A ilegitimidade da escravidão indígena: Vasco de Quiroga e a \"Información en derecho\" (1535)

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V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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ISSN 2358-4912

A ILEGITIMIDADE DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA: VASCO DE QUIROGA E A INFORMACIÓN EN DERECHO (1535) Geraldo Witeze Junior A tragédia da conquista e colonização da América pelos ibéricos foi bastante divulgada tanto no momento em que acontecia quanto posteriormente. Cronistas e historiadores se surpreendem desde o fim do século XV com o encontro entre culturas tão diferentes, isoladas umas das outras por tanto tempo. O maior destaque cabe à magnitude da conquista e aos milhões de mortos decorrentes dela. Astecas e incas foram derrotados com certa facilidade pelos espanhóis, mas a imagem resultante da conquista foi sobretudo a da leyenda negra devido à crueldade com que os europeus trataram os povos conquistados, conforme relatou o frei Bartolomé de Las Casas em sua Brevisima relación de la destrucción de las Indias. Las Casas é sem dúvida o mais famoso defensor dos índios, mas muitos outros se dedicaram a essa tarefa inglória, dentre os quais está Vasco de Quiroga. Uma das características mais marcantes da colonização foi a busca incessante por ouro e a escravização dos índios, nem sempre de acordo com a legislação vigente, que ora permitia ora proibia a prática. A despeito de permissões ou proibições, os espanhóis exploraram a mão de obra indígena incessantemente com o objetivo de adquirir a riqueza fácil provinda dos metais preciosos. Outro fator importante para que a escravidão se generalizasse foi a desvalorização europeia do trabalho manual: os que pretendiam ascender socialmente almejavam, como na península, não trabalhar. O debate provocado pela conquista da América é imenso já no século XVI e a escravidão sempre foi um tema importante. Las Casas chegou a questionar a própria legitimidade da posse do continente americano pelos ibéricos, conforme esclareceu Hector Bruit (2003). Se mesmo a legitimidade da colonização era questionada, quanto mais a escravidão indígena! E de fato Las Casas dedicou todos os seus esforços para denunciar as incontáveis crueldades europeias, para defender a humanidade dos índios e combater a escravidão e o sistema de encomiendas. Houve porém estratégias diferentes para defender os índios e combater a escravidão, sem que fosse necessário questionar a colonização. Vasco de Quiroga optou por esse caminho. Nomeado ouvidor da Segunda Audiência da Nova Espanha, foi para o México em 1531, quando já contava com idade avançada1649 e possuía experiência jurídica à serviço da coroa. Posteriormente se tornou o primeiro bispo de Michoacán, sob a autoridade do arcebispo humanista Juan de Zumárraga. Quiroga aceitava a colonização porque via nela a possibilidade de renovação do cristianismo e da construção de uma nova igreja com aqueles homens novos que haviam sido encontrados. Muitos religiosos europeus compartilhavam dessa visão, baseada no humanismo cristão de Erasmo e em sua tentativa de reformar o catolicismo. Na Información en derecho (2002, p. 200) lemos o seguinte sobre os índios convertidos: Porque éstos son los que aman y desean mucho los santos sacramentos de la Iglesia, y los que confiesan y casan y hacen las disciplinas con fervor y devoción y humildad, y en número increíble a quien no lo ha visto, y los que aman a los cristianos y sustentan la tierra, y los que son de increíble obediencia y humildad y de quien se esperaba y espera en estas partes y Nuevo Mundo una muy grande y reformada iglesia, si nuestros pecados y astucias y cautelas del antiguo Satanás que tanto los persigue los dejase vivir y no diese con todos al través.

No Novo Mundo seria possível o que no Velho se tornara inviável: retomar os valores da igreja cristã primitiva. Isso porque os índios eram, de acordo com o pensamento dos primeiros missionários, muito mais propensos a praticar o evangelho, sem a hipocrisia reinante na cristandade europeia e denunciada em obras célebres como O Elogio da loucura, de Erasmo. 1649

Não há plena certeza com relação ao ano de nascimento de Quiroga, mas os mais prováveis são 1470 ou 1478 (SERRANO GASSENT, 2001; VERÁSTIQUE, 2000). Assim, veio para a América com 53 ou 61 anos de idade.

489 ISSN 2358-4912 A cobiça desenfreada dos espanhóis era um formidável empecilho a esse projeto humanista. Os índios estavam sendo escravizados e levados para trabalhos forçados nas minas de ouro e prata sem nenhuma preocupação com sua sobrevivência. Além da guerra de conquista e das doenças, a escravidão nas minas ia ceifando incontáveis vidas. As mortes dos índios convertidos impossibilitava, é claro, o projeto de construção da igreja renovada na América, daí que tantos missionários tenham se levantado contra a escravidão. A estratégia adotada por Vasco de Quiroga foi a de propor uma forma de colonização distinta: organizou comunidades de índios chamadas de pueblos-hospitales cujas regras se baseavam na Utopia de Thomas Morus e propôs que fossem o modelo da colonização da América. Apesar de não ter obtido sucesso em seu objetivo maior, que era o de mudar os rumos da colonização, fundou alguns povoados que se mantiveram até o início do século XIX. O argumento central de Quiroga aponta para a necessidade de estabelecer um ordenamento jurídico e político para aquele Novo Mundo em resposta ao desregramento generalizado então reinante. Assim, deveriam ser fundados povoados para agrupar os índios, dispersos pela derrocada de seu antigo mundo, o que permitiria um maior controle social, impedindo os abusos cometidos pelos espanhóis. Nesses locais os nativos seriam instruídos e catequizados, não haveria propriedade privada e todos trabalhariam em prol do bem comum. Era uma utopia social cristã, como bem colocou Stelio Cro (1978). Apesar de não condenar o sistema de encomiendas, a escravidão indígena era um grande problema para o projeto de Quiroga. Durante sua vida ele de fato teve diversos enfrentamentos com os encomendeiros pelo fato de ser contrário à escravidão indígena e lutar pelo seu fim. Além da compaixão cristã e do sonho utópico1650 de renovação da igreja, uma questão central se manifesta na argumentação do ouvidor: trata-se do problema jurídico da escravidão indígena. Como jurista, Quiroga deu especial atenção para a questão da legalidade da escravidão indígena. Sem questionar o ordenamento jurídico espanhol, que conhecia muito bem, procurou mostrar que a escravização dos índios era contrária às leis. Assim, tratou de desmantelar as justificativas legais dessa prática, que se baseavam nos institutos da guerra justa e da escravidão de resgate. Sustentou que nenhuma das duas poderia ocorrer no Novo Mundo. O assunto é por demais complexo para ser explorado à exaustão, de forma que darei apenas alguns apontamentos. Quiroga confiava na razoabilidade da coroa e no humanismo do imperador Carlos V, de forma que pretendeu informá-lo sobre o que de fato acontecia na América. Somente informações falsas poderiam levar o monarca a decidir pelo retorno da escravidão e os responsáveis por essas informações só poderiam ser pessoas mal intencionadas que se beneficiariam da escravidão indígena, submetendo o bem comum aos interesses individuais. Isso seria ruim para os índios, para a igreja e para a coroa, beneficiando apenas alguns poucos cobiçosos ávidos por ouro e desprovidos de bons valores. A guerra justa era uma das condições para aprisionar os índios e torná-los escravos. Sobre isso lemos o seguinte: V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

Porque en cuanto a los esclavos de guerra, no se hallará, en hecho de verdad, para que se pueda justificar la guerra contra estos naturales, como la provisión lo requiere, que ellos nos infesten, molesten ni impidan paso, ni recobranza de cosa nuestra, ni se rebelen, ni resistan la predicación evangélica, si esta les fuese ofrecida con los requisitos necesarios como tengo dicho [...] (QUIROGA, 2002, p. 92)

Quiroga acreditava na eficiência da pregação evangélica e via os índios bastante propensos à conversão. Por isso justificava qualquer possível rejeição deles ao cristianismo como responsabilidade dos espanhóis, que não davam bons exemplos nem se esforçavam para que a pregação fosse compreensível aos índios. Já no século XVI criou-se um mal-estar devido ao fato de as comunicações oficiais serem feitas aos nativos numa língua que não compreendiam (ELLIOTT, 1998), o que, claro, não faz o menor sentido caso o objetivo seja o entendimento mútuo. Na prática essas comunicações serviam apenas como justificativa tosca e infundada para fazer-lhes guerra. Os motivos considerados válidos para a guerra justa estão listados acima: hostilidade aberta, impedir a passagem, roubos, rebeliões e resistência à pregação evangélica. A última é o assunto mais 1650

Utópico porque vinculado à Utopia de Morus, não porque fosse impossível ou inverossímil.

490 ISSN 2358-4912 espinhoso e não se resolveu facilmente: no debate da época muitos afirmaram que os índios tinham inclusive o direito de rejeitar a fé cristã ainda que outros tenham entendido que deviam ser obrigados a aceitá-la. Quiroga não se aprofundou na questão, mas sua visão se distancia da ideia de compelir os índios ao cristianismo. Isso se deve à sua prática cotidiana, em que via os índios aceitando de bom grado a pregação e a instrução dos primeiros missionários. Consequentemente, constatava que não havia rejeição ao evangelho. Quanto aos demais motivos Quiroga afirma que nenhum deles era cumprido, portanto a guerra contra os índios não era legítima. Poderíamos discutir detidamente cada um deles, mas sobretudo a ideia de rebelião soa no mínimo problemática, afinal só pode se rebelar aquele que está sujeito a algo ou alguém. No entanto, em que se baseava a sujeição dos índios aos espanhóis? Apenas nas bulas papais que garantiam a Castela a posse do Novo Mundo. Ora, a legitimidade da colonização, conforme as bulas, estava condicionada à evangelização dos índios – o que Quiroga lembra incessantemente. Diversos juristas e teólogos espanhóis salientaram ainda que a validade das bulas papais estava condicionada à aceitação do evangelho pelos índios e a sua submissão voluntária à coroa de Castela (ELLIOTT, 1998). Sem evangelização não haveria submissão nem à igreja nem à coroa, de forma que a acusação de rebelião perderia todo o sentido. Por isso, diferente do que acontecia, a evangelização dos índios deveria ser a principal preocupação dos que fossem para a América. Quiroga não está preocupado com o aspecto negativo do assunto – a possível rejeição dos índios ao evangelho –, insistindo antes na defesa de sua solução: a pregação amorosa e inteligível do evangelho, as obras de misericórdia, a construção dos povoados, a instrução sob a tutela dos frades. Não tinha dúvidas do sucesso de suas propostas, pois aqueles índios, feitos de cera mole para todo bem, como dizia, não rejeitariam a boa mensagem cristã. Como homem eminentemente prático concentrou-se na situação concreta daqueles índios comuns que andavam espalhados pelos montes fugindo dos espanhóis que lhes ofereciam apenas a escravidão e a morte nas minas. A conquista e a colonização eram fatos dados que não fazia sentido discutir. Não se interessava em discussões teológicas infindáveis sem vínculo com a vida concreta: entendendo os índios como seres humanos ontologicamente iguais aos europeus, era preciso levar-lhes o evangelho e garantir que tivesse uma existência digna. Por isso os argumentos estão todos voltados para a resolução dos problemas práticos, o que passava pela revogação da nova permissão para escravizar os índios. Além da guerra justa havia também outra justificativa para a escravidão: a alegação de que os índios já eram escravos e tinham apenas sido vendidos aos espanhóis. A isso Quiroga (2002, p. 100) responde de forma bastante clara insistindo que sob seus antigos senhores os índios não eram escravos:

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Aunque, en la verdad, como adelante diré, estos no son esclavos ni lo pueden ser, antes se quedan en su libertad, lugar y familia, y lo retienen todo, salvo cuando los acuden solamente con algún género de servicio o tributo en cada año, o de ciertos en ciertos días con algunas obras como gente alquilada.

A escravidão entre os índios não era como a praticada entre os espanhóis porque o escravo não se tornava propriedade do seu senhor, devendo-lhe apenas tributos ou serviços. Os “escravos” mantinham sua vida normalmente, com suas famílias e posses, vivendo no mesmo lugar. Ou seja, não era de fato escravidão. Partindo de informações sobre as práticas indígenas obtidas de relatos de terceiros e da própria observação, Quiroga explora a legislação hispânica para mostrar as distinções entre a prática indígena que define como “aluguel de obras” e a escravidão. Os índios vendiam suas obras e não sua liberdade. E perder a liberdade era a condição básica para a escravidão conforme praticada entre os espanhóis. Homens livres não podiam ser vendidos como escravos pois “el hombre libre no es mercancía” (QUIROGA, 2002, p. 133). Isso significaria uma mudança arbitrária na natureza de sua condição jurídica, assim a escravidão dos índios se tornava ilegal. Na Información en derecho Quiroga desenvolve longamente os seus argumentos, dando extraordinária ênfase às diferenças entre as práticas indígenas e espanholas. Destaca sempre que entre os índios os que alugavam suas obras, mesmo perpetuamente, conservavam a liberdade, a cidade, a família e a ingenuidade – condição de liberdade. Essa prática era quase como um contrato, tinha regras definidas e estava bem distante da superexploração praticada pelos espanhóis – tão grande que as minas se

491 ISSN 2358-4912 tornaram sinônimo de morte e foram comparadas com o inferno. Os serviços prestados pelos índios uns aos outros eram bastante leves e alteravam pouco a vida ordinária daqueles que deviam prestá-los. Quiroga (2002, p. 155) explica a incompreensão, decerto bastante conveniente aos encomendeiros e colonos, que levou os índios a serem tidos por escravos, chamando a atenção para um problema linguístico: “entre ellos no saben que cosa sea [a escravidão] ni lo entienden ni se les puede dar a entender, porque, como entre sí no lo usan, no hay vocablo propio para ello”. A dificuldade para compreender a língua e as formas de comunicação do outro é uma das marcas da conquista e colonização da América, como apontou Todorov (2010). Essa confusão de idiomas levava os índios a afirmarem, quando indagados pelos espanhóis, que eram escravos, isso porque se baseavam no seu próprio vocábulo que não era equivalente ao termo esclavo. O ponto aqui destacado é este: a tradução mal feita de uma palavra espanhola sem equivalente na língua indígena levava à afirmações falsas com consequências terríveis. Quiroga sustenta que um mal entendido idiomático não poderia legitimar de forma alguma a escravidão. Procura de um lado mostrar a inocência dos índios, sem se aproximar da ideia do bom selvagem, e do outro evidenciar a malícia dos espanhóis, pouco preocupados com a eficiência da comunicação ou com a obediência às leis. Vasco de Quiroga é um legalista. Não abre mão das minúcias jurídicas para defender os seus pontos de vista. Sua forma de proceder é acima de tudo interpretativa. Sem questionar o ordenamento jurídico espanhol, atenta para as obrigações éticas, morais e legais dos espanhóis para com os índios. Talvez soubesse que questionar a conquista e a colonização teria efeitos nulos, preferindo partir da história para defender os argumentos – e os índios, por quem mostrou tanta admiração. A solução proposta por tato Vasco, forma carinhosa como é lembrado pelos índios de Michoacán, é sem dúvida conciliadora. Menos radical que Las Casas, foi ao menos um pouco mais eficaz. O mais famoso defensor dos índios fracassou na sua tentativa de colonização harmônica entre camponeses europeus e índios, ao passo que os povoados de Quiroga sobreviveram por três séculos. É pouco, porque o massacre indígena não cessou até hoje, mas pode ser, como a utopia, uma mensagem na garrafa que podemos resgatar e que talvez nos faça sonhar, como ele, não com um mundo perfeito, mas pelo menos melhor. V Encontro Internacional de História Colonial: Cultura, Escravidão e Poder na Expansão Ultramarina (Séculos XVI ao XIX)

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