto de caminhos

Traço linear quase reto

-

Traços em malha densa, estrutura radiocêntrica

Traço linear quase reto

Traços lineares quase retos, alongados e paralelos

Traço linear quase reto

Traços espaçados em malha rala, estrutura radiocêntrica

Traços concentrados em malha densa, estrutura radiocêntrica

Traço linear quase reto

Traços espaçados em malha rala, estrutura radiocêntric a

Traço linear quase reto

Traços espaçados em malha rala, estrutura radiocêntrica

Quadro geral das situações urbanas das vilas. Fonte: MACHADO, 2009, p. 193. Tal sistematização dos estudos comparativos indica que as intervenções arquitetônicas no meio físico impressas nas vilas apresentam aspectos de assentamento e estruturação urbana recorrentes, que vão desde a escolha do sítio ocupado até a locação de determinados edifícios, indicando que elas compartilham de uma lógica comum de assentamento. Por outro lado, as situações urbanas das vilas contrapostas entre si fogem à idéia de terem adotado um modelo (um formato, um procedimento tido como invariável) de implantação, por não compartilham da imagem de um planejamento rígido, sugerindo terem seguido padrões de métodos (um modo de operar) de princípios de assentamento, que permitem a formação múltipla de resultados, como se, de certa forma, o lugar dissesse como as vilas deveriam ser... A análise da iconografia histórica comprova, pois, que as vilas estudadas pautaram-se por uma proposta urbana que atenta para as características topográficas. O sítio apresentou-se como ingrediente fundamental no desenho urbano, trazendo um forte argumento para que fossem dotadas de personificação paisagística e comprovando a assertiva de parte da literatura sobre a história do urbanismo colonial que afirma a sabedoria de caráter pragmática portuguesa de conduzir-se pela leitura prévia do sítio, gerando uma implantação condicionada por ele. Nessa perspectiva, acredita-se que só faz sentido pensar o ambiente urbano quando locado no sítio. Um Signo Chamado Vila Viu-se que para um povoado ser vila, tinha que ter igreja, casa e caminhos, por água e por terra, muitos desses últimos enladeirados. Segundo Post, também tinha que ter pessoas, animais que encenassem a vida cotidiana. A igreja tinha que estar em local mais alto que outros edifícios e na extremidade dos limites do conjunto edificado, “distantes e desacompanhadas”, como Diogo de Campos Moreno qualificou parte da paisagem de Olinda. Este tinha que ser constituído por estruturas outras situadas além da contigüidade urbana, como o porto e o engenho, mas ligados pelos caminhos. Assim, pode-se sintetizar que esse conjunto edificado relacionado com as massas de água e com a topografia, consiste no signo físico da vila, pois, os demais edifícios reconhecidos e suas locações variam de vila para vila. Se não foi possível reconhecer um padrão de assentamento, e sim um método de instalação dos edifícios, pode-se pensar que no sentido da vila permeia uma idéia. E nessa idéia cabe incorporar as outras construções identificadas - o convento, a casa do governador, as fortificações, as pontes. Todas essas desenhadas por Albernaz, Marcgrave e Post são sinais do pensamento colonizador, que é transferido para o lugar colonizado. Esse processo, que inicialmente desconsidera qualquer expressão local, parte de um desenho mental, configurando um signo vila consolidado por idéias de caráter religioso, político-administrativo, econômico e também protetor. Como visto, esse bloco de idéias, contudo, não chega até a colônia com um formato definido, e sim são adaptadas às expressões particulares do sítio, ao que se refere à locação dos edifícios, e das demandas do próprio núcleo habitado. É o que faz, na primeira metade do século XVII, Olinda ter 3 conventos, Serinhaém e Igarassu 1, e Porto Calvo, Alagoa do Sul e São Francisco, nenhum, por exemplo.

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ISSN 2358-4912 Essa variedade compositiva em termos de conteúdo edificado das vilas, aponta para uma outra definição signica acerca de sua qualidade de “urbana”. Em primeiro lugar, a vila é, antes de qualquer definição categórica, um espaço habitado, caracterizado, à priori, pela concentração de pessoas e, por extensão, de edifícios. É, portanto, um espaço de permanência. Tal estabilidade permeou as motivações de Duarte Coelho a escrever ao Rei de Portugal, então D. João III, relatando seu desejo de tomar Pernambuco para si e povoá-la. O povoado significa, nesse sentido, a consolidação da posse do território. Indica, pois, que o signo básico da colonização seria a urbe, reconhecida através da aglomeração de pessoas, pela coletividade. É, portanto, o espaço ocupado e seu sentido de permanência que permeia a noção de urbano. Entretanto, um espaço urbano não se faz enquanto ato isolado. Ele participa de um conjunto de núcleos habitados, como previsto pelo próprio donatário supracitado ao afirmar que era “conveniente fazerem-se as povoações no Brasil distantes uma das outras, para assim, se dilatar a Nova Lusitânia e fazer grande a nova colônia”.3409 Este trabalho mostrou que a imagem consiste em um instrumento válido para os estudos urbanísticos, mas não se pode negar que trabalhar com a iconografia histórica isoladamente revelou-se um caminho escorregadio de investigação. Ela impõe uma série de limites de entendimento: por que apenas Serinhaém apresenta o casario dividido em lotes? Por que Marcgrave não registrou as casas de Olinda? Por que ele desenhou as vilas em enquadramentos diferenciados? Qual a intenção de Frans Post ao retratar Igarassu diferente do perfil das demais? Lacunas que talvez nunca possam ser desvendadas... Ao mesmo tempo em que reforçam a validade dos estudos imagéticos por abrirem outras frentes de pesquisa, essas questões apontam para a necessidade de um aprimorando do olhar sobre esse mesmo material, rumo ao incremento do exercício de sua manipulação (como o embate entre tipos distintos de representação, como plantas e vistas, por exemplo). Sugerem também a validade do cruzamento de fontes de tempos e linguagens variados como forma de construir bases mais sólidas para sustentar as análises, sejam essas impressas em papéis ou nas próprias paisagens. Mas, essas últimas abordagens talvez nunca consigam revelar com tanta eficácia a expressiva carga de conteúdo urbano das antigas vilas como aquele contido no gesto de Post ao retratar o “modo de levar as portuguesas à igreja”.3410 Referências ALBUQUERQUE, Duarte Coelho. Carta de 1546. Disponível no acervo da Torre do Tombo em Lisboa. TT, ref.PT-TT-CC-1/78/105. ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. Tradução Antônio de Pádua Danesi, São Paulo, Edusp, 1999. BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante os oito anos no Brasil, (1647). Rio de Janeiro: Instituto da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. CDrom. CARITA, Helder. Lisboa manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna, 14951521. Lisboa: Horizonte,1999. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. LEITE, José Roberto Teixeira. A Pintura no Brasil Holandês. Rio de Janeiro. G.R.D. 1967. MACHADO, Roseline V. O. Pernambuco no papel: o desenho de seis vilas pernambucanas na representação iconográfica de Albernaz, Marcgrave e Post. Salvador: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 2009. (Tese de doutorado) MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981.

3409

DUARTE, 1546. In: TT, ref.PT-TT-CC-1/78/105. Tradução da legenda da vista de Igarassu elaborada por Frans Post e publicada na obra de Gaspar Barléus de 1647.

3410

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ESPAÇOS DE NEGOCIAÇÃO: OMAGUA E JESUÍTAS E O DISCURSO ESPANHOL NO SÉCULO XVIII Rosemeire Oliveira Souza3411

O presente texto faz parte de uma pesquisa que tem como foco as populações Omaguas no alto amazonas nos séculos XVI a XVIII. Essas populações ganharam destaque na documentação sobre a Amazônia Colonial figurando tanto nos escritos portugueses quanto nos espanhóis. Segundo as fontes, essas populações possuíram um papel importante no cenário amazônico como notamos nos escritos de Juan de Velasco, um dos cronistas oficiais de Las Indias: Bajó el siguiente año, navegando otras 100 leguas por el Marañon con las misma armada hasta la nación Omagua habitadora de sus islas. Ella se distingue entre todas por la cabeza prolongada que la comprimen desde la infancia con cierta prensa formada de tablillas. Ella es la Fenicia americana, por el arte y destreza de navegar; ella se precia de la más noble entre todas, a las cuales las ve como de baja esfera: su idioma es el más copioso y dulce que se há hallado en aquellos países, y de él son dialectos, varios otros: su noble proceder sus operaciones menos bárbaras y varias otras propriedades que la caracetrizam(sic) muestra claramente ser parte de alguna gran República o monarquía que formaban en tiempos más antiguos.( VELASCO,1844, p. 479).

Para Juan de Velasco essa nação acumulava qualidades e condições que fizeram o cronista acreditar que faziam parte de uma antiga república ou monarquia. Assim, Velasco as qualificou como destra ao navegar, nobres em seu atuar e proceder, dignos de ser chamados de “fenícios americanos”. O objetivo do presente texto é, portanto, perceber as populações Omaguas e as negociações empreendidas por suas lideranças no espaço da missão. A região é o alto amazonas, mais precisamente a região de Maynas, o tempo: séculos XVIIXVIII e como fontes utilizar-se-ão o diário de Samuel Fritz como também a Carta de Juan Baptista Sana, sendo os dois autores representantes da companhia de Jesus, a serviço da coroa espanhola.3412Em relação ao diário de Fritz trabalhamos com a versão presente na obra de Pablo Maroni3413, Noticias Autenticas del Famoso Rio Maranon (1738), e em relação ao padre Sana trabalhamos com uma carta que este enviou a Fritz da redução de Santa Maria Mayor de Yurimaguas em 1707, documentos manuscritos presentes no Arquivo de Las Indias, em Sevilha.3414 Segundo Torres-Londoño, nos séculos XVII e XVIII a presença missionária nos territórios que hoje em dia fazem parte da Amazônia legal do Peru, Equador, Colômbia e Brasil, esteve associada, em grande parte, ao projeto evangelizador que ficou conhecido como missões de Maynas ou missões do Colégio de Quito no Marañon. A dinâmica de redução das populações 3411

Doutoranda-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-Bolsista FAPESP. Email: [email protected] 3412 Nascido na Boêmia em 1654, Samuel Fritz era de família nobre e estudava humanidades e filosofia; ingressou na Companhia de Jesus aos 19 anos e aos 31 embarcou para a América com destino à Província de Quito. Entre 1686 e 1688 viajou e trabalhou incessantemente ao longo de mais de 1000 Km do alto Amazonas, entre o Napo e o Japurá, catequizando os Omagua, Yurimágua, Aisuari e Ibanoma. Juan Baptista Sanna fora o substituto de Fritz, quando este fora nomeado Superior de todas as missões do Maranon, em 1704, ficando assim responsável pelo trabalho junto aos Omaguas e demais grupos vindos do Solimões, In: PORRO, Antônio, As Crônicas do Rio Amazonas: tradução, introdução e notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia, Rio de Janeiro, Vozes, 1992, Págs. 158-160. 3413 MARONI, Pablo, Noticias Autenticas del Famoso Rio Marañon (1738), seguidas de las relaciones de los P.P.A. de Zárate Y J. Magnin (1735,1740), (Jean Pierre Chaumeil ed.), IIAP, CETA, Iquitos, 1988. 3414 Carta de Juan Baptista Sana a Samuel Fritz, 26 de diciembre de 1707, Archivo General de Indias, QUITO, 158, F.212r-213r.

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ISSN 2358-4912 indígenas nessa missão, apesar de se enquadrar dentro do projeto jesuíta, apresenta especificidades derivadas das condições particulares que os missionários tiveram de enfrentar para desenvolver seu trabalho evangelizador. (Londoño, 2009, pág. 124). O jesuíta Samuel Fritz deu início a seu trabalho de evangelização junto aos Omaguas no ano de 1686, segundo ele a pedido destes, que procuravam “proteção” devido às investidas portuguesas na região. O certo é que desde as primeiras ações espanholas nos espaços hoje amazônicos, as populações Omaguas receberam destaque na documentação produzida, seja pela riqueza que acreditava-se a região possuir, ou pela ação de suas populações que figurava em diferentes discursos como uma poderosa nação no contexto do rio.3415 No repertório do Diário de Fritz encontram-se expressões como: missão, pueblos, caciques, curacas, aldeias, mision, reduccion, províncias, Omaguas, Yurimaguas, Aizuares, herramientas, comércio, negociação, escravos, violências, portugueses, carmelitas, Grão-Pará, castigo, resistência, tropa de guerra, iglesia, pueblo, bautismo, doctrinero, doctrinando, neófitos, resgates, etc. Com essas expressões tem-se ideia do contexto histórico segundo o missionário que viveu quarenta anos no alto amazonas, em um tempo de disputa entre Espanha e Portugal pelas regiões amazônicas. Saliente-se que uma das ações dos jesuítas constituía-se no denunciar os problemas referentes à presença portuguesa na região: a ação das tropas de resgate portuguesas que nas palavras de Fritz desestruturava de forma violenta as populações indígenas, e a problemática da demarcação dos limites territoriais entre as duas coroas. Sendo assim, é sob tal contexto de disputa é que o missionário descreveu aspectos do universo Omagua. Em relação às áreas habitadas por essas populações o autor as denominou como províncias, usando a expressão “pueblos” para se referir a tais populações. Na citação abaixo temos na ótica do cronista a descrição de San Joaquim de Omaguas, principal núcleo missioneiro no qual Fritz realizou seu trabalho de evangelização: A 3 de novembro (de1691) cheguei, pela tarde, a Maiavara (Mayavara). A 4 a Euataran (Quataran). A 5 a Arasaté. A 6 a Marabité (Miravité). Quase em frente dessa aldeia fica a boca do Jutái, que desce do Cuzco. Fomos dormir um quarto de légua mais acima, em um aral que chamam da Oração (..) Meia légua mais acima está a outra boca do Jutaí. A 7 cheguei a Canafia. Em frente dessa aldeia está a boca principal do rio Jutaí. A 8 cheguei a Ibiraté(Ibarate). A 9 a Uaté. Parti no dia seguinte. A 11 a Cuatinivaté. A 12 a Cucunaté. A 13 caminhamos junto ás terras altas dos Caivisanas, à margem do norte. A 14 cheguei a Maracaté. A 15 a Catorerá. Aqui parei seis dias, doutrinando a gente. A 22 parti de Catoreará. A 24 cheguei a Joeté. A 25 a Janasaté(Yuvasate). A 26 a Ameneauté(Menebate). A 27 a Chipatité. A 29 a Tucuté, onde parei o dia seguinte. A 1 de Dezembro parti de Tucuté. A 2 cheguei a Arapataté(Arupapate); à noite a Coquité. A 3 a Guacaraté. A 5 cheguei a ameiguaté(Amciavete). Aqui passei o dia seguinte. A 7 partí. A 8 cheguei a Quematé. A 9, antes do amanhecer, passamos a boca do Junari(Yavari). A 11 cheguei a Joauaté. Aqui parei outro dia. A 13 parti de Joaiuaté(sic). A 14 passamos três correntes grandes; e a 22 de Dezembro, pela tarde, cheguei à redução de são Joaquim, princípio da minha missão.

(FRITZ, 1988, p. 325)

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Desde o segundo quartel do século XVII os jesuítas da Província de Quito haviam descido o Napo e o Marañon, levando a catequese em direção ás terras baixas da Amazônia. Apesar da boa navegabilidade dos rios, o trabalho era dificultado pela diversidade de línguas e culturas indígenas, pelas grandes distâncias, pela floresta e clima insalubre e, principalmente, pelo número reduzido de missionários. Em 1680 havia missões e reduções de índios ao longo do Ucayali, do Huallaga, do Marañon e do Napo, mas não abaixo da junção dos dois últimos, onde o Marañon passa a chamar-se, modernamente, Amazonas. Daí para baixo, a conquista espiritual da Gram Omagua, iniciada e abandonada pelos franciscanos Pedro Pecador e Laureano de La Cruz antes de 1650, vinha sendo planejada pelos jesuítas especialmente a partir de 1681; neste ano o P. Lorenzo Lucero recebeu em Santiago de la Laguna, no Huallaga, a visita de um grupo de Omágua que lhe pediram o envio de um missionário (Notícias Autênticas, parte 3, cap. 3, § I). Isto só foi possível em 1686, quando o superior P. Francisco Viva, que sucedera a Lucero, designou para a tarefa o P. Samuel Frtiz, recém-chegado da Europa. In: PORRO, Antônio, As Crônicas, pág., 158.

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ISSN 2358-4912 Conforme observamos, Fritz descreveu vinte e três espaços que no decorrer do texto passaram a ser nomeados como aldeias Omaguas que seriam: Maiavara(Mayavara); Euataran(Quataran); Arasaté; Marabité (Miravité); Canafia; Ibiraté(Ibarate); Uaté; Cuatinivaté; Cucunaté; Caivisanas, Maracaté; Catorerá; Joeté; Janasaté(Yuvasate); Ameneauté(Menebate;). Chipatité; Tucuté, Arapataté(Arupapate); Coquité; Guacaraté; ameiguaté(Amciavete); Quematé; Joauaté. Assim esta era a constituição de São Joaquim dos Omaguas existindo outras áreas dentro do espaço da missão como percebe-se abaixo: Y al presente tengo ya sujetas al Evangelio de Cristo treinta y ocho aldeas de la província Omagua, la reduccion de N.ª S.ª de las Nieves de la nación Yurimagua y dos aldeas de la nación Aizuari(sic). En las ocho primeras reducciones de Omaguas, bautizados los pequenos y adultos; en las demas sólo los inocentes. (FRITZ, 1988, p. 329)

Ao todo o autor mencionou trinta e oito aldeias Omaguas, e essas aldeias possuíam suas lideranças que o autor denominou como caciques. Após observações outro aspecto que chama atenção no relato, é a ideia de resistência que Fritz faz questão de mencionar: Tambien he reparado que estos indios oyen con atencion las cosas de la fe y muestran deseo de aprenderlas, muy à lo contrario de los Omaguas, que mientras los estoy catequizando se diverten y parlan.(FRITZ, 1988, p. 339)

Nas entrelinhas percebe-se um desajuste, entre Fritz e os Omaguas. E tal desajuste pode ser definido como a não aceitação de grupos Omaguas em relação à evangelização proposta por Fritz, demonstrando assim a missão também como um espaço de tensão e de negociação no qual se destacou a ação de lideranças, como a do cacique Payoreva. Ação esta que fez Fritz enfatizar seu apreço pelos Yurimaguas. E esta resistência é sentida em relação ao processo de evangelização como também nas relações entre os índios e os demais espanhóis. Fritz utiliza a palavra motim algumas vezes, demonstrando a não aceitação pelos Omaguas de regras, condutas, ou seja, as imposições sofridas pelo grupo mediante a implantação do projeto colonial. Como los Omaguas estaban muy alboratados y los dos Padres que habia dejado en San Joachim se habian venido para arriba atropelladamente, recelosos de alguna traicion, me vi precisado bajar por allá à ver si podia sosegar aquel tumulto y averiguar de raiz de su origen. Hallé no haber sido sólo sospechas de los Padres de que querian alzarse, en la realidad, culpa de algunos indios, que, por su natureza altivos, extrañaban toda sujecion y castigo y querian mantener ciertas costumbres gentílicas contrarias al cristianismo; y como los padres, llevado de su celo, querian con eficacia corregir aquel desorden, impacientes los indios, llegaron à esparcir unas voces confusas que los matarian, para ver si podian con esto amedrentarlos, conforme habian hecho muchas veces tambien conmigo. De hecho hallé que un indio, despeus de la salida de los Padre, à golpe de macana habia hecho pedazos la caja de las alhajas de la iglesia y profanado algunas imágenes sagradas; (...).

(FRITZ, 1988, p. 345) Na passagem acima os padres estariam desconfiando de uma traição por parte dos índios. E o motivo, novamente, era a recusa à mudança de comportamento pretendida pelos religiosos. Como percebe-se os costumes indígenas soavam como desordem. Ameaçar os religiosos foi uma das estratégias utilizadas pelas populações face a uma série de imposições da religiosidade espanhola. Entretanto, a maior resistência enfrentada pelo cronista constituiu-se no cacique Payoreva. Segundo o relato, este era uma liderança principal Omagua que desafiava Fritz e os demais religiosos, conseguindo que diferentes grupos se unissem a ele no intuito de enfrentar os poderes espanhóis, como nota-se na passagem abaixo:

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ISSN 2358-4912 Á 23 de agosto llegó à San Joachim la armadilla con 20 españoles y más de 200 indios de arriba. Por cabo vino el teniente Antônio Manrique y el P. Pedro Seruela por capellan. Luego que llegaron, se hizo averiguacion sobre el alzamiento que habian urdido, y se supo, que el cacique principal, llamado Payoreva, con sus allegados, habian convidado á los Caumaris y Pevas infieles á que, viniendo de repente, pegasen fuego á la iglesia y casa del Padre, que ellos estaríam prontos para matarlo á macanazos, caso que saliese vivo de la quema; y lo mismo harian con los índios que estuviesen de su parte. No quiso Dios se ejecutase la maldad, acobardándose los infieles. El teniente, averiguado el caso, mandó prender al cacique Payoreva y á Fabian Camuria, quien era reo de otros muchos delitos. Despues de esto, pasamos con la tropa al pueblo de San Pablo donde se habían juntado muchos Omaguas alzados y habian convidado á los Ticunas, con ánimo de acometernos á cara descubierta en la plaza ó ribera de aquella reducción y matarmos a todos.(FRITZ,

1988, p. 349) Pelo relato de Fritz, essa não foi à única ação de Payoreva contra o religioso, pois temos ainda: Habiéndose huido de Borja Payoreva, caudillo de los alzados, llegó a princípios de febrero a este pueblo de San Joaquim á escondidas, y habiendo juntado de noche á toda la gente, fueron tantas las mentiras que les dijo, que los más resolvieron desamparar la reduccion y retirarse al rio Uruá. Dentro de pocos días quedé aquí con solo diez índios, quienes me dijeron se habian ido los demas huyendo con ánimo de juntar á sus amigos los gentiles y con ellos consumir Padres y españoles, si es que se atreviesen bajar á sus tierras. Viendo yo que por entonces no era tan facil sosegar aquel tumulto y que estando sin gente podian los Caumaris acometernos, determiné pasar con las alhajas de la iglesia à la reducción de los Yurimaguas, cada cual puede imaginar con que sentimiento, por verme precisado desamparar lo que me había costado tanto afán por más de diez y seis años, (..).(FRITZ,

1988, p. 350) Por via dos demais trechos notamos também que apesar da aparente boa vontade do jesuíta, o cacique não estava disposto a ceder aos conselhos do padre: El dia 30 llegué a Ibiraté, donde encontré á Payoreva con los demás fugitivos. Habléles con amor y les persuadí la vuelta, prometiendo á Payoreva no le llevarían otra vez preso los españoles, si diese pruebas de su enmienda; pero como es de tan mal natural, dudo mucho si se aprovechará de mis consejos. El fraile me dijo le quería despachar amarrado para el Pará, porque á él tambien, en San Pablo, intento quitarle la vida. De allí revolví para San Joachim con la mayor parte de los huidos, dando muchas gracias á Dios de haber salido con bien en esta mi jornada, que muchos tuvieron por muy arriesgada.(FRITZ, 1988, p. 351)

Também segundo o documento, Payoreva gostava de mentir e ameaçar outras populações, o que Fritz tentava contornar. Outra ideia percebida é em relação à liderança de Payoreva. Segundo percebe-se, ele mobilizava diferentes grupos para atingir seus objetivos, o que nos permite inferir que alianças também eram fundamentais no referido contexto. A palavra negociar também fazia parte no universo de Fritz, envolvendo atores do universo indígena e do europeu, definindo assim nas diferentes relações os aliados ou os inimigos. Desta forma através das ações do cacique Payoreva é possível repensar o papel das lideranças Omaguas no contexto a que estavam submetidos, mostrando como eram complexas as relações estabelecidas nos espaços de redução, e como as alianças eram instáveis dependendo do interesse dos grupos envolvidos. O certo é que as populações indígenas aqui expressas pelos grupos Omaguas conseguiram através das alianças ou da força “negociar” e impor aos padres a sua voz em um ambiente de tensão pela disputa que envolvia as coras ibéricas no referido contexto.

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ISSN 2358-4912 A ação do cacique Payoreva também foi mencionada no artigo de Maria Cristina Bohn Martins, Missionários, Indígenas e a Negociação da autoridade Maynas no diário do Pe. Samuel Fritz. Segundo a autora a história de Payoreva ilustra a complexidade das relações travadas ente índios, missionários, portugueses e espanhóis, e os limites das alianças travadas entre eles. Também o quanto as posições de autoridade estabeleciam-se e se desfaziam-se, num quadro de grande instabilidade que foi, a marca das Missões de Maynas.( MARTINS, 2009, p. 138-139). A carta do Padre Juan Baptista Sana escrita em 1707 e dirigida ao superior Fritz foi um documento segundo o qual pode-se dimensionar o que significou a disputa colonial entre as coroas ibéricas para as populações indígenas na região de Maynas. O texto informa sobre uma tropa portuguesa chegada a redução de Yurimagua com a intenção de resgatar índios fugitivos que estariam no referido espaço como nota-se no trecho abaixo: El día diez de diciembre llegó a neste Pueblo de losYurimaguas uma armadilha de portugueses com 11 soldados y 200 indios governada por su cabo, el capitán José Piñeiro Marques y con fray Antonio de Andrade, religioso carmelita a cuya instancia de fray Antonio, por um requerimento que lehizo, se vio obligado dicho capitán a venir acá para llevar las famílias de los índios heridos de las misiones que años passados nos quitaron por fuerza los religiosos del Carmen Calzado. Me requirió por tres veces entregar se dichas famílias que yo tenía, y que de no [hacerlo] sería causa de las muertes y vejaciones que se harían en este Pueblo. Respondí a esto que, supuesto estaba en tierras de España, pidiese território al gobernador de estas missiones, y que yo no podia entregar dichas famílias, que eso tocaba al fuero secular. (SANA, 1707, f. 212r)

Na continuidade da carta nota-se o embate entre o religioso e o capitão. Em outro episódio o capitão José Piñeiro Marques não encontrando os índios fugitivos procurados voltou suas ações contra as populações Yurimagua e as demais províncias Omagua causando tensão nos espaços do rio: Há causado tanto miedo esta armada en las províncias Omagua y Yurimagua, ya bautizadas y divididas en 18 pueblos, que todos van desamparando sus pueblos, y los más lo han ejecutado. Y en este Pueblo de Santa María Mayor, em donde estuvo la armada 14 días, há quedado tal horror que no tratan sino de huirse, y algunos lo han ejecutado ya, que ni aun los mismos del Pueblo saben en donde están. (SANA, 1707, f. 212r)

Como saldo desta ação segundo o padre Sana a tropa portuguesa havia levado da província de Yurimaguas y Omaguas mais de cem pessoas entre crianças e adultos, ficando ainda a ameaça de retorno de uma tropa maior que levaria as 1300 famílias existentes nas duas províncias segundo constava no livro de batismos. Em meio ao contexto de disputa entre as coroas o padre Sana também destacou em seus escritos o papel das lideranças indígenas. No caso especifico dos Omaguas, relatou em uma carta enviada a seus superiores a exigência de quinze caciques para que os espanhóis não os desamparassem, caso contrário sairiam do espaço da missão. Ainda na mesma carta tem-se indícios das ações dos caciques, pois: El cacique de este pueblo, Gerónimo Mativa, me disse quiere irse con su gente lejos a fundar su pueblo en outro río. La voz común de las dos províncias es que les hemos enganado y que les hemos bautizado para que, hallándolos juntos, los portugueses los lleven cautivos para sus esclavos. Y todo es en perjuicio de la predicación del Santo Evangelio y del nombre santo Dios.(SANA, 1707, f. 213r)

Desta forma tanto no discurso de Fritz como no do padre Juan Baptista Sana tivemos informações sobre lideranças Omaguas que negociaram e impuseram sua vontade apesar da violência e das dificuldades impostas pelo processo de colonização.

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ISSN 2358-4912 Como também, a partir destes textos cabe-se repensar os espaços da missão na região de Maynas, nas quais estas missões parecem sair dos padrões difundidos por nossa historiografia, colocando-as como um espaço de negociações, de conflitos, de complexidade nas relações interétnicas, expressas pelas redes de amizade e de inimizades entre os diferentes agentes no processo colonial, na qual as lideranças indígenas também tiveram seus posicionamentos. Neste contexto é que Fritz em seu diário como também nas correspondências enviadas aos demais superiores de sua missão, demonstrou a necessidade em ter ferramentas para o desenvolvimento de seu trabalho no espaço das missões, mostrando como eram específicas as relações no contexto da missão e como as lideranças Omaguas participavam ativamente nos referidos processos. E esta questão também é citada com muita ênfase por Fritz em uma carta que enviou ao padre Diego Francisco Altamirano, visitador da província de Quito, na qual se refere ao sucedido na missão Omagua, Yurimaguas3416: Mi padre visitador: En esta carta doy cuenta à vuestra reverencia y á toda la província, de mi mision, desde que volví de la corte de Lima. El año de 1693, habiendo vuelto á estas montañas, bajé luego a mi misión con ánimo de pasar las principales de sus aldeas á tierras firmes y altas, donde estuvieran más seguras de las inundaciones del Marañon y fabricar en ellas iglesias y casas de más subsistencia. Empecé por San Joaquim, aunque con alguna repgnancia de sus moradores, que muchos recelan vivir en tierra firme, por estar entre ambas bandas como arades de diversos caminhos por donde bajan al rio los gentiles que viven en el interior del bosque, desejosos de matar Omaguas, por los muchos que éstos han muerto y cautivado de asechanza, como señores y corsários del rio.(..)

No trecho acima é como senhores e corsários do rio que Fritz fez referência aos Omaguas. E no contexto percebido através das fontes percebe-se a necessidade por parte dos agentes coloniais espanhóis de levar em consideração as exigências dos caciques Omaguas. Referências FRITZ, Samuel, Diario de la bajada del P. Samuel Fritz, misionero de la Corona de Castilla, en el rio Marañón, desde San Joachim de Omaguas hasta la cuidad del Gran Pará, por el año de 1689; y vuelta del mismo Padre desde dicha ciudad hasta el pueblo de La Laguna, cabeza de las misiones de Mainas, por el año de 1691, In: MARONI, Pablo, Noticias auténticas del famoso Rio Marañon (1738), Iquitos: CETA, 1988. MARONI, Pablo, Noticias auténticas del famoso Rio Marañon (1738), Iquitos: CETA, 1988. MARTINS, María Cristina Bohn, Missionários, Indígenas e a Negociação da Autoridade Maynas no Diário do Pe. Samuel Fritz, Revista Território e Fronteiras, V.2, n.2, 2009. PORRO, Antônio, As Crônicas do Rio Amazonas: tradução, introdução e notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia, Rio de Janeiro, Vozes, 1992. SANA, Juan Baptista, Carta de Juan Baptista Sana a Samuel Fritz. Santa María Mayor de Yurimaguas, 26 de diciembre de 1707, Archivo General de Indias, QUITO, 158, F.212r-213r. TAYLOR, Anne Christine, História Pós-colombina da Alta Amazônia. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. TORRES-LONDONO, Fernando; A Cristianização nos confins: missionários, soldados, índios amigos e índios a converter atores e papéis nas crônicas de Maynas, Clio- Série de Revista de Pesquisa Histórica, N.27, 2009. TORRES-LONDONO, Fernando. Trabalho indígena na dinâmica de controle das reduções de Maynas no Marañon no século XVII. História, v.25, 2006. 3416

Carta del P. Samuel al P. Diego Francisco Altamirano, visitador de la Provincia de Quito, en que se refiere lo sucedido en la mision de Omaguas, Yurimaguas, etc, desde setiembre de 1693 hasta fines de julio de 1696, In: MARONI, Pablo, Noticias Autenticas del Famoso Rio Marañon (1738), seguidas de las relaciones de los P.P.A. de Zárate Y J. Magnin (1735,1740), (Jean Pierre Chaumeil ed.), IIAP, CETA, Iquitos, 1988, Pág. 335.

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ISSN 2358-4912 VELASCO, Juan de; História del reino de Quito en la América Meridional, Quito, Imprenta de Gobierno, 1844.

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UMA SOCIEDADE PARA REFORMAR: A ATUAÇÃO DE D. FREI ALEIXO DE MENEZES, OESA, NA ÍNDIA (1595-1612) Rozely Menezes Vigas Oliveira Rodeada de adversários políticos e religiosos, os católicos de Goa viviam numa região de fronteira, o que causava um sentimento de insegurança e medo não só pelos cercos que poderiam se formar – como o de 1570 –, mas também pelo fato de terem que conviver dentro dos muros da cidade com grupos de diferentes e, por muitas vezes, divergentes crenças religiosas e políticas. Deste modo, é possível notar como a sociedade goesa era marcada por uma grande diversidade sociocultural e caracterizada pela violência, num misto de costumes que os religiosos portugueses enxergavam como um mal a ser curado. Os europeus do Estado da Índia, embriagados pelo fulgor dourado da sua propriedade comercial, haviam começado a levar uma vida altamente debochada. Os filhos dos fidalgos 3417 entregavam-se frequentemente e sem vergonha, a actividades licenciosas .

Sendo assim, Goa era considerada uma cidade degradada e desvirtuosa tanto pelos religiosos quanto pelos viajantes. Luís de Camões – que esteve na Índia entre 1553 a 1569 – satirizou a sociedade nos Disparates da Índia, falou dos jogadores e beberrões na Sátira do Torneio, e troçou das mulheres nas suas cartas3418. Em seu artigo, Propércia de Figueiredo indicou que os relatos de viajantes como Garcia da Orta e João Huighens van Linschoten também apontavam esta característica da sociedade em Goa – que mesclava diversas culturas numa só ilha, como indianos, portugueses, judeus e mulçumanos – e a sua desmoralização, inclusive da parte feminina3419. Amancio Gracias mencionou em seu artigo Os primeiros europeus na Índia, o caso de D. Paulo de Lima, conhecido como o “Hércules português”, que ganhou fama por cometer adultério com muitas mulheres casadas3420. Para os religiosos e viajantes, essa decadência moral era responsável pelos vários casos de violência, adultério e assassinatos. As críticas à sociedade goesa, feitas por viajantes e também por autores portugueses da época, geraram uma análise dos historiadores do século XIX e início do XX – como Alexandre Herculano e Oliveira Martins – sobre a questão da decadência do Estado da Índia. Segundo Célia Tavares, este conceito desencadeou uma longa discussão historiográfica que perdura até os dias atuais, em que é possível observar dois grupos de posições contrárias3421. Apesar de algumas diferenças sobre o início e as causas da crise, autores como Jaime Cortesão, A. R. Disney e Kirti Chaudhuri defendem a existência de uma crise, decadência ou declínio do Império português no Oriente. O marco inicial varia entre meados do século XVI e início do XVII. As causas, por sua vez, são computadas desde a desproporção da grandeza do império frente ao contingente português, perpassando pelo desequilíbrio causado pela União Ibérica e corrupção dos funcionários da administração portuguesa, até a redução do poderio naval português em relação aos da Inglaterra e Holanda3422. O outro grupo é formado por historiadores acreditando que não houve uma crise, mas sim uma reestruturação do Império português ou “redefinição de linhas de força”, como destacou Tavares3423. Nesse sentido, autores como João Paulo Oliveira e Costa, Artur Teodoro de Matos e 3417

KAMAT, Pratima. Instituições cristãs de caridade e a mulher em Goa. In: Oceanos, nº 21, 1995, p. 48. FIGUEIREDO, Propécia. A mulher indo-portuguesa. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama, nº 2-9. Nova Goa, 1928-1931, p. 8. 3419 FIGUEIREDO, Propécia. Op. cit., 1928-1931, p. 6. 3420 GRACIAS, Amâncio. Os primeiros europeus na Índia. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama, nº 1, 1926, p. 23. Apud: KAMAT, Pratima. Op. cit., 1995, p. 48. 3421 Para maior aprofundamento da discussão historiográfica sobre a tese da decadência do Estado da Índia, vide: TAVARES, Célia. Op. cit., pp. 197-204. 3422 Ibidem, pp. 199-201. 3423 Ibidem, p. 204. 3418

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ISSN 2358-4912 Sanjay Subrahmanyam defendem, de formas complementares, sobre o que aconteceu: a perda da hegemonia de Portugal no comércio oriental, mas não uma crise, pois a dinâmica e a importância do comércio oriental sobreviveram mesmo com os infortúnios causados pelos atritos com ingleses e holandeses. Oliveira e Costa ainda acrescenta que com D. João III o Império português, antes unipolar – concentrado no Oriente – passou a ser bipolar, tendo a Coroa dividido suas atenções com o Brasil3424. Dessa discussão, Tavares ressaltou a posição intermediária que Boxer assumiu ao propor uma alternativa à historiografia3425. Para o autor, as perspectivas de alguns historiadores de enaltecimento da época dourada dos descobridores em detrimento à crise posterior que expunham eram exageradas, pois como o próprio defendeu “deve-se salientar que a ‘decadência’ de Portugal, tão lamentada naquele tempo e tão enfatizada pelos historiadores daí em diante, não foi evidente em todos os momentos e lugares, e houve intervalos de relativa calma e prosperidade”3426. Embora, tenham contribuído para gerar o pessimismo na interpretação historiográfica e posteriormente toda essa discussão tratada acima, os relatos de viajantes são bastante úteis para ter uma noção do cotidiano goês em fins do século XVI e início do XVII. Para esses homens o que mais chamava a atenção em Goa – além da violência da população – eram a religiosidade dos católicos e a grandiosidade dos edifícios goeses, conforme expressou Della Valle: creio que não há país algum no mundo onde se façam tantas procissões ao ano, como em Goa. Isto é motivado pelo número de ordens religiosas, muito maior que a cidade carece; essas ordens gozam também de grande autoridade e são muito ricas; o povo naturalmente 3427 ocioso e ávido de espetáculos [...] aplicam-se prontamente a semelhantes coisas.

As inúmeras festas e procissões realizadas em Goa eram formas da sociedade católica goesa demonstrar e afirmar a sua fé. A situação de se sentirem ilhados num território adverso, e por vezes inimigo, fazia com que utilizassem de grandes demonstrações públicas de devoção e construíssem igrejas imponentes para se firmarem naquela sociedade mista. Como alertou Tavares, isso se constituía numa necessidade frente à grandiosidade dos templos e festas hindus e mulçumanos, criando assim uma espécie de “rivalidade visual”3428. Aos olhos dos viajantes as manifestações religiosas dos goeses eram supersticiosas e extravagantes. Pyrard, por exemplo, ao descrever as celebrações da Páscoa chamou atenção para o grande número de penitentes que seguiam as procissões de joelhos e mortificando-se. Já nas festas de Todos-os-Santos, os fieis ofereciam vinho e comidas aos mortos, deixando o chão das igrejas coberto de alimentos que só eram recolhidos ao término do festejo3429. As igrejas de Goa eram, portanto, espaços de representatividade da fé portuguesa no Oriente. Além de territórios destinados ao culto religioso, as igrejas se caracterizavam também como local de sociabilidade, onde os fieis podiam afirmar sua posição social e política. Nesse sentido, Pyrard destacou como a nobreza e os grandes mercadores sobressaíam dos demais nos cortejos e missas, com seus ricos trajes e grande quantidade de escravos e domésticos que levavam consigo. Suntuosidade exemplificada pelos costumes femininos: as mulheres ricas e nobres [...] aparecem soberbamente vestidas ao modo de Portugal com vestidos pela maior parte de brocado de ouro, de seda e prata, ornados de pérolas, pedras preciosas, e jóias na cabeça, braços, mãos, e cintura; e cobrem-se com um véu do mais fino crepe do mundo, que lhe desce da cabeça até os pés. [...] Os seus vestidos e saias arrastam pelo chão. As chinelas ou chapins são abertos pela parte superior e só cobrem a ponta do pé, mas são todos bordados a ouro e prata em palheta até abaixo do chapim, e por cima 3424

Ibidem, pp. 201-203. Ibidem, p. 203. 3426 BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 161. 3427 GRACIAS, José António Ismael. Op. cit., 1915, pp. 152-153. Apud: TAVARES, Célia. Op. cit., p. 198. 3428 TAVARES, Célia. Op. cit., p. 214. 3429 PYRARD DE LAVAL, Francisco. Op. cit., 1944, vol. 2, pp. 77 e 97. 3425

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ISSN 2358-4912 coberto de pérolas e pedras preciosas [...]. Quando vão à igreja são levadas em palanquim o mais ricamente paramentado que é possível [...]; e nas igrejas estas alfaias são levadas por suas aias ou criadas, que são portuguesas ou mestiças. [...] As servidoras ou escravas vão atrás a pé, e chegam às vezes a ser quinze ou vinte [...]. E é para notar que os maridos também mandam acompanhar suas mulheres de seus pagens, com um homem ou dois de boa condição, portugueses ou mestiços, para as levar ou suster pela mão depois de descerem de seu palanquim, e a mais das vezes chegam a entrar dentro da igreja dentro do palanquim tanto é o seu receio de ser vistas na rua. Não trazem máscaras, mas andam todas tão arrebicadas, que é uma vergonha. E todavia não são elas que receiam de ser vistas, mas sim 3430 os maridos, que são tão zelosos, que mais não pode ser.

Assim, o viajante continuou descrevendo o evento que se transforma o deslocamento dessas mulheres até a igreja, ressaltando que o fazem segundo suas posses e não qualidade. Esse relato revela a necessidade que as pessoas daquela sociedade tinham de exibir seus estatutos, desde os mais simples até os mais abastados. A nomeação de D. Frei Aleixo de Menezes e sua atuação no Oriente Após alguns meses de negociações, em 13 de fevereiro de 1595, D. Frei Aleixo de Menezes foi promovido a arcebispo de Goa, sendo consagrado em 26 de março, no Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, em uma cerimônia pública, pelas mãos do então vice-legado do Vaticano em Portugal, Monsenhor Fabio Biondi3431. Com este, frei Aleixo também manteve correspondência, enviando não só notícias de sua viagem e chegada a Goa, como também materiais medicinais, como bezoares de porco espinho3432. Essas cartas reforçam sua característica de religioso culto e curioso “capaz de conciliar interesses próprios, religião e patrocínio ilustrado no campo científico e artístico”3433, do mesmo modo que ressalta sua característica de religioso acostumado aos círculos do poder eclesiástico e da corte. Frei Aleixo embarcou na nau Nossa Senhora da Vitória em direção a Goa, em 13 de abril de 1595, juntamente com mais três agostinhos Frei Cristóvão do Espírito Santo, Frei Diogo de Santa Ana – o qual se tornou, posteriormente, o responsável pelo Convento das Mônicas de Goa – e Frei Diogo da Conceição, eleito seu bispo auxiliar. A viagem de Frei Aleixo foi muito turbulenta. Muitos adoeceram, inclusive o bispo auxiliar, que terminou falecendo. O próprio frei Aleixo, que tinha disponibilizado sua botica e provisão de galinhas para os enfermos acabou por adoecer também3434. A chegada do frei em Goa, em setembro de 1595, foi festejada com muita solenidade, sendo acolhido pelo “vice-rei e todo o povo com muitas demonstrações de alegria e gosto, indo-me esperar na porta da cidade, assim os vereadores com pálio como o vice-rei”, como o próprio arcebispo descreveu para o tio3435. Apesar da pompa com que a sociedade goesa recebeu o prelado, este viu na cidade uma sociedade decadente e desregrada. D. Frei Aleixo de Menezes ao chegar a Goa, encontrou uma arquidiocese inquieta e à espera de um prelado diante dos quase dois anos sem um arcebispo, já que o último, D. Frei Matheus de Medina, havia renunciado o cargo em 1592 e no período entre 1593 e 1595, o bispo de Cochim, 3430

PYRARD DE LAVAL, Francisco. Op. cit., 1944, vol. 2, pp. 101-105. Cf: ALONSO, Carlos. Op. cit., 1992, pp. 24-26; CALZADA, Juan Carlos Gutiérrez. Op. cit., 1996, pp. 7071; PINTO, Carla Alferes. Op. cit., 2006, pp. 287-288. 3432 As cartas enviadas por D. Frei Aleixo de Menezes para Monsenhor Biondi foram transcritas por Carlos Alonso. Vide: ALONSO, Carlos. Documentación inédita para una biografia de Fr. Alejo de Meneses, O.S.A., Arzobispo de Goa (1595-1612). Analecta Augustiniana, 27, 1964, pp. 263-333. 3433 PINTO, Carla Alferes. Op. cit., p. 289. 3434 As notícias sobre a viagem foram dadas ao tio em carta do dia 23 de dezembro de 1595 e ao Monsenhor Fabio Biondi, em que relatou as más condições da viagem. Estas cartas estão transcritas respectivamente em: FREITAS, Bernardino José de Senna. Memorias de Braga contendo muitos e interessantes escriptos extrahidos e recopilados de diferentes arquivos assim de obras raras... Braga, Imprensa Catholica, 1890, vol. III, p. 10; e ALONSO, Carlos. Op. cit., 1964, pp. 282-283. 3435 Carta de 23 de dezembro de 1595. Apud: FREITAS, Bernardino José de Senna. Op. cit., p. 11. 3431

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ISSN 2358-4912 D. Frei André de Santa Maria, ficou encarregado do governo da arquidiocese3436. Quanto ao cabido, achou muitos clérigos presos no aljube, acusados de lascívia e usurpação de bens e rendas. Encontrou também uma sociedade que, segundo ele, estava faminta e desmoralizada3437. A partir de então, iniciou logo uma série de atividades caracterizadas principalmente pela caridade. A caridade “com a fé e a esperança, é uma das três virtudes teologais”3438. A prática dessas virtudes tem como finalidade a aproximação do homem com Deus. Do latim caritas, caridade significa amor ao próximo. Para Max Weber, caridade era uma ética religiosa desenvolvida pela religião profética e fraternal de “amor ao sofredor per se”3439. No texto Rejeições do mundo e suas direções, no qual Weber analisou as tensões existentes entre a religião de fraternidade universalista e os valores mundanos – definindo cinco áreas de confronto: a esfera econômica, a política, a estética, a erótica e a intelectual – a crença numa profecia de salvação do homem após a morte direcionava as ações dos indivíduos. Essa fé levava o homem a “dirigir o modo de vida para a busca de um valor sagrado. Assim compreendida, a profecia ou mandamento significava, pelo menos relativamente, a sistematização e racionalização do modo de vida, seja em pontos particulares ou no todo”3440. Desse modo, ela criava uma comunidade voltada para a aproximação do salvador e de seus irmãos de fé em detrimento dos parentes naturais. Uma comunidade fraternal que seguia o princípio de que “tua necessidade de hoje pode ser minha necessidade de amanhã”3441. A caridade sempre foi uma preocupação essencial por parte de frei Aleixo, que tinha como uma de suas principais finalidades o benefício de sua ordem. Ainda em Portugal, quando lhe foram dados os cargos de prior nos conventos de Torres Vedras, de Santarém e da Graça de Lisboa, se dedicou a várias obras caritativas. Na viagem para Goa, tratou dos doentes com sua botica e com sua provisão de galinhas. A historiografia eclesiástica – como já mencionado – exaltou essa característica do prelado como demonstrações de mera piedade e de desapego aos bens materiais. Porém, a partir do texto de Sanjay Subrahmanyam3442, é possível vê-la também como parte do jogo de poder político e religioso, já que a ordem dos agostinianos havia se instalado tarde no Oriente e precisava de grandes obras a fim de elevar sua imagem desgastada pelo “cisma” causado por Lutero na Alemanha. Ele também utilizava suas ações caritativas como arma contra os ganhos excessivos das autoridades locais e a falta de cuidado que estas tinham para com o menos favorecidos. Logo nas primeiras semanas em que estava em Goa, frei Aleixo procurou se informar das necessidades dos fiéis da cidade. Segundo Joaquim de Bragança, encarregou Pe. Luiz Laivão, padre jesuíta, de realizar um censo das pessoas pobres e envergonhadas da cidade, aos quais dava uma “tença” mensal. Também dava esmola aos capitães e soldados necessitados e ainda almoçava todos os dias com 12 pobres3443. Essas atividades o endividaram, como contou ao tio, na carta de 9 de dezembro de 1597: “Vivo pobre e com dívidas; porque as necessidades d’esta terra, que se não representam como as de lá [Lisboa], são tantas e tão urgentes, que me será mais fácil vender-me, que deixar de lhe acudir”3444. Com essas ações e com a reforma do cabido, frei Aleixo ganhou muitos créditos com a sociedade portuguesa em Goa, que foram acrescidos com suas atuações no contexto metropolitano. Como arcebispo, frei Aleixo foi o grande reformador que rei Filipe II almejava, governando com pulso firme a Arquidiocese de Goa. Exemplo disso foi quando formulou um decreto em que 3436

SÁ, Francisco Xavier Valeriano de. O Padroado Português do Oriente e os Mitrados da Sé de Goa. Lisboa: Plátano Editora, 2004, p. 82. 3437 CALZADA, Juan Carlos Gutiérrez. Op. cit., 1996, p. 74. 3438 MATHIEU-ROSAY, Jean. Dicionário do Cristianismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992, p. 71. 3439 WEBER, Max. “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1946, p. 377. 3440 WEBER, Max. Op. cit., 1946, p. 375. 3441 Ibidem, p. 378. 3442 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Op. cit. 3443 BRAGANÇA, Joaquim O. Introdução. In: GOUVEA, Frei Antonio de. Jornada do Arcebispo. Edição facsímile. Lisboa: Edições Didaskalia, 1988. 3444 Carta de 9 de dezembro de 1597. Apud: FREITAS, Bernardino José de Senna. Op. cit., 1890, vol. III, p. 15.

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ISSN 2358-4912 determinava o modo dos sacerdotes se conduzirem na administração dos sacramentos e demais atividades da vida cristã, de acordo com as determinações tridentinas3445. Outro episódio que também transparece sua preocupação com a reforma da Igreja no Oriente foi quando enviou uma carta ao bispo de Malaca, D. João Ribeiro Gaio, pedindo que ao deixar a diocese – por motivos de sua aposentadoria – o bispo se dirigisse a Portugal, a fim de tratar com o rei assuntos de interesse para o bem espiritual das dioceses da Índia. D. João Ribeiro seria a pessoa mais indicada, na visão de frei Aleixo, devido ao seu zelo para com as coisas da diocese3446. A carta revela mais uma vez o caráter diplomático do religioso que desejava assim ter um representante no reino para defender seus interesses no Oriente. Historiadores como Carlos Alonso e Joaquim Bragança, consideraram frei Aleixo um verdadeiro apóstolo, comparando-o a Francisco Xavier, por ter realizado muitas das várias visitas pastorais pessoalmente, percorrendo desde igrejas da própria Goa até as províncias do Norte e Ormuz e depois às terras do sul 3447, e não se contentando apenas em enviar missionários e representantes. A principal e mais conhecida dessa atuação pastoral do prelado foi a realizada na costa do Malabar, na parte sul da Índia, onde viviam os chamados cristãos de São Tomé. Frei Aleixo foi como delegado do Pontífice Clemente VIII, na tentativa de congregar os gentios e esses cristãos à fé cristã romana. Desta maneira “as visitas pastorais eram instrumentos utilizados para garantir a eficácia do governo episcopal e uma forma de transmitir o modelo disciplinar (mais fácil de vigorar no ‘centro’) até as ‘periferias’ da cristandade”3448. A partir dessa visita se realizou o Concílio de Diamper, entre os dias 20 e 26 de junho de 1599, cujo objetivo era sanar as deficiências da liturgia das igrejas malabares através de uma reforma litúrgica e do catecismo3449. A partir de suas resoluções, rebatizou os clérigos que participaram do concílio; ordenou a tradução da liturgia romana para o siríaco a fim de que os clérigos aprendessem a administrar todos os sacramentos; e as Constituições da Diocese de Goa foram aplicadas à nova diocese de Angamale – salvo as alterações feitas durante o concílio –, que adotou as determinações do Concílio de Trento. De acordo com Casimiro Nazareth, o Sínodo de Diamper foi bem aceito pelo papado, pois já haviam sido enviadas muitas diligências anteriormente sem obter êxito3450. Sobre este tema, Frei Antônio Gouvea escreveu uma obra, publicada em 1606, em que contou os pormenores dessa cristandade e dos feitos do arcebispo3451. Há ainda muitos estudos sobre a visita, mas coube aqui apenas fazer uma pequena síntese da importância dela como uma atividade que logrou mais fama de reformador ao já afamado Menezes. Em 1606, o arcebispo convocou o quinto e último Concílio Provincial em Goa, que foi celebrado em quatro sessões, das quais saíram 149 decretos, que deliberavam sobre a conversão dos infiéis, a administração da cristandade, das coisas e do governo eclesiástico e da reforma dos

3445

CALZADA, Juan Carlos Gutiérrez. Op. cit., 1996, p. 75. Infelizmente, no fragmento da carta em italiano transcrita por Carlos Alonso, seu conteúdo não deixou explícito que assuntos seriam esses de que falava frei Aleixo. Carta de Fr. A. de Meneses al obispo de Malaca D. Juan Ribero Gaio, de Goa, 22 de Abril de 1596. Apud: ALONSO, Carlos. Op. cit., 1964, pp. 283-284. 3447 ALONSO, Carlos. Op. cit., 1992, p. 35 e BRAGANÇA, Joaquim O. Op. cit., 1988. 3448 FARIA, Patrícia Souza de. A conversão das almas do Oriente: franciscanos, poder e catolicismo (séculos XVI e XVII). Tese (Doutorado em História) – UFF, Rio de Janeiro, Departamento de História, 2008, p. 107. 3449 As resoluções do concílio foram escritas pelo próprio arcebispo que as enviou a Portugal, sendo publicadas em 1606 sob o título Synodo Diocesano da Igreja e Bispado de Angamale dos antigos christãos de S. Thomé das Serras do Malabar da parta da Índia Oriental. Coimbra: Diogo Gomes Loureiro. Vide: SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliográfico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, pp. 26-27. 3450 NAZARETH, Casimiro Christovam. Mitras lusitanas no oriente: catalogo chronologico-historico dos prelados da egreja... Nova Goa: Imprensa Nacional, 1887, pp. 66-67. 3451 A obra de Frei Antonio Gouvea, intitulada Jornada do Arcebispo de Goa D. Frei Aleixo de Meneses, Primaz da Índia Oriental (Coimbra: Diogo Gomes Loureiro, 1606), foi fundamental para conhecimento da cristandade de São Tomás, tanto que foi traduzida logo após três anos, depois em latim (século XVIII) e em inglês, no século XIX. Cf: BRAGANÇA, Joaquim O. Op. cit., 1988; e CALZADA, Juan Carlos Gutiérrez. Op. cit., 1996. 3446

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ISSN 2358-4912 costumes da sociedade cristã3452. Um dos objetivos do concílio era evitar que os costumes religiosos da população fugissem do controle eclesiástico. Conforme Casimiro Nazareth, frei Aleixo também trabalhou na conversão de gentios, tendo ele mesmo batizado vários, inclusive da nobreza nativa, entre eles um príncipe mogol e seus três sobrinhos3453. Como dito anteriormente, frei Aleixo foi um grande impulsionador de sua ordem no Oriente, mas como um bom sabedor do jogo de poder de sua sociedade também beneficiou outras ordens, tendo um bom relacionamento com as já instaladas. Dentre as fundações que auxiliou dessas ordens estavam a Igreja de São Boaventura, o Convento de São Francisco, o Seminário de Rachol, o colégio dos jesuítas e a Igreja do Bom Jesus – também pertencente à Companhia de Jesus –, a qual sagrou em 15 de maio de 1605, como sugeriu Carlos de Morais3454. Nessa igreja que, posteriormente, foi transferido o corpo de S. Francisco Xavier, onde permanece até hoje. No que concerne à fundação de igrejas, edificou mais de 113 paróquias, entre elas as de S. Aleixo e da Santíssima Trindade em Goa, S. Luzia em Ellá, como também igrejas em Benaulim, Aldoná, Corlim, Gandaulim, etc3455. Com o favorecimento do arcebispo a sua ordem, os Agostinhos cresceram em quantidade e amplitude. O próprio frei deu notícias desse desenvolvimento ao seu tio: “As [notícias] da Ordem, que cá, pela bondade de Deus, vai em crescimento; e começam a mostrar melhor rosto do que os anos atrás”3456. De acordo com Carlos Alonso, a Ordem, com as ações de frei Aleixo, chegou a se igualar com as demais3457, mas é sabido que semelhante à Companhia de Jesus não houve, nem em número, nem em missão. Das fundações de igrejas e colégios pertencentes aos agostinhos realizadas ou incentivadas pelo arcebispo, pode-se destacar o Colégio de Nossa Senhora do Pópulo (1602), o convento e igreja Nossa Senhora da Graça de Mascate (1597), como também igrejas em Mombaça, Melinde e Zanzibar. Ergueu também uma igreja e convento em Damão, além de ceder à Ordem a Igreja da Anunciata em Baçaim que pertencia à cúria episcopal, entre outros feitos3458. Contudo seu zelo não ficou preso à reforma da Igreja do Oriente, em geral, sua preocupação também se voltou para os costumes e modo de vida da mulher de origem portuguesa em Goa, os quais tentaria corrigir com a fundação de instituições direcionadas a essa parte da população. Referências ALONSO, Carlos. Documentación inédita para una biografia de Fr. Alejo de Meneses, O.S.A., Arzobispo de Goa (1595-1612). Analecta Augustiniana, 27, 1964. BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BRAGANÇA, Joaquim O. Introdução. In: GOUVEA, Frei Antonio de. Jornada do Arcebispo. Edição fac-símile. Lisboa: Edições Didaskalia, 1988. FARIA, Patrícia Souza de. A conversão das almas do Oriente: franciscanos, poder e catolicismo (séculos XVI e XVII). Tese (Doutorado em História) – UFF, Rio de Janeiro, Departamento de História, 2008. FIGUEIREDO, Propécia. A mulher indo-portuguesa. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama, nº 2-9. Nova Goa, 1928-1931. FREITAS, Bernardino José de Senna. Memorias de Braga contendo muitos e interessantes escriptos extrahidos e recopilados de diferentes arquivos assim de obras raras... Braga, Imprensa Catholica, 1890, vol. III. 3452

Carlos Alonso acrescentou que nas atas do concílio não havia menção da data em que se iniciou e terminou o mesmo, constando somente a data da segunda sessão, celebrada em 2 de março de 1606. Vide: ALONSO, Carlos. Op. cit., 1992, p. 215. 3453 NAZARETH, Casimiro Christovam. Op. cit., 1887, p. 70. 3454 MORAIS, Carlos Alexandre. Cronologia Geral da Índia Portuguesa. 1498-1962. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 85. 3455 NAZARETH, Casimiro Christovam. Op. cit., 1887, p. 70. 3456 Carta de 9 de dezembro de 1597. Apud: FREITAS, Bernardino José de Senna. Op. cit., 1890, vol. III, p. 19. 3457 ALONSO, Carlos. Op. cit., 1992, p. 50. 3458 Para mais vide: LOPEZ, Teofilo Aparicio. Op. cit., 1978, pp. 59-108.

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ISSN 2358-4912 GRACIAS, Amâncio. Os primeiros europeus na Índia. In: Boletim do Instituto Vasco da Gama, nº 1, 1926. KAMAT, Pratima. Instituições cristãs de caridade e a mulher em Goa. In: Oceanos, nº 21, 1995. LOPEZ, Teofilo Aparicio. La Ordem de San Agustin en la India (1572-1622). s/l: s/n, 1978. MATHIEU-ROSAY, Jean. Dicionário do Cristianismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. MORAIS, Carlos Alexandre. Cronologia Geral da Índia Portuguesa. 1498-1962. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. NAZARETH, Casimiro Christovam. Mitras lusitanas no oriente: catalogo chronologico-historico dos prelados da egreja... Nova Goa: Imprensa Nacional, 1887. PINTO, Carla Alferes. Género, mecenato e arte: a criação das “casas de mulheres” em Goa. In: Parts of Asia, nº 17/18. Dartmouth: Portuguese Literary &Cultural Studies, 2010. ______. Notas para o estudo do mecenato de D. Frei Aleixo de Meneses: os recolhimentos da misericórdia de Goa. In: Anais de História de Além-Mar, ed. João Paulo Oliveira e Costa, vol. 7, Dez. 2006. PYRARD DE LAVAL, Francisco. Viagem de Francisco Pyrard, de Laval contendo a notícia de sua navegação às Índias Orientais, Ilhas Maldivas, Maluco e ao Brasil, e os diferentes casos que lhe aconteceram na mesma viagem nos dez anos que andou nestes países (1601 a 1611). 2 vols. Porto: Livraria Civilização, 1944. SÁ, Francisco Xavier Valeriano de. O Padroado Português do Oriente e os Mitrados da Sé de Goa. Lisboa: Plátano Editora, 2004. SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliográfico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Dom Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) et l'échec des tentatives d'indigénisation du christianisme en Inde. Disponível em: Acesso em: 20 fev. 2010. TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisidores em Goa: A Cristandade Insular (1540-1682). Lisboa: Roma Editora, 2004. WEBER, Max. “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1946

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PECULIARIDADES ECLESIÁSTICAS NO GRÃO-PARÁ: O MOMENTO DA TRANSIÇÃO DA DIOCESE DE FREI JOÃO DE SÃO JOSÉ QUEIRÓS PARA GERALDO JOSÉ DE ABRANCHES Sarah dos Santos Araujo3459 O fr. João de São José Queirós chegou ao Grão-Pará em nau chefiada pelo capitão Manuel José Soares, no dia 4 de Setembro de 1760 para tomar posse do bispado3460, em substituição ao bispo Miguel de Bulhões que atuou na região de 1749 a 1760. Miguel de Bulhões esteve a frente do bispado, com a missão buscada pelos seus predecessores na reestruturação da diocese. A região que no período começava a ser olhada com mais interesse pela Coroa Portuguesa, passava por processos que visavam aumentar sua potencialidade numa época em que o Estado do GrãoPará, distinto do Brasil, precisava ser reafirmado como colônia pertencente a Portugal pelo constante perigo de invasão estrangeira das terras. Ainda no período anterior a chegada do fr. João de São José Queirós, começaram as demarcações de terra para delimitar o território pertencente a Portugal e endossar seu poderio na região. No ido dos anos de 1750, o governador do Estado era Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1753-1759) e a diocese estava sob a direção do citado bispo Miguel de Bulhões. Na conjuntura, o governador saiu em viagem para acompanhar as demarcações e deixou o bispo Miguel de Bulhões responsável pelas funções: civil, militar e eclesiástica no Estado. Nesse interstício da ação do bispo na direção do Grão-Pará, foi criado o Diretório dos índios, um dos planos de ação para efetivar o domínio sobre a região. As leis arregimentadas buscavam a civilização dos índios e a resolução das intrigas que existiam entre os que utilizavam a mão de obra indígena nos vários trabalhos na colônia. Os nativos da terra, maiores conhecedores da região, eram utilizados para diferentes tipos de trabalho, sem eles o domínio do território em vários aspectos seria impossível. Com a criação desse Diretório foi buscado dirimir os embates entre os interessados no trabalho ameríndio e a civilização destes, com imposição de: casamentos oficializados entre brancos e índios, moradias não mais coletiva, e sim em casas individuais, proibição da nudez comum aos índios, proibição do uso da língua geral “Nheengatu” e uso obrigatório da língua portuguesa, dentre outras intervenções no cotidiano dos nativos, que acreditavam os interessados na terra, que os tiraria de sua condição “selvagem” e contribuiria para domínio das terras e do povo3461. O antecessor do bispo Queirós, Miguel de Bulhões, teve de conhecer bem o cotidiano da população para conseguir administrar o Estado e colocar os fiéis a mercê da Igreja e da Coroa, como objetivo prescrito. Para isso, foi atuante em todas as questões que permeavam a vida no Grão-Pará, como referido, ele não apenas cuidou das funções espirituais da região, mas abarcou alguns encargos que estavam além de suas obrigações com a Igreja. Envolveu-se, por exemplo, nas querelas com missionários na questão da administração da mão de obra indígena, fez parte da gestão interina do Estado do Grão-Pará na ausência do governador, participou das discussões para formulação do Diretório de Índios. Temos assim, na figura do bispo Miguel de Bulhões, uma atuação para além do que o cargo eclesiástico lhe exigia3462. 3459

Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFAM. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa no Amazonas – FAPEAM. 3460 AHU, (Projeto resgate), Pará, Cx. 46, Doc. 4241. Ofício do [capitão da Frota] Manuel José Soares para o [secretário da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, comunicando a chegada de duas naus , e participando a doença do índio Luís da Cunha durante a viagem e que o novo bispo do Pará, [D. fr. João de São José Queirós], já tomou posse do seu bispado; informa, ainda, que se prepara para continuar a sua viagem para o Mato Grosso. 4 de Setembro de 1760. 3461 SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. Manaus: EDUA, 1999. 3462 Ângela Domingues comenta sobre que se esperava dos funcionários enviados ao Ultramar, para além das ações prescritas dos seus encargos. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. p.38.

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ISSN 2358-4912 Essa flexibilização dos cargos exercidos na colônia era a expectativa depositada pela Coroa Portuguesa, que prezava pelos funcionários que conseguiam desempenhar com louvor suas funções no além-mar. Esperava-se isso desses agentes na colônia, na medida em que a burocracia aumentava e a necessidade de domínio da colônia crescia. Laura de Mello e Souza nos apresenta que para compreender as dinâmicas coloniais devemos observá-las a partir de uma perspectiva de flexibilização do sistema em vigor, ou das medidas que eram implementadas na colônia pela metrópole. Pois estas foram gestadas pensando nas situações específicas vividas nas distintas possessões, o que a autora nos demonstra que se fosse o contrário, a metrópole não teria tido o domínio do ultramar por tanto tempo como teve3463. Levando em consideração essas questões, refletimos o que se esperava dos enviados à colônia e da gerência dos seus trabalhos nesses lugares. Sobre eles eram depositadas expectativas para além do que delimitava suas funções. Nesse sentido, podemos exemplificar com as mencionadas ações movidas por Miguel de Bulhões no tempo de sua administração, que apesar dos percalços, o bispo saiu da diocese com os louros de uma boa gerência interina no Grão-Pará. Direção que foi destacada com elogios pelo bispo Queirós logo que chegou ao Estado para substituí-lo3464. E com a mesma missão Queirós teve de seguir, incumbido de fazer o que ditava sua função eclesiástica a mercê da Coroa, e ainda diante da experiência de aprender a lidar com a vida na colônia. O bispo João de São José Queiros, já em seus encargos no Estado, iniciou suas atividades pastorais fazendo visitas às diversas e distantes vilas que compunham a região. Durante essas viagens apreciou boa parte da vida e costumes da população, conhecendo os desregramentos tanto de eclesiásticos, quanto de moradores, que geravam as constantes denúncias à impudicícia e licenciosidade no Grão-Pará. De acordo com o viu, apontou que os padres viviam em vida dissoluta e aquelas gentes estavam apartadas da fé3465. Com esse conhecimento, puniu todos que acreditava estarem distantes do que pregava a fé católica. Ao longo de sua administração na diocese suas ações o fizeram angariar inimigos por conta das medidas que tomou, principalmente as de cunho fiscalizador. Suas atitudes imperativas, por vezes desmedidas, não foram bem recebidas pela população local e nem pelos padres da diocese. Atuação que o encaminhou a desentendimentos durante a sua gestão. Por causa de tais procedimentos, o bispo Queirós chegou a ser denunciado pelo governador Manuel Bernardo de Melo e Castro (1759-1763), que indicou em carta as ações desajustadas do sacerdote. Elencou ainda pormenores de sua obra, denunciando-o como “ambicioso e comerciante”, em ofício que data de 2 de novembro de 17623466. Neste ofício o governador relatou, entre outras coisas, os descomedimentos nas provisões pedidas para se realizarem os trabalhos da diocese. Encontramos referências sobre esses excessos do bispo nos valores dos documentos expedidos pela câmara eclesiástica que tinha como escrivão o padre Bernardo Ferreira que, de acordo com Manoel Bernardo Melo e Castro, era quem exagerava nos preços dos documentos, sendo acobertado pelo bispo Queirós3467. Além dessa denúncia de que seriam notórios seus maus procedimentos no bispado, foram vistos com maus olhos o seu posicionamento com relação aos indígenas que eram mão de obra 3463

Era necessário ter certa maleabilidade nas leis e saber como administrá-las no ultramar, para que o domínio pudesse se efetivar. SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. Org. Laura de Mello e Souza; Júnia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho. O Governo dos Povos. – São Paulo: Alameda, 2010. p.75. 3464 AHU, (Projeto resgate), Pará, Cx. 50, Doc. 4575. Ofício do bispo do Pará, D. fr. João [de São José Queirós], para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, colocando-se ao serviço de Sua Majestade, aguardando ordens para o exercício de seu cargo e tecendo elogios ao seu antecessor. 7 de Julho de 1761. 3465 Memórias de Fr. João de S. Joseph Queiroz Bispo do Grão Pará/ com uma extensa introdução e notas illustrativas por Camillo Castello-Branco. Porto: Typ. Da Liv. Nacional, 1868. p.193. 3466 Idem. 3467 AHU, (Projeto resgate), Pará, Cx. 53, Doc. 4863. Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e Castro, para o [secretário de Estado da Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre as acções desajustadas que tem sido praticadas pelo bispo do Pará, [D. fr. João de São José Queirós], acusando-o de ser ambicioso e comerciante. 2 de Novembro de 1762.

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ISSN 2358-4912 crucial no Estado e objeto de disputa de colonos e missionários por longos anos. Diante dessa frágil situação da mão de obra local, movida por múltiplos interesses, o bispo Queirós de forma não aprovada pela legislação em vigor, foi acusado de usar o trabalho nativo para comércio particular. Prática que era condenável, uma vez que os jesuítas já haviam sido expulsos por administrarem o trabalho nativo para fins particulares da Ordem que interferiam nos interesses da metrópole e o fato do bispo ter usado do trabalho nativo de forma semelhante aos regulares o que trouxe à lembrança dos governantes da época a experiência ruim vivida com os jesuítas. Essas foram as circunstâncias que fizeram o bispo Queirós ser denunciado pelo governador e ser comparado aos jesuítas como “ambicioso e comerciante”3468. De tal modo, os elementos foram somados às atitudes impulsivas do prelado que colaboraram para sua retirada do cargo3469. Vale ressaltar mais um motivo que levou a retirada do bispo da diocese - o conselho dado em carta ao ministro, indicando que as missões de descimento de índios fossem acompanhadas por padres. Contudo, a participação de eclesiásticos nestes trabalhos estava proibida pelo Diretório dos Índios e a sugestão do bispo foi vista como interferência aos planos que estavam sendo traçados pelo Marquês de Pombal para região. Essas ações de forma cumulativa podem ter pesado sobre a pessoa do fr. João de São José Queirós, que não estaria dentro das expectativas esperadas de sua gestão do bispado. A questão dos preços dos documentos da câmara eclesiástica somada a infeliz sugestão de que os padres voltassem a participar dos descimentos levaram-no a não alcançar uma boa relação na diocese, tampouco pender positivamente para os planos traçados para o Estado. O Bispo João de São José Queirós, desta forma, foi ganhando inimizades, até chegar ao ponto de ser chamado de “depredador dos povos” como o próprio bispo indica em suas Memórias. Diante disso, fez sua defesa argumentando que suas atitudes estavam dentro das funções que lhe cabiam, não comentando pormenores sobre outras acusações. Entretanto, sua fala não foi o suficiente para fazê-lo permanecer no cargo. Foi então exonerado por ordem regia, sendo mandado retornar à Lisboa. Ainda durante sua gestão, o prelado se envolveu em um caso que dizia respeito à Inquisição. É interessante citá-lo, pois demonstra um pouco mais sobre de suas relações no Grão-Pará. A situação foi fruto de uma denúncia de blasfêmia, que gerou um sumário de testemunhas, no qual o bispo foi acusado de queimar documentação Inquisitorial3470. Os documentos que o bispo Queirós foi acusado de destruir consistiam em denúncias feitas a proposições heréticas do mestre de campo Antonio Ferreira Ribeiro, que teria negado a existência do purgatório e do inferno. As denúncias foram colhidas, antes da chegada da Visita do Santo Ofício pelo comissário Caetano Eleuterio de Bastos e, posteriormente, averiguadas pelo inquisidor Geraldo José de Abranches. No testemunho dado em carta a Abranches por Queirós, afirmava que o comissário teria ido até ele para se aconselhar sobre o que fazer com os documentos da denúncia contra o mestre de campo, levando em consideração que não havia testemunhas que confirmassem a blasfêmia. Do que foi relatado por bispo Queirós, quisera apenas ajudar quando sugeriu a Caetano Eleuterio 3468

Carta de Pombal ao Bispo do Pará [Frei João de São José Queirós] sobre a catequização dos índios. IHGB, Documentos sobre a Capitania do Pará (1753-1807). Lata 285. Pasta 1, fls. 37-44. Documento Transcrito In. MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no Grão-Pará Pombalino (1763-1769). Niterói: UFF, dissertação de mestrado, 2009. Anexo Documental, p. 182. 3469 O fato de seus procedimentos e atuação não terem sido vistos com bons olhos no bispado, foi um dos interessantes aspectos trabalhados por Blenda Moura, que demonstrou os nuances de sua personalidade geniosa, que moldaram o ritmo das suas ações, as quais acreditava serem corretas, mas, que muitas das vezes não o era. MOURA, Blenda Cunha. Intrigas Coloniais a trajetória do Bispo João de São José Queirós. (17111763). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Programa de PósGraduação em História, Amazonas, 2009. p.148. 3470 Essa documentação é composta por 108 fólios. Está guardada no Arquivo Nacional Torre do Tombo, no qual foi catalogada como processo referente ao Bispo Fr. João de São José Queirós. Contudo, durante a leitura verificamos que consistia em um sumário de testemunhas, uma vez que foi indicado na própria fonte e a estrutura textual não segue a de um processo inquisitorial. Contudo, mantivemos a indicação dada pelo local onde a fonte está sediada. Processo 13201http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2313415

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ISSN 2358-4912 que rasgasse ou queimasse os papéis da denúncia já que não havia acusação. A proposta foi aceita pelo comissário do Santo Ofício, que junto com bispo Queirós, destruiu os papéis pertencentes à Inquisição. Os eventos descritos pelo bispo, no momento em que Geraldo José de Abranches colheu o sumário de testemunhas, não podiam ser confirmados pelo comissário Caetano Eleuterio de Bastos por que este se encontrava falecido no momento em que os envolvidos foram inquiridos. Essa situação pode ter agravado a já complicada situação do bispo exonerado. Em 1763, com a mencionada chegada do inquisidor-visitador a região, o caso foi retomado por que era de interesse do Santo Ofício saber tanto sobre a blasfêmia possivelmente proferida pelo mestre de campo Antonio Ferreira Ribeiro, quanto o caso da queima de documentos pertencentes à instituição inquisitorial pelo bispo João de São José Queirós. Diante disso, o inquisidorvisitador Geraldo José de Abranches colheu o sumário de testemunhas para obter mais informações sobre toda a situação. Esse sumário de testemunhos é interessante por envolver o bispo que já estava de saída da diocese, e uma das ações tomadas por Geraldo José de Abranches com sua chegada ao Estado. O documento nos traz informações sobre o bispo Queirós argumentando os motivos que o levaram a queima dos documentos inquisitoriais, no momento em que já vivenciava sua experiência final na região. E por outro lado, nos mostra os procedimentos tomados pelo inquisidor diante das situações de blasfêmia e destruição dos documentos pertencentes à Inquisição. Para então tomar conhecimento de toda a situação, Abranches coletou testemunhos de várias pessoas que tivessem informações sobre o caso, na busca dos culpados a serem punidos. Assim, vislumbramos essas duas figuras marcantes desse momento para o bispado do Grão-Pará, tendo a possibilidade de refletir sobre o momento da transição da diocese do bispo Queirós para o inquisidor-visitador Geraldo José de Abranches. Voltando então ao contexto de mudança no bispado, ocorreu que na ocasião da chegada do inquisidor-visitador Abranches a região, lhe foi também indicado o cargo de vigário capitular da sede que ficara vacante com a saída do bispo fr. João de São José Queirós. Deste modo, Geraldo José de Abranches teve distintas funções a exercer com as incumbências que lhe foram dadas. Tinha de cuidar da fé da população, inspecionar as igrejas nas vilas, apascentar os eclesiásticos e ainda buscar os desregramentos e heresias como inquisidor na região. Temos então, a atuação de Geraldo José de Abranches como inquisidor-visitador e vigário capitular. Exercendo essas duas funções estrategicamente no Grão-Pará, buscando a reestruturação da diocese e sua organização, aliada aos interesses previstos pela Coroa Portuguesa para a região. Se formos pensar, por exemplo, distintamente sobre as funções que Abranches tinha sob sua mitra, percebemos que os cargos confluíam por serem oriundos da mesma instituição que pregava a missão de fé e a repressão aos desvios. Ao avaliarmos as funções que Geraldo Abranches exerceu no Grão-Pará, percebemos que o funcionário soube como alinhar estrategicamente as atribuições traçadas para os dois cargos. E é esse o elemento que consideramos a peculiaridade da sua experiência no Estado - tendo sobre sua alçada o poder inquisitorial e o episcopal - destarte, seu poder advinha de dois encargos que confluíam. Chegamos a pensar até em um foro misto3471 desse exercício do eclesiástico, comparando-o com os crimes contra fé que, por vezes, poderiam ser de foro secular ou eclesiástico. No caso de Abranches, temos os dois juízos mesclados na figura da mesma pessoa. Podemos vislumbrar essa aproximação dos encargos dados a Abranches com os casos de foro misto como crime de bigamia, por exemplo, que poderia ser punido tanto no juízo secular, quanto no eclesiástico. Com as funções exercidas pelo inquisidor-visitador, como enviado da igreja e, posteriormente, vigário capitular nomeado por ordem régia, não ocorreram discussões contundentes sobre jurisdições dos crimes/delitos cometidos na região. Geraldo José de Abranches soube ainda usar habilmente as funções que lhe foram atribuídas, pelo menos é o que se pode verificar no início de suas ações no Grão-Pará. Mantinha em si como inquisidor-visitador o poder de inquirir e rastrear as heresias da região, e, por outro lado, como vigário no lugar do bispo da sede vacante, poderia perscrutar a vida e procedimentos dos padres 3471

Crimes de “foro misto”, que estavam tanto sobre alçada jurisdição eclesiástica, quanto da secular. Dentre eles: bigamia, feitiçaria e solicitação. FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste 1640-1750. São Paulo: Alameda, Phoebus, 2007. p.160.

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ISSN 2358-4912 locais, além de conhecer a fé do povo na busca por desvios. Deste modo, exercia a missão apostólica firmada com a igreja católica num todo, tanto pela via inquisitorial, quanto pela episcopal. Uma amostra de seu trabalho respondendo pela diocese de Belém foi o de nomear e enviar comissários às povoações para averiguar as culpas dos denunciados, aliando o que ditava o regimento da Inquisição com a sua gestão da diocese. Neste sentido, conhecemos a nomeação de um padre chamado Antônio da Silva, vigário da Vila de Santarém. Ele foi enviado como comissário encarregado dos interrogatórios acerca das culpas atribuídas ao capitão Marçal Agostinho e ao mameluco Pedro Rodrigues, acusados de feitiçaria. Interrogatório este, que foi realizado na Vila de Buim3472. De acordo com o Regimento do Santo Ofício, o Inquisidor poderia enviar comissários do Santo Ofício para fazer diligências3473. Por outro lado, os bispos também poderiam indicar eclesiásticos para fazer o mesmo tipo de interrogatório como o feito pelo vigário Antônio da Silva3474. Vemos assim, a aproximação entre as funções exercidas pelo inquisidor e vigário, e o que nos chama atenção nessa nomeação é que como Inquisidor, Abranches poderia ter enviado um comissário do Santo Ofício para fazer a coleta dos testemunhos na vila de Buim, mas, escolhe um vigário de uma das vilas da região para fazê-lo. Por que teria feito essa escolha? Essa é uma questão para qual apontaremos possíveis explicações um pouco mais adiante. Seguindo o ritmo da ação inquisitorial na região, temos conhecimento que grande parte dos processos arrolados pela instituição, a começar pelas denúncias e confissões, foram sendo coletadas com a presença de sacerdotes locais como testemunhas ouvintes dos depoimentos e interrogatórios, em especial os padres mercedários e carmelitas que tanto haviam se indisposto com bispo Queirós. Assim, como Inquisidor se aproximou dos padres seculares, convidando-os para serem os ratificantes3475 durante as autoacusações ou denúncias que eram dadas ao Santo Ofício. Apresentadas essas formas de inserção dos vigários nos trabalhos da Inquisição feitos por Abranches, como o de enviá-los para coleta de testemunhos para o Santo Ofício e a inclusão de alguns deles como ratificantes, acreditamos que o inquisidor-visitador e vigário capitular conquistou como aliados os clérigos da região. Levando-se em consideração que trabalhar para o Santo Ofício nos termos exemplificados, poderia ser visto pelos escolhidos como uma forma de distinção direcionada a eles pelo inquisidor e vigário. Tal distinção poderia ter sido comparada pelos clérigos com as que eram ostentadas pelos comissários e familiares O que nos chama atenção nessas nomeações de Abranches, principalmente dos emissários para colher testemunhos nos lugares mais longínquos, é que são situações em que ele poderia enviar comissários do Santo Ofício que poderiam estar na região atuando justamente nesses tipos de atividades3476. Entretanto, o inquisidor-visitador e vigário capitular não enviou agentes do Santo Ofício, mas escolheu padres locais para fazer essa coleta de informações para a 3472

O processo de Marçal Agostinha foi concluído já o do mameluco Pedro Rodrigues encontra-se inconcluso. Processo de Marçal Agostinho e diligência a Pedro Rodrigues respectivamente: ANTT, Inquisição Lisboa, n° 2701 - http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2302632 e n° 16825 http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2316831. 3473 Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado por mandato do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade – 1640. Livro I, Título XI – Dos comissários e escrivães de seu cargo. RIHBG – Ano 157, n. 392. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1996. p. 272. 3474 Evandro Domingues faz referencia a essa nomeação do padre Antônio da Silva dando destaque a conjugação das funções de Abranches, as determinações do Regimento da Inquisição e as prerrogativas da função de vigário capitular. DOMINGUES, Evandro. A pedagogia da desconfiança: o estigma da heresia lançado sobre as práticas de feitiçaria colonial durante a Visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará (1763-1772). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em História, São Paulo, 2001. p.100. 3475 SIQUEIRA, Sonia. O momento da Inquisição. João Pessoa, editora universitária, 2013. p. 546. 3476 Informações mais sistemáticas sobre os agentes do santo ofício como comissários e familiares do período da visitação ao Grão-Pará ainda são muito esparsas. Sabemos de alguns nomes de alguns que podem ser encontrados ao longo da leitura da documentação inquisitorial, contudo um levantamento quantitativo mais preciso ainda estar por fazer.

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ISSN 2358-4912 Inquisição. O que nos leva mais uma vez a pensar na aproximação que teve com o clero por essas vias. Com essa ideia em vista, diante da inserção dos padres seculares nos trabalhos da Inquisição, poderíamos conjecturar que o clero também daria sua resposta à Abranches. Estes, como demonstrou a pesquisa de Evandro Domingues e como podemos encontrar nas denúncias, quando recebiam as confissões dos fiéis e acreditavam que ela deveria ser de conhecimento do Santo Ofício, não absolviam o confitente, mas o aconselhavam a se apresentar ao Santo Ofício e confessar o delito de heresia cometido, pois, apenas assim, seriam totalmente absolvidas as culpas3477. Temos como exemplo, um direcionamento feito por um padre secular, com a apresentação de João Mendes Pinheiro, que esteve diante do inquisidor por ter invocado o diabo. Apresentou-se perante a Mesa da Inquisição no dia 17 de abril de 1764, após assumir as culpas por ter invocado o diabo com o fito de conquistar uma índia casada. Diante do inquisidor o homem disse estar com muito pesar e que as culpas que levou ao Inquisidor o fez por ter “obrigado seu confessor”, e de tê-las cometido estava de todo arrependido3478. Podemos entender, levando em consideração os elementos supracitados, que os confessores contribuíram para que as denúncias fossem levadas ao inquisidor. As denúncias que foram vistas como dignas de conhecimento do Tribunal a eles confessadas em segredo, foram direcionadas ao Santo Ofício. Dando-nos elementos que corroboram com a ideia de que a aproximação que Abranches estabeleceu com o clero regular, atuou positivamente para que as denúncias e confissões fossem feitas ao Inquisidor ajudando no conhecimento do comportamento da população colonial, pelo menos nos primeiros anos da Visita do Santo Ofício ao Grão-Pará. Referências Fontes manuscritas - Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo (IANTT) – Processo 13201 - http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=2313415 - Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate (AHU) Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania do Pará Cx. 53, Doc. 4863 Cx. 46, Doc. 4241 Cx. 50, Doc. 4575 Fontes impressas Mémorias de Fr. João de S. Joseph Queiroz Bispo do Grão Pará/ com uma extensa introdução e notas illustrativas por Camillo Castello-Branco. Porto: Typ. Da Liv. Nacional, 1868. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado por mandato do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade – 1640 RIHBG – Ano 157, n. 392. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1996. LAPA, José Roberto do Amaral. Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (1763-1769). Petrópolis: Vozes, 1978. Referencias Bibliográficas

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DOMINGUES, Evandro. A pedagogia da desconfiança: o estigma da heresia lançado sobre as práticas de feitiçaria colonial durante a Visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará (1763-1772). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em História, São Paulo, 2001. p.99. 3478 LAPA, José Roberto do Amaral. Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará (17631769). Petrópolis: Vozes, 1978. p.210-211.

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ISSN 2358-4912 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII.Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste 1640-1750. São Paulo: Alameda, Phoebus, 2007. MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no Grão-Pará Pombalino (1763-1769). Niterói: UFF, dissertação de mestrado, 2009. MOURA, Blenda Cunha. Intrigas Coloniais a trajetória do Bispo João de São José Queirós. (1711-1763). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Programa de PósGraduação em História, Amazonas, 2009. SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. Manaus: EDUA, 1999. SIQUEIRA, Sonia. O momento da Inquisição. João Pessoa, editora universitária, 2013. SOUZA, Laura de Mello e. Política e administração colonial: problemas e perspectivas. Org. Laura de Mello e Souza; Júnia Ferreira Furtado e Maria Fernanda Bicalho. O Governo dos Povos. – São Paulo: Alameda, 2010.

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LA “GUERRA DE LA OREJA DE JENKINS”: HISTORIAS ENTRELAZADAS EN CONTEXTOS AMERICANOS: 1739-1748* Sebastián Gomez3479 Introducción: la desventura del negro francis Popayán, octubre de 1747. Al final de la fría tarde andina, un “negro bozal” aparentemente sospechoso fue aprehendido por un alguacil mayor de la ciudad. El aprehensor, oficial español, actuó bajo la presunción de que el negro había sido introducido a Popayán como pieza de contrabando, tal y como solía suceder en el Nuevo Mundo desde el siglo XVII, cuando los primeros brotes de la trata negrera, concebida mediante asientos monopólicos a compañías comerciales europeas, se insertaron en los itinerarios económicos de la Carrera de Indias. La ausencia de alguna carimba española en su cuerpo, que confirmara su situación como “pieza de Indias” adquirida en el Asiento de Cartagena, agudizaba todas las sospechas del oficial. Sin embargo, este sí poseía varias marcas en su anatomía, cicatrices que lo acreditaban como sobreviviente de varios infortunios: “una cruz junto al ojo del lado izquierdo; una como cuchillada sobre la tetilla del lado derecho, y un dedo menos en el pie derecho”; eran el saldo superficial de vida que llevaba hasta el momento. El negro había llegado a la ciudad de Popayán luego de trasegar por vía terrestre y fluvial con relativa libertad durante más de cinco años en dirección norte-sur por el Nuevo Reino de Granada. Cartagena, las sabanas de Tolú, Mompox, Honda, La Plata, Pasto y, por último, de nuevo rumbo al norte, hacia Popayán, donde luego de su captura fue rematado en venta como esclavizado por 300 patacones. Un tal don Manuel Castrellón, vecino de la ciudad, sería su nuevo amo.3480 El negro era un hombre de 28 años, “criollo de Jamaica”, y al igual que otras personas de su condición étnica a mediados del siglo XVIII había sido re-esclavizado en un virreinato hispánico de reciente fundación, bajo una lógica esclavista diferente a la empleada por los ingleses en sus dominios de ultramar. En la América británica, especialmente en las Antillas, los negros, además de ser esclavizados en plantaciones azucareras y demás estancias agrícolas, desempeñaron papeles determinantes en las actividades militares y mercantiles que tenían lugar a bordo de las embarcaciones que surcaban el Atlántico durante un siglo en que no fueron pocos los combates marítimos entre monarquías europeas.3481 Su nombre de pila era Francis, aunque los españoles, que suelen castellanizar todas las voces, no vacilaron en llamarlo “Francisco”. Tenía “madre y hermanos” y había sido propiedad de Edward Bolton, un vecino de Kingston, capital de Jamaica y próspera ciudad portuaria del mar Caribe. Mediante el sacramento católico Francis fue rebautizado como “Antonio” en la ciudad de Cartagena de Indias, lugar donde días atrás tuvo la fortuna de ser socorrido, después de estar tendido y malherido en la playa, durante una fresca noche de marzo de 1741.3482 *

Agradezco los comentarios, críticas y sugerencias que los miembros del Grupo de Investigación en Historia Social (GIHS) de la Universidad de Antioquia realizaron a este texto, y en especial al profesor César Lenis por haberme proporcionado los datos de archivo sobre la guerra en Marinilla, provincia de Antioquia. 3479 Universidad de Antioquia. 3480 Archivo Central del Cauca (en adelante ACC), Colonia 4173, f. 6r. 3481 W. Jeffrey Bolster, Black Jacks. African American Seamen in the Age of Sail (Cambridge: Harvard University Press, 1998) 28-30; Peter Linebaugh y Marcus Rediker, La hidra de la revolución. Marineros, esclavos y campesinos en la historia oculta del Atlántico (Barcelona: Editorial Crítica 2005) 193-199. 3482 A partir del afortunado socorro que gozó en la ciudad de Cartagena, la curiosa historia acerca de la vida y situación jurídica de Francis o “Antonio”, según los testimonios rendidos por la oficialidad de Popayán, es la siguiente: un tal don Francisco Lasso, residente de las sabanas de Tolú lo rescató, curó sus heridas y lo acogió, aunque “nunca lo trató como esclavo”. En la villa de Mompox, donde residió durante dos años en la casa de un tal don Andrés Gallardo, “tampoco fue reputado por tal esclavo”. De Mompox bogó rumbo al sur por el río Magdalena hacia la villa de Honda, donde paró a manos de un tal don

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ISSN 2358-4912 Si bien se observa una historia revestida de interesantes matices que demuestran varias posibilidades interpretativas acerca de la condición social, étnica y legal de un esclavizado prácticamente anónimo en un contexto de guerra internacional durante el Antiguo Régimen, particularmente en América, la curiosa historia de Francis —al igual que muchas otras que nunca saldrán del anonimato historiográfico— no es más que un diminuto fragmento histórico, una consecuencia relativamente inmediata de la situación continental engendrada por uno de los conflictos bélicos más rimbombantes del mundo atlántico en el siglo XVIII: la “Guerra de la Oreja de Jenkins” o “Guerra del Asiento”, disputada por españoles e ingleses entre 1739 y1748, y conocida en la historiografía anglosajona por constituir todo un hito en su historia naval como The War of Jenkins’ Ear; guerra en la que el jamaiquino Francis había participado como tamborilero en las tropas de soldados y marinos conformadas por más de 23.000 personas y comandadas por el legendario almirante Edward Vernon durante el desastroso sitio de Cartagena de Indias.3483 Durante aquel episodio militar, donde “habiendo muerto mucha gente inglesa y otra vuéltose a embarcar”, Francis había sobrevivido, a pesar de recibir varias heridas luego de pelear contra los militares españoles acantonados en el cerro de San Lázaro, lugar coronado por la monumental fortificación de San Felipe de Barajas.3484 El rey George II de Inglaterra, a través del primer ministro Robert Walpole, dispuso bajo sus órdenes al almirante Edward Vernon para castigar a los españoles, quienes, en un acto casi tragicómico, “cruel y bárbaro”, habían humillado a los ingleses en La Habana el 18 de junio de 1731.3485 Este temprano episodio cubano serviría como una justificación absolutamente superficial para la detonación tardía de un conflicto que venía incubándose varias décadas atrás debido a los recelos que suscitó el intenso contrabando practicado por los ingleses en la América española gracias a su fructífero monopolio del Asiento para la trata negrera. Aquello repercutió con un estallido general que impulsó el ingreso declarado de los ingleses a la guerra el 23 de octubre de 1739, seguidos por los españoles, quienes desde Madrid reaccionarían a la declaratoria aproximadamente un mes después,3486 comprometiendo en la beligerancia a sus dominios ultramarinos. Así, bajo las azarosas circunstancias tejidas por la guerra, el jamaiquino Francis, sus heridas y su destino inmediato fueron solo una pequeñísima secuela de esta conflagración internacional con ecos en múltiples latitudes, no limitadas estrictamente al mundo atlántico. Si bien el conflicto palpitó con suficiente fuerza en la cuenca del Caribe insular y continental, suponiendo notables fracasos militares, pérdidas humanas y usurpaciones territoriales para los imperios de Inglaterra y España, no fue solo en el “Mar de las Antillas” donde ocurrirían acontecimientos que podrían entenderse como consecuencias directas o indirectas, simples o nefastas, principales o secundarias, que de una u otra manera permiten pensar históricamente un conjunto de hechos desde perspectivas y fuentes documentales alejadas de los clásicos lugares comunes. La guerra, entendida como un hecho social que suele precisar de tácticas militares, inversiones en armamentos, movilizaciones humanas, muertes y demás pormenores, se analiza en sí misma, de forma introvertida y, generalmente, desconociendo las dimensiones exteriores propias de los contextos imperiales europeos, vinculantes de hechos o agentes no necesariamente protagónicos para el desarrollo de la guerra Sebastián Suárez, con quien “se acomodó con él de paje”. Suárez murió en la ciudad de La Plata, por lo cual Francis volvió a Honda donde un mercader llamado Agustín de Mérida que, “por saber la lengua inglesa y no traer criado que le sirviese se ajustó con él”. Poco tiempo después, a causa de haberse enfermado de una pierna, Agustín de Mérida abandonó a Francis quien, desamparado, fue tomado por pieza de contrabando a manos de la oficialidad de Popayán, luego de haber estado en la villa de Pasto. ACC. Colonia 4173, ff. 1v-3v. 3483 Adolfo Meisel Roca, “¿Situado o contrabando? La base económica de Cartagena de Indias a finales del Siglo de las Luces”, en: Johanna von Grafenstein Gareis (coord.), El Golfo-Caribe y sus puertos, Dos Tomos, T.I, 1600-1850 (México: Instituto Mora, 2006), 47. 3484 ACC. Colonia 4173, ff. 4r-6v. 3485 Harold W. V. Temperley, “The Causes of the War of Jenkins’ Ear, 1739”, Transactions of the Royal Historical Society, Third Series, Vol. 3 (1909) 201-202. 3486 Enrique Otero Lana, “El corso en las islas Canarias durante la Guerra de la Oreja de Jenkins (17391748)”, Anuario de Estudios Atlánticos, núm. 55 (2009) 119.

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ISSN 2358-4912 en sí, pero que en cierta medida se vieron afectados por los avatares del compromiso bélico y político, principalmente notorio en el océano Atlántico. Observando procesos americanos relativamente externos a la guerra y tratando de vincularlos entre sí a fin de entender los atributos imperiales de la contienda, es posible interpretar algunos hechos que suelen menospreciarse (o ignorarse) dado que no ocurrieron en los epicentros caribeños del conflicto entre los años de 1739 y 1748, ni fueron decisivos para el desarrollo de la guerra misma; aunque ello no significa que su naturaleza sea de menor relevancia si se trata de comprender una guerra internacional de amplias repercusiones en una dimensión menos circunscrita a las fuentes consabidas y desde otros ángulos condicionados por contextos históricos y ubicaciones geográficas distintas. El historiador norteamericano Eliga H. Gould, ha desarrollado diferentes investigaciones empleando una sugerente metodología que él mismo ha denominado como “historias entrelazadas” [Entangled Histories] —derivada de la histoire croisée—, metodología que indaga por las “sociedades interconectadas” que experimentan procesos de mutua influencia y percepciones recíprocas o asimétricas en contextos geográficos cercanos o compartidos,3487 lo cual no debe confundirse con las Connected Histories del historiador Sanjay Subrahmanyam. Para Gould, la existencia de territorios dominados por imperios europeos en el continente americano, como es el caso de España e Inglaterra, supone posibilidades interpretativas que deben abordarse considerando las diferentes “versiones” implicadas en la constitución de los registros documentales y la construcción historiográfica de los relatos. Bajo estos parámetros, y guardando las proporciones en comparación con los alcances historiográficos de la interesante obra de Gould, este escrito pretende mostrar otras alternativas para una comprensión pormenorizada y “periférica” de la consabida Guerra de la Oreja de Jenkins a la luz de algunas historias entrelazadas. Una guerra específica: origen y significado Desde mediados del siglo XVI el conjunto territorial comprendido por el imperio español había sufrido directamente los embates de la guerra y las pugnas constantes contra Inglaterra, por entonces una monarquía emergente aunque su desarrollo naval no era menospreciable en comparación a los demás reinos europeos que operaban en el océano Atlántico y el mar Mediterráneo. Para ingleses y españoles los hemisferios norte y sur del Atlántico, incluyendo al mar Caribe, constituyeron un fértil escenario de enfrentamientos prolongados a lo largo de los siglos de dominación imperial en América. Desde los temores causados por la audaz piratería isabelina hasta el esmerado corso multinacional durante gran parte del siglo XVII,3488 el Atlántico, océano americano, africano y europeo, se mantuvo como un espacio de atracción naval y despliegue militar para las casas de Habsburgo y Hannover, competidoras de carreras mercantiles donde asegurar riquezas acumulables y oportunidades comerciales brindadas por el continente americano constituyeron objetivos medulares hasta bien entrado el siglo XVIII. Iniciada en 1739, la Guerra de la Oreja de Jenkins, no había sido, en efecto, la primera ni la última contienda que ambas monarquías disputaron a lo largo de sus carreras expansionistas en ultramar, mucho menos en América, cuyas amplias dimensiones geográficas, amén de sus puertos numerosos, agudizaron los motivos de rivalidad por la posesión territorial, y donde el mar Caribe fue un espacio marítimo absolutamente promisorio para el desarrollo de pugnas internacionales de diverso orden: enfrentamientos entre imperios europeos cuyas batallas a fuego de cañón y filo de sable también fungirían como precedente para las sanguinarias guerras de emancipación que estarían por venir a partir de 1776. Oficiales de Veracruz, Portobelo, Cartagena y La Guaira sintieron con mayor o menor rigor los efectos de las contiendas en los ámbitos civiles, militares y comerciales, al igual que sus homólogos oficiantes en los distritos interiores del continente, dependiendo de los casos en cuestión. De hecho, muy poco tiempo después de la toma de Portobelo por la escuadra naval de 3487

Eliga H. Gould, “Entangled Histories, Entangled Worlds: The English Speaking Atlantic as a Spanish Periphery”, The American Historical Review, Vol. 112, No. 3 (2007) 766-767. 3488 Juan A. Ortega y Medina, El conflicto anglo-español por el dominio oceánico (siglos XVI y XVII) (México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1994) 193-245.

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ISSN 2358-4912 Vernon en noviembre de 1739, Dionisio Martínez de la Vega, entonces presidente de la Real Audiencia de Panamá, además de informar acerca de lo ocurrido a las autoridades de Cartagena, alertó por escrito a su homólogo en la Real Audiencia de Guatemala para que a su vez se remitiera la alerta al virrey de la Nueva España y a su subalterno, el gobernador de Veracruz, sobre la fatalidad padecida por los españoles en la principal fortificación de la ciudad: San Felipe de Todofierro, que el enemigo británico “desmuñonó demoliendo las fortalezas, y dando fuego a sus viviendas, llevándose así mismo las Cajas Reales y el caudal que había en ellas”.3489 A pesar de no haber sido testigos directos y de no participar en ninguno de los episodios emblemáticos acarreados por el conflicto, algunos vasallos de la monarquía hispánica, habitantes de lugares periféricos a la cuenca del mar Caribe, se insertaron de manera no menos importante en las dinámicas tejidas en el continente a causa de la guerra. Mediante rumores, comunicaciones escritas o movimientos directos por mar y tierra, gentes de California, el Alto Perú, la isla de Barbados, la Colônia do Sacramento o incluso el archipiélago de las Filipinas, tuvieron tiempo suficiente para comprender y temer por los arrebatos militares del enemigo que, siendo español o inglés —o alguno de sus aliados— podía efectuar cualquier suerte de retaliación en tiempos donde se allanaron las posibilidades para cualquier movimiento agresivo o, en su defecto, para practicar con intensidad el contrabando,3490 tal y como ocurrió con los ingleses en detrimento de las aspiraciones monopolistas hispánicas.3491 El imperio español venía resentido desde tiempos de la Unión Ibérica, cuando los distintos factores que ocasionaron la crisis del siglo XVII desbarataron sus posibilidades para ingresar al Siglo de las Luces con la prosperidad económica amasada gracias a las abundantes riquezas extraídas de América, Asia y África durante los siglos anteriores. La crisis, difícil coyuntura política, religiosa, económica y ambiental, permeó prácticamente a toda la Europa occidental implicando a su manera a los territorios ultramarinos que dependían directamente por los vínculos de dominación construidos desde los siglos XV y XVI.3492 La Guerra de Sucesión (1701), el subsecuente Tratado de Utrecht (1713) y sus impactos en las primeras décadas del siglo XVIII, tampoco fueron precedentes idílicos que auguraran mejores tiempos en un contexto geopolítico planetario donde, a partir del siglo XVII, los gobiernos de las Provincias Unidas de los Países Bajos, Inglaterra, Francia, Escocia y, en menor medida, Portugal, seguían empeñados en vulnerar la soberanía territorial que la monarquía hispánica, muy difícilmente, podía defender en sus amplísimos dominios del Nuevo Mundo. Los holandeses eran más que habituales en las aguas del hemisferio oriental, donde la Verenigde Oostindische Compagnie era el instrumento para la consecución de fortunas y acumulaciones de capital hasta entonces sin precedentes en Europa. Las rutas marítimas que unían la costa oriental de África con Batavia a través del océano Índico posibilitaron la conformación de monopolios comerciales que socavaron los intereses de la Monarquía Hispánica durante la Unión Ibérica; poco tiempo más tarde operarían en el archipiélago de Filipinas, se asentarían en las riberas del Hudson y, en el trópico americano, arrebatarían Curazao para después ubicarse en la capitanía lusa de Pernambuco.3493 Aquellas posesiones obtenidas en el Nuevo Mundo gracias a la sagacidad naval y a la existencia de la West Indische Compagnie, institución que facilitaría la presencia holandesa en aguas caribeñas y cuyos bastiones insulares de Aruba, Bonaire y Curazao fungirían como centros de operaciones para desplegar los tentáculos comerciales en los dominios españoles a lo largo de todo el siglo

3489

Archivo General de Indias (en adelante AGI), Lima 651, Doc. 3, f. 41r-42r. Peggy K. Liss, Los imperios trasatlánticos. Las redes del comercio y de las revoluciones de independencia (México: Fondo de Cultura Económica, 1995) 32-33. 3491 George H. Nelson, “Contraband Trade under the Asiento”, The American Historical Review, Vol. 51, No. 1 (1945), 55-67. 3492 Geoffrey Parker, “Crisis and Catastrophe: The Global Crisis of the Seventeenth Century Reconsidered”, The American Historical Review, Vol. 113, No. 4 (2008), 1053-1079. 3493 C. R. Boxer, The Dutch Seaborne Empire, 1600-1800 (New York: Penguin Books, 1990) 28-29; Evaldo Cabral de Mello (org.), O Brasil holandés (São Paulo: Penguin Books/Companhia das Letras, 2010) 29-52. 3490

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ISSN 2358-4912 XVIII,3494 constituirían uno de los espacios caribeños de mayor proyección mercantil, al menos en el ámbito ilícito, entre las múltiples acechanzas cosmopolitas a la Tierra Firme. La doctrina grootiana del Mare Liberum que respaldaba las pretensiones expansionistas de los enemigos de la Monarquía Hispánica en sus dominios de ultramar y de la cual también se beneficiarían escoceses e ingleses,3495 supuso todo un reto, prácticamente inalcanzable, para doblegar la astucia política, naval y militar con que los británicos se habían hecho a espacios sumamente estratégicos desde donde controlaron el comercio y la navegación en detrimento de los monopolios que España se atribuía gracias a su presencia generalizada en el continente y sus archipiélagos desde los siglos anteriores. De esta manera, los ingleses ocuparon las Trece Colonias en América del Norte a partir de 1607 y cuatro décadas más tarde, en 1655, expulsarían a los españoles que detentaban la isla de Jamaica, configurando una forma de ocupación territorial que, en términos geopolíticos, sentaría un precedente inigualable para comprender la paulatina debacle española en aquella parte del Caribe insular y sus áreas continentales de influencia directa.3496 Escoceses y franceses no se quedaron atrás en la búsqueda de sus propias alternativas americanas. Una vez disuelta la Unión Ibérica en 1640 el imperio español en el continente americano sería un epicentro inconfundible de usurpaciones territoriales. La empresa colonizadora del Darién, curiosa iniciativa que en poco tiempo supuso un escandaloso fracaso, ubicaría durante buena parte del siglo XVII a estos europeos en una de las regiones fronterizas más agrestes de la América española. Aquella Nueva Caledonia, cuya presencia ofuscaba a los gobernadores de la Tierra Firme, era el fehaciente testimonio de la mediocridad hispánica en la administración de sus fronteras del trópico.3497 Al igual que los escoceses, durante la Unión Ibérica los franceses concretarían sus propias iniciativas en el Caribe insular y en la América portuguesa. Saint Domingue y la Francia Antártica,3498 serían dos significativas improntas que le recordarían a la Monarquía Católica las necesidades de mantenerse alerta por la creciente animadversión que suscitaba el modelo de desmedida posesión territorial y una política centralizada en las prioridades metropolitanas. Por último, una vez disuelta la Unión Ibérica y cristalizada la Restauração portuguesa, en América del Sur, los lusitanos no concedieron tregua alguna: desde la cuenca del río Amazonas hasta el estuario del Río de la Plata, se encargarían de diezmar sendos espacios otrora pertenecientes a España. Una inmensa porción de la cuenca amazónica noroccidental y la ocupación y fundación de la Colônia do Sacramento en la banda oriental del estuario platense,3499 supondrían nada menos que el impulso inicial para toda una serie de desencuentros políticos que buscaron subsanarse con armisticios firmados en las cortes de las metrópolis ibéricas.3500 El Caribe centroamericano, las Antillas menores, el Darién, la cuenca Amazónica y el estuario del Río de la Plata fueron, a la luz de la crisis económica y política experimentada durante buena parte del siglo XVII, espacios donde la otrora grandeza de la Monarquía Hispánica no era precisamente un símbolo de reputación que inspirara respeto entre sus enemigos. Las disputas territoriales causarían estragos severos en el ámbito financiero y administrativo y supondrían la consolidación de un resentimiento que, aunado a los prejuicios 3494

Carlos Felice Cardot, Curazao hispánico (Antagonismo flamenco-español) (Caracas: Academia Nacional de la Historia, 1973) 338-339. 3495 David Armitage, The Ideological Origins of the British Empire (Cambridge: Cambridge University Press, 2000) 104-110. 3496 W. J. Gardner, A History of Jamaica from its Discovery by Christopher Columbus to the year 1872 (London: Frank Cass & Co. Ltd., 1971) 27-35. 3497 Douglas Watt, The Price of Scotland. Darien, Union and the Wealth of Nations (Edinburgh: Luath Press, 2007) 15-61. 3498 Jacques Lafaye, Brasil y Francia: una intimidad secular (México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2001) 81-95. 3499 Paulo Possamai, Colonia del Sacramento. Vida cotidiana durante la ocupación portuguesa (Montevideo: Torre del Vigía, 2014) 20-23. 3500 Sebastián Gómez González, Frontera selvática. Españoles, portugueses y su disputa por el noroccidente amazónico, siglo XVIII (Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2014) 59-60.

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ISSN 2358-4912 religiosos propios de los tiempos filipinos, serviría como catalizador para exacerbar los resquemores que estarían presentes a lo largo de todo el siglo XVIII; resquemores que habrían de alinearse como un potente motivo motivo apologético para las guerras por venir. Así, Inglaterra y sus hijos permanecerían como un rubro asegurado en el amplio espectro de enemistades atizado por los Habsburgo y concluido lustros después por los Borbones bajo un signo desastroso.3501 Es suficientemente temente conocido el curioso —aunque improbable— — episodio que supuestamente originó la guerra: aquella amputación de oreja izquierda que padeció el capitán Robert Jenkins en 1731 por órdenes de Juan León Fandiño, oficial español y guardacostas de la isla de Cuba,3502 conllevó a que incluso el vistoso incidente fuera inmortalizado de forma historiográfica, literaria, y hasta pictórica (ver Figura 1), no solo en las comunes y bien difundidas sátiras políticas que circularon en Inglaterra a lo largo del siglo XVIII, XVII sino además en las historias publicadas durante o posteriormente a los años del conflicto, que asimismo sirvieron como conductos para recordar y enaltecer los cometidos de la nación inglesa en un concierto europeo donde España iba opacándose aceleradamente. aceleradame Figura 1

Detalle: “A Spanish Guarda Costa boarding Captain Jenkins’s ship and cutting off his ear”. Fuente: Capt. Charles Jenkins, England’s Triumph: or Spanish Cowardice expos’d (London: s.e., 1739)

Uno de los pasajes más curiosos curiosos y relativos al hecho más melodramático del conflicto fue quizás el escrito por el gran historiador británico Thomas Carlyle (1795-1881) (1795 1881) quien, bajo los narrativos cánones historiográficos del siglo XIX, describiría la desgracia ocurrida al capitán Robert Jenkins a manos de los españoles: Londres, 23-27 23 27 de junio, 1731: El capitán Jenkins dejó este puerto [Londres] a bordo del Rebbeca, muchos meses atrás; navegó hacia Jamaica por un cargamento de azúcar. Tomó su cargamento en Jamaica y se embarcó de nuevo en la mar el 5 de abril de 1731 continuando su viaje en dirección a casa, con vientos indiferentes durante los primeros quince días. El 20 de abril, sin vientos o con ninguno a su favor, se estacionó hacia la entrada del golfo de Florida, no lejos de La Habana,” H —casi casi tan cerca, debo pensar; ¡pero aquellos fuertes vientos!— vientos! “No lejos de La Habana, cuando un guarda costas español los observó; se dirigió hacia Jenkins y furiosamente lo abordó: ‘Sinvergüenza, ¿qué es lo que buscas? ¿Contrabandeando en estos mares? mares? ¿Jamaica, dices? ¿Azúcar? ¡Seguramente! ¡Déjanos ver qué ocultas, piezas españolas de a ocho!’ Y arremetió sobre Jenkins y su 3501

Richard Pares, War and Trade in the West Indies, 1739-1763 1739 (Oxford: Clarendon Press, 1963) 61, n.1. Thomas Carlyle, History of Frederick the Second: Called Frederick the Great (London: P. F. Collier, 1897) 121121 122 (la traducción es mía). 3502

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ISSN 2358-4912 embarcación de la más extraordinaria manera. Rompió sus escotillas; e ingresó a la nave en busca de maderas [tintóreas], escondites, piezas de a ocho; sin hallar nada —ni la menor pieza de contrabando a bordo—. Trajeron sus cuadrantes, sextantes, sin embargo, su provisión de velas de sebo fue arruinada y rebujada, y todas las demás cosas, buscando piezas de a ocho. Furiosamente le advirtió, cuchillo en mano, que confesara su culpa. Rebanaron la oreja izquierda de la cabeza de Jenkins. Se había dado la orden: ‘¡escálpenlo!’; 3503 pero como no tenía pelo, tal orden fue omitida.

No obstante, los ecos de la guerra y los rumores sobre las batallas libradas en La Florida,3504 Portobelo o Cartagena, sumadas a las intimidantes acciones y proyectos navales comandados en el océano Pacífico por el celebérrimo comodoro —“pirata”, según los españoles— George Anson,3505 especialmente en las Filipinas y en el puerto peruano de Paita en 1741,3506 no solo significarían el incremento de la alarma imperial española por las astutas arremetidas inglesas, también la onerosa pérdida financiera debida al secuestro del navío “Nuestra Señora de Covadonga”, capturado en 1743 mientras navegaba entre los puertos de Acapulco y Manila, transportando aproximadamente 1’500.000 pesos de plata.3507 Las reacciones españolas por la expropiación de este suculento botín no se hicieron esperar. Para el año siguiente, un oficial español que se desempeñaba en Manila pontificó sobre la urgencia de escarmentar a los ingleses por el fructífero atrevimiento del comodoro Anson: …estando como está fresca la llaga y el dolor que nos aflige de la pérdida que acabamos de experimentar en la llevada del navío Nuestra Señora de Covadonga por el almirante Jorge Anson […] con cuyo motivo los ánimos de toda la República sin distinción sean conmovidos pidiendo y clamando venganza contra la ofensa recibida, no solo en los caudales sino en la honra, tirando todos como fieles vasallos de Su Majestad, a consumir y acabar al enemigo hasta su última ruina, emprendiendo para esto su seguimiento con todas las fuerzas posibles y necesarias. Y cuando nuestra desgracia no lo alcance procurar con todo esfuerzo ofender a la nación Británica por los mismos filos con que nos ha insultado apresándole todos los navíos que se pudieren y vinieren anualmente al comercio de la China, para con esto resarcir en parte las pérdidas causadas en los tiempos y que en los venideros tengan el respeto y temor correspondiente a las fuerzas Filipinas: de suerte que podamos gozar de 3508 toda seguridad.

Además de suponer serias conmociones entre quienes tuvieron la oportunidad de presenciarlas, los enfrentamientos también redundarían en latitudes periféricas y en circunstancias relativamente ajenas durante y después de los años que duró la disputa anglo hispánica. En 1744, lejos de las aguas americanas y después de haber presenciado la “más sangrienta batalla” asumida por una docena de navíos españoles, un testigo de los enfrentamientos, entonces presente en las islas de Hyères, compuso en verso una Verdadera 3503

Acerca de las implicaciones históricas de la guerra en un corto período inmediatamente subsecuente a la misma, el historiador Edgardo Pérez Morales ha explicado que las confrontaciones imperiales hispanobritánicas se han complementado por medios extra bélicos obedeciendo a propósitos de legitimación política de acuerdo a las fuentes emitidas desde Londres o Madrid, capitales metropolitanas de los imperios contendientes. Edgardo Pérez Morales, “Los futuros baluartes del Caribe. Guerra, noticias e imaginación histórica vernácula en Gran Bretaña y España”, en: Ana Catalina Reyes Cárdenas, Juan David Montoya Guzmán y Sebastián Gómez González (eds.), El siglo XVIII americano. Estudios de historia colonial (Medellín: Universidad Nacional de Colombia, sede Medellín, 2013) 59-62. 3504 David J. Weber, La frontera española en América del Norte (México: Fondo de Cultura Económica, 2000) 262-263. 3505 George Anson, A Voyage Round the World in the Years 1740, 1741, 1742, 1743, 1744 (London: Society for Promoting Christian Knowledge, 1845) 193-211. 3506 John Fisher, El Perú Borbónico, 1750-1824 (Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2000) 48. 3507 Mariano Ardash Bonialian, El Pacífico hispanoamericano. Política y comercio asiático en el Imperio Español (1680-1784) (México: El Colegio de México, 2012) 220. 3508 AGI, Filipinas 141, Doc. 49, ff. 1v-2r.

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ISSN 2358-4912 noticia de la cruel batalla, donde ingleses, españoles y franceses se batieron en aguas mediterráneas: “al tiempo que el inglés puso a todas las minas mecha, tan diestramente apuntando que fue a pique, sin que puedan librarse los que iban dentro, pues hechos menudas piezas, vieron volar por el aire, sus cuerpos y sus cabezas”.3509 Mientras que en el mar Caribe y en otros espacios europeos y americanos se efectuaba lo propio bajo la misma atmósfera de rivalidad.3510 De hecho, en Santa Marta, fundación caribeña vecina de Cartagena, el inicio de las hostilidades anglo hispánicas también se manifestó con reacciones militares concretadas en poco tiempo. A principios de enero de 1740, don Juan de Vera, un militar subalterno del Maestre de Campo General, José Fernando de Mier y Guerra, informó que “la escuadra de los enemigos ha de venir a sorprender este puerto”.3511 La afirmación de Vera estaba en consonancia con las propias reacciones de la corte de Madrid, en tanto que para el 6 de diciembre de 1739 ya se había emitido una Real Cédula en la cual se prevenía a las máximas autoridades del virreinato acerca de la probable arremetida británica, pues el enemigo: “tenga ideado atacar en ellos y confiada la altivez de aquella nación en sus fuerzas navales, presume que no ha de encontrar la robusta oposición que en semejantes circunstancias ha experimentado del valor y fidelidad de esos vasallos”.3512 Ciertamente los espacios periféricos europeos, que pueden entenderse como enclaves metropolitanos donde el desarrollo de la guerra por tierra y mar se advirtió de manera fehaciente, absorbieron los distintos embates propiciados por cada bando y dentro de las posibilidades militares y políticas que condicionaron el conflicto a lo largo de su duración. En este sentido, espacios americanos que también podrían considerarse como periféricos o fronterizos, dadas sus cualidades geográficas, políticas y administrativas, también soportaron a su manera las circunstancias interpuestas por la guerra en su cotidianidad. Por ello, y considerando los síntomas de prevención suscitados por la amenaza británica, tampoco era fortuito que en abril de 1740, al poco tiempo de haber estallado la guerra, el alcalde ordinario de la ciudad de Los Remedios, pequeño asentamiento suramericano enclavado en el septentrión del Nuevo Reino de Granada, acatara un bando: “para que vasallos estantes y habitantes en todo el distrito de este gobierno superior que quisieren o tuvieren comodidad de poder armar bajeles en la guerra contra la nación inglesa lo puedan ejecutar franca y libremente”.3513 Para esta región del Nuevo Reino de Granada la guerra había suscitado la efervescencia de la animadversión contra los ingleses. De hecho, en el mismo bando se ordenaba que “prendan cualquier persona de la dicha nación Británica que se halle con residencia o transitare en el distrito de su jurisdicción”.3514 Y de esta misma forma, en un pequeño asentamiento como la ciudad de San José de la Marinilla, aparentemente indiferente a los avatares imperiales durante un conflicto internacional, la guerra también causó alertas en la oficialidad del poblado e instigó reclutamientos compulsivos de hombres previamente armados con espadas, machetes, mojarras y escopetas para defender aquellos dominios hispánicos fronterizos frente a las posibles agresiones anglosajonas.3515

La guerra y sus ecos: entre la historia y testimonio jesuítico

3509

Anónimo, Verdadera noticia de la cruel batalla que han tenido doce navíos españoles en las islas de Yeres, mandados por el Gefe de esquadra Don Juan Joseph Navarro con cuarenta y siete de ingleses (siendo nueve de a tres puentes) mandados por el almirante Matheus, Segunda Parte (Valencia: s.e, 1744) 4. 3510 Richard Rolt, An Impartial Representation of the Conduct of the Several Powers of Europe Engaged in the Late General War, Cuatro volúmenes, Vol. III (London: S. Birt, 1750) 424-479. 3511 José María De-Mier, Historia de Colombia según sus protagonistas, siglo XVIII. Poblamiento en la provincia de Santa Marta, Tres Tomos, T. I (Bogotá: Colegio Máximo de las Academias de Colombia/Libreros de Colombia, 1987) 30. 3512 José María De-Mier, 26. 3513 Archivo Histórico Municipal de Marinilla (en adelante AHMM), Cabildo, Tomo 3, f. 187r. 3514 AHMM, Cabildo, Tomo 3, f. 187v. 3515 AHMM, Cabildo, Tomo 3, ff. 185r-186v.

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ISSN 2358-4912 Probablemente, este conflicto dieciochesco pudo haber generado traumas entre quienes lo vivieron directamente, más aún por tratarse de una guerra entre dos imperios en la cual habían participado notables celebridades de los almirantazgos ingleses y españoles, personajes que llegarían a recordarse como héroes nacionales en ambos lados del Atlántico.3516 De hecho, varios años después de terminada la guerra, hacia 1757, un autor anónimo publicó en Londres un curioso libelo donde realizó algunas observaciones sobre la situación militar y política de Inglaterra, justificado en una tétrica aparición nocturna por la cual “mis huesos temblaron y toda mi carne se estremeció” al observar nada menos que el fantasma del almirante Edward Vernon,3517 quien más de una década atrás había triunfado al combatir contra los españoles en Portobelo y fracasado al intentar tomarse la ciudad-puerto de Cartagena poco tiempo después de iniciada la guerra. El sitio de Cartagena, episodio militar celebrado por la historiografía española y colombiana debido al triunfo de las tropas coloniales comandadas por el almirante Blas de Lezo y Olavarrieta, no solo causaría repercusiones en el perímetro de la ciudad, sus tierras y playas aledañas. Durante una larga travesía entre las ciudades de Lima y Caracas, Don Miguel de Santisteban, un criollo panameño que ocupó prestantes cargos burocráticos en la América española, tuvo que acomodar su itinerario a las circunstancias que la guerra había erosionado, particularmente durante su recorrido por la jurisdicción de la provincia de Cartagena. Aquella guerra, “que el común sentir juzgaba de poca duración”, obligó a que Santisteban reconsiderara el derrotero de su viaje: “porque suponiendo que no podía actuarse por Panamá por estar Portobelo ocupado de los enemigos”.3518 Al llegar a la villa de Mompox, luego de haber trasegado por el suroccidente del Nuevo Reino de Granada y de haber remontado las aguas del río Magdalena en dirección al norte, Santisteban optó por regresar a la ciudad de Honda, a fin de continuar por tierra hacia Caracas. El motivo de su decisión era preciso. Las noticias que recientemente habían llegado desde Cartagena no eran muy alentadoras: “sabido aquí la gran novedad de haberse dejado ver el día 15 sobre Cartagena la numerosa escuadra inglesa mandada por el Almirante Vernon, y que había empezado a batir el Castillo de Bocachica”,3519 sería el infortunio que le implicó a Santisteban permanecer varios días más en Mompox antes de retomar la ruta del sur, rumbo al puerto fluvial de Honda, para proseguir hacia Caracas por la vía del altiplano neogranadino. Sin embargo, como buen conocedor de los asuntos políticos que embargaban a los virreinatos españoles en América del Sur, y una vez que el episodio cartagenero había llegado a su fin, el viajero, sin ocultar el júbilo por el triunfo español en la batalla, no vaciló en pontificar: …tuvimos la feliz noticia de haberse levantado el sitio de aquella plaza el 27 de abril y el 28 puéstose a la vela la numerosa armada después de haber dejado en el Campo del Castillo de San Lázaro los despojos militares de que se formó el trofeo de nuestra gloria y el padrón para escarmiento de su orgullo, se solemnizó con Misa de Gracias por victoria tan señalada. Considerando que en constitución semejante se poblaría de corsarios ingleses el seno del mar de Cartagena buscando en las presas alguna satisfacción a los inmensos gastos 3520 de una empresa en que quedó tan avergonzada su arrogancia.

Para cualquier viajero que navegara por el río Magdalena en dirección al litoral caribeño del Nuevo Reino de Granada, la villa de Santa Cruz de Mompox era un destino prácticamente obligatorio. Aquel núcleo comercial, el segundo asentamiento más importante de toda la provincia de Cartagena, era un socorrido puerto fluvial que supuso excelentes conexiones para 3516

N. A. M. Rodger, The Wooden World. An Anatomy of the Georgian Navy (New York: W. W. Norton & Company, 1996) 258. 3517 Anónimo, Admiral Vernon’s Ghost. Being a Full True and Particular Account as How a Warlike Apparition Appeared Last Week to the Author (Londres: E. Smith, 1757) 3. 3518 David J. Robinson (ed.), Mil leguas por América. De Lima a Caracas, diario de Don Miguel de Santisteban, 17401741 (Bogotá: Banco de la República, 1992) 87. 3519 David J. Robinson (ed.) 175. 3520 David J. Robinson (ed.) 178.

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ISSN 2358-4912 los circuitos mercantiles, de naturaleza legal o clandestina, estructurados entre las provincias andinas y caribeñas del virreinato,3521 pues desde el siglo XVI, el río Magdalena era la ruta más idónea para la vinculación de los Andes septentrionales con el resto del mundo Atlántico. Sin embargo, para cualquier viajero del antiguo régimen, Mompox no era un asentamiento tan cercano a Cartagena en términos de distancias terrestres. Aun así, con pocos días de diferencia, lo cual evidencia la efectividad y rapidez en las comunicaciones para mediados del siglo, las noticias sobre el ataque de los ingleses a Cartagena no tardaron en conocerse en las riberas del bajo Magdalena, terminando por alterar el curso de su peregrinaje a un ilustre viajante dieciochesco. Sin embargo, el sitio militar a Cartagena por parte de la temeraria escuadra de Vernon no tendría sus únicas resonancias en los aventureros planes de don Miguel de Santisteban. En 1743, después de atravesar por unas aguas mediterráneas especialmente hostiles, aguas del mar Tirreno cuyos oleajes veraniegos “levantaban las olas como pirámides”, el padre Mario Cicala, natural de Sicilia y perteneciente a la Compañía de Jesús, atravesaba el Mare Nostrum a la espera de cruzar el estrecho de Gibraltar con rumbo a América, donde sería acogido para laborar en la provincia jesuítica de Quito. La travesía mediterránea de este futuro misionero —sumamente ágil en escritura— no estuvo exenta de tribulaciones: un encuentro con dos bergantines “moriscos” frente a la costa de Málaga sería el preludio de su cercano porvenir en las aguas que bañaban la costa de la Tierra Firme.3522 También unos judíos holandeses en las proximidades de Curazao y un desvío que concluyó en una estancia de varios días en la isla de Martinica, amén de la sorpresa de encontrar “cerrada” la ruta de acceso a la ciudad de Cartagena por una embarcación inglesa que merodeaba en las proximidades de Punta Canoa, serían solo el exordio de una de las más memorables y curiosas aventuras jesuíticas que se hayan registrado en el Caribe a mediados del siglo XVIII. El padre Cicala fue testigo de unos hechos que constituyeron otro más de los episodios que sustentaron la guerra. Si bien la escuadra de Vernon había optado por retirarse tras la debacle propinada por las fuerzas españolas, dos años después los merodeos de los ingleses no se había extinguido en el Golfo-Caribe, menos en el litoral correspondiente al virreinato. Sebastián de Eslava, un ex virrey del Nuevo Reino de Granada, aseveró que incluso desde antes del asedio inglés de 1741, precisamente en abril de 1740, ya la escuadra del almirante Edward Vernon había acometido un “repentino insulto” al bombardear la ciudad justo a su regreso triunfal de Portobelo,3523 “de donde podría venir más envanecido su aliento con la rendición de aquella plaza y sus castillos”.3524 Por su parte, Jorge Juan y Antonio de Ulloa, dos sagaces observadores pertenecientes a la Real Armada española, señalaron que el ataque de Vernon a Portobelo, “con 2.500 hombres blancos, y 500 negros” también tenía la firme intención de sitiar la ciudad de Panamá, con lo cual “el istmo habría quedado bajo el poder de Inglaterra”; hecho que para los españoles pudo haberse agravado aun más por la incómoda presencia del comodoro Anson en las aguas del Pacífico.3525 Cicala argumentó que, además de aquella embarcación con la que se toparon: “era cosa muy natural que hubiera otra nave de guerra inglesa”,3526 asunto que evidenciaba, en cierta medida, la presencia adversaria en las aguas aledañas a diferentes puertos de la Tierra Firme. En efecto, así lo confirmó en su agradable testimonio: al presenciar el obstáculo supuesto por una nave enemiga que causó un gran pavor entre pasajeros y tripulantes de la “Saetía Catalana”,

3521

Jorge Conde Calderón, Espacio, sociedad y conflictos en la provincia de Cartagena, 1740-1815 (Barranquilla: Ediciones Universidad del Atlántico, 1999) 29-54. 3522 Mario Cicala S. J., Descripción histórico-topográfica de la provincia de Quito de la Compañía de Jesús (Quito: Biblioteca Ecuatoriana Aurelio Espinosa Polit, 2008) 34. 3523 Anthony McFarlane, Colombia antes de la independencia. Economía, sociedad y política bajo el dominio borbón (Bogotá: Banco de la República/El Áncora Editores, 1997) 170-171. 3524 “Defensa del gobierno del virrey Eslava, hecha por el oidor Eslava”, en Germán Colmenares (ed.), Relaciones e informes de los gobernantes de la Nueva Granada, Tres Tomos, T.I (Bogotá: Banco Popular, 1989) 42. 3525 Jorge Juan y Antonio de Ulloa, Noticias Secretas de América, Dos Partes, P. I (Londres: Imprenta de R. Taylor, 1826) VII, 136-137. 3526 Mario Cicala S. J. 48.

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ISSN 2358-4912 embarcación que transportó al jesuita hasta el Nuevo Mundo, sus tripulantes tuvieron que soportar los ataques del enemigo: …quienes comenzaron a cañonear, aunque no alcanzaban las balas a la “Saetía”, y deseando huir del barlovento que por momentos se apoderaba de la nave, gritaron a los marineros que cesaran en su empeño descabellado, tontísimo, pues eran necesarias aquellas velas casi quitadas de la antena del trinquete. Pero no fueron oídos. Entonces dijeron: sálvese quien pueda, no hay ya que hacer, estamos perdidos, y así sucedió exactamente, pues cesó el viento terral poco a poco y la “Saetía” no podía avanzar ni pasar adelante […] La “Saetía” también hacía fuego con los dos cañones llamados guarda popa, pero sin molestar a la nave, que enderezaba todas las balas contra los mástiles y las velas, desgarradas ya y agujereadas por todas partes por las balas inglesas, una de las cuales, de veinticuatro libras golpeó el flanco de la “Saetía” casi a flor del agua, y entrando diagonalmente por el costado mató a tres jesuitas: […] al primero le abrió el pecho y corazón; al segundo le quitó la parte superior del cráneo con un trocito de cerebro, dejándole pegada a la misma cabeza (lo que todos admiramos como milagro) una imagen de María Santísima de la Luz que tenía en la mano derecha levantada, mientras le hacía fervorosísimos coloquios […] al tercero le abrió completamente el vientre, sacándole afuera los intestinos: la misma bala cortó a un joven vizcaíno la rodilla, dejándole la pierna colgada por un solo nervio y murió luego. Una astilla arrancada y llevada por la misma bala traspasó las sienes de un niño de once años, corso, que murió inmediatamente: otra cayó con violencia sobre la mano izquierda de un novicio catalán y con el golpe se le hinchó la mano de tal manera que no tenía figura de 3527 mano, aunque después de algunos días se le fue quitando dicha hinchazón.

Aunque las hostilidades y sus consecuencias no terminaron allí, Cicala y sus compañeros lograron huir de la embestida, “que sin descanso cañoneaba por docenas”,3528 y lograron encontrar refugio en la ciudad de Cartagena. Los merodeos marítimos de los ingleses en las proximidades de la ciudad habían desembocado en una suerte de bloqueo comercial que implicaba un desabastecimiento de productos para el consumo de sus habitantes: “únicamente venían harinas, legumbres y otros granos, de Santa Fe”,3529 confirmaba el jesuita. Sin duda, se trataba de una retaliación muy apropiada para una guerra de esta naturaleza, donde los itinerarios del comercio y el contrabando se ubicaron en lugares protagónicos. Ahora bien, si las dimensiones de la guerra en un lugar como la provincia de Cartagena prevalecían durante los años posteriores al estruendoso episodio militar supuesto por el asedio del almirante Vernon, era apenas natural que las resonancias de este conflicto y las hazañas españolas engendradas en abril de 1741 ya se hallaran instaladas en la memoria de los cartageneros. De hecho, la “Victoria ganada milagrosamente por 700 soldados españoles en Cartagena de América sobre 14.000 soldados ingleses en el castillo de San Lázaro”, fue el rótulo elegido por Cicala para ilustrar con todo orgullo “la prodigiosa victoria” alcanzada por los españoles, luego del estridente fracaso al que habían sido sometidos en Portobelo poco tiempo atrás. “Muchísimos caballeros españoles, mercaderes y oficiales militares” atestiguaron la gesta comandada por Blas de Lezo y Olavarrieta, hecho que no tardó en convertirse en una sonada noticia que circuló por algunas ciudades europeas, siendo Londres y Madrid los receptáculos que, curiosamente, advirtieron el hipotético triunfo inglés a pesar de no haberse finalizado la contienda.3530 El jesuita aseguró que gracias a cierta Gaceta Holandesa —que pudo leer en Génova— la ofensiva de los ingleses, especialmente contra la fortificación de San Felipe de Barajas, había consolidado la confianza para la emisión de la vigorosa noticia en varios lugares del mundo atlántico: “Y mientras en Europa celebraban los ingleses la victoria de Cartagena, allá en América los españoles celebraban la victoria obtenida contra los ingleses, destruidos y aniquilados prodigiosamente por el cielo”. Haber sometido aquel baluarte caribeño, articulador 3527

Mario Cicala S. J. 51. Mario Cicala S. J. 55. 3529 Mario Cicala S. J. 64. 3530 Edgardo Pérez Morales 68-75. 3528

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ISSN 2358-4912 de circuitos mercantiles continentales e imprescindible para el imperio español desde el siglo XVI, no era una noticia de pequeño calado: “Cartagena era la llave de América Meridional, perdido este puesto perdían los españoles la mitad de América”, según una apreciación bastante difundida en el período colonial y confirmada durante su exilio italiano por el padre Cicala.3531 Según las versiones y el momento desde el cual se aprecie, la victoria o la derrota que tuvo lugar durante el sitio de Cartagena suele atribuirse a los errores en los estratagemas de ataque o a los aciertos defensivos, de acuerdo al bando estudiado, aunque, para el jesuita Mario Cicala, el éxito español estuvo condicionado por las afortunadas cualidades milagrosas que revistieron el fragor de la batalla. Un saldo de aproximadamente 10.000 ingleses muertos no se debía únicamente, según Cicala, a la pericia de las tropas españolas acantonadas en el cerro de San Lázaro y refugiadas en la fortificación. La intervención de factores externos, prácticamente sobrenaturales o atribuibles simplemente al “auxilio divino”, ayudaron a orquestar el fracaso de los ingleses. A decir del padre Cicala, los enemigos sobrevivientes, varios de ellos heridos, coincidieron en explicar el inquietante fenómeno: …en lo más ardiente del asalto, ya a punto de cantar victoria, de repente se les introdujo por todo el cuerpo un inexplicable terror, mezclado con un miedo pánico, que jamás hombre alguno había experimentado, y no solo que les horrorizaba sino que además les volvió inútiles y aturdidos de tal manera que ni siquiera tenían fuerzas para cargar el fusil y dispararlo; pero lo que más estrago les causó fue no conocerse entre sí los soldados, sino que cada uno creía y así se imaginaba que los soldados que combatían a su alrededor eran españoles entremezclados con los ingleses, y abalanzándose contra estos se sentían más envalentonados y así se mataban entre sí mismos. Además en el Castillo se vieron rechazados por una mano fuertísima, incomparablemente superior a su resistencia y fuerza, al mismo tiempo que veían un gran fuego en el campo, donde, alucinados, todos se mataban entre sí, creían haber entrado los españoles hasta el centro, pues en todo el campo resonaba un gran estruendo de tambores de guerra, de cañones y de armas blancas, y por el aire venían lluvias de balas, a manera de rayos […] Por todo esto quedaron en gran confusión sin poder adivinar la causa de aquella victoria tan maravillosa ni saber a quién atribuirla.3532

La debacle inglesa en Cartagena y el aseguramiento del triunfo español en la batalla se habían convertido en motivos de suficiente peso para celebrar eucaristías y un pomposo Te Deum en la ciudad. Triunfar contra el más fuerte de los enemigos europeos gracias a una apropiada reacción militar y a la sazón de la inesperada ayuda divina que privilegió a los católicos en malogro de los protestantes, era todo un motivo para el festejo religioso, más al ser contemplado apologéticamente por un jesuita, “soldado de Dios”, no precisamente estrecho en certámenes de divino calibre. El padre Cicala no vaciló en asegurar que aquel “milagro tan famoso” también se atribuyó a San Juan Francisco Regis, el renombrado jesuita francés que solo cuatro años atrás había sido canonizado y que, gracias a su efectiva intervención a favor de los españoles, terminó por ser declarado santo patrono de la ciudad mediante una Real Cédula emitida en San Ildefonso el 27 de agosto de 1742: “a cuya intercesión encomendó con celoso afecto su defensa en la ocasión que últimamente la atacó la armada inglesa”.3533 La guerra y sus ecos: una periferia de américa del sur Las batallas y conflictos desatados durante la Guerra de la Oreja de Jenkins en el mundo Atlántico no fueron, efectivamente, los únicos paradigmas que demuestran las consecuencias asociadas a las conflagraciones de dos o más potencias contendientes en el antiguo régimen y sus repercusiones en el hemisferio occidental. Las distintas confrontaciones armadas que tuvieron lugar por tierra y mar a lo largo del siglo XVIII también engendraron repercusiones que, en estricto sentido, no estaban directamente relacionadas según los espacios donde 3531

Mario Cicala S. J. 65-66. Mario Cicala S. J. 68-69. 3533 Archivo General de la Nación (Colombia) (en adelante AGN), Milicias y marina, T. 91, f. 247v 3532

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ISSN 2358-4912 pudieron llevarse a cabo. Uno de los casos más valiosos lo ofrece, por ejemplo, la Guerra de los Siete Años. Aquellos estallidos enmarcados entre 1756 y 1763 no solo fueron evidentes en América: África, Asia y Europa fungieron también como escenarios determinantes de aquel episodio planetario que suele conocerse historiográficamente como la primera guerra global en la historia europea.3534 Curiosamente, el análisis de este tipo de beligerancias en sus escalas menos nítidas, es decir, el indagar por sus secuelas en las regiones periféricas y fronterizas donde moraron los actores implicados puede arrojar luces interesantes para la comprensión de los atributos mundiales que, en términos de capacidad bélica y comunicaciones, detentaban los imperios europeos. Por ejemplo, con respecto a la Guerra de los Siete Años, es posible detectar consecuencias más o menos curiosas en una región sumamente periférica de la América española: la cuenca amazónica noroccidental. En efecto, asustado por la alianza entre ingleses y portugueses, la cual podía repercutir con serias retaliaciones en un dominio fronterizo del imperio español como lo era la provincia de Maynas, un misionero de la Compañía de Jesús llamado Manuel Uriarte no titubeó en afirmar sus angustias por las posibles invasiones legitimadas debido a las enemistades de los imperios europeos en tiempos de guerra, invasiones que podían realizarse en las jurisdicciones hispánicas sin importar que la cuenca amazónica distara considerablemente de emporios como Halifax, La Habana o Manila,3535 plazas seminales para el desarrollo del conflicto en su escala planetaria. No obstante, si la Guerra de los Siete Años pudo acarrear y engendrar vestigios más o menos trascendentales en la cuenca amazónica, la Guerra de la Oreja de Jenkins también tendría su propio repertorio de consecuencias y hechos asociados a esta selvática región. Hacia la década de 1740 la cuenca amazónica no era precisamente una región que se destacara por ser un sine qua non para los intereses administrativos del imperio español. De hecho, la presencia más contundente y emparentada con los itinerarios monárquicos para la defensa regional estaba constituida por la Compañía de Jesús, la cual también sufriría el rigor absolutista de Carlos III en 1767. Las diferentes gobernaciones que conformaban la Amazonia hispánica, sumadas a las jurisdicciones que el imperio portugués detentaba en las capitanías de Maranhão y Grão Pará estructuraban un espacio de proporciones desmesuradas donde las perspectivas de enriquecimiento que podían alcanzarse con la explotación de la minería aurífera no eran latentes en comparación a otras regiones del continente. Sin embargo, y a pesar de las lejanas distancias que separaban la inmensidad de la cuenca amazónica con respecto a los Andes, al Caribe o al océano Atlántico, los estrépitos acarreados por la guerra entre sus años de duración no fueron indiferentes en algunos espacios de aquella frontera suramericana. Desde finales del siglo XVII, presidentes, gobernadores y demás burócratas que oficiaban en la Real Audiencia de Quito tenían claro que la monarquía portuguesa poseía una fuerte inclinación en términos de alianzas comerciales con la corona de Inglaterra, lo cual suponía cierta alarma con respecto a las arremetidas lusitanas que se cernían sobre la amazonia hispánica, en tanto se creía que los ingleses podían estar secundando las aspiraciones portuguesas en los territorios españoles. A mediados de 1741, el comisario del comercio del Perú, Manuel Labiano, advertía sobre la imperiosa necesidad de salvaguardar el puerto de Guayaquil y mantener “la defensa del mar del sur y sus costas”,3536 pues en la jurisdicción de la Real Audiencia de Quito no tardaron en cundir los rumores sobre la guerra y era preciso acudir a las ayudas militares enviadas desde El Callao, Panamá e incluso Cartagena, para enfrentar los posibles ataques de las flotas inglesas comandadas por George Anson, aunque las acciones de los ingleses en el Pacífico quiteño no tuvieron la misma relevancia que en el Caribe y la Tierra Firme. No obstante, en 1746, cinco años después de que las más emblemáticas escaramuzas de la guerra tuvieran lugar en el Atlántico y el Pacífico, un episodio de rebelión ocurrido en el virreinato del Perú, que bien podría interpretarse como ajeno a los enfrentamientos anglo hispánicos, suscitaría preocupaciones asociadas con los avatares de la guerra que seguían 3534

Eliga H. Gould, Among the Powers of the Earth. The American Revolution and the Making of a New World Empire (Cambridge: Harvard University Press, 2012) 15-16. 3535 Manuel Uriarte S.J., Diario de un misionero de Maynas, 1775, Dos Tomos, T. I (Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/Instituto Santo Toribio de Mogrovejo, 1952) 282. 3536 Archivo Nacional del Ecuador (en adelante ANE), Especial, T. 13, Doc. 35, f. 1r.

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ISSN 2358-4912 floreciendo, especialmente en el Caribe. El levantamiento de Juan Santos Atahualpa en 1742, cuya irradiación sería notablemente efectiva, no solo en los Andes centrales sino también en el piedemonte andino-amazónico, fue un justo motivo para que las autoridades españolas definieran las prioridades defensivas tanto hacia el interior como hacia el exterior del virreinato. Se decía que Santos Atahualpa, conocido en la ciudad de Quito como el “fingido inca”, estaba reclutando gente para atizar la rebelión.3537 Estos intimidantes rumores no tardaron en llegar a la cuenca amazónica, posiblemente por la ruta del río Ucayali, desde donde se esparcieron hasta el Alto Amazonas, llegando a propagarse en la desprotegida provincia de Maynas. Francisco Matías de Rioja, justicia mayor de aquella provincia, fue alertado “de que el indio levantado en el Cerro de la Sal, pueda acercarse a esta provincia de los Maynas y el Marañón por alguno de los ríos que salen de la provincia de Tarma y vienen a juntarse con el río Marañón”.3538 Aquella noticia conocida en 1746, no tendría implicaciones menores si se considera que los ingleses no cesaban de merodear los contornos costeros del continente americano. De hecho, el naturalista Charles Marie de La Condamine, consignó en su diario que en agosto de 1744 la embarcación en la cual se transportaba fue acechada por un corsario inglés, quien “disparó toda su andanada con bala, para obligarnos a botar al mar nuestra chalupa” cuando, una vez concluido su periplo amazónico, partió rumbo a Ámsterdam desde Paramaribo.3539 En la red misional establecida por la Compañía de Jesús en el Alto Amazonas se temió por las incursiones portuguesas prácticamente a lo largo de todo el siglo XVIII. Sin embargo, el posible arribo de Juan Santos Atahualpa también suponía un motivo de peso para defender el complejo misional. No obstante, la carencia de efectivos militares en la Real Audiencia de Quito era más que un detalle adverso en tiempos de guerra; aunque también contemplar dineros de la exigua Real Hacienda quiteña para pagar reclutas armados que estuvieran dispuestos a repeler la “invasión” del rebelde no era una idea viable debido a que, como lo explicaba Francisco Matías de Rioja: “con los continuos socorros que se hacen de orden del señor Virrey a la ciudad de Cartagena […] con el fin de oponerse a la violencia y fuerza de los enemigos ingleses, cuya pertinaz guerra no ha cesado todavía”.3540 Así, era necesario mantener beligerantes las fuerzas militares que impidieran cualquier otra agresión británica y, aunque hasta en la ciudad de Belém, baluarte de la capitanía lusa de Grão Pará, se supo de los cometidos de Juan Santos Atahualpa,3541 los destellos de su rebelión en la cuenca amazónica no fueron más que simples amagues que pusieron al descubierto la inoperancia española en una frontera suramericana durante una guerra internacional en particular. [in]conclusión ¿Podría hablarse —como lo ha sugiere metodológicamente el historiador Eliga H. Gould— de unas historias entrelazadas que tengan como eje argumentativo a la Guerra de la Oreja de Jenkins? Esta guerra, al igual que otros conflictos desencadenados por las potencias europeas en los espacios ultramarinos, ofrece una interesante multiplicidad de posibilidades analíticas. Sin duda, es necesario llevar a cabo este ejercicio de investigación bajo unos cánones historiográficos mucho más amplios, que vinculen las informaciones arrojadas por los archivos españoles, franceses, ingleses, holandeses y portugueses, amén de los archivos americanos, a fin de contrastar y establecer una crítica de fuentes mucho más rigurosa que demuestre facetas desconocidas sobre este conflicto internacional y que vaya más allá de las simples historias apologéticas con las cuales las historiografías tradicionales han buscado enaltecer el pasado a la luz de una confrontación entre dos imperios especializados en rivalizar mutuamente a partir del siglo XVI. Desde Yucatán hasta la isla de Santa Catarina o desde California hasta Valparaíso, los enfrentamientos anglo hispánicos llevados a cabo entre los inicios de la guerra en 1739, hasta la 3537

Alberto Flores Galindo, Buscando un Inca. Identidad y utopía en los Andes (Lima: Sur. Casa de Estudios del Socialismo, 2008) 95-96. 3538 ANE, Indígenas, T. 58, Doc. 18, f. 5r. 3539 Charles Marie de La Condamine, La América meridional (Bogotá: Biblioteca V Centenario/Colcultura, 1992) 133. 3540 ANE, Indígenas, T. 58, Doc. 18, f. 5r. 3541 Primeira Comissão Demarcadora de Limites (Belém do Pará) (en adelante PCDL), t. II, ff. 3r.-4r

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ISSN 2358-4912 finalización oficial de la misma con el Tratado de Aquisgrán en 1748, tuvieron diferentes ritmos e intensidades, distintas perspectivas y consecuencias, las cuales sería imprescindible investigar con mayor nivel de detalle a fin de descentralizar los relatos históricos sobre esta trascendental guerra empleando una visión mundial y hemisférica que no desconozca los detalles ni las precisiones regionales y locales con las cuales se construye la historia.

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ISSN 2358-4912

PODER, AMOR E ESCRAVIDÃO: A ESCRITA DAS RELAÇÕES SOCIAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA Sílvia Rachi3542 A diversidade de testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que constrói, tudo o que toca, pode e deve fornecer informações sobre ele.

Marc Bloch Escrever é testemunhar a vida numa folha de papel. É confrontar-se com a existência em forma de lembranças e projeções, de esquecimentos e expectativas. Trata-se do encontro com pensamentos, expressos em rememorações, necessidades e representações. Ato de manifestação pessoal, redigir um texto pode, todavia, ocorrer de maneira mediada. Assim o foi, em especial, nas sociedades do Antigo Regime, onde o acesso ao aprendizado das primeiras letras era contemplado por poucos. Como nos esclarece a historiografia, na Época Moderna o poder de grafar autonomamente concentrava-se nas mãos masculinas, brancas e abastadas. Nesse sentido, para alguns segmentos sociais, dentre eles, o das mulheres, a ação de escrever realizava-se, grosso modo, de forma solidária. Ainda que houvesse aquelas capazes de redigir, compuseram manifesta minoria, fator que não anulou, contudo, a utilização da escrita por esses sujeitos, em particular, para o relato das relações afetivas e sociais. Este texto é um recorte da pesquisa de doutorado por meio da qual investigamos os usos sociais da escrita feitos por mulheres, em Minas Gerais, no período de 1780 a 18223543. Nosso movimento investigativo pretendeu extrapolar o estudo sobre os agentes letrados, partindo da convicção de que as relações com a escrita ultrapassam em muito a capacidade de redigir de “próprio punho”. Defendemos a ideia de ser o autor de um texto escrito aquele que conhece, compreende e avalia a realidade, ou seja, quem fornece os conteúdos redacionais numa situação de comunicação. Embasados na literatura voltada a destacar o papel da oralidade na autoria dos escritos, tornou-se possível perceber como diferentes mulheres, majoritariamente iletradas3544, foram capazes de elaborar e redigir textos, ainda que por mãos alheias, e, dessa forma, utilizarem-se da escrita. Enunciando o conteúdo a ser registrado, puderam discorrer sobre matérias do cotidiano, a exemplo das relações estabelecidas com cativos e ex-cativos, familiares, entes e conhecidos. 3542

Departamento de História - PUC Minas VARTULI, Sílvia Maria Amâncio Rachi. Por mãos alheias: usos sociais da escrita na Minas Gerais Colonial. 2014. 295 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. O corpus documental selecionado para a investigação apresenta como principais fontes os testamentos post mortem das duas últimas décadas do século XVIII até 1822, pertencentes ao acervo do Arquivo do Museu do Ouro/Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), em Sabará, Minas Gerais, referentes ao antigo território da Comarca do Rio das Velhas. Foram lidos e analisados 557 testamentos de mulheres, ou seja, todos os documentos femininos registrados nesse intervalo de tempo. Este número corresponde à consulta a um total de 43 livros de registros. As referências à documentação do acervo desta instituição serão feitas no texto iniciando-se pela sigla MO/CBG/CPO/LT (Museu do Ouro/Casa Borba Gato/Cartório do 1º Ofício/Livro de Testamento), seguida dos números específicos dos livros – cotas atuais e cotas antigas (número entre parênteses) – e das folhas consultadas. 3544 O significado do termo iletrado, neste trabalho, não é o de expressão contrária à acepção de letrado no século XVIII. Aqui, nomeamos iletrado a quem não escrevia/grafava nenhuma palavra ou àquele que registrava apenas o próprio nome e/ou sinais equivalentes. Isso não representa sua equiparação a analfabetos ou a não detentores de algum grau de letramento, no sentido conferido ao último conceito na atualidade. Pelo contrário, acreditamos que por viverem em uma sociedade perpassada pela escrita, homens e mulheres, provavelmente, estabeleceram relações com a mesma, fator propiciador do desenvolvimento de níveis de letramento. Há de se considerar, ainda, o fato de o aprendizado da leitura e da escrita acontecer em momentos dissociados (aprendia-se a ler antes de escrever). Por consequência, muitos desprovidos da técnica de escrever poderiam ser leitores. 3543

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ISSN 2358-4912 Ao redigirem por outras mãos, deliberaram acerca de negócios, expuseram memórias e confidenciaram amores. Imperfeita liberdade: a redação das alforrias em testamento Livres seriam, de acordo com as determinações de Joana Matildes Rosa, todos os escravos que, após seu falecimento, apresentassem carta de liberdade assinada por ela e pelo marido. Essa testadora, natural da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, Comarca de Vila Rica, elaborou o testamento em 22 de dezembro de 1780. Na ocasião, ditou: “[…] declaro que os escravos que por meu falecimento apresentarem carta de liberdade assinada por mim e pelo dito meu marido, José Dias Torres, sejam inteiramente libertos” (MO/CBG/CPO/LT 49(68), fls. 226230v). Não era inusitado haver nos testamentos menção às cartas de alforria ou às cartas de corte.3545 Eram ambas documentos de valor legal. Do mesmo modo, não era invulgar que as liberdades fossem concedidas em testamento, dispensando-se documento específico. Logo, havia o constante relato das relações estabelecidas entre senhores, escravos e aqueles que já se encontravam alforriados. Essas disposições e narrativas fizeram parte da gerência dos bens, e, em última instância, da construção de uma memória concernente aos efetivos ou conjecturados vínculos desenvolvidos entre as pessoas. Tal memória foi construída e redigida com base nas ocorrências diárias, além de estar pautada em intenções diversificadas e rememorações fragmentárias, adaptadas a certa forma e fórmula de se escrever. A nosso ver, as testadoras quiseram não apenas alforriar os cativos diante da iminência da morte ou ainda legá-los. Na narrativa dos textos, fizeram mais. Buscaram registrar trajetórias, resguardar direitos, construir representações sobre os lugares sociais por elas ocupados e valorizar as conquistas materiais. Ao “escreverem”, alforriaram, condicionaram liberdades e declararam sentimentos, fazendo perenizarem-se certos posicionamentos, fossem eles reais ou meras construções narrativas. Cabe destacar que, ao definirem como se processariam as manumissões, os senhores teriam, pelo menos durante o prazo estabelecido para a efetivação da liberdade, aquele escravo debaixo de olhar vigilante. Assim sendo, frisemos que, muito embora os textos testamentais (e as próprias cartas de alforria) buscassem ressaltar as alegadas relações de afeto e cumplicidade entre senhores e cativos, as coartações transformavam-se em instrumentos de controle exercido pelo proprietário. As condições impostas afiguravam-se, na verdade, como obstáculos para a concretização das alforrias e, por serem recorrentemente descritas em testamento, descortinavam as negociações estabelecidas entre os envolvidos. As redações desses documentos revelam, portanto, enlaces peculiares e sugestivos de poder e persuasão, os quais devem ser compreendidos como marcas sociais. Na Capitania de Minas Gerais, a incidência das práticas de manumissão foi atestada por diferentes historiadores. Mesmo sob a onipresença do aparelho administrativo metropolitano 3545

Sobre a temática de manumissões, dentre outros, cf:: Kátia Queirós Mattoso, que estudou a sociedade escravista baiana no século XIX em seu livro Da revolução dos alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX (2004); Hebe de Castro (1995), em Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste Escravista-Brasil Século XIX, que analisou o Sudeste Escravista no século XIX; Mary Karash (2000), em A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1800-1850, e Sidney Chalhoub, em Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (1990), apresentam como recorte espacial o Rio de Janeiro do século XIX; Laura de Mello e Souza, que aborda a temática para Minas Gerais, no século XVIII, na obra Norma e Conflito: aspectos da História de Minas no século XVIII (1999), e João José Reis, que, em Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista (1989) enfoca as negociações e os conflitos que perpassavam as relações entre escravos e senhores, bem como os estudos presentes na coletânea organizada por esse autor: Escravidão e invenção da liberdade; estudos sobre o negro no Brasil (1998). Para Minas Gerais, particularmente para a Comarca do Rio das Velhas no século XVIII, ver: Kathleen J. Higgins, “Licentious liberty” in a Brazilian gold-mining region (1999) e Eduardo França Paiva, em Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII (1995). Sobre a incidência das práticas de manumissão em Minas Gerais e a postura das autoridades, reporte-se a Andréa Lisly Gonçalves, As margens da liberdade: estudos sobre as práticas de alforrias em Minas colonial e provincial (2011).

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ISSN 2358-4912 no território mineiro – condição que se processou por fatores de ordem diversa3546–, da preocupação das autoridades renóis em manter essa sociedade sob controle, em sua visão, a população caracterizava-se por ser eminentemente mestiça, “instável” e, por isso, perigosa. A realidade traduzia, assim, as especificidades da Capitania, onde uma “sociedade mais fluida, volúvel e complexa” se constituía, exigindo, desse modo, especial atenção da Coroa portuguesa. (BOSCHI, 2002, p. 96-97). Ressaltemos, contudo, ser consensual na historiografia o entendimento de que, apesar de todas as medidas empregadas pelas instituições de poder coloniais no sentido de coibir as alforrias nas Minas, sua incidência foi considerável na Capitania, pelo menos nos espaços mais urbanizados, demarcando a pouca eficácia das medidas do governo colonial (GONÇALVES, 2011, p. 111). Importa esclarecer que devido à dinamicidade econômica, social e cultural, típica do cenário urbano, o número de manumissões se mostrou maior, denotando estratégias e negociações existentes entre proprietários e cativos, as quais eram esboçadas de distintas maneiras. Andréa Lisly Gonçalves, ao analisar as alforrias em Minas Gerais, interpreta: “[...] a própria ausência de normas estritas que regulassem os assuntos relacionados às manumissões levava a que os papéis de liberdade contivessem uma variada gama de informações [...]” (GONÇALVES, 2011, p. 20). Variação visível, em igual medida, nos testamentos. Destarte, entender as escrituras, entrelaçadas ao social, faculta-nos a possibilidade de evidenciar a atuação dos agentes, em particular, aqui, dos sujeitos autores, e, em paralelo, de compreender os modos, a importância e a função de se “escrever” determinados textos. Ora, se interesses diferenciados delineavam como as manumissões se dariam, talvez não fosse incorreto inferir que também as escritas sobre essas práticas, embora formatadas pelos padrões da estrutura documental, apresentassem desenhos múltiplos, materializados em variações e individualizações discursivas. Sobre a libertação da escrita das cartas de alforria das molduras textuais, Gonçalves assevera que por seguir determinado modelo, a redação desses documentos assumia uma padronização, não impedindo, contudo, “[...] que de suas linhas se insinuassem situações particulares, desejos ensejados por situações específicas nas quais se baseavam determinadas relações entre senhores e escravos.” (GONÇALVES, 2011, p. 19). Constatamos esse fato na escrita do testamento de dona Teresa Andrada Soto Maior, elaborado em 19 de outubro de 1793. Viúva e proprietária de “casas de telhas no arraial” e de outros pertences, além de ter dívidas a honrar, “assinou” o documento em cruz e afirmou não saber ler nem escrever. Entretanto, demonstrou desenvoltura ao ditar as disposições e ao utilizar a redação de maneira dinâmica, referindo-se aos bens e aos sentimentos que dizia cultivar por determinada ex-escrava, Faustina, cria em sua casa. Com essa intenção, declarou: Possuo escravos e umas lavras na vizinhança do Arraial de São Gonçalo do Caeté aonde tem minha situação, o qual consta de títulos que tenho: as dou pelo amor de Deus à crioula Faustina, que foi minha escrava, cria e é hoje forra, e aos mais escravos que coartei para que morem na dita situação, trabalhem nas ditas lavras, unidos em boa paz como suas que ficam.

(MO/CBG/CPO/LT 37(55), fl. 167, destaque nosso). A descrição do sentimento pela ex-escrava apresenta elementos da religiosidade, vozes sociais informantes da enunciação, como a afirmativa “pelo amor de Deus,” que denota a devoção religiosa e a virtude da compaixão pela “crioula Faustina”. Além dessa característica, a narrativa demonstra organicidade e lógica. Inicialmente, dona Teresa descreve a situação desta exescrava, justificando a “doação”, pois em ordem de importância do lugar ocupado pelos ex3546

Análise referencial a respeito da temática encontra-se no artigo de Francisco Iglésias: Minas e a Imposição do Estado no Brasil. Revista de História, São Paulo, n. 100, p. 257-273, out.–dez., 1974. Acerca da administração colonial mineira, reporte-se às obras de Laura de Mello e Souza: Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII (1982); Norma e conflito: aspectos da história de Minas Gerais no século XVIII (1999); O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII (2006). Especificamente sobre a relação da administração portuguesa e as práticas de manumissão em Minas Gerais, cf. Andréa Lisly Gonçalves, As margens da liberdade: estudos sobre as práticas de alforrias em Minas colonial e provincial (2011), em especial o capítulo 3.

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ISSN 2358-4912 escravos, relata o fato de Faustina ter sido não apenas escrava, mas cria, estando, naquela altura, forra. Somente depois, como se desejasse diminuir a importância dos outros escravos, dispõe acerca do que também virá a lhes pertencer, isto é, as “lavras na vizinhança do Arraial de São Gonçalo aonde tem minha situação”. Despregando-se da vida e tomando forma no papel – fosse pelo amor de Deus, fosse pelas negociações existentes entre a testadora e a ex-cativa ou entre aquela e os escravos coartados –, os sentimentos, vínculos e “combinados” transformavam-se, pela via da enunciação oral, em textos capazes de alterar as condições de existência dos indivíduos. A rememoração da condição de cria da ex-escrava Faustina acaba por atribuir ao texto tom particular, com base no sentimento e no lugar social (de ex-proprietária) ocupado por dona Teresa no momento da enunciação. Essa lembrança não se deu de maneira “completa”, remontando o passado tal qual ele era. Memórias não são espelhos da realidade, mas reconstruções elaboradas a partir dela. As recordações são sempre fragmentadas, compõem-se de estilhaços do vivido, das seleções e escolhas feitas por quem narra, ou seja, pelos autores. Esses “sujeitos-autores” lançam o olhar para o passado alicerçados em novas bases, em experiências presentes e pessoais. Daí decorre o entendimento de que as lembranças têm caráter subjetivo, apesar de compartilhadas e reconstruídas a partir de elementos pertencentes, inclusive, a uma memória coletiva. Por isso, a despeito de formatadas por certos padrões discursivos, as “composições” textuais carregam aspectos individualizantes e individualizados. Ao desempenhar o papel de autora, também Francisca da Silva, natural da Freguesia de Caeté, deixou alforriada uma escrava, para o que ordenou lhe passassem carta de liberdade. Marcou o testamento em cruz e declarou não saber ler nem escrever. Ao ditá-lo, em 15 de maio de 1780, expôs: […] Declaro que uma escrava que possuo e [que] se chama Rosa, de nação mina, por ter dela recebido o seu justo valor em bons serviços que me tem dado o benefício de todo o monte de meus bens, a deixo forra com sua carta de liberdade, e os meus herdeiros a conservarão em a dita minha fazenda enquanto ela viver e nela quiser estar fazendo suas plantas e só a botarão [para] fora se o seu procedimento for escandaloso […]. (MO/CBG/CPO/LT

37(55), fls. 100-104v). Rosa, por conquistar a alforria pelos bons serviços prestados, além da carta de liberdade, teria o direito de se “conservar” na fazenda da testadora se assim o desejasse. No relato das disposições referentes à escrava, Francisca confere à redação do testamento a tônica de reconhecimento e de gratidão. Ademais, emprega a escrita de maneira prospectiva, projetando a trajetória de Rosa, quando liberta. Consciente da mudança que esse novo estatuto acarretaria, evidencia o conhecimento da realidade, ao avaliar as prováveis dificuldades que a ex-escrava poderia vir a enfrentar. Desse modo, dado o reconhecimento da importância dessa escrita, determina além da alforria, a proteção a Rosa, por meio do acolhimento, da permanência e da possibilidade de continuidade do trabalho na fazenda, no limite, do cultivo de suas plantas. Condiciona, entretanto, essa permanência ao procedimento adequado de Rosa. Informada pelos valores morais da época, que diziam respeito às condutas não escandalosas, Francisca Silva “escreve” de maneira a conferir proteção à liberta, mas utiliza-se, igualmente, da redação do testamento para preservar seus herdeiros de futuros problemas relacionados ao comportamento da ex-escrava. Nessa medida, a escrita revela o julgamento e a avaliação realizados pela testadora, os quais levaram à construção de um texto repleto de marcas particulares de autoria, perceptíveis, sobretudo, em trecho de cunho preventivo. A escrita das relações sociais: amores, segredos e lembranças em fatias de textos Revelação de inconfidências, prendendo e direcionando o olhar do ouvinte/leitor, surge no texto de outra testadora, agora Micaela Coelho, quando narrou aspectos da convivência com seu cativo. Sedução e embriaguez foram os motivos por ela alegados para conferir ao escravo a carta de liberdade. Em testamento, lavrado aos 9 de março de 1814, revelou: “declaro que fui

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ISSN 2358-4912 seduzida e embriagada por meu escravo Júlio, para lhe passar uma carta de liberdade, como, com efeito, passei” (MO/CBG/CPO/LT 72(90), fls. 10v-13v). No texto, não encontramos detalhes sobre o acontecido. De qualquer maneira, é interessante perceber que, nesse caso, a escrita foi utilizada para denunciar o “engano” no qual havia incorrido devido à suposta artimanha do escravo. Nessa versão dos acontecimentos, fez questão de mencionar a legitimidade da carta de alforria, visto que realmente havia sido passada por ela. Em contrapartida, expõe os motivos “ilícitos” empregados pelo escravo para obtê-la, argumentando de maneira a convencer o ouvinte/leitor de ter sido ludibriada. Na sociedade de Antigo Regime, em terras coloniais, sendo mulher viúva, era necessário à testadora reafirmar e comprovar honestidade e retidão. Nesse contexto, as mulheres, ao enviuvarem-se, deveriam viver em recato e com comportamento adequado, o que significava possuir conduta moralmente aceita, pautada nos valores cristãos. Consequentemente, as práticas culturais vividas e exercidas por esses atores na colônia, bem como as ações daí decorrentes devem ser captadas levando-se em consideração o discurso misógino característico daquela sociedade. Isso não significa desconsiderar a atuação das mulheres nas esferas pública e privada e o desenvolvimento estratégias de negociação e de resistência. Voltemos, então, à narrativa de Micaela Coelho. Num olhar mais ligeiro sobre o texto produzido, parece aflorar na redação a “fragilidade” do sexo feminino. Porque embriagada, seduzida e enganada, teria outorgado ao escravo a carta de alforria. No entanto, se analisarmos o conteúdo, espreitando por trás do que foi dito, entenderemos que, se por um lado a testadora se justifica, confidenciando a aparente fraqueza, por outro se posiciona, fazendo o registro da narrativa de maneira a convencer o ouvinte/leitor. Isto é, se não invalida a carta, posto que realmente a havia concedido, coloca em xeque a credibilidade das condições da realização da concessão. Micaela possuía consciência do que queria “escrever” e da forma como deveria construir a narrativa. Os argumentos têm a intenção de isentá-la de responsabilidade sobre uma alforria concedida indevidamente. Por meio de narrativas como a de Micaela, adentramos a esfera do privado e do cotidiano e percebemos detalhes das vivências sociais desenroladas no interior das casas, bem como as estratégias desenvolvidas pelas mulheres para manifestarem-se socialmente, dadas as limitações e a imposição do silêncio em relação aos acontecimentos da vida pessoal. No jogo das interações sociais, a utilização da escrita por essa testadora configurou-se como meio de atuação, de posicionamento e, por que não dizer, acabou por transformar a redação do testamento em mecanismo de contrapoder, independentemente dos acontecimentos terem ocorrido da maneira como os narrou. Trata-se, em última análise, de escrita tradutora das relações de poder engendradas na sociedade da época. De igual maneira, memórias e acontecimentos fizeram parte da narrativa elaborada por Felícia Ferreira. Essa testadora assinou o documento em cruz e enunciou ser natural da Freguesia do Senhor do Bom Jesus da Mata Grande, da “cidade de Pernambuco”. Em testamento assente em 3 de janeiro de 1776, declarou que fora […] rematada na praça da mesma cidade (de onde era natural) por dívida que o senhor que me criou devia cuja [emulação] foi feita, sendo eu de menor idade e logo vim em […] para estas Minas e não me lembro de meu pai, nem tampouco do primeiro senhor, que me criou. Meus pais foram cativos e já são defuntos e em mão e poder de Francisco Pereira de Melo, por eu ser cativa do dito, este me passou meu papel de coartamento (sic) para ser forra pelo preço e quantia de duas libras de ouro, que são duzentas e cinquenta e seis oitavas de ouro, no tempo do valor de mil e quinhentos réis cada oitava […]. (MO/CBG/CPO/LT

35(53), fls. 45-51). Lembranças e esquecimentos permeiam a história contada por Felícia Ferreira. Refazendo os caminhos percorridos, enriquece o texto com detalhes, como a exposição dos motivos e da referência ao lugar onde foi arrematada, da idade que teria na ocasião e do valor da alforria. Não se lembrou do nome do pai e nem o de seu primeiro senhor, porém, precisou o exato valor equivalente em réis da oitava de ouro, no tempo em que havia sido vendida. Memórias centrais de Felícia imprimem à escrita do testamento a função de reconstituir uma trajetória, resgatando,

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ISSN 2358-4912 para tanto, dados relativos às origens e à mudança do local no qual residira. Consciente da importância de se explicitar minúcias do passado, Felícia avalia o significado que algumas informações poderiam ter naquele contexto comunicacional. Compondo o mosaico da própria existência, recorre ao movimento de incrustação de pequenas lembranças, identificado, inclusive, pela repetição da conjunção aditiva e. Reconstrói, assim, a vinda para as Minas, colocando-se como autora de um texto feito com base em fragmentos de experiências e de episódios recuperados. Felícia, ao prosseguir com o ditado, declarou: […] e como eu, do meu trabalho, satisfiz a dita quantia mencionada, se me passou a minha carta de alforria e me acho forra pela [mercê] de Deus. Declaro que todos os bens que possuo os adquiri depois de forra, pelo meu trabalho, cujos bens se acham sem impedimento algum. Declaro que uma rocinha que possuo, cuja tem um paiol em que se colhe algum milho que na dita se colhe, o qual se acha junto ao Arraial de São Miguel […].

(MO/CBG/CPO/LT 35(53), fls. 45-51). Da vida em cativeiro à conquista da liberdade, a testadora inseriu-se no mercado de trabalho, conseguindo comprar a própria alforria. Vendida na praça de Pernambuco e vinda para Minas Gerais, empenhou-se na compra da manumissão. Em testamento, determinou a alforria de escravos, deixou quantias em dinheiro, além de algum ouro lavrado. Muito embora tivesse adquirido certa posição na sociedade, o de forra e proprietária, desejou evidenciar o fato de haver satisfeito a quantia necessária para a compra da liberdade por meio do próprio trabalho, apesar de declarar achar-se forra pela mercê de Deus. Não obstante tratar-se de discurso estigmatizado pela fé católica, soube narrar com lucidez e esclarecimento a maneira pela qual havia conseguido os bens, os quais se encontravam sem impedimento algum, e como havia obtido a condição de liberta. O caso de Felícia Ferreira mostra-se exemplar do papel fundamental assumido pela escrita na vida das pessoas iletradas e, na maior parte, pertencentes às camadas menos favorecidas (econômica e/ou socialmente). Emerge do documento um texto polifônico, haja vista que, ademais dos objetivos óbvios do testamento, narrando sua trajetória, a testadora utilizou-se da escrita a fim de reafirmar os bens conquistados e de enfatizar a condição de liberta, explicitando os difíceis caminhos para obtê-la. Relembra, assim, pessoas, lugares e percursos trilhados. De forma semelhante, Quitéria Veloso de Carvalho, batizada na Vila de Pitangui, que declarou não saber ler nem escrever, utilizou-se da “redação” do testamento, exarado em 2 de junho de 1794, para descortinar pontos da intimidade e revelar sentimentos. À época, atestou ser casada com João da Rocha Guedes, […] homem pardo a quem não devo o mínimo afeto, porque depois de casado lhe [tomei?] um abominável ódio de que [nasceu?] separar-se de minha companhia para onde não teve de mim notícia sendo causa de vir eu para esta vila onde me acho há muitos anos de cujo matrimônio não tivemos filhos alguns […] declaro que sou indigna irmã [da Irmandade de Nossa Senhora] das Mercês do Morro da Intendência desta vila, onde será meu corpo sepultado, acompanhado de meu reverendo comissário e de mais oito sacerdotes […].

(MO/CBG/CPO/LT 48(67), fls. 44v-47v). Em meio às disposições triviais de um testamento, como a encomendação da alma, encontramos “discursos” aparentando o propósito de expressar a intimidade e explicar pensamentos e ações. Mesmo sem a competência de redigir de próprio punho, a escrita se concretiza na elaboração de conteúdos gestados por experiências íntimas, particulares. Quitéria Veloso desejou “escrever” a respeito de seu “ódio” pelo marido. Esse caso ilustra que os testamentos não se mostram como redações uniformes, presas a dispositivos enquadradores, carregando apenas indícios da materialidade da existência. Longe disso, dão a conhecer assuntos específicos, os quais ganham volume e forma, a partir do reconhecimento e da exposição de vivências e sentimentos.

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ISSN 2358-4912 Por fim... Diríamos que, ao utilizarem-se da escrita, os autores revelaram valores, crenças e hábitos do dia a dia ligados às práticas de trabalho, às atividades religiosas e econômicas e às relações sociais e familiares. Desencobriram sentimentos recônditos, que no “uso” de uma escrita singular, foram verbalizados, narrados de maneira lógica e legitimados como verdadeiros. São dizeres declarativos, os quais extrapolaram o âmbito das funções rotineiras da redação cartorária e se manifestaram como estratégias de resposta ao silêncio imposto aos sujeitos, muitas vezes, pela própria condição social, especialmente no caso das mulheres. Os textos “escritos” - pela via da enunciação oral - por iletrados vão além dos parâmetros redacionais e descortinam as vinculações entre as pessoas, mostrando-se como surpreendentes obras autorais. Apresentam-se, portanto, como artefatos de um tempo, marcados por traços subjetivos e culturais, veiculando representações explícitas ou veladas. Os testamentos consagram-se, assim, como escriturações que desnudam marcas únicas, nascidas e fomentadas, acima de tudo, pelo conhecimento do cotidiano. Ao redigirem por mãos alheias, desvelando a vida em linhas escritas, os atores sociais posicionaram-se diante da realidade, construíram, administraram e deixaram registrado o enredo das relações de poder, de convívio e de afeto. Referências BOSCHI, Caio César. Administração e administradores no Brasil pombalino: os governadores da Capitania de Minas Gerais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 77-109, jul. 2002. BOUZA ALVAREZ. Fernando J. Del escribano a la biblioteca; la civilización escrita europea en la Alta Edad Moderna (siglos XV-XVIII). Madrid: Síntesis, 1992. (História Universal Moderna, v. 5) BURKE, Peter. Os usos da alfabetização no início da Idade Moderna. In: BURKE, Peter; POTER, Roy (Org.). História social da linguagem. Tradução: Alvaro Luiz Hattnher. São Paulo: Ed. UNESP, 1997. p. 14-41. CHARTIER, Roger. Formas e sentido, cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução: Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: ALB: Mercado de Letras, 2003. ________. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução: Álvaro Lorencini. São Paulo: Edit. UNESP, 2004. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1999. GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. VARTULI, Sílvia Maria Amâncio Rachi. Por mãos alheias: usos sociais da escrita na Minas Gerais Colonial. 2014. 295 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

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A FRONTEIRA BRASIL-GUIANA FRANCESA DO TRATADO DE UTRECHT À NEUTRALIZAÇÃO DE 1841: SIGNIFICAÇÃO DE UMA FRONTEIRA COLONIAL NA AMAZÔNIA Stéphane Granger3547 Introdução Uma ponte binacional vai ligar daqui a pouco o Brasil à Guiana francesa por cima das águas do rio Oiapoque. O Brasil então divide uma fronteira com a França, a maior deste país aliás, consequência das rivalidades europeias para a conquista do continente americano a partir do século XVI. Essas permitiram que potências não ibéricas tomassem posse de territórios no escudo das Guianas, na América do Sul frente ao Caribe. Assim, apesar do tratado de Tordesilhas que dividiu de fato a América do Sul entre espanhóis e portugueses, três territórios deste sub-continente falam línguas não ibéricas: inglês (República da Guiana), holandês (Suriname) e francês (Guiana francesa), este último continuando pertecendo à um Estado europeu. O objetivo dessa comunicação é, através do estudo de alguns tratados essenciais e cruzando as fontes historiográficas francesas e brasileiras, de analisar as origens de um conflito territorial que durou dois séculos, um dos mais importantes que o Brasil teve que enfrentar, mas que permitiu, apesar da vitória brasileira, a legitimação de uma presença francesa ainda parecendo esquisita e nem sempre bem aceita na América do Sul. A gênese O caso pouco conhecido da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa foi tratado por historiadores brasileiros das fronteiras coloniais, entre os quais podemos destacar Joaquim Caetano da Silva (1866), José Carlos de Macedo Soares (1929), Artur César Ferreira Reis (1947), Luís Felipe de Castilhos Goycochêa (1963), sem falar dos trabalhos do barão de Rio Branco (1899). A historiografia francesa é bem mais fraca, a Guiana francesa sendo uma colônia que sempre despertou um interesse reduzido: mencionamos por exemplo, no século 20, os trabalhos de Michel Devèze (1968), Jean Hurault (1972), Guy Martinière (1987), além dos francoguianenses Arthur Henry (1950) e Andrée Loncan (1990). Podemos caracterizar a fronteira como uma linha de divisão política separando dois Estados, segundo Foucher (1986): “discontinuidade geopolítica com função de marcagem real, simbólico e imaginária, [marcando] os limites das áreas de extensão da soberania, do controle e da dominação dos aparelhos políticos3548”. A França desenvolveu já na época do rei D. Luís XIV uma teoria de fronteiras “naturais”, rios ou montanhas para separar-se de nações vizinhas, enquanto os portugueses queriam controlar bacias hidrográficas inteiras como a do Amazonas para dominar seu território colonial, o que não podiam fazer na metrópole com a Espanha. Essa concepção também envolvia as colônias americanas, pois o soberano francês considerava sua colônia da Guiana limitada pelos rios Orinoco e Amazonas, isto é a totalidade do escudo das Guianas. No começo dos “descobrimentos” europeus, Espanha e Portugal se consideravam as únicas potências legítimas no mundo americano: devido à rivalidade entre eles nos grandes descobrimentos do século XV, o papa Alexandre VI pelo tratado de Tordesilhas dividiu o futuro Novo Mundo em 1494, sem saber, na altura da foz do Amazonas (mapa). No Oeste desse meridiano, as terras já descobertas ou ainda por descobrir eram dos espanhóis, no Leste dos 3547

Universidade das Antilhas e da Guiana. Doutor em geografia pela universidade de Paris 3-Sorbonne Nouvelle. 3548 « Les frontières d’Etat peuvent être définies comme […] des structures spatiales élémentaires, de forme linéaire, à fonction de discontinuité géopolitique et de marquage, réel et symbolique. Ce qu’elles ont à marquer, ce sont les limites de l’aire d’extension de la souveraineté, du contrôle et de la domination d’appareils politiques dotés en principe d’une certaine autonomie. » FOUCHER, Michel. L’invention des frontières. Paris: FEHDN, 1986, p. 22.

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ISSN 2358-4912 portugueses. Mas os primeiros, mais interessados pelas riquezas do México e do Peru, desprezaram a região das Guianas, a eles atribuídas mas cujo litoral era inóspito demais, enquanto Portugal respeitava no começo os limites de Tordesilhas. As potências marítimas europeias excluidas do tratado: França, Inglaterra e Países Baixos, aproveitaram para também apoderar-se desta porção da América do Sul de fato sem dono. Assim os franceses, depois de tentar estabelecer-se no Maranhão onde fundaram São Luís em 1609, liderados pelo Senhor Daniel de La Touche de La Ravardière, refugiaram-se, após a reconquista portuguesa de 1612, do outro lado do Amazonas, na parte devoluída aos espanhois mas já explorada pelo mesmo Daniel de La Touche no final do século XVI. Assim nasceu a futura Guiana Francesa, na época ainda chamada de França Equinocial. (DEVEZE, 1968, p. 36 e 43). Entre os estabelecimentos oeste-europeus nas Guianas, o dos franceses era o mais próximo do rio Amazonas, e portanto do Brasil ainda português (mapa). Mas o limite entre as duas colônias não era demarcado: o rei da França considerava que sua soberania exercia-se até o rio Amazonas, quando os portugueses, vassalos do rei da Espanha entre 1580 e 1640, tinham recebido deste último em 1637 a capitania do Cabo do Norte até o rio Oiapoque, limite do povoamento francês, na parte antigamente atribuída aos espanhóis. As duas soberanias sobrepunham-se, e inumerosos conflitos violentos ocorreram entre religiosos, caçadores de escravos e soldados franceses e portugueses durante o século XVII (REIS, 1993, p. 56). O tratado de Utrecht (1713) Para demarcar suas fronteiras com as outras colônias, não só francesas como espanholas, os portugueses utilizaram um conceito do direito romano: o uti possidetis, a terra para quem a possui, baseado na ocupação real. Assim, afirmaram frente aos franceses a posse da margem esquerda do rio Amazonas, explorada por eles com a capitania do Cabo Norte, mas esse conceito, como o fato de querer demarcar sua fronteira com a colônia francesa, também levavam a reconhecer um direito dos franceses, como dos ingleses e holandeses aliás, de ocupar essa parte das Guianas, já que os espanhóis tinham desistido de seus direitos devido às derrrotas na Europa (GOYCOCHÊA, 1963, p. 12 e 22).. Mas isso também levava à necessidade de afastar os franceses das bocas do Amazonas, ainda cobiçadas por eles como pelos ingleses. O tratado provisório de neutralização em 1700, num contexto de bom relacionamento entre os soberanos português e francês, impedia uma militarização da região, na espera de um tratado definitivo. (REIS, 1993, p. 115). Este, treze anos depois, só foi possível no contexto do fim da guerra de sucessão da Espanha, envolvendo França, Espanha, Inglaterra e Portugal, e foi assinado em Utrecht, na Holanda, em 1713. Mas o quadro geopolítico tinha mudado: a França de D. Luís XIV, arruinada pela guerras, com outras prioridades e frente à necessidade de conciliar-se Inglaterra e Espanha para conseguir conservar seu neto no trono espanhol, encontrava-se em posição de fraqueza em relação a Portugal, agora aliado à poderosa Inglaterra desde o tratado de Methuen em 1703, que também queria tirar os franceses da margem esquerda do Amazonas (REIS, 1993, p. 120). Assim o artigo VIII do tratado de Utrecht fica claro: “Sua majestade cristianíssima [o rei da França] desistará para sempre [...] de todo ou qualquer direito e pretensão que pode, ou poderá ter, sobre a propriedade das terras chamadas do Cabo Norte, e situadas entre o rio Amazonas e Japoc ou de Vicente Pinzón3549”. Só que o rio “Japoc ou Vicente Pinzón” nunca foi demarcado: para os portugueses, só podia tratar-se do rio Oiapoque, o que os franceses aceitaram no começo, antes de reivindicar rios mais próximos do cobiçado Amazonas: o Cassiporé, o Calçoene e finalmente, influençados pelo cientista La Condamine que tinha percorrido a região, o Araguari (mapa), que se joga no estuário do Amazonas (HURAULT, 1989, p. 51). No entanto, o tratado reconhecia a plena soberania deste aos portugueses junto com o Cabo do Norte Essa imprecisão, voluntária ou não, ía gerar mais dois séculos de conflito entre França e Portugal (e Brasil depois da independência), mas na época soava novamente por parte de 3549

Tratado de paz entre sua Magestade christianissima e sua Magestade portugueza, concluido em Utrecht a 11 de abril de 1713, artigo 8.

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ISSN 2358-4912 Portugal como da Inglaterra como o reconhecimento da presença francesa na região, ainda que limitada. Aliás, como tinha escrito Goycochêa, Espanha tinha abdicada sua soberania nas Guianas, e Inglaterra também aproveitou na região das Guianas; pelo menos a França ficava oficalmente afastada das cobiçadas bocas do Amazonas. De fato, não houve grandes consequências no começo, por ser o território entre esses dois rios cobiçados pouco acessível e pouco explorado pelos europeus. O artigo XII proibia a navegação dos franceses no Amazonas, como qualquer relacionamento econômico entre a colônia francesa e sua vizinha luso-brasileira. O motivo pode ser tanto um medo por parte dos portugueses de um desenvolvimento da ainda fraca colônia francesa além do Amazonas, como da concorrência e da influência exercidas pelos comerciantes, caçador de escravos e religiosos entre os índios da região (RIO BRANCO, 1899, v.1; REIS, 1993, p. 70). Esse afastamento não impediu relações até cordiais: foi, pelo que parece, de presente que o capitão português Palheta, em Caiena para protestar oficialmente contra incursões francesas em 1627, recebeu do governador francês d’Orvilliers e sua esposa os sementes de uma planta prometida a um grande futuro no Brasil: o café. Mas a Guiana foi economicamente isolada e sufocada, e não pôde desenvolver-se na única zona geográfica com a qual podia ter relações comerciais além da remota metrópole (LONCAN, 1990, p. 93). O tratado de Utrecht, como o de Madri em 1750 com as colônias espanholas, substituia então o de Tordesilhas, alargando a porção da América do Sul a favor dos portugueses como permitindo de fato a presença de colônias europeias não ibéricas. Mas outra consequência foi, além do reconhecimento oficial, um isolamento das Guianas tanto francesa como inglesa e holandesa dentro do mundo sul-americano, ainda visível hoje. Limites indecisos e neutralização (1797-1841) Pela falta de presença efetiva entre Oiapoque e Amazonas, as reclamações francesas tiveram pouco eco ao longo do século XVIII. Mas tudo mudou com a revolução francesa. Em 1794 a Convenção francesa (assembleia legislativa) aboliu a escravidão, e os fazendeiros lusobrasileiros temeram as repercussões no Brasil, como a revolução dos alfaiates em Salvador. Os portugueses começaram a planejar uma invasão preventiva, mas a supremacia militar francesa e a fraqueza de Portugal na Europa fizeram que, pelo contrário, os franceses conseguiram, pelo tratado de Paris em 1797, alargar o território guianense até o rio Calçoene, a meio caminho entre os rios Oiapoque e Araguari, portanto em território considerado brasileiro pelos portugueses (mapa). E, no tratado de Badajoz o 6 de junho de 1801 confirmado pelo de Amiens assinado o 27 de março de 1802, a França conseguiu forçar Portugal a reconhecer a fronteira no cobiçado rio Araguari, cuja foz encontra-se à beira das bocas do Amazonas. A Guiana francesa assim conheceu sua extensão máxima, e se alargava em direção ao rio Amazonas. Se, para os franceses, tratava-se da oficialização da própria concepção do tratado de Utrecht, o brasileiro Teixeira Soares via uma marca de expansionismo por parte deles: “A França, que ficara encurralada na sua Guiana, nem por isso perdeu a esperança de meter uma cunha na Bacia amazônica3550” escreveu o historiador das fronteiras brasileiras em 1972. Fica claro, de fato, que a extensão até a foz do Amazonas dava um interesse maior a uma colônia encravada, isolada e pouco acessível, que sempre foi a “ovelha negra” das colônias francesas. Mas, quando as tropas napoleônicas do general Junot invadiram Portugal em 1808, a Corte portuguesa atrás do regente D. João refugiou-se na capital da próspera colônia brasileira, Rio de Janeiro. Apoiado pela Inglaterra que desejava dominar o Caribe todo, e percebendo a fraqueza da vizinha colônia francesa, o regente de Portugal, que pouco tempo depois se tornaria o rei D. João VI, teve a ideia de invadir a Guiana francesa, tanto para vingar a invasão da metrópole portuguesa como para fixar definitivamente a fronteira setentrional no rio Oiapoque. Considerava que os tratados de Paris, Badajoz e Amiens tinham sido assinados de maneira forçada. Afastada e mal defendida, a Guiana francesa foi facilmente conquistada pelos portugueses, com a ajuda de uma esquadra britânica, em 1809. Não foi anexada ao Brasil mas 3550

SOARES, Álvaro Teixeira, História da Formação das Fronteiras do Brasil, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército 1972, p. 69.

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ISSN 2358-4912 somente ocupada – aliás administrada com uma eficiência até reconhecida pelos próprios historiadores franceses (MARTINIERE, 1987, p. 28-29; SOUBLIN, 2003, p. 140) – na espera de uma possível restituição que não fazia unanimidade entre os ocupantes. A queda de Napoleão I° em 1815 permitiu a restituição da Guiana à França pelo tratado de Paris em 1817. Se a maoria dos historiadores franceses como brasileiros mostra uma ausença de desejo expansionista por parte dos luso-brasileiros, enquanto o rei de Portugal D. João VI já tinha pensado à hipótese de anexar a Guiana francesa (GRANGER, 2013, p. 69-70), a demora da assinatura do tratado explica-se pelas tergiversações dos portugueses e seu desejo de uma fronteira esta vez bem definida. Assim, o tratado, para evitar o “erro” de Utrecht, indicava os dados geográficos da fronteira: o rei de Portugal entregava ao rei da França “a Guiana Francesa até o rio Oiapoque, cuja embocadura está situada entre o 4° e 5° grau de latitude setentrional e 322 graus de longitude...3551”. Novamente os portugueses aceitavam a presença francesa, à condição que seja reconhecido o limite no rio Oiapoque como a soberania portuguesa sobre a totalidade do delta do rio Amazonas. Não estimavam portanto ter direitos além do Oiapoque apesar da ocupação passada. Porém os franceses, recuperando uma Guiana que sem o acesso ao Amazonas tinha pouco interesse, tentaram aproveitar os tumultos que seguiram a independência do Brasil em 1822 e, depois, os movimentos autonomistas ou separatistas (Cabanagem no Pará e revolução farroupilha no Rio Grande do Sul) para novamente reclamar e tentar recuperar o territorio entre Oiapoque e Araguari (LONCAN, 1990, p. 96; GOÉS, 1991, p. 272). Dando prioridade aos conflitos internos e para ganhar tempo num conflito que estava com certeza de vencer, o imperador D. Pedro II aceitou em 1841, depois de uma mediação británica, o princípio da neutralização deste território contestado na espera de negociações futuras. O Brasil independente, aceitando a negociação (propôs até a divisão do Contestado com a França em 1855), também reconhecia de fato uma legitimidade à presença francesa na região das Guianas; só queria, como Portugal, uma fronteira bem marcada, o mais longe possível do estratégico Amazonas que os norte-americanos ao mesmo tempo queriam internacionalizar. Considerações finais Finalmente, graças à atuação do barão do Rio Branco na arbitragem internacional, o laudo suiço de 1900 em Berna atribuiu definitivamente o território contestado ao Brasil, reconhecendo a tese portuguesa do Oiapoque como o “Japoc ou Vicente Pinzón” do tratado de Utrecht, e também usando a noção de uti possidetis que mais uma vez lhe foi favorável3552. A expressão “laudo suiço” mostra que para os brasileiros este tratado era o reconhecimento judiciário da interpretação luso-brasileira do tratado de Utrecht, aliás lógica devido ao apoio decisivo dos ingleses. Essa história mostra que Portugal se acomodou da presença dos oeste-europeus nas suas fronteiras Norte apesar do tratado de Tordesilhas: a região das Guianas tinha sido atribuída aos espanhóis mas estes abandonaram seus direitos. Os portugueses só aproveitaram a união das coroas espanholas e portuguesas de 1580 a 1640 para apoderar-se da Amazônia continental, com a ajuda dos bandeirantes que nas suas expedições sempre contornaram as Guianas, que se encontravam fora da bacia fluvial do Amazonas. Deixaram-nas de fato aos ingleses, holandeses e franceses. Portugal tinha uma vocação mais continental, ligada ao controle do Amazonas e seus afluentes, deixando o litoral, pouco acessível e sem ligações terrestres com o resto da Amazônia, e mais ligado ao Caribe. Assim abandonou de fato a ideia de ter um pé no Caribe, dominado pelos ingleses e franceses, para melhor dominar o mundo sul-americano, o que passava por fronteiras bem reconhecidas e demarcadas. O Brasil perpetuou essa orientação depois de tornarse independente.

3551

Convenção de Paris de 28 de agosto de 1817 para a restituição da Guiana Francesa ao governo de Luís XVIII, artigo 1°. 3552 Sentence du Conseil fédéral suisse dans la question des frontières de la Guyane française et du Brésil du 1er décembre 1900. Berna: imprimerie Staempfli, 1900.

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ISSN 2358-4912 O Brasil agora está se afirmando como a grande potência econômica e diplomática da América do Sul, e quer aproveitar todos as vantagens da sua geografia. Depois de ter muito tempo ignorado a Guiana francesa depois de sua vitória em Berna, redescobriu recentemente essa fronteira esquisita com um país europeu. Na recomposição do mundo imposta pela globalização, depois de problemática essa fronteira tornou-se estratégica, pois colocando-o em contato com uma região da União Europeia. Quando inaugurada, a ponte do rio Oiapoque acabará definitivamente com quatro séculos de rivalidades e hostilidades mútuas. Referências Arquivo departamental da Guiana francesa em Caiena Série D 10 : relações políticas com Portugal e Brasil Série D 40 : relações econômicas com Portugal e Brasil Microfilmes da sub-série C14, « correspondance en provenance de la Guyane française », do acervo dos Archives de l’Outre-mer em Aix en Provence (França). Documentos originais e coletâneas Convenção de Paris de 28 de agosto de 1817 para a restituição da Guiana Francesa ao governo de Luís XVIII. Tratado de paz entre sua Magestade christianissima e sua Magestade portugueza, concluido em Utrecht a 11 de abril de 1713. GOMES, Flávio dos Santos, QUEIROZ, Jonas Marçal de, COELHO, Mauro Cezar. Relatos de fronteiras: fontes para a História da Amazônia, séculos XVIII e XIX. Belém: Editora Universitária/UFPA, 1999. RIO BRANCO, José Maria da Silva Paranhos, barão de. Frontières entre le Brésil et la Guyane française, 1er et 2ème mémoires du Brésil. Paris: Imprimerie nationale e Berna: Imprimerie Staempfli, 1899, 9 volumes + atlas. Sentence du Conseil fédéral suisse dans la question des frontières de la Guyane française et du Brésil du 1er décembre 1900. Berna: Imprimerie Staempfli, 1900. Obras e artigos científicos ABREU, João Capistrano de. Capítulos da história colonial. Rio de Janeiro, 1907. CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas periféricas: Guiana francesa e Pará (17501817). Rio de Janeiro: Graal, 1984. DEVEZE, Michel. Les Guyanes. Paris: Presses universitaires de France, 1968. DROULERS, Martine. Géohistoire du Brésil. Paris: PUF, 2001. FOUCHER, Michel. L’invention des frontières. Paris: FEHDN, 1986. GÓES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas, um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. Brasília: IPRI, 1991. GOYCOCHÊA, Luis Felipe de Castilhos. A diplomacia de Dom João VI em Caiena. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy Ltda, 1963. GRANGER, Stéphane. Conquista da Guiana francesa e expansionismo brasileiro: um olhar cruzado. In: Agenar Sarraf Pacheco e Jerônimo da Silva e Silva (org), Textos e fontes do arquivo público do Pará (v. 1). Belém: SECULT, 2013, p. 58-79. HENRY, Arthur. La Guyane, son histoire 1640-1946. Caiena: Laporte, 1950. HURAULT, Jean. Français et Indiens en Guyane. Caiena: reedição Guyane Presse diffusion 1989, (1ª edição 1972). LONCAN Andrée. Le rideau de l'Amazone, in: Huygues-Belrose Vincent (dir.), La Grande Encyclopédie de la Caraïbe. Paris: Sanoli, 1990, p. 90-105. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria, imaginaçao geográfica e política externa do Brasil (1808-1912). São Paulo: UNESP, 1997. MAM LAM FOUCK, Serge. Histoire générale de la Guyane française. Matoury: Ibis Rouge, 1996.

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ISSN 2358-4912 MARTINIERE, Guy. L'indépendance des Amériques et la Révolution française : l'enjeu géopolitique des Caraïbes aux Guyanes, Cahiers des Amériques latines n° 5, Paris, 1987, p. 5-36. REIS, Artur César Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia brasileira, a fronteira colonial com a Guiana francesa. Belém: Secult, 1993, 250 p. (1ª edição Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1947). SILVA, Joaquim Caetano da. L’Oyapoc et l’Amazone, question brésilienne et française, 1861. 3a edição, Paris : A. Lahure, 1899. SOARES, Álvaro Teixeira. História da formação das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1972. SOARES, José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1929. SOUBLIN, Jean. Cayenne 1809, la conquête de la Guyane par les Portugais du Brésil. Paris: Karthala, 2003.

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EXERCÍCIO E IMPLEMENTAÇÃO DA JUSTIÇA NAS VILAS E POVOAÇÕES NA COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO NEGRO Stephanie Lopes do Vale3553 Introdução Nomeado em 1751, o governador general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado3554, desembarcou na nova sede do governo – Belém do Pará – com uma série de medidas a serem postas em ação. As propostas que traz para a Amazônia Portuguesa são marcadas pela política centralista pombalina e pelo Tratado de Limites de Madri3555. No período que esteve na região na Amazônia Portuguesa fundou novas vilas e promoveu a organização da sede da capitania de São José do Rio Negro, a vila de Barcelos. Inteirou-se da situação dos sertões e projetou planos de ação para o crescimento e desenvolvimento das gentes da colônia norte. A capitania de São José do Rio Negro inaugura-se como parte de um projeto maior de posicionamento lusitano frente às pretensões territoriais castelhanas. Na projeção de um novo espaço administrativo foi lançada a criação de cargos, jurisdições e aparatos para o comum, em conjunto com o novo estatuto político dos indígenas os componentes estavam postos. Como recurso na execução dos projetos os índios abarcaram duas questões que estavam envolvidas com a civilização pretendida: o trabalho para a produção e crescimento do Império português pela agricultura e comércio e o exercício da função política nos cargos da república. O “Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios” foi o plano de ações projetado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado como uma forma de atender as necessidades urgentes à política do reino e às aspirações locais3556. Nos objetivos desse texto o Diretório dos Índios é abordado no que concerne às autoridades coloniais, primariamente, como sendo uma lei régia que deve ser executada prontamente. Todavia, o Diretório dos Índios projeta-se como um dos pontos políticos essenciais no contexto pombalino, sua perspectiva comporta exceptivas de ação. Nesse conjunto cresce uma realidade múltipla de possibilidades e articulações. 3553

Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, sob orientação da Professora Doutora Marcia Eliane Alves Souza e Mello. Bolsista do Programa de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. 3554 Torre do Tombo, Chancelaria de D. José, I – L. 82, fol. 377. Carta Patente de Governador e CapitãoGeneral do Estado do Maranhão a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Carta Patente de 05/06/1751. MENDONÇA, Marcos Carneiro de (orgs.). A Amazônia na era pombalina: correspondência do Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão: 1751-1759. 2ª Ed. 3 vol. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. Pg. 81-84. 3555 Organizadas e publicadas por Marcos Carneiro de Mendonça, as correspondências entre o o governador e seu irmão, o Conde de Oieras na época, Sebastião José de Carvalho e Mello, Ministro de D. José, expõe a existência de medidas e proposições para a região ligadas a política de estado. MENDONÇA, Marcos Carneiro de (orgs.). A Amazônia na era pombalina, 2005. Ao ser nomeado governador do Estado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, foi também nomeado Plenipotenciário das Demarcações de uma das 3 partidas (grupos que reunião militares, exploradores, matemáticos, cartógrafos para demarcar as fronteiras) portuguesa que deveriam encontra-se como as espanholas, que teriam também o mesmo sentido, para irem em loco definir os marcos dos limites, assim deveria se desenrolar as demarcações, entretanto não ocorreu. No caso da Amazônia a partida espanhola não chegou ao ponto de encontro a antiga Aldeia de Mariuá, elevada a vila de Barcelos por Mendonça Furtado. 3556 Doravante identificaremos por “Diretório dos Índios”. FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. “O Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios”. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de Almeida. O Diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997.

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Funcionários à Serviço D’el Rey A fundação da capitania de São José do Rio Negro, em 1755, representou politicamente a aplicação na Amazônia das intenções de centralização e burocratização pombalina. Na região se iniciou um longo processo de criação de vilas e povoações, além de fortalezas, em pontos chaves. A função desse esforço se volta à manutenção do território, por meio da habitação e da produção, também sendo promovidas a defesa e o desenvolvimento da agricultura e comércio3557. Na execução dos projetos coloniais foram criados vários cargos nas colônias. No caso da capitania do Rio Negro, o plano de ação iniciava-se em muitos pontos com a própria criação das vilas e povoações e com o seu aparato burocrático e administrativo3558. A projeção para a capitania propunha a instalação de autoridades reinóis e o envolvimento nas redes locais, especialmente fazendo uso do poder e articulação dos régulos dos sertões e dos chamados Principais3559 (em muitos casos os mesmos). A tentativa empreendida na Amazônia envolve a criação do Diretor dos Índios e o reconhecimento do poder do Principal no corpo da administração portuguesa. A criação das vilas envolveu a transformação de uma organização já tradicional em um poder relacionado ao rei, inclusive na punição aos crimes em conjunto com o Juiz de Fora3560. As vilas e povoações criadas na capitania cumpriam um papel estratégico de ocupação dos sertões amazônico, o meio de ocupá-las foi o uso da população indígena, assim os descimentos de índios e as negociações permanecem como fundamento da realidade local. O processo talvez possa ser melhor observado no plano de cada povoação, ao reunir etnias diversas, militares do reino e mestiços muitos acordos com os principais eram feitos garantindo-lhes privilégios e as vantagens aos seus3561. Prevista a formação de uma municipalidade para aquele lugar ocorriam concomitantemente a constituição da Câmara e demais estruturas, partes de uma civilidade portuguesa, na busca de tornar os nativos (índios recém descidos e aldeados, mestiços) vassalos do rei português. Nesse sentido, a nomeação na burocracia lusitana se torna uma ferramenta de transmissão dos valores de uma sociedade nivelada, ao conviverem e vivenciarem os dons se intentava integra-los nas redes clientelares3562. 3557

PURPURA, Christian. Formas de Existência em Áreas de Fronteira. A política portuguesa do espaço e os espaços de poder no oeste Amazônico (séculos XVII e XVIII). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História. São Paulo-SP, 2006. 3558 Isto porque antes da criação da capitania, a região fora marcada pela regulação do Regimento das Missões, pelo qual apenas aldeamentos missionários eram permitidos, estando proibido aos colonos brancos se estabelecerem na região. 3559 O Principal é uma liderança constituída ao longo do processo de contato europeu com os indígenas nos contatos para os descimentos, em geral sendo os índios que efetuavam a concordância do descimento, quanto a lugar, número de pessoas, condições, não sendo obrigatoriamente o líder local. A manutenção dessa condição na aldeia ou vila dependia das relações constituídas com os índios de sua nação e com os europeus, assim também o pricipalato era exercido com relação à nação que ele se originou. 3560 DOMINGES, Ângela. Régulos e absolutos: episódios de multiculturalismo e intermediação no Norte do Brasil (meados do século XIX). In: VAIFAS, Ronaldo e MONTEIRO, Rodrigo Bentes (orgs.). Império de várias faces. Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Ed. Alameda, 2009. P. 119138. FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. “O Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios”. Parágrafo II. 3561 A política de descimentos em geral era feita pela negociação entre um “lider” indígena com um “branco” emissário (podia ser militar, régulo do sertão, padre ou um particular ou mesmo um funcionário régio como o governador do estado) que nesse momento possui-se a permissão de fazê-lo. Cada processo de descimento era um, envolvendo a negociação das vantagens como os “prêmios” e o lugar para aonde seriam descidos, neste caso houveram tribos que escolheram o local de descimento podendo até fundar outra povoação. Importa aqui ressaltar que em uma mesma localidade podia haver várias e como isto era um trabalho estratégico também de descimento, pois vários foram os casos em que por insatisfação vilas foram esvaziadas. 3562 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, Antônio Manuel. “As Redes Clientelares”. In.: n.: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). 4º Vol. Lisboa : Ed. Estampa,

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ISSN 2358-4912 Não se pretende afirmar que as possibilidades de ascensão social na Capitania eram ilimitadas, mas chamar a atenção para a existência de pequenos espaços para uma mobilidade restrita e, pelo que se pode perceber, não foi uma “concessão” do mundo colonial, mas espaços construídos, elaborados e, até mesmo, arrancados dentro de um 3563 cotidiano restritivo.

Nesse processo, a tutela ou jurisdição coativa que exerciam os diretores sobre os índios os prévia como intermediários em negociações e contratos de comércio e produção, “à civillidade dos Indios, a que se reduz a principal obrigação dos Diretores”3564. O diretor entra na administração sem poder coercitivo ou punitivo, no entanto, é esperado em seus procedimentos o direcionamento das povoações à implementação da civilidade portuguesa na Amazônia colonial. Esperava-se que as vilas e povoações instaladas ao longo do sertão fossem espaços de urbanidade portuguesa e constituíssem uma rede que permitisse a comunicação e os abastecimentos, principalmente permitindo o socorro as fronteiras. Tão logo, sua manutenção e prosperidade eram objetivos essenciais aos funcionários coloniais, nomear os indígenas em postos da municipalidade era uma forma de envolvê-los nos interesses lusitanos tornando-os também dos nativos, a civilidade passava por fazê-los vassalos portugueses. A instalação na colônia de cargos metropolitanos era uma forma de manifestar a presença lusitana e exercer a posse do território, os homens enviados aos confins do império tinham um espaço de ações e obrigações amplo3565. A câmara, no século XVIII, permaneceu sendo um privilégio e uma ferramenta de interferência local na política do reino, por ela os povos encaminhavam seus pedidos à presença real, bem como contestavam contra algumas medidas metropolitanas3566. Entre as duas pontas estavam os funcionários régios, elementos intermediários que exerciam poder advindo por patente do rei. Na política portuguesa de criação de vilas estava presente a formação de uma administração local que permitisse o controle e a presença da majestade, nesse objetivo exerceuo o governador de capitania, o provedor, o ouvidor e o intendente da agricultura, manufatura e comércio. De acordo com Ângela Domigues, No seu propósito de fiscalizar os directores, o poder central socorria-se, obviamente, das queixas, petições e representações que lhe eram endereçadas, bem como das atestações passadas pelo vigário e pelo senado da câmara das povoações [...]. No entanto, utilizava, fundamentalmente, entidades e métodos já criados no reino e transplantados, em primeiro lugar, para as ilhas atlânticas e, mais tarde, para o Brasil, com o propósito de examinar a actuação de todos os funcionários reais. Dessa forma, a actividade dos directores era devassada pelos corregedores, ouvidores e intendentes-gerais. Estes tanto podiam inquirir indivíduos ou casos específicos como desempenhar a sua função sobre todos os directores 3567 das povoações luso-brasileiras.

1998. 330-349. ROCHA, Rafael Ale. Os Oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hierarquia e Resistência (1751-1798). 141 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-graduação em História, Niteroí-Rj, 2009. 3563 SAMPAIO, Patrícia Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2012. Pg. 77. 3564 FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. “O Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios”. Parágrafo V. 3565 ALVES, Dysson Teles. Urbanização e Cultura na Amazônia do século XVIII: índios e brancos em Barcelos. 161 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federald do Amazonas, Programa de Pósgraduação em História, Manaus-AM, 2010. 3566 BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império.” In.: FRAGOSO, João Luís; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime dos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 3567 DOMINGUÊS, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNPCDP, 2000. Pg.157

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ISSN 2358-4912 Devendo trabalhar na execução da política portuguesa para o vale amazônico, foram nomeados para a capitania de São José do Rio Negro, um Governador e um Ouvidor, que também recebeu a o cargo de “Intendente da Agricultura, Manufatura e Comércio”. As atuações das autoridades coloniais eram reguladas pelas ordens régias e por seus regimentos específicos, entretanto, são inegáveis os limites que a execução nas diversas partes do Império luso impunha. Ainda se coloca sobre as ordens e alterações de lei, o sentido do poder real e do privilégio local, o rei enquanto cabeça do Império não podia alijar as partes de suas funções nem tão pouco retirar os privilégios. O papel que as autoridades reais tinham as colocava como negociadores e contatos com a população local, havendo a possibilidade de adaptação da norma em vista a melhor manutenção do Império ultramarino português3568. Observamos mais atentamente o desempenho do ofício do ouvidor, cuja atuação exigia viajar pelo espaço da comarca realizando devassas das práticas locais e da atuação das Câmaras e demais autoridades – era na sua presença que deviam ocorrer as eleições das câmaras, dando ele as posses3569. A fundamentação das conquistas ultramarinas se deu por meio da devida adaptação às conjunturas e necessidades locais tornando-as parte do Império português. O processo colonizador buscava mais do que uma transplantação de estruturas, era uma transplantação de sentidos. A forma tomada pela ouvidoria na Amazônia Portuguesa foi de uma regulação constante, no cotidiano de sua ação sobre a correção dos costumes para adequá-los às normas3570. Todavia, no exercício prático de seu ofício, ocorria por vezes uma flexibilização das normas a fim de executá-las. Ouvidores na Comarca do Rio Negro Em 1760, com a nomeação do primeiro ouvidor da capitania de São José do Rio Negro, o bacharel Lourenço Pereira da Costa, deu-se a criação da comarca desta região. O regimento dos ouvidores de capitania indicava a sua alçada, o trâmite dos processos, as penas que poderiam imputar, de questões que podiam e deviam tomar conhecimento e de sua ação auxiliar as atividades do governador3571. Entretanto, essa relação de atribuições situava apenas uma parte das atividades cotidianas dos ouvidores. A observação das atividades dos ouvidores Lourenço Pereira da Costa (1760-1767) e António José Pestana e Silva (1767-1774) no oeste dos nos sertões do Grão-Pará, revelam uma prática cotidiana de regulação e manutenção. Tal situação não contradiz o regulamento dos ouvidores, mas expõe que o exercício desse oficio incluía possibilidades de ação para o poder real e para os nomeados. Nas situações narradas nas correspondências oficiais, nas quais tomaram várias posições, surgem diferentes caminhos, nos quais estes indivíduos abriram outras frentes de ação e intrusão nas atividades locais. A instrução e adequação para a realização e execução do projeto 3568

A questão é muito mais profunda do que é possível abordar, falamos aqui da ideia de corpo e de níveis. Esta sociedade tem sentido nos privilégios que formam os caminhos possíveis, é esta uma das alterações de significados proposta pela civilização dos índios: transformar os privilégios dados em fatores de destaque e enobrecimento mudando assim os significados da liderança alinhando-a ao poder do rei. A centralização pombalina pela via da administração buscar trazer esses elementos importantes para si, enquadrando seu poder a hierarquia portuguesa, na ampliação da burocracia se tentou centralizar ao rei as relações extendendo seus olhos e ouvidos. HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. “A Representação da Sociedade e do Poder.” In.: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). 4º Vol. Lisboa : Ed. Estampa, 1998. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Governadores e capitães-mores do Império Atlântico português no século XVIII.” In BICALHO, Maria Fernanda. FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de Governar: idéias e práticas políticas no império português, século XVI a XIX.São Paulo: Alameda, 2005. P. 95. 3569 BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império.”, 2001. 3570 WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial. O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Pg. 554. 3571 SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil Colonial. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Pg. 259-261.

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ISSN 2358-4912 colonial exigiu esforços de avaliação e flexibilização das exigências aos locais, não somente para os indígenas, mas talvez mais para quem exercesse a diretoria das povoações. Como já destacamos, a verificação da atuação dos funcionários e a harmonia entre os moradores eram praxe nas atividades da ouvidoria, dessa feita, não surpreende a realização desta nas vilas e com relação ao diretor dos índios. Assim, a correta execução e obediência do Diretório dos Índios serão avaliadas por via de sua execução prática: em 15 de julho de 1765, o ouvidor Lourenço Pereira da Costa, remeteu uma carta ao governador e capitão-general Fernando da Costa de Ataíde Teive, dando conta do resultado da devassa que fez ao diretor do Lugar de Alvelos, aonde a igreja encontrava-se em ruína e enviando relação de indígenas ausentes, falou ainda que os moradores concordavam com o uso dos presos nas roças3572. Em muitas das cartas enviadas pelo ouvidor ao governador geral, notamos que ele noticiava as ocorrências das localidades, expondo diversos aspectos da vivência nas vilas: informando as condições dos prédios; remetendo relações em que indicava a falta de habitantes; apontando a aplicação de propostas na gestão e devassas de agentes coloniais – o que era parte das funções dos ouvidores, proceder às correições. Propomos aqui observar na comunicação entre as principais autoridades coloniais, como a prática do ouvidor nesta capitania envolveu-se fortemente com cada espaço local. Porquanto, ainda que seu interesse nas cartas fosse transmitir à administração do Estado como se encontra as povoações, nesse procedimento descrevia também as condições da civilização dos indígenas. As correspondências colocam de modo sintético vários pontos que foram trabalhados pelos ouvidores nas suas viagens de correição, no entanto, justificá-los pela simples aplicação do Diretório dos Índios seria uma simplificação da realidade colonial. Na qual a combinação das atividades envolveram motivos e caminhos que se entrecruzam sem deixar de existir, devendose considerar a falta de letrados na América Portuguesa. Nesta sociedade de Antigo Regime as ocupações não tomam formas fechadas, o levantamento dos indígenas ausentes envolve-se com o uso de presos nas roças sem que se tornem processos automáticos. Debrucemo-nos mais sobre o exemplo acima citado para análise, apresentam-se duas situações a priori, a prisão que envolve processos judiciais – como devassas, inquirições, petições e outros organismos que podem desenrolar-se ou não3573 – e a ausência de indígenas nas povoações tanto por meios legais – alistamentos nas tropas, envio para a coleta de drogas dos sertões ou outros serviços – ou por meios ilegais – fugas, deserções do serviço, revoltas ou até falecimento ainda desconhecido. Tais acontecimentos geravam o esvaziamento humano das vilas e a inutilização de braços capazes ao serviço e a produção, ambos desfavoráveis ao interesse régio expresso nesse momento pelo Diretório dos Índios. No uso de presos para os serviços das roças estavam envolvidas a condição dos presos e os tipos de crimes, como foi construído judicialmente3574, o que significou que nem todos poderiam ser utilizados. Devemos ressaltar um aspecto da capitania: a falta de cadeias públicas. A instituição de vilas exigia a construção de determinados prédios públicos, vistos como elementos essenciais para o funcionamento de uma municipalidade, eram eles: o pelouro, uma igreja com praça central e a casa da câmara com cadeia; porém a falta destas na capitania era queixa constante dos ouvidores3575. Ao longo do Diretório dos Índios são citadas as habitações, igrejas, armazéns 3572

Arquivo Público do Estado do Pará [APEP], Códice 158, Carta do ouvidor Lourenço Pereira da Costa para o governador do Estado Fernando da Costa de Ataíde Teive, em 15 de julho de 1765. 3573 Entra nesta questão de possibilidades a posição na sociedade que o acusado ocupa, pois os seus privilégios podem lhe levar por percursos e variantes processuais outras sem que isto seja um desvio do aparelho como entendível atualmente, há ainda os custos processuais que devem ser arcados pelo litigante e pelo condenado – inclusive com seu advogado, o que era possível para poucos, especialmente pela carência destes nos sertões Amazônicos. 3574 Este ponto será melhor trabalhado posteriormente, no entanto, no Antigo Regime as justiça tinha um sentido menos punitivos aonde as combinações de situações e de perdões definiam uma maior morosidade e suavidade nas penas... WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial. O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Pg. 533-544. 3575 Em 1771, o ouvidor António José Pestana e Silva ao escrever para o governador da capitania Joaquim Tinoco Valente, afirmava que não havia cadeia e as casas de câmara não tinham sido feitas conforme o Diretório ordenava, por descumprimento dos Diretores (APEP, códice 233, carta de 15/01/1771). Ver ainda sobre o mesmo tema: AHU_ACL_CU_020, Cx. 1, D. 88; APEP, códice 233, carta de 31/01/1772. Sobre as

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ISSN 2358-4912 como elementos que devem fazer parte da vida dos vassalos índios. Como recursos ao processo de civilização eram utilizados a transplantação de elementos da sociedade portuguesa para as colônias, nas falas dos bacharéis a habitação foi um dos traços observados. A autoridade sobre os habitantes da colônia foi um dos pontos de discórdia entre o governador da capitania, Joaquim Tinoco Valente (1763-1779), e o ouvidor, Antônio José Pestana e Silva (1767-1773), que tiveram longo desentendimento sobre a interpretação da lei do Diretório e sobre a jurisdição e alçada de ambos. Em 15 de janeiro de 1771, o ouvidor Pestana escreveu ao dito governador, na carta posicionava-se contrariamente a prisão que o diretor da vila fez ao principal André de Vasconcelos e ao Alferes Luís da Costa. No mesmo documento, comentava sobre a ordem passada em 30 de novembro do ano anterior, na qual os diretores de índios podiam tomar parte nas justiças respectivas somente aos índios, tão logo, afirmava o bacharel que o diretor fez averiguação e procedimento que não possuía, e prendeu mais três índios no dia 06 por se retirarem da povoação sem ouvi-los3576. Ao documento há o anexo com a resposta do governador Joaquim Tinoco Valente ao ouvidor e intendente: o mesmo responde que as prisões estavam corretas, tendo o diretor a alçada e que discorda que se faça uma devassa. Na análise dos regimentos o Diretório estipula a seguinte: os Índios existentes nas Aldeias, que passarem a ser Vilas, sejam governados no Temporal pelos Juízes Ordinários, Vereadores e mais Oficiais da Justiça […] não poderão os sobreditos Diretores em caso algum exercitar jurisdição coativa nos Índios, mas unicamente a que pertence o seu ministério, que é a diretiva; advertindo aos Juízes Ordinários, e aos Principais, no caso de haver neles alguma negligência, ou descuido, a indispensável obrigação, que tem por conta dos seus empregos, de castigar os delitos públicos com a severidade, que pedir a deformidade do insulto e a circunstância do escândalo; […]. Vendo porém os Diretores, que são infrutuosas as suas advertências, e que não basta a eficácia da sua direção para os ditos Juízes Ordinários, e Principais, castiguem exemplarmente os culpados; para que não aconteça, como regularmente sucede, que a dissimulação dos delitos pequenos seja a causa de se cometerem culpas maiores, o participarão logo ao Governador do Estado, e Ministros de Justiça, que procederão nesta matéria na forma das Reais Leis de S. Majestade nas quais recomenda o mesmo 3577 Senhor,...

Este parágrafo versa sobre correlação entre os cargos nos sertões, na conjunção deles esperase um processo de civilização, a intenção deles deve ser a instrução não somente dos índios sobre a cultura da agricultura e do comércio como bons, mas versa sobre como este corpo administrativo deve funcionar. A instrução dada pelo Diretório situa o espaço que ocupa o diretor, dando também que os índios estavam sobre as autoridades coloniais tal como os demais vassalos do rei. Ainda consta o próprio regimento do ouvidor da capitania que lhe dá a jurisdição sobre as averiguações e inquirições nas matérias de cível e crime da comarca3578. Mesmo ao considerar a lei de 30 de novembro de 1770, esta não aparenta anular a função dos ouvidores sobre os vassalos índios, que embora tenham uma condição de menoridade é parte da república e como já exposto os diretores não tem atividade punitiva. É marcante no governo de Tinoco Valente seus desacordos com os três ouvidores que atuaram na capitania enquanto foi governador, constando que tentou sobrepor-se nas matérias da justiça3579. Porém deve ser observado que as indefinições estruturas das vilas e as câmaras: SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e Meirinhos, 1986. 69-72 e BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império.”, 2001. 3576 APEP, códice 233, Correspondência do ouvidor António José Pestana e Silva para o governador da capitania Joaquim Tinoco Valente, em 15/01/1771. 3577 FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. “O Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios”. Paragrafo II. Ortografia atualizada. 3578 Paragrafo 02. “Tirar devassas e proceder judicialmente em tudo o que for necessário na ausência do intendente.” SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e Meirinhos. Pg. 260. 3579 SANTOS, Fabiano Vilaça. Caminhos e “descaminhos” da colonização portuguesa em São José do Rio Negro no governo de Joaquim Tinoco Valente (1763-1779). Canoa do Tempo, v. 2, n. 1, Pág. 205-228, 2008.

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ISSN 2358-4912 entre os espaços de atuação dos funcionários coloniais era uma realidade, a falta desta demarcação possibilitava as flexibilidades para os dois lados da relação colonial e as tensões entre os agentes régios, pois apesar de uma pretensa hierarquia as questões de justiça eram exclusivas à ouvidoria3580. As correspondências dos ouvidores com o governador de estado e com o governador de capitania informam sobre as ocorrências nas povoações. É marcante que em nenhum dos dois casos se informe claramente porque foram os homens presos, não há informações dos processos e dos inquéritos, mas consta a relação que estes prisioneiros tem o espaço da colônia. Assim é compreensível um ponto em que a matéria se torna interesse de governo para além de um se fazer registro, existindo um limite entre o governo e a ouvidoria. A resposta de Tinoco Valente ao ouvidor Pestana apesar de invalidar a necessidade da devassa não aparenta ser a negativa de uma autorização. As matérias “jurídicas” que se apresentam nas duas correspondências tratam das vilas, da sua manutenção: como o uso de presos poderia ser proveitoso a produção e que os moradores concordaram com a possibilidade e como as prisões poderiam representar um desequilíbrio nos poderes locais e o abandono dos índios podia ser indicativo da falta de condições locais. A justiça deveria atuar na restauração do equilíbrio social observando os direitos e privilégios, ao atuar contra os interesses da colônia o diretor dos índios tornava-se suspeito e culpado nas devassas feitas em suas vilas. Conclusão Em 25 de abril de 1769 o ouvidor António José Pestana e Silva envia carta ao governador de estado Fernando da Costa de Ataíde e Teive sobre a povoação de Airão, sobre o diretor fala que: “mais do que procura ampara-la, e adianta-la a proporção das forças, e das com que é influido3581”. O ouvidor colonial deveria exercer-se como uma representação real nos seus espaços de atuação, dessa forma observar, analisar e considerar os pesos e reflexos das ordens. Procedida a devassa sobre a povoação e o diretor averiguou o porquê das ausências nas aplicações das ordens. Ao falar de uma povoação em meio ao sertão amazônico em processo de implementação o bacharel acusou de forma sútil sua parca população, ao chamar a atenção para a falta de índios, considerando este um limite para a realização das cláusulas do Diretório, não devidamente cumpridas pelo diretor local. Em uma comunicação rápida existem séries de procedimentos que o ouvidor deve dá conta. As atuações dos ouvidores na Amazônia Portuguesa foram marcadas por traços distintivos, no Rio Negro que neste momento ainda vivência a definição de lugares para serem estabelecidas povoações e que haveram esforços de formar as vilas, as ações dos letrados tornam-se quase pedagógicas. Um esforço de aplicação da norma no cotidiano do exercício. Referências ALVES, Dysson Teles. Urbanização e Cultura na Amazônia do século XVIII: índios e brancos em Barcelos. 161 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Programa de Pós-graduação em História, Manaus-AM, 2010. CARVALHO JR., Almir Diniz de. Índios Cristãos. A conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa (1653-1769). 407 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em História, Campinas-SP, 2005.

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PEGORARO, Jonas Wilson. Ouvidores Régios e Centralização Jurídico-administrativas na América Portuguesa: a Comarca de Paranaguá (1723-1812). 123 f. (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em História, Curitiba, 2007. 3581 APEP 206, Correspondência do ouvidor António José Pestana e Silva para o governador do estado Fernando da Costa de Ataíde e Teive, 25/04/1769.

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ISSN 2358-4912 FRAGOSO, João Luís; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime dos Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. MATTOSO, José (dir.) História de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). 4º Vol. Lisboa : Ed. Estampa, 1998. REZENDE, Tadeu Valdir Freitas de. A conquista e a ocupação da Amazônia brasileira no período colonial: a definição das fronteiras. 353f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História, São Paulo-SP, 2006. ROCHA, Rafael Ale. Os Oficiais índios na Amazônia Pombalina: Sociedade, Hierarquia e Resistência (1751-1798). 141 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-graduação em História, Niteroí-Rj, 2009. SAMPAIO, Patrícia Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2012. SANTOS, Fabiano Vilaça. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). 441 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História, São Paulo-SP, 2008. TORRES, Simei Maria de Souza. O Cárcere dos Indesejáveis. Degredados na Amazônia Portuguesa (1750-1800). Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP, 2006. WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial. O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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COLONIZAÇÃO E REGIÃO: PERNAMBUCO, O NORTE DO ESTADO DO BRASIL E O COMÉRCIO ATLÂNTICO (c. 1711 a c. 1783) 3582 Thiago Alves Dias3583 “Pois é bem certo que uma familiaridade demasiada nos faz muitas vezes cegos ao que há de insólito em cada coisa, mormente nessas coisas naturalmente complexas, como são uma paisagem, uma sociedade, uma cultura”. 3584 Sérgio Buarque de Holanda

A discussão, por ora pretendida, pode ser referendada pelo questionamento proposto por Ilmar Mattos: “O que constitui uma região no espaço colonial?”. A formulação apresentada pelo autor, em meados da década de 1980, propõem um debate sobre a relação entre colonização e a formação da região, o que nos parece ser pouco discutido na historiografia colonial atualmente. Acreditamos que essa carência de aproximação conceitual entre colonização e região3585 deve-se, em grande medida, ao efeito que a decomposição do território colonial, no momento da conquista, provoca sobre os estudos históricos atuais, tal como foi resumido equivocadamente por Paulo Perides: “era como se as terras de Portugal nas Américas fossem decompostas em inúmeras colônias”3586. Além do imperativo geográfico, também contribui para essa divisão, arrigada e fronteiriça entre as capitanias nos estudos históricos, a organização das fontes documentais, cujos repositórios obedecem essa divisão, como é o caso do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal. Em “O tempo Saquarema”, Ilmar Mattos aponta uma saída possível para o questionamento posto, ao afirmar que “a região não deve ser reduzida de determinados limites administrativos, como o das Capitanias”. Acrescenta, por outro lado, que a região também, não deve ter referência apenas pela distribuição populacional em um dado território, “pois não é o fato de um grupo de pessoas habitar o mesmo território que determina o mesmo estabelecimento de uma rede de relações sociais e o desenvolvimento de uma consciência comum de pertencer a um mesmo mundo, embora seja certo que uma região não prescinde de uma base territorial”3587. Com Mattos, somos desafiados a pensar a região como “uma construção que se efetua a partir da vida social dos homens, dos processos adaptativos e associativos que vivem, além das formas de consciência social que lhes correspondem”, um tema caro aos debates da geografia

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O debate aqui proposta faz parte do arcabouço teórico de nossa tese de doutorado em História Econômica – USP, ainda em andamento. Agradeço a leitura, correções e sugestões valiosas dos amigos historiadores, Luiz Otávio e Elisângela Andrade. Sou igualmente grato a Cátedra Jaime Cortesão – USP, pelo apoio material e intelectual dispensado e a CAPES, pela bolsa de pesquisa sem a qual nada disso seria possível. Dedico esse texto ao amigo de todas horas, Rosenilson Santos. 3583 Doutorando em História Econômica – USP. Email: [email protected] 3584 HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). História Geral da Civilização Brasileira, p. 17. 3585 Partindo de princípios teóricos fundamentados por Koselleck – atenta-se para o fato de que um conceito exige um certo nível de teorização, cujo entendimento também é reflexivo, além de sua formulação partir de um aspecto da realidade que demanda níveis de distanciamento e abstração –, o conceito de região possuí longa fortuna e vasta polissemia, em praticamente todas as áreas das ciências sociais. Para esse estudo, empregamos algumas referências analisadas por BREITBACH, Áurea C. de Miranda. Estudo sobre o conceito de região. KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos, p. 134-146. 3586 PERIDES, Paulo Pedro. A organização político-administrativa e o processo de regionalização do território colonial brasileiro, p. 77. 3587 MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema, p. 24.

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ISSN 2358-4912 contemporânea e mesmo dos Annales3588. No entanto, o acréscimo deixado por Ilmar Mattos, é o tratamento dado à região colonial como um “espaço vivido, em movimento, expressando a dominação exercida pelo colonizador sobre um território, mas, sobretudo, uma dominação sobre os demais agentes participantes da aventura colonizadora”. Nesse sentido, completa o historiador, a região colonial é o “resultado da ação colonizadora, dos processos adaptativos dos seus agentes do território americano, das formas de associação estabelecidas a partir dos interesses da face metropolitana e, por fim, das representações em permanente elaboração, entre os quais ganham destaque as noções de grandeza e opulência”3589. Analisar a região colonial enquanto resultado da ação colonizadora é, portanto, uma de nossas premissas teóricas e conceitual. De acordo com o geógrafo Antonio Moraes, estudos que tendem a estabelecer relações entre território e região, devem partir de uma escala regional que expressem “um todo, uma unidade, mesmo que inserido numa unidade maior”, nesse caso o império português. “Os fluxos (exploradores, povoadores, e de mercadorias) estabelecem a demarcação de cada assentamento colonial americano, definindo as regiões coloniais em movimentos onde os padrões da ‘manchade-óleo’(na expansão) e da ‘bacia de drenagem’(na consolidação) aparecem como predominantes”3590. Tomando como parâmetro essa análise, é possível afirmar que a irradiação da conquista colonial, partindo de Pernambuco, marca essa ‘mancha-de-óleo’ no processo de expansão, avanço de fronteiras e estabelecimento de núcleos populacionais. Por outro lado, o escoamento de produção, o movimento do porto de Recife e suas conexões com o norte do Estado do Brasil, representaria essa ‘bacia de drenagem’3591. A compreensão de região colonial, para Ilmar Mattos, ganha contribuições com as assertivas de Antonio Moraes, para o qual a “intensidade dos fluxos externos foi, em muito, responsável pelo dinamismo destas economias regionais, levando-as a se ampliar e a se retrair”. Sendo assim, é a “subordinação a um domínio político externo e a inserção subordinada nos circuitos imperiais que qualificam tais espaços como ‘coloniais’. As regiões coloniais são, antes de tudo, partes de um império. Mas, são também partes de territórios coloniais diferenciados”3592. Por outro lado, esse dinamismo da economia regional colonial, constatando a existência desses territórios diferenciados, só pode ser identificado e analisado se contrapormos ao espaço colonial como um todo. Para tanto é necessário a caracterização do nível de desenvolvimento das forças produtivas da região e a articulação do modo de produção dominante com o conjunto dos demais modos de produção3593. Alain Lipetz, ao se debruçar sobre os espaços diferenciados, explica que no caso da geografia humana, “o desenvolvimento espacial das estruturas sociais (econômicos, políticos, ideológicos), a diferenciação dos espaços concretos (regionais ou nacionais) deve ser abordada a partir dessa articulação das estruturas sociais e dos espaços que elas engendram”. Esses ‘territórios coloniais diferenciados’ – no nosso caso, a região colonial do norte do Estado do Brasil – “só podem ser definidos a partir de uma análise concreta das estruturas sociais que lhes 3588

A título de exemplificação, citamos o brilhante texto do historiador francês Jacques Revel. Ao se debruçar sobre a França nas décadas antes anteriores ao Antigo Regime, afirma que “O reino é um mosaico de particularidades imperfeitamente reunidas e aglutinadas”, encaminhando a discussão para uma premissa mais elaborada sobre “a existência da região enquanto realidade histórica, social e cultural”. REVEL, Jacques. Do Antigo Regime ao Império: a identidade regional, inevitável e impensável. In: ______. A invenção da sociedade, p. 159-180. Citações p. 162; 166. 3589 MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema, p. 25. 3590 MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil, p. 62-63. 3591 Uma região nodal, já que é a cidade que cria a região, como diria o francês Halford Mackinder a partir das palavras da geógrafa Sandra Lencioni. LENCIONI, Sandra. Região e geografia, p. 108. 3592 MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil, p. 63. 3593 Alejandro Rofman defende que a caracterização da região passa pela análise das relações de produção, formas técnicas e organizativas da atividade em cada setor econômico, níveis de concentração econômica e formas de distribuição da renda, além da análise comparada da estrutura econômico-social com a de outras regiões. Seria necessário analisar a região em pelo menos três níveis: o do sistema produtivo, o da estrutura social e o da estrutura jurídico-institucional. ROFMAN, Alejandro. Redefinición del elemento clave del análisis espacial: la région. In: ______. Desigualdades regionales y concentración económica. El caso argentino, p. 36-51.

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ISSN 2358-4912 conferem uma individualidade; quanto às próprias diferenças (e as relações inter-regionais), elas devem ser aprendidas a partir de diferenças nos tipos de dominância e os modos de articulação entre os modos de produção”3594. Diante desse quadro teórico-conceitual acerca da região colonial, algumas ideias chaves podem ser resumidas: a formação da região colonial atua junto ao processo colonizador, como apontado por Ilmar Mattos; a região colonial se configura a partir do processo de expansão, colonização e drenagem de recursos, como completou Antonio Moraes; e finalmente, para Alain Lipietz, a região colonial se torna um espaço diferenciado por meio da dominação e articulação entre os modos de produção. Como constato até o momento, todos esses elementos, necessários à definição da região colonial e sua própria investigação, não são uma preocupação nova à historiografia brasileira. Além do já citado Ilmar Mattos, o prof. Jobson Arruda já tinha alertado sobre o “dimensionamento regional” das “práticas econômicas setecentistas”, no intuito de “revelar a articulação indispensável do todo com as partes e vive-versa”, ou seja, as relações MetrópoleColônia e as especificidades regionais3595. Ao utilizarmos das ferramentas teórico-conceitual de sistema colonial e Antigo Sistema Colonial, tal como as elaborações propostas por Caio Prado Jr. e Fernando Novais3596, Jobson Arruda alerta para as análises mais detidas, nas quais propõem-se “atentar para as disparidades regionais que matizam e historicizam o processo, condicionando uma compreensão mais vertical e abrangente da formação social nos seus dimensionamentos regionais”3597. Jobson Arruda elenca alguns pontos fundamentais para o avanço analítico das particularidades regionais da economia brasileira setecentistas e, ao nos apropriarmos desse arcabouço teórico, é possível desenvolver algumas premissas. Primeiro, a relação entre diversificação da produção colonial e as formas de trabalho empregadas, “resguardada a notável preponderância do trabalho escravo dominantes da economia”. Para o norte do Estado do Brasil, evidenciamos o caso do escravismo e do trabalho livre nas áreas agrícolas de exportação, da pecuária, do extrativismo vegetal; assim como o trabalho escravo e livre nas áreas urbanas3598. Segundo, a variedade da propriedade fundiária no plano regional sem, necessariamente, contrapor a grande propriedade exportadora3599. Terceiro, 3594

LIPIETZ, Alain. O Capital e seu espaço, p. 33-34. Talvez como explicou Gregório de Matos, na Bahia setecentista: “O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo”. MATOS, Gregório de. Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu. In: AMADO, James. (Org.). Obra poética, p. 23-24. 3596 PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII) e NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. 3597 ARRUDA, J. Jobson de Andrade. A prática econômica setecentista no seu dimensionamento regional, p. 147-156. Citações p. 147, 155. 3598 Alguns exemplos de pesquisas atuais que evidenciam relações diversas no mundo do trabalho, no norte do Estado do Brasil setecentistas: Trabalho feminino livre e escravo nas áreas urbanas e rurais, cf.: ALBUQUERQUE, Myrianne C. O. de. Práticas ilícitas e estratégias de sobrevivência feminina. In: ______. As mulheres no espaço público colonial de Natal: “daninhas” e “mal procedidas”, p. 20-35. Oficiais de ofícios especializados nas áreas urbanas, cf.: SILVA, Henrique Nelson da. Os artesões do Recife; redes sociais, perfil e mercado de trabalho. In:______. Trabalhadores de São José : artesãos do Recife no século XVIII, p. 64113. Trabalho indígena no extrativismo vegetal e mineral, cf.: LOPES, F. Martins. Índios vilados: súditos de direitos e deveres. In: ______. Em nome da liberdade, p. 52-100 e CAVALCANTI, Carmem Lúcia Lins. As Minas de Salitre em Campos de Buíque. Homens brancos pobres livres no extrativismo vegetal, cf.: PALACIOS, Guillermo. Campesinato e escravidão no Brasil. Trabalho escravo nas áreas urbanas, cf.: TORRES, Cláudia Viana. Um Reinado de Negros em Um Estado de Brancos. Trabalho escravo e livre nas áreas rurais, cf.: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores, artesãos; Origens do Trabalho Livre no Ceará Colonial. 3599 Propriedades fundiárias variadas na pecuária, cf.: MACÊDO, M. Kennedy de. Crias de gado: cabedal familiar nas fazendas sertanejas. In: ______. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do Seridó [Capitania do Rio Grande do Norte] (Séc. XVIII), p. 84-145 e SILVA, J. Correa da. Ocupando as 3595

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ISSN 2358-4912 a diversificação de produtos nas pautas de exportação e de consumo, mesmo que o açúcar tenha sido “o grande produto de exportação colonial”3600. Quarto, o “tema da circulação mercantil”, por via da navegação de cabotagem e dos caminhos do escoamento da produção e do comércio 3601 . Todos esses elementos buscam matizar, além da variação regional, a articulação das unidades regionais e a articulação da região colonial com o império. Nesse sentido, a formação da região colonial, aqui designada como o norte do Estado Brasil, é fruto do processo colonizador português, irradiado por Pernambuco e pela montagem das feitorias e dos engenhos de açúcar ainda no século XVI. Ele ganhou contornos mais definidos, embora com retrocessos e avanços, somente no século XVIII, tendo em vista: a variedade das forças produtivas em áreas distintas da região, no litoral e no sertão (produção e beneficiamento do açúcar e couro; extrativismo vegetal de madeiras, tabaco, algodão, drogas etc.; tráfico e comércio negreiro; comércio e importação de produtos europeus); a variedade dos modos de produção (trabalho escravo e livre, masculino e feminino, negro, índio e livres pobres, na pecuária, extrativismo, produção açucareira e beneficiamento do couro); uma estrutura de centro de escoamento, regime de portos únicos e comércio externo monopolizado que avança nas áreas produtivas (negociantes e casas comerciais próximas aos portos com negócios espraiados por toda a região; altos valores e volume de cargas transacionadas no centro da região, endividamento da produção pelo comércio) e uma estrutura jurídico-administrativa centralizada, em maior ou menor grau, em várias áreas (subordinação em variados aspectos ao centro de decisão representado pelos governadores, ouvidores, corregedores etc.). Referências ALBUQUERQUE, Myrianne C. O. de. As mulheres no espaço público colonial de Natal: “daninhas” e “mal procedidas”. 51 f. Monografia (graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Departamento de História, Natal, 2007. ARRUDA, J. Jobson de Andrade. A prática econômica setecentista no seu dimensionamento regional. Revista Brasileira de História, v. 5, n. 10, mar./ ago. 1985, São Paulo, p. 147-156. BONIFÁCIO, Hugo D. N. Teixeira. Nas rotas que levam às minas: mercadores e homens de negócios da capitania de Pernambuco no comércio de abastecimento da região mineradora no século

Ribeiras: a ‘distribuição’ de terras e a conquista do sertão. In: ______. Em busca de distinção e riquezas: patrimônios materiais e poder no sertão do rio Piranhas, Capitania da Parahyba Norte (segunda metade do séc. XVIII), p. 30-51. Propriedades fundiárias algodoeiras, cf.: LEITE, Ana C. Teixeira. A estrutura produtiva do algodão no Ceará. In: ______. Estrutura fundiária e capital comercial. O algodão no Ceará, p. 67120 3600 Tipos variados de couros (secos, salgados, sola, meia sola, vaquetas etc.) e anil, cf.: MEDEIROS, Tiago Silva. “O sertão vai para o Além-Mar”: a relação centro e periferia e as fábricas de couro em Pernambuco nos setecentos. Madeiras tintoriais, para construção naval e empregos diversos, cf.: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Contrabando de pau-brasil na Baía Formosa [Capitania do Rio Grande do Norte] (entre 16951699). In: ______. Notas para a história do Rio Grande do Norte; CARVALHO, Flávio A. D. de. Reavaliação da extinção do pau-brasil na historiografia: a ibirapitanga no Rio Grande. Anais.... Algodão, cf.: TAKEYA, Denise Monteiro. Um outro Nordeste: o algodão na economia do Rio Grande do Norte (1880-1915); DIAS, T. A. Produção, consumo e comércio nas Vilas do Rei, p. 1-31, jan./ jul. 2013 e Tabaco, cf.: LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e Comércio Atlântico. Tabaco, Açúcar, Ouro e Tráfico de Escravos: Pernambuco (1654-1760). 3601 Dos pequenos portos e da navegação de cabotagem, ao porto de Recife, cf.: MONTEIRO, Denise Mattos. Portos do sertão e mercado interno: nascimento e evolução do porto do açu-oficinas [Capitania do Rio Grande do Norte] (1750-1860), p. 71-98. Do comércio atlântico ao comércio interno, cf.: STUARDT FILHO, Carlos. Vias de comunicação do Ceará colonial, p. 15-47; MELLO, J. A. Gonçalves de. Três roteiros de penetração do território pernambucano (1738-1802) e BONIFÁCIO, Hugo D. N. Teixeira. Comércio, elite mercantil e os homens do caminho de Pernambuco às Minas Gerais. In: ______. Nas rotas que levam às minas: mercadores e homens de negócios da capitania de Pernambuco no comércio de abastecimento da região mineradora no século XVIII, p. 112-146.

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ISSN 2358-4912 XVIII. 209 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, Programa de PósGraduação em História, Recife, 2012. BREITBACH, Áurea C. de Miranda. Estudo sobre o conceito de região. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser, 1988. (Col. Teses, n. 13). CARVALHO, Flávio A. D. de. Reavaliação da extinção do pau-brasil na historiografia: a ibirapitanga no Rio Grande. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL, 1, 2007, Natal. Anais... Natal: EDFURN, 2007. CAVALCANTI, Carmem Lúcia Lins. As Minas de Salitre em Campos de Buíque. Um Caso de Utilização da Mão-de-Obra Indígena na Capitania de Pernambuco (1698-1706). 110 f., Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999. DIAS, T. A. Produção, consumo e comércio nas Vilas do Rei. Mneme – Revista de Humanidades, Caicó, v. 14, n. 32, p. 1-31, jan./ jul. 2013. HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). Hist. da Geral da Civil. Bras. O Brasil monárquico, tomo II, vol. 03, 9 ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, Rio de Janeiro, 1992, p. 134-146. LEITE, Ana C. Teixeira. Estrutura fundiária e capital comercial. O algodão no Ceará. 256 f. Tese (Doutorado) – Programa de História Econômica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. LENCIONI, Sandra. Região e geografia. São Paulo: Edusp, 2009 (1 ed., 1999). LIPIETZ, Alain. O Capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1988 (Ed. original francesa, 1977). LOPES, F. Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o diretório Pombalino no século XVIII. 2005. fls 700. Tese ( Doutorado em História) ─ Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e Comércio Atlântico. Tabaco, Açúcar, Ouro e Tráfico de Escravos: Pernambuco (1654-1760). 262 f. Tese (Doutorado em História Econômica, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo). São Paulo: FFLCH/USP, 2008. MACÊDO, M. Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do Seridó [Capitania do Rio Grande do Norte] (Séc. XVIII). 286 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais, Natal, 2007. MATOS, Gregório de. Ao braço do mesmo Menino Jesus quando apareceu. In: AMADO, James. (Org.). Obra poética. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 23-24. MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1987. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a história do Rio Grande do Norte. João Pessoa: UNIPÊ, 2001. MEDEIROS, Tiago Silva. “O sertão vai para o Além-Mar”: a relação centro e periferia e as fábricas de couro em Pernambuco nos setecentos. 110f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós- graduação em História, Natal, 2009. MELLO, J. A. Gonçalves de. Três roteiros de penetração do território pernambucano (1738-1802). Recife: Imprensa Universitária, 1966. (Col. Monografias n. 03). MONTEIRO, Denise Mattos. Portos do sertão e mercado interno: nascimento e evolução do porto do açu-oficinas [Capitania do Rio Grande do Norte] (1750-1860). História econômica e história de empresas, vol. XV, n. 01, 2012, p. 71-98. MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia histórica do Brasil: cinco ensaios, uma proposta e uma crítica. São Paulo: Annablume, 2009. NOVAIS, Fernando A. Estrutura e dinâmica do Antigo Sistema Colonial (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Brasiliense, 1975. (Cadernos Cebrap, n. 17). (1 ed. 1973). ______. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 9 ed. São Paulo: HUCITEC, 2011. (1 ed. 1979).

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ISSN 2358-4912 PALACIOS, Guillermo. Campesinato e escravidão no Brasil: agricultores livres e pobres na Capitania Geral de Pernambuco (1700-1817). Brasília: UnB, 2004. PERIDES, Paulo Pedro. A organização político-administrativa e o processo de regionalização do território colonial brasileiro. Revista do Departamento de Geografia – USP, vol. 09, São Paulo, 1995. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores, artesãos; Origens do Trabalho Livre no Ceará Colonial. Revista de Ciências Sociais, v. 20\21, n, 1\2, 1989\1990. PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 (1 ed. 1942). REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: DIFEL, 1989. ROFMAN, Alejandro. Desigualdades regionales y concentración económica. El caso argentino. Buenos Aires: Ediciones Siap-Planteos, 1974. SILVA, Henrique Nelson da. Trabalhadores de São José : artesãos do Recife no século XVIII. 216f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2010 SILVA, J. Correa da. Em busca de distinção e riquezas: patrimônios materiais e poder no sertão do rio Piranhas, Capitania da Parahyba Norte (segunda metade do séc. XVIII). 170 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013. STUARDT FILHO, Carlos. Vias de comunicação do Ceará colonial. Revista do Instituto do Ceará, tomo LI, ano LI, Fortaleza: Ramos e Pouchain, 1937, p. 15-47. TAKEYA, Denise Monteiro. Um outro Nordeste: o algodão na economia do Rio Grande do Norte (1880-1915). Fortaleza: BNB/ETENE, 1985. TORRES, Cláudia Viana. Um Reinado de Negros em Um Estado de Brancos. Organização de Escravos Urbanos em Recife no Final do Século XVII e início do Século XIX (1774-1815). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1997.

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A ESCRITA DA HISTÓRIA INDIANA POR MEIO DA CRÔNICA FRANCISCANA Thiago Bastos de Souza3602 A conquista e a gênese de um novo mundo, ou do Novo Mundo, são processos que se constroem e se reconstroem por meio do avanço e do recuo de dinâmicas econômicas, socioculturais e sociopolíticas. Esses processos podem ser percebidos no transladar e deslocamento da sociedade ibérico-espanhola, sob um espaço até então desconhecido para os referenciais europeus. Tema largamente debatido por Serge Gruzinski no que concerne às interferências e migrações do imaginário, da estrutura mental pré-concebida sobre o real3603, bem como à junção, mescla e apropriação de vários fragmentos do real por parte de uma matriz político-cultural comum – dotada evidentemente de contragolpes -. Seguimos acompanhando algumas de suas considerações: 1) Quanto à sugestão de que a conquista e a colonização são cerceadas por um intenso processo de ocidentalização e de tentativas de criações, em alguns aspectos muito exitosas - possivelmente não intencionais –, de duplicatas da velha Espanha; 2) A colonização e as áreas coloniais são certamente o espaço, o momento no qual a modernidade gestada na Espanha será aplicada, experimentada – esse parece ser um argumento específico para a Nova Espanha, mas gostaríamos de sugeri-lo como uma possibilidade mais ampla-. Contudo, para além de conhecidas tópicas que residem sobre temas como conquista, colonização, encontro e choque de culturas, acreditamos que esse Novo Mundo político e culturalmente incorporado ao velho, mesmo que pela força – e por meio de uma incorporação passível de ser questionada -, diante da deflagração do processo de colonização, abre um espaço, ou quem sabe uma encadernação, cheia de páginas em branco, para a produção de uma nova forma de escrita da história, que se não é nova na forma e nos apanágios, pois carrega entre seus principais aspectos tudo o que a antiguidade clássica, o medievo e a cultura cristã foram capazes de gerar, inova ao possibilitar que a confecção da história seja colocada diante da novidade de um presente instantâneo, de uma geografia inimaginável e de realidades inquestionavelmente hiperbólicas, como nos mostram os relatos de Colombo. É diante de um presente colonial que sucumbe à ânsia de ser registrado e armazenado em sua totalidade que temos – inclusive em outras oportunidades3604-corroborado as ideias de EsteveBarba3605 e também sugerido a existência de uma Historiografia Indiana. Forma de escrever e de registrar o passado, que certamente é condicionada pelas chaves ou pelos referenciais culturais do velho mundo, mas que se apresenta como nova em função de características muito sensíveis: a oficialização do cargo de cronista pela coroa espanhola no século XVI; a centralidade política do monarca e da corte como o espaço para o qual o registro do presente e a composição do passado devem ser direcionados, a fim de que possa ser salvaguardado; a capacidade de mobilização de diversos estratos sociais participantes da conquista e colonização, visto que escrever, mais que um deleite, é uma ordem e, em alguns momentos, uma profissão. A partir desses pressupostos, mais que apresentar um balanço, ou noticias biográficas, o que este trabalho pretende, de forma superficial, é sugerir um breve cotejo entre a produção de dois cronistas franciscanos, presentes em pontos distintos das Índias ocidentais espanholas - no mesmo período, o século XVI-, frei Gerónimo de Mendieta, na Nova Espanha, autor de Historia

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Bolsista Capes- PPGH-UERJ (mestrando) /IBPA (Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicos). [email protected] Orientador: Eliane Garcindo de Sá. 3603 GRUZINSKI, S. A Colonização do Imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI – XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 3604 Algumas reflexões sobre a Historiografia Indiana encontram-se aguardando publicação. GARCINDO DE SÁ, Eliane; BASTOS DE SOUZA, Thiago. A crônica indiana, uma historiografia, uma história. 3605 ESTEVE-BARBA, Francisco. Historiografia Indiana. Madrid: Editorial Gredos, 1964.

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ISSN 2358-4912 Eclesiástica Indiana e frei Pedro de Aguado3606, autor de História de Santa Marta y Nuevo Reino de Granada, situado na Nova Granada, a fim de que possamos apresentar alguns argumentos para delinear o que também chamamos Historiografia Indiana, ressaltando que o mais importante deles talvez seja a coexistência, em áreas distintas, de situações coloniais semelhantes por meio de atores que não necessariamente se comunicaram ou se conheceram. Sustentamos tal argumentação visualizando, de antemão, as crônicas dentro do que Boixo3607 define como sendo a convecionalidade cultural das crônicas Indianas: séculos XVI-XVIII, um quadro de referências comuns; por meio da hipótese de campo, apresentada por Bourdieu3608. Sugerimos que a oficialidade do Cronista mayor de Indias é um indicador de que existe um espaço oficial, um campo de produção das crônicas coloniais, para o qual a informação deve convergir, mas também microcampos –é o caso da ordem franciscana- que estão conectados a este campo maior; aderindo ao que Merrim3609 e Mignolo apresentam como família textual. Ainda que tentando estabelecer como objetivo de análise o que apresenta como formação textual e tipos discursivos, Mignolo3610 procura mostrar que existem diferenças quanto à finalidade das cartas relatoriais, relações e crônicas - estas estariam mais perto do nosso entendimento de história-. Acreditamos que estes escritos se aproximem não apenas em função de seus aspectos estilísticos – que podem apresentar repelência-, mas também em função da conformidade política sustentada pela coroa, que aplicará certo “molde”, ou quem sabe sentido a forma de expansão e estruturação da sociedade colonial e em função do cotidiano da colonização – semelhante nas mais diversas áreas-, que faz com que os indivíduos tenham a necessidade de escrever, de relatar de se comunicar. Por mais que alguns tratados e escritos possuam mais erudição, o que lhes confere caráter de história é a necessidade de relatar a alguém o que se vive. A história, nesse sentido, está estritamente envolvida pela noção de relato e pela busca de justificativa diante das dificuldades da colonização ou, como nos lembra Merrim: (...) Failures required justification, trespasses reparation, errors and confusions explanation, inequities redressing. Many of the earliest historiographical writings from the New World were motivated not only by the desire to recount victories but to an important degree by the need to seek pardon, legitimation, power, and reward, which needs would lend special urgency to their writings. Special urgency and narrative interest - for out of necessity the actor-chroniclers of the New World contrived complex verbal strategies in 3611 mounting their self-defenses and petitions. (…)

As complexas estratégias verbais mencionadas por Merrim se adequam aos desafios da realidade apresentada, mas são oriundas também de pré-concepções, apresentadas no discurso. Como exemplo, podemos observar que, ainda que Mendieta e Aguado não tenham dialogado – é importante enfatizar que existe um núcleo de postulações do “projeto evangelizador” e esforços que se consolidam em Trento e que visam a uma normatização das ações da “igreja”-, o problema dos repartimentos e encomiendas é algo que suscita a preocupação franciscana nos dois extremos da colonização. Assim comenta Mendieta no capítulo XXXIV do Livro IV:

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MENDIETA, Fray Gerónimo de. Historia Eclesiástica Indiana. México: Antigua Librería Portal de Augustinos nº 3, 1870.; AGUADO, Fray Pedro de: Historia de Santa Marta y Nuevo Reino de Granada. Tomo. I e II Madrid: Estabelecimiento Tipográfico de Jaime Ratés, 1916. 3607 BOIXO, J. Hacia uma Definición de las Crónicas de Indias. Anales de Literatura Hispanoamericana. Madrid: V. 28, n. 1. 1999. pp. 227-237. 3608 BOURDIEU, Pierre O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 3609 MERRIM, S. The first fifty years of Hispanic New World historiography: the Caribbean, Mexico, and Central America. In: ECHEVARRÍA, R; PUPO-WALKER, E. (org) The Cambrige History of Latin American Literature. V1. Discovery to Modernism. Cambrige: Cambrige University Press, 1996. P: 58,59 3610 MIGNOLO, Walter. Cartas, crónicas y Relaciones del descubrimiento y la conquista. In: Luis Iñigo Madrigal (Coord), Historia de la literatura hispano-americana. Epoca Colonial. Madrid: Cátedra, 1982. Tomo I pp. 51-116 3611 MERRIM, S. Idem.

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ISSN 2358-4912 Entre las muchas cosas que se podria contar dañosas y contrarias á la cristandad de los indios por nuestra parte de los viejos cristianos, hallo ser la principal y mas dañosa el repartimiento que de ellos se hace para que nos sirvan contra su voluntad y por fuerza. La razon es, porque ninguna cosa puede ser mas contraria ni que estorbe á que los indios abracen y reciban de voluntad la vida cristiana, que aquello que les da ocasión de aborrecerla. El repartimiento que de ellos se hace para que nos sirvan por fuerza á los españoles, les da probatísima ocasión para que aborrezcan la vida y ley de los cristianos; luego bien se sigue que el tal repartimiento es la cosa mas contraria á su cristiandad, y por consiguiente la que los reys de Castilla nuestro señores más deben evitar y prohibir que no se haga, pues el fin del señorío que SS. MM. tiene sobre los indios, es procurar con todas sus fuerzas que se les predique y enseñe la ley cristiana con tal suavidad, que los convide y persuada á que la reciban y abracen con toda voluntad, porque enseñársela con sola palabra y con obras contrarias á lo que se les predica, claro está que no se les predica ó presenta para que la reciban, sino para que la aborrezcan. (…) Si nosotros fuéramos estos, y estos nosotros, ¿qué hiciéramos y dijéramos? ¿Qué pensamientos fueran los nuestros si nos echaran á cuestas este repartimiento? Paréceme que hiciéramos estos discursos, y dijéramos: ‘¿Qué ley es esta que estos hombres nos predican y enseñan con sus obras? ¿En qué buena ley cabe que siendo nosotros naturales de esta tierra, y ellos advenedizos, sin haberles nosotros á ellos ofendido, antes ellos á nosotros, les hayamos de servir por fuerza? ¿En qué razon y buena ley cabe, que habiendo nosotros recebido sin contradicion la ley que ellos profesan, en lugar de hacernos caricias y regalos (…), nos hagan sus esclavos, pues el servicio á que nos compelen no es otra cosa sino esclavonía? ¿En qué ley y buena razon caben que nos hagan de peor condicion y traten peor que á sus esclavos comprados, pues vemos que sus negros son regalados, y ellos son los que mandan y fuerzan á que hagamos lo que ellos habian de hacer? (…) ¿En qué buena razon y ley cabe, que habiéndose multiplicado tantos mestizos, y mulatos, y negros horros, y españoles pobres y baldíos, á ninguno de estos se haga fuerza para que sirvan, sino á solos nosotros, siendo los que tributamos al rey ó á encomenderos, y los que sustentamos el concierto de nuestras repúblicas, y llevamos a cuestas otras imposiciones? (…) Yo para mi tengo que todas las pestilencias que vienen sobre estos pobres indios, proceden del negro repartimiento alguna parte, de donde son maltratados de labradores y de otros que les cargan excesivos trabajos que se muelen y quebrantan los cuerpos. Mas sobre todo, de los que van, á las minas, de los cuales unos quedan allá muertos, y los que van á las minas, de los cuales unos quedan allá muertos, y los que vuelven á sus casas vienen tan alacranados, que pegan la pestilencia que traen á otros, y asi va cundiendo de mano en mano. Plegue á la divina clemencia que si de nuestra parte no se pone remedio, sea servido de hundir en los abismos todas las minas, como ya hundió en un tiempo las mas ricas que en esta tierra se han descubierto, echándoles encima, de suerte que 3612 nunca mas parecieron.

Da outra extremidade, Aguado também avalia o problema –Livro quarto, capitulo décimo quarto, Tomo I -: Dexaçion es vna escritura que el que tiene yndios encomendados haze y otorga ante vn escriuano por la qual renuncia la encomienda que de los tales yndios tiene, en el Rey, libremente, para que los de y encomiende su Magestad a sus gouernadores en quien fueren seruidos; y estas dexaciones y renunciaciones son tan firmes y valederas que si no fuese que al que hizo la dexacion de nuevo le tornen a encomendar los yndios que dexo, ni el ni sus hijos tienen derecho a ellos, y asi esta en arbitrio del que gouierna dar los yndios renunciados a quien el quisiere y fuere su voluntad. En tiempo antiguo solían hazer estas renunciaciones de yndios en fauor de particulares personas con intención que si el Rey o Gouernador no tenia por bien de encomendar los yndios en aquella persona en cuyo fauor hazia la dexaçion, rretenia en si el derecho de encomienda; y esta condición an quitado las Avdiencias, paregiendoles, y con muy gran razón, que la encomienda es el aministracion de personas libres, y no cosa vendible, porque las dexaciones hechas de esta manera trayan 3612

MENDIETA, F. Idem P: 519, 520, 523

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ISSN 2358-4912 consigo evidente y clara presunción de venta que de los repartimientos se hazian, lo qual los christianisimos Reyes y los de su Consejo de las Indias an mandado estirpar y cesar con todo rrigor, embiando sobrello muchas y muy particulares cédulas y probisiones, asi para los Jueces que no lo consientan y lo castiguen, como contra los que contraen y celebran las tales ventas, que an sido mucha parte para ser agramados y maltratados los yndios, porque vno que de aprouechamiento y demoras y por ventura biolentamente a ávido de los yndios que tiene encomendados diez o veinte mili pesos, quiere yrse con ellos en España, y para llevar otros quatro o cinco mili pesos mas procura vender los yndios o la encomienda a quien le de esta cantidad de moneda, y alia tienen sus colores con los Juezes (1) para que pasen los yndios en el conprador, el qual en breue tiempo procura aver dellos la moneda que le costaron y otro tanto como el que se los vendió avia ávido, y para este hefecto forzosamente an de ser los miseros yndios vejados y molestados con nuevos modos de trauajos y ocupaciones seriales, con que no solo son consumidos y muertos, pero algunas vezes no les dexan tiempo para hazer sus simenteras, y si las hazen es fuera de sazón y de tiempo de labor, de suerte que se vienen a perder sus simenteras y sus hijos a perecer de hambre. Esto, todo o la mayor parte, esta oy rremediado mediante la curiosidad y rrigor que an vsado los visitadores y Juezes que el Rey a mandado y manda que visiten la tierra e los repartimientos della, y como dixe asi mesmo lo del vender de los rrepartimientos, y en todo cada dia se va poniendo remedio de parte del mucho cuydado que su Magostad y los de su rreal Consejo de Indias an tenido y tienen del, pro vtilidad, conservación, conversión y aumento de los naturales deste Reyno y de todas las Indias, general y particularmente, de lo qual algunas cosas yremos tocando en el discurso de esta ystoria, asi de las leyes y probisiones dadas en fauor de los yndios, como de lo que en todo por esta causa se a 3613 mexorado los naturales del Nuevo Reyno, espiritual y temporalmente.

Podemos observar nessas extensas e indispensáveis citações não apenas a encomienda e o repartimiento como problemáticas e necessárias formas de administração da sociedade colonial em construção, e sim traços que nos ajudam a conformar o que chamamos Historiografia Indiana – uma historiografia que também é produzida a partir de temas impostos a ela pela dinâmica colonizadora-. Primeiramente, tanto Mendieta quanto Aguado parecem situar o indígena e sua salvaguarda como uma condição imprescindível para o sucesso do cristianismo na terra. É uma missão que precisa ser levada com a mais alta seriedade e não pode ser atrapalhada pela cobiça dos colonos. Isso se evidencia em Historia eclesiástica indiana, no capitulo primeiro do Livro III, no qual Mendieta compara Cortés a Moisés frente ao seu papel de conquistador do México, ou libertador “daquelas” almas. Será, sobretudo - nesse mesmo capítulo-, no momento em que Mendieta observa, conjunturalmente, o feito de Cortés como uma resposta ao sacrilégio cometido pelo reformador Lutero, isto é, se um dos principais patrimônios da igreja, que são as almas a serem salvas, é atacado na Europa, uma outra chance é dada no Novo Mundo. Talvez por isso, como nos lembrará Gruzinski3614, a criação das duplicatas: Nova Espanha, Nova Granada, Nova Galícia, Nova Vizcaya, Vice-Reino do Peru, entre outros. Todas essas duplicatas são um intuito de materializações da velha Espanha, sem seus entraves econômicos e políticoreligiosos, e são, politicamente, extensão do legado iniciado pelos reis católicos, vicepatrocinadores na empresa de expansão do cristianismo, sendo assim, na visão desses franciscanos, o indígena, o natural é uma massa a ser cuidadosamente fermentada. Outro aspecto a ser observado no texto de Mendieta e Aguado é uma transformação da escrita que, segundo Merrim3615, será largamente utilizada no Novo Mundo: a autobiografia. Se os historiadores das Índias são, cada um, segundo Esteve-Barba3616, um novo Heródoto, criando, ao mesmo tempo, História, Etnografia e Geografia, Merrim sugere que a autobiografia seria um quarto aspecto a ser acrescido nessa lista. Os franciscanos, como muitos outros cronistas, historiadores ou simplesmente relatores, se inserem no que escrevem, participam dos eventos. 3613

AGUADO, F. Idem. T. I p: 477, 478, 479, 480. GRUZINSKI, S. Idem. 3615 MERRIM, S. Idem. 3616 ESTEVE-BARBA, F. Idem. 3614

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ISSN 2358-4912 Vivem a dimensão cotidiana dos eventos históricos, ou apenas participam ativamente da produção do relato. Aprendem – e esse talvez seja um traço importante de acordo com Merrim3617, possivelmente iniciado com Gonzalo Fernadez de Oviedo- a utilizar os informes e textos de outros cronistas ou simples participantes do mundo colonial3618, como fontes a compor seus próprios textos. Uma tentativa, provavelmente não premeditada, de se tentar, assim como Oviedo, uma compreensão do Novo Mundo por meio do velho “(...) Bearer of the Spanish moral code, Oviedo codifies New World culture according to his world's parameters”3619 Sendo assim, chama a atenção, na avaliação de Mendieta e Aguado sobre as encomiendas e repartimentos, eles dirigirem suas advertências, em última instância, ao Monarca, pois é dele que emana a colonização e a possibilidade de salvação e expansão da igreja. Porém não é uma História do Monarca, mas dirigida a ele. O Novo mundo impõe uma nova narrativa e justificativa fundantes. Essa História que surge paulatinamente com os descobrimentos transforma-se, porque atende a outras necessidades, que já não se resumem em louvar o rei. Há outra justificativa: a História deve legitimar a expansão, e a Crônica é o centro da conformação de um Estado que está em vias de se centralizar. Logo, enquanto objeto, o Novo mundo e a colonização são, em geral, pela sua natureza tanto física como cultural e política, propulsores e responsáveis por uma virada na forma de se escrever a História. É justamente nesse ponto que podemos manifestar a hipótese ou noção de campo apresentada por Bourdieu. O franciscano atende à ordem e observa o mundo por meio dos referenciais eclesiásticos da ordem: é do mundo sem pertencer a ele, como queria Francisco de Assis - talvez por isso o constante trânsito desses cronistas-. Porém sabe que o Monarca é o condicionador, o único capaz de gerar as condições necessárias para a obra da conversão no Novo Mundo. A crônica oficial, ou a oficialidade que o monarca concede a ela, é o contorno maior do campo. Basta lembrarmos que muitos estudos são encomendados pelo próprio monarca. Vejamos o Sumario de la historia natural de las Indias, de Oviedo, que foi encomendado por Carlos V, e a crônica de Aguado - aqui apresentada-, dedicada a Felipe II. Mais que uma formalidade ou respeito, o rei é um patrocinador, sabe o que quer ler; o cronista, por sua vez - Mayor de Índias ou um franciscano -, sabe o que deve escrever. Para ser mais claro, ainda que ocupem posições distintas do tabuleiro social, compartilham o mesmo horizonte de expectativa ou, como sugere Boixo, partilham a mesma convencionalidade cultural, o mesmo espaço de possibilidades e permissividades. Podemos sugerir, da mesma forma que Certeau3620, que o texto é um instrumento técnico, possui um local social, econômico e político de produção, mas, no contexto colonial espanhol, será um pouco mais: um facilitador, responsável por gerar uma relação de confiabilidade entre o produtor do texto – o cronista-, e seu mais ilustre leitor – O Rei- (e certamente outros tipos de expectadores do velho mundo). Ainda que dotada de uma forte carga religiosa, e tendendo aos interesses da Igreja no que se refere às relações de encomienda e repartimeinto, a confiabilidade na crônica de Mendieta e Aguado reside no fato de eles colocarem, como nos lembra Costa Lima, a subjetividade a serviço do monarca, mas isso só se torna possível porque fazem parte de uma determinada trama política, na qual devem desempenhar o papel assumido. Os reis têm entre seus encargos o de mandarem compor a narrativa do que houve, desde o início sábio dos tempos, para que a escrita se ponha a serviço do memorável. A palavra é digna de inscrição à medida que resguarda os efeitos humanos do esquecimento. A subjetividade de quem a escreve ou a ordena não entra sequer em cogitação. A crônica abriga histórias tidas por incontestes, cuja seqüência abrange ‘El curso Del mundo de cada 3621 una cosa en su orden (idem, ibidem)

Contudo, é importante salientar que a relação escrita e leitor é dotada de muitos recursos e estratégias. Apostamos, até o momento, em uma possível relação de confiabilidade, visto que o 3617

MERRIM, S. Idem. A crônica de Aguado, por exemplo, é continuação do trabalho do frei Antonio Medrano. 3619 MERRIM, S. Idem P:80 3620 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 3621 LIMA, L. C. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986. p. 22 3618

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ISSN 2358-4912 Monarca – à exceção de Dom João VI no século XIX e o Brasil português - nunca tocou o que dominou com os próprios olhos, logo a capacidade de administração do mundo colonial é condicionada pela subjetividade daquele que observa e, muitas vezes, é pago e tem ordens para observar. Essa relação pode ser dotada de distorções e inverdades. Um bom exemplo, como aponta Merrim3622, é Colombo e seus diários: “(...) In it, mindful of the Crown's expectations, Columbus must perform the delicate task of adjusting what He indeed found to what he needed to find - the Orient, gold, spices, and souls for religious conversion. (…)”. Diante de tão delicada situação historiográfica, a abordagem contextualista de Skinner3623 talvez se apresente como uma importante preocupação metodológica, visto que nos permite tentar situar a dimensão performativa do texto, bem como sua funcionalidade política e social. A respeito, Merrim comenta: 2. The writer's sense of his reader: pragmatics. As the writer's "I" enters historiography so, as we have noted, do his self-interests. By writing, the author seeks to obtain any of a number of rewards, tangible and intangible, from power to fame. Such rewards could evolve only from the vital conjunction of the text with the reader who could bestow them, the Crown. The strategies, form, and content of these works will therefore profoundly reflect and be conditioned by the writer's relationship to his audience, that is, by the pragmatic context. To understand the dynamics, literary and otherwise, of the texts we must reconstruct this context: to whom were they written, under what circumstances, and to what ends — which takes us to the genre of the relacion.

Ainda que o espaço deste artigo não nos permita, as proximidades entre Mendieta e Aguado não residem apenas nessa citação sobre a encomienda e o repartimiento. Temas como conversão, conquista territorial, fundação de núcleos urbanos, costumes, ação dos colonos, construção de conventos, inserção de outras ordens mendicantes e a propulsão concedida pela dimensão do fantástico parecem ser temas correntes nas duas crônicas, basta mencionar que, em alguns aspectos, a crônica de Aguado indica que muitas das transformações demográficas e urbanas da Nova Granada parecem ter sido fomentadas pela incessante busca pelo El Dorado, ao passo que Mendieta dedica alguns capítulos a casos de ressurreição. Podemos apontar, brevemente, entre esses cronistas, um importante ponto de aproximação que gerou muitos debates e disputas – ao menos na Nova Espanha-: a difusão do sacramento do batismo. Sobre isso, dizem Mendieta (livro terceiro, capitulo XXXII) e Aguado (Capítulo Livro décimo, capitulo XVII, Tomo II) respectivamente: Aunque arriba se comenzó á decir cómo algunos indios de los de fuera venian de su voluntad á pedir el baptismo, no se declaró si lo habian recebido ó no, dejando esta materia para tratarla consecutivamente con los demas sacramentos, uno en pos de otro, por el órden que la Iglesia los administra. Y cerca de este del baptismo (que es entrada y puerta de los otros) es de saber, que los primeros tuvieron esta órdem: que primero baptizaban á sus discípulos, los que junto al monesterio se criaban con su doctrina, á unos antes á otros, conforme al aprovechamiento que hallaban en cada uno de ellos. De los de fuera, si les traian niños chiquitos, luego los baptizaban por el peligro que podian correr; presupuesto que cuando llegasen á edad de discrecion no podian dejar de ser cristianos, pues la ley evangélica estaba generalmente promulgada en las cabezas, que eran los señores y principales, y por ellos en nombre de todos sus vasallos admitida sin contradiccion alguna, porque son dificultad fueron convencidos del error de la idolatria y servicios de ella. Que si de secreto los continuaban y volvian á ellos, no era porque tuviesen por acertado adorar los ídolos y seguir las cerimonias y ritos de sus pasados como cosa fundada en alguna razon, ni porque les pareciese mal la nueva ley que los frailes les predicaban, sino que como aun no bien instructos ni hechos á ella, y como tan habituados á lo que el demonio lestenia enseñado, se idan tras aquello por sola la costumbre sin otra consideracion, ayudados tambien a esto con la solicitud de los ministros de los idolos, que (como se toca arriba)

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MERRIM, S. Idem. P: 63 SKINNER, Q. Visões da Política. Lisboa: Difel, 2005.

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ISSN 2358-4912 sentian mucho el ser privados de sus oficios y ministerio. (…) Algunos quisieron decir que frailes habian baptizado con hisopo cuando se juntaba gran multitud de indios para se baptizar. Mas no tuvieron razon, porque uno de los doce, varon santo y digno de todo crédito, como buen testigo de aquel tiempo, afirma que nunca fraile de su órden hizo tal cosa. Pues de las otras órdenes, yo estoy seguro que no lo harian, porque anduviero en este negocio con mucho recato. (…)3624 Áseles preguntado, tratando de su conversión, que se buelvan cristianos, porque mediante el bautizarse y hazer las otras obras que los rreligiosos les enseñan de la ley de Dios, yran al qícIo a gozar de la bienaventuranza de que los bienaventurados que alia están gozan, a lo cual rresponden o preguntan que si en el gielo ay bien que comer y beuer; y como se les diga que no, porque mediante la esencia diuina alli no ay necesidad destas cosas terrestres de que para el sustento de la humana naturaleza vsamos, sino que, sin comer y beuer biuen alli los hombres mas contentos y hartos de lo que se puede ymaginar, disparan como gente que a ymitagion de los brutos animales tienen puesta toda su felicidad en el vientre y en el comer y beuer, de quien dize la Escritura sacra «quorum Deus venter esh, y dizen que pues en el cielo no ay abundancia destas comidas y beuidas materiales, que no quieren yr alia, sino con el 3625 chusman, que es el demonio, que les promete abundancia destas cosas;

Podemos reiterar que a escrita da história das Índias como um campo historiográfico é um caminho viável, não como tentativa forçada de busca de coerência entre os diversos escritos do período colonial, mas sim como um traço homológico, sustentado pela esfera política, que sistematiza formas diferentes de escritas em um mesmo referencial, ou família textual. Uma família possui diversas individualidades, mas apresenta homologias, contornos comuns entre seus membros, por mais distantes que estes possam estar. Acrescemos a esses aspectos a acessibilidade da escrita indiana, mostrada por Mignolo, pois a colonização espanhola na América será um espaço no qual o ato de escrever e de se comunicar pela escrita deixará de pertencer apenas aos letrados: En una palabra, la escritura de la historia no puede dejarse en manos de cualquiera, sino de los letradoss, No obstante, la historiogralia indiana brinda una excepción a la regla dadas las circunstancias históricas que hace a capitanes y soldados tomar a su cargo una tarea que no están en condiciones de hacer. Por esta razón encontramos, en los casos en que la historia se ejercita por personas no ‘adecuadas’ para tal práctica, los ‘pedidos de disculpas’ que no sólo manifiestan el tópico de la ‘falsa modestia’, sino también la conciencia de estar ejercita ndo una práctica que tiene sus preceptos y, entre ellos. aquél que atañe a las personas indicadas para hacerla.

Referências AGUADO, Fray Pedro de: Historia de Santa Marta y Nuevo Reino de Granada. Tomo. I e II Madrid: Estabelecimiento Tipográfico de Jaime Ratés, 1916. BOIXO, J. Hacia uma Definición de las Crónicas de Indias. Anales de Literatura Hispanoamericana. Madrid: V. 28, n. 1. 1999. pp. 227-237 BOURDIEU, Pierre O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: F. Universitária, 2000. ESTEVE-BARBA, Francisco. Historiografia Indiana. Madrid: Editorial Gredos, 1964. GRUZINSKI, S. A Colonização do Imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI – XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. LIMA, L. C. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986

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MENDIETA, F. Idem p: 256, 257, 258 AGUADO, F. Idem. T. II. P: 158, 159

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ISSN 2358-4912 MENDIETA, Fray Gerónimo de. Historia Eclesiástica Indiana. México: Antigua Librería Portal de Augustinos nº 3, 1870. MERRIM, S. The first fifty years of Hispanic New World historiography: the Caribbean, Mexico, and Central America. In: ECHEVARRÍA, R; PUPO-WALKER, E. (org) The Cambrige History of Latin American Literature. V1. Discovery to Modernism. Cambrige: Cambrige University Press, 1996. pp. 58-100. MIGNOLO, Walter. Cartas, crónicas y Relaciones del descubrimiento y la conquista. In: Luis Iñigo Madrigal (Coord), Historia de la literatura hispano-americana. Epoca Colonial. Madrid: Cátedra, 1982. Tomo I pp. 51-116 SKINNER, Q. Visões da Política. Lisboa: Difel, 2005.

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A TRAJETÓRIA DO TENENTE JOAQUIM LINO RANGEL: UM EXPOSTO DA FREGUESIA DA CIDADE DO NATAL – CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE (FINAL DO SÉCULO XVIII E INICIO SÉCULO XIX) Thiago do Nascimento Torres de Paula3626 Objetivo deste ensaio é reunir fragmentos da vida do Tenente Joaquim Lino Rangel, morador na Freguesia da Cidade do Natal3627, na transição do século XVIII para o século XIX, buscando reconstituir não somente a trajetória de um militar miliciano, mas o percurso e os meandros da história particular de um recém-nascido exposto3628, que foi assistido e tornou-se alguém proeminente na configuração social da freguesia, a partir de uma trama familiar. Entre os anos 1816 e 1823, o Tenente Joaquim Lino Rangel teve participação efetiva nas atividades do Senado da Câmara da Cidade do Natal, em um período de sete anos foi possível detectar 16 atuações dele no âmbito da política3629. Dentre as ações deste personagem no espaço da municipalidade, pode-se destacar, quando o mesmo foi eleito vereador para o ano de 1821, isto ocorreu na data de 21 de novembro de 18203630. Em 24 de maio de 1821 ele esteve presente entre os mais de 100 homens que assinaram um documento, jurando veneração e respeito a santa religião, obediência ao Rei, manter, guarda e conservar a Constituição da monarquia portuguesa3631, no mesmo ano, em 29 de agosto Joaquim Lino Rangel estava entre as autoridades civis e militares da freguesia de reafirmaram o juramento a Constituição monárquica3632. Ao que tudo indica, a vida política do exposto toma maior destaque, e sua inserção social é plenamente consolidada quando ele é eleito Juiz Ordinário no principio do ano de 18223633, no entanto, Joaquim Lino Rangel ocupou outros cargos na governança, em 3 de julho de 1822 foi indicado para Ouvidor da Comarca da Província do Rio Grande do Norte, substituindo o Doutor Mariano José de Brito Lima, que apresentou licença de seis meses para ir à Corte do Rio de Janeiro3634. No apagar das luzes do período colonial, o Tenente Joaquim Lino Rangel exposto3635 participou de ações importantes para a política local, conectadas ao contexto do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Em 7 de fevereiro de 1822 ele participou da eleição de um governo provisório para a Província do Rio Grande do Norte, tal governo era composto de um presidente, um secretário e mais três membros3636, em 13 de julho do mesmo ano, o dito Tenente e demais autoridades da freguesia, requereram a conservação do Príncipe Dom Pedro no Reino do Brasil, como Regente constitucional3637. A ultima, participação do Tenente na governança que foi possível identificar nos documentos de Câmara, foi na data de 22 de janeiro de 1823, quando ele assinou o termo de aplausos à coroação do Imperador do Brasil, que afirmava: 3626

Doutorando em História / UFPR – Bolsista CAPES. Orientador: Professor Doutor Luiz Geraldo dos Santos Silva. Email: [email protected] 3627 A freguesia em questão estava localizada na capitania do Rio Grande do Norte, correspondeu como tantas outras freguesias durante o período colonial, a uma área de assistência religiosa onde havia igrejas, capelas e padres. Comportando grandes espaços onde a população vivia dispersa em diferentes fazendas, mesmo existindo pequenos povoados. MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. p. 93. 3628 Até o século o final do século XIX o termo exposto ou enjeitado era utilizado para fazer referencia a crianças recém-nascidas abandonadas. 3629 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823. 3630 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 78-78v. 3631 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 88v-91v. 3632 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 95-97v. 3633 IHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 114v-115. 3634 Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 123v-124. 3635 O adjetivo exposto não parece em nenhum momento na documentação da administração. 3636 AIHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 111v-112v. 3637 AIHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 125-129.

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ISSN 2358-4912 [...] em louvor à aclamação e coroação de sua Majestade, Imperador, Defensor Perpétuo do Reino do Brasil, o Augusto Senhor Dom Pedro de Alcântara, a quem rendem toda obediência e fidelidade de que com prazer e alegria deram continuados vivas ao mesmo 3638 Augusto Senhor [...] .

Ao examinar os Termos de Vereação, pode-se depreender que o exposto Joaquim Lino Rangel era figura pública no território da Freguesia da cidade do Natal, e que esteve presente no processo de independência política da colônia portuguesa na América, votando e assinando termos. Por outro lado, como tantos outros homens que fizeram parte da administração portuguesa, ainda na segunda metade do século XVIII, o nosso personagem realizou atividades ligadas a sua vida particular quem foram registradas pela Igreja, que também corroboraram com a consolidação de sua inserção na configuração social da freguesia. Primeiro, não foi possível localizar o seu registro de casamento, mas sabe-se a partir dos registros de batismo de seus filhos que chegaram até o presente, que Joaquim Lino Rangel foi casado com Ana Francisca Barbosa, filha do casal Felix Barbosa Tinoco (natural da Capitania de Pernambuco), e de Antonia Maria da Conceição (natural da Freguesia da Cidade do Natal).3639 Salienta-se que o sogro do Tenente teve concessões de duas sesmaria na Capitania da Paraíba, a primeira em 1745 localizada na Ribeira da Piranhas, a segunda em 1752 localizada no sertão do Pianco, ambas foram justificadas pela necessidade de cria-se gado, afirmava Felix Barbosa Tinoco ter descoberto aquelas terras com suas próprias fazendas e pondo em risco sua própria vida3640, dizia também serem terras remotas, as cartas não indicavam sua residência, no entanto apontavam sua condição de Alferes.3641 Teria Joaquim Lino Rangel feito um casamento ao moldes do século XVIII, a típica aliança matrimonial que lhe garantiria um dote, um casamento que o ajudou em sua projeção na vida publica? Não sabe-se ao certo!3642 Desta aliança pode-se depreender que Felix Barbosa Tinoco, homem casado, criador de gado vacum e cavalar, dono de terras e provavelmente de alguns poucos escravos, casou sua filha com um homem de genealogia zero, que segundo as leis do Reino só poderia entra nos testamentos na terça parte, pois noivo era um exposto, em contra partida “[...] não deveria ser impedido de galgar cargos públicos e eclesiásticos”3643. O que teria motivado o consentimento de tal união? Seria o sogro e o genro homens brancos? Seria o exposto dotado de determinadas habilidades, que ajudaria o sogro nos negócios? Pois já é sabido que o enjeitado era possivelmente conhecedor da arte de ler, escrever e contar3644. Entretanto pode-se a afirmar com muita propriedade, que tanto Joaquim Lino Rangel exposto, quanto o seu sogro Felix Barbosa Tinoco, eram indivíduos livres, isto era um ponto em comum entre eles. Passando ao largo dos motivos conjecturais que possibilitaram o matrimonio, é substancial afirmar que o ator de casar, representava na trajetória individual de um exposto a consolidação de sua inserção na configuração social da freguesia, a parti de então ele era um homem casado, 3638

AIHGRN, Termos de Vereação, Caixa 3, Livro: 1815-1823, fl. 140v-142. Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal, Assentos de batismo, Caixa única, Maço de 17761795, fl. 15. 3640 Supõe que o sogro de Joaquim Lino Rangel, confrontou-se com grupos indígenas no processo de descoberta de tais terras no sertão da Paraíba, para poder ter afirmado na justificativa que arriscara a própria vida. 3641 CARTAS DE SESMARIA. Disponivel em: Acesso : 19 de jun de 2014. 3642 Para tal discussão Cf. SANTOS, Rosenilson da Silva. Quem casa quer dote: de como se dotava as mulheres no sertão da Capitania do Rio Grande (1759-1795). In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de; SANTOS, Rosenilson da Silva (Org.). Capitania do Rio Grande: história e colonização na América portuguesa. 3643 FRANCO, Renato Junior. Assistência e abandono de recém-nascidos em Vila Rica. In: VENÂNCIO, Renato Pinto (Org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil – séculos XVIIIXX. p. 160. 3644 Tal afirmativa é realizada com base nos documentos da Câmara e dos registros de casamentos em que Joaquim Lino Rangel assinou como testemunha, chegando o mesmo ater uma firma muito mais fluente e rebuscada que a do próprio Vigário da Cidade do Natal. Cf. AMAN, Assentos de casamento, Caixa única, Maço de 1785-1790, fl. 177. 3639

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ISSN 2358-4912 daquela união nasceram quatro filhos: Rita (nascida em 1787, batizada na igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação)3645; José (nascido em 1789, não sendo registrado o local de batismo)3646; Felix (nascido em 1791, batizado na Igreja de Santo Antonio)3647; e por ultimo, Francisco (nascido em 1793, batizado também na igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação)3648, não se sabe se todos eles chegaram a vida adulta. Na Idade Moderna não existia uma preocupação efetiva por parte dos genitores ou mesmo da Igreja Católica, se as crianças recém-nascidas cresceriam lindas e saudáveis, a preocupação era notoriamente espiritual, nas orientações da Igreja os rebentos tinham que ser batizados com no máximo oito dias de vida3649, pois em função de uma morte prematura como era muito comum em tempos passados, a alma dos pequenos não iria para no limbo. Pois todo recémnascido trazia consigo a marca do pecado original, herdado de Adão e Eva3650. Assim, examinando os registros de batismo dos filhos de Joaquim Lino Rangel, é clara a preocupação que o mesmo tinha com o batismo de seus rebentos, dos quatros filhos a penas um foi batizado tardiamente, Rita, a mais velha, que recebeu os santos óleos com quase 30 dias de nascida. Lembrando que os intervalos das gestações de Ana Francisca Barbosa, esposa do enjeitado, foram de dois anos, quatro filhos e um conjunto de oito parentes rituais, sendo quatro compadres e quatros comadres. Veja o quadro abaixo QUADRO 1 – COMPADRES DE JOAQUIM LINO RANGEL EXPOSTO Nome das crianças Ano do batismo Padrinhos Madrinhas Rita 1787 José Teixeira (homem Inácia (solteira) casado) José 1790 José Francisco de Francisca de Tal Paula (homem (solteira) casado) Felix 1791 Manuel de Souza Maria José (casada) Marinho (Sargentomor) Francisco 1793 Manuel de Souza Floriana Joaquina (casado) (casada) FONTE: Livros de batismo da Freguesia da Cidade do Natal

Investigando os Termos de Vereação da segunda metade do século XVIII e inicio do século XIX, referentes à Cidade do Natal, e as Cartas de Sesmarias da Capitania Rio Grande do Norte, constata-se que possivelmente nenhum dos compadres do exposto, foi oficial da Câmara ou mesmo solicitou terras a Coroa portuguesa. A parti disso, acredita-se que Joaquim Lino Rangel não constituiu uma rede de compadrio com pessoas de destaque na freguesia, perceba que apenas o padrinho do pequeno Felix era detentor de uma patente militar. Outro ponto importante a ser observado é que os padrinhos dos quatro filhos do exposto, não formavam casais constituídos, sendo algumas comadres solteiras. Nem todos os filhos do enjeitado foram localizados nos Assentos de batismo. Contudo, os Assentos de casamento revelaram a existência de mais um filho legitimo, na data de 18 de agosto de 1820, na igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação, casou Bernardo José Gadelha, com Maria Inácia do Carmo (filha do exposto), tendo por testemunhas da união o Doutor Francisco Xavier Garcia e o Capitão Agostinho Lisboa de Almeida, ambos casados3651. É importante destacar que o enjeitado não somente conseguiu contrair casamento em face da Igreja, como também casou um dos seus filhos segundo as normas da Igreja Católica. Sendo assim, é provável

3645

AMAN, Assentos de batismo, Caixa única, Maço de 1776-1795, fl. 15. AMAN, Assentos de batismo, Caixa única, Maço de 1776-1795, fl. 79. 3647 AMAN, Assentos de batismo, Caixa única, Maço de 1776-1795, fl. 106. 3648 AMAN, Assentos de batismo, Caixa única, Maço de 1776-1795, fl. 145. 3649 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, Livro Primeiro, Título XI, § 36. 3650 CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, Livro Primeiro, Título X, § 34. 3651 AMAN, Assentos de casamento, Livro de 1816-1836, fl. 43v. 3646

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ISSN 2358-4912 que seus outros filhos tenham tido o mesmo destino da irmã, caso não tenham morrido na primeira infância. Sendo um homem com família constituída, o enjeitado Joaquim Lino Rangel chegou a solicitar a Coroa portuguesa terras para construir moradia, isto no ano de 1791. As terras ficavam localizadas na periferia da Freguesia da Cidade do Natal, próxima a Capela do Bom Jesus das Dores, neste período da vida do exposto, o dito afirmava morar em casas alugadas.3652 O exposto foi arrolado pela primeira vez como testemunha de um matrimônio, aos 21 de novembro de 17843653, 15 anos após aquele ato público o nosso personagem reaparece outra vez como testemunha de casamento, o padre afirma que ele era um homem branco e detentor de uma patente de militar3654. O sacerdote ao redigir os Assentos de casamento omitiu a condição de exposto do Tenente, não se sabe com exatidão o motivo de tal atitude, uma hipótese a ser abraçada é que, o enjeitado utilizou o momento do Crisma como estratégia para liberta-se do estigma de exposto, pois era um momento em que se podia realizar alterações no nome3655. Homem casado, branco, livre, pai de filhos legítimos, feche de família, testemunha de casamento, Vereador, Juiz Ordinário, Ouvidor, membro votante na freguesia, era o Tenente Joaquim Lino Rangel um exposto de triplo sucesso, pois não morreu na primeira infância, constituiu família segundo as normas da Igreja e participou da governança. No entanto, qual foi o significado do abandono de Joaquim? Quem possibilitou a consolidação de sua inserção e ascensão social? Seria o menino branco, recém-nascido, deixado em casa de Antonio Martins Praça Júnior, um enjeitado qualquer? Para três perguntas, uma única resposta: Joaquim exposto em casa de ... não era um abandonado quaisquer! O pequeno estava inserido em uma trama familiar que passava pela madrasta do seu receptor Dona Catarina Peralta Rangel, e por relações proibidas. Suponho não existir maneira melhor, para se desvendar segredos internos de determinadas famílias, do que investigar antigos testamentos. Assim foi ao devassar as folhas do documento testamentário da madrasta de Antonio Martins Praça Júnior, aberto aos 28 de janeiro de 1775, por ocasião sua morte, encontrou-se a acepção do abandono de Joaquim. Seria o Tenente Joaquim Lino Rangel, um afilhado e ao mesmo tempo agregado da madrasta do dono da casa que o recebeu? Já que existe uma candente semelhança entre o ultimo sobrenome dos dois indivíduos. Teria Dona Catarina, transmitido o sobrenome Rangel a Joaquim exposto? As linhas do testamento da senhora em questão, deixa claro e evidente que o enjeitado era muito mais que um provável afilhado, agregado, protegido. Ele era muito mais! Veja as palavras da falecida, [...] a meu sobrinho Joaquim Lino Rangel filho de minha sobrinha Dona Feliciana Joaquina, o qual tenho em minha casa um molequinho por nome Pedro, o qual é o que me fez dele doação meu marido Antonio Martins Praça, e assim mais um espadim de prata, uma área grande, uma sarasa de chita, um lençol de pano de linho fino com rendas, e cem mil reis em dinheiro 3656 [...] .

Perceba que o Tenente Joaquim Lino Rangel, batizado quando recém-nascido na condição de enjeitado, era incontestavelmente um falso exposto, sobrinho neto de Dona Catarina Peralta Rangel, filho natural ou ilegítimo de Dona Feliciana Joaquina, sobrinha da testamenteira. Podese afirmar que a gravidez de Dona Feliciana Joaquina, mãe de Joaquim exposto, foi consequência de uma relação ilícita, um mal passo, fosse com um homem casado, ou um padre, ou mesmo um individuo de menor qualidade, ou quem sabe o próprio dono do domicilio receptor: Antonio Martins Praça Júnior, homem casado. Tais inferências sobre a paternidade ficará em nível das

3652

CARTA DE SESMARIA. Disponivel em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/visualSesmeiro.php?numeroSesmeiro=4519 Acesso: 24 de jun de 2014. 3653 AMAN, Assentos de casamento, Caixa única, Maço de 1785-1790, fl. 177. 3654 AMAN, Assentos de casamento, Caixa única, Maço de 1798-1807, fl. 33. 3655 RODRIGUES, Henrique. Sobrevivências e trajectórias de expostos emigrados para o Brasil. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças - De Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. p. 336-337. 3656 AIHGRN, Testamento de Dona Catarina Peralta Rangel, fl. 28v.

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ISSN 2358-4912 conjecturas, sem respostas plausíveis, pois as fontes disponíveis não permitem um aprofundamento no âmbito as intimidades. Nesta busca por informações acerca da origem do Tenente Joaquim Lino Rangel, no qual situações concretas se misturam a conjecturas compondo gradientes de questões, é importante delinear o modelo daquele abandono. Observe três pontos: A) Joaquim foi exposto em uma soleira, abandono classificado como guardião, ele deveria ser encontrado, recolhido e batizado; B) Além de guardião, o abandono foi provavelmente articulado, combinado entre as partes, pois tanto o expositor da criança, quanto o seu receptor estavam conscientes da necessidade do enjeitamento; C) Todo processo foi praticamente intra familiar, o exposto era filho da sobrinha, da madrasta do proprietário do domicilio receptor. Surpreendente é saber que, o abandono guardião, articulado e intra familiar foi em suma uma estratégia de grupo, ou mesmo fios de uma trama que tinha por função não somente assistir a vida do recém-nascido, mas sobretudo proteger a hora de Dona Feliciana Joaquina3657, que pertencendo ao um grupo do nível superior da configuração social da freguesia, não poderia batizar e registrar um filho natural de pai incógnito, apresentando-se como uma mãe solteira. Perante tais descobertas, considera-se com muita propriedade que a alternativa mais viável para aquele grupo familiar seria ocultar o escândalo, forjar o abandono do pequeno e batizar-lo na condição de exposto. Cabe lembrar que a ilegitimidade não foi um indicativo de ordem geral para se abandonar recém-nascidos nas terras da Freguesia da Cidade do Natal3658. Destaca-se que com a morte de Dona Catarina Peralta Rangel, o exposto foi alvo da atenção da falecida que deixou para ele alguns bens moveis e imóveis, sendo eles: um pequeno escravo, terras, um objeto de prata, tecidos e uma quantidade em dinheiro. Esclarecendo que o Tenente Joaquim Lino Rangel, ainda era uma criança de idade desconhecida quando o testamento de sua tia-avó foi elaborado, [...] entregará tudo tendo-lhe idade capaz de receber ao tempo de meu falecimento, e não tendo idade separam os ditos cem mil réis a juro dando conta ao Juiz dos Órfãos para o mandar recolher ao cofre, e se dar a juro para tendo idade capaz o poder tirar e os mais bens os conservará meu testamenteiro em seu poder para lhe entregar todas as vezes que 3659 dele os pedir [...] .

Presumi-se que aqueles bens mencionados foram de fundamental importância para o futuro do exposto. Como nada é por acaso, o enjeitado não foi deixado aleatoriamente em casa do enteado de sua tia-avó, como foi discutido amplamente, o pequeno era um elo social na configuração da freguesia3660, um corpo no longo e continuo processo de circulação de crianças. Deve-se lembrar que um dado momento da vida, o exposto Joaquim adotou ou foi orientado a adotar o nome de Lino, sendo este o nome do primeiro marido de sua tia-avó, a quem ela dedicou varias missas em seu testamento.3661 Pode-se supor que o Tenente Joaquim cresceu sabendo de sua qualidade de filho ilegítimo, mascarada pela condição de exposto que foi muitas vezes omitidas em múltiplos documentos que ajudaram a remontar sua vida, no entanto sua origem não foi empecilho para seu triplo sucesso e consolidação plena de sua inserção social, já que ele durante toda sua trajetória foi possivelmente protegido por seu grupo familiar. A utilização da prática do abandonar de crianças recém-nascidas, para evitar escândalos e sobretudo, a perda de prestigio social, foi uma estratégia recorrentes entre os grupos do nível superior da configuração social da América portuguesa. Caso semelhante ao do Tenente 3657

O exposto poderia ter sido batizado com quaisquer outros nomes, mas o pequeno foi registrado com uma variação de sua mãe, Joaquim / Joaquina. 3658 No período de 1750-1835 o índice geral de abandono foi de 2,9% enquanto a ilegitimidade foi arrolada em 20,3%. 3659 AIHGRN, Testamento de Dona Catarina Peralta Rangel, fl. 28-29v. 3660 Sobre o exposto como um elo social, ver nosso texto, DE PAULA, Thiago do Nascimento Torres. Os enjeitados da Capitania do Rio Grande do Norte. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças - De Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. p. 238-243. 3661 O primeiro marido da senhora em questão foi o Alferes de Infantaria Lino Gonçalves de Souza. Cf. IHGRN, Testamento de Dona Catarina Peralta Rangel, fl. 26v.

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ISSN 2358-4912 Joaquim Lino Rangel foi identificado em São Paulo na segunda metade do século XVIII, Paulo César Garcez Martins, revela que o padre Diogo Feijó, regente do Império do Brasil, foi batizado como exposto e declarado de pais incógnitos.3662 Miriam Dolhnikoff, realiza um comentário mais amplo sobre o ilustre enjeitado. Deixado em uma porta domiciliar, como tantos outros, Diogo Antônio Feijó, [...] nasceu em 1784 como filho ilegítimo de uma rica família paulista, os Camargos. Esta é a hipótese mais aceita pelos historiadores para uma origem não identificada, já que o recém-nascido foi abandonado por uma mãe provavelmente solteira que, para fugir à desonra, deixou a criança na porta da própria casa, de modo a cria-lo sem 3663 expor à condenação publica.

Concomitantemente aos casos anteriormente mencionados do Tenente Joaquim Lino Rangel, e do primeiro Regente do Império do Brasil, tem-se o caso de Luiz Ribeiro da Silva, homem livre, branco, natural da Freguesia da Nossa Senhora da Conceição de Mogi do Campo (Capitania de São Paulo), que quando recém-nascido foi exposto em uma porta domiciliar. A questão é, qual a conexão deste ultimo enjeitado e os demais apresentados? Os passos dados em sua vida de sucesso é a resposta ... Luís Ribeiro da Silva exposto, emergiu da pesquisa cuidadosa realizada por André Luis M. Cavazzani, o historiador reuni fragmentos da vida do exposto, demonstrando com muita habilidade como o mesmo consolidou sua inserção na configuração social da vila em meados do século XVIII3664. Em sínteses, Luís Ribeiro era um exposto estrangeiro na vila de Curitiba, que migrou de sua freguesia mãe em busca de oportunidades no sul da Capitania de São Paulo. Como já foi dito, branco e livre, o exposto contrai casamento nos idos dos anos de 1765, na data de 22 do mês de maio, com Isabel de Borges Sampaio, filha de um reinol do Arcebispado de Braga, era ele, o senhor Manuel Borges de Sampaio, escrivão da Câmara Municipal de Curitiba. Este foi sem duvidas o primeiro passo para uma carreira promissora. Uma vez casado, e gero de um personagem proeminente da localidade, 11 anos depois, no ano de 1776, o exposto aparece como chefe de domicilio onde morava: um filho, a esposa, a sogra e quatro cunhados, nesta data o reinol Manuel Borges já era falecido. Segundo Cavazzani, o enjeitado vivia de seus negócios, atuava no foro das milícias como Ajudante, exerceu a função de Almotacé na Câmara, recebeu a patente de Capitão Miliciano, conseguiu ampliar seu plantel de dois para 13 escravos, tal patrimônio móvel arrolado em 1797. Por outro lado, Luís Ribeiro também esteve envolvido no contexto do abandono de crianças recém-nascidas na Vila de Curitiba, localidade totalmente desprovida de assistência institucionalizada, a soleira da porta do dito exposto-adulto, foi o terminal de cinco enjeitados, sendo três meninos e duas meninas. O pesquisado não consegue desvendar os meandros do processo de abandono de Luís Ribeiro, mas acredita que o mesmo não era quaisquer enjeitado, sugere ainda que o sogro dele fosse conhecedor das suas origens, para poder ter contribuído com sua vida promissora. Ao fim e ao cabo, é possível afirmava que de norte a sul da América portuguesa os grupos familiares localizados no nível superior da configuração social, fizeram uso do ato de abandonar recém-nascidos, pratica extremamente recorrente no tempo e no espaço, para proteger o moral das suas mulheres, mas não somente isso, em jogo estava a perda de prestigio social e uma situação que macularia a todos. Sendo assim, homens e mulheres se organizaram entre si e forjaram o abandono de seus filhos ilegítimos, caracterizando um enjeitamento guardião, articulado e intra familiar, possibilitando que expostos como o Tenente Joaquim Lino Rangel da Freguesia da Cidade do Natal, o Padre Antonio Diego Feijó do inteiro da Capitania de São Paulo ou mesmo o Capitão Luís Ribeiro da Vila de Curitiba, tivessem em suas vidas um duplo sucesso,

3662

MARTINS, Paulo César Garcez. Mulheres de elite, filhos naturais – São Paulo, século XVIII e XIX. In: FUKUI, Lia (Org.). Segredos de família. p. 55. 3663 DOLHNIKOFF, Miriam. Feijó, um liberal do século XIX. Nossa História, Biblioteca Nacional, n. 6, p. 72, abr. 2004. 3664 CAVAZZANI, André Luiz M. Um sobre a exposição e os expostos na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (segunda metade do século XVIII). p. 121-128.

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ISSN 2358-4912 não morrendo na primeira infância e ascendendo a funções políticas e em alguns casos organizando suas próprias famílias e reproduzindo as condições de seus domicílios receptores. Referências ASSENTOS DE BATISMO (1750-1835) ASSENTOS DE CASAMENTO (1785-1807) CARTAS DE SESMARIAS, disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/ CAVAZZANI, André Luiz M. Um estudo sobre a exposição e os expostos na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba (Segunda metade do século XVIII). Curitiba: UFPR, 2005. (Dissertação de Mestrado em História) CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA DE 1707 DE PAULA, Thiago do Nascimento Torres. “Os enjeitados da capitania do Rio Grande do Norte”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: século, XVIII-XX. p. 233-252. DOLHNIKOFF, Miriam. “Feijó, um liberal do século XIX”. Nossa História, Biblioteca Nacional, n.6, p. 72-75, abr. 2004. FRANCO, Renato Junior. “Assistência e abandono de recém-nascidos em Vila Rica colonial”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: século, XVIII-XX. p. 147-175. MARTINS, Paulo César Garcez. “Mulheres de elite, filhos naturais – São Paulo, séculos XVIII e XIX”. In: FUKUI, Lia. (Org.). Segredos de família. São Paulo: Ed. Annablume; Nemge/USP; Fapesp, 2002. p. 43-60. MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte. Natal: Ed. UFRN, 2000. RODRIGUES, Henrique. “Sobrevivência e trajectória de expostos emigrados para o Brasil”. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: século, XVIII-XX. p. 297-338. SANTOS, Rosenilson da Silva. “Quem casa quer dote: de como se dotavam as mulheres no sertão da Capitania do Rio Grande (1759-1795)” In: MACEDO, Helder Alexandre Medeiro de; SANTOS, Rosenilson da Silva (Org.). Capitania do Rio Grande: história e colonização na América portuguesa. Natal: EDUFRN, 2013. p. 213-228. TERMOS DE VEREAÇÃO (1815-1823) TESTAMENTO DE DONA CATARINA PERALTA RANGEL (1775)

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ISSN 2358-4912 DUARTE DA SILVA, O BANQUEIRO DO REI Thiago Groh3665 (...) porque a prisão de Duarte da Silva nos retirou não só o dinheiro, mas o crédito de todo (...) Padre Antonio Vieira3666 (...) mas não há quem queria passar um vintém a Portugal com estas prisões dos homens de negócios, e no dia em que chegou a nova da de Duarte da Silva subiu o câmbio a 5%.

Padre Antonio Vieira3667

Duarte da Silva, cristão-novo, mercador e banqueiro português, morador da cidade de Lisboa, pai de sete filhos, quatro homens e três mulheres, casado com Branca da Silva, prima de segundo grau por parte dos avós maternos, foi no reinado de D. João IV o homem de negócio mais importante do império, ao ponto de ser conhecido com o “banqueiro do Rei”. Seus negócios eram bem diversificados (tecidos, açúcar, pedras preciosas), e não se atinham aos limites do vasto império português, expandindo-se as principais praças de comércio da Europa, a saber, Ruão (ou Rouen na grafia francesa), Frankfurt, Amsterdã e Nápoles3668. Sua fortuna foi construída ao longo de anos por uma diversidade de negócios e de lugares onde comerciava. Contudo, como chama a atenção Denise Carollo, haviam dois grandes grupos de mercadorias que o Duarte da Silva fazia circular pelo Império Português e pela Europa: açúcar e a seda juntamente com tecidos correlatos (variedades de seda e outros tecidos como lã e linho). A dimensão dos negócios de Duarte da Silva obrigava-o a ter correspondentes comerciais nas mais diversas praças da Europa e do império marítimo português como na Bahia e na Índia3669. Os negócios de Duarte da Silva já eram prósperos no tempo dos Filipes, porém o mercador estava afastado do ciclo dos privilegiados da corte e das benesses reais, praticamente monopolizadas por Pedro Baeça da Silveira e seus parentes, que arrematavam a maior parte dos contratos de exclusividade concedidos pelas coroa. Cristão-novo, tesoureiro da alfândega e, mercador, Baeça tinha seus negócios centrados principalmente no eixo Madrid-Lisboa, não se associando, porém, aos negócios do Brasil3670. Diferente de Duarte da Silva, Pedro Baeça da Silveira era membro de uma tradicional família de mercadores na península Ibérica. A sorte de Duarte da Silva e Pedro Baeça começou a mudar no ano de 1641quando foi descoberta uma conspiração por parte dos partidários do rei Filipe IV de Espanha, em Portugal, para assassinar D. João IV e assim, devolver o trono a Casa dos Habsburgo que eram considerados os legítimos herdeiros da coroa de Portugal. A conjura, tinha por cabeças os principais da Casa de Vila Real, D. Luís de Menezes e seu filho D. Miguel de Noronha, o Conde

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Doutorando em História. Universidade Federal do Rio de Janeiro VIEIRA, Antonio. Carta ao Marquê de Niza, 27 de janeiro de 1648. In: Cartas. João Lúcio de Azevedo (org). Lisboa: Imprensa Nacional, 1997. p.147. 3667 VIEIRA, Antonio. Carta ao Marquês de Niza, 16 de março de 1648. In: Cartas. Op.cit. p.168. 3668 CARROLO, Denise Helena M. de Barros. A política inquisitorial na restauração portuguesa e os cristãos novos. Dissertação (mestrado). FFLCH-USP, 1995, 2 vol. p.55-57 vol1. 3669 Idem, ibidem p.60-72, vol1. 3670 FRANÇA, Eduardo d’ Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 312-321. WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra D. João IV. Lisboa: Edições Colibri, 2007. p.168- 169. Nota 328. Sobre Pedro Baeça, segundo indica Mafalda Wagner ainda na nota 328, ele foi também contemplado no governo filipino com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua família desde o século XVI formava uma importante rede comercial no eixo Madrid-Lisboa. Cf. p.79-81 e 661-663. 3666

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ISSN 2358-4912 de Armamar3671, o cardeal primaz D. Sebastião de Matos Noronha e contava ainda com o apoio e incentivo do Inquisidor D. Francisco de Castro, declarado apoiador da causa filipina. Na trama também estavam envolvidos D. Agostinho Manuel e os fidalgos Manuel Valente Lisboa e Diogo de Brito Nabo. Pedro Baeça da Silveira, segundo Mafalda Wagner, foi o apoiador financeiro do movimento. Descoberta antes mesmo de ser deflagrada , a conjura terminou com a execução por decapitação de seus lideres e dos nobres envolvidos e com o enforcamento de Pedro Baeça e outros cristãos-novos acusados de terem ligações com esta. Os cléricos D. Sebastião e D. Francisco foram encarcerados na Torre de Belém, onde o primeiro faleceu e o segundo foi liberto no ano de 16433672. Com a prisão de Pedro Baeça da Silveira e de outros cristãos-novos, abriu-se espaço para que Duarte da Silva e o grupo de cristãos-novos a ele ligados passassem a ocupar o lugar deixado pelos mercadores envolvidos nos acontecimentos de 1641. O circuito de contato e negócios de Pedro Baeça era diferente daquela que Duarte da Silva estava inserido, porém, ambas foram de grande importância para os governos reais aos quais esses homens serviam. As relações e a fazenda de Baeça sustentaram, sobretudo, o reinado de Filipe IV de Espanha. Por outro lado, o circuito de Duarte da Silva que se estendia pelas diversas partes do reino e da Europa, sofria com a perseguição e o medo da Inquisição, que desde a época filipina mantinha-se atenta à movimentação desse grupo3673. O cristão-novo teve papel importante na luta contra os holandeses, financiando não apenas a empreitada dos diplomatas brigantinos na Europa com também a compra de armamentos e navios para a guerra no Atlântico3674. A ascensão de Duarte da Silva e a queda de Pedro de Baeça Silveira ocorreram no tempo da Restauração de Portugal, um momento frágil para as estruturas políticas, econômicas e sociais do reino e império, cercado de incerteza e inimigos. A aclamação do oitavo duque de Bragança, D. João IV, em primeiro de dezembro de 1640, foi motivada pelos descontentamentos de parte da chamada média nobreza3675 que permaneceu no reino durante a união dinástica e passou a sentir-se, sobretudo, a partir de meados da década de 1620 prejudicada pelas praticas castelhanas de distribuição de honras e mercês, e pelas práticas econômicas e políticas3676. Insatisfação que se acentuou com a nomeação do Conde-duque de Olivares3677 para o cargo de primeiro-ministro do governo recém-formado de Felipe IV de Espanha, o qual buscou centralizar toda a política castelhana e portuguesa em sua figura. A política de governo do

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Para a historiadora Mafalda Wagner, a Casa de Vila Real foi envolvida injustamente na Conjura de 1641, pelos inimigos da Casa, na medida em que esta ganhava forças com a ascensão dos Braganças ao poder, recebendo honras e mercês mesmo sem ter se envolvido no movimento de restauração do trono português. Com D. João IV no trono a Casa de Vila Real tornou-se a segunda maior casa nobiliárquica de Portugal. Por sua vez, o rei brigantino tinha interesses com as ligações de parentesco da Casa com a Espanha e a Itália, que poderiam ser úteis nas negociações com a Espanha e o Vaticano para o reconhecimento da nova dinastia portuguesa. WAGNER, Mafalda de Noronha. Op. Cit. Capítulo III: A Restauração e as opções políticas. 3672 Idem, ibidem. p. e VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: o jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 p.62-63. 3673 CAROLLO, Denise Helena M. de Barros. Op.cit. p.77-78 3674 FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Op.cit. p.321, AZEVEDO, João Lúcio de. História. História de Antonio Vieira. Lisboa: Clássica Editora, 1992. p.122 Vol. I. e BOXER, Charles R.. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola: 1602-1686. Trad. de Olivério de Oliveira Pinto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973 p.257-258. 3675 Utilizamos aqui o conceito de média nobreza no sentido desenvolvido por Enrique Mesa, para a divisão da nobreza em alta, média e baixa em Espanha, mas que também é valido para Portugal. MESA, Enrique Soria. La nobleza en La España moderna: cambio y continuidad. Madrid: Marcial Pons Historia, 2007. p.41. Rafael Valadares também usa o termo média nobreza, mas não cunha nenhuma definição para esse grupo. VALADARES, Rafael. Independência de Portugal: guerra e restauração, 1640-1680. Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A Esfera do Livro, 2006. 3676 Cf. CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança (1560-1640). Lisboa: Estampa, 2000; SCHAUB, Jean-Fréderic. Le Portugal au temps du comte-duc d`Olivares(1621-1640): Le conflit de juridictions comme exercice de la politique. Madrid: Casa de Velázques, 2001 e VALADARES, Rafael. Op.cit. 3677 Gaspar de Gusmán y Pimentel Ribeira y Velasco de Tovar.

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ISSN 2358-4912 Conde-duque para Portugal desagradava a nobreza local. O conflito com os Países Baixos3678 na Europa resultarou em um duplo golpe contra Portugal. O primeiro foi com o deslocamento de parte dos rendimentos lusitanos para o financiamento do exercito castelhano, enquanto o segundo atingiu o reino e o império com a ocupação do Nordeste do Brasil, principal região produtora de cana-de-açúcar3679. A ocupação do Nordeste açucareiro brasileiro representou grande perda para os portugueses, principalmente para os mercadores e negociantes do reino que viam seus negócios em dificuldade e prejudicados pelas ações políticas e militares comandadas por Olivares. Enfraquecia-se a economia de Portugal e lançavam-se os territórios do além-mar a própria sorte, uma vez que Portugal e Espanha não tinham capacidade de manter duas frentes de batalhas3680. A média nobreza e os mercadores mostravam-se insatisfeitos com as intervenções castelhanas nos rumos de Portugal e seu império. Descontentamento que se acentuou com a nomeação de Margarida de Mântua para o cargo de vice-rainha, e foi interpretado, segundo Rafael Valladares, como uma tentativa de desarticular as resistências no reino português, acentuadas depois da tomada de Pernambuco em 16303681. A escolha de Margarida de Mântua pelo rei Felipe IV de Espanha contou com o apoio de seu valido o Conde-duque de Olivares, que a enxergava como uma pessoa manipulável e capaz de cumprir bem o papel de “rainha de enfeite” e assim permitir ao valido espanhol impor suas reformas políticas e econômicas a Portugal, rompendo de uma vez por todas com o nunca cumprido acordo das Cortes de Tomar3682. Deflagrava-se um racha no interior da nobreza que se dividiu entre os reinos de Portugal e a Espanha. Este descontentamento também estava exposto nos púlpitos das Igrejas durante os sermões que atacavam abertamente Felipe IV de Espanha e seu valido3683. A vice-rainha não possuía habilidades políticas para ocupar o cargo e ao romper com as práticas de seu antecessor D. Diogo de Castro que procurava favorecer a nobreza que permaneceu em Portugal, assim como nomear Miguel de Vasconcelos como secretário de Estado3684, também sem nenhuma habilidade para o cargo, acabou por expor a fenda existente dentro da média nobreza de Portugal, entre privilegiados e desprivilegiados pelo governo, e o domínio Espanhol sobre o reino. O enfraquecimento político e econômico de Filipe IV envolvido em diferentes guerras pela Europa, abriu espaço para o golpe da média nobreza portuguesa que levou D. João IV ao torno do reino, fazendo a restauração da monarquia, ou seja, reestabelecendo a monarquia legítima no 3678

Evaldo Cabral de Mello e Ronaldo Vainfas indicam as dificuldades apresentadas pelos documentos e mesmo pelos estudos anteriores sobre o tema, para uma definição e distinção entre as diversas denominações que os povos dos Países Baixos, reunidos pelo Estado Geral, recebem. Nesse trabalho, trataremos genericamente por holandeses, em referencia ao povo e a nação (Repúblicas Unidas dos Países Baixos) por Países Baixos. MELLO, Evaldo Cabral de.O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. 1641-1668. São Paulo: Topbooks, 2003 p.20 & VAINFAS, Ronaldo.Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Nota primeira do capítulo 5º, p. 347-348. 3679 Sobre a importância do Nordeste do Brasil para a econômica de Portugal e o êxito da restauração da monarquia Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. 16411668. São Paulo: Topbooks, 2003. 3680 Cf. SCHAUB, Jean-Fréderic. Op.cit. 3681 VALLADARES, Rafael. Op. cit. p.37-39. 3682 Acordo firmado entre Portugal e Espanha, o Estatuto ou Conselho de Tomar, assegurava a manutenção dos costumes, leis, instituições e tradições no território de Portugal. No reinado de Felipe III de Espanha e depois no de seu sucessor Felipe IV, sobretudo, o acordo passou a não ser devidamente respeitado e Portugal presenciou uma série de mudanças administrativas. Cf. SHAUB, Jean Fréderic. Portugal na Monarquia Hispanica (1580-1640). Lisboa: Livros Horizonte, 2001. 3683 Cf. MARQUES, João Francisco. Parenética Portuguesa e a dominação filipina. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986. 3684 A falta de traquejo politico de Miguel de Vasconcelos, que procurava sempre cumprir as ordens de Madrid, acabou causando por vezes, certo embaraço que muitas vezes resultava na anulação das ordens demandadas, revelando-se em alguns momentos o conflito de jurisdição que existia na administração espanhola. COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Circulo de Leitores, 2006. p.13.

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ISSN 2358-4912 entendimento dos envolvidos na trama. Essa nova configuração da política portuguesa, com um novo rei, exigiu grande apoio econômico para a legitimação da monarquia brigantina, que precisava do reconhecimento de outras nações na Europa. Assim Duarte da Silva encontra seu espaço dentro do reino, principalmente ao se associar a figura do Padre Antonio Vieira, o principal articulador de D. João IV. Enfim, o que pretendemos mostra nesse breve texto é como se Duarte da Silva se estabeleceu como o principal apoiador financeiro de D. João IV dentro do contexto da restauração.

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APONTAMENTOS SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS SECRETÁRIOS DE GOVERNO Thiago Rodrigues da Silva3685

O cargo de “Secretário de Governo” se relaciona com a construção mais ou menos sistemática de formas de controle administrativo da coroa portuguesa sobre o reino e seus domínios. Sua criação, na segunda metade do século XVII (29 de Março de 1688), para Angola3686, e seu estabelecimento subsequente para diversas capitanias do império, durante o governo de D João V, mostra como novos instrumentos administrativos, ligados a diversas questões, como a comunicação e o entendimento minucioso do estado das conquistas, se faziam presentes muito antes das “reformas pombalinas”. A instituição do primeiro Juiz de Fora na América, em 1696 na cidade de Salvador, pode também ser inserida nesta problemática geral. Em importante artigo sobre “As origens da Seção Colonial3687” do Arquivo Público Mineiro, Caio Boschi tece um importante aviso sobre a importância do estudo deste cargo para um melhor entendimento dos fundos documentais relativos a administração colonial. Trabalhando com a atuação do Secretário de Governo Antonio de Sousa Machado em Minas Gerais, o autor mostra a importância da construção de um “Inventário” pelo mesmo para a sistematização de documentos fundamentais para nossos estudos históricos sobre as Minas Coloniais. Mesmo com isto, como advertiu o autor, “quase nada se sabe sobre quem foram os responsáveis por este trabalho fundamental” de organização dos livros de registro das Secretarias de Governo, ou seja, quase nada se sabe sobre os Secretários de Governo. Para o historiador trata-se de “uma das graves lacunas primárias da arquivística e da historiografia brasileira”. Assim, há o desafio de entender quem foram e como atuavam estes funcionários. Tal inventário teria sido resultado de uma ordem do governador Gomes Freire de Andrade, que se destacou em sua atuação reordenando a administração das várias capitanias que estiveram sob sua tutela, estabelecendo novas formas de governar, seguindo um paradigma menos corporativo3688 baseado em novas formas de mando introduzidas por D João V3689. Assim, o governador passou a ordem acima referida, para que fosse feito um livro com todos os registros de ordens régias, que não estavam sistematizadas3690, embora a ordem para que os documentos do governo fossem sistematizados já estivesse expressa no regimento do cargo3691. O fato é que a ordem do futuro Conde de Bobadela expressa a grande preocupação que havia sobre o controle e a guarda dos papéis para o governo na primeira metade do século XVIII, ilustrando a necessidade da construção de uma memória administrativa consistente, que subsidiasse a continuidade de ações políticas, em uma capitania extremamente tensionada cotidianamente. Mas, como dito, a exigência de se construir “livros de registo” para “as ordens que forem de Portugal, e outros para as que se passarem” localmente3692, já estava no regimento, 3685

Mestre em História Social pela UFF. Professor do CEFET/RJ.Email: [email protected] Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), Docs. Avulsos, Angola, cx.ª 9. Cf. Catálogo dos Governadores do Reino de Angola, in Arquivo de Angola. Luanda, 1937. III, págs. 509-510; 3687 BOSCHI, Caio. “Nas origens da Seção Colonial”, In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Volume 43 Fascículo 1, jan./jun. 2007. Este artigo foi reeditado em BOSCHI, Caio César. Exercícios de pesquisa Histórica. Capítulo “Nas Origens da Seção Colonial” pp. 35-58. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2011. 3688 XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. “A Representação da Sociedade e o Poder”. In: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal, vol. 4: O Antigo Regime. Lisboa, Ed. Estampa, 1993. 3689 RIBEIRO, Mônica da S. “Razão de Estado” e Administração: Gomes Freire de Andrade no Rio de Janeiro, 1733-1748. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2006. 3690 BOSCHI, C. Nas Origens... op. cit. 3691 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 1, Doc.: 74 3692 Arq. Hist. Ultramarino, Docs. Avulsos, Angola, cxª 9 e 10. Carta Régia de 02 de abril de 1688, Documentos Históricos, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional – Typ. Baptista de Souza, 1945, vol. 45, p. 184. 3686

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ISSN 2358-4912 conjuntamente com a determinação da construção de outros livros para o registro de cartas, doações, mercês, sesmarias e posse de postos de armas ou de governança. Por isto podemos afirmar que estes Secretários estariam em posição “deveras privilegiada para atuar em favor de determinados interesses em detrimento de outros3693”. Assim sendo, as estratégias baseadas em papéis que provam serviços e posses passavam pelo crivo dos Secretários, que mostraram diversas vezes sua importância não só para estas questões, mas para o andamento do “governo” de uma maneira geral. Cabe ainda destacar que os Secretários de Governo foram por vezes foram chamados de Secretários de Estado, como no caso dos “Secretários do Estado do Maranhão3694”. Tais homens estavam mais diversos domínios, fazendo-se presentes do vice-reinado da Índia ao GovernoGeral de Salvador3695, do Maranhão a Angola3696, do Rio de Janeiro a Pernambuco. Na América portuguesa, o primeiro Secretário de que temos notícia foi Bernardo Vieira Ravasco, Secretário de Estado do Brasil. Ele e seus sucessores trabalhavam diretamente com o Governador-Geral, no âmbito do Governo-Geral, que seria teoricamente o organismo articulador da parte lusa da América3697, excluindo-se o Estado do Grão Pará e do Maranhão. Por vezes o cargo foi chamado de “Secretário de Estado e Guerra do Brasil”, como entre 1719 e 1725, ou “Secretario de Estado da cidade da Bahia e Guerra do Brasil”, durante o exercício do Secretário Domingo Luís Moreira entre 1727 e 1735. Em interessante artigo sobre este cargo e seu primeiro ocupante, que “serviu como Secretário do Estado do Brasil por mais de cinquenta anos, de 1646 até a sua morte, em 1697”, Pedro Puntoni3698 mostra que o cargo foi de suma importância para a gestão em cartório dos documentos em terras brasílicas e para a construção de uma memória administrativa do Governo Geral. O fato deste ter sido irmão do ilustríssimo padre Antonio Vieira o fez ser secundarizado, embora sua atuação tenha sido um caso excepcional. Tal Secretário teria formalizado o ofício no âmbito do Governo Geral e institucionalizado a posse de todos os documentos oficiais do governo, sendo o principal conhecedor dos trâmites concernentes à administração, conhecendo as diversas ordens que chegavam e as respectivas políticas que haviam sido executadas pelos Governadores-Gerais. Podemos afirmar que há um claro mimetismo entre as atribuições e funções dos Secretários de Estado do Brasil e dos Secretários de Governo que atuavam nas Capitanias. As atribuições que eram encampadas, visavam, para além do controle dos documentos, possibilitar que os mesmos confirmassem ocupações de cargos, ocupação de terras e outras questões que eram fundamentais para a oficialização das elites locais, que tinham interesses no império e no bom andamento dos negócios do mesmo. Os regimentos do cargo de Secretário de Governo do o Rio de Janeiro3699 e de Angola3700 são praticamente idênticos, diferenciando-se em alguns poucos momentos no tocantes a forma 3693

GOUVÊA, Maria de Fátima S., “Redes Governativas e Centralidade Régias no Mundo Português, ca. 1680-1730” In: GOUVÊA, Maria de Fátima S. & FRAGOSO, João R. Na Trama das Redes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3694 AHU_ACL_CU_009, Cx. 7, D. 790 3695 PUNTONI, Pedro. “Bernardo Vieira Ravasco, Secretário do Estado do Brasil: poder e elites na Bahia do século XVII” In: Modos de governar: Idéias e práticas políticas no Império Português séculos XVI a XIX. 1ª ed., São Paulo: Alameda Editorial, 2005. Também disponível em http://www.cebrap.org.br/v2/files/upload/biblioteca_virtual/PUNTONI_Bernardo%20Vieira%20Ravasco .pdf 3696 GOUVÊA, Maria de Fátima S., “Redes Governativas e Centralidade Régias no Mundo Português, ca. 1680-1730” In: GOUVÊA, Maria de Fátima S. & FRAGOSO, João R. Na Trama das Redes. RJ: Civilização Brasileira, 2010. 3697 Antes da posse de Bernardo Vieira Ravasco existiram secretários no governo de Salvador, mas estes eram funcionários pessoais dos respectivos governadores, que escolhiam homens de sua confiança para que estes os auxiliassem no despacho e no trato dos diversos papéis. Para o autor, o cargo foi, em suma, o resultado de uma evolução institucional das funções de um auxiliar do despacho do governo, que passou a ter uma dupla função: notorial e arquivística. PUNTONI, P. “Bernardo Vieira...” op. cit. 3698 PUNTONI, P. “Bernardo Vieira...” op. cit. 3699 AHU – Rio Grande do Sil, cx.1 doc.1 AHU_ACL_CU_017, cx.5, D. 522

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ISSN 2358-4912 escrita e o ordenamento dos capítulos, além de uma cláusula ligada a especificidade da governança em Angola (a questão dos Mucamos), da mudança do valor dos emolumentos e dos valores passados aos importantes ajudantes (oficiais) da secretaria. É de destaque a situação deste oficial nas Minas Gerais, lá, por provisão se 1712, estes recebiam 600 mil reis de ordenado3701, o que não constava nos regimentos de seus pares em Angola e no Rio de Janeiro, dado que era explícito no documento que estes atuariam sem ordenado da Fazenda Real, embora saibamos que ao menos para o Rio de Janeiro e São Paulo estes receberam vultuosas ajudas de custo. Tal prerrogativa, de se receber o tresdobro dos emolumentos, não foi privilégio apenas dos Secretários do Governo das Minas Gerais. Em carta de 26 de maio de 1726 o Secretário do Governo de São Paulo, Gervásio Leite Rebelo3702, reclama do fato de não receber tal acréscimo, dado que sempre “se pagarão os Secretários (...) o tresdobro do que se levava o Secretário do Rio de Janeiro”, o que não poderia deixar de ser feito “em razão da carestia a que se encontra[va]” a capitania. Além disto, após “repartindosse as das Minas depois da divisão, não deveria perder aquella conveniência, que fora concedias nos principio aos supptes3703”. Apelando então para a continuidade das práticas, mesmo após São Paulo perder dramaticamente o controle das Minas Gerais. Voltando para os regimentos em si, no que guiava o “Secretário de Governo do Rio de Janeiro” lê-se no topo que nas conquistas seria convincente haver Secretários providos, pois com eles haveria “boa forma os Papeis, e Ordens, que forem tocantes ao meu serviço [real], melhoras, e conservação das ditas conquistas3704.” Assim, cuidar da boa ordem dos documentos seria garantir estabilidade no território, como deixa a entender o próprio monarca. Os registros, obrigatórios, seriam inicialmente feitos para “cada Patente de Coronel, Capitão Mor, ou Sargento de Ordenança”, de “Capitão de Ordenança”, sesmarias, “Patente Real ou seja de Posto Maior, ou menor, ou de ordenança”, de “Provizão Real para serventia d’officio de justiça, ou fazenda, ou qualquer outra mercê”, das provisões “passadas pelo Governador do Estado, ou da mesma Capitania”, do “Despacho de cada Navio, que dos Portos da ditta Capitania sahir para os de Portugal”, do “Despacho de cada Sumaca, que dos ditos Portos sahirem a carregar quaesquer gêneros”, de “cada homenagem3705”, “De qualquer traslado, que se pedir do livro de registro”, e de “cada Patente d’Ajudante de Infantaria pago, ou de ordenança”. Todos os homens da governança, de cargos remunerados ou não, e os militares, também remunerados ou não (das tropas de ordenança), deveriam registrar suas patentes/nomeações nos livros da Secretaria. Esta prática, imposta pela coroa, servia não só para um controle dos 3700

Arq. Hist. Ultramarino, Docs. Avulsos, Angola, cx.ª 9. Cf. Catálogo dos Governadores do Reino de Angola, in Arquivo de Angola. Luanda, 1937. III, págs. 509-510; 3701 Levantamento feito pelo então ouvidor Caetano da Costa Matoso entre 1749 e 1752. “Coleção abreviada da legislação e das autoridades de Minas Gerais” In: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida & CAMPOS, Maria Verônica. “Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posso em fevereiro de 1749, & vários papéis.” Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. p. 353. 3702 Este secretário também serviu no Estado do Maranhão, o que pode mostrar uma especialização no ofício e o apego ao cargo. AHU_ACL_CU_009, Cx. 11, D. 1172 AHU_ACL_CU_009, Cx. 12, D. 1257 3703 AHU-São Paulo, cx. 1, doc.43 AHU_ACL_CU_023, Cx. 1, D. 63. Outro exemplo de pedido de aumento de emolumentos e dos rendimentos pode ser visto em uma carta do Secretário do Rio de Janeiro João Pereira da Silva já em vinte de janeiro de 1693, afirmando que a mesma rende “pouco lucro”. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 13. & AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 563. 3704 Regimento do cargo de Secretário de Governo do Rio de Janeiro. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 522. 3705 O significado do termo no dicionário de Moraes é: “Juramento de fidelidade que se presta pelo vassalo ao soberano, ou senhor, de quem recebe alguma praça, governo, terras, ou feudo”. In:. Diccionario da Língua Portugueza Composto pelo Padre D. Rafael Bluteau Reformado, e Accreccentado por António de Moraes Silva, Lisboa: 1789. Disponível em: www.brasiliana.usp.br

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ISSN 2358-4912 oficiais que estavam estabelecidos nos respectivos domínios, dado que as listas de todos os oficiais atuantes, de armas e do governo, deveriam ser envidas para Lisboa anualmente, mas servia também para a construção de uma memória administrativa e social tanto a nível imperial quanto a nível local. Por outro lado, ter o nome constando nos livros de registro era central para as importantíssimas estratégias familiares, pois era uma prova de antiguidade, fidelidade e serviços prestados, o que garantia distinções e mercês e uma maior confiança na autenticidade, dado que as mesmas estariam registradas em segurança e com a fé pública do Secretário. Isto vale especialmente para os cargos na governança, centrais para a ascensão e/ou perpetuação de poderosos grupos. Cabe aqui também destacar que por diversos motivos os Secretários poderiam vir a não incluir nomes, o que certamente gerava problemas diversos. Outro ponto importante, e que só pode ser compreendido se tivermos em mente a ligação do cargo com o governador enquanto general de armas, é a prática de se passar mostras das tropas, verificando quem estava a servir e qual era o estado das mesmas, incluindo aí o estado das armas. Estas listas (da governança e das tropas) eram, provavelmente, consultadas por diversos indivíduos interessados, por exemplo, em saber em que cargo estavam seus correspondentes na América. Outra cláusula que merece destaque é a de que os secretários fariam a menagem aos governadores que chegassem, ou seja, lhes dariam a posse simbólica local, presidindo as concorridíssimas cerimônias de posse do oficial que representava o próprio rei, trazendo para o Secretário um claro destaque político e social. Após isto este funcionário apresentava o registro das ordens régias e a execução dada as mesmas pelos governadores que haviam atuado anteriormente, instruindo assim seu novo chefe. Cabe sublinhar que anualmente era enviada à Corte, pelo Secretário, a lista das ordens recebidas, o registro das mesmas, e a execução dada pelo governador. Obviamente esta prática dava aos nossos oficiais uma tutela virtual sobre os governadores. Indo além do regimento, as missões especiais dos Secretários rendiam significantes recursos. Assim se deu em 1727 com o secretário do governo das Minas, Manoel da Fonseca de Azevedo, que pediu cavalo e seu sustento3706, tendo tal pedido inclusive referendado pelo governador Dom Lourenço de Almeida3707, dado que o Secretário teria missões especiais em distantes paragens. Neste mesmo ano o Secretário havia requerido uma declaração dos emolumentos que deveria levar3708, acumulando assim boas somas de dinheiro. Deve aqui estar claro que o cargo era, pensando puramente em rendimentos, muito atrativo, apesar das constantes reclamações sobre parcos rendimentos, que poderiam ser muito mais retóricas. Além do já fixado, havia sempre uma grande margem para barganhas com Lisboa, assim como deveria haver as mesmas com relação às verbas que circulavam a nível local. Cabe agora ver a atuação desses homens em aventuras que iam muito além de suas atribuições oficiais. As Missões Nem só das atividades de registro, vistas e translados viviam os Secretários. A proximidade com os Governadores, o alto posicionamento do cargo, e muita vezes a fidalguia desses homens, fizeram com que estes executassem importantes missões, que poderiam dar rendimentos diversos. A título de exemplo dessas cotidianas atribuições3709 podemos citar o Secretário de Governo Antonio de Sousa Machado, aqui já referido. Em 1735 o poderoso governador do Rio

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AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 10, Doc.: 16 Idem. 3708 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 11, Doc.: 68 3709 Podemos afirmar que essas missões ocorreram diversas vezes, como é demonstrado na pesquisa realizada a nível de mestrado. SILVA, Thiago Rodrigues da. Secretários de governo no centro sul da América Portuguesa – 1688-1750 – burocracia, segredo e missões. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013. 3707

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ISSN 2358-4912 de Janeiro, futuro Conde de Bobadela, assume também o governo das Minas Gerais3710, trazendo novas formas de governar3711, dado que este pertenceria a uma geração de bem treinados administradores3712 que se preocupavam com a preservação da possessão americana. Este, como já sabemos, vendo a secretaria sem a devida organização que deveria ter, propôs que Machado assumisse a mesma3713. Tal trabalho seria essencial para que o novo imposto da capitação fosse estabelecido. Com o conhecimento de todas as ordens, decretos régios e demais papéis, e a organização dos mesmos, a secretaria seria um bunker para que as ações polêmicas que seriam tomadas fossem sustentadas por ordens metropolitanas. Mesmo tendo essas funções importantíssimas, o então Secretário honorário trabalhava sem ajuda de custo. Machado já estava por tomar prática nas Intendências, recebendo nestas não menos que setenta e duas cópias de ordens régias, regimentos e documentos de governadores, dentre outros, que os ministros haviam lhe passado não só para o regime das Minas Gerais, mas também para as Minas de Goiás e Cuiabá. Além disto, este teria tido trabalho extra pela “ocasião dos tumultos, e levantes do sertão” que lhe fizeram expedir “ordens sobre aquellas Revoluções” centralizando consigo os papéis que tinham informações vitais, além de receber do governador “todos os avisos ocultos, correspondendo, e falando as pessoas fieis em partes remotas fora da Villa, que não hiam falar ao Governador, para melhor conservação do segredo”, suprindo nas doenças do mesmo governador a correspondência tanto daquela Capitania, como de fora dela, e a despeito da falta de ajudante, “distribuindo bilhetes para as intendências, ajustando as contas das remessas de ouro que delas vinhão3714,” além de responder cartas dos Intendentes, “sobre as providencias precizas,” também acompanhando o governador na conflituosa comarca de Rio das Mortes, dando lá “expediente as partes”, e “não podendo o Governador hir a Villa de Pitangy,” ele teria ido “pela experiência q [o governador] tinha da sua capacidade, para que fizesse executar as ordens da instrução (...)”, realizando “por prompto tudo o q tocava a capitação; passando mostras as ordenanças”, sendo esta “a primeira vez que se executou tal naquele distrito, e examinando o novo descobrimento dos alfajores, e pérolas,” levando mostras das mesmas consigo3715. Nisso tudo pedindo sempre o cargo para si permanentemente, enquanto dava esse belo relato das múltiplas funções que um Secretário podia ter, e dos assuntos da maior importância aos quais tinha acesso. Podemos dizer que aqui Machado substituiu o governador, indo para além de lhe assessorar burocraticamente. Se tirarmos todas essas informações como verdadeiras, temos aqui um exemplo de como a atuação do Secretário foi fundamental para a articulação do governo e para o estabelecimento do novo tributo. O Secretário não cuidou apenas de assuntos referentes às Minas Gerais e as outras minas à Oeste, mas também de papéis que versavam sobre o Rio de Janeiro e a Colônia de Sacramento, para não falar de outras possíveis regiões que tiveram documentos passando pelo seu crivo, principalmente quando da doença de Gomes Freire. Além dos documentos oficiais, este Secretário tratou de “assuntos secretos” com informantes do governador. Apesar de ser natural do Minho, ele parece ter tido um grande acesso a setores da sociedade mineira, e isto não deve surpreender, dado que a grande maioria dos habitantes da região eram reinóis. Esta questão se aproxima de alguns tópicos levantados por Diego do Couto3716 em sua obra “O Soldado Prático”, onde se afirma que os Secretários de Governo que

3710

Não só destas duas capitanias. No auge de seu governo Bobadela chegou a governar toda a chamada “Repartição Sul” que compreendia boa parte do que hoje denominamos Centro-Oeste, Sudeste e Sul, incluindo a Colônia de Sacramento, parte o lugar atual, a qual ele foi o embaixador português do Tratado de Madri naquelas partes. 3711 RIBEIRO, Mônica da S. “Razão de Estado”...op. cit. 3712 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.; Fundação Alexandre de Gusmão - Funag (MRE) / Imprensa Oficial (SP), São Paulo, 2006 3713 AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 31, Doc.: 91 e AHU – Cons. Ultram. – Brasil/MG – Cx.: 34, Doc.: 81 3714 Idem. 3715 Idem. 3716 COUTO, Diogo do. O Soldado Prático. Apud. PUNTONI, Pedro. Bernardo Vieira... op. cit.

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ISSN 2358-4912 atuavam na Índia, já no século XVI, deveriam ter um bom transito na sociedade local, para poderem se informar sobre os negócios que corriam e sobre como as pessoas viam o governo. Na mesma carta acima citada, Machado pede licença para ir ao reino, com a anuência de Gomes Freire, que concomitantemente pede para que Machado seja nomeado oficialmente pelos seus grandes serviços. Após isto há várias certidões, de diferentes figuras, confirmando seus valiosíssimos serviços e mostrando seu bom relacionamento com os membros da governança. De acordo com Caio Boschi, a ida de Machado para Portugal foi feita pelo sertão em direção à Bahia por ordem de Martinho de Mendonça Pina e Proença. No caminho ele deveria informar-se sobre os motins que se gestavam neste vasto interior. Em Lisboa o mesmo teria falado em viva voz, relatando a situação da região para o Secretário de Estado e de Domínios Ultramarinos3717. É de se surpreender a quantidade de atividades, referendadas, que em pouco mais de um ano Machado realizou. Quando Sousa Machado retornou de Portugal, este não respondia apenas como Secretário do Governo das Minas, mas também se apresentava como Secretário do Rio de Janeiro. Isto ocorreu ao menos duas vezes, em 17453718 e em 17463719. Portanto, sabemos que sua atuação se deu ao menos por dez anos, com interrupções, e com elogios constantes de Andrada. A pesquisa realizada no mestrado contou com outros exemplos de Secretários que se aventuraram em arriscadas missões, e que se envolveram em conflitos e discussões diversas, ressaltando assim a importância do cargo, o que por outro lado nos fez estranhar o fato de termos poucos estudos sobre estes “burocratas”. Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000. ANASTÁCIA, Carla. Vassalos rebeldes – violência coletiva nas Minas na primeira metade do séc. XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. _____________ “Conflitos de jurisdição e violência nos sertões da comarca do Rio das Mortes (Minas Gerais)”. Revista Politéia, Vitória da Conquista/BA, v. 1, p. 140-152, 2003. ARANCIVIA, Eduardo Torres. “El problema historiográfico de la corrupción en el antiguo régimen: una tentativa de solución.” In: Summa Humanitatis: Revista electrônica Interdisciplinaria del Departamento de Humanidades. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú. Vol 1, No 0 (2007). BICALHO, Maria Fernanda. “Inflexões na Política Imperial de D. João V” Anais de História do Além Mar, Vol. VIII, Lisboa, 2007 ____________ “As Tramas da Política: Conselhos, Secretários e Juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos.” In: GOUVÊA, Maria de Fátima S.; FRAGOSO, João. (Org.). Nas Tramas das Redes. Política e Negócios no Império Português. Séculos XVIXVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. ____________ “Centro e periferia: pacto e negociação política na administração do Brasil Colonial” In Leituras: Revista de Biblioteca nacional, nº 6, Primavera, 2000, pp. 17-39. ____________ A cidade e o império. O Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BICALHO, Maria Fernanda B & FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar: Idéias e práticas políticas no Império Português séculos XVI a XIX. 1ª ed., São Paulo: Alameda Editorial, 2005. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra: No Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1721 3717

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“VIRTUOSOS E MUITO AMADOS DE TODO AQUELE POVO E DOS ÍNDIOS”: JESUÍTAS, ÍNDIOS, OFICIAIS E AUTORIDADES RÉGIAS NA CAPITANIA DE PORTO SEGURO (1624-1654) Uiá Freire Dias dos Santos3720 A política indigenista do período colonial, delineou-se a partir de dois tipos de índios determinando a legalidade ou não da escravidão. Seriam eles: 1) Índios colaboradores ou amigos – aqueles que aceitam a política de aldeamento e 2) Os índios inimigos – considerados bárbaros e selvagens, não aceitam os aldeamentos rebelando-se, sendo passíveis de escravização por guerra justa. As “causas de guerra justa seriam a recusa a conversão ou o impedimento da propagação da fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados portugueses e a quebra de pactos celebrados” (PERRONE-MOISES, 1992, p.123). É nessa conjuntura que passa a ser essencial a ação dos missionários da Companhia de Jesus com a política de catequese e civilização dos índios que de missões volantes no inicio do projeto passa a constituir aldeamentos com o objetivo de adaptar os íncolas à condição de colaborador e mão de obra preparada para o projeto de colonização. A proposta é, certamente, perfeita para os interesses da colonização, pois ofereceria mão de obra capaz, desvendar o desconhecido, oferecendo conhecimentos etno-botânicos, territoriais, alimentares e culturais a baixo custo além de contribuir para a realização do outro objetivo do mesmo projeto: a expansão da fé cristã. A chegada de Jesuítas a Capitania de Porto Seguro acompanha a vinda dos primeiros jesuítas que desembarcaram com o padre Manuel da Nóbrega em Salvador no ano de 1549. A partir do trabalho em missões volantes os padres realizam contato não só com as tribos de matriz tupi do litoral como avançam aos sertões da capitania entrando em contato com diversos grupos macrojê que o habitavam. Após o reconhecimento e realização de missões volantes, os missionários fundam aldeias na Capitania sendo duas as que continuarão até a expulsão dos inacianos pelo diretório pombalino na segunda metade do século XVIII: são eles a aldeia Patatiba (atual distrito de Vale Verde) e a de São João - atual distrito de Trancoso. (CANCELA, 2012, p. 69-70). Na Capitania de Porto Seguro, no final do século XVI, após sérios conflitos os inacianos são expulsos. Entre denuncias o governador Gaspar Curado que restringiu o acesso dos padres as aldeias atendendo a pressão dos colonos e o provincial da companhia Marçal Beliarte que denuncia o governador ao santo ofício por impedir a expansão da fé o conflito atinge o auge em 1590. Gaspar Curado, denunciado ao Santo Ofício é preso. Retomando o seu posto, “intensificou as medidas que limitavam o acesso dos padres às aldeias indígenas, tornando a presença da Companhia de Jesus insustentável em Porto Seguro, cuja retirada foi oficializada em 1602” (CANCELA, 2012, p. 70). A saída dos missionários abre espaço a grandes investidas de captura de índios nos sertões decretando-se guerra justa aos Aimorés em 1597. Em resposta, os índios promovem violentos ataques a Capitania promovendo um cenário de pânico e destruição. Seguindo a argumentação de Francisco Cancela, baseado em carta transcrita por Serafim Leite, pode-se considerar que o estado de destruição e o clima de medo levaram os moradores a clamarem pelo retorno dos missionários. Segundo ele: Amedrontados, os moradores da capitania enviaram um requerimento ao provincial da Companhia de Jesus no dia 20 de Junho de 1620, no qual peticionaram o retorno dos jesuítas a Porto Seguro. Segundo o documento transcrito por Serafim Leite, os moradores acreditavam que a presença dos jesuítas na capitania poderia contribuir para apaziguar aos discordes e ainda promover grande paz e quietação com os indígenas. Para facilitar o

3720

Graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Bolsista da CAPES. Contato: [email protected].

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ISSN 2358-4912 retorno dos padres, as autoridades e os colonos se comprometiam em sustentar os jesuítas e garantir o direito deles administrarem as aldeias dos índios aliados. (2012, p. 71).

No natal de 1621 os jesuítas retornam a capitania, fundam uma Residência da Companhia de Jesus que recebeu o nome de Casa de São Salvador e “conquistando em 1634 a doação de sesmarias para a refundação dos aldeamentos de São João e Espírito Santo, localizados nas proximidades da vila de Porto Seguro” (CANCELA, 2012, p. 71-72). Assim, o trabalho de colaboração com o projeto colonial a partir da catequese e constituição de índios educados e habilitados em ofícios para trabalhar nas demandas da capitania continuaria. Por outro lado, os aldeamentos serviriam de contenção militar aos ataques de índios bravios do sertão. Podemos concluir, então, que a “questão indígena” sempre foi imprescindível ao avanço do projeto de colonização da Capitania de Porto Seguro. A incorporação da Coroa Portuguesa pela monarquia hispânica (1580) inseriu os domínios portugueses na América no contexto de guerra entre a Espanha e os países baixos. No seio dos conflitos, cresce também o interesse no comércio Atlântico e a partir da segunda década do século XVII ocorre o acirramento dos conflitos culminando com a invasão da Bahia em 1624 e posteriormente a ocupação holandesa no Nordeste (1630 – 1654). Dificultando o comércio, “atingiam a infraestrutura colonial, e as incertezas do negócio fizeram desabar o preço do açúcar, obrigando fazendeiros a abandonar os seus engenhos”(SCHWARTZ, 2011, p. 97). Todo esse processo levou a uma desaceleração da economia causando um impacto negativo ao processo de colonização. No quadro europeu, a primeira metade do século XVII é marcada por uma crise geral que atingiu várias esferas destacando-se a depressão no comércio, declínio do poder castelhano e a abertura para a disputa entre os seus rivais. Nesse sentido, “no desenrolar da decadência ibérica e do rearranjo do comércio, desencadeou-se a corrida pela expansão colonial, o esbulho do império formado pela união dinástica de 1580” (LENK, 2009, p. 1). O contexto de guerras e a valorização das matas de Porto Seguro Em 1624, ano da invasão da Bahia pelos holandeses, o provedor-mor do Brasil, Pedro Viegas Giraldes, recebe carga de pau-brasil da Capitania de Porto Seguro e envia amostras ao monarca. Em carta, afirma que em hua caravella e dois pataixos que agora partem pera essa cidade de que são mestres, Simão Rodrigues, e Jacome Gonçalvez Santiago, e Manoel Andre (Varejao) carreguey sento e dez quintais de pao Brazil como consta do conhecimento que aqui vão do que comprei a Amrique Antunes que são trezentos e setenta e quatro quintais, o qual tenho já todo embarcado custou cada quintal quinhentos e quarenta reis asistindo ao dito preço delle a procurador da fazenda e mais ofissiais della de que aquy hay a conta do dito custo e despeza que fez. As amostras do pao desta cappitania que é do limite aonde acabão a cachoeyra entreguey aos ditos mestres em dous rollos pera que Vossa Magestade La a mande fazer a experiência e sendo bom se possa carregar em cantidade e assy se podera 3721 escuzar vir de outra parte e com menos custo e despesa .

A carta enviada pelo provedor-mor do Brasil atesta a mobilização e interesse do Governogeral em estabelecer um fluxo mais constante da exploração madeireira a partir de Porto Seguro. Nesse caso, ao mencionar a possibilidade de extração e envio de pau-brasil com menos custo e despesa, o provedor-mor deixa transparecer a importância da capitania para o fornecimento de madeira com mais viabilidade. Essa movimentação de embarcações na capitania e o interesse percebido pelos moradores refletiram a nível local na organização dos oficiais da câmara no sentido de garantir os seus interesses na atividade. Medidas são tomadas no sentido de oficializar o preço por quintal de madeira e, ao que parece, houve uma valorização do preço do produto na fonte. Nesse sentido, solicitou-se ao 3721

CARTA do provedor-mor do Brasil, Pedro Viegas Giraldes para S. Magde sobre pau brasil que se embarcou para o reino. Bahia, 26 de Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx. 3, Doc. 307

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ISSN 2358-4912 capitão mor Manoel de Miranda Barbosa e aos moradores juntos se assinar sobre o pau Brasil que está feito (...) se fizer e responder a uma carta do provedor mor que trata sobre o preço dele a qual fui dando a câmara e acordaram com o dito capitão mor e oficiais contentaram que o pau-brasil o dariam por preço de duas patacas3722 forras por quem o 3723 fizer nas barras dos rios donde quer que se fizer nesta capitania .

Os oficiais da Capitania de Porto Seguro justificam o preço alto em função da distancia elevada que precisavam percorrer para encontra as árvores e os perigos dos ataques de aimorés. O provedor-mor do Estado do Brasil, por sua vez, reclama e considera o preço excessivo solicitando, então, que o provedor da fazenda de Porto Seguro e os oficiais da câmara sejam repreendidos alegando a falta de liberdade dos moradores para venderem o pau-brasil ao preço que quiserem. Mesmo com as queixas os provedor-mor do Brasil só consegue comprar o pau-brasil na capitania por 540 réis o quintal. O montante total de 340 quintais transacionados custou um total de duzentos e três mil seiscentos e oitenta réis levando-se em consideração o custo de mil setecentos e vinte réis gastos com o transporte da madeira até o porto no litoral3724. As queixas apresentadas acima revelam uma das dimensões do conflito envolvendo a atividade extrativista. O estabelecimento dos preços pela câmara da capitania e a tentativa de imposição do controle dos mesmos por parte do Governo-geral criam uma situação instável forçando sempre negociação e habilidade política das autoridades régias para a consecução de seus objetivos. Até o ano de 1625 o contrato de estanco do pau-brasil ainda não havia sido arrendado fazendo com que a Coroa concedesse o privilégio da atividade extrativista de pau-brasil a Companhia de Jesus. Em carta régia o monarca argumentou que, para evitar os inconvenientes e descaminhos que se fazem no corte do pau-brasil até se embarcar para esse reino, seria conveniente encomendar aos religiosos da Companhia de Jesus o corte do dito pau, e o carreto e guarda dele até se embarcar nos navios que o trazem, e que não haveria inconveniente em se encarregarem desta matéria visto ser devido a boa conservação das matas e bem comum daquele estado e melhor tratamento dos índios que 3725 tem a seu cargo .

Essa medida buscava driblar os conflitos centrando a atividade no uso da mão de obra indígena dos aldeamentos jesuíticos, embarcações e, contando com a cooperação dos padres da Companhia, uma diminuição nos preços pagos pela madeira. O contexto da Restauração Bragantina, provoca reflexos na Capitania de Porto Seguro no que diz respeito a casa ducal, então detentora da capitania. O envolvimento de D. Afonso na defesa de Castela fez com que os bens da casa ducal fossem incorporados pela Coroa Portuguesa. Logo, na década de 1640, Porto Seguro estava sob o controle direto do Governogeral numa segunda intervenção do Estado na capitania3726. Numa consulta do Conselho Ultramarino consta a notícia da viagem um pouco complicada de Paulo Barbosa a Porto Seguro carregado de fazendas para a feitoria real na capitania. A carga tinha como principal finalidade a compra de pau-brasil e envio sob as custas da fazenda real3727. Aconteceu que o capitão arribou em Setúbal corrido de inimigos. Após chegar a Setúbal “se mandou vir o capitão a esta cidade 3722

Pataca – moeda de prata ($300 e $320). TERMO DO ASSENTO que os oficiais da Câmara fizeram com os moradores de Porto Seguro, sobre o preço do pau brasil. Bahia, 26 de Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx 06, Doc. 311. 3724 CUSTO de 374 quintais de pau brasil embarcado. Bahia, Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx. 03, Doc. 312. 3725 CAPÍTULO DE CARTA RÉGIA sôbre o corte do pau brasil. Bahia, 25 de fevereiro de 1625. AHU_ACL_CU 005, Cx. 3, Doc. 348. 3726 Entre 1550 e 1554 a ausencia do primeiro capitão-donatário Pero do Campo Tourinho, preso e enviado ao reino pelo tribunal da inquisição, fez com que a capitania ficasse sob o governo interino de Duarte de Lemos. 3727 Nesse momento a Coroa assume novamente a administração direta do pau-brasil. 3723

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ISSN 2358-4912 [Lisboa] para lhe fazer a saber levar no dito navio as pessoas que nesta cidade estão para ir a Bahia e dali Angola na forma das ordens recebidas de Vossa Magestade”3728. Oficiais, Capitão, Padres e Pau-Brasil: negociações e conflitos Estando em Setúbal Paulo Barbosa é substituído por Nicolau de Brito que passaria então ao cargo de capitão-mor de Porto Seguro. Barbosa, por sua vez, pede para ser restituído no cargo ou melhorado em outro. Após avaliação, o Conselho Ultramarino resolve devolver o cargo ao suplicante. O parecer faz a seguinte consideração: [Nicolau de Brito] não tem a experiência que é necessária para ser capitão de mar e guerra deste navio nem noticiadas partes do Brasil a que não tem ido, e modo como se há de haver com o gentio para boa administração do pau como tem o superintendente Paulo Barbosa por saber a língua do gentio, e haver lidado com ela por muitos anos, e haver servido de capitão-mor na cidade de Sergipe que são as considerações porque esse conselho o 3729 nomeou

Analisando os critérios adotados pelo Conselho para conferir a renomeação de Barbosa, a sua habilidade com a língua geral e a experiência no seu uso é fundamental para a realidade da Capitania de Porto Seguro. Sendo o trabalho escravo de africanos quase nulo, o uso da mão de obra indígena e a habilidade na comunicação com os índios era de fundamental importância no sentido de melhor negociar o trabalho indígena. Resolvida a questão, o capitão parte de Setúbal no dia 29 de dezembro de 1644, parte para a Capitania de Porto Seguro chegando ao porto de Coroa Vermelha na quarta-feira de cinzas. Contudo, a questão central para o sucesso do empreendimento extrativista é a mão de obra indígena e, sobretudo, a sua intermediação pelos pares da Companhia de Jesus. Sobre o assunto, na mesma carta, avisa que “se houver de fazenda a quantidade de pau é necessário que V.Magde mande aos padres da Companhia senão metam entendam como os índios das aldeias desta capitania por que sem isto senão pode fazer nada que eles os não dão a tempo e os que dão são os piores”3730. Continuando, pede uma ordem do monarca para “que os barcos dos padres que entrarem nesta capitania me deem entrada e saída por que o não fazem e se eu não souber quando entram e saem poderão carregar de pau a quantidade que quiserem”3731. A evidente situação de conflito fica bastante clara a partir da declaração de Barbosa afirmando que nesta vila há hua igreja com hua caza em que asiste hu padre da companhia (...) mais soldado e mercador que religioso, agora assiste um Mathias Gonzales natural da ilha da madeira com titulo de superior que tem procurado por todas as vias que pode estorvar a carga desta nao, metendo em cabessa a esta pobre gemte que avião de acabar com o governador da Bahia me mandasse hir daqui e que o comtrato do pao que tinha avizo que v.mgde lho tinha ia (...) a elles e que lhe avião de pagar melhor que eu, com que fizerão com augus que o tinhao na barra grande cantidade de pao lo não desem e mandei deser outro que me custou emfenito e com o favor de deos partira a nao, que pª o serviso de v.mgde sei eu 3732 romper por mai hores defeculdades

3728

CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a vinda para Lisboa, por ordem do Conselho, do Capitão Paulo Barbosa, arribado a Setúbal. Lisboa, 17 de Setembro de 1644. AHU_ACL_CU 005, Cx. 09, Doc. 1083. 3729 CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre o capitão Paulo Barbosa, que nomeado capitão-mor, ouvidor e administrador do pau brasil da capitania de Porto Seguro, arribara a Setubal por causa do mau tempo e foi por isso destituído e dado lugar a Nicolau de Brito; pede para ser restituído ou melhorado em outro posto, para não pereça sua honra e crédito. Lisboa, 31 de Outubro de 1644. AHU_ACL_CU 005, Cx. 09, Doc. 1082. 3730 Idem 3731 Idem 3732 Idem.

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ISSN 2358-4912 Trata-se de uma disputa pelos direitos de exploração da madeira. O contexto difícil de diminuição da população, fracasso da implantação da indústria açucareira, mão de obra intermediada pelos jesuítas e, de certa forma, limitada criou um cenário em que o pau-brasil passou a ser a atividade com maior possibilidade de lucro. A condição de monopólio régio do pau-brasil acentua esse quadro composto por queixas e amotinações por parte dos moradores e forçando a administração da Coroa habilidade política, negociação e repressão. Pouco após a sua chegada na capitania, é lançado um bando, afixado em locais públicos determinando que os moradores declarassem e vendessem todo o pau-brasil derrubado e estocado ou em sítios3733. Certamente, a forma como se deu o lançamento e a condução do bando não demonstra muita habilidade de negociação do capitão-mor implicando grande resistência por parte do envolvidos na atividade. A partir do documento construímos uma tabela com o objetivo de sintetizar as informações e melhor visualizar as principais pessoas envolvidas na atividade, o montante de madeira em quintais e a sua localização (ver anexo). De todos os nomes da lista é interessante destacar a participação direta dos padres da companhia de Jesus na atividade extrativista de pau-brasil. Um importante nome, detentor de 100 árvores e mais 130 quintais estocado, é o reverendo superior Mathias Gonzales que é um dos principais envolvidos no conflito com Paulo Barbosa. Outro nome importante é o do oficial da câmara e provedor da fazenda Pedro Cerqueira da Veiga. Cerqueira da Veiga já havia sido capitão-mor e ouvidor de Porto Seguro e é um dos principais denunciantes das ações de Barbosa. Seguindo a lista temos: Gaspar de Oliveira Vidigueira – cunhado do licenciado de Porto Seguro, Antonio Cordeiro-; Manuel de Miranda Barbosa – capitão-mor de Porto Seguro em 1624 -; Agostinho Coelho – capitão-mor da povoação do Rio das Caravelas – e alguns nomes como os Pina e Amorim são ligados a funcionários da administração na capitania ou oficiais da câmara. A partir dessas considerações, buscamos perceber a relação entre ocupantes de cargos públicos e pessoas com certa influência na capitania com o negócio do pau-brasil. As rixas entre funcionários da administração, magistrados e outras personalidades era bastante comum. Esses desentendimentos “às vezes degeneravam em batalhas pessoais e institucionais”(SCHWARTZ, 2011, p. 54). Tal situação poderia advir de “jurisdições mal definidas, intencionalmente encorajadas pela coroa para impedir o excesso de autonomia, ou [...] eram falhas acidentais do sistema de administração”(SCHWARTZ, 2011, p. 54). O fato é que essa realidade demandava uma administração contemporizadora que sem perder de vista os seus objetivos entendesse, dentro do jogo político, a necessidade de negociação. Em outra carta, Paulo Barbosa argumenta que os padres da Companhia de Jesus atrapalham o trabalho dificultando o acesso a mão de obra dos índios das aldeias e até sugere a Vossa Magestade “mandar aqui navios em direitura que pode vir por Cachéu ou Cabo Verde e trazerem negros ate a quantidade de quarenta peças com que se compre o pau”3734. Mercadoria valiosa e em falta, os “negros de guiné” não seriam usados pelo capitão e sim pelos moradores com o objetivo de quebrar o domínio jesuítico. Assim, na linha de frente de confronto está o reverendo superior Mathias Gonzales que em petição pede que o repreenda: Diz o padre provincial da Companhia de Jesus da Província do Brasil, que Paulo Barbosa capitão-mor da vila de Porto Seguro da mesma província se tem mostrado inimigo dos religiosos da companhia dizendo contra eles muitas afrontas em lugares públicos e secretos chamando-lhe sismáticos, dizendo que os sujeitos q a religião mandava naquela vila e a outras vilas pequenas eram velhacos amancebados com outros defeitos, e que estavam muito mal quistos no Brasil, e com V.Magde e quanto mais cedo os havia V.Mgde. mandar excluir deste reino, e da dita província e que alteravam os índios das aldeias, e que ele lhas havia de tirar, persuadindo aos (maiores) da dita vila que os deitassem fora e que ele era

3733

O termo “em sítios” aparece na documentação como referencia as árvores ainda não derrubadas. CARTA do capitão da nau Santo Antônio, de Aveiro, ao rei [D. João IV] dando conta do carregamento de pau-brasil na nau Santo Antonio, de Aveiro. Porto Seguro, 20 de Setembro de 1648. AHU_ACL_CU 005, Cx. 01, Doc. 78. 3734

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ISSN 2358-4912 melhor lingua para os índios que os padres da companhia e que os padres aconselhavam os 3735 homens que não vendessem o pau que V.Mgde. mandava fazer .

Fica uma vaga impressão de que o Conselho Ultramarino não ficaria insatisfeito caso o capitão-mor obtivesse sucesso em seu objetivo de quebrar a intermediação da mão de obra indígena representando um enfraquecimento político dos jesuítas e a diminuição da participação destes no negócio do pau-brasil. Provavelmente, o critério utilizado em empossar e enviar um capitão que dominasse a língua geral explicasse esse intento facultando, a depender de um novo arranjo político, um maior controle da Coroa sobre a atividade. Todavia, o que parece ser mais evidente é que os jesuítas tiveram uma grande habilidade política e conseguiram tecer uma forte aliança a partir da coadunação de interesses entre eles e os oficiais da câmara. Os oficiais se pronunciam em defesa dos inacianos elaborando e enviando um representação contra Paulo Barbosa onde afirmam que [Paulo Barbosa] brada a todos com pouco respeito e palavras desonestas e manifestamente diz nos há de fazer por força o que for seu gosto e bem ou ai mostrando que por lhe não querermos assinar uma certidão como ele queria a uns nos prendeu e a ambos suspendeu o mor sentimento que nos fica e o mal que vai usando com os padres da Companhia tratandoos muito mal e querer os lançar fora desta capitania que ia eles vendo se tão oprimidos queriam largar esta casa que há muitos anos tem esta capitania se este povo não atenderá a isto com muitas lagrimas tendo q’ M Esta capita não temos ao prazente em seo bem senão a e (...) podemos dizer a V.Mgde q’ por boa couza asois tem aqui estes nostos moradores e co’ 3736 a destruisao q’ fazem aos índios e a (deixar) esta terra em pax .

Descortina-se, então, o grande mérito atribuído aos jesuítas na capitania. Segundo a petição dos oficiais, os padres da Companhia teriam sido indispensáveis para o restabelecimento da paz após a suposta destruição da capitania depois dos ataques indígenas. Associado aos interesses econômicos na atividade extrativista, os inacianos souberam aproveitar politicamente a sua ação em Porto Seguro. O governador do Estado do Brasil, se pronuncia e ordena que Paulo Barbosa “se emede e respeite aos padres [e] se escreva a Paulo Barbosa q’ trate aqueles moradores com cortesia e justiça e que tenha o respeito devido aos padres porque do contrário Le acusa V. Magde por desserviço”3737. A atitude do governador pode representar um quadro paradoxal. Contudo, se observarmos o contexto em que se deram os conflitos a resposta de Antonio Teles da Silva pode ser bem compreendida. Concordando com Krause (2012), Nestes anos, a recém-entronada dinastia bragantina guerreava em várias frentes para preservar seu reino e seu Império, inclusive a América Portuguesa, ao mesmo tempo em que buscava reforçar os laços com a nova dinastia, num contexto de muita fragilidade, tanto interna quanto externamente (KRAUSE, 2012, p. 24).

Temos, pois, que, para com o objetivo da manutenção da América Portuguesa um período “no qual a negociação, a tolerância e a concessão de mercês pela monarquia bragantina foram a estratégia geral adotada” (COSENTINO, 2014, p. 147). 3735

PETIÇÃO do provincial da Companhia de Jesus, queixando-se do capitão Paulo Barbosa, seu inimigo, que o injuriou e lhe tirou os índios, e chamou os padres da mesma Companhia sismáticos e velhacos; pede que se proceda contra ele. Vila de Nossa Senhora da Pena, 23 de Agosto de 1645. AHU_ACL_CU 005, Cx. 10, Doc. 1136. 3736 REPRESENTAÇÃO que os oficiais da Câmara de Porto Seguro fazem contra o capitão Paulo de Barbosa, feitor do pau brasil, que os trata mal, e persegue os padres da companhia e se irmanou com o seu vigário, clérigo degredado pelo Santo Ofício e por uma morte, etc. Vila de Nossa Senhora da Pena, 23 de Agosto de 1645. AHU_ACL_CU, Cx. 10, Doc. 1134. 3737 CARTA do governador Antonio Teles da Silvapara os oficiais da Câmara de Porto Seguro, sobre as queixas que estes fazem contra Paulo Barbosa feitor do pau-brasil, que chegou a prender aqueles oficiais pelo que repreendeu e mandou soltá-los. Bahia, 3 de Julho de 1645. AHU_ACL_CU 005, Cx. 10, Doc. 1135.

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ISSN 2358-4912 O final da trama releva-se complicado para Paulo Barbosa. A querela envolvendo feitor mor, oficiais da câmara, jesuítas e o provedor da fazenda renderá um pedido de devassa por parte de sua majestade para as duas partes como consta numa carta para o então governador Antonio Telles da Silva: vendo o que me escreveste em desenove de Fevereiro do presente ano de seiscentos e quarenta e seis, a carta das queixas que por parte do povo da capitania de Porto Seguro se vos representaram do procedimento do capitão Paulo Barbosa a que procuraste reduzir para que tratasse àquelles moradores com suavidade, e brandura, e encaminhá-los a obediência com que se lhe haviam de sujeitar, não sendo bastantes uns e outros para se conformarem, como era justo, chegando o negócio a estado que vô-lo remeterem preso com as culpas que os obrigou a êste excesso, do qual tínheis mandado devassar, para da resulta dele me dares conta;me pareceu dizer-vos que andastes acertado em mandar tirar a devassa referida para se apurar a verdade no caso de Paulo Barbosa, mas devereis também mandar ir a essa praça as pessoas que foram a causa desse motim, e que o prenderam sem ordem 3738 vossa” .

O exercício do mando pode, em muitas ocasiões, parecer contraditório, todavia, é necessário pensar a sua dimensão política a partir do misto entre força e relação convencimento/consentimento. Considerações finais A atuação da Companhia de Jesus está inserida os quadros de conquista da América Portuguesa complementando e justificando suas faces econômicas e militares. Não obstante, essas mesmas faces assumiram dinâmicas próprias e às vezes paradoxais. Certamente, as dificuldades impostas pela dinâmica da colonização da Capitania de Porto Seguro na primeira metade do século XVII conformaram arranjos políticos semelhantes e peculiares com relação às demais capitanias. A grande dependência da mão de obra indígena e da atividade extrativista de pau-brasil proporcionaram, nesse contexto, uma forte aliança entre oficiais e jesuítas e índios. Referências Documentos Impressos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional – DHBN Cartas Régias, Códice I – 4, 3, 56 da B.N, pg. 323. Documentos Manuscritos Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate) – Coleção Luísa da Fonseca CAPÍTULO DE CARTA RÉGIA de 14 de Setembro de 1611 sôbre a administração do pau-brasil correr pela fazenda real e por oficiais postos para isso. Bahia, 14 de Setembro de 1611. AHU_ACL_CU 005, Cx. 1, Doc. 23. CARTA do provedor-mor do Brasil, Pedro Viegas Giraldes para S. Magde sobre pau brasil que se embarcou para o reino. Bahia, 26 de Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx. 3, Doc. 307 CARTA do provedor-mor do Brasil, Pedro Viegas Giraldes para S. Magde sobre pau brasil que se embarcou para o reino. Bahia, 26 de Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx. 3, Doc. 307 CUSTO de 374 quintais de pau brasil embarcado. Bahia, Março de 1624. AHU_ACL_CU 005, Cx. 03, Doc. 312. CAPÍTULO DE CARTA RÉGIA sôbre o corte do pau brasil. Bahia, 25 de fevereiro de 1625. AHU_ACL_CU 005, Cx. 3, Doc. 348. CARTA do governador do Brasil Antônio Teles da Silva, para S. Magde. sobre a falta de escravos de Angola e de dinheiro de prata, pedido que fez para se levantar o preço das patacas e bater 3738

Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, Cartas Régias, Códice I – 4, 3, 56 da B.N, pg. 323.

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ISSN 2358-4912 moeda de prata dos moradores, negócio do pau brasil dos jesuítas, comércio que procura com os castelhanos do Rio da Prata, etc. Bahia, 30 de Janeiro de 1643. AHU_ACL_CU 005, Cx. 09, Doc. 1002. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a vinda para Lisboa, por ordem do Conselho, do Capitão Paulo Barbosa, arribado a Setúbal. Lisboa, 17 de Setembro de 1644. AHU_ACL_CU 005, Cx. 09, Doc. 1083. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre o capitão Paulo Barbosa, que nomeado capitãomor, ouvidor e administrador do pau brasil da capitania de Porto Seguro, arribara a Setubal por causa do mau tempo e foi por isso destituído e dado lugar a Nicolau de Brito; pede para ser restituído ou melhorado em outro posto, para não pereça sua honra e crédito. Lisboa, 31 de Outubro de 1644. AHU_ACL_CU 005, Cx. 09, Doc. 1082. CARTA do capitão Paulo Barbosa, feitor do pau-brasil da capitania de Porto Seguro, para S. Magde., dando conta da sua viagem desde Setubal, a 29 de Dezembro de 1644, Ilha de Madeira até a Bahia, onde chegou até a véspera de Entrudo, e informando do negócio, de coisas da terra, das qualidades de madeiras, etc. (Cópia) S.d.n.l. AHU_ACL_CU, Cx. 10, Doc. 1160. CARTA do capitão da nau Santo Antônio, de Aveiro, ao rei [D. João IV] dando conta do carregamento de pau-brasil na nau Santo Antonio, de Aveiro. Porto Seguro, 20 de Setembro de 1648. AHU_ACL_CU 005, Cx. 01, Doc. 78. PETIÇÃO do provincial da Companhia de Jesus, queixando-se do capitão Paulo Barbosa, seu inimigo, que o injuriou e lhe tirou os índios, e chamou os padres da mesma Companhia sismáticos e velhacos; pede que se proceda contra ele. Vila de Nossa Senhora da Pena, 23 de Agosto de 1645. AHU_ACL_CU 005, Cx. 10, Doc. 1136. REPRESENTAÇÃO que os oficiais da Câmara de Porto Seguro fazem contra o capitão Paulo de Barbosa, feitor do pau brasil, que os trata mal, e persegue os padres da companhia e se irmanou com o seu vigário, clérigo degredado pelo Santo Ofício e por uma morte, etc. Vila de Nossa Senhora da Pena, 23 de Agosto de 1645. AHU_ACL_CU, Cx. 10, Doc. 1134. CARTA do governador Antonio Teles da Silvapara os oficiais da Câmara de Porto Seguro, sobre as queixas que estes fazem contra Paulo Barbosa feitor do pau-brasil, que chegou a prender aqueles oficiais pelo que repreendeu e mandou soltá-los. Bahia, 3 de Julho de 1645. AHU_ACL_CU 005, Cx. 10, Doc. 1135. Bibliografia ACCIOLI, I. AMARAL. B. Memórias históricas e políticas da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial, 1919. v. 1. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 221 – 231. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: O cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: EDUSP, 2004. CANCELA, Franciso. De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro. Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia – PPGH, Salvador, 2012. COSENTINO, Francisco Carlos. Mundo portugues e mundo ibérico. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) O Brasil Colonial. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 138. KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641 – 1683). São Paulo: Anablume, 2012. LENK, Wolfgang. A idade de ferro da Bahia: guerra, açúcar e comércio no tempo dos flamengos, 1624 – 1654. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. Campinas, 2003. LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exercito, fiscalidadee administração colonial na Bahia (1624 – 1654). Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Economia. Campinas, SP: 2009. MELLO. Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste (1630 – 1654).

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ISSN 2358-4912 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista no período colonial. In: CUNHA, Mª Manuela C. da. (org) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/SMC, 1992 SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609 – 1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SIQUEIRA, Maria Isabel de. Considerações sobre ordem nas colônias: As legislações na exploração do Paubrasil. In: Revista Clio, 2011. Anexo Tabela: Moradores com pau-brasil estocado, sua localização e quantidade. Nome Gaspar de Oliveira Vidigueira

Localização Cachoeiras do Rio Grande

Manoel Lopes com Pedro Cerqueira

Acima das cachoeiras do Rio Grande Acima das cachoeiras do Rio Grande Cachoeiras do Rio Grande

Simão Barbosa com Antonio Soares Domingos da Costa com Simão Barbosa Matheus Alvares

Quantidade em quintais ou árvores 1.000 quintais + 300 com os padres da Companhia de Jesus 150 quintais 100 quintais 140 quintais 100 quintais 70 árvores 500 árvores

Antonio Malheiro Pereira

Rio do Frade Rio da Vila3739 Acima das cachoeiras do Rio Grande Barra do Rio Grande

Gaspar Borges de Novais

Rio desta Vila

Paulo da Fonseca Amorin

Rio Grande abaixo das cachoeiras Pé da cachoeira do Rio Grande Rio desta Vila

500 árvores derrubadas + 400 quintais com Domingos Rodrigues 40 quintais

Manoel de Miranda Barbosa

Paulo de Siqueira Francisco de Magalhães com Pedro João Francisco de Magalhães com Antonio Rodriguez B de Faria Daranio de Pina Francisco Gramaxo Rui Coelho de Pina com Pascoal Falcao e Pedro Teixeira Baltazar Luis Belchior Gomes Diogo Correa de Brito Reverendo Mathias Gonzales Amador Penelle Salvador G. Mealhada Gaspar Pires Delgado com Agostinho Coelho Pedro Alvares Pedro Cerqueira Paulo da Fonseca Amorin Manoel Gonçalvez da Silveira Domingos Nunes Peixoto e Diogo Luiz Reverendo Mathias Gonzales

Rio Jucuruçu Rio desta Vila Rio Grande cachoeiras Rio desta Vila

130 quintais

100 quintais 50 árvores 15 quintais

abaixo

das

40 árvores 400 quintais 300 árvores

Rio Grande Rio Grande Rio Grande Rio da Vila Rio da Vila Rio Grande Rio da Villa Rio Mucuri Rio da Vila Aldeia do Espírito Santo Rio de São João na aldeia de mesmo nome

100 quintais 200 quintais 50 quintais 130 quintais 60 árvores 250 quintais 600 árvores + 50 quintais 35 árvores 57 árvores 200 árvores 370 árvores com ordem do reverendo superior

Aldeia do Espírito Santo Não especifica

60 quintais 200 árvores de pau-brasil mirim

Rio da Vila

100 árvores

Fonte: AUTO, bando e declaração de moradores da Vila de Nossa Senhora da Pena, da capitania de Porto Seguro sobre ter de manifestar o pau brasil nos sítios ou derrubado. Junho de 1645. AHU_ACL_CU 005, Cx. 10, Doc. 1161. 3739

O mais provável é que Rio da Vila ou Rio desta vila fazia referencia ao atual Rio Buranhém.

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EM BUSCA DE PRIVILÉGIOS: NOTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO PADRE MANOEL DE ALBUQUERQUE FRAGOSO NO TERMO DO CUIABÁ NO SÉCULO XVIII Vanda da Silva3740 Prestar serviços ao rei e ser remunerados por estas atividades era uma prática comum e fazia parte das relações políticas na sociedade do Antigo Regime. A economia mercês ou da graça implicava um jogo de intenções, palavras e ações estabelecidas entre o poder metropolitano e poder local3741. O sistema de mercês no reino e nas áreas de conquistas portuguesa produzia súditos para a Coroa, gerava laços de lealdade, solidariedade e garantiam a reprodução de uma elite local 3742que muitas vezes defendiam os interesses próprios ou de um grupo. A presente comunicação constitui-se notas de pesquisas sobre a trajetória do reverendo Manoel de Albuquerque Fragoso que se envolveu em uma contenda com os oficias da câmara da vila do Cuiabá após a obtenção de um privilégio local, junto ao governador e capitão-general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Foi por volta de 1772 que o reverendo Manoel de Albuquerque Fragoso chegou ao termo da vila do Cuiabá, para atuar na missão de Santana3743, ingressou na da Irmandade do Rosário dois anos depois3744. Era Natural do arraial de Meia Ponte na capitania de Goiás, onde havia atuado como padre entre os anos de 1766 a 17713745. É bem provável o padre Manoel de Albuquerque Fragoso que veio junto sua família (pais e irmãos) para a capitania de Mato Grosso. Era filho de Antônio da Silva Pereira, advogado provisionado, e dona Mariana de Albuquerque Rolim de Moura naturais da capitania de Pernambuco, moradores de Meia Ponte, capitania de Goiás que migraram para a capitania de Mato Grosso3746. O reverendo Manoel de Albuquerque Fragoso era o segundo filho de Antônio da Silva Pereira e sua esposa. Seu pai além de advogado provisionado foi vereador e juiz de fora por ordenação na câmara da vila do Cuiabá. Quanto aos seus irmãos, Ignácio Albuquerque da Silva tornou-se padre atuando também nesta capitania3747, Antônio da Silva Albuquerque possuía uma extensa ficha de serviços militares, mineiro, dono de engenho e figurava entre os homens que possuíam o maior cabedal na capitania. As suas irmãs foram casadas homens que possuíam engenhos, mineração, fazenda de gado e ocupavam cargos na república. Portanto, era de uma família que figurava entre os principais da terra e participavam de poder local3748. 3740

Universidade Federal da Grande Dourados- UFGD. Email: [email protected] XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. Redes Clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v. 4, p. 381 3742 FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In:ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.) Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. 3743 CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09.VILA DO CUIABÁ BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0042 CAIXA Nº 001. 3744 SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmãos no poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819), p. 71 e 91. 3745 ALENCAR, Adauto. Roteiro Genealógico de Mato Grosso. Cuiabá, MT: ed. do autor, 1999. Volume III.p.15 3746 ANAIS do Senado de Cuiabá 1719-1830. Cuiabá, MT: Entrelinhas: Arquivo de Mato Grosso, 2007.p. 118;ALENCAR, Adauto. Roteiro Genealógico de Mato Grosso. Cuiabá, MT: ed. do autor, 1999. Volume III.p.14 3747 ANAIS do Senado de Cuiabá 1719-1830. Cuiabá, MT: Entrelinhas: Arquivo de Mato Grosso, 2007.p. 132-133. 3748 JESUS,Nauk Maria de . O governo local na fronteira oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela, no século XVIII.Dourados:Ed UFGD,2011. BICALHO, Maria Fernanda Baptista . Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, v. 2, p. 21-34, 2005. 3741

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ISSN 2358-4912 As notícias de sua atuação como padre na capitania de Mato Grosso são esparsas, sabe-se exerceu suas atividades na Missão de Santana até o ano de 1779, foi removido por estar com mais de 47 anos. Esta foi justificativa dada pelo vigário da vara José Correa Leitão ao informar ao governador e capitão general Luís de Albuquerque a situação dos padres que atuavam nas igrejas da capitania3749. De acordo como registro nos anais de Vila Bela desde o final do 1779, e já estava situado nas margens do Rio São Lourenço, no caminho terrestre para capitania de Goiás um local de escala para os viajantes3750. Portanto, no momento em que foi removido da paroquia da Missão de Santana, já estava envolvido em outras atividades. Ao Segundo, o visitador Bruno de Pina, em 1785 ao realizar visitação na capitania de Mato Grosso, ao traçar um perfil dos padres existentes na capitania de Mato Grosso relatou que o dito padre foi ordenado do Rio de Janeiro, as suas letras era a moral e a filosofia. Apesar da sua boa formação pouco subia ao altar para dizer missa e quando o fazia era sofrível. Assim, não utilizava suas capacidades e vivia retirado 30 léguas, ocupado no cultivo de suas terras com grande escravatura.3751 No ano de 1781, o padre Manuel de Albuquerque Fragoso enviou uma longa carta ao governador e capitão geral Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres em que informava as condições do local que habitava. E destacava o seu cuidado em assentar uma povoação e seu estabelecimento nas margens do Rio São Lourenço. Enfatizou o seu trabalho em plantar em “sertão tão estéril”, em fazer ranchos e casas para acomodar as pessoas. Atualmente tinham um avultado número de indivíduos cada um de suas espécies; muitas plantações, grandes roças de milho, muitos quartéis de mandioca, bastante canavial, vários algodões e mamonas, fora outras plantações miúdas necessárias para a estabilidade de uma fazenda ou povoação. Além das atividades agrícolas também possuía criação de gado miúdos”3752. Assim, relatava as suas atividades, bem como, a importância de fundar uma povoação e estabelecimentos no local. A povoação contribuía para a manutenção do caminho terrestre que ligava Cuiabá a capitania de Goiás, além de socorrer os viajantes que por ali circulavam. É importante ressaltar que o caminho terrestre de Cuiabá a Goiás foi aberto em 17363753. Era um meio de comunicação para a capitania de Mato Grosso, por onde entravam os comerciantes vindos de diferentes capitanias (escravos, gado), oficias da administração governadores e também por onde transitava o correio do ouro que trazia o subsídio de ouro de Goiás (contribuição de 8 arrobas enviadas a capitania de Mao Grosso para a manutenção da fronteira Oeste) 3754. Sabendo da importância do caminho, o padre relatou ao governador os seus feitos, mais principalmente seus gastos para a manutenção do lugar. Informava que tinha um gasto de cerca de 700 oitavas de ouro, este valor era gasto com os salários dos feitores, arrieiros, camaradas, carapinas, vestuários, escravos, concertos de armas e ferramentas, arreios, ferragens, bestas, cavalos e remedidos entre outras coisas. A partir desta justificativas informavam que havia encontrado um local “muito acomodado para fazer engenhos de cana e de farinhas de milho e de mandioca, com moinhos e curtumes entre outras obras na barra do Rio Paranaíba e o Ribeirão do Jatobá”. Por ter no local um grande canavial, solicitava a licença para edificar um engenho e nele fabricar açúcar e principalmente destilar aguardente. E solicitava a licença para produzir 3749

CARTA do Capelão José Corrêia Leitão ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1779, Fevereiro, 28 VILA DO CUIABÁ. BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0021 CAIXA Nº 001. 3750 AMADO, Janaína, ANZAI, Leny Caselli (Org). Anais de Vila Bela 1734 – 1789. Cuiabá: Carlini& Caniato; EdUFMT, 2006.p.448 3751 Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá. Visitador Bruno Pinna. Série Visitas Pastorais, notação VP3. (Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). Transcrição datilografada. 1785. p.155 3752 CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09.VILA DO CUIABÁ.BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0042 CAIXA Nº 001. 3753 ARRUDA, Elmar Figueiredo de. Formação do mercado interno em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em História), PPGH, PUC, São Paulo, 1987.p.55 3754 ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá. Vida urbana em Mato Grosso no século XVIII: 1722-1808. 1998. Tese (Doutorado em História), São Paulo: PPGHS- USP, 1996. JESUS, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos: administração da fronteira oeste da América Portuguesa (17191778). Rio de Janeiro: UFF, 2006.

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ISSN 2358-4912 aguardente, por ser um produto de fácil comercialização e aceitação no mercado. Segundo o padre o valor arrecadado na comercialização ajudaria a garantir a manutenção do local3755. Mas ao descrever os seus gastos demostravam ter cabedal e um número grande de pessoas trabalhando no local. Ao realizar a solicitação o reverendo Manuel de Albuquerque, argumentava havia uma proibição na câmara da Vila do Cuiabá, “não sabia se verdadeira ou quimérica que não poderia haver novos engenhos de cana para destilar aguardente, além dos numerados pela câmara que eram quinze ou dezesseis”3756. Mas independentemente dessa proibição solicitava diante da utilidade o seu empreendimento para a capitania. Por fim, explicava que a carta estava sendo encaminhada via o mestre de campo Antônio Pinto de Figueiredo para chegar às mãos do governador com maior segurança. E se dizia muito feliz com as notícias que o mestre de campo lhe deu, sobre a pessoa do governador. Cabe aqui uma observação em relação ao mestre de campo Antônio Pinto de Figueiredo. Este era muito próximo do governador, aliás um dos homens de confiança nesta repartição e grande prestígio3757. E, nesse momento desafeto do atual juiz de fora da câmara do Cuiabá Antônio Rodrigues Gaioso3758. Ao saber do pedido do padre para o governador, o juiz de fora Antônio Rodrigues Gaioso, remeteu ao governador uma carta. Nesta informou que o padre cometeu um engano, pois se mantinha a prerrogativa de demolir os engenhos na capitania, conforme ordens superiores e, que os engenhos existentes era fruto de um acordo entre a câmara e o sua Majestade3759. Em nome da câmara da vila do Cuiabá se posicionava contrário a proposta do padre erigir o engenho. Em outra carta do mesmo ano, 1781, o juiz de fora Antônio Rodrigues Gaioso retomou o assunto sobre o pedido do Padre Manoel de Albuquerque Fragoso como o governador e capitão general Luís de Albuquerque e informava que caso o pedido fosse deferido, o padre deveria entrar no rateio das contribuições e subsídios pagos pelos senhores de engenho desta repartição3760. Portanto, o padre Manoel Albuquerque tinha conhecimento das regras estabelecidas. É provável que ao realizar a solicitação, já estivesse com engenho construído. E o juiz de fora sabendo que o seu pedido poderia ser deferido tratou de assegurar as rendas da câmara. Pois, neste período o juiz de fora por ordem do governador havia entregue para o reverendo 50 machados, 50 foices e 50 enxadas para ajudar o padre nas obras que estava realizando no local3761. Quatro meses depois, o padre Manoel de Albuquerque, agradeceu ao governador por ter concedido a licença para levantar engenho. Aproveitou o ensejo para requerer ao governador a isenção das pensões que anualmente os senhores de engenho pagam para a câmara. Destacou os seus serviços e “empenhos que tem o feito para criar aquela povoação e da necessidade de muito se fazer para diretamente a estabelecer, conservar e aumentar”. Além da construção “a suas

3755

CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09.VILA DO CUIABÁ.BR TAPMT .IGCA. FSBJ. CA. 0042 CAIXA Nº 001. 3756 Idem 3757 JESUS, Nauk Maria. Na trama dos conflitos, p. 307 3758 Almeida, Gustavo Balbueno de.Os juízes de fora e os conflitos de jurisdição na capitania de Mato Grosso (1748-1796) .Dourados, MS : UFGD, 2012.p.97-99 3759 CARTA do Juíz de Fora da Vila do Cuiabá, Antônio Rodrigues Gaioso ao Governador e CapitãoGeneral da Capitania de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Julho, 28 Vila do Cuiabá.BR MTAPMT.CVC JF. CA. 0545 CAIXA Nº 010. 3760 CARTA do Juíz de Fora da Vila do Cuiabá, Antônio Rodrigues Gaioso ao Governador e CapitãoGeneral da Capitania de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Agosto, 13 Vila do Cuiabá. BR MTAPMT.CVC JF. CA. 0548 CAIXA Nº 010. 3761 CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09 VILA DO CUIABÁ.BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0043CAIXA Nº 001.

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ISSN 2358-4912 custas” de três pontes Rio Manso, Parnaíba e do São Lourenço3762.Para justificar seu pedido argumentou que os 15 senhores de engenho que se sujeitão ou obrigavam de boa vontade a pagar a pensão ou subsidio deveriam assumir os seus compromissos, pois ele não estava presente no acordo. No entendimento do padre ele estava fazendo a sua parte “mantendo a suas custas” a localidade instalada Rio São Lourenço. Segundo, o padre diante dos serviços prestados ele gostaria de poder vender aguardente livremente nos dois distritos (do Cuiabá e do Mato Grosso). O governador lhe concedeu mercê e, o padre além da licença para erigir o engenho, obteve a prerrogativa de não pagar os impostos conforme a câmara solicitava. A câmara da vila do Cuiabá reagiu aos privilégios concedidos questionou a portaria que o Padre Manuel de Albuquerque apresentou, em específico sobre o não pagamento dos subsídios. A câmara elencou vários argumentos contrários a portaria do governador. Primeiro, que os senhores de engenhos “não pagam pensão ou tributo que o soberano lhes impusesse, mas sim uma oferta voluntaria que fizeram ao rei no tempo do terremoto”3763. Em segundo lugar, o subsídio da câmara foi determinado pela correição geral, realizada no ano de 1733. Em terceiro, questionavam que a justificativa da distância da propriedade do Padre em relação a vila dada para o não pagamento do subsídio. E tomou como exemplo as propriedades do Alferes Leonardo Soares e Souza, Miguel Ângelo de Oliveira e José Dias Paes que, mesmo distantes quarenta léguas desta vila, não deixaram de pagar os subsídios a câmara3764. E por fim questionava a solicitação de obter a jurisdição existente no termo do Mato Grosso e não se submeter ao termo do Cuiabá. Esse privilégio requerido pelo padre, diz respeito uma série de isenções fiscais e privilégios aos moradores que fosse morar naquela em Vila Bela, uma forma de colonizar e dinamizar a produção naquele distrito3765. Mesmo diante da reação da câmara os privilégios foram mantidos e o padre passou a produzir aguardente e vender a sua produção e não pagar os tributos. Em meio à discussão sobre a isenção concedida ao Padre Manuel de Albuquerque, o governador e capitão general Luís de Albuquerque de Melo e Cáceres lançou um bando, no ano de 1782, sobre os engenhos de fabricar aguardente. O bando informava todos os moradores que estavam em vigor, nessa capitania, as provisões de 12 de outubro de 1739, de 12 de junho de 1743 e de 9 de outubro de 1749, que tratavam sobre a demolição dos engenhos e não licença para se erguer novos engenhos de aguardente. Tomou a culpa para si, dizendo que não havia dado a atenção devida a essa matéria e por isso havia concedido a licença para o reverendo. E, por fim, determinou que se acha proibido a reedificação ou nova construção (de engenhos) debaixo de pena de dois mil cruzados que pagaria cada transgressor a metade para a sua Real Fazenda e outra para o denunciante e de cinco de degredo para o Rio Grande de São Pedro. Além da 3766 perda de escravos e mais fabricas dos ditos engenhos .

Ao reeditar, essas ordens manteve o mesmo discurso sobre o prejuízo que o fabrico da aguardente trazia para os moradores da capitania. Acreditamos que essa foi uma manobra do governador para evitar que outros moradores requeressem privilégios, como também uma forma de acalmar os senhores de engenho e a câmara. Mas a discussão sobre a demolição dos engenhos nessa capitania continuou. Em 1785, Luís de Albuquerque solicitou que os engenhos próximos ao Real Forte Príncipe da Beira

3762

CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09 VILA DO CUIABÁ.BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0043 CAIXA Nº 001. 3763 Auto de execução lavrado por Manuel de Albuquerque Fragoso 1803, Cuiabá.ACBM/IPDAC Pasta 176 – nº 2101 Caixa 45. 3764 Idem. 3765 ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá.IN: ROSA, Carlos Alberto e JESUS, Nauk Maria de. A terra da conquista. História de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003.p.41 3766 BANDO do Governador e Capitão General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1782, Novembro, 06 VILA BELABR MTAPMT.SG. BO. 4282 CAIXA Nº 073.

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ISSN 2358-4912 fabricassem apenas farinha, pois seria mais útil. Mandou aprender “nos alambiques quaisquer outros instrumentos de destilar e fabricar cachaças”3767. Mesmo assim, os embates entre o padre, a câmara e os senhores de engenho continuaram. Com a chegada do novo governador e capitão general João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, a câmara e os senhores de engenho fizeram outra tentativa de impedir os privilégios do reverendo. Em 1791 o padre escreve ao novo governador e capitão general sobre a postura dos senhores de engenho, a quem chamava de ingratos, em específico Custódio Barrozo que tem encabeçado as representações contra ele. Afirmou que em vários momentos prestado socorro aos senhores de engenhos, ao capturar e conservar na prisão escravos fugidos que passam por sua fazenda destes senhores sem nada cobrar em troca. Portanto, no seu entendimento estava prestando um serviço para capitania como também para os seus moradores e se sente injustiçado por isso pede ao governador a sua proteção. Mas uma vez, consegue manter o privilegio3768. No 1793, os senhores de engenho expressaram mais uma vez a insatisfação com a situação do reverendo e solicitaram que a câmara o notifique3769 e exigisse o padre pague todos os tributos como os demais donos de engenhos. Em resposta ao pedido dos senhores de engenhos o juiz de fora Luís Manoel de Moura Cabral e os oficiais da câmara enviaram uma carta ao governador no ano de 1794 elencando os motivos pelos quais o padre Manoel de Albuquerque deveria participar do rateio pago câmara. Nesta carta a câmara reafirmava os argumentos anteriores e trazia um novo elemento para a discussão. Lembravam o governador e capitão general que a graça não se pagar subsídio quando se levantar engenho era limitada. Informava que em 1787 haviam comunicado essa questão ao padre que ao ser notificado em 1788 disse que não pagaria os subsídios porque não produziu aguardente neste ano e até o presente não havia pago a parte no rateio. O governador e capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro lançou um bando em 1798, para que fosse realizado o levantamento dos engenhos de cachaça e farinha na capitania3770. O arrolamento foi realizado pelo mestre de campo Jose Paes Falcão das Neves, em 1798, no distrito do Cuiabá, desde Vila Maria até o São Lourenço. Segundo o mestre de campo, para o bem das suas atividades solicitou que todos assinassem a sua declaração. Nesta declaração encontrava-se informação sobre capacidade de produção, os produtos fabricados e o número de escravos que mantinham na fábrica e se os utilizavam para outra atividade. Em anexo enviou as declarações, um resumo delas e duas listas (uma com os nomes dos donos de fábricas de açúcar, rapadura e melado, e outra com os nomes dos donos de engenho de fazer farinha e cachaça) e, por fim, uma relação de propriedades novas e antigas que possuíam engenhos. No recenseamento feito neste ano sobre os engenhos existentes na repartição do Cuiabá, o reverendo era dono de três engenhos, dois monjolos e de um plantel de oitenta escravos3771. Segundo consta no mapa o padre tinha a capacidade de produzir 200 canadas de aguardente e 800 alqueires de farinha. Além de capacidade de produção na agricultura no ano de 1796, o padre fez doação registrada em cartório de uma partida de gado vacum que se encontrava na paragem do Bom Jardim desde 1782 a Manuel Pedro de Alcântara. 3767

CARTA do [Capitão Engenheiro] José Pinheiro de Lacerda ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1785, Maio, 15. Forte Príncipe da Beira. BR MTAPMT.RFP. CA. 0373 CAIXA Nº 005. Segundo consta, foram apreendidos os alambiques de Domingos Francisco dos Santos e Manoel José da Rocha ver: FERNANDES, Suelme Evangelista. O Forte do Príncipe da Beira e a Fronteira Noroeste da América Portuguesa (1776-1796), p. 63. 3768 CARTA do [Reverendo] Manoel de Albuquerque Fragoso ao Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. 1781, Maio, 09 VILA DO CUIABÁ.BR MTAPMT.IGCA. FSBJ. CA. 0044 CAIXA Nº 001 3769 REQUERIMENTO (Cópia) do Padre Manoel de Albuquerque Fragoso à Câmara da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá. 1793, Dezembro, 27. Vila do Cuiabá. BR MTAPMT.CVC RQ. 0149 CAIXA Nº 004. 3770 RELAÇÃO dos engenhos de fazer açúcar, rapadura e melado do Distrito de Vila Maria, São Pedro del´Rei, Cocais, Porto Geral para Acima, Porto geral para Baixo, Coxipó Mirim, Médico e Serra Acima. 1795, [...], [...] S/LOCALBR MTAPMT.SG. RO. 1502 CAIXA Nº 030 3771 Idem

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ISSN 2358-4912 Na doação informava que o rapaz de sua criação e vivia sobre seu teto desde de criança. Segundo o reverendo o rapaz tinha o compromisso de todos os anos lhe dar 12 fêmeas ou mochos e mais 12 bois para o trabalho no engenho. Além do gado vacum, doou o cavalos e seis escravos. No ano seguinte Manuel Pedro de Alcântara solicitou sesmaria para fundar fazenda de gado na região haja visto a doação que recebeu do reverendo. Não conseguimos levantar qual era a relação entre o padre e Manuel Pedro de Alcântara. Na devassa eclesiástica de 1785, Ignácio de Sampaio Couto, morador na Freguesia de Santana do Sacramento do Lugar de Guimarães foi uma das testemunhas inquiridas pelo visitador. No seu relato, disse ter ouvido falar que o Padre Manoel de Albuquerque tinha uma ou duas mulatinhas na sua casa tratadas como filhas3772. Em março de 1808 encontramos o reverendo fazendo a doação condicional de quatro escravos para sua afilhada Maria da Conceição e seu marido Antônio Tomé de França Silva3773. No mapa de população dos moradores de Serra Acima, no ano de 1809, o padre aparece com 74 anos, lavrador, vivia com oito agregados, além de seus escravos3774. Nesse recenseamento havia o registro de um agregado por nome de Manoel Pedro de Alcântara, com 25 anos de idade. Se for o mesmo “moço” a quem ele doou a partida de gado vacum, no momento da doação ele estava com 11 anos. Porque o padre doaria gado vacum, escravos e cavalos para um menino de 11 anos, seu agregado? Seria uma estratégia do padre para obter ou legalizar as terras que ocupavam no local? É provável que em meio a briga com a câmara tenha se utilizado do recurso legalizar as terras em nome de outro, afim de evitar mais um confronto com os oficiais da câmara3775. Nossa dedução é reforçada ao no recenseamento das terras concedidas em sesmaria em 1803, O padre declarou estar de posse de duas fazendas de gado mas não informou a forma de obtenção3776. Ao que tudo indica as tentativas de retirar o privilégio obtido pelo reverendo perdurou por vários anos. Em 1818, a câmara escreveu ao então governador e capitão general João Carlos Augusto D'Oeynhausen e Gravemberg e pediu explicações sobre um requerimento do padre Manoel Albuquerque. Os oficiais da câmara afirmavam a necessidade de se construir uma nova ponte sobre o rio São Lourenço, porém, advertia que o pedido do padre para não pagar subsídios em troca da construção da ponte era infundado. Segundo eles, o padre estava utilizando de uma mercê concedida pelo ex-governador e capitão general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres que não tinha mais validade. E que o padre deveria fazer a ponte por patriotismo, mas não deveria deixar de contribuir com as rendas que já eram tão diminutas. Além disso, não era justo beneficiar um dono de engenho em detrimento dos outros. Ao que tudo indica o padre nunca pagou as pensões e usufruiu do privilégio concedido pelo ex-governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. A última notícia que temos do padre foi registrada em 1818, pelo engenheiro e sargento-mor Luiz D’Alincourt, que passou pela fazenda Jatobá ao chegar na capitania pelo caminho de Goiás. Segundo ele, padre tinha aproximadamente 90 anos, porém com grande disposição3777. Enfim, as estratégias utilizadas pelo padre não se diferem das justificativas de outros homens que solicitavam privilégios locais e régios em outras capitanias, que se utilizavam dos serviços prestados para obter privilégios, mas nos permite compreender como estes pedidos se efetivavam e geraram contendas na capitania de Mato Grosso. 3772

Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá. Visitador Bruno Pinna. Série Visitas Pastorais, notação VP3. (Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro). Transcrição datilografada. 1785. p.155 3773 Livro de notas primeiro oficio folha 86 v.- 87 f. 3774 MAPA DE POPULAÇÃO do distrito de Serra Acima, tirada pelo Capitão da 3ª Companhia das Ordenanças Apolinário de Oliveira Gago. 1809, [...], [...] S/LOCAL. BR MTAPMT.SG. MAP. 4377 CAIXA Nº 075. 3775 Para essa questão ver: SILVA, Vanda. Administração das terras: a concessão de sesmarias na capitania de Mato Grosso (1748 -1823), 2008. 3776 RELAÇÃO das sesmarias que foram apresentadas pelos possuidores devido ao bando do governo da capitania de Mato Grosso. (Códice incompleto) S/local, 1753-1796 - ACBM/IPDAC Pasta 70 – nº. 1762. Caixa 20. 3777 D'ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial. 2006. (Edições do Senado Federal; v. 69).p,104

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ISSN 2358-4912 Referências ALENCAR, Adauto. Roteiro Genealógico de Mato Grosso. Cuiabá, MT: ed. do autor, 1999. Volume III. Almeida, Gustavo Balbueno de. Os juízes de fora e os conflitos de jurisdição na capitania de Mato Grosso (1748-1796) .Dourados, MS : UFGD, 2012. AMADO, Janaína, ANZAI, Leny Caselli (Org). Anais de Vila Bela 1734 – 1789. Cuiabá: Carlini& Caniato; EdUFMT, 2006. ANAIS do Senado de Cuiabá 1719-1830. Cuiabá, MT: Entrelinhas: Arquivo de Mato Grosso, 2007. ARRUDA, Elmar Figueiredo de. Formação do mercado interno em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado em História), PPGH, PUC, São Paulo, 1987.p.55 BICALHO, Maria Fernanda Baptista . Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, v. 2, p. 21-34, 2005. D'ALINCOURT, Luiz. Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial. 2006. (Edições do Senado Federal; v. 69).p,104 FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.) Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. JESUS, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos: administração da fronteira oeste da América Portuguesa (1719-1778). Rio de Janeiro: UFF, 2006. ______,Nauk Maria de . O governo local na fronteira oeste: a rivalidade entre Cuiabá e Vila Bela, no século XVIII.Dourados:Ed UFGD,2011. ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá. Vida urbana em Mato Grosso no século XVIII: 1722-1808. 1998. Tese (Doutorado em História), São Paulo: PPGHSUSP, 1996. _____, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá.IN: ROSA, Carlos Alberto e JESUS, Nauk Maria de. A terra da conquista. História de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Editora Adriana, 2003.p.41 SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmãos no poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). SILVA, Vanda. Administração das terras: a concessão de sesmarias na capitania de Mato Grosso (1748 -1823), 2008 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. Redes Clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v. 4.

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DA ARTE DE GOVERNAR COM OS SANTOS NA MONARQUIA PORTUGUESA (C.1680- C.1760): O EXEMPLO DO RIO DE JANEIRO Vinicius Miranda Cardoso Desde sua fundação, em 1565, o Rio de Janeiro foi associado a São Sebastião. Esta relação da cidade com o santo ganhou a longa duração e parece ter sempre despertado o interesse dos poderes públicos. Mesmo com o surgimento de devoções concorrentes, São Sebastião manteve sua primazia oficial. Quando o bispo D. Antônio do Desterro aprovou Sant’Ana como “Patrona principal desta Cidade e Diocese”, em 1759, reconhecia ainda “o glorioso Mártir S. Sebastião” como “o seu primeiro padroeiro principal”3778. Um dos principais fundamentos deste culto era, sem dúvida, o discurso de que o santo protegia a cidade com “evidentes milagres e repetidos benefícios”, como o bispo D. Francisco de S. Jerônimo dizia ter ouvido de “pessoas antigas”3779, no início do século XVIII. A ideia de uma proteção milagrosa do santo patronímico da cidade, afinal, remontaria aos tempos da conquista, quando São Sebastião fora escolhido padroeiro da urbe e de sua primeira igreja matriz. Coube sobretudo a jesuítas, entre os sécs. XVI e XVII, a elaboração letrada e a ritualização da memória dos “milagres” com que o santo padroeiro teria favorecido as vitórias contra os invasores “calvinistas” franceses e os índios tamoios, na tomada da Guanabara (156567): no principal deles, o próprio São Sebastião teria aparecido como um soldado, assustando os inimigos, na “batalha das canoas”3780. Mas alguns raros registros seiscentistas da câmara municipal do Rio de Janeiro discursam sobre uma crença corrente na proteção contínua de São Sebastião à cidade, capaz de livrá-la da peste e dos inimigos que açoitavam outras partes do Brasil – nomeadamente, o mal da bicha (febre amarela) e a invasão holandesa, flagelos que atingiram Bahia e Pernambuco3781. Tal conclusão teria sido tirada por oficiais da câmara municipal e ouvidores da capitania em mais de uma ocasião, tendo defendido eles próprios, por escrito, uma reciprocidade com o santo por meio de especial cuidado para com sua velha matriz e sua festa anual3782. São Sebastião era, por certo, representado como santo guerreiro, por ter sido soldado, segundo suas hagiografias; e também o mais invocado santo anti-peste no Ocidente, pelo menos desde a catástrofe da peste negra no séc. XIV3783. No início do Setecentos, a crença no patrocínio3784 especial de São Sebastião ao Rio de Janeiro seria atualizada de várias formas e em diversos momentos, alcançando uma relevante 3778

ACRJ, E-236. Edital de 9 de maio de 1760, f.105v. AHU_ACL_CU_017, Cx.7, D.773 [1703]. 3780 Tratei deste objeto em minha dissertação de mestrado e em artigos dela resultantes (constam das referências ao final deste trabalho). 3781 A febre amarela atingiu Bahia e Pernambuco na metade da década de 1680, perfazendo um alto número de vítimas. Sobre as invasões neerlandesas, ver SOUZA, G. Evergton Sales. S. Francisco Xavier, padroeiro de Salvador: génese de uma devoção impopular. Brotéria, v.163, 2006, pp.653-669. 3782 LISBOA, Balthsar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, t.3. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p.220; 321; TOURINHO, Eduardo. Autos de Correições de ouvidores do Rio de Janeiro. 1624-1699, vol. I. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do “Jornal do Brasil”, 1929, p.100. 3783 Sobre as representações e práticas de culto a São Sebastião nos períodos medieval e moderno, ver Sheila Barker, “The making of a plague-saint: Saint Sebastian’s imagery and cult before the CounterReformation”, Franco Mormando & Thomas Worcester (Ed.), Piety and plague: from Byzantium to the Baroque, Kirksville, Truman State University Press, 2007; Rachel Barclay, “The reformation of a plague saint: Sebastian in early modern Europe”, The Luther Skald: Luther College History’s department journal of student research, v.1, n.1, jan. 2012, pp.2-37. 3784 Para os significados que a ideia de patrocinium assumiria no caso do culto a santos patronos de cidades, ver ORSELLI, Alba Maria. L’idea e il culto del santo patrono cittadino en la letteratura cristiana. In: L’immaginario religioso della città medievale. Ravenna: Edizioni del Girasole, 1985; sobre o culto a santos patronos locais, ver, entre outros, SLUHOVSKY, Moshe. Patroness of Paris: rituals of devotion in early modern France. Leiden: Brill, 1998; CHRISTIAN JR., William A. Local religion in sixteenth-century Spain. Princeton: Princeton University Press, 1981; e SALLMANN, Jean-Michel. Santi patroni e protezione collettiva. In: 3779

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ISSN 2358-4912 identificação com a cidade. Especialmente, por conta do medo em que seus habitantes se viam, diante de uma possível invasão estrangeira3785. No ano de 1710, na conjuntura que opôs portugueses a franceses na Guerra de Sucessão ao trono espanhol, ocorre uma primeira tentativa de saque ao Rio de Janeiro, comandada por Jean-François Duclerc. O governador Francisco de Castro Morais, diante da repentina ameaça, invocaria o mártir asseteado, juntamente a Santo Antônio de Lisboa, para o “bom sucesso, regimen e direção das armas portuguesas do Rio de Janeiro” – assim foi descrito pelos franciscanos no Livro do Tombo da Província da Conceição. Segundo o mesmo registro, Castro Morais intitularia Santo Antônio “General do Exército nos campos” e, São Sebastião, “padroeiro nas praias”3786. São Januário também seria considerado intercessor na derrota dos invasores, obtida no dia de sua festa. Mas, para certa narrativa anônima, a vitória se deveria a São Sebastião, justamente festejado por ter guardado “muito a sua cidade antiga”, sendo visto pelos inimigos como um “cabo muito majestoso” que os afugentara3787. Com a transladação da catedral para a igreja da Santa Cruz, em 1733, D. João V prezaria o culto de São Sebastião como santo patrono da cidade, ao ordenar que continuasse como titular da sé, e que se pusesse um painel com sua imagem na capela-mor; e, para “memória da antiga catedral”, que se criasse nesta uma confraria do mártir e se fizesse a ela uma procissão anual no oitavário da festa do santo, 27 de janeiro3788. A iniciativa régia gerou um conflito entre o cabido da sé e a câmara em torno da trasladação de uma imagem do padroeiro que ficava no altar-mor da primeira sé, no alto do Morro do Castelo. Segundo representação dos oficiais da câmara, muitos moradores queriam que a efígie ficasse em seu “antigo” e “legítimo lugar”, pois temiam algum “castigo” e tinham fé de que a imagem protegia “a barra [da Guanabara], o castelo [fortaleza de S. Sebastião, armazém da pólvora] e a cidade”, conforme observações passadas3789. O conflito produziria uma interessante documentação, envolvendo ainda o bispo, o governador, o Conselho Ultramarino e o rei, talvez demonstrando que a questão vinha a extrapolar o âmbito puramente religioso3790. Pouco se sabe sobre a festividade e procissão anual de São Sebastião na cidade do Rio de Janeiro tal como vinha sendo realizada antes de sua reformulação pelo rei D. João V. Antes de 1733, é provável que ocorresse no dia 20 de janeiro, festa do santo de Narbona. Este era um dia de guarda recorrente nas dioceses portuguesas entre os séculos XVI e XVIII, assinalado pelas Constituições dos bispados do reino3791. E era, obviamente, o dia de sua celebração na América,

Santi barocchi: modelli di santità, pratiche devozionali e comportamenti religiosi nel regno di Napoli dal 1540 al 1750. Lecce: Argo, 1996. 3785 Sobre o “medo” da ameaça externa e as invasões de 1710-1711, ver BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp.42-45; 6077; 259-284. 3786 Relação da Batalha, q. os Franceses derão na Cidade do Rio de Janeiro aos 19 de 7br.º de 1710 em q ficarão vencidos [cópia], Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Manuscritos, 08, 3, 013, ff.3v-8r. 3787 BRAZÃO, Eduardo. As Expedições de Duclerc e de Duguay-Trouin ao Rio de Janeiro (1710-1711). Lisboa: Ed. Ática, 1940, pp.32-36. O documento original, transcrito por Eduardo Brazão, é a célebre “Relação da chegada da armada franceza a este Rio de Janeiro em 16 de agosto de 1710”, manuscrito da Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. 3788 BIBLIOTECA NACIONAL. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro [ABNRJ], Rio de Janeiro: Bibliotheca Nacional, v.46, p.508-509, 1924. 3789 Copia da carta que escrevêo aCamara ao Governador, eCapitão General sobre orapito da Imagem deS. Sebast.m dasua Igreja aSé antiga. In: RDHCRJ... op.cit., v.1, p.152; Conta arespeito damudança do gloriozo Martir S. Sebastião. In: RDHCRJ... op.cit., v.1, pp.169-170. 3790 Cf. Copia da que escrevêo o General ao Illustrissimo Bispo; Copia da carta digodaresposta do Ill.mo Bispo ao General. In: RDHCRJ, op.cit., pp.154-156; e AIHGB, Arq.1.1.26, ff.211-213. Quase toda a documentação referente ao episódio foi anexada pelo provedor Francisco Cordovil em uma carta de 1743. Cf. AHU_ACL_CU_017_Cx.34, D.3637. 3791 GOUVEIA, António Camões. Sensibilidades e representações religiosas (o controlo do tempo). In: MARQUES, João Francisco & GOUVEIA, António Camões (coord.). História religiosa de Portugal, v.2, Humanismos e Reformas. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p.319.

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ISSN 2358-4912 vindo a ser uma das “procissões reais” que obrigatoriamente deveriam ser custeadas e organizadas pelas câmaras municipais do reino luso e seu ultramar3792. Tampouco se sabe ao certo por que a festa de São Sebastião passou ser referida como uma das “festas d’el Rey”, ou procissões reais, visto que não figura nas Ordenações Manuelinas (1513) e Filipinas (1603), que instituem apenas as da Visitação e do Anjo, além do Corpus Christi3793. A difusão da devoção do mártir flechado, não só pela Europa católica, mas também pelo Novo Mundo, devia-se, de longe, à sua invocação por reinos, vilas, cidades e bispados com o fito de afugentar os açoites da peste, algo recorrente desde a bubônica do séc. XIV, ou antes. Embora não fosse mencionada pelas Ordenações, a festa de São Sebastião tornou-se obrigatória em Lisboa por devoção régia de D. Manuel, correspondida pelos últimos dois reis da dinastia de Avis, D. João III (1502-1557) e D. Sebastião (1554-1578)3794. A partir daí, por emulação e necessidade, muitas câmaras municipais do reino luso fizeram alguma honraria ao santo por ser o patrono anti-peste invocado por Portugal desde a chegada da relíquia de seu braço, presenteado por Carlos V a D. João III, em 15273795. Sendo São Sebastião padroeiro português contra a surtos epidêmicos, investido por culto régio dos Avis, é provável que seus festejos tenham por isso passado a ser costumeiros nas cidades e vilas do reino e, por extensão, na América. Não seria diferente do que ocorreu nas povoações da Europa desde a Peste Negra. Nem destoa do que se via nos demais reinos ibéricos e na América espanhola3796. No Rio de Janeiro, a festa anual de São Sebastião era ambivalente: comemorava o santo patronímico da cidade, que lhe devia o nome e a proteção, do ponto de vista católico; mas também era tida por festa real3797. Prova-o uma curtíssima ata das raras sessões seiscentistas de vereação da câmara municipal preservadas em arquivo. Em 5 de janeiro de 1647, os camaristas ordenavam que “todos os oficiaes acudissem, [no] dia de São Sebastião, à procissão d’el Rey com suas insígnias e bandeiras, com pena de seis mil reis pagos da cadeia”. Os “oficiais”, “insígnias” e “bandeiras” podem se referir aqui aos camaristas mas também às “bandeiras” de oficiais mecânicos, ou artesãos, que também deviam compor rigorosamente as ditas procissões régias3798. É importante assinalar, entretanto, que o fato de haver duas evocações simultâneas na

3792

Sobre as procissões reais, ver SCHWARTZ, Stuart B. Ceremonies of public authority in a colonial capital. The king’s processions and the hierarquies of power in the seventeenth century Salvador. Anais de história de além-mar, Centro de História de Além-Mar da Universidade de Lisboa, v.5, pp.7-26, 2004. 3793 Ord. Manuelinas, liv.I, tit.78. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2014. Ord. Filipinas, liv.I, tit.66, par.48. Disponível em: . Acesso em: 09 jan. 2014. 3794 Sobre isso, ver CARDOSO, Vinicius Miranda. Bastião e castelo forte português. In: Emblema sagitado: os jesuítas e o patrocinium de São Sebastião no Rio de Janeiro. 2010. 173p. Dissertação (Mestrado em História, Estado e Relações de Poder) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2010. 3795 Cf. MACEDO, Antônio de. Divi tutelares orbis christiani [...],, in quo de sanctis regnorum, provinciarum, urbium maximorum patronis agitur. Lisboa: Michaeles Deslandes, 1687, pp.240; 252-254. 3796 Para Salvador, Avanete Pereira Souza destaca, com base em documentos da câmara, que as procissões de São Sebastião e São João Batista “foram instituídas [ali] seguindo o exemplo das câmaras do reino”. SOUZA, Avanete Pereira. Poder local e poder eclesiástico na Bahia setecentista: os matizes de uma convivência. In: FEITLER, Bruno & SOUZA, George Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Ed. Unifesp, 2011, p.123. Para uma ideia acerca da difusão do culto a São Sebastião para contenção da peste na península itálica e no mudo ibero-americano entre o medievo e a primeira modernidade, ver BARKER, op.cit.; WEBB, Diana. Patrons and defenders: the saints in the Italian city-states. London, New York: Tauris Academic Studies, 1996, p.211; CHRISTIAN JR., op.cit., pp.41-42, 61, 67-68, 72, 188, 192; e RAMOS, Frances Lourdes. Identity, ritual and power in colonial Puebla. Tucson: University of Arizona Press, 2012, p.156. 3797 Essa ambiguidade foi a razão de uma discordância entre Vieira Fazenda e Noronha Santos, famosos memorialistas do Rio de Janeiro entre os séculos XIX e XX. Cf. FAZENDA, José Vieira. Procissão de São Sebastião. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB, t.86, v.140, 1921, p.164-165. 3798 PREFEITURA DO DISTRICTO FEDERAL. Directoria Geral do Patrimonio, Estatistica e Archivo. O Rio de Janeiro no século XVII. Accordãos e Vereanças do Senado da Camara, copiados do livro original existente no

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ISSN 2358-4912 festa do patrono do Rio de Janeiro não constitui, em tese, contradição e, mais do que prevalecer uma ou outra acepção, é provável que ambos os motivos se reforçassem. Cada justificativa – se festa do patronímico, se festa do rei – parece ser acionada contextualmente, segundo os interesses do discurso em jogo. Ser também procissão d’el Rey apenas concorria para a necessidade dupla de se solenizar o dia do mártir dardejado. Todavia, nem sempre a procissão será evocada como régia. Ou melhor, o será muitas vezes de outra maneira. E não faltarão menções à proteção do padroeiro como razão para a “tradição” de sua festa na cidade. Registros das procissões no Brasil colonial são fragmentários para quase todas as localidades. Descrições são raríssimas. Esta exiguidade da documentação vale até mesmo para Corpus Christi, a principal festividade anual da monarquia lusa. No caso do Rio de Janeiro, a maior parte dos vestígios que, em teoria, estariam presentes nas atas das vereações, editais, contas, arrematações, recebimentos e pagamentos da municipalidade foram em grande parte perdidos, como decorrência das invasões francesas de 1710 e 1711 e do incêndio do arquivo municipal, em 1790. Documentos referentes às festas e procissões públicas ainda existem no Arquivo da Cidade, que possui inclusive alguns códices voltados às festividades de São Sebastião. Mas são fólios que em sua maioria descortinam momentos posteriores a 17803799. Os autos das correições realizadas pelos ouvidores na câmara do Rio de Janeiro, nos séculos XVII e XVIII, dão-nos algumas pistas, contudo. Em algumas destas atas, as festividades de São Sebastião recebem um destaque extraordinário. Os interesses materiais dos corregedores, afinal, consorciavam-se largamente aos da localidade3800. Coincidiriam os dois lados também no zelo espiritual? As procissões figuram como o 6º assunto mais recorrente nas correições entre 1624 e 1700, dentre 24 que podem ser distinguidos3801. Os ouvidores se referem explicitamente à procissão de São Sebastião nas correições de 1659, 1677, 1685, 1689, 1713, 1735 e 17493802. Por correição de 1676, Pedro de Unhão Castel-Branco havia suspendido os gastos “supérfluos” da câmara. O ouvidor Francisco Barreto, no ano seguinte, determinava que os cortes permanecessem, com exceção das procissões, “por não ficarem os dias solennes que manda a ley sem ellas, como sucedeu o anno passado”. Sendo assim, mandou que se fizessem as procissões, que se costumavam fazer, a saber, a de São Sebastião, por ser Padroeiro desta Cidade, com toda a solemnidade, como se faria [ou seria “fazia”?], e a do dia do Corpo de Deus se gastaria somente em a música para a missa cantada, e procissão; e [quanto a] as mais procissões [Visitação de Santa Isabel e Anjo custódio] (...) [tal] provimento mandou que se guardasse, enquanto não vinha resolução de Sua Alteza, a quem se 3803 tem dado conta (...)

O corregedor ordenava que se fizessem ao menos as procissões de São Sebastião e Corpus Christi, deixando-se de realizar as da Visitação e do Anjo – que eram obrigatórias, segundo as Archivo do Districto Federal, e relativos aos anos de 1.635 até 1.650. Mandados publicar pelo Sr. Prefeito Dr. Pedro Ernesto. Rio de Janeiro: Oficinas gráficas do Jornal do Brasil, 1935, pp.132-133. 3799 São estes os principais códices: 16-4-21 – Editais do Senado da Câmara (1788-1821), 43-4-18 – Festividades de S. Sebastião (1786-1830) e 47-1-42 – Painel de São Sebastião, retrato do Conde de Bobadella, encarnação do santo padroeiro e molduras - requerimento de Manoel da Cunha Silva sobre pagamento, etc. (1791). 3800 Cf. MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Poder, administração e justiça: os ouvidores-gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. 3801 Tendo o mesmo número de ocorrências que “Água da Carioca”, estando a frente de assuntos como “eleições”, “escravos”, “taxação do açúcar”, “medição de terras” e “abastecimento de carne”, ou “de água”, e perdendo apenas para 1- “funcionamento da Câmara”; 2-“obras na Casa da Câmara e Cadeia”; 3“Aforamentos de terras”; 4-“obras em geral”; 5- “almotacés”. Cf. Ibidem, p.150, anexo XVII. 3802 Efetuadas, respectivamente, por Pedro de Mustre Portugal, Francisco Barreto de Faria, João de Sousa Belchior da Cunha Brochado, Agostinho Pacheco Telles, Vital Cazado Rucier e Francisco Antonio Berquó da Sylveira Pereira. Para os quatro primeiros, ver MELLO, op.cit. 3803 TOURINHO, op.cit., v.I, 1929, p.79. Grifo nosso.

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ISSN 2358-4912 Ordenações do reino! A do santo flechado, padroeiro local, deveria ser feita “com toda a solenidade”. Queria dizer que se franqueavam os gastos com a compra de cera e o pagamento de músicos, celebrantes e pregadores de sermão. A de Corpus, contudo – e surpreendentemente, dado sua importância no mundo luso – recebeu restrições: gastos “somente” com a missa cantada e a procissão (o que dava ao rito, ainda, enorme visibilidade, sem dúvida). Não cabe aqui analisar intensivamente as razões particulares de Francisco Barreto. Por ora, quer-se ressaltar tão somente o que parece ser uma hierarquização das “festas reais”: em última instância, caberia realizar primeiramente e mais solenemente não a procissão do Corpo de Deus, mas a do padroeiro local. Obviamente, o de 1677 foi um caso limite, dado pelo circunstancial corte de gastos e por correições que se contrapunham. Porém, nas ocasiões seguintes, a hierarquização permanece. Embora a procissão de Corpus não tenha sua solenidade atenuada novamente, terá sempre a seu lado a de São Sebastião, sendo ambas as festividades maiores ou “principais” da cidade. Os registros são poucos, mas suficientes. No Rio de Janeiro de 1685, diante de repetidas ausências nas quatro procissões reais, João de Sousa ordenava que os que tivessem servido na câmara e seus familiares – os cidadãos – e morassem “no termo desta cidade” fossem obrigados a “acompanhar a Procissão de Corpus, e a do Padroeiro, o Martyr São Sebastião, sob pena de seis mil réis aplicados para a obra da Carioca” [aqueduto] e impedimento de elegerem-se. Para a do Anjo e a de Santa Izabel haveria as mesmas penas: mas somente para os que morassem no termo da cidade “até quatro léguas (cerca de 24 km) somente”, para um lado e para outro da Baía de Guanabara3804. Já Belchior da Cunha Brochado, em 1689, provê: que “em todo o caso se fizesse a Procissão de São Sebastião, e as outras três principais, dando este Senado a cera na forma de uma provisão [...] que Sua Majestade mandou” e que estava registrada na câmara, “porque parece muito mal que tendo o dito Santo Padroeiro livrado a esta Cidade de tantos contágios se lhe não faça aquelle agradecimento público, ainda que na quantia da cera se empenhe o Senado”3805. De que contágios São Sebastião livrara o Rio de Janeiro? É possível que Belchior da Cunha aludisse à epidemia de febre amarela – ou mal da bicha – que assolou a Bahia e Pernambuco por volta de 1676, ocasião que propiciou o voto da câmara de Salvador a São Francisco Xavier3806. O discurso do corregedor aponta, sem dúvida, para a possibilidade de “quebra de contrato” com o santo patrono, que poderia levar, segundo a concepção difundida, a uma reação vingativa dos Céus. Por desleixo, parcimônia ou cobiça, nunca se poderia provocar a divina justiça, zelosa de seus santos. Pelo contrário, honrar São Sebastião com desvelo, solenizando sua procissão anual a custa de suas rendas, era o mínimo que a cidade, representada pelos oficiais da câmara, devia fazer, se queria continuar livre de epidemias. Bem o sabiam os camaristas da geração anterior; se não por convicção, ao menos por argúcia. Trinta anos antes, em 1659, diziam por meio de seu procurador que os habitantes do Rio de Janeiro podiam reconhecer facilmente o valimento de São Sebastião, pois atualmente o estavam experimentando assim nas matérias de guerra, livrando esta Cidade dos inimigos, que sempre infestaram e invadiram todas as Praças do Brasil, ficando esta somente livre, como também no tocante à saúde, livrando-os da peste e outros males 3807 contagiosos, como cada dia se experimentava .

Talvez por isso, na correição do mesmo ano, Pedro Portugal explicitasse apenas as procissões “de São Sebastião de cada ano” dentre as “quatro festas do anno” e seus dispêndios de cera3808. 3804

Ibidem, p.93. Muito embora as Ordenações Manuelinas e Filipinas, compostas no século XVI, estipulassem a obrigatoriedade ao raio de uma légua apenas. 3805 TOURINHO, op.cit., p.100. 3806 Ver SOUZA, op.cit. 3807 Trata-se do momento em que o prelado Manuel Almada tenta transferir a matriz da cidade para a igreja de São José, encontrando forte resistência dos oficiais da câmara, que discursam em favor do padroeiro da urbe por seu procurador, Pires Chaves – assunto tratado com mais vagar em outro capítulo desta tese. Cf. LISBOA, op.cit., p.321. 3808 TOURINHO, op.cit., p.47.

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ISSN 2358-4912 Na correição de 1713, levada a termo pelo dr. Vital Rucier, permanecem os impasses a respeito da cera. Recordando-se que Roberto Carr Ribeiro havia estipulado, provavelmente em 1710, quantidades fixas para as quatro procissões, mas que tal documento havia sido perdido na “invasão dos Francezes” (1710 e 1711), Rucier ordena que, nas festas do Anjo e de Santa Isabel, “se não gaste mais cera de cinquenta Libras, em cada huma, e nas duas festas de Corpo de Deus, e São Sebastião, cento e cinquenta Libras em cada huma”. O doutor Agostinho Telles reiteraria esta determinação em 17353809. Estes registros evidenciam que, ao menos no Rio de Janeiro, existiria a certa altura uma hierarquia entre as procissões reais: Corpus Christi, símbolo maior da realeza, e São Sebastião, padroeiro municipal, têm primazia. Subordinam pessoas de uma área mais abrangente (todo o termo da cidade), não devem ser suprimidas e podem suportar gastos. Se, de fato, a primeira era, no mundo português e católico, a mais importante, sendo cerimônia apropriada pela Coroa e pela “república” local3810, vemos que a do mártir flechado, no Rio de Janeiro, vinha sendo a ela comparada e associada desde a metade do séc. XVII, ou antes. Esta equiparação advém tanto dos locais quanto dos corregedores – em tese, agentes da monarquia. Haveria, portanto, algo pouco notado: uma hierarquização contextual – portanto, local – das procissões obrigatórias. Corpus Christi, que propunha a unidade do “império” português, compartilharia o topo das solenidades, na localidade, com os festejos do padroeiro citadino. Talvez isto indique uma abertura conferida pela monarquia ao “autogoverno das repúblicas” locais, ou seja, uma margem de autonomia aos poderes citadinos3811 para escolherem santos protetores e concederem-lhes honra semelhante à que se dava ao rei e ao Santíssimo Sacramento na festividade do Corpo de Deus. Assim, a arte “municipal” de se fazer representar e bem-governar parece ter sido urdida não só em matérias de fazenda, defesa, ou abastecimento, mas também nas devoções escolhidas pela edilidade, cujas procissões votivas suplementariam aquelas ordenadas pela Coroa, precedendo a da Visitação e a do Anjo e igualando-se, ou aproximando-se decisivamente, da festa de Corpus3812. Contribui para esta reflexão analisar brevemente a negociação para a introdução de mudanças na procissão do oitavário de São Sebastião. Em 21 de janeiro de 1758, o então bispo do Rio de Janeiro D. Fr. Antonio do Desterro Malheiros (1694-1773) escrevia ao chantre Dr. Manoel Warneck, presidente do cabido, dizendo que lhe parecia ser “muito ajustada” a “resolução, que se tomou em Cabido para se fazer de tarde a Procissão que até agora se fazia de manhã”, visto a “grande opressão que causa aos Reverendos Capitulares e a todos sendo de manhã neste rigoroso tempo de verão”. E aprovava a resolução, que ainda estipulava uma divisão de trabalho do cabido: parte oficiando na sé velha, e parte na interina, o que não lhe parecia “faltar (...) às Ordens, e vontade de Sua Majestade”. Entretanto, D. Desterro indicava que a missa solene

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Ibidem, vol. II (1700-1747), 1931, pp.24; 77. Cf. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América portuguesa, século XVIII. São Paulo: Annablume, 2005; e ____. The feast of Corpus Christi: artisan crafts and skilled trades in Eighteenth-century Rio de Janeiro. The Americas, v.65, n.2, pp.193-216, out.2008. 3811 Cf. FRAGOSO, João Luís Ribeiro & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII. Tempo, Niterói: v. 14, n. 27, pp.27-50, 2009. Disponível em: . Acesso em: 11 out. 2011. 3812 Esta possibilidade era, sem dúvida, negociada; mas tornou-se negociável por conta da cultura política de raiz aristotélico-tomista, que dava às “repúblicas” e “corpos” sociais autonomia (ou iurisdictio) por princípio, limitando a ação do rei. Cf. LÈMPERIÈRE, Annick. Entre Dieu et le roi, la république: México, xviexixe siècles. Paris: Les Belles-Lettres, 2005, p.26 et seq; HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império colonial português. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.) Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp.45-46; 55. Parece ser válido também para as Ordenações, que concediam brechas à solenização de procissões ordenadas por outros poderes, cf. supra, n.15. 3810

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ISSN 2358-4912 deveria ocorrer na sé velha, ao final da procissão, e não de manhã, na interina, como propunham os capitulares3813. No mesmo dia, o chantre escrevia à câmara do Rio de Janeiro, presidida pelo juiz de fora Dr. Antonio de Mattos e Silva. Warneck relatava que, tendo-se considerado “o geral discomodo de fazer-se de manhã a procissão do Nosso Glorioso Padroeiro São Sebastiam (...) no maior rigor do verão, e horas do maior calor”, propunha-se que o cabido se dividiria entre os ofícios na sé do Rosário e a missa solene na sé velha; e que a procissão se realizaria no “mesmo dia de tarde depois da maior intenção do Sol (...) executando-se esta ação no mesmo dia, que S. Majestade recomenda, e manda, mais decente, menos penosa, e com mais comodidade para todos”. Acrescentava que o bispo havia “confirmado esta resolução” do cabido; e pedia ao juiz de fora que levasse à câmara a matéria, remetendo depois o seu parecer3814. Dr. Antonio de Matos e Silva assim respondia ao chantre, em 25 de janeiro: Participei em Camera aos Officiaes della o parecer que se tomou em Cabido sobre a nova formalidade de se satisfazer com a Missa Solemne na Cathedral antiga, e procissão a ella para conservação da sua memória, e Louvor do Gloriozo Padroeiro da Cidade na forma das Ordens deS. Magestade e como inteiramente se satisfaz a ellas [...] em tudo se conformou o Senado com o dito parecer, que Vossa Mercê expoe, concorrendo ter a approvaçaõ de Sua Excellencia ReverendiSsima [...], Lembrando porem a Vossa Mercê, que como de tarde emsemelhante tempo hão comummente trovoadas, e às vezes horrorozas, se acaso por cauza de alguma se não puder fazer a procissão no dia decretado, se deve transferir p.a o dia seguinte, e continuando o mesmo embaraço, para outro, em que se não encontre, de forma que sempre haja adita procissão; do que vossa Mercê, ou quem seu lugar tiver, fará aviso a este Senado para concorrer com a sua assistência. Deos guarde a vossa 3815 Mercê muitos annos .

Como matéria que envolvia diretamente os eclesiásticos, a disposição das funções litúrgicas, da procissão e da missa solene foram primeiramente tratadas entre o cabido e o bispo, naturalmente. Mas é interessante notar que, mesmo após obter aprovação do prelado, o chantre pedia que o assunto fosse discutido na câmara municipal, que deveria fornecer seu parecer. É uma concessão significativa a um poder leigo dar-se a ele chance de opinar sobre procedimentos do rito eclesiástico. Obviamente, quaisquer mudanças na procissão envolveriam também os oficiais da câmara, que deveriam, como em toda festividade real, participar “em corpo”, daí ser preciso notificá-los. Entretanto, talvez não se tratasse de simples notificação, mas de uma gestão compartilhada e negociada nos moldes sinodais: tanto que os edis não se contentam em observar as normas de Sua Majestade, mas intervêm ponderando que, mesmo se raios e tempestades de verão cancelassem a procissão, esta deveria ser transferida até que pudesse ocorrer, “de forma que sempre houvesse a dita procissão”. Sem dúvida, a festividade ainda era mencionada como um dever decorrente da ordem do rei. Entretanto, isso não significaria, em tese, uma secularização, no sentido de que a procissão só ocorria por respeito à autoridade régia. Mas, sim, que o culto citadino ao padroeiro teria possibilitado uma aproximação sacralizada dos poderes locais, seus gestores, com a monarquia, sem que isso se confunda com absolutismo, nem com localismo3816. Referir-se à conformidade com as ordens do rei seria o código comum, o ponto pacífico que permitia o diálogo, tanto quanto a menção à aprovação do bispo. Mas as intervenções decisivas vêm da conversa entre os corpos que representam a cidade, (também ela um corpo místico): câmara e cabido. Tanto parece ser assim que, ao que tudo indica, a Coroa não seria consultada para aprovação das mudanças: a gestão do cotidiano local pertenceria, ainda, à “república”3817, também no campo do culto ao 3813

Atas do Cabido, ACb, Cx.118, f.18. Atas do Cabido, ACb, Cx.118, ff.18v.-19. 3815 Atas do Cabido, ACb, Cx.118, ff.19-19v. 3816 CONOVER, Cornelius. Catholic saints in Spains’s atlantic empire. In: GREGERSON, Linda, JUSTER, Susan. (eds.). Empires of God: religious encounters in the early modern Atlantic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2011; e FRAGOSO & GOUVÊA, op.cit. 3817 FRAGOSO & GOUVÊA, op.cit. 3814

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ISSN 2358-4912 santo patrono municipal. Afinal, dentre todos os padroeiros celestiais, São Sebastião era, no Rio, o principal da terra. Fontes e Referências Bibliográficas Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro (ACRJ) Série Encadernados: E-236: Pastorais e editais, 1742-1838 Arquivo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro (ACb) Fundo Capela Real e Imperial - CRI Seção Documentação Administrativa - SD Cx118 – Atas do Cabido – 1773-1841 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) Códices 16-4-21 – Editais do Senado da Câmara (1788-1821) 43-4-18 – Festividades de S. Sebastião (1786-1830) 47-1-42 – Painel de São Sebastião, retrato do Conde de Bobadella, encarnação do santo padroeiro e molduras. Requerimento de Manoel da Cunha Silva sobre pagamento, etc. Arquivo Histórico Ultramarino Administração Central – Conselho Ultramarino (AHU_CL_CU) – Rio de Janeiro – 017 Cx.7, D.773; Cx.34, D.3637. Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (AIHGB) Arq.1.1.26 – Consultas do Conselho Ultramarino Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Relação da Batalha, q. os Franceses derão na Cidade do Rio de Janeiro aos 19 de 7br.º de 1710 em q ficarão vencidos [cópia], Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Manuscritos, 08, 3, 013, ff.3v-8r. ARCHIVO DO DISTRICTO FEDERAL. Revista de Documentos para a História da Cidade do Rio de Janeiro. [RDHCRJ]. Rio de Janeiro: Departamento de História e documentação, 1894-1897; 19501954. BIBLIOTECA NACIONAL. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro [ABNRJ], Rio de Janeiro: Bibliotheca Nacional, v.46, p.508-509, 1924. LISBOA, Balthasar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro. Ed. Fac-sim. Rio de Janeiro: SeignotPlancher, 1834-1835. 8vol. MACEDO, Antônio de. Divi tutelares orbis christiani, opus singulare, in quo de sanctis regnorum, provinciarum, urbium maximorum patronis agitur. Lisboa: Michaeles Deslandes, 1687. PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. O Rio de Janeiro no Século XVII. Acordãos e Vereanças do Senado da Câmara, copiados do Livro Original existente no Archivo do Distrito Federal, e relativos aos anos de 1635 até 1650. (Mandados publicar pelo Sr. Prefeito Dr. Pedro Ernesto). Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1935. Relação da chegada da armada franceza a este Rio de Jan.ro em I6 de Agosto de 1710 (anônimo). In: BRAZÃO, Eduardo. As Expedições de Duclerc e de Duguay-Trouin ao Rio de Janeiro (1710-1711). Lisboa: Ed. Ática, 1940. TOURINHO, Eduardo. Autos de Correições de ouvidores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do “Jornal do Brasil”, 1929-1931, vols.1-2. BARCLAY, Rachel. The reformation of a plague saint: Sebastian in early modern Europe. In: The Luther Skald: Luther College History’s department journal of student research, v.1, n.1, pp.2-37, jan. 2012.

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A ATUAÇÃO DOS DIRETORES DE POVOAÇÕES DURANTE A POLÍTICA DO DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS (1757-1798): A BUSCA POR UMA ANÁLISE DE CARÁTER HISTÓRICO DE SUAS INFRAÇÕES A LEI Vinícius Zúniga Melo3818 Introdução O presente trabalho apresenta alguns dos resultados obtidos a partir de pesquisas realizadas enquanto bolsista de Iniciação Científica ainda na graduação. Essas investigações tiveram como objetivo melhor compreender a atuação dos diretores de povoações, ao tempo da política do Diretório dos Índios, na região do Vale Amazônico.3819 As conclusões em que chegamos resultaram em meu trabalho de conclusão de curso, gerando, por conseguinte, novas indagações, as quais venho buscando responder enquanto mestrando. Dessa forma, fruto da pesquisa realizada, esse trabalho tem por objetivo destacar dois aspectos a respeito dos diretores de povoações. Primeiramente, dimensionarei as diferentes dificuldades com as quais estes diretores tinham de lidar durante a realização do ofício. Tais empecilhos, conforme veremos, podiam se caracterizar de diferentes maneiras: desde a falta de infraestrutura nas povoações até sublevações indígenas. A segunda questão que esse estudo busca é fornecer um caráter histórico as ações desempenhadas pelos diretores na realização do cargo. Em outras palavras, ao invés de atribuir um caráter moral às irregularidades praticadas por esses sujeitos, principalmente em relação ao usufruto indevido da mão de obra indígena, pretendo apontar que transgredir as normas era o horizonte possível no interior daquela sociedade da Amazônia Portuguesa, haja vista, os inúmeros conflitos nela existentes em torno da força de trabalho indígena. A atuação dos diretores de povoações vista pela historiografia O diretor de povoação era o responsável pela administração do indígena no interior de Vilas e Lugares. O índio, segundo o Diretório, estava na condição de homem livre, podendo trabalhar nas terras dos colonos e nos serviços reais, mediante apenas, pagamento de salário. Essa remuneração devida aos indígenas era administrada, todavia, pelos diretores. Eram eles os responsáveis por receberem dos moradores “toda a importância dos (...) sellarios” dos índios, os quais deveriam lhes repassar.3820 Uma série de encargos ficava sob a responsabilidade do diretor. Vejamos alguns deles. No intuito de civilizar o indígena, o diretor deveria estimulá-los ao uso da língua portuguesa, prezar para que fossem honrados e estimados de acordo com seus cargos, deveria cuidar para que não fossem chamados de negros, e nem que se referissem dessa maneira uns com os outros. Era aconselhado a animar os indígenas para o desenvolvimento do trabalho agrícola em suas próprias terras, e para a realização do comércio. O diretor deveria estimular também uma relação amistosa entre índios e brancos no interior das povoações, assim como, o casamento entre si.3821

3818

Vinícius Zúniga Melo é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). O presente trabalho foi desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Mauro Cezar Coelho, da Faculdade de História da UFPA, e contou com o financiamento do CNPq. A pesquisa é fruto do Plano de Trabalho, “O Discurso dos Diretores de Povoações de Índios sobre a política indigenista (1777-1798)”, o qual está inserido no Projeto de Pesquisa, “Política indigenista portuguesa no Grão – Pará: o Diretório dos Índios”. 3819 Sobre os motivos que levaram a criação da lei do Diretório dos Índios, e quais os objetivos ela visava, consultar a bibliografia citada ao longo desse estudo. 3820 DIRECTORIO que se deve observar nas Povoaçoens dos Índios do Pará, e Maranhão em quanto Sua Magestade não mandar o contrário. §§ 68 e 69 In: ALMEIDA, 1997. 3821 DIRECTORIO que se deve observar... §§ 6, 9, 10, 22-23, 36, 87 e 88. In: Idem.

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ISSN 2358-4912 Os responsáveis pela administração do indígena tinham como função participar ativamente do processo de cálculo e arrecadação dos dízimos, da distribuição e controle da mão de obra indígena, e da administração do povoamento, cuidando, dentre outras coisas, da construção de casas, câmaras e cadeias públicas. Em troca, os diretores deveriam receber a sexta parte dos frutos cultivados e de todos os gêneros não comestíveis extraídos pelos índios.3822 Tendo em vista esses inúmeros encargos atribuídos aos diretores, podemos dimensionar a sua importância para o implemento das diretrizes previstas pela política do Diretório. Por meio da análise dos constantes juízos que eram elaborados por terceiros a respeito do desempenho desses sujeitos, também é possível dimensionar essa importância. Afirma-se isso, pois, ainda durante a vigência da lei, alguns sujeitos – governadores, intendentes, ouvidores - denunciavam as irregularidades praticadas pelos diretores no cargo, e, por este motivo, já os responsabilizavam pelo fracasso da lei do Diretório. Segundo a crítica formulada, os responsáveis pela administração dos indígenas se aproveitavam do poder que possuíam, e colocavam suas ambições acima das obrigações a que estavam relacionados. Uma das infrações mais denunciadas estava relacionada ao uso indevido da mão de obra indígena por parte dos diretores. A historiografia que trata a respeito da lei do Diretório, acaba assumindo como verdadeiros esses comentários negativos a respeito da atuação dos diretores, construindo o argumento de que foram estes sujeitos os principais responsáveis pelo não cumprimento de muitos dos objetivos propostos e pelo consequente fracasso da política indigenista aqui estudada. Sendo assim, essa produção bibliográfica assume uma crítica moral como um juízo historiográfico.3823 É importante destacar que há autores que não entram no mérito da existência de um fracasso ou não da política do Diretório, mas apontam que os diretores infringiam a lei, na medida em que exerceram uma tutela prejudicial às populações indígenas.3824 Para essa historiografia, conforme já dito, uma das principais infrações realizadas pelos diretores estava relacionada aos indígenas. Segundo os autores, ao invés de prezarem pelos seus interesses, de civilizá-los e exercerem uma tutela de forma branda e suave, conforme demandava os dispositivos do Diretório, os diretores os tratavam com violência, dispunham de seu trabalho para si e/ou o cediam de forma ilegal para os colonos. Em vista dessas irregularidades, muitos indígenas acabavam não ficando o devido tempo no interior das povoações para o desenvolvimento das suas roças particulares, para a realização do comércio e para assimilarem os valores europeus, como, por exemplo, o aprendizado da língua portuguesa. Ao analisar essas interpretações a respeito dos diretores, a pesquisa buscou averiguar melhor o trabalho desempenhado por esses sujeitos. Consideramos problemática uma única visão da historiografia sobre os administradores dos índios – vistos como infratores da lei, e/ou principais responsáveis pelo fracasso do Diretório – baseada em análises feitas apenas por outros indivíduos. Sendo assim, buscamos extrair informações sobre o trabalho desses agentes através de suas próprias afirmações, e não somente por considerações feitas por outrem. Recorremos também a outros tipos de fontes, como os Mapas de Produções das Vilas e Lugares e aos requerimentos de mercês. Chegamos a dois resultados, que serão expostos aqui. O primeiro deles, é que os diretores, durante realização de seu ofício, tinham que conviver com diferentes tipos de dificuldades. E o segundo, refere-se a questão de que, a nosso modo de ver, é um equívoco a historiografia analisar as transgressões cometidas por esses agentes a partir de uma conotação moral, os responsabilizando pelo fracasso do Diretório. Desse modo, o estudo tem por intuito fornecer um caráter diferente às irregularidades praticadas por tais indivíduos: buscaremos tratá-las dentro de uma dimensão histórica, em que desobedecer a legislação fazia parte da ordem das coisas, em um contexto marcado por intensa disputa em torno da mão de obra indígena.

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DIRECTORIO que se deve observar... §§ 27-33; 60-63, 65-69 e 71-73; 74; 34. In: idem. Ver: AZEVEDO, 1999: 285-287; PRADO JÚNIOR, 2011: 97-100; ALMEIDA, 1997: 168, 241; ALMEIDA, 1990: 134. 3824 SOUZA JÚNIOR, 2009: 157; FONTENELE, 2008: 140. 3823

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ISSN 2358-4912 Dificuldades vivenciadas pelos diretores na realização de seu ofício Antes de elencarmos as dificuldades encontradas pelos diretores, é importante deixar claro que não discordamos da historiografia, quando essa afirma que os responsáveis pela administração do indígena cometiam infrações a lei, visando benefícios próprios. Pelo contrário: ao atentarmos para o universo socioeconômico desses sujeitos, percebemos que eles estavam em constante contato com as duas principais fontes de riqueza do Vale Amazônico: as drogas do sertão3825 e a mão de obra indígena, o que lhes davam brechas para cometerem desvios. Vários trabalhos destacam que foi o extrativismo a principal atividade econômica que predominou na região da Amazônia Portuguesa, inclusive no período do Diretório3826, o que não significa dizer que houve uma inexistência da prática agrícola.3827 Segundo essa política indigenista, conforme visto, parte do salário dos diretores deveria vim de todos os produtos não comestíveis extraídos pelos povos indígenas. Não à toa, que Maria Regina Celestino de Almeida tenha afirmado que os diretores preferiam incentivar o extrativismo, ao invés da agricultura, pois eles recebiam a sexta parte das extrações realizadas pelos indígenas sem dispender custo algum.3828 Em relação aos índios, os diretores deveriam participar de alguma forma de qualquer atividade que os envolvia. Essa proximidade era um facilitador para que se aproveitassem indevidamente da sua força de trabalho e para cometerem outras irregularidades. A historiografia aqui apontada já da conta dessa questão, e a própria documentação cotejada pela pesquisa corrobora com esse cenário.3829 É importante destacar que os indígenas constituíam-se como a principal mão de obra para as mais diferentes atividades no Vale Amazônico durante o período do Diretório dos Índios: trabalhavam, dentre outras funções, na agricultura, no extrativismo, na pesca, na caça, na carpintaria e nos serviços domésticos.3830 Porém, acreditamos que é um erro considerar que o cotidiano dos diretores fosse marcado apenas pela vantagem de utilizarem-se do extrativismo e do trabalho indígena, muitas das vezes de maneira ilícita. Quem exercia o cargo poderia se deparar com diferentes tipos de empecilhos também. Vejamos. Muitos diretores reclamavam sobre a falta de estrutura de sua povoação. É possível observarmos na documentação esses sujeitos fazendo referência à ausência de ferramentas necessárias para o desenvolvimento da agricultura, aos parcos resultados agrícolas, ao baixo número de indígenas e ao estado precário das casas das Vilas e Lugares em que dirigiam.3831 As revoltas e falta de obediência dos indígenas poderiam se caracterizar em outro tipo de obstáculo para o diretor. O autor José Alves de Souza Júnior, mesmo considerando trágica para os indígenas a mudança da tutela religiosa pela tutela laica do Diretório, fala a respeito das reclamações dos diretores sobre a falta de autoridade sobre os índios e das violências que sofriam.3832 Na documentação pesquisada, encontramos situações de sublevações indígenas que agiram “Armados, absolutos, e dezobedientes ao seu Director”, de sujeitos que exercerem o 3825

As drogas do sertão eram os gêneros extraídos da floresta, no interior do território. Consistiam em produtos como a canela, pimenta, salsaparrilha, castanha, breu, andiroba, copaíba e entre outros. 3826 Ver: COELHO, 2005: 230-243; ALDEN, 1974: 25-27; FARAGE, 1991: 39. 3827 Ver: CHAMBOULEYRON, 2010: 121-169. 3828 ALMEIDA, 2005: 31. 3829 Auto de devassa da Vila de Pombal ou Veiros. [Em 22/12/1764] – APEP, 160, 02; Auto de devassa da Vila de Santarém. [Em 01/1767] – APEP, 160, [não numerado]; Auto de devassa da Vila de Melgaço. [Em 27/12/1764] – APEP 160, 07; Auto de devassa do Lugar de Azevedo. [Em 24/12/1764] – APEP 160, 08; Auto de devassa do Lugar de Arraiolos. [Em 1765] - APEP, 160, [não numerado]; Auto de devassa da Vila de Melgaço. [Em 11/10/1765] – APEP, 160. 3830 SOUZA JÚNIOR, 2005: 13; REIS, 1982: 53. 3831 Ver: Diretor João da Silva Coelho [Documento enviado ao governador e capitão general do Estado do Grão – Pará e Rio Negro, Francisco de Sousa Coutinho, em 24/08/1796] – APEP, códice 126, rolo 12, documento 72. Projeto Reencontro; Bento Ribeiro [Documento enviado ao governador e capitão general do Estado do Grão – Pará e Rio Negro, Francisco de Sousa Coutinho, em 03/07/1796] – APEP, códice 126, rolo 12, documento 54. Projeto Reencontro; Tomé Joaquim de Siqueira [Documento enviado ao governador e capitão general do Estado do Grão – Pará e Rio Negro, Francisco de Sousa Coutinho, em 07/06/1796] – APEP, códice 126, rolo 12, documento 51. Projeto Reencontro. 3832 SOUZA JÚNIOR, 2009: 272-273.

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ISSN 2358-4912 ofício por anos, e durante os quais, reclamou que teve que conviver com os “gênios” dos indígenas e de diretor reclamando de indígenas que se achavam isentos de suas obrigações, por estarem servindo em um Terço de Auxiliares.3833 Além dessas dificuldades, podemos visualizar em uma Consulta do Conselho Ultramarino em que analisa o requerimento de um ex-diretor, referências acerca dos contínuos perigos de vida e dos baixos salários com os quais o sujeito teve que conviver durante a realização do cargo. Através de uma devassa tirada na Vila de Alenquer, obtém-se a informação de que um incêndio causado por dois rapazes na povoação ocasionou na perda de alguns pertences do diretor, na queima de algumas casas, na igreja do lugar, nas farinhas dos dízimos e em outros mantimentos da canoa que iria descer o sertão. Finalmente, na leitura da documentação, é possível observar outras carências que algumas Vilas e Lugares poderiam vim a ter, como a falta de canoa.3834 Os diretores poderiam até mesmo não ter nenhuma participação nos rendimentos obtidos fruto do extrativismo, que, conforme visto, era a principal atividade econômica ao tempo do Diretório. Ao ser analisado o Mapa das Contas da Tesouraria do Comércio dos Índios, dos anos de 1777 a 1781, 1788 e 1792, que consta os rendimentos e as despesas das Vilas e Lugares do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, percebe-se a existência de povoações que não apresentavam nenhum rendimento ao longo de um ano em relação a atividade extrativa.3835 Por exemplo, as Vilas de Monsarás, Monforte, Chaves, Soure, Colares, Cintra e Nova Del Rei, nos anos de 1778, 1788 e 1792 tiveram rendimento zero em se tratando do extrativismo. Esses dados significam dizer que, em determinados anos, os diretores não recebiam a sexta parte dos gêneros cultivados pelos povos indígenas, do qual tinham direito. A nosso modo de ver, essas dificuldades nos ajuda a sopesarmos os benefícios que o cargo de diretor trazia a seu ocupante. Dito de outro modo, a serem destacadas apenas as irregularidades praticadas por esses sujeitos, principalmente em relação ao uso da mão de obra indígena devido a proximidade que dela tinham, passa-se a impressão de que exercer uma diretoria era algo cômodo e almejado por muitos. Entretanto, ao ser analisada a documentação, vimos que havia Vilas com falta de indígenas, de canoas, com parcos resultados agrícolas e extrativos. Não à toa, que encontramos o caso de João da Silva Coelho, que pede a remoção do posto de diretor devido a falta de ferramentas que nela havia, as quais eram necessárias para a feitura dos roçados. Além desse, temos o exemplo do diretor interino da Vila de Chaves, Manuel Antônio Pantoja, que disse que foi obrigado a servir no cargo. Em vista dessas informações, sugerimos que ao menos para alguns, o posto de diretor poderia não ser de grande alcance social, como afirma João Lúcio de Azevedo.3836 A busca por um novo sentido às transgressões cometidas pelos diretores Um ponto que chama a atenção é que não somente os diretores cometiam desvios à lei. Uma série de outros sujeitos também descumpriam as normas do Diretório visando auferir vantagens pessoais, principalmente no que concerne a mão de obra indígena. Para Mauro Cezar Coelho, cabos de canoa, vigários, mestres-escolas, soldados e colonos também se aproveitavam da proximidade com os povos indígenas para tirarem algum tipo de vantagem em desacordo com 3833

Caetano de Freitas da Costa, em 30/09/1777. [Em anexo ao requerimento de Manoel Carvalho dos Santos, à rainha D. Maria I, em 08/10/1777]. – AHU, 78, 6460; José Bernardo da Costa e Asso. Ofício enviado para Martinho de Melo e Castro, secretário de estado da Marinha e Ultramar, em 06/11/1786. AHU, 96, 7600; Francisco José Brandão de Castro [Documento enviado ao governador e capitão general da capitania do Grão – Pará e Rio Negro, D. Francisco de Sousa Coutinho, em 28/051792] – APEP, rolo 12, Códice 496, documento 63. Secretaria da Capitania. 3834 Consulta do Conselho Ultramarino, em 22/12/1778. [Em anexo ao requerimento de Bernardo Toscano de Vasconcelos à rainha D. Maria I, em 01/06/1779.] – AHU, 83, 6783; Auto de devassa da Vila de Alenquer. [Em 29/11/1765] – APEP, 160, [não numerado]; Manoel Antonio Furtado [Documento enviado Sargento mor comissário, em 10/05/1790] – APEP, códice 429, rolo 13, documento 94. Secretaria da Capitania; José Manuel de Moraes [Documento enviado ao sargento mor segundo comissário, em 1793] – APEP, códice 496, rolo 14, documento 163. Secretaria da Capitania. 3835 Mapa das Contas da Tesouraria do Comércio dos Índios: AHU, 81, 6648; AHU, 88, 7212, AHU, 98, 7790; AHU, 104, 8205. 3836 AZEVEDO, 1999: 285.

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ISSN 2358-4912 as normas.3837 José Alves de Souza Júnior aponta em seu trabalho diferentes infrações cometidas por vigários, principais e intendentes em relação aos indígenas.3838 Os descumprimentos à legislação estavam relacionados, além do usufruto indevido da mão de obra indígena em benefício próprio, aos seguintes pontos: uso da violência, estabelecimento de relações comerciais ilegais e desvios morais junto aos índios, entre outras irregularidades. Alguns desses descumprimentos foram possíveis de serem encontrados na própria documentação pesquisada.3839 É baseando-se em tais informações, que esse estudo procura analisar as infrações cometidas pelos diretores não por meio de um caráter moral, mas sim, a partir de uma dimensão histórica. Segundo Mauro Coelho, durante toda a vigência do Diretório dos Índios houve um intenso conflito entre moradores e administração colonial em torno do acesso à mão de obra indígena.3840 Conflito esse, que já existia em tempos anteriores entre colonos e Ordens Religiosas. Segundo os dispositivos legais, para determinado morador poder ter acesso a mão de obra indígena do interior das Vilas e Lugares, era preciso dispor de “portarias”, as quais eram concedidas pelo governador do Estado, e apresentá-las junto ao Principal das povoações.3841 Além disso, os colonos tiveram reduzidas as suas parcelas no usufruto da força de trabalho indígena, pois, quem mais a utilizou, foi a metrópole, a fim de pôr em práticas os planos que tinha para a região.3842 Desse modo, quando um diretor agia em desacordo com a lei, no sentido de se beneficiar de alguma maneira da mão de obra indígena, tal ato tem que ser estudado dentro desse contexto histórico. Em outras palavras, os diretores estavam imersos em uma sociedade que, conforme vimos, o indígena servia como a principal força de trabalho para os variados serviços. Porém, o acesso a essa mão de obra era condicionada e a maior parte dela era utilizada para os serviços da Coroa. Dentro dessa tensão social, em que a força de trabalho do índio era disputada tanto por colonos quanto por sujeitos da administração colonial, os diretores eram um, dentre vários agentes, que buscavam alguma forma utilizarem de tal mão de obra. Sendo assim, os descumprimentos à lei era o horizonte possível para os diretores nessa sociedade. E, logicamente, esse horizonte não estava reservado a apenas estes sujeitos. Portanto, os desvios às normas cometidos pelos diretores não são a exceção, e faziam parte da ordem das coisas. Principais, soldados, mestres-escolas, cabos de canoa, vigários, intendentes e moradores também sentiam a necessidade de transgredir as normas, visando se beneficiarem de alguma forma da mão de obra indígena. As próprias relações sociais que tais agentes mantinham entre si, visando este fim, precisam ser estudadas a partir de um caráter histórico, em que infringir a legislação era condição fundamental para obter êxito nesta sociedade, tendo em vista as tensões que havia nela em torno da força de trabalho do índio. Por êxito, entendem-se os desvios já citados nesta produção: estabelecer comércio com os indígenas e utilizá-los como mão de obra para as diferentes atividades, dentre elas, a principal em termos de rendimentos econômicos: a extração das drogas do sertão. Em suma, concebemos as transgressões cometidas pelos diretores e demais sujeitos, mais do que no sentido de desvios morais, e sim, como estratégias de sobrevivência em meio a sociedade do Vale Amazônico ao tempo do Diretório. Esse estudo, portanto, vai ao encontro das ideias de Paulo Cavalcante Junior, em trabalho que trata sobre os descaminhos praticados na primeira metade do século XVIII no interior da América Portuguesa.3843 O autor reserva grande parte de sua obra para destacar o contrabando 3837

Ver: COELHO, 2005: 261-271. Ver: SOUZA JÚNIOR, 2009: 275-276; 286-288; 292-295. 3839 Ver: Auto de devassa da Vila de Franca. [Em 30/12/1765] – APEP, 160, [não numerado]; Auto de devassa da Vila de Pinhel. [Em 05/01/1766] – APEP, 160, [não numerado]; Documentação microfilmada, Projeto Reencontro. APEP, rolo 12, Códice 126, documento 109. Data: 27/09/1796; João Francisco Ribeiro. [Documento enviado ao governador do Estado do Grão Pará e Maranhão, João Pereira Caldas, em 24/06/1779 ] - APEP, códice 352, documento 57; Auto de devassa da Vila de Pinhel. [Em 05/01/1766] – APEP, 160, [não numerado]; Auto de devassa da Vila de Esponsende. [Em 09/11/1765] – APEP, 160, [não numerado]. 3840 COELHO, 2005: 227-228. 3841 DIRECTORIO que se deve observar... §62. In: ALMEIDA, 1997. 3842 COELHO, 2005: 258-259. 3843 CAVALCANTE, 2002. 3838

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ISSN 2358-4912 do ouro, extraído nas Minas Gerais, o qual escapava dos diferentes procedimentos de controle introduzidos pela Coroa Portuguesa. Esses descaminhos envolviam diferentes sujeitos, tanto aqueles ligados a administração colonial ou não: governadores, membros da câmara, soldados, mineradores, clérigos, comerciantes e entre outros. Dessa forma, o objetivo de Paulo Cavalcante em seu trabalho é apontar que “o descaminho é uma prática social constitutiva e formadora da sociedade colonial”.3844 Para o autor, antes de serem vistos como desvios morais, esses descaminhos tem que ser entendidos como um meio encontrado por diferentes sujeitos para escaparem de um contexto marcado pelo controle e exploração por parte da Coroa. Portanto, não devem ser atos que venham a ser classificados como corruptivos, mas sim, práticas contidas no interior do corpo social, vistas por todos como algo natural.3845 Conclusão Os resultados aqui expostos foram fruto de pesquisa realizada ainda no período da graduação. Tendo como intuito buscar melhor compreender o ofício desempenhado pelos diretores de povoação, a partir das justificativas apontadas no decorrer do trabalho, meu objetivo foi destacar dois aspectos relacionados a esses sujeitos, os quais foram possíveis de serem obtidos por meio da leitura da documentação e da historiografia que aborda o tema. Apontar alguns dos empecilhos que os administradores dos índios poderiam se deparar no exercício do cargo, contribui para problematizar uma visão unitária que foi construída sobre esses indivíduos. Dito de outro modo, visto como um posto que quem o ocupasse poderia se beneficiar da proximidade com os povos indígenas e com as drogas do sertão utilizando-se de práticas ilícitas, destacar algumas das dificuldades encontradas pelos diretores pode trazer avanços não apenas para compreendermos melhor a respeito do trabalho desses sujeitos, mas também, para redimensionarmos os benefícios que uma diretoria poderia trazer a seu ocupante. Constatamos o caso de um indivíduo que pediu a saída do cargo devido as dificuldades aqui apontadas. Sendo assim, um caminho interessante a se fazer seja não criar generalizações sobre a atuação dos diretores. Isto é, suas ações poderiam estar condicionadas a fatores como a abundância ou não de uma povoação. Será que em certas povoações, fruto de uma produção agrícola maior, e fruto de uma quantidade populacional mais significativa, havia maiores descumprimentos a lei por parte dos diretores e demais sujeitos? Ou seria o contrário? Além dessa questão, atentamos para o ponto de que talvez seja mais proveitoso analisar as infrações cometidas pelos diretores a partir de uma dimensão histórica: descumprir as normas se tornava o horizonte possível para muitos dos sujeitos residentes no Vale Amazônico ao tempo do Diretório, devido este, ser um contexto marcado por intensas disputas em torno da mão de obra indígena. Portanto, pesquisas imbuídas em estudar as relações sociais estabelecidas pelos diretores com os demais sujeitos da Amazônia Portuguesa seriam fundamentais. A partir delas, poderíamos melhor dimensionar algumas questões que estivessem relacionadas a estratégias de sobrevivência, tais como: para quais fins exatamente estas relações existiam, que sujeitos participavam dela e que amplitude possuía essas relações. Em outras palavras, as relações mantidas pelos diretores com outros agentes visavam a que? Usufruir da mão de obra indígena, participar mais ativamente da atividade extrativa ou os dois juntos? Buscar destacar os indivíduos que participavam dessas articulações e a sua amplitude seria importante para constatarmos quem poderia estar envolvido nas infrações cometidas a lei. Isto é, se nessas infrações estavam envolvidos, ou não, desde o indígena utilizado como força de trabalho até o governador e/ou o ouvidor da capitania. São algumas dessas questões que venho buscando responder em minha pesquisa de mestrado. Referências ALDEN, Dauril. O significado da produção de cacau na região amazônica no fim do período colonial: um ensaio de História econômica comparada. Belém: UFPA/NAEA, 1974. 3844 3845

Ibidem, p. 24-25. Ibidem, p. 42-43.

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ISSN 2358-4912 ALMEIDA, Maria Regina Celestino. A falácia do povoamento: ocupação portuguesa na Amazônia Setecentista. In: [COELHO, Mauro Cezar]. Meandros da História: trabalho e poder no Pará e Maranhão, séculos XVIII e XIX. Belém: UNAMAZ , 2005. ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os Vassalos D’El Rey nos confins da Amazônia: a colonização da Amazônia Ocidental. 1750-1798. Dissertação (Mestrado em História). Niterói: Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 1990. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização – bosquejo histórico com vários documentos inéditos. Belém: secretaria de Estado e Cultura, 1999. CAVALCANTE, Paulo. Negócios de Trapaça: Caminho e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). Tese de Doutorado. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2002. CHAMBOULEYRON, Rafael. Povoamento, Ocupação e Agricultura na Amazônia Colonial (1640-1706). Belém: Açai/ Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/Centro de Memória da Amazônia (UFPA), 2010. COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, História Social, 2005. FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. FONTENELE, Francisca Nescylene. Grão Pará Pombalina: Trabalho, Desigualdade e Relações de Poder. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História. São Paulo, 2008. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SOUZA JÚNIOR, José Alves de. Tramas do Cotidiano: Religião, Política, Guerra e Negócios no Grão-Pará do Setecentos. Um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política Pombalina. Tese de Doutorado. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.

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JESUÍTAS, NATUREZA E FARMÁCIA: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA PARA A COMPREENSÃO DA DINÂMICA COLONIAL (SÉCULOS XVI–XVIII) Viviane Machado Caminha São Bento3846 A preocupação com os serviços de saúde foi uma das marcas da Companhia de Jesus, que não se restringiu à matéria missionária ou educacional nos locais por onde atuou, embora seja impossível negar o valor destes campos no seio da Ordem. Por meio dos serviços de saúde, os jesuítas desempenharam o papel de enfermeiros e cirurgiões, oferecendo cuidados e tratamentos aos doentes e atuaram como farmacêuticos, manipulando medicamentos através de suas boticas e promovendo auxílio à população colonial diante de um cotidiano marcado pela carência de recursos (LEITE, 1953). Na América portuguesa dos primeiros séculos, em um ambiente que lentamente ia sendo desbravado, com a fundação de núcleos populacionais que se caracterizaram pela situação de isolamento em face da imensidão do território, os inacianos, assim como a população local, vivenciaram uma situação que se caracterizou no geral pela precariedade e falta de privacidade no universo da intimidade. A distância da metrópole e o atraso das frotas de abastecimento impuseram um cotidiano marcado pela carência de “utensílios domésticos, equipamentos de trabalho, anzóis e linhas, armas, tecidos, remédios e tudo mais de que se precisava”. (ALGRANTI, 1997, P. 120) A esse cenário, somou-se o quadro de doenças e epidemias as quais estiveram expostas a população colonial como os surtos epidêmicos de gripe, “prioris” (pleuris, espécie de pneumonia), sarampo (ampollas), febre amarela e varíola (bexigas/doença maligna), além de doenças como as câmaras de sangue (disenteria) e as sexualmente transmissíveis, como a sífilis e a gonorréia. Tal situação contribuiu ainda mais para a desorganização do cotidiano colonial pelo fato de que a chegada de medicamentos, que a princípio vinham do Reino, esteve comprometida diversas vezes em função da pirataria e das dificuldades de navegação, que impediram a vinda de navios portugueses. A experiência do Novo Mundo permitiu aos jesuítas, além do envolvimento com a população nativa, o contato com a exuberante fauna e flora locais, propiciando a utilização de muitos de seus elementos na fabricação de medicamentos. Ancorados no conhecimento nativo sobre a natureza e seus efeitos terapêuticos, os jesuítas com seu espírito prático, deram início à confecção de cadernos manuscritos a partir de anotações sobre a utilização de certas plantas. A relação composta por Fernão Cardim oferece excelente exemplo dessa prática, encontrando-se nela descrição de árvores e ervas que serviam para medicinas e mezinhas como a igpecacóaya (ipecacuanha), proveitosa no tratamento das câmaras de sangue (disenteria acompanhada de sangramento), a erva santa indicada para “feridas, catarros, além de doenças da cabeça, estômago e asmáticos”, a sobaúra apropriada para “chagas velhas, que já não têm outro remédio” e a goembegoaçú, usada no tratamento do “fluxo de sangue de mulheres”. (CARDIM, 1980, P. 43) Para espaços apropriados como quintais e campos foram levadas em quantidade espécies nativas e de outros lugares do mundo, permitindo, desse modo, a exploração do potencial curativo de cada planta, bem como a utilização de grande variedade destas na fabricação de medicamentos. Esse fato dirige nossa reflexão para o questionamento de determinadas interpretações sobre a atuação dos jesuítas na colônia. O primeiro diz respeito à noção simplista de apropriação do conhecimento nativo sobre as virtudes curativas das plantas, desconsiderando assim a existência de um intercâmbio entre esse conhecimento e o europeu. Se por um lado, os missionários lançaram mão de algumas práticas curativas nativas, partindo da utilização de elementos da fauna e flora locais, por outro as uniram ao conhecimento prévio que possuíam da farmacopeia europeia. A incorporação de tais práticas foi sinalizada por Cristina Gurgel em 3846

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected]

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ISSN 2358-4912 obra que trata não apenas das doenças que afligiram a população colonial, mas, também da formulação de práticas curativas híbridas ao apontar que de um lado, ancorados pela filosofia e prática médica europeia, por outro, pela terapêutica indígena, com seu amplo uso da flora nativa, os jesuítas foram os reais iniciadores do exercício de uma medicina híbrida que se tornou marca do Brasil colonial. Alguns religiosos vinham de Portugal, já versados nas artes de curar, mas a maioria aprendeu na prática diária as funções que deveriam ser atribuídas a um físico, cirurgião, barbeiro ou boticário. (GURGEL, 2010, P. 113)

É importante destacar também que o auxílio médico dos jesuítas à população nativa fez parte da estratégia missionária de aproximação do outro no processo de conversão3847. O alastramento e propagação de doenças como varíola, sarampo, coqueluche, catapora, gripe e tifo pelos aldeamentos, ocasionando a elevada mortalidade dos nativos, abriu espaço para a atuação dos missionários no campo da cura3848. Nesse sentido, Glória Kok destacou que “enquanto os índios sãos consideravam os jesuítas portadores da morte, os doentes depositavam nos padres a esperança de cura. Instalou-se então uma acirrada disputa pela capacidade de curar os doentes. Tanto os jesuítas quanto os pajés operavam num plano simbólico para curar doenças”. (KOK, 2001, P. 98) Do intercâmbio entre o conhecimento nativo e o europeu sobre as propriedade curativas das plantas surgiu uma série de medicamentos célebres e requisitados em todas as partes do mundo, feitos a partir de produtos vindos do Oriente, América e África. O manuscrito de 1766, intitulado Colecção de várias receitas e segredos particulares da nossa Companhia de Portugal, da Índia, de Macau e do Brasil. Compostas e experimentadas pelos melhores médicos e boticários mais celebres que tem havido nestas Partes. Aumentada com alguns índices e notícias muito curiosas e necessárias para a boa direção e acerto contra as enfermidades nos oferece uma visão tanto das moléstias mais freqüentes que assolavam o cotidiano das populações, como também das formas de tratamento desenvolvidas. Trata-se de um conjunto de 260 receitas de medicamentos feitos em diversas boticas, espécie de farmácia, da Companhia de Jesus. Desse total 38 são do Colégio da Bahia, 7 do Colégio do Recife, 2 do Colégio do Rio de Janeiro e outras 15 sem a indicação da botica, mas contendo o nome de jesuítas pertencentes ao Brasil à época, perfazendo um total de 62 medicamentos provenientes somente da América portuguesa (MAIA, 2012, p.105) Os medicamentos desenvolvidos destinavam-se, preferencialmente para a terapêutica das doenças de pele, anemia e sífilis. Entrementes, foram confeccionados medicamentos para uma variada gama de doenças tais como as enfermidades da pele 2; doenças anêmicas 8; males venéreos 7; eméticos ou vomitórios 7; purgantes 6; febres e sezonismo 4; enfermidades das senhoras 4; chagas e feridas 3; vermes intestinais 3; tumores duros 3; apoplexias 3; paralisia 2; histerismo 2; lobinhos, verrugas e cancros (não malignos) 2; doenças dos olhos 2; dores de cabeça 2; e um específico para cada uma das seguintes enfermidades: do peito, coração, estômago, cólicas, disenterias, varíola ( remédio que se apresenta não como eficaz em todos os casos, mas útil), reumatismo, gota, hidropisia, epilepsia, escorbuto, insônia e mordeduras de cobras. (LEITE, 1956, P. 13)

Os medicamentos produzidos pelos jesuítas em forma de triagas, pós, ungüentos, emplastros, xaropes, tinturas e outros foram provenientes de boticas que funciovam em dependências especiais dos colégios jesuítas. É provável que existissem boticas em todos os colégios jesuítas no Brasil, que eram num total de 17 quando do momento da expulsão dos inacianos em 1759, mas sabe-se com certeza das boticas dos colégios da Bahia, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Maranhão e Pará. (LEITE, 2013, P.72) 3847

Para a noção de estratégia ver a obra de CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994. 3848 Em nossa perspectiva, os aldeamentos são compreendidos enquanto território de interpenetração cultural, local propício para o processo de negociação entre índios e missionários, abandonando, desse modo, noções que enfatizam apenas a lógica do conflito e da repressão.

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ISSN 2358-4912 Estes espaços encontravam-se paramentados com uma série de instrumentos, conforme aparece na descrição da botica do Colégio do Maranhão, que mesmo não sendo considerada uma das maiores se encontrou tres fornalhas, uma estufa com os trastes seguintes: hum alambique de cobre estanhado, dois alambiques de barro vidrado, 5 tachos de arame, um almofariz de 2 arrobas com sua mão de ferro, e outro de 12 libras com sua mão, mais 2 pequenos, tinha mais quatro alambiques de mármore com mãos de pau, mais 2 de marfim pequenos, 6 tamizes com suas tampas de couro, 4 sedaços. Tinha mais 2 almarios grandes e hum bufete grande com 4 gavetas; 2 pares de balanças pequenas, mais duas que eram ordinárias, uma de arame, outra de folha. (...) Tinha mais 30 tomos de Medicina e Botica, um candieiro de arame, 6 espatulas de arame, huma imprensa, 2 bacias de arame, 2 escumadeiras de arame. Ficou mais em casa do cirurgião Manuel de Sousa 30$000 reis em remédios, 5 tomos de Medicina, um alambique de cobre estanhado, 2 alambiques de barro vidrado. (LEITE,

1953, p. 92) Como é possível apreender da leitura da lista de instrumentos encontrados na botica do Colégio do Maranhão havia a disposição dos boticários além de equipamentos variados uma biblioteca privativa e especializada, que era diferente da biblioteca geral do Colégio. O manuscrito do catálogo do Colégio jesuítico de Santo Alexandre, localizado em Belém do Grão-Pará, trouxe a notícia de que sua botica achava-se junto com a rouparia, por falta de lugar, e que neste local se encontravam além de caixas e baús, “bacias para lavar os pés e sangrias, almofariz, alambiques, estantes antigas, com vidros, vasos, bocetos e balança; e alguns medicamentos antigos não deste ano [1720]”. (MARTINS, 2009, P. 197-198). Além de possuírem um receituário particular em suas boticas, os jesuítas lançavam mão de uma descrição detalhada que continha a discriminação dos ingredientes utilizados, seu peso, tendo por base a libra medicinal de 12 onças, seguindo-se dos métodos de laboratório para a obtenção de determinados produtos químicos, como por exemplo, o Nitrato de Prata (AgNO3), chamado à época de “Pedra Infernal” e utilizado por cirurgiões em processos de cauterização. Nesses espaços, foram confeccionados medicamentos de valor reconhecido, muitas vezes disponibilizados ao público gratuitamente, sobretudo em períodos de epidemias. Eram encontrados remédios de origem dos três reinos: vegetal, animal e mineral. E além das boticas localizadas nos colégios jesuítas, existem relatos sobre boticas flutuantes, na forma de embarcações, que transportavam remédios ao longo da costa brasileira, conforme o caso do Colégio do Maranhão que abastecia todo litoral até o Pará (LEITE, 1953). A existência de boticas no seio da Ordem e a conseqüente fabricação de medicamentos por si só é um indicativo da preocupação dos jesuítas com os serviços de saúde em todas as partes do mundo onde atuaram. As boticas das missões jesuítas do Oriente produziram medicamentos muito apreciados na Europa, “seja porque fossem boticários de ofício [que os produziam], seja porque aprenderam junto com outro irmão que possuía um notório conhecimento sobre esta arte” (MAIA, 2012, p. 104). A botica do Colégio de São Paulo de Goa se popularizou com a fabricação da Pedra Cordial de Goa, também conhecida como Pedra de Gaspar António, preparada “com vários simples idênticos de origem mineral, triturados” que, de modo semelhante à famosa Triaga Brasílica, era concebida como remédio polivalente. (MAIA, 2012, P. 84). Ainda sobre as boticas que os jesuítas mantinham no Oriente é ilustrativa a informação de que “em 1603, a botica do Colégio de Macau esteve provida com simples e medicamentos da farmacopéia ocidental que vinham anualmente a partir da botica do Colégio de Goa”, demonstrando a existência de intercâmbio entre as boticas inacianas. (MAIA, 2012, P. 106) A própria estrutura da Companhia de Jesus, operando em rede, permitiu e facilitou a comunicação, difusão e circulação de todo tipo de conhecimento, sobretudo aqueles relacionados à utilização de plantas curativas na fabricação de medicamentos. O segundo ponto passível de questionamento sobre a atuação dos jesuítas na colônia com relação aos serviços de saúde, diz respeito à noção reducionista de que suas práticas foram resultantes de necessidades motivadas pelas circunstâncias. Serafim Leite, responsável pela escrita oficial da história da Companhia de Jesus, é categórico ao afirmar que

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ISSN 2358-4912 a necessidade local obrigou pois os jesuítas a terem abundante provisão de medicamentos; e também logo a procurarem os que a terra podia dar, com as suas plantas medicinais, que começaram a estudar e a utilizar em receitas próprias, como as do Irmão Manuel Tristão de que Purchas dá notícia em 1625. Destes remédios e tisanias, iniciadas no século XVI, se foi pouco e pouco ampliando a preparação de outros, com ingredientes europeus e da terra, até se estabelecer a farmacopéia brasileira. (LEITE, 1953, p. 86)

Embora se reconheça as condições de adversidade para o cotidiano colonial, sobretudo dos primeiros séculos, onde a população esteve exposta não apenas ao isolamento, mas também às intempéries climáticas, aos ataques de animais, a toda sorte de doenças e epidemias, além de períodos de fome, por vezes prolongado, é necessário refletir sobre a existência de um acúmulo de conhecimento prévio, fomentado pela própria estrutura em rede da Companhia de Jesus. Desse modo, a noção de que os jesuítas, com relação aos serviços de saúde, atuaram sempre de modo improvisado e motivados pelas circunstâncias nos parece uma chave de leitura um tanto quanto reducionista de seus feitos e equivocada. Muito se fala da função exercida pela correspondência epistolar no seio da Ordem3849. Esse instrumento de divulgação da ação missionária dentro e fora da Companhia de Jesus, proporcionou o conhecimento de informações sobre as adaptações das regras às situações locais, bem como permitiu o compartilhamento de informações sobre os serviços de saúde promovidos nas regiões por onde os jesuítas atuaram e o conhecimento de propriedades das plantas. Um bom exemplo é a passagem em que o padre Fernão Cardim menciona a árvore Cupaigba (Copaíba), de onde se retira o óleo de copaíba, estimado na confecção de medicamentos. A mesma é descrita como huma figueira commumente muito alta, direita e grossa; tem dentro della muito oleo; para se tirar a cortão pelo meio, onde tem o vento, e ahi tem este oleo em tanta abundancia, que algumas dão hum quarto, e mais de oleo, He muito claro, de côr d´azeite; para feridas He muito estimado, e tira todo sinal. Tambem serve para as cândeas e arde bem; os animais, sentindo sua virtude, se vêm esfregar nellas; ha grande abundancia, a madeira não vale nada. (CARDIM, 1980, P. 37)

Em muitos casos, foram confeccionados manuais e livros sobre a utilização e a potencialidade curativa de plantas nativas, como a obra publicada pelo jesuíta Pedro de Montenegro intitulada Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles i plantas das missòes y províncias de Tucuman com algumas Del Brasil e Del Oriente, de 17113850. Nesta, conforme o título explicita, temos notícias sobre as propriedades de plantas encontradas não somente nas missões espanholas, mas também no Brasil e no Oriente, deixando clara a existência de uma rede missionária de troca de informações e a preocupação com o saber botânico. Além de coletar informações sobre as características e explorar as potencialidades das plantas nativas, os jesuítas difundiram e estimularam a circulação de produtos, até aquele momento, desconhecidos no Velho Mundo, pois muito do conhecimento sobre as utilidades terapêuticas e alimentares das plantas foi herdado de compêndios escritos na Antiguidade. Conforme destacou Heloisa Gesteira Em relação aos saberes sobre plantas, presentes na cultura da História Natural e da medicina, as referências eram os escritos de Plínio e Dioscórides. O contato direto com novas regiões levou ao questionamento dos saberes herdados dos antigos, que ainda eram uma referência, mas tornava-se igualmente relevante a experiência da observação direta.

(GESTEIRA, 2013, P. 42)

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Ver HUE, Sheila Moura. Primeiras cartas do Brasil [1551-1555]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. MONTENEGRO, Pedro de. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles i plantas de las missiones y províncias del Tucuman, del Brasil y del Oriente, compuesto por El Hermano Pedro de Montenegro de la Compania de Jesus, Ano de 1711, Provincia del Paraguai. Manuscrito, Biblioteca Nacional, Madrid; Ms 10314. 3850

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ISSN 2358-4912 Ao utilizar produtos naturais próprios das Américas, os jesuítas popularizaram as virtudes curativas de plantas como a erva caraguatá: “espécie, à vista aprazível, mas cheia de préstimos para a vida humana (...) florida tem várias e notáveis espécies. Uma delas é a verdadeira erva babosa medicinal, conhecida, de que usam nossas boticas”. (VASCONCELOS, 1977, P. 148) Essa descrição presente na obra de Simão de Vasconcelos é um excelente exemplo e referência de veículo de divulgação dos tipos de drogas e simples do Novo Mundo, também importante por ser reveladora da preocupação com a descrição e vulgarização do conhecimento indígena e europeu. Temos ainda a notícia de que nas receitas de boticas jesuítas em Portugal e no Oriente havia menção a utilização de diversas plantas encontradas na América portuguesa como a quina, o bálsamo do Brasil ou Copaíba e a almécega do Brasil. (LEITE, 2013, P. 86) Vale ressaltar que o estudo feito por Bruno Leite assinala que de um total de 122 plantas empregadas pelos jesuítas em suas boticas em receitas inventadas na colônia, 69 delas eram conhecidas dos boticários europeus e, desse modo, fizeram parte de um conhecimento trazido pelos portugueses. (LEITE, 2013, P. 80) Finalizamos essa comunicação ressaltando que a expansão do Império português se deu em muitos aspectos por conta da atuação dos missionários inacianos, tanto na América portuguesa quanto no Oriente. De modo que não é possível compreender a dinâmica colonial sem levarmos em consideração, sobretudo, os serviços de saúde ofertados por estes. Os surtos epidêmicos e as doenças a que estiveram expostas a população colonial foi um dos fatores que, em grande medida, comprometeu a economia colonial, seja pelos longos períodos de fome ocasionados pela carência de braços para o trabalho nas lavouras, ou mesmo pela elevada taxa de mortalidade resultante das moléstias. Nesse sentido, o conhecimento jesuíta sobre o mundo natural, complementado pela incorporação do saber indígena no que diz respeito à utilização e manuseio de plantas de potencial curativo foi fundamental. O trabalho nas boticas jesuítas com a produção/fabricação de medicamentos que buscaram trazer a cura para uma série de males e chagas que assolavam o cotidiano colonial deve ser encarado sob o prisma do constante intercâmbio e circulação de conhecimento promovido no seio da Ordem com relação a questões ligadas a manutenção da saúde, considerando sempre o conhecimento que se tinha do funcionamento do corpo humano à época.

Referências ALGRANTI, Leila Mezan. “Família e vida doméstica”. In NOVAIS, Fernando A.; SOUZA, Laura de Mello e. (Orgs). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994. GESTEIRA, Heloisa M. “A América portuguesa e a circulação de plantas, séculos XVI – XVIII’. In KURY, Lorelai [et al.]. Usos e circulação de plantas no Brasil, séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2013. GURGEL, Cristina. Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos. São Paulo: Contexto, 2010. HUE, Sheila Moura. Primeiras cartas do Brasil [1551-1555]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. KOK, Maria da Glória. Os vivos e os mortos na América portuguesa: da antropofagia à água do batismo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. LEITE, Bruno M. B. “Verdes que em vosso tempo se mostrou. Das boticas jesuítas da província do Brasil, séculos XVII-XVIII”. In KURY, Lorelai [et al.]. Usos e circulação de plantas no Brasil, séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2013. LEITE, Serafim. Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549 – 1760). Lisboa: Brotéria, 1953. ______. Serviços de saúde da Companhia de Jesus no Brasil (1544-1760). Lisboa, Typografia do Porto, 1956.

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ISSN 2358-4912 MARTINS, Renata Maria de Almeida. O manuscrito do Catálogo do Colégio Jesuítico de Santo Alexandre em Belém do Grão-Pará (1720) da Coleção Lamego do arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Revista ieb, nº 49, mar./set.. p. x-xx, 2009. MONTENEGRO, Pedro de. Libro primero de la propriedad y birtudes de los arboles i plantas de las missiones y províncias del Tucuman, del Brasil y del Oriente, compuesto por El Hermano Pedro de Montenegro de la Compania de Jesus, Ano de 1711, Provincia del Paraguai. Manuscrito, Biblioteca Nacional, Madrid; Ms 10314. VASCONCELOS, Simão de. “Notícias antecedentes, curiosas e necessárias das cousas do Brasil”. In Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, 2v.

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AS FORÇAS MILITARES DE UMA CAPITANIA SUBALTERNA NA AMÉRICA PORTUGUESA: O CASO DA CAPITANIA DE SERGIPE D’EL REI (1750-1800) Wanderlei de Oliveira Menezes3851 No dia nove de março de 1768, por volta das sete ou oito horas da noite, entrou na povoação da Estância, termo da vila de Santa Luzia, uma numerosa tropa de homens armados com bacamartes, espingardas e catanas trazendo um preto preso e o levaram a cadeia afim de entregá-lo ao carcereiro. Contudo, o verdadeiro interesse do grupo não era contribuir com a justiça, e sim se apossar da chave das selas e soltar os presos que ali se encontravam. O plano era se aproximar do carcereiro e forçá-lo a soltar os prisioneiros. Percebendo a quantidade de pessoas armadas e temendo pela própria vida, o carcereiro fugiu e levou consigo as chaves da cadeia que passou a ficar desprotegida. Os criminosos perceberam que o carcereiro havia deixado o lugar, agiram de modo a entregar armas aos detentos e em três horas a cadeia estava arrombada e os quatorzes presos (em sua maioria acusados de furto e homicídio) estavam livres, dos quais nove tinham sido remetidos na semana anterior da cadeia de São Cristóvão que havia também sido arrombada. Os presos estavam prestes a serem enviados as prisões da cadeia da Relação (Salvador), a espera apenas de melhores condições náuticas para serem enviados de barcos.3852 Ciente que a cadeia da Capital da Capitania era “pequena e menos forte, precisando de conserto porque antecedentemente haviam principiado pela parte de dentro o arrombamento dela”, o ouvidor João Batista Dacier, julgou ser conveniente enviar os presos a cadeia da povoação da Estância por ser mais segura e se situar próximo a um porto de onde partiam embarcações continuamente para Salvador. O que mais impressionou o ouvidor não foi apenas o arrombamento como até aqui relatado, mas a “ação mais escandalosa pelas circunstâncias que concorreram”. Segundo relata o ouvidor da comarca de Sergipe, os moradores percebendo a ação criminosa dos malfeitores gritaram “aqui d’El Rei”, como se suplicassem ao Rei e suas autoridades constituídas socorro. A resposta de um dos arrombadores da cadeia foi imediata: “Qual Rei? El Rei sou eu.”. Porém o alvo não era o Rei: “quem nós queríamos aqui apanhar era o valentãozinho do ouvidor”. E mais: “já tenho feito muitas mortes e arrombado quatro cadeias e estou com a mão bem assentada quem quiser morrer chegue. Já sou de todos os diabos, que há doze anos me não confesso”.3853 Percebendo a ausência de efetivo militar na povoação, os criminosos gritam em alto e bom som que “cortem devagar que a noite é nossa e ainda temos quatro diabos ao pé de si”.3854 Após terminarem o serviço, o grupo se dirigiu a praça da povoação de fronte à Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe disparando tiros para o alto e com palavras injuriosas contra os moradores, desafiando a saírem de suas casas para virem resgatar os presos ou desejassem simplesmente morrer. Episódios como o acima relatado demonstram a fragilidade do corpo militar e dos agentes da justiça local. Caberia ao juiz ordinário e ao capitão-mor mobilizar homens, armas e esforços para se oporem a ação dos malfeitores. E onde estavam o juiz ordinário, a milícia e os soldados para coibirem o arrombamento, já que todos deveriam residir na povoação? O ouvidor acredita que o juiz ordinário e o ouvidor estavam bem longe da cena do crime, em suas propriedades, cuidando de seus interesses em detrimento do bem comum. Como nenhuma providência foi dada para serem apreendidos os autores dos insultos ao rei e seu ministro (ouvidor), resolveu o ouvidor, que só soube do incidente porque o carcereiro foi a sua presença na capital da Capitania, ir pessoalmente a povoação percebeu que as duas citadas autoridades não havia 3851

Mestrando em História pela Universidade Federal de Sergipe. Contato:[email protected] 3852 Carta do Ouvidor de Sergipe acerca da invasão da cadeia da Povoação de Estância efetuada por criminosos, em 22 de março de 1768. Arquivo Público Estadual da Bahia. Seção de Arquivo Colonial. Correspondência recebida pelo Governo da Bahia da Ouvidoria Geral da Comarca de Sergipe d’El Rei (1768-1795). Maço 201, Vol. 11. Doc. 01. As citações abaixo referem-se a este documento. 3853 Idem. 3854 Idem.

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ISSN 2358-4912 sequer aparecido na povoação três dias depois do ocorrido. Irritado com a situação, o ouvidor suspendeu legalmente o exercício do juiz ordinário e o capitão-mor da povoação e os prendeu. Esse tipo de atitude excepcional era garantida aos ouvidores em momentos que a ordem pública assim o exigisse, mesmo que tal atitude fosse de encontro com a câmara de vereadores que elegeu o juiz ordinário e o capitão-mor da Capitania que era o responsável pelas ordenanças. Segundo Felisbelo Freire, em 1763, os indígenas invadiram e saquearam São Cristóvão, aliado aos negros, trazendo pânico e insegurança aos moradores. Dois anos depois, Isidoro Gomes chefiou um grupo armado que derrubou a machadadas a câmara e a cadeia da vila de Geru. Os indígenas defendem a vila e cenas de derramamento de sangue, com mortos e feridos foram presenciadas. Graças à atuação das ordenanças e de oficias da cavalaria a situação foi contornada e o sossego público garantido. Nesses dois episódios narrados percebe-se o papel das forças militares na promoção da ordem social. A capitania de Sergipe d’El Rei estava situada na faixa litorânea entre os rios Real e de São Francisco, na divisa das capitanias da Bahia e de Pernambuco. A fundação da capitania se processou por meio de “guerra justa” contra as populações indígenas, através de empreendimento militar liderado por Cristóvão de Barros, em 1590.3855 A conquista se justificava pelo interesse dos moradores da Bahia de Todos os Santos pelos pastos dos rios Real, Piauí, Vaza-barris, Sergipe, Japaratuba e, principalmente, Rio de São Francisco, fundamentais à expansão da pecuária nos sertões de baixo. 3856 A capitania de Sergipe tinha funções de ordem estratégica e econômica no contexto das possessões do império português na América: garantir a comunicação entre os dois mais importantes polos da parte setentrional da América Portuguesa (Bahia-Pernambuco) e supri-los com mantimentos. A administração civil-militar da capitania cabia ao capitão-mor e às forças militares. Foi essa autoridade quem mais perdeu com a nova configuração territorial-administrativa, pois além do rei passou a ter laços de obediência ao capitão-general e governador da Bahia que passou a interferir ativamente nas escolhas dos capitães-mores. Antes de 1763, a escolha dos capitães-mores se dava por meio de candidaturas em editais preparados e inspecionados pelo conselho ultramarino que selecionava candidatos por meio da sua “qualidade” e folha de serviços, submetendo à aprovação régia.3857 Quando o cargo se achava vago era provido por meio de editais públicos afixados por tempo de vinte dias para que todas as pessoas que desejassem concorrer a vaga pudesse se inscrever. Os candidatos deveriam apresentar os documentos necessários (requerimento ao secretário do conselho e documentos comprobatórios de prestação de serviços à Coroa) que deveriam ser autenticados e constar de forma descritiva os cargos ocupados e, principalmente, a quantidade exata de tempo (dias, meses e anos) no exercício das atividades descritas. Alguns candidatos não eram nem considerados capazes de concorrer à vaga. Era costume a elaboração da lista tríplice dos pretendentes. Os conselheiros ultramarinos analisariam a documentação e enviavam ao Rei a relação dos inscritos e a sugestão de quem deveria ocupar o posto por ordem classificatória, pois caso o primeiro colocado por algum motivo não tomasse posse, os demais poderiam solicitar a vaga. Em diversas ocasiões a decisão do Conselho Ultramarino não era seguida pelo Rei. Por exemplo, em 1743 foi lançado edital para prover o posto de capitão-mor da capitania de Sergipe. Concorreu Estevão de Faria Delgado, Manuel Francês e Caetano de Melo e Albuquerque. 3855

Sobre a conquista de Sergipe, vide: PRADO, J. F. de Almeida. A Bahia e as capitanias do centro do Brasil (1530-1626). Tomo 2. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948. P. 207-228; NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Aracaju: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. P. 17-37; FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe, 1575-1855. Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1891. P. 01-23; SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-1627). Rio de Janeiro; São Paulo: Weiszflog irmãos, 1918. P. 334-342. 3856 SCHWARTZ, Stuart B. O Brasil Colonial, c.1580-1750: as grandes lavouras e as periferias. In: BETHEL, Leslie (org). História da América Latina: A América Latina Colonial. V. II. São Paulo: EDUSP, 1999. P. 379. 3857 MONTEIRO, Nuno Marques. Governadores e capitães-mores do império atlântico português no século XVIII. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia A. Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005.

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ISSN 2358-4912 Estevão de Faria Delgado foi o indicado pelos conselheiros, porém o nomeado foi Manuel Francês, por carta-régia de 17 de setembro de 1744. 3858 Todos os candidatos tinham experiência militar de mais de duas décadas e atuando no Reino e conquistas ultramarinas. Estevão de Faria Delgado havia “servido a Vossa Majestade neste Reino e no Estado do Brasil por espaço de trinta e dois anos e dez dias com algumas interpolações, continuados de 16 de janeiro de 1708 até 25 de maio de 1741”.3859 Ele teve uma carreira militar ascendente, começando do baixo escalão e atingindo níveis mais elevados da hierarquia militar de: “praça de soldado, sargento do número, alferes de infantaria vivo e reformado, tenente do regimento da armada, capitão de um terço da guarnição da Praça da Bahia”.3860 Já havia recebido a mercê régia de administrar a capitania de Sergipe por patente real, estando a frente da administração da capitania pelo prazo legal (um triênio, 1737-1740). O fato de ter recentemente ocupado o posto pretendido certamente influenciou a decisão real a favor de Manuel Francês que tinha a experiência de vinte sete anos de serviço prestados à Coroa e havia ocupado o cargo de capitão-mor do Ceará (1720-1726), capitania subalterna a Pernambuco.3861 A última consulta para o posto de capitão-mor de Sergipe anterior a 1763 ocorreu em 13 de maio de 1757, com sete candidatos inscritos, dos quais três tinham condição de assumirem o posto. O escolhido pelo Conselho Ultramarino foi José de Araújo de Aguiar, “cavaleiro fidalgo da Casa de Vossa Majestade e professo na ordem de Cristo, que mostra ter servido a Vossa Majestade no Estado da Índia por onde foi voluntariamente deste Reino por espaço de vinte e um anos, sete meses e vinte e um dias efetivos e continuados”.3862 O também cavaleiro fidalgo da Casa Real Joaquim Antônio Pereira da Serra Monteiro era tenente do Regimento de infantaria no reino e membro da junta do comércio com vinte anos de prestação de serviços.3863 Este último foi o nomeado por D. José I para assumir o posto de capitão-mor, tomando posse apenas em 1760. Entre 1763 e 1808, as consultas do Conselho Ultramarino para provimento do posto de capitão-mor de Sergipe tornaram-se raras, em consequência da prerrogativa do capitão-general e governador de prover o posto e solicitar a confirmação régia. A única consulta do conselho ultramarino nesse período que conseguimos localizar ocorreu em 1781. O escolhido foi Luís Pinto Osório da Fonseca Guedes, que atuou no Regimento da Primeira Armada Real por dezesseis anos, além de servir na América Portuguesa e São Tomé (África). O selecionado venceu a concorrência de Ambrósio Gomes de Carvalho, que tinha um ano a menos de serviços prestados à monarquia lusa.3864 Concorreram com condições de conquistar a vaga apenas esses dois candidatos. Os demais foram considerados incapazes. Desconhecemos os motivos que impossibilitaram ao escolhido tomar posse do cargo. Em 1793, o sargento-mor de ordenanças da Bahia solicitou ao governador D. Fernando José Portugal ser provido no posto de capitão-mor da capitania de Sergipe. O pedido foi negado, pois: O posto de capitão-mor da referida capitania sendo de consideração, não me parece acertado que seja nele provido o suplicante, sendo homem ordinário, paisano e havendo oficiais da tropa regular capazes de cumprir muito melhor com as obrigações do mesmo posto que são os que Sua Majestade recomenda aos governadores mandem para aquela capitania, quando a necessidade pedir, a vista da ordem que remeto por cópia. Os serviços

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Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitão-mor da capitania de Sergipe em 22 de novembro de 1743. AHU.CU.BR/SE. Cx. 04, Doc. 347. 3859 Idem. 3860 Idem. 3861 Idem. 3862 Eram eles: José de Araújo de Aguiar, os irmãos Joaquim Antônio Pereira da Serra Monteiro e José Diogo Pereira da Serra Monteiro, José Caetano Serra, Antônio José de Miranda, João Caetano de Macedo e Antônio da Costa Souza. 3863 Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitão-mor da capitania de Sergipe em 13 de maio de 1757. AHU.CU.BR/SE. Cx. 05, Doc. 401. 3864 Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitão-mor da capitania de Sergipe em 15 de fevereiro de 1781. AHU.CU.BR/SE. Cx. 06, Doc. 444.

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ISSN 2358-4912 que o suplicante alega, ainda que fossem justificados, não são tão relevantes, que façam 3865 esquecer os requisitos essenciais que nele não concorrem para o que pretende.

O capitão-general e governador da Bahia expôs de forma clara que a governança da capitania caberia ao oficial com maior patente do regimento da guarnição da Bahia (tropa de 1ª linha), sem acréscimo de soldo. Assim, em 1764, o primeiro tenente do Regimento da Bahia José Gomes da Cruz e duas décadas depois o também tenente Antônio Pereira Marinho Falcão serviram de capitão-mor de Sergipe por indicação do governador da Bahia. O capitão-mor comandava todas as tropas da capitania por meio dos capitães-mores de ordenanças, tenentes-coronéis e capitães de auxiliares. Segundo Felisbelo Freire, até o final do século XVII, a capitania estava dividida em cinco distritos militares: Rio Real, Lagarto, Itabaiana, Cotinguiba e Japaratuba.3866 Havia ainda a companhia dos homens pardos (criada em 1674), de Entrada dos Mocambos e dos homens do mato. Na segunda década do século XVIII, novos distritos militares eram criados: Cotinguiba (1724); Igreja Velha (1725); Entre os rios Sergipe e Cotinguiba (1725); Santo Amaro (1726) e Urubu do Rio de São Francisco (1727). Percebemos que na segunda metade do século XVIII a quantidade de tropas militares aumentou sensivelmente. Isso se deve, entre outras coisas, ao aumento populacional e da produção voltada à exportação. Foram criados novos postos militares e terços de ordenanças para as novas povoações que iam surgindo, especialmente na região do Cotinguiba. De acordo com Felisbelo Freire, na segunda década do século XVIII, novos distritos militares eram criados: Cotinguiba (1724)3867; Igreja Velha (1725)3868; Entre os rios Sergipe e Cotinguiba (1725); Santo Amaro (1726) e Urubu do Rio de São Francisco (1727). Com o intuito de conhecer com mais precisão a organização administrativa da Capitania de Sergipe D’El Rei, D. José I ordenou ao Vice-Rei D. Marcos de Noronha em 07 de junho 1756 que exigisse das câmaras de vereadores a descrição geográfica (limites e quadro hidrográfico) de seus respectivos termos. O Vice-Rei, por sua vez, transmite a ordem ao ouvidor da Comarca Ayres Lobo. Cabia ao ouvidor da comarca à incumbência de cumprir as ordens régias o mais rápido possível. Nos primeiros meses do ano seguinte, os camaristas estavam providenciando a resposta à solicitação. No ano seguinte, os vigários das freguesias também seriam obrigados a enviar os dados acerca de suas respectivas áreas de jurisdição. Através das informações dos camaristas, vigários e capitães-mores de ordenanças se pode visualizar, mesmo com as imprecisões, a divisão administrativa da Capitania. Em 1757, a situação militar da Capitania demonstrava a preocupação em fiscalizar de forma mais intensiva a vida dos habitantes da Capitania e o crescimento populacional e de povoações e vilas que a Capitania tinha desde os últimos anos do século anterior. O termo da vila Nova Real do Rio de São Francisco, que abrangia toda a margem do Rio de São Francisco de Xingó a desembocadura, contava com 1.133 soldados divididos em dez companhias de ordenanças e uma a cavalo. A vila do Lagarto era guarnecida um terço de ordenanças, composto por sete companhias de ordenanças com 601 homens. Na área central, circundada por serras foi erigida a vila de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, próxima à Serra homônima. O termo de Itabaiana era defendido por um terço de ordenança, dividido em seis companhias, e uma companhia de cavalaria, para 332 homens.3869 Ao termo da vila de Santa Luzia era defendida por um terço de ordenança, dividido em sete companhias, e uma companhia de cavalaria, totalizando 561

3865

Correspondência do Capitão-general e governador da Bahia D. Fernando José Portugal ao ministro Martinho de Melo e Castro em 19 de agosto de 1793 acerca da nomeação para o posto de capitão-mor da Capitania de Sergipe. AHU.CU/BA. CCA. Cx. 079. Doc. 15.335. 3866 FREIRE, Felisbelo. História Territorial do Brazil. Vol. 1. Rio de Janeiro: Tip. Do Jornal do Comércio, 1906. P. 299. 3867 Estava situado na área dos “sítios de Maria Matosa, Poxim Grande, pelo mesmo rio continuando ao engenho de N. S. do Pilar da Senhora da Conceição pelo rio Manhaga, Comandaroba mirim, estrada Real, Rio Comandaroba, Retiro, até chegar ao Sobrado”. FREIRE, p. 312. 3868 Estava situado na vila da Itabaiana e “principia no sítio chamado a Fazenda da Taborda, até a do Capunga”. Freire. P. 312. 3869 Ibidem, p. 124.

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ISSN 2358-4912 homens.3870 O termo da Vila de Santo Amaro das Brotas, de acordo com as descrições dos camaristas (1757), era a vila mais populosa e com maior número de engenhos e povoações de toda Capitania. 3871 O termo era organizado militarmente por um terço de ordenança com nove companhias, duas companhias de cavalos, somando 821 homens empregados no serviço das armas.3872 A cidade de São Cristóvão era governada por um capitão-mor (o da Capitania). Tinha trinta soldados de infantaria, tirados por destacamento da Praça da Bahia. Com cinco companhias de ordenanças que a guarnecia e três companhias de cavalaria com dois coronéis, totalizando 492 homens. 3873 Com bases nos dados acima, a Capitania era guarnecida por 3.940 homens alistados em companhias de ordenanças ou em terços de ordenanças. Em 1757, a Capitania tinha apenas o 1º Regimento de Cavalaria e Infantaria, sediado na cidade de São Cristóvão. A Vila Nova tinha o corpo de ordenanças com 10 companhias, e 01 companhia a cavalos. A Vila de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto era guarnecido o termo desta vila por um terço de ordenanças com 1 capitão-mor3874, e sete companhias das ordenanças. O termo da vila de Itabaiana era defendido por 1 terço de ordenança e 1 companhia de cavalaria com seu capitãomor. O termo de Santa Luzia tinha um terço de ordenança e uma companhia de cavalaria com 1 capitão-mor. O termo da Vila de Santo Amaro das Brotas. De acordo com as descrições dos camaristas (1757) era a vila mais populosa e com maior número de engenhos e povoações de toda Capitania,3875 era organizada militarmente a vila por um terço de ordenança com nove companhias, sendo duas a cavalo. 3876 Por último, o termo da cidade de São Cristóvão era governada por um capitão-mor (o da Capitania). Em 1757, tinha 30 soldados de infantaria, tirados por destacamento da Praça da Bahia com seu sargento mor e ajudante. Eram 5 companhias de ordenanças que a guarnecia e 3 companhias de cavalaria com dois coronéis.3877 Na relação escrita pelo Capitão da Companhia de Cavalos do distrito da Cotinguiba, Antônio Pereira do lago, irmão do coronel Felipe Pereira do Lago, temos a relação dos soldados alistados na companhia de cavalos. O primeiro a ser arrolado é Manoel Sandes Ribeiro. O pai de Bento José é um dos trinta soldados alistados na companhia.3878 Em 1791, existiam na Capitania dois regimentos de cavalaria auxiliar: o Primeiro Regimento, cujo coronel era Pedro Vieira de Melo, e o Segundo Regimento, comandado pelo irmão do anterior Baltazar Vieira de Melo. Esses dois regimentos representavam a tropa de linha da Capitania. Tinha cada um dos regimentos doze companhias com 486 praças. O Primeiro Regimento de cavalaria Auxiliar atendia a cidade de São Cristóvão, as vilas de Lagarto, e Santa

3870

Ibidem, p. 123-124. Descrição da Vila de Santo Amaro das Brotas em 01 de abril de 1757. In: CAMPOS, José de Oliveira; VIANNA, Francisco V. Estudo sobre a origem histórica dos limites entre Sergipe e Bahia. Salvador: Typ. “Diário da Bahia”, 1891. p. 106-110. 3872 Ibidem, p. 123. 3873 Mapa da companhia de ordenanças, infantaria, cavalaria e auxiliares da cidade de São Cristóvão de Sergipe Del Rei em 20 de março de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. BrasilSergipe. Cx. 05, Doc. 403. 3874 Ibidem, p. 122. 3875 Descrição da Vila de Santo Amaro das Brotas em 01 de abril de 1757. In: CAMPOS, José de Oliveira; VIANNA, Francisco V. Estudo sobre a origem histórica dos limites entre Sergipe e Bahia. Salvador: Typ. “Diário da Bahia”, 1891. p. 106-110. 3876 CALDAS, Jozé Antonio. Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o se descobrimento até o prezente anno de 1759. In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia. Salvador: Secção Graphica da Escola de A. Artifices da Bahia. Nº 57, 1931. p. 123-124. 3877 Mapa da companhia de ordenanças, infantaria, cavalaria e auxiliares da cidade de São Cristóvão de Sergipe Del Rei em 20 de março de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. BrasilSergipe. Cx. 05, Doc. 403. 3878 Mapa da companhia de ordenanças, infantaria, cavalaria e auxiliares da cidade de São Cristóvão de Sergipe Del Rei em 20 de março de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. BrasilSergipe. Cx. 05, Doc. 403. 3871

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ISSN 2358-4912 Luzia. Em relação ao Segundo Regimento, era responsável pela defesa das vilas de Santo Amaro das Brotas, Vila Nova e de Itabaiana.3879 Em todas as vilas tinham terços de ordenanças, comandadas por um capitão-mor de ordenanças e dividida em companhias classificadas pela cor da pele em brancos, pardos e pretos, responsáveis por um distrito..3880 Em 1791, a Capitania tinha nos terços de ordenanças 6.274 praças paisanos, divididos em 53 companhias de ordenanças, e 972 soldados nas 24 companhias dos dois regimentos de primeira linha. Os números podem sugerir um grande efetivo militar, porém dos 7 mil homens empregados na defesa e manutenção da ordem na Capitania poucos tinham instrução militar, pois “Os seus oficiais e soldados foram escolhidos dos moradores de mais possibilidades dela”. 3881 No final do século XVII, a organização militar estava dividida em três: a 1ª linha com as tropas da Cavalaria e Infantaria (pagas e profissionais); a de 2ª Linha, denominadas ordenanças e a de 3ª Linha ou auxiliares. Referências Carta do Ouvidor de Sergipe acerca da invasão da cadeia da Povoação de Estância efetuada por criminosos, em 22 de março de 1768. Arquivo Público Estadual da Bahia. Seção de Arquivo Colonial. Correspondência recebida pelo Governo da Bahia da Ouvidoria Geral da Comarca de Sergipe d’El Rei (1768-1795). Maço 201, Vol. 11. Doc. 01; Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitãomor da capitania de Sergipe em 22 de novembro de 1743. AHU.CU.BR/SE. Cx. 04, Doc. 347; Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitãomor da capitania de Sergipe em 13 de maio de 1757. AHU.CU.BR/SE. Cx. 05, Doc. 401; Consulta do Conselho Ultramarino referente à nomeação de pessoas para o posto de capitãomor da capitania de Sergipe em 15 de fevereiro de 1781. AHU.CU.BR/SE. Cx. 06, Doc. 444; Correspondência do Capitão-general e governador da Bahia D. Fernando José Portugal ao ministro Martinho de Melo e Castro em 19 de agosto de 1793 acerca da nomeação para o posto de capitão-mor da Capitania de Sergipe. AHU.CU/BA. CCA. Cx. 079. Doc. 15.335; Mapa da companhia de ordenanças, infantaria, cavalaria e auxiliares da cidade de São Cristóvão de Sergipe Del Rei em 20 de março de 1756. Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Brasil-Sergipe. Cx. 05, Doc. 403; Observação relativa aos corpos de auxiliares e ordenanças da Capitania da Bahia em 1791. AHU – Bahia. Coleção Castro e Almeida. Doc. 14.397; Ofício do Governador Fernando José de Portugal para Martinho de Melo e Castro sobre os corpos de auxiliares e ordenanças da guarnição militar da Capitania da Bahia em 11 de junho de 1791. AHU – Bahia. Coleção Castro e Almeida. Doc. 14.394. CALDAS, Jozé Antonio. Noticia geral de toda esta capitania da Bahia desde o se descobrimento até o prezente anno de 1759. In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia. Salvador: Secção Graphica da Escola de A. Artifices da Bahia. Nº 57, 1931. CAMPOS, José de Oliveira; VIANNA, Francisco V. Estudo sobre a origem histórica dos limites entre Sergipe e Bahia. Salvador: Typ. “Diário da Bahia”, 1891. p. 106-110. FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe, 1575-1855. Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1891. _______. História Territorial do Brazil. Vol. 1. Rio de Janeiro: Tip. Do Jornal do Comércio, 1906. MONTEIRO, Nuno Marques. Governadores e capitães-mores do império atlântico português no século XVIII. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia A. Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005. NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial I. Aracaju: UFS; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 3879

Ofício do Governador Fernando José de Portugal para Martinho de Melo e Castro sobre os corpos de auxiliares e ordenanças da guarnição militar da Capitania da Bahia em 11 de junho de 1791. AHU – Bahia. Coleção Castro e Almeida. Doc. 14.394. 3880 Observação relativa aos corpos de auxiliares e ordenanças da Capitania da Bahia em 1791. AHU – Bahia. Coleção Castro e Almeida. Doc. 14.397. 3881 Idem.

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DINÂMICAS DO PODER LOCAL: AS CÂMARAS DO RIO DE JANEIRO E SALVADOR EM UMA CONJUNTURA DE TRANSFERÊNCIA DE PODERES (1679-1766)3882 William de Andrade Funchal∗ Ao longo de 2013, a pesquisa “Dinâmicas do poder local: as câmaras do Rio de Janeiro e Salvador em uma conjuntura de transferência de poderes (1679-1766)” verificou, por meio das correspondências escritas pelas câmaras do Rio de Janeiro e Salvador enviadas ao Conselho Ultramarino, quais foram os impactos que ocorreram nas duas principais instituições de poder local do Brasil durante o longo período de transferência de poderes para o sul da colônia. Essa foi uma época na qual pode ser observado um deslocamento regional das relações de poder na América portuguesa, o que coincidiu com a própria valorização do atlântico sul no âmbito do Império português. Se no intervalo cronológico da União Ibérica (1580-1640) e da luta dos portugueses ou da elite luso-brasílica para a expulsão dos holandeses das partes nortes do Brasil e de Angola passaram as capitanias do norte a requerer maiores privilégios e posição de status, especialmente na fase de recém-instalação da corte bragantina; as capitanias do sul tenderam a alcançar status político e econômico, tendo o Rio de Janeiro assumido novas obrigações, como a de ser sede administrativa do centro-sul da colônia a partir de 1679. A crescente importância do Rio de Janeiro dentro de tal contexto, favorecido ainda pelas descobertas auríferas nas Minas Gerais e a manutenção da Colônia de Sacramento na região do Prata, levou o governo português a instalar um segundo Tribunal da Relação na região (1751) e, mais tarde, a tornar a cidade fluminense a nova sede do governo geral e do vice-reinado do Brasil (1763). Assim, a hipótese central do estudo era a de que, com as transformações ocorridas, a câmara fluminense havia adquirido novas e maiores atribuições, enquanto que a câmara de Salvador refletiria a perda de status administrativo que a região setentrional da América portuguesa passava a viver. Para tanto, era necessário responder algumas questões, tais como: quais os tipos de impacto que esse processo de transferência de poderes teve sobre as duas câmaras? Essas mudanças teriam sido de ordem administrativa, política ou de status? Como tais instituições se manifestaram em relação a esse processo? Nesse longo período, qual foi a natureza da interlocução das câmaras com o Conselho Ultramarino? Ela teve mais caráter peticionário, comunicativo, sugestivo, reivindicativo? Houve variação dos tipos de documentos enviados pelas câmaras ao Conselho Ultramarino de acordo com as conjunturas desse processo? Nesse processo de transferência de poderes teria ocorrido alteração no fluxo da correspondência? O Rio de Janeiro passou a ter maior comunicação em relação a Salvador? A opção de se trabalhar com a documentação do Conselho Ultramarino, reunida no Projeto Resgate Barão do Rio Branco, deveu-se ao fato de que, por ser um material riquíssimo, ele é uma importante ferramenta para se entender as instituições burocrático-administrativas do Império português e sua dinâmica entre as várias instâncias de poder, sendo, portanto, muito utilizada pela historiografia sobre as câmaras.3883 Na busca por responder algumas das questões acima levantadas foi possível, por meio do exame quantitativo, detectar que a câmara do Rio de Janeiro correspondeu-se significativamente mais vezes (210 mensagens) do que a de Salvador (78 mensagens) com o 3882

Pesquisa de Iniciação Científica realizada em 2013, sob a orientação da Profª Dra Denise A. Soares de Moura – FCHS/Unesp Franca – com apoio da Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). ∗ Graduado em História pela FCHS/UNESP – Franca/SP. 3883 O estudo realizado por Nauk Maria de Jesus sobre a implantação da estrutura administrativa na fronteira oeste da colônia Brasil no século XVIII, a partir da rivalidade entre as autoridades de Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá e de Vila Bela da Santíssima Trindade, é um exemplo de como os manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino, organizados pelo Projeto Resgate, têm possibilitado a realização de novas pesquisas. JESUS, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778).Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, UFF, 2006.

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ISSN 2358-4912 Conselho Ultramarino e o rei, confirmando que durante o período analisado houve uma mudança no fluxo de comunicação. Além disso, a variedade de tipos documentais emitidos pela câmara de Salvador (quatro tipos) foi menor se comparado com os da câmara fluminense (seis tipos). A análise revelou que a Carta foi a modalidade de interlocução preferida por ambas as câmaras. É compreensível o número elevado desse tipo de mensagem, pois era um documento dirigido diretamente ao rei e indicativo do status da instituição. Mais do que expressar uma reclamação, denúncia, elogio, a Carta revelava a importância da câmara na estrutura do poder do Império.3884 O número expressivo de Cartas enviadas pela câmara do Rio de Janeiro (183) indicou o processo de afirmação de seu status perante a própria realidade vivida pela região ao tornar-se sede do Estado do Brasil e passar a fazer parte do coração da política do Império na América. Contudo, o menor número de correspondências enviadas ao rei pela câmara de Salvador (33) não necessariamente significava a sua perda de status. A câmara soteropolitana, fundada em 1549, foi uma das primeiras no Brasil e desde 1656 era Senado, além disso, estava situada na cidade-sede do vice-reinado. Logo, a diminuição da sua comunicação com o rei indica um status e prestígio já consolidado, diferente da câmara fluminense, que vivia um processo de autoafirmação de uma nova condição de maior relevância na sociedade de Antigo Regime. Outro fato que chama a atenção é o de que Salvador fez mais uso dos Requerimentos (22 vezes), em número ligeiramente maior do que a câmara do Rio de Janeiro (15 vezes). Além disso, enquanto a correspondência do tipo Representação fora despachada em 21 ocasiões pelos camaristas soteropolitanos, a câmara fluminense não fez uso de tal documento durante todo o período analisado. Assim, partindo da definição apresentada por Heloísa Bellotto, que atesta o Requerimento como documento que atende a um propósito de pedido e a Representação como a expressão de uma queixa ou reclamação3885, sob o ponto de vista quantitativo os dados apontaram que a câmara de Salvador viveu momentos mais frequentes de expressão de suas insatisfações. No entanto, a leitura dos manuscritos revelou que tanto as Representações quanto os Requerimentos referiam-se mais às solicitações de reparo e andamento de obras públicas, como na cadeia e na igreja matriz, e de prorrogação de mandato de oficiais. Já a câmara do Rio de Janeiro, ao optar, embora em número menor do que a câmara de Salvador, pelo Requerimento, um tipo de documento fundamentado na jurisprudência, parece de fato ter vivido um processo de construção de poder. A análise dos documentos mostrou que os Requerimentos emitidos pelos camaristas fluminenses versavam não apenas sobre as melhorias a serem feitas na cidade, mas também sobre a nomeação de cargos, a defesa de suas prerrogativas em face da intromissão de representantes do governo central e a solicitação de direitos como aqueles usufruídos pelos moradores da Bahia. Há que se ressaltar que, apesar de a câmara do Rio de Janeiro não fazer o uso da Representação, ela lançou mão do Ofício (oito ocasiões) para também expressar suas 3884

Responsáveis pelo gerenciamento local das terras de além-mar, as Câmaras Ultramarinas foram, segundo Charles Boxer, ferramentas essenciais para o funcionamento administrativo de todo o império português, desde a mais remota localidade do território do Brasil até regiões do Índico e da África. A esses concelhos cabia garantir o reconhecimento da ordem régia em suas diversas possessões, assegurar a unidade imperial, organizar o espaço colonial, além de servir como mecanismo de diferenciação social, na medida em que reservava a ocupação de seus cargos apenas aos chamados homens bons, valorizando, pois, a atuação das elites formadas nas várias localidades. (BOXER, C. R. Charles Ralph. O império marítimo português 1415-1825. Trad. de Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 286308). Para Maria Fernanda Bicalho, nas colônias, tais organismos poderiam assumir outras atribuições de grande relevância: “as câmaras coloniais foram, durante todo o século XVII, órgãos fundamentais no gerenciamento de boa parcela das rendas, tributos, donativos coloniais. Cabia-lhes lançar taxas e impostos, administrar contratos, arrecadar contribuições voluntárias dos colonos, arcar quase que inteiramente com os custos da defesa.” (BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 349). 3885 BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002, p. 86.

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ISSN 2358-4912 reivindicações junto ao secretário do governo metropolitano, indicando, portanto, que seu poder de decisão ainda se encontrava em processo de fortalecimento e necessitava, pois, de maior consulta das autoridades reinóis. Por outro lado, a câmara de Salvador, ao prescindir da comunicação com o secretário do Conselho, demonstra a sua precedência e afirmação de seu status na administração colonial. A leitura e análise qualitativa da interlocução das câmaras de Salvador e do Rio de Janeiro apontaram que ambas os Senados não mediram esforços para o bom andamento da Republica. Tal fato demonstra que essas instituições integravam uma sociedade cuja organização, baseada no corporativismo, possibilitou o surgimento e ação de um autogoverno3886. De acordo com António Manuel Hespanha, no Estado moderno, “o poder político aparecia disperso por uma constelação de polos relativamente autônomos, cuja unidade era mantida, mais no plano simbólico do que no plano efectivo, pela referência a uma ‘cabeça’ única”3887. Corroborando as ideias do autor, João Fragoso ressaltará que “no caso português, a ideia de um Império ultramarino hierarquizado e rígido passa a ser substituído pela de uma monarquia pluricontinental caracterizada pela presença de um poder central fraco demais para impor-se pela coerção, mas forte o suficiente para negociar seus interesses”.3888 Ou seja, a monarquia portuguesa funcionava a partir da articulação de vários elementos que gozavam de autonomia político-jurídica (leis, regras, corporações) e da harmonia de seus participantes. Assim, as câmaras municipais de Salvador e Rio de Janeiro, como corpos administrativos de autogoverno e preservação do bem público, preocuparam-se com a necessidade de construção e andamento de várias obras, a saber: o abastecimento de água nas cidades, transporte dos alimentos, sistema de esgoto canalizado, criação de mosteiros, manutenção de hospitais, tudo se apresentando em uma clara demonstração de gerência e preservação do bem comum. Os dados levantados apontam que algumas matérias foram pauta de ambos os Senados, como a falta de moeda, os preços das cartas de jogar, as festividades religiosas, os descontentamentos com os religiosos, obras de melhoria na câmara e na cadeia pública. No caso da câmara de Salvador, os assuntos de maior destaque foram a nomeação de oficiais para ocupação de cargos no Senado e a permanência de Vasco Fernandes César de Menezes no posto de vice-rei do Brasil. Estas são questões ligadas à preservação política da instituição em si, ou seja, garantir um ambiente institucional favorável, tanto do ponto de vista dos funcionários locais como régios. Já no Rio de Janeiro, os assuntos mais mobilizados pelos oficiais camarários foram o desempenho e serviços executados pelos representantes régios e governantes da capitania, e as relações com o governador Luís Vahia Monteiro, estas de caráter contestatório. Diferentemente das pautas discutidas pelo Senado de Salvador, essas são matérias que demonstram uma situação de animosidade vivida no município fluminense, no qual o exercício e status de poder da instituição camarária ainda estavam em processo de afirmação. Outro ponto a ser destacado é o fato de os membros da câmara fluminense, ao contrário dos camaristas soteropolitanos, terem uma maior tendência a intervir em assuntos e decisões que seriam de competência das autoridades metropolitanas, como demonstram as correspondências dessa instituição sobre o auxílio às terras ao sul da colônia. Vejamos o caso. A primeira mensagem, de 06 de junho de 1680, traz o seguinte verbete: Carta dos oficiais da Câmara da cidade do Rio de Janeiro ao príncipe regente [D. Pedro] sobre o miserável estado da praça do Rio de Janeiro, com os socorros de mantimentos e gente que se enviaram à Nova Colónia [do Sacramento], sugerindo que a Bahia, Pernambuco e São Paulo também auxiliem na constituição desta povoação. Um dos principais motivos para que o Rio de Janeiro passasse a ter importância na América portuguesa foi a sua proximidade com a região mais meridional do Brasil, mais precisamente por oferecer proteção contra as investidas dos espanhóis na então disputada região platina. Esses constantes ataques foram objeto de correspondência das autoridades locais que sugeriram 3886

HESPANHA. António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal. Século XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 297-301. 3887 Ibidem., p. 297. 3888 FRAGOSO, João L.R. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII. Revista Tempo. 2009, no prelo.

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ISSN 2358-4912 a transferência da capital do Brasil para a cidade do Rio de Janeiro, esta vista como um ponto estratégico para a defesa das fronteiras do extremo sul: Ofício do governador do Rio de Janeiro, conde de Bobadela, ao secretário do Estado do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, apresentando os resultados referentes à situação em Buenos Aires e a movimentação de D. Pedro de Cevallos e suas tropas; expondo os motivos que o impedem de recolher-se na Bahia, justificando as razões de se transferir a capital para o Rio de Janeiro, devido a sua boa localização, capacidade de defesa e importância econômica, e devido às notícias recebidas de Pernambuco que indicavam a possibilidade de uma guerra envolvendo Portugal, visto o reino de Castela ter declarado guerra a Inglaterra.3889 O ofício, que remonta à data de 12 de abril de 1762, traz um fato que se tornara uma realidade concreta para a cidade fluminense, que meses depois receberia o título de nova sede políticoadministrativa do vice-reino do Brasil. Anteriormente a essa data, e conforme comprova a Carta da câmara do final dos seiscentos, coube ao Rio de Janeiro arcar sozinha com grande parte dos custos de defesa e provimentos, além de ter que contribuir com a composição demográfica da Colônia de Sacramento, cuja fundação remonta ao ano de 1680. Todas essas atribuições, justificadas pela dificuldade da metrópole em financiar as despesas de manutenção da colônia, sobrecarregaram as receitas fluminenses, deixando-a em uma situação financeira nada favorável. Assim, solicitar que outras praças também ajudassem com seus recursos na organização do novo potentado significava mais do que uma tentativa de preservar seus habitantes de um possível estado de miséria – pressupunha uma modificação na política imperial de colonização. É plausível que uma determinada praça manifeste o seu descontentamento por ser a única a ter que disponibilizar grande parte de seus recursos para ajudar a compor outra região, no entanto, sugerir especificamente quais as capitanias que deveriam assumir tal responsabilidade determina um grau considerável de poder e/ou de privilégio no staff burocrático imperial. Além disso, a sugestão da câmara indica o esforço de afirmar-se como polo de autoridade local, ou seja, através do exercício de um poder de opinião junto ás autoridades metropolitanas. Reforçando a sua contrariedade em assumir obrigações junto à fronteira sul do Brasil, os camaristas fluminenses enviaram outra Carta às autoridades reinóis treze anos mais tarde: Carta dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro ao rei [D. Pedro II] solicitando serem dispensados de contribuir para os socorros da Nova Colónia do Sacramento3890. E outra em junho de 1697: Carta dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro ao rei [D. Pedro II] sobre a contribuição que prestaram para o socorro da Nova Colónia do Sacramento, o soldo dos governadores e a infantaria desta praça; os pesado tributos que pagam sobre todos os gêneros que são comercializados no Rio de Janeiro, e propondo que o rendimento proveniente dos couros da Nova Colónia do Sacramento seja destinado para a sustentação deste seu presídio3891. Após sugerir que Bahia e Pernambuco socorressem a Nova Colônia, a câmara do Rio de Janeiro isenta-se da faculdade de suprir os novos domínios do sul do Brasil, alegando estado de miséria, e pede ainda ao governo metropolitano uma espécie de reparação pelo ônus causado com a ajuda disponibilizada, sugerindo que os ganhos arrecadados na nova colônia fossem destinados ao presídio fluminense. Logo, essa é mais uma demonstração de como o poder local foi atuante na administração colonial, inclusive no que diz respeito à sugestão de aplicação das rendas provenientes do novo estabelecimento. É perceptível, na documentação exposta acima, que o Rio de Janeiro veio, gradativamente, tornando-se um polo de poder no centro-sul, parecendo, inclusive, mais uma força concorrente com o Reino do que propriamente uma colônia subordinada. Desde o advento da exploração aurífera, o Rio de Janeiro vinha alcançando precedência nos negócios políticos do sul, tal qual demonstrou em estudo Adriana Romeiro.3892 Ao mesmo tempo, desde a carta régia de 1698, São Paulo não mais estava sob a jurisdição da Bahia e passou a ser administrada pelo governo fluminense, bem como a Colônia de Sacramento um ano depois. 3889

AHU-Rio de Janeiro, cx. 67, doc. 53. AHU_ACL_CU_017, Cx. 60, D. 5759. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 23. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 573. 3891 AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 67. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 625. 3892 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, praticas e imaginário politico no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 3890

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ISSN 2358-4912 Nesse sentido, concorda-se, em certa medida, com Maria Fernanda Bicalho ao afirma que “Armava-se, assim, o tripé Rio de Janeiro-Minas-Colônia de Sacramento, que iria se somar, em novos moldes – e com uma importância geopolítica jamais vivida por aquela capitania anteriormente – ao triângulo negreiro Luanda-Rio de Janeiro-Buenos Aires”,3893 entretanto, alterar-se-ia essa configuração com o acréscimo da capitania de São Paulo. Certamente esse papel de liderança em vasta área do território influenciou o sentimento de precedência política que a câmara fluminense sugere em suas cartas. Inegavelmente, a defesa das minas e das fronteiras meridionais fazia do Rio de Janeiro a região mais importante do Atlântico Sul no findar do século XVII e transcorrer do XVIII. O exemplo anteriormente citado demonstra que as câmaras coloniais disponibilizaram grande parte de seus recursos com a finalidade de proteger e manter sob a posse dos portugueses as terras do ultramar. Tais encargos, de caráter quase que obrigatórios, comprometiam sobremaneira o equilíbrio financeiro do Senado e, não raras vezes, as instâncias municipais tiveram que enfrentar situações de endividamento. Nas correspondências da câmara de Salvador, por sua vez, não foram identificadas mensagens que pudessem apontar uma tentativa de interferência de seus membros em assuntos que seriam da alçada do poder central, isto é, referentes às questões macro, tampouco conflitos ou medidas que corromperiam a sua autonomia. Porém, conforme anteriormente dito, a câmara soteropolitana, como instituição local da cidade-capital do Brasil, já tinha para si um poder consolidado, além de privilégios e regalias que permitiam a ela recorrer com menor frequência ao reino para a tomada de decisões. Em outras palavras, os camaristas de Salvador já gozavam de grande autonomia. Assim, pelo exame qualitativo, constatou-se que a natureza da interlocução da câmara de Salvador e do Rio de Janeiro foi tanto de caráter comunicativo, sugestivo quanto peticionário e reivindicativo. Contudo, nesse processo de transferência de poderes, a câmara fluminense manteve uma postura mais requerente e, ao mesmo tempo, de maior resguardo de suas práticas administrativas, o que indica a pujança que o órgão assumiu no período, acompanhando, portanto, o quadro evolutivo da capitania do Rio de Janeiro no que concerne ao status políticoadministrativo. Confirma essa hipótese o fato de tal instituição ter recorrido às autoridades metropolitanas a fim de requerer direitos e privilégios que já eram usufruídos por outras instituições de governo local do Império (Pernambuco, Salvador, Porto)3894. As concessões de mercês e privilégios também podem ser entendidas como um modo de a monarquia delimitar as representações dos indivíduos por meio de hierarquias, mas também tal prática encaixa-se no que muitos estudiosos acreditam ser uma “economia moral do dom”, a qual, segundo Bicalho: (...) baseava-se num compromisso lógico – num pacto político – entre rei e súditos, por intermédio de seus órgãos de representação, ou seja, as câmaras. Dessa forma, o indivíduo ou o grupo que, em troca de serviços prestados (...), requeria uma mercê, um privilégio ou um cargo ao rei, reafirmava a obediência devida, alertando para a legitimidade da troca de 3893

BICALHO, Maria Fernanda. Op, cit., p. 317. No período analisado pela presente pesquisa, foram identificados documentos dos camaristas fluminenses solicitando a equiparação de direitos e privilégios aos de Pernambuco, Salvador e Porto e que ainda não eram gozados pelos habitantes da cidade do Rio de Janeiro. Dentre esses pedidos, destaca-se a Carta de 26 de agosto de 1729 na qual os oficiais pedem para nomear dois oficiais, “sendo preciso ser muitos feitos homens com capacidade de inteligência judicial”3894 para auxiliarem o escrivão da mesma instituição “na mesma forma em que os há na cidade da Bahia pagando o mesmo ordenado que aqueles têm pelos bens do conselho, no que se segue muito grande utilidade”. Além disso, os oficiais fluminenses solicitam que o rei concedesse a provisão que autorizasse auxílio ao oficial escrivão do referido Senado, “pois parece não haver a câmara de Salvador e do Porto mais regalias do que a do Rio de Janeiro, a qual o rei tanto tem honrado de privilégios” (AHU-Rio de Janeiro, cx. 21, doc. 101. AHU_ACL_CU_017, Cx. 20, D. 2233). Logo, vê-se que o Senado fluminense orienta-se pelo posicionamento da Bahia em uma afirmação de status na hierarquia administrativa da colônia. Com solicitações como essas, a câmara ainda confirma a tendência de posição do Rio de Janeiro como novo polo de atração econômico-populacional. A ampliação de suas atividades administrativas significa, pois, o reforço da sua ligação com a Monarquia, por meio da prestação de uma gama maior de serviços ao rei. 3894

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ISSN 2358-4912 favores e, portanto, para a obrigatoriedade de sua retribuição. Ao retribuir os feitos de seus súditos ultramarinos, o monarca reconhecia o simples colono como vassalo, reforçando o sentimento de pertença e estreitando os laços de sujeição em relação ao reino e à monarquia, reafirmando o pacto político sobre o qual se forjava a soberania portuguesa nos quatro cantos do mundo.

Sem dúvida, a prática de concessão de benefícios e mercês viabilizava o poder metropolitano e sua governabilidade nos domínios do Império, mas, ao mesmo tempo, esse pacto tácito de “compromisso lógico” também serviu para impulsionar as aspirações de obtenção de status e poder e, consequentemente, de maior autonomia dos moradores do ultramar. De maneira mais nítida, corroboram também a proposição desta pesquisa os conflitos de jurisprudência entre câmara e representantes da Coroa, que chegaram até a fazer com que o próprio rei determinasse que os seus escolhidos ouvissem o Senado3895, revelando o tom mais interpelativo a que o diálogo havia chegado. Todos esses elementos denotam, sem dúvida, o poder que a instituição camarária fluminense estava ganhando ou trabalhando para conquistar nos séculos XVII e XVIII. Portanto, o presente trabalho pretendeu contribuir para demonstrar a importância das instituições municipais como um dos pilares da Coroa portuguesa nos territórios ultramarinos e a grande força interna que tais concelhos tinham para sobreviver às constantes ameaças que sobre eles recaíam a fim de minimizar ou suprimir seu domínio político local. Dentro desse contexto, o ganho de status e poder da câmara do Rio de Janeiro perante o governo central constatado pela pesquisa vem no sentido de colaborar com o amplo debate historiográfico sobre as relações de poder que se configuraram à época do Antigo Regime, e que nos últimos anos tem demonstrado a importância das relações de negociação entre a monarquia e os povos do além mar na manutenção dos governos imperiais. Referências Correspondências da câmara de Salvador enviadas ao CU AHU-Baía, cx. 76, doc. 20 e 64. AHU_ACL_CU_005, Cx. 71, D. 5986 AHU-Baía, cx. 92, doc. 96. AHU_ACL_CU_005, Cx. 82, D. 6736 AHU-Baía, cx. 47, doc. 24. AHU_ACL_CU_005, Cx. 40, D. 3658. AHU-Baía, cx. 69, doc. 36. AHU_ACL_CU_005, Cx. 65, D. 5500. AHU-Baía, cx. 76, doc. 20 e 64. AHU_ACL_CU_005, Cx. 71, D. 5986. AHU-Baía, cx. 96, doc. 10. AHU_ACL_CU_005, Cx. 89, D. 7250. AHU-Baía, cx. 151, doc. 4. AHU_ACL_CU_005, Cx. 145, D. 11098. Correspondências da câmara do Rio de Janeiro enviadas ao CU AHU-Rio de Janeiro, cx. 7, doc. 20. AHU_ACL_CU_017, Cx. 7, D. 714. 3895

As correspondências analisadas revelaram que houve tentativas de sobreposição do funcionalismo real às atribuições dos representantes locais e que resultou em alguns conflitos de jurisdição tanto em Salvador quanto na capitania fluminense, nesta em maior proporção. Tais desentendimentos, no entanto, mostraram que as câmaras permaneceram legitimando suas atribuições político-sociais autônomas no município. O fato de o Rio de Janeiro vivenciar um momento de ascensão plena de seu dinamismo político-econômico, ganhando proeminência na administração imperial na América, também contribuiu para caracterizar-se como um espaço de disputas de interesses que buscavam controle do poder e status na região. Assim, destacamos o conflito entre a câmara fluminense e o provedor, Bartolomeu Cordovil, sobre as construções de casas junto das marinhas da cidade. A câmara, vendo sua jurisdição atropelada, não exatamente pela vontade do rei, mas pelo trabalho do provedor, lança mão da Carta, conseguindo algum resultado nesse embate: a Coroa determinou que o superior de Bartolomeu Siqueira Cordovil, no caso o governador Luís Vahia Monteiro, se dirigisse à câmara para ouvir seus integrantes, conforme se vê na abertura da referida mensagem: Pelo governador desta capitania Luis Vaia Monteiro nos foi presente a ordem de V. M. que Deus guarde, pela qual é V. M. servido, mandar ouvir este Senado acerca da conta, que deu o Provedor da Fazenda Real desta cidade Bartolomeu de Siqueira Cordovil sobre as marinhas desta mesma cidade, querendo que nelas se não façam casas. AHU-Rio de Janeiro, cx. 18, doc. 22, 24. AHU_ACL_CU_017, Cx. 17, D. 1853.

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ISSN 2358-4912 AHU-Rio de Janeiro, cx. 22, doc. 71. AHU_ACL_CU_017, Cx. 21, D. 2317. AHU-Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 4. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 443. AHU-Rio de Janeiro, cx. 67, doc. 53. AHU_ACL_CU_017, Cx. 60, D. 5759. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 23. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 573. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 67. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 625. AHU-Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 3. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 442. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 22. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 568. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 5. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 569. AHU-Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 3. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 442. AHU-Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 75. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 513 AHU-Rio de Janeiro, cx. 5, doc. 114. AHU_ACL_CU_017, Cx. 5, D. 552. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 5. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 569. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 23. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 573. AHU-Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 67. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 625. AHU-Rio de Janeiro, cx. 18, doc. 22, 24. AHU_ACL_CU_017, Cx. 17, D. 1853. AHU-Rio de Janeiro, cx. 19, doc. 97. AHU_ACL_CU_017, Cx. 18, D. 1982. AHU-Rio de Janeiro, cx. 20, doc. 72. AHU_ACL_CU_017, Cx. 19, D. 2110. AHU-Rio de Janeiro, cx. 26, doc. 9. AHU_ACL_CU_017, Cx. 20, D. 2263. AHU-Rio de Janeiro cx. 22, doc. 19. AHU_ACL_CU_017, Cx. 21, D. 2267. AHU-Rio de Janeiro, cx. 22, doc. 61; cx. 27, doc. 19. AHU_ACL_CU_017, Cx. 21, D. 2307. AHU-Rio de Janeiro, cx. 25, doc. 53. AHU_ACL_CU_017, Cx. 23, D. 2499. AHU-Rio de Janeiro, cx. 42, docs. 75, 50; cx. 44, doc. 129. AHU_ACL_CU_017, Cx. 37, D. 3804. AHU-Rio de Janeiro, cx. 45, doc. 72. AHU_ACL_CU_017, Cx. 38, D. 398. AHU-Rio de Janeiro, cx. 47, doc. 107. AHU_ACL_CU_017, Cx. 40, D. 4174. AHU-Rio de Janeiro, cx. 53, docs. 83, 74, 77, 78; cx. 60, doc. 32. AHU_ACL_CU_017, Cx. 46, D. 4686. AHU-Rio de Janeiro, cx. 54, doc. 29.AHU_ACL_CU_017, Cx. 47, D. 4731. AHU-Rio de Janeiro, cx. 62, doc. 27.AHU_ACL_CU_017, Cx. 52, D. 5234. AHU-Rio de Janeiro, cx. 63, doc. 79. AHU_ACL_CU_017, Cx. 56, D. 5487 Obras BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2002. Bicalho, Maria Fernanda Baptista, Fragoso, João, Gouvêa, Maria de Fátima Silva. Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e governabilidade no Império. Revista Penélope, nº 23, 2000. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. A cidade e o Império:o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BICALHO, Maria Fernanda, FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade do Rio de Janeiro e a articulação da região em torno do Atlântico-Sul: Séculos XVII e XVIII. Revista de História Regional, vol. 3. - nº 2 – 1998. BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista brasileira de História, São Paulo, v.18, n.36, 1998 BICALHO, Maria Fernanda. O Rio de Janeiro no século XVIII: A transferência da capital e a construção do território centro-sul da América portuguesa. Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/artigos/dossie1.pdf. BORREGO, Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). Tese de doutorado apresentada a FFLCH, São Paulo, USP, 2006. BOXER, C. R. O Império marítimo português, 1415-1825. Trad. de Anna Olda de Barros Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Estampa, 1987 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed., São Paulo: Editora Globo, 2001.

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